Categoria: Opinião

  • A Economia do Fogo num país de aselhas governado por mentecaptos

    A Economia do Fogo num país de aselhas governado por mentecaptos


    O Governo voltou a anunciar um cardápio de medidas para acudir às zonas devastadas pelos incêndios deste ano: isenções, apoios financeiros a famílias, empresas e agricultores, reconstrução de casas, reforço dos cuidados de saúde, prorrogação de prazos fiscais e contributivos. Um extenso rosário de paliativos, embrulhado em discurso piedoso, que já conhecemos de cor e salteado.

    A cada tragédia sucede a mesma liturgia: visitas oficiais, promessas de apoios, choradeira perante as câmaras, discursos sobre a “solidariedade nacional”. Depois, silêncio, esquecimento e a inevitável repetição da catástrofe. Este é um ciclo vicioso que se arrasta há décadas e que revela não apenas incompetência, mas uma deliberada recusa em alterar a estrutura de um país refém da sua própria economia do fogo.

    Não se trata de má sorte. Não se trata de acidentes. Portugal não tem quatro anos malditos no espaço de um quarto de século por mero acaso – 2003, 2005, 2017 e agora 2025 não são caprichos da Natureza. São a prova empírica de que vivemos num país de aselhas e de mentecaptos políticos, incapazes de agir estruturalmente. Os Governos sucedem-se, mudam as caras, trocam-se siglas partidárias, mas o resultado é sempre o mesmo: hectares e hectares carbonizados, vidas destruídas, um território rural cada vez mais desertificado. Não é azar – é gestão criminosa.

    E, contudo, insiste-se na farsa dos bodes expiatórios. Há sempre quem aponte o dedo aos “incendiários”, às “ignições criminosas”, ao “clima extremo”, até aos “interesses do lítio”. Tudo serve para iludir a raiz do problema: a desordem fundiária, o minifúndio abandonado, a ausência de ordenamento florestal, a dependência do eucalipto e do pinhal, a ausência de políticas sérias de prevenção. O país não é um país de incendiários – é um país que aprecia cultivar essa narrativa, porque ela desvia atenções e permite manter de pé um status quo de interesses aparentemente obscuros mas evidentes nas sombras.

    Fala-se pouco, mas há hoje uma verdadeira Economia do Fogo instalada, tão entranhada quanto as acácias invasoras que dominam os nossos matos. Essa Economia vive e prospera das chamas. Há nela múltiplos actores, todos satisfeitos com o imobilismo governativo. As empresas de meios aéreos, sempre prontas a engordar contratos chorudos a cada verão; as corporações de bombeiros “voluntários”, que já de voluntárias pouco têm e que transformaram a tragédia em mecanismo de financiamento; os madeireiros, que aproveitam a desgraça para adquirir madeira barata e lucrar com a miséria alheia; e, agora, uma nova vaga de empreiteiros da reconstrução, ávidos em receber milhões de euros públicos para erguer de novo o que amanhã pode tornar a arder. É um ciclo obsceno: o fogo destrói, o Estado distribui, meia-dúzia lucram, os contribuintes pagam.

    silhouette of trees on smoke covered forest

    Não pode continuar esta palhaçada. Não é com apoios pontuais, com moratórias fiscais, com subsídios de tesouraria que se resolve um problema estrutural. É preciso romper com a lógica assistencialista e com o oportunismo político que se alimenta da tragédia.

    Portugal precisa de mudanças drásticas e corajosas: consolidação fundiária, gestão dos espaços florestais profissionalizada em larga escala, limitação séria da expansão de espécies silvícolas cada vez menos adaptadas às condições socio-ambientais (eucalipto e pinheiro-bravo), investimento continuado em prevenção e silvicultura sustentável. Não se trata de inventar a roda, mas de ter coragem política para enfrentar lóbis instalados e pôr fim à Economia do Fogo.

    Em 2003, Durão Barroso prometeu uma reforma profunda após o verão infernal. Em 2005, já com Sócrates, repetiram-se juras de “nunca mais”. Em 2017, António Costa encenou a mesma coreografia, jurando que a tragédia de Pedrógão e os fogos do Outono seria um ponto de viragem. Hoje, Montenegro vem repetir o ritual: mais apoios, mais promessas, mais remendos. O guião é o mesmo, os protagonistas mudam.

    bonfire

    O país não aguenta mais este teatro macabro. Não basta reconstruir o que arde, é preciso impedir que arda. O Governo tem de escolher se quer ser cúmplice de um sistema parasitário ou se quer, finalmente, governar para o interesse público. Portugal não precisa de mais discursos piedosos nem de mais milhões a fundo perdido para sustentar esta Economia do Fogo. Precisa de líderes que tenham a coragem de dizer basta e que, em vez de lágrimas de ocasião, tragam reformas estruturais. Se Montenegro repetir o mesmo que prometeram Barroso, Sócrates e Costa, ficará inscrito na mesma lista infame de chefes de Governo que deixaram o país arder em cinzas.

    Esse é o ponto de hoje: ou se rompe, ou continuaremos a ser um país de aselhas, governado por mentecaptos políticos, que confundem solidariedade com esmolas e política com oportunismo. O futuro da floresta, do território e da própria dignidade nacional não pode ficar refém desta Economia do Fogo.

  • O Índice ICARO do Instituto Nacional de Saúde não é um alerta; é uma farsa científica

    O Índice ICARO do Instituto Nacional de Saúde não é um alerta; é uma farsa científica


    Um investigador ou cientista, para ser credível, tem de cumprir duas premissas: a reprodutibilidade das suas conclusões e a transparência na comunicação pública. E mais uma terceira: a humildade de ser questionado e fiscalizado, mesmo se por alguém que ele possa considerar menos capacitado.

    Ora, em Portugal, a academia tem, infelizmente, caído na velha tentação de se juntar ao poder, sobretudo ao poder político, esquecendo que uma universidade pública deve, em primeiro lugar, ser penhor da Ciência e da Verdade, e da sociedade, e nunca do poder. Pelo contrário, deve até procurar afastar-se de qualquer intromissão política. Não tem sido isso que tem sucedido.

    Fernando de Almeida, presidente do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge

    Por exemplo, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) tem vindo, ao longo dos últimos anos, a comportar-se como um tentacular braço dos Governos em matérias de saúde pública: ora por omissão, quando não realiza estudos que seriam essenciais à compreensão dos fenómenos epidemiológicos; ora por manipulação, quando apresenta relatórios alinhados com narrativas políticas. Basta recordar a recusa em fazer um escrutínio sério do excesso de mortalidade não-covid em 2020 e 2021, ou a ausência de uma avaliação rigorosa da mortalidade global em 2022. A Ciência foi preterida ao serviço de conveniências.

    Este ano, o INSA voltou a dar mostras de que, em Portugal, a investigação em saúde pública é moldada pelas necessidades comunicacionais do poder. O caso do Índice ÍCARO é, neste ponto, paradigmático. No início deste mês de Agosto, com a vaga de incêndios, o INSA divulgou valores do Índice ÍCARO que apontariam para um inédito excesso de mortalidade entre 4 e 6 de Agosto da ordem de 1.100 óbitos – números alarmistas e sem consistência empírica. Porém, logo no dia seguinte, esses dados foram “corrigidos”, ainda assim para valores elevados, sem qualquer explicação metodológica. E, apesar das insistências do PÁGINA UM, o presidente do INSA, Fernando de Almeida, recusou prestar esclarecimentos.

    Nos dias seguintes, predispus-me eu a confrontar as previsões alarmistas do INSA com dados reais. E o ‘edifício’ do INSA desmoronava-se. Entre 25 de Julho e 7 de Agosto deste ano, em 14 dias, registaram-se 4.601 mortes contra um valor previsto de 4.373. Ou seja, um excesso de apenas 228 óbitos, equivalente a +5,2% — significativo, sim, mas a anos-luz das duplicações anunciadas pelo Índice ÍCARO. Convém recordar que este acréscimo ocorreu num contexto de Inverno menos agressivo em termos gripais, o que, paradoxalmente, teria produzido um défice prévio de mortalidade, susceptível de “inflacionar” o impacto de vagas de calor.

    Reportagem da RTP sobre o alegado excesso de mortalidade e o Índice INSA, com a participação das investigadoras Susana Silva (esq.) e Ana Paula Rodrigues (dir.).

    Perante esta evidência, o que fez o INSA? Organizou, em cooperação com a RTP, uma encenação, protagonizada pelas investigadoras Ana Paula Rodrigues e Susana Silva. Uma pantomima travestida de comunicação científica, onde se insistiu na narrativa de um excesso de cerca de 950 óbitos desde finais de Julho, enquanto se exibiam gráficos vagos e inócuos em ecrã, cuidadosamente desprovidos de dados reprodutíveis. Um exercício mais próximo da propaganda do que da Ciência, colocado estrategicamente numa quinta-feira à noite, em véspera de sexta-feira e antes de um fim-de-semana. Tudo para garantir menor contraditório mediático.

    Ora, como qualquer investigador sabe, a Ciência sem escrutínio é apenas retórica. Aquilo que se exigiria ao INSA seria simples: publicamente, dar a conhecer a descrição metodológica completa do Índice ÍCARO, o modelo estatístico usado para previsão e “correcção por observação”, a definição operacional de “excesso de mortalidade”, as séries diárias de mortalidade observada e esperada, os cálculos que sustentam os tais “950 óbitos em excesso”, a explicitação do efeito de colheita, a indicação das fontes de dados e a análise de robustez a diferentes metodologias. Pedi isto formalmente, na passada segunda-feira, à investigadora Ana Paula Rodrigues, com conhecimento ao gabinete de comunicação do INSA e ao seu presidente. Até hoje, nada.

    Perante esta evidência empírica, a conclusão é inequívoca: a investigação baseada no Índice ÍCARO por parte do INSA não passa de um artifício, uma encenação pseudocientífica que confunde indicadores exploratórios com diagnósticos de mortalidade, manipulando dados conforme as conveniências. E assim, quando a Ciência é usada para encobrir, em vez de esclarecer, deixa de ser Ciência. E quando uma instituição pública de saúde se presta a este jogo, abdica do seu dever maior: servir a verdade e a sociedade.

    A reprodutibilidade e a transparência são duas premissas da Ciência. Mas, aparentemente, não para o INSA.

    Tudo isto não é apenas uma questão metodológica; é uma questão ética. A opacidade do INSA é um insulto à comunidade científica e uma afronta à cidadania. Mais grave ainda é a cumplicidade dos meios de comunicação social, incapazes de exercer o contraditório, aceitando como dogma aquilo que deveria ser alvo de escrutínio. Repita-se por outras palavras, porque nunca é demais: a Ciência sem transparência e sem reprodutibilidade não é Ciência; é prestidigitação. E quem confunde Ciência com prestidigitação não só desonra a academia, como mina a confiança pública.

    O Índice ÍCARO, tal como está a ser usado, não é um alerta: é uma farsa.

  • Sabe a causa dos incêndios devastadores? Não são as alterações climáticas; é a tragédia dos anti-comuns

    Sabe a causa dos incêndios devastadores? Não são as alterações climáticas; é a tragédia dos anti-comuns


    Portugal atravessa um dos piores Agostos de sempre em matéria de fogos. Mais de 200 mil hectares já arderam desde Janeiro, e a contabilidade cresce a cada dia. O número impressiona, mas o país já quase se habituou a vê-lo repetir-se, década após década, com a mesma coreografia: discursos inflamados, homenagens aos bombeiros, promessas de reformas e um rasto de cinzas. O que ninguém encara de frente é a raiz estrutural do problema: a floresta portuguesa vive presa numa “tragédia dos anti-comuns”.

    O termo pode soar académico, mas descreve com precisão a realidade do território. Ao contrário da “tragédia dos comuns” — quando um recurso partilhado é destruído por uso excessivo —, a dos anti-comuns resulta de uma fragmentação que paralisa a gestão: demasiados donos, cada um com poder de exclusão, nenhum com capacidade de agir em escala. Portugal é o caso perfeito: 11,6 milhões de prédios rústicos, muitos com dimensões microscópicas, abandonados ou em litígio entre herdeiros. Cada proprietário olha para a sua parcela; o fogo, porém, olha para o conjunto.

    Tall trees create a dense forest scene.

    É aqui que se esconde a confusão maior. “Floresta privada” não é a mesma coisa que “espaços florestais”. A primeira refere-se às parcelas, registadas nas conservatórias, com estremas e dono definido. Os segundos são o território real: manchas de vegetação contínuas, cursos de água, ecossistemas e paisagens que não reconhecem limites de caderneta. O incêndio não se detém numa estremadura; os benefícios ambientais também não. O ar limpo, a regulação da água, o sequestro de carbono, a biodiversidade — tudo isto ultrapassa as linhas do cadastro. Por isso, os espaços florestais, mesmo em terrenos privados, devem ser encarados como bens públicos.

    Durante muito tempo, a gestão não falhou. Pelo contrário: funcionava porque a paisagem tinha uso e valor. O pinhal era resinado, a lenha e a caruma aqueciam casas, os baldios eram administrados pelas comunidades, e os Serviços Florestais mantinham vigilância, caminhos e aceiros. Havia uma economia do mato e uma autoridade técnica que impunha regras. Funcionava porque havia gente no território e guardas no terreno.

    Esse modelo desfez-se nas últimas décadas. E não foi por causa das alterações climáticas nem pelas ondas de calor – foi por razões políticas, de erros de desenvolvimento. As alterações climáticas aumentam o risco, mas não são o factor desencadeador dos fogos destrutivos. A causa principal está no contínuo vegetal que aumentou, quer em extensão quer em volume, por razões demográficas, económicas e sobretudo políticas.

    an aerial view of a village surrounded by lush green hills

    O êxodo rural esvaziou as aldeias, a resinagem deixou de dar rendimento, os baldios perderam relevância e os Serviços Florestais foram virtualmente extintos. Onde havia uso e vigilância, ficou abandono; onde havia técnicos e guardas, ficou a retórica; onde havia economia, ficou custo. A floresta deixou de ter dono visível e passou a ser combustível à espera da próxima ignição.

    É neste vazio que os incêndios ceifam – e é aqui que cada vez mais urge defender um novo paradigma: a criação de um efectivo Sistema de Gestão de Espaços Florestais (SIGEF), de natureza pública, com equipas permanentes no terreno, incluindo prevenção e combate. O modelo é simples: técnicos, sapadores e vigilantes com mandato para limpar, vigiar e agir, incluindo em áreas privadas, sempre sem custos directos aos proprietários – e, pelo contrário, com compensações justas pelos serviços ambientais prestados pelas suas parcelas. E com uma lógica clara: quem se abstém de gerir não bloqueará o interesse colectivo, quebrando assim a possibilidade de accionar a tragédia dos anti-comuns.

    Assumir os espaços florestais como um bem público teria naturalmente um custo orçamental robusto. Se o Estado quisesse assegurar uma gestão integrada de toda a superfície florestal do continente — cerca de 6,2 milhões de hectares, que inclui áreas de floresta e matos —, com economia de escala, ciclos de limpeza de cinco anos e preços médios de 800 euros por hectare, o encargo anual rondaria 1,1 mil milhões de euros, considerando a rotatividade neste sistema de gestão.

    Mesmo admitindo intervalos de eficiência, o orçamento para este sistema nunca seria inferior a 900 milhões de euros. Em termos macroeconómicos, trata-se de um valor equivalente a pouco mais de 0,4 % do PIB português, montante comparável àquilo que o país despende anualmente em políticas activas de emprego.

    A diferença, porém, é que este esforço financeiro representaria uma inversão do paradigma actual: em vez de dependermos de milhares de minifundiários incapazes de coordenar estratégias de prevenção, o Estado assumiria a floresta como património comum, reduzindo drasticamente a lógica dos anti-comuns que hoje favorece a desordem, a inércia e, em última instância, a catástrofe dos megaincêndios.

    Os números mostram que não é dinheiro que falta: é racionalidade. Entre 2000 e 2016, os incêndios custaram ao país 5,2 mil milhões de euros; em 2003, só num ano, os prejuízos ultrapassaram 1,5 mil milhões. E há custos que passariam a ser evitados. Por exemplo, actualmente entre 45% e 50% da despesa pública — e foi de cerca de 640 milhões de euros em 2024 — é destinada apenas às operações de combate, incluindo meios aéreos.

    Com uma gestão adequada dos espaços florestais, uma parte significativa seria poupada. Menos incêndios seria também riqueza que se criaria: os custos (indicativos) de madeira perdida por incêndios rondam os 1.000 a 1.500 euros por hectare.

    A lush green forest filled with lots of trees

    Além disso, têm de se considerar os custos ambientais e mesmo climáticos: em 2017, cerca de 40% das emissões de dióxido de carbono foram dos incêndios; este ano estarão seguramente acima dos 20%. Existem também os custos em infra-estruturas destruídas (habitações, estradas, prejuízos agrícolas, etc.) e as perdas no turismo. Fazendo algumas contas, o ganho económico potencial de reduzir drasticamente os incêndios situa-se entre os 0,25% e os 0,45% do PIB.

    Mesmo assim, numa primeira fase, o sistema poderia obter um financiamento assente em três pilares, numa lógica clara e percebida como taxa de serviços públicos: contributo diversificado, incidência proporcional e justiça social.

    O primeiro pilar seria o reforço do Fundo Ambiental, via receitas da fiscalidade verde e, sobretudo, das licenças de carbono. Portugal arrecada, em média, 400 milhões de euros por ano apenas com leilões de dióxido de carbono (CO₂). Se um quarto desse montante fosse automaticamente canalizado para a gestão florestal, garantir-se-ia uma verba fixa de 100 milhões anuais.

    cars passing through north and south

    O segundo pilar seria um adicional ao IMI rústico — cujo valor é quase nulo —, aplicando-se um imposto inicial de cinco euros por prédio, mas com forte progressividade: explorações activas ficariam praticamente isentas, enquanto prédios abandonados, em litígio ou em regime de absentismo fiscal suportariam uma carga maior. Desta forma, além de ser um incentivo ao emparcelamento e à venda de prédios rústicos abandonados, seria possível gerar entre 120 e 150 milhões anuais, mas sem penalizar quem mantém a terra viva e produtiva.

    O terceiro pilar seria a criação de uma Taxa de Protecção de Espaços Florestais. Com a aplicação de uma taxa anual de 10 euros por prédio urbano (cerca de 6 milhões) e por veículo motorizado (cerca de 7,2 milhões), a receita anual ultrapassaria os 130 milhões de euros. O valor continua irrisório para quem possui uma habitação ou um automóvel, mas permitiria financiar de forma directa a rede nacional de prevenção e vigilância florestal.

    Naturalmente, a parte da despesa já inscrita todos os anos no Orçamento do Estado — cerca de 600 milhões em prevenção e combate — teria de ser incorporada no novo modelo, funcionando como verba cativa e estável.

    Ao mesmo tempo, Portugal poderia exigir em Bruxelas a criação de um Fundo Europeu de Coesão Florestal, aplicando o princípio da solidariedade ambiental: países menos expostos ao risco de incêndio contribuiriam mais para apoiar aqueles que, como Portugal, Espanha ou Grécia, enfrentam o drama recorrente do fogo. Um mecanismo deste tipo poderia garantir entre 200 e 250 milhões de euros anuais, integrando a política florestal na própria agenda climática europeia e servindo para financiar os serviços ambientais dos proprietários.

    a bridge over a river

    Com este modelo, em vez de desperdiçar milhares de milhões em prejuízos a cada década, Portugal passaria a investir de forma previsível, justa e transparente. Porque transformar os espaços florestais em bens públicos exige também que o seu financiamento seja público, claro e equitativo — distribuindo encargos de acordo com a responsabilidade, mas também com a solidariedade nacional.

    Persistir no modelo actual — pseudo-voluntário, de glorificação da tragédia — mostra-se insustentável económica e socialmente. Se 2025 já está entre os piores anos deste século, é porque Portugal insiste em varrer cinzas em vez de organizar o território. Enquanto não se assumir que os espaços florestais são bens públicos e não se pagar para os gerir, o país continuará a repetir este Verão: cada vez mais extenso, cada vez mais caro, cada vez mais devastador.

  • Da pandemia aos fogos: o jornalismo em (contínua) crise

    Da pandemia aos fogos: o jornalismo em (contínua) crise


    O jornalismo é, por definição, uma actividade que serve a sociedade: informar, denunciar, interpretar. Não é uma função de propaganda, não é um exercício de entretenimento, não é um palco para vaidades nem um púlpito para a catequese do medo.

    O jornalista tem de olhar para a realidade com instrumentos de rigor e de contexto, sem se deixar enredar por paninhos quentes, mas também sem cair no grotesco do sensacionalismo ou no enviesamento interesseiro. Esta é a condição mínima para se merecer a designação de jornalista. Fora disso, sobra apenas o comentador mal informado, o propagandista disfarçado ou o vendedor de emoções baratas.

    Infelizmente, o passado recente deveria ter servido de lição. Durante a pandemia, a sociedade — não apenas a portuguesa, mas a global — foi bombardeada por um estilo de jornalismo que, de tão abjecto, deveria envergonhar gerações inteiras de editores e repórteres.

    A imprensa desempenhou, durante a pandemia, um papel que ficará como exemplo de como o jornalismo pode degenerar em propaganda alarmista. Em vez de informar com contexto e rigor, cultivou-se uma verdadeira cultura do medo. As manchetes diárias, em letras garrafais, com o número de “casos positivos” foram transformadas em termómetro universal da catástrofe, como se a detecção de um vírus fosse, por si só, doença, sofrimento ou morte. A ausência de qualquer referência sistemática à distribuição etária, aos factores de risco, ou às probabilidades reais de complicação clínica, contribuiu para a percepção de que todos estavam igualmente ameaçados — o recém-nascido e o octogenário, o saudável e o moribundo.

    Os telejornais alimentaram a amplificação do risco através de uma estética de guerra: gráficos vermelhos, contadores em tempo real, rodapés permanentes a anunciar internamentos e mortes, como se a realidade epidemiológica pudesse ser reduzida a um placar de futebol macabro. Pior: chegou-se ao absurdo moral de aplaudir a descida de internados em cuidados intensivos, omitindo que parte dessa descida resultava apenas de óbitos. Uma contabilidade mórbida mascarada de boas notícias.

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    A imprensa também fomentou uma verdadeira cultura de ostracização. Quem duvidava das medidas mais draconianas, quem ousava interrogar a proporcionalidade dos confinamentos ou o impacto das vacinas em fase experimental, era imediatamente rotulado de irresponsável, negacionista, conspiracionista. Criou-se uma divisão maniqueísta: os “bons cidadãos”, obedientes e submissos, versus os “maus cidadãos”, suspeitos e perigosos. Esta lógica, mais próxima de regimes totalitários do que de democracias abertas, foi incentivada e reproduzida nos estúdios televisivos e nas páginas de jornais.

    A linguagem da imprensa revelou uma incapacidade estrutural de contextualizar. Falava-se em milhares de mortos diários na Índia ou no Brasil, esquecendo-se de referir que tais números correspondiam a populações centenas de vezes maiores do que a portuguesa. Comparavam-se riscos de crianças e jovens como se fossem idênticos aos dos idosos frágeis, criando um clima de pânico transversal sem fundamento epidemiológico. A estatística, que deveria ser instrumento de esclarecimento, foi usada como arma de propaganda.

    Mais grave: a imprensa não apenas falhou na análise crítica, como se colocou em posição servil diante das autoridades políticas e sanitárias. Em vez de questionar contratos de vacinas, metodologias de contagem de mortos ou critérios de confinamento, preferiu repetir comunicados oficiais, legitimando sem reservas a narrativa dominante. O jornalismo tornou-se megafone do poder, abdicando da sua função essencial de escrutínio.

    A large bonfire blazing at night with embers and sparks flying into the dark sky.

    O resultado foi devastador: fomentou-se uma cultura de medo permanente, minou-se a confiança crítica da sociedade, normalizou-se a vigilância social e, acima de tudo, reduziu-se o cidadão à condição de súbdito, infantilizado pelo paternalismo mediático. O jornalismo, que deveria ter sido vacina contra o exagero, acabou por ser veículo de contágio do pânico.

    O disparate não teve limites: confundiu-se prevalência com incidência, confundiu-se mortalidade absoluta com risco relativo, confundiu-se ciência com histeria.

    Ora, com os incêndios, está a suceder precisamente o mesmo. Este ano será, garantidamente, pelo menos o quarto pior do século. Já arderam mais de 170 mil hectares, e só um milagre permitirá que se chegue ao fim do ano sem ultrapassar a fasquia dos 200 mil hectares. Esta dimensão é extraordinária, calamitosa, gravíssima. Revela que o poder político continua incapaz de assumir que este é um dos principais problemas estruturais do país. Persistimos no abandono rural, na destruição do papel fundamental da agricultura e da pastorícia, e nos compadrios que perpetuam um sistema obsoleto de prevenção e combate.

    A comunicação social, em vez de assumir o papel de denúncia estruturada, contenta-se em produzir reportagens fotogénicas do horror: casas a arder, bombeiros exaustos, helicópteros em contraluz. Passada a época dos fogos, cai o silêncio. Não se pressiona o Estado a mudar o status quo, não se exige um verdadeiro plano nacional de ordenamento do território rural, não se confrontam os interesses instalados que vivem dos fogos como quem vive de uma indústria cíclica. Essa abdicação é, por si só, uma falha ética do jornalismo.

    19 anos depois: problemas estruturais mantiveram-se, destruição aumentou.

    Causa-me urticária, cada vez mais, a forma misturada de ignorância e de sensacionalismo com que a imprensa portuguesa — do Público ao Correio da Manhã — tabloidiza números. Seria sensato esperar que editores e directores soubessem — e se não sabem, não merecem sê-lo — que a incidência dos incêndios é altamente variável ao longo da época de estio. O Verão português não é uma fotografia estática; é uma película irregular. Em 2017, por exemplo, a esmagadora maioria da área ardida concentrou-se em Junho e em Outubro, mostrando que a duração da estação crítica se estende cada vez mais.

    Significa isto que não faz qualquer sentido, quando a gravidade já é por si grande, exagerar com comparações descabidas. Dizer que a área ardida em 2025 é dezassete ou dezoito vezes superior à de 2024, como sucedeu anteontem em diversas notícias da imprensa, pode ser matematicamente correcto, mas é intelectualmente absurdo. É jornalismo de feira, equivalente a dizer que num restaurante que fecha ao domingo houve, no dia 17 de Agosto, uma quebra de facturação de 100% face ao mesmo dia 17 do ano anterior — ignorando que em 2024 esse dia foi um sábado. O disparate é o mesmo.

    Mais ainda: se o objectivo é o sensacionalismo, porque não escrever que nos primeiros dezassete dias de Agosto ardeu este ano trinta e três vezes mais do que no ano passado? É um número vistoso, mas serve para quê? Para instruir o cidadão? Para alertar a sociedade? Ou apenas para vender papel, cliques e minutos de emissão? O jornalismo não se deve medir pela capacidade de impressionar, mas pela capacidade de esclarecer.

    O papel do jornalista não é o de alimentar a ilusão estatística nem de soprar brasas de pânico, mas de interpretar números, denunciar falhas, dar sentido à informação. Não se exige neutralidade bovina nem frieza burocrática: exige-se compromisso com a verdade, com o contexto e com a responsabilidade social. Quem se limita a repetir comunicados oficiais ou a fabricar títulos escandalosos não está a informar — está a desinformar.

    A imprensa portuguesa, se quiser sobreviver como pilar democrático e não como caricatura de si própria, tem de reaprender a função básica do jornalismo: olhar para a realidade sem filtros de conveniência, expor o que está mal, contextualizar o que é complexo, desmontar o que é manipulado – é para isso que serve um jornalista. O resto é espuma — e a espuma, como se sabe, desaparece sempre ao sabor da próxima onda.

  • Agora, a Mafalda já se lembra da Alemanha de 1930

    Agora, a Mafalda já se lembra da Alemanha de 1930

    Mafalda Anjos publicou, no dia 8 de Agosto, na revista Visão um artigo com o título “Ainda estamos aqui, apesar de vivermos tempos que nos lembram a Alemanha de 1930”. No artigo, a jornalista e ex-directora da Visão elabora sobre a ameaça de fecho que paira sobre a revista, devido à insolvência da empresa a que pertence, a Trust in News.

    No artigo, aproveita para lavar as mãos e branquear o seu efectivo contributo para a crise da empresa de media e o risco de fecho da revista. E atribui as culpas da crise à extrema-direita e ao regresso de “vibes” que fazem lembrar a ascensão dos nazis ao poder na Alemanha dos anos 30.

    Por um lado, é surpreendente. Afinal, Mafalda Anjos recorda-se desse episódio negro na História que levou à Segunda Guerra Mundial — e ao Holocausto. Ninguém diria que a jornalista se lembrava que tinha existido esse período na História.

    E é surpreendente por um simples motivo: Mafalda Anjos foi um dos activistas em Portugal que mais incentivou nos media a segregação da população, a perseguição e o incentivo ao ódio de uma parte dos portugueses. Foi há pouco tempo. E vale a pena recordar. Mafalda foi um dos rostos da intolerância e perseguição ao “diferente”.

    Como directora da Visão protagonizou um dos mais tristes e lamentáveis eventos na História da imprensa em Portugal: a sistemática perseguição e difamação de uma parte da população portuguesa. Não por causa da sua cor de pele ou etnia. Não por causa da sua religião. Não por causa do seu género ou sexualidade. Mas apenas por isto: optaram por não tomar as novas vacinas contra a covid-19. Muitos tinham já imunidade natural (um tema que foi alvo de censura). Outros tomaram a opção por prevenção, dados os escassos dados sobre os eventuais efeitos a longo prazo das vacinas. Outros por não estarem nos grupos de risco. Outros por considerarem que os riscos da toma da vacina superavam os seus eventuais benefícios. Se Mafalda Anjos tivesse feito jornalismo, na altura, em vez de seguir a propaganda, saberia isto.

    a close up of an open book with some writing on it

    No seu artigo publicado este mês diz o seguinte:

    “Há líderes populistas e carismáticos de direita radical que sabem tirar partido do ressentimento, oferecendo respostas simplistas para problemas complexos, tal como na Alemanha dos anos 30”.

    Foi o que se passou na pandemia. Líderes políticos, usando o medo e o ressentimento, usando a propaganda, tiraram partido da crise de saúde pública para, servindo interesses económicos, abrir caminho ao reforço de poderes e supressão de direitos diversos, incluindo a liberdade de imprensa e de expressão.

    “Atribuem-se culpas coletivas e escolhem-se bodes expiatórios para apontar o dedo, tal como na Alemanha dos anos 30.”

    Foi que aconteceu na pandemia e Mafalda ajudou à perseguição.

    “Temos novas tecnologias disruptivas que catapultam a propaganda, tal como na Alemanha dos anos 30.”

    Tal como na pandemia. Mas, Mafalda, é mais do que isso. Com estas tecnologias impõe-se a censura, impõem-se uma narrativa. Difama-se insulta-se. Como fez Mafalda na pandemia.

    blue and white stop sign
    Os confinamentos aplicados em Portugal e outros países na pandemia deixaram um rasto de destruição na economia e na saúde física e mental. A medida foi contestada e questionada com base em evidências e estudos científicos. Quem o fez foi chamado de “negacionista”.

    “E tenta-se descredibilizar os média tradicionais que denunciam as mentiras, os engodos e os perigos destes, tal como na Alemanha dos anos 30.”

    Aqui Mafalda está errada. Porque houve uma evolução. Não foi preciso destruir os media tradicionais. Ao aliarem-se a propaganda, autodestruíram-se. Aliás, continuam a autodestruir-se ao publicar artigos como o de Mafalda, este mês, na Visão.   

    Porque Mafalda Anjos, e outros jornalistas em Portugal, meteram o Jornalismo debaixo do tapete na pandemia e em torno de outros temas — das polémicas em torno da ideologia do género, à guerra na Ucrânia, etc. Fecharam-no, numa masmorra, a sete chaves. Condenaram o Jornalismo à obscuridade. Em vez de investigarem os vários temas da pandemia, aliaram-se aos governantes para impor narrativas. Para impor censura aos “desalinhados”. Para perseguir, denegrir, difamar, segregar os que questionavam medidas ou optavam por não tomar as vacinas ou usar as máscaras faciais.

    selective focus photography of people sitting on chairs while writing on notebooks

    Sim, Mafalda, houve jornalistas a ser censurados na pandemia. Houve órgãos de comunicação social a serem alvo de censura. Ainda hoje há censura.

    Foi um período negro na História de Portugal. Não apenas pela pandemia, mas pela censura, a segregação. Nasci em Abril de 1974. Assisti em choque a comentários de pessoas como Mafalda Anjos. A textos publicados na revista Visão, no Público, no Diário de Notícias, no Expresso, … Os apelos e apoios às políticas de segregação, sem qualquer base científica, mas com uma gigantesca base desumana.

    Foi um período de retrocesso nos mais basilares valores europeus, do respeito pela Democracia, pelo Estado de Direito, pelos direitos humanos e direitos civis. O ‘my body my choice’ deixou de ser defendido por pessoas como Mafalda. Foi trocado pela mais pura e odiosa segregação populacional.

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    Lembro-me de ver algumas publicações de Mafalda na rede X e de ter percebido, finalmente, como é que famílias de bem na Alemanha de 1930 alinharam com os nazis na perseguição a judeus. Era algo que eu nunca tinha percebido bem. Como é que “boas” pessoas se transformam em monstros, ficando possuídas pelo mais puro mal.

    Sempre considerei a Mafalda uma “boa” pessoa. Nada me dizia o contrário. Até assistir ao seu comportamento na pandemia. Como jornalista e directora de um órgão de comunicação social o seu desempenho desde 2020 foi desastroso. Trocou o jornalismo, a isenção, a investigação pela ideologia, a propaganda, a censura, a perseguição e a segregação. Usou termos para denegrir e difamar, como ‘chalupa’, ‘negacionista’, ‘anti-vacinas’. Outros foram atrás e chamar nomes e insultar passou a ser normal na pandemia.

    Durante a pandemia, percebi, finalmente, como “boas” pessoas na Alemanha de 1930 se tornaram apoiantes de Hitler e da ideologia e políticas nazis. Como caíram na propaganda nazi. Como se tornaram “agentes” nazis que perseguiam e denunciavam. Mafalda trocou a caneta de jornalista pela farda de “agente de saúde pública” do batalhão da propaganda da ditadura sanitária insana e anti-científica e anti-humana que se instalou nos anos da pandemia.

    grayscale photo of woman doing silent hand sign

    Mafalda deveria ter feito o que fez Pedro Almeida Vieira. Em 2020, viajou pela Europa e testemunhou ao vivo como estava a ser gerida a pandemia, inclusive na Suécia, um dos países com a maior taxa de sucesso na gestão da pandemia. Na Suécia, não houve máscaras, em geral. Não houve perseguição pública de parte da população. Não houve medo e terror imposto por jornalistas, ao contrário do que aconteceu em Portugal.

    Mafalda devia ter promovido a investigação jornalística, não a disseminação de propaganda. Devia ter investigado os números fornecidos pela Direcção-Geral de Saúde. Ou a censura e desinformação que circulavam sobre a origem da pandemia e a eficácia real do uso de máscaras. Ou o “perigo” que representavam as crianças para os avós…

    Mafalda devia ter investigado, como fez Pedro Almeida Vieira, o que se passava na Ordem dos Médicos. Se o tivesse feito, teria descoberto que o então bastonário, Miguel Guimarães, escondeu numa gaveta dois cruciais pareceres do Colégio de Pediatria que não recomendavam a administração das novas vacinas contra a covid-19 a crianças e jovens saudáveis.

    Estocolmo, Suécia, 2020 (Foto: PAV)

    Mesmo, agora, há muito para investigar e noticiar. Ainda esta semana, o PÁGINA UM publicou uma notícia sobre um estudo científico liderado pelo maior epidemiologista do mundo, John Ioannidis. Sim, o reputado professor da Universidade de Stanford que foi perseguido e ameaçado na pandemia por fanáticos da censura sanitária que se instalou.

    O estudo  revela um retrato bem diferente do proclamado durante a pandemia: 2,5 milhões de vidas salvas em três anos, quase todas em idosos, expondo o exagero e a fragilidade da narrativa oficial. E deixa em aberto a hipótese de que a vacinação de menores de 30 anos pode ter causado um impacte líquido negativo.

    Ou seja, o estudo dá razão ao Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos e aos pareceres que foram escondidos dos portugueses. Os pareceres que Mafalda e a Visão nunca noticiaram por seguirem a propaganda da época.

    Anders Tegnell, reputado epidemiologista sueco, liderou a resposta da Suécia à pandemia de covid-19 com um grande sucesso. O país, ao contrário de outros, como Portugal, praticamente não regista excesso de mortalidade. A Suécia recusou aplicar, em geral, confinamentos e o uso generalizado de máscara facial. / Foto: D.R.

    Na altura, perseguiram-se pais que tinham dúvidas. Segregaram-se crianças e jovens. Aterrorizou-se a população.

    Tantas notícias teria Mafalda conseguido se tivesse investigado temas da pandemia. Mas não o fez.

    A pergunta é: se Mafalda vivesse na Alemanha de 1930, iria apoiar a segregação de judeus se lhe dissessem que eram uma “ameaça” à saúde pública?

    Como o leitor deve ter reparado, possivelmente, não coloquei neste artigo qualquer link para nenhum dos artigos segregacionistas e de incentivo ao ódio que Mafalda publicou na Visão. Nem nenhum link para qualquer uma das suas publicações cheias de ódio publicadas nas redes sociais e que atraíram – e fortaleceram – uma multidão de gente raivosa em busca de vítimas que servissem de bode expiatório para tudo o que a pandemia trouxe, incluindo crise económica e desemprego. Não quero promover o seu ódio.

    E há algo que é certo: Mafalda contribuiu para a insolvência da Trust in News, sim. Não só porque era directora da Visão e publisher, como tinha acesso, se quisesse, às demonstrações financeiras da empresa de Luís Delgado. Podia ter actuado. Por outro lado, ajudou a arrastar a Visão para a lama do descrédito público, ao alinhar com propagandas e narrativas únicas, ou seja, ao recusar investigar a fundo todos os temas, sem excepção. O leitor não é burro.

    Revista Visão (Foto: PÁGINA UM)

    Quando o PÁGINA UM alertou para a grave crise que a TIN vivia e o seu gigantesco passivo e dívidas ao Estado, o que fez Mafalda? Respondeu ao Pedro Almeida Vieira que os seus artigos sobre a crise da TIN “eram fantasiosos”. Estávamos em Julho de 2023.

    Passado uns escassos cinco meses, abandonou o barco, quando o PÁGINA UM tinha tornado público que o seu barco se estava a afundar. Tentou salvar a pele e sair com uma indemnização superior a 50 mil euros. Hoje é uma das credoras da TIN. Mafalda foi directora da Visão e directora editorial (publisher) da TIN durante anos.

    Agora, tenta lavar a sua imagem e as suas mãos. E a revista Visão ainda lhe dá a honra de publicar lá um artigo. Inacreditável.

    Mafalda não sabe pedir desculpa. Nem à Visão, a qual arrastou para guerras ideológicas e para máquinas de propaganda. Nem aos leitores que se foram afastando. Nem sabe pedir desculpa aos que perseguiu e contra os quais incentivou o ódio e a segregação.

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    Mafalda ainda pode continuar a ser “boa” pessoa e ter apenas ter caído temporariamente na propaganda sistémica e coordenada que se instalou na pandemia. Pode ter sido fraca. Pode ter ficado possuída pelo mal — o mal que odeia, que segrega, que censura. Mas nunca pediu desculpa. E penso que ninguém espera que o venha a fazer. Pelo contrário. Como outros, vai branquear a sua imagem e o seu papel. Vai procurar que se esqueça o que escreveu e o ódio que promoveu.

    Uma coisa é certa: Mafalda agora fala da Alemanha de 1930. Agora, Mafalda lembra-se. Recorda-se que houve períodos na História em que pessoas foram perseguidas por vizinhos, por amigos. Houve censura. Houve medo. Houve denúncias. Talvez, assim, numa futura crise, Mafalda não volte a fazer parte dos que perseguem, odeiam e segregam. Quem sabe.

    Lamento profundamente o que se passa com a Visão e as restantes publicações da TIN. Os postos de trabalho ameaçados. Os salários em atraso. Por isso, assistir à publicação de textos como o de Mafalda Anjos na Visão gera estupefacção. Porque a Europa vive, de facto, sob a ameaça de uma burocrática censura digital que se instala, com ajuda de leis novas que reprimem a liberdade de imprensa, mesmo que sejam “vendidas” embrulhadas em boas intenções. Há ameaças à democracia no Ocidente. Mas Mafalda continua a não conseguir ver a floresta da qual Portugal faz parte e de como o que se passa no país é ditado por políticas decididas no exterior, com a cumplicidade de políticos e partidos nacionais.

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    Vivem-se tempos similares aos da Alemanha de 1930? Sim. Mas não é de hoje. Já se escreve sobre isso há anos, inclusive aqui no PÁGINA UM. Por isso, é bom que agora Mafalda se lembre, finalmente, da Alemanha dos anos 30. Mas também tem “muita lata” em vir falar disso agora. Mafalda tem ajudado e contribuído para que este clima de opressão se instale e prospere. Fez parte dele até, a dado momento. E enquanto não pedir desculpa pelo que fez aos portugueses, à Visão e ao Jornalismo, escusa de vir queixar-se. Soa a lágrimas de crocodilo – daqueles que, como bons predadores, já tem a barriga cheia de uma vítima qualquer.

    Elisabete Tavares é jornalista

  • Froes, o pneumologista pornógrafo

    Froes, o pneumologista pornógrafo


    A pornografia, na sua acepção literal, é a mercantilização despudorada do corpo, reduzido a mercadoria e instrumento de prazer alheio, sem pudor nem compromisso com outra coisa senão o gozo imediato de quem consome e o lucro de quem fornece. Mas o termo, na sua dimensão figurada, vai muito além da carne exposta. Há pornografias de várias ordens: intelectual, científica, mediática, política. Sempre que alguém vende o seu saber — ou o simulacro dele —, a sua influência, a sua credibilidade, ou mesmo a sua alma, com o único fito de alimentar interesses alheios e lucrar, está-se perante pornografia. A moeda de troca já não é a nudez, mas a rendição ética.

    É dessa pornografia figurada que falo. Da pornografia científica que se vende ao melhor pagador, travestida de credibilidade académica, polida com currículos e adornada com cargos institucionais. Da pornografia mediática que ocupa colunas e microfones, não para esclarecer, mas para seduzir, amedrontar ou moldar a opinião pública conforme a cartilha dos patrocinadores. E é aqui que entra, inevitavelmente, o nome do pneumologista Filipe Froes.

    Filipe Froes

    Froes é um caso de escola da promiscuidade na Medicina portuguesa. E uso o termo “promiscuidade” no seu sentido mais técnico: não o da devassidão carnal, mas o da ausência de pudor em cruzar fronteiras e confundir interesses. Não é homem de fidelidades exclusivas. Não se confina a um patrocinador: todas as farmacêuticas lhe servem. Com todas tem conflitos de interesse; de todas recolhe proveito. E quando fala — e fala muito, sobretudo desde a pandemia da COVID-19 — fá-lo proporcionalmente ao seu “salário” extra-médico, somado ao vencimento do Serviço Nacional de Saúde.

    Um olhar sobre os registos de transparência das próprias farmacêuticas, compilados pelo PÁGINA UM, mostra que só este ano já arrecadou 31.550 euros — cerca de 4.500 euros mensais — pagos por laboratórios, aos quais se soma o ordenado como médico hospitalar.

    Pode parecer muito, mas é pouco: em Agosto de 2023 fiz um levantamento no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e, oficialmente, Froes contava com 324 prestações de serviços ou apoios de farmacêuticas que lhe valeram 453.635,37 euros. Agora, já ultrapassou há muito o meio milhão.

    woman in black jacket holding white paper

    Este é o mesmo Froes que nunca revela — e que a imprensa raramente pergunta — com quem trabalha, quanto recebe e que interesses defende. É o mesmo que, em Agosto de 2025, surge novamente nos noticiários a falar sobre a COVID-19, ressuscitando um dos capítulos mais negros da nossa contemporaneidade. Não pela doença em si, mas pela forma como foi gerida: com medo, com medidas erráticas, com a política a submeter a ciência e com a ciência a submeter-se à política.

    Foi um tempo em que as fronteiras entre recomendação médica e marketing corporativo se dissolveram, em que a comunicação em saúde deixou de ser um serviço público para se tornar um espectáculo de manipulação.

    Mesmo em 2025, quando as terapias genéticas contra a COVID-19 caem em desuso e finalmente a investigação independente começa a assumir que foi um erro injectar em massa adultos saudáveis com menos de 60 anos — e um erro ainda maior fazê-lo em jovens —, Froes continua como consultor de uma farmacêutica espanhola, a Hipra, para uma vacina contra a doença. Uma vacina que já chega fora de tempo, como aquelas agendas que, vendidas em Agosto, são quase puro desperdício, salvo para quem ainda lucra com a sua impressão.

    Filipe Froes ‘registou-se’ este ano como consultor da Hipra que somente em 2023 conseguiu aprovação da vacina contra a covid-19… e que precisa de vender doses… em 2025.

    O problema maior não está apenas nos conflitos de interesse; está no uso que Froes sabe fazer de uma imprensa dócil, composta por jornalistas que não sabem ou não querem saber. Num país onde morrem, todos os dias, cerca de 15 pessoas de pneumonia, as manchetes de hoje deram eco à “notícia” de que 38 pessoas morreram com COVID-19 nos primeiros 10 dias de Agosto. A matemática é, porém, simples: menos de quatro por dia. Seria desejável que ninguém morresse, mas 38 num universo de mais de 3.500 óbitos nesse período representa 1,1% do total. Há doenças muito mais letais e ignoradas.

    Aliás, ironicamente, hoje, um artigo científico publicado na BMC Pulmonary Medicine, tendo Froes como co-autor, destaca a mortalidade e o perfil dos internados de uma doença bem caracterizada e muito mais letal em Portugal: a pneumonia, que resulta em mais de 50 mil internamentos por ano e uma taxa de mortalidade de 22,5%. Froes sabe disso, mas prefere continuar a surfar a onda do negócio da COVID-19.

    Pior ainda: não há qualquer agravamento anómalo da COVID-19 nesta época do ano. Pelo contrário, excluindo o ano inaugural de 2020 — em que o país viveu confinado e quase sem ir à praia no Verão —, a mortalidade por COVID-19 nos primeiros 10 dias de Agosto de 2025 é a mais baixa de sempre. Em 2021, já com vacinação em curso, morreram 121 pessoas; em 2022, foram 98; em 2023, 51; e no ano passado, 50. Este ano, 38. Os números não mentem, mas são tratados como se mentissem: ignorados, manipulados ou apresentados sem contexto.

    Óbitos atribuídos à covid-19 no período de 1 a 10 de Agosto para os anos de 2020 a 2025. Fonte. ACSS.

    O objectivo é transparente para quem não vive anestesiado: Setembro aproxima-se, e com ele o início da estação das campanhas de vacinação. Há que criar ambiente, cultivar receios, manter vivo o espectro de uma doença que encheu contas bancárias e agendas.

    Será mais uma dose de reforço para “proteger os vulneráveis” — leia-se, mais uns milhões para as farmacêuticas, mais uns milhares para quem as serve na praça pública. A pornografia da COVID-19 não é feita de imagens explícitas, mas de gráficos truncados, declarações alarmistas e uma luxúria pelo palco mediático que se mede em euros.

    E assim, a pornografia científica continua. Com actores pagos, enredos repetitivos, figurantes crédulos e uma audiência enganada. Froes é apenas um dos protagonistas. Mas, na pobreza ética da nossa saúde pública e na indigência crítica do nosso jornalismo, basta um protagonista para comandar a encenação.

  • A calúnia, ou como as hienas, medrosas por natureza, se agigantam em grupo

    A calúnia, ou como as hienas, medrosas por natureza, se agigantam em grupo


    A ‘coisa’ faz-se de forma tão concertada e com tal má-fé que nem se disfarça. Em pouco mais de uma semana, depois de termos revelado que um juiz quis saber como passo os tempos livres e que um pivot desvairado da CNN Portugal pediu ao Ministério Público o encerramento do PÁGINA UM (e a ERC, pressurosa, abriu-me um processo), continuámos a fazer aquilo que apenas sabemos fazer: revelar o que a outra imprensa não revela.

    Foi assim que, na semana passada, voltámos a um tema que causa urticária a certos médicos e influencers sanitários (com ligações pouco recomendáveis): desmontei um ignóbil artigo (pseudo)científico de Filipe Froes na Acta Medica (revista científica da Ordem dos Médicos) e expus um estudo exaustivo de John Ioannidis que demonstra como, afinal, em três anos, as vacinas contra a covid-19 salvaram cerca de 12 milhões de pessoas a menos do que o estimado, para um único ano, por um modelo financiado pela Fundação Gates.

    brown hyena

    Era previsível receber respostas discordantes. O que veio, porém, foi um desfile de ataques pessoais, rótulos fáceis e “argumentos” que dispensam qualquer argumentação. Por exemplo, o enfermeiro Nuno André Macedo, candidato do Bloco de Esquerda e do Livre à Assembleia Municipal do Seixal, resolveu desenterrar um artigo meu de Outubro de 2023 sobre a campanha de marketing das farmacêuticas, com apoio da imprensa, para convencer o Estado a imunizar todos os recém-nascidos com um novo anticorpo monoclonal. Acompanhou-o de um printscreen (sem ligação) e desta pérola:

    Os chalupinhas são perigosos mas divertidos. Dizer que o VSR é inócuo quando é a maior causa de internamento em pediatria, de UCI pediátrica, e das maiores nos seniores, é mesmo para rir de tão ignorantes que são. O NIRSEVIMAB não é o primeiro anticorpo contra o VSR.

    O ataque é gratuito e reles — e eu ainda pensava que na esquerda havia uma certa ética, mas isso deve ser coisa de antanho —, mas também é mentiroso. Em parte alguma escrevi que o vírus sincicial respiratório é inócuo. Pelo contrário, afirmei que é “geralmente benigno, excepto em prematuros ou recém-nascidos com problemas respiratórios e cardíacos”, e que “não existe registo, em Portugal, de qualquer morte tendo o VSR como causa”. Também não disse que o niservimab é o primeiro anticorpo monoclonal; mencionei o palivizumab, administrado apenas a bebés vulneráveis e cuja eficácia é contestada por diversos estudos.

    Pegue-se num texto de Outubro de 2023, descontextualize-se e minta-se mesmo sobre o seu conteúdo. Chame-se ‘chalupa’ e ‘ignorante’ ao visado e consegue-se, mesmo assim, ser-se candidato a presidente da Assembleia Municipal do Seixal pelo Bloco de Esquerda e Livre nas próximas autárquicas.

    Mas que importa a verdade a quem nem honra a ideologia que apregoa? No habitual efeito de rebanho, atrás de uma hiena surge sempre outra. Apareceu então o influencer Luís Ribeiro, com carteira de jornalista, a ecoar as mentiras do Macedo, acrescentando insinuações sobre a minha higiene e acusando-me de ser “odiento”. Seguiu-se, na habitual procissão, uma cronista do Público — XXX Garcia —, que também não resistiu a lançar referências paternalistas e pouco abonatórias. Os chacais juntam-se sempre quando pressentem sangue, ainda que a “caça” seja apenas a verdade inconveniente.

    Pode dizer-se que estes episódios não passam de patetices. Mas de patetice em patetice, têm um propósito pernicioso: estes influencers — porventura alinhados ou contratados — recorrem à mentira para, em momentos-chave, tentar descredibilizar quem cria rupturas no status quo. Não é coincidência que, precisamente hoje, o LinkedIn tenha decidido censurar a divulgação da notícia sobre o estudo de Ioannidis, certamente por o post ter sido ‘metralhado’ de denúncias. As hienas e os chacais, medrosos por natureza, agigantam-se em grupo.

    O já desusado “chalupa” e a sua derivação “chalupice” continuam, em 2025, e em Portugal, tristemente vivos em certas cliques como táctica de ataque. É a estratégia mais cómoda: se não se quer — ou não se consegue — discutir o mérito das questões, chama-se um nome feio, fecha-se a caixa de comentários e passa-se ao próximo tema.

    Depois de fazer fretes na revista Visão, identificados até pela ERC, o jornalista Luís Ribeiro entretém-se a fazer piadas sobre o suposto ódio dos outros e da sua higiene. Ou seja, em vez de jornalismo, faz agora ‘trollismo’.

    Apesar de tudo, é fascinante observar como a Medicina e o mundo das farmacêuticas continuam a provocar tanta baixeza. E o problema não é apenas económico: é conceptual. O debate sobre Saúde Pública foi reduzido a um simplismo clínico e hospitalocêntrico, ignorando princípios básicos da epidemiologia, da saúde populacional e, sobretudo, da gestão racional de recursos. A ideia de que se pode administrar, a torto e a direito, determinados fármacos sem aplicar o princípio da precaução — tratando seres humanos como gado veterinário — é não só insustentável como perigosa.

    Pior ainda é tentar fazer crer que questionar terapias génicas ou a universalização de anticorpos monoclonais em pessoas saudáveis equivale a ser “anti-vacinas”. Ao contrário das vacinas, que induzem imunidade activa e memória imunológica, estes fármacos oferecem apenas imunidade passiva e temporária, com o risco acrescido de criar gerações menos preparadas para enfrentar agentes patogénicos na idade adulta, quando certas infecções podem ser mais graves.

    Este raciocínio raramente encontra espaço no debate mediático. A imprensa mainstream, sequestrada economicamente por farmacêuticas e influencers sanitários, evita o incómodo de confrontar interesses, contratos, custos e eficácia real. Mais fácil é gritar “chalupa” e encerrar a conversa.

    Em 2025, se houver ‘denúcias’ em alcateia, o LinkedIn ainda censura conteúdos de jornalistas que se baseiam exclusivamente em artigos científicos, neste caso um da autoria do mais reputado epidemiologista mundial, John Ioannidis.

    E é precisamente aí que a minha crítica incomoda: não aceito pacotes fechados de “verdades” impostas pelo marketing farmacêutico ou pela preguiça intelectual de muitos profissionais e comentadores. Questionar é uma obrigação. Recusar a aplicação de tratamentos veterinários a seres humanos é, mais do que bom senso, uma questão de responsabilidade.

    Se estes ataques de carácter servirem para que alguns leitores percebam que a discussão sobre Saúde Pública não pode ser sequestrada por quem a reduz a protocolos clínicos e slogans publicitários, então já terão valido a pena. Mas convém que todos entendam: chamar nomes não muda a realidade nem apaga os números. E os números, infelizmente para alguns, continuam a mostrar que dar anticorpos caros a todos os bebés para chegar exactamente ao mesmo número de mortes — zero —, para gáudio dos accionistas e colaboradores das farmacêuticas, não é Ciência, nem boa Medicina. É marketing.

  • As falhas de mercado: outra mentira do nosso tempo

    As falhas de mercado: outra mentira do nosso tempo


    Há décadas que as chamadas “falhas de mercado” são o álibi técnico e académico para justificar toda a sorte de intromissões do Estado na vida económica. A sua repetição exaustiva nos manuais universitários serve para gerar a ilusão de que o mercado livre é instável, injusto, desequilibrado e, acima de tudo, incapaz de funcionar sem o amparo das estruturas regulatórias. Uma mentira repetida até parecer ciência.

    Mas, sob o escrutínio lógico, esta teoria desaba. As “falhas de mercado” não resultam de qualquer cálculo, unidade ou medida real. São artefactos normativos, formulações morais disfarçadas de análises económicas. São, na melhor das hipóteses, juízos subjectivos; na pior, engenharia social.

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    Foto: D.R.

    Diz-se que há externalidades sempre que uma acção afecta terceiros que não participaram na decisão — como a poluição de uma fábrica que atravessa a propriedade alheia, ou o perfume de um jardim que embeleza a rua. Se o efeito for negativo, alega-se que há “falha de mercado” que exige intervenção.

    Mas o que está aqui em causa não é uma falha de mercado: é uma questão jurídica de direitos de propriedade. Se alguém emite poluentes sobre a casa de alguém sem consentimento, isso é uma agressão, e deve ser tratado como tal. Não precisamos de um comité de peritos para avaliar “efeitos colaterais” — precisamos de tribunais que protejam a propriedade e responsabilizem os agressores.

    Já as chamadas externalidades positivas — como uma linha de metro construída pelo Estado, que alegadamente valoriza os prédios adjacentes — são irrelevantes do ponto de vista económico: se os beneficiários não estão dispostos a pagar voluntariamente por esse benefício, então não há transacção, nem preço, nem escassez. Impor-lhes uma “compensação” via imposto é declarar que qualquer valor subjectivo sentido por um terceiro já constitui título legítimo sobre a carteira alheia.

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    Foto: D.R.

    Mais grave ainda: quando se alega que o benefício é menor que o prejuízo, ou vice-versa, surge a pergunta inevitável — medido em quê? Quilogramas de bem-estar? Litros de prejuízo social? É uma acrobacia sem rede: querem intervir num processo voluntário, invocando desequilíbrios que não sabem medir, sobre preferências que não conhecem, com base em valores que não partilham. Não há aqui “falha” alguma.

    O segundo cavalo de batalha é o dos “bens públicos” definidos como não-excludentes e não-rivais — como o farol, a segurança ou a iluminação da rua. Como ninguém pode ser impedido de beneficiar deles, dizem, ninguém quer pagá-los voluntariamente. Logo, conclui-se que o Estado deve fornecê-los compulsivamente.

    Mas este raciocínio é duplamente falacioso. Primeiro, porque parte do pressuposto de que não pagar é igual a não valorizar. Segundo, porque ignora que a possibilidade de não-exclusão é uma decisão jurídica e tecnológica, e não uma propriedade ontológica do bem.

    Historicamente, faróis foram financiados por portos privados. Segurança pode ser contratada por condomínios, bairros, empresas e indivíduos. A iluminação pode ser ligada a quotas, consumo ou subscrição. A categoria de “bem público” serve apenas para legitimar a colectivização coerciva daquilo que o mercado livre não fornece — e que, justamente por isso, não deveria ser fornecido à força.

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    Foto: D.R.

    O conceito de “monopólio” transformou-se numa arma ideológica. Sempre que uma empresa domina um mercado, ou cobra um preço considerado “excessivo”, ou tem uma marca forte, é imediatamente acusada de prática monopolista.

    Exige-se então a intervenção do Estado para “restaurar a concorrência”. Mas esta é uma inversão completa da lógica económica. O verdadeiro monopólio é imposto pelo Estado, pela força, através de barreiras legais à entrada. No mercado livre, qualquer posição dominante está sempre vulnerável à concorrência potencial — que, por si só, é um freio poderoso.

    Quanto ao “preço abusivo”? Para quem? Medido segundo que critério? Um preço é abusivo apenas aos olhos de quem não quer pagar por ele — o que é uma preferência, não uma norma universal. O mercado não cria monopólios. O Estado é o único fabricante legítimo desse artefacto jurídico.

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    Foto: D.R.

    Alegam os economistas defensores da intervenção pública que o mercado falha quando uma das partes sabe mais do que a outra — como o vendedor de um carro usado que conhece defeitos ocultos. Mas isto é precisamente o que torna o mercado possível. Toda acção humana envolve informação assimétrica. É porque os actores valorizam os bens de modo diferente, e conhecem realidades distintas, que ocorre a troca.

    Além disso, o mercado já desenvolveu os seus próprios mecanismos para lidar com esse fenómeno: reputação, garantias, certificações, avaliações por terceiros, sistemas de classificação, concorrência. Nenhuma comissão estatal pode replicar, com semelhante eficiência dinâmica, o sistema espontâneo criado por milhões de trocas livres.

    Alguns académicos defendem que os indivíduos são “míopes”: preferem consumir hoje e poupar menos do que deveriam. Com base nisso, o Estado deveria corrigir a “irracionalidade” dos agentes, forçando-lhes hábitos virtuosos — seja em pensões, seguros ou saúde.

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    Foto: D.R.

    Este argumento não é económico. É moral e paternalista. A economia não tem meios para declarar que uma preferência é inferior a outra. Se alguém prefere fumar a poupar, comer a investir, isso não é irracional — é simplesmente a sua escala de valores subjectiva. O planeador que impõe a “racionalidade” por decreto está apenas a substituir os fins dos indivíduos pelos seus próprios. É a imposição da razão iluminada sobre os instintos naturais. Uma tentativa de estatizar a alma.

    Afirmam os teóricos da redistribuição que o mercado, ao permitir a acumulação, gera desigualdade; que essa desigualdade é socialmente nociva, injusta e indesejável. Concluem, como sempre, que cabe ao Estado redistribuir rendimentos para restaurar o equilíbrio.

    Mas a teoria do valor económico nada tem a dizer sobre a “justiça distributiva”. O mercado não distribui: remunera conforme a avaliação dos consumidores, em trocas voluntárias. A única justiça aplicável é a da propriedade legítima e da ausência de coacção. Querer redistribuir a riqueza sem redistribuir o mérito é confundir matemática com moral. A inveja não é base para a política económica. É apenas a degradação da justiça pelo ressentimento.

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    Foto: D.R.

    Outra acusação é que o mercado fornece pouco daquilo que “as pessoas deveriam consumir mais” — como livros, museus ou teatros — e demasiado daquilo que “deveriam evitar” — como álcool ou comida rápida. O remédio? Subsidiar os bens virtuosos e taxar os vícios. Esta é, de novo, uma imposição moral mascarada de ciência. Se o indivíduo não quer consumir determinado bem, isso é sinal de que não o valoriza. Obrigar a consumi-lo, ou a financiá-lo, é tratar o cidadão como uma criança estúpida — ou pior, como um animal a ser treinado.

    A teoria do “bem meritório” é a mais perigosa de todas: é a base para a censura, a propaganda, a escola obrigatória, a saúde compulsória, a virtude estatal. É a estatização da consciência.

    Alguns defendem que o mercado não consegue coordenar sectores complexos, como transportes, energia ou comunicações, e que, por isso, o planeamento estatal é indispensável. Mas a história revela o oposto: os sistemas mais complexos — como o abastecimento alimentar ou a Internet — são fruto da acção descentralizada.

    close up photography of brown jukebox letter keys
    Foto: D.R.

    O mercado coordena não por decreto, mas por sinal: o preço e o lucro. É o preço e os lucros que transmitem informação dispersa, agregada e actualizada sobre escassez, procura, oportunidade e preferência. Os planeadores centrais, por sua vez, navegam às cegas, alheios à preferência individual e à realidade do tempo. O mercado é ordem espontânea. O Estado é caos planificado.

    Argumenta-se que, por não conseguir capturar os benefícios futuros, o mercado não investe o suficiente em investigação e desenvolvimento. Como solução, propõe-se o financiamento público da inovação. Mas o mercado já resolve este desafio com contratos, capital de risco e, sobretudo, com o empreendedorismo visionário.

    Cada nova empresa, cada investidor de risco, cada fundo privado está precisamente a tentar antecipar o valor futuro de uma ideia. É verdade que a inovação é incerta — mas é exactamente aí que o mercado brilha. O Estado, ao financiar a investigação e o desenvolvimento, apenas substitui o risco voluntário pelo desperdício garantido. O resultado? Barcos eléctricos sem baterias, auto-estradas sem carros, aeroportos sem passageiros ou universidades que produzem artigos académicos para o vazio. O mercado selecciona pelos lucros e vendas; o Estado, pela ligação partidária.

    grey road during daytime
    Foto: D.R.

    Por fim, o argumento mais querido aos Bancos Centrais: o mercado é instável, cíclico, sujeito a crises. Logo, é preciso intervir com “políticas monetárias”, fiscais e “anticíclicas”. Mas esta é a inversão mais perversa de todas. As crises não são falhas do mercado — são consequências directas da intervenção estatal no crédito e na moeda. São fruto da inflação monetária, dos juros artificialmente baixos, da expansão de crédito sem lastro. É o bombeiro que chega para apagar o fogo que ele próprio ateou.

    As chamadas “falhas de mercado” não são realidades observáveis. Não têm unidade de medida, não têm consequência quantificável, não têm base económica. São juízos morais, argumentos ideológicos, fantasias tecnocráticas. Não denunciam falhas no mercado, mas sim a inveja dos resultados que o mercado livre gera. O que incomoda não é a ineficiência — é a liberdade. Porque onde o mercado acerta, o planeador perde poder. Isso, para o estatismo, é intolerável.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Até eu já estou farto do espalhafato da ‘Crise Climática’

    Até eu já estou farto do espalhafato da ‘Crise Climática’


    Sou jornalista desde os anos 1990. E desde essa altura — quando poucos davam atenção ao que então se chamava “efeito de estufa” — que acompanho as questões ambientais e, em especial, a problemática das alterações climáticas, quando então as petrolíferas gastavam imenso dinheiro para condicionar estudos sobre estas matérias.

    Acredito na Ciência, e sei que o planeta está a aquecer. E digo isto não por confiar na infalibilidade dos modelos matemáticos — pelo contrário, se enviesados ou com “arquitectura” mal concebida, mostram-se erráticos e de utilidade meramente especulativa —, mas sim por sinais biológicos e ecológicos. São os animais e as plantas que melhor sinalizam modificações climáticas: espécies que sobem em altitude e latitude, ciclos reprodutivos a mudar, migrações a antecipar-se. E os indícios estão aí. São múltiplos e cumulativos. São reais.

    Mas uma coisa é isso — e outra, muito diferente, é o espalhafato. A dramatização constante. O sensacionalismo catastrofista. A hipocrisia política. O histerismo mediático. A transformação do aquecimento global num épico de Hollywood, onde parece que já estamos a viver dentro de O Dia Depois de Amanhã, de 2012 ou de Geostorm — tal como sucedeu com a pandemia, onde, às tantas, estivemos a viver Contágio, com o Matt Damon.

    Olhando para os jornais, os telejornais, os portais e os podcasts, o que se vê? Um fogo permanente. Um inferno meteorológico a escorrer pelas palavras. E depois vê-se os políticos e “especialistas residentes” com a pala do costume: “temos de agir já!”, como se nunca se tivesse feito nada, como se a mudança dependesse unicamente da intensidade da histeria retórica. E das pessoas individualmente — nunca dos políticos ou das suas (más) políticas de desenvolvimento, de planeamento, de ordenamento.

    Dou, portanto, por mim cada vez mais exasperado. Irritado, mesmo. E não é com o clima — é com a forma como se tenta injectar, a martelo e com cuspo, uma narrativa armagedónica na imprensa dita “de referência”. Todos os dias se tenta colar uma nova tragédia ao aquecimento global. Já não há onda de calor, seca, chuvada, furacão, incêndio, peixe morto ou mosquito que não esteja, directa ou indirectamente, a ser “culpa do clima”. Como se as políticas de gestão territorial não existissem. Como se a má governação, a incúria, o desordenamento, a incompetência, as más prioridades orçamentais ou a ausência de prevenção fossem meras vítimas inocentes do CO₂.

    beach lounge on seashore facing the sea

    Hoje, por exemplo, dei de caras com a notícia do Público: “A água do Mediterrâneo nunca esteve tão quente em Julho como este ano”. A gota de água — com trocadilho — que me fez transbordar.

    O título é alarmante. O texto, mais ainda. A temperatura média da água no Mediterrâneo em Julho foi de 26,68 °C. Dado que o recorde anterior era de 26,65 °C, temos uma “diferença histórica” de… 0,03 graus. Repito: três centésimas de grau — um valor inferior à margem de incerteza estatística associada à maioria dos métodos de medição e interpolação da temperatura da superfície oceânica. E no entanto, a autora do artigo transforma isso numa espécie de profecia apocalíptica. Segundo ela, esse valor “favorece tempestades, inundações, secas e incêndios”. Assim mesmo, num parágrafo só, sem hierarquia de causas, sem filtros, sem bom senso.

    Enumeremos mais casos:

    1 – Temperatura “a ferver” – O subtítulo “Mediterrâneo a ferver” aparece em destaque, quando a temperatura média do mar rondou os 26,68 °C. Um valor inferior ao de muitas piscinas públicas. Não é um valor extraordinário para o próprio Mediterrâneo, que todos os verões ultrapassa os 26 graus. A expressão é enganadora. E é sensacionalista.

    2 – Causalidade simplista – A autora sugere que a tragédia de Derna em 2023, na Líbia, com centenas de mortos por colapso de barragens, teve relação com a temperatura do mar. Uma correlação abusiva, destituída de substância técnica, que ignora os factores estruturais do colapso — como a negligência prolongada na manutenção de infraestruturas hidráulicas obsoletas.

    sea under white clouds at golden hour

    3 – Secas, fogos, tempestades e furacões – Tudo junto, tudo misturado. Usa-se a subida de três centésimas de grau em determinadas zonas como rastilho narrativo para descrever um planeta em chamas. E nem uma linha sobre o ordenamento florestal, a falta de limpeza de matas ou o abandono rural. Aliás, em Portugal, as condições meteorológicas mais adversas, promotoras de aumento do risco de incêndio, nem costumam ser ventos de oeste nem de norte nem de sul (marítimos), mas sim de leste, transportando ar seco e quente da Península Ibérica interior, frequentemente associado a descidas de humidade relativa e aumento do risco de ignição — como documentado em vários estudos sobre incêndios extremos em Portugal.

    4 – Selecção de dados – O artigo afirma que 51,9% da Europa e do Mediterrâneo estiveram em seca entre 11 e 19 de Julho. Mas não refere que Julho de 2025 foi menos quente do que Julho de 2023 e 2024. Nem que, no total dos últimos 25 meses, houve vários em que a temperatura média global não ultrapassou o limiar de 1,5 graus sobre os níveis pré-industriais. E, mesmo quando ultrapassa, fá-lo apenas de forma pontual e não sustentada — ao contrário do que prevê o Acordo de Paris para definir um real agravamento climático. O dado inconveniente é omitido. A nuance desaparece. Enfim, escolhe-se um mês (meteorologia) para fazer conclusões sobre o clima (que é outra coisa).

    5 – Alarme sem contexto – Afirma-se que em 13% do oceano a temperatura esteve “um grau acima da média”. Mas qual média? Qual o período de referência? Qual a significância estatística? Nada disso é explicado. Fica apenas um número, a flutuar como uma bóia de pânico.

    Se isto não é propaganda, é pelo menos um jornalismo excessivamente alinhado com um discurso único — onde prevalece o dogma apocalíptico.

    E é pena. Porque a causa é séria. Porque a adaptação às alterações climáticas exige inteligência, planeamento, responsabilidade. E o histerismo ajuda pouco. O drama por atacado desacredita quem, com serenidade e rigor, tenta mudar comportamentos, políticas e modelos económicos. O jornalismo tem a obrigação de informar, não de assustar.

    Transformar o Verão Mediterrânico — que é uma bênção da Natureza para um ser humano feliz — num “forno climático” logo que os termómetros sobem acima dos 30 ou 32 graus é um exercício de revisionismo climático sem memória.

    orange and white egg on stainless steel rack

    Estamos, pois, a viver não uma crise ou emergência climática — mas uma emergência narrativa. Um colapso do discernimento. Uma febre ideológica que se esconde atrás da Ciência para impingir agendas políticas, económicas e comunicacionais. E que, no fundo, infelizmente, apenas serve para transformar o aquecimento global num novo moralismo redentor, com pecadores, castigos, indulgências e profetas.

    A Terra está a aquecer — e é preciso agir. Mas não precisamos de entrar num filme de terror. Precisamos de verdade, não de histeria. Precisamos de jornalismo, não de alarmismo. E eu, que ando nisto há 30 anos, não estou disposto a ser cúmplice de uma neurose colectiva só porque ela parece bem na fotografia… e na infografia.

  • Pivot da CNN Portugal solicitou que o Ministério Público encerre o PÁGINA UM

    Pivot da CNN Portugal solicitou que o Ministério Público encerre o PÁGINA UM


    O jornalista José Gabriel Quaresma, também pivot da CNN Portugal, apresentou um pedido ao Ministério Público para “encerramento do jornal PÁGINA UM, em virtude”, diz, “das graves irregularidades e da disseminação de notícias falsas”. O pedido foi também comunicado à Entidade Reguladora para a Comunicação Social – que entretanto abriu um processo sem qualquer análise prévia das acusações –, à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

    Em causa estão diversos artigos do PÁGINA UM – e mesmo uma crónica satírica assinada por Brás Cubas – que incidem, em partes ou na globalidade, na actividade do jornalista da CNN Portugal que se mostra incompatível com o Estatuto do Jornalista.

    José Gabriel Quaresma é pivot da CNN Portugal. Foto: Printscreen de uma das emissões.

    Esta solicitação de encerramento de um jornal é inédita em Portugal no período da democracia, ainda mais por ser exigida por um jornalista de um importante órgão de comunicação social – a CNN, detida pela Media Capital  e controlada pelo empresário Mário Ferreira – contra um jornal independente que não tem, até agora, qualquer condenação nos tribunais sobre qualquer matéria nem cometeu qualquer infracção de carácter sancionatório pelos reguladores, quer pela ERC quer pela CCPJ.

    Quaresma, que detém a carteira profissional de jornalista número 1713, reage assim depois de terem sido denunciadas as suas actividades de formador (media training ), coach e consultor de comunicação claramente incompatíveis com o Estatuto do Jornalista. De acordo com este diploma legal, o exercício da profissão de jornalista é incompatível com o desempenho de, entre outras, “funções remuneradas de marketing, relações públicas, assessoria de imprensa e consultoria em comunicação ou imagem, bem como de orientação e execução de estratégias comerciais”.

    Ora, José Gabriel Quaresma tem vindo, sobretudo nos últimos anos, e à boleia do seu estatuto de pivot da CNN, a desenvolver actividade intensa de formação e de coaching na área da comunicação, sobretudo através da empresa que criou em 2023, a Sardine Conjugation, e que nem sequer divulga as suas contas anuais, incumprindo a lei. Tem, além disso, conhecidas ligações maçónicas. Ainda recentemente foi ‘apanhado’ num vídeo de um ritual da Maçonaria ao lado de António Pinto Pereira, antigo deputado do Chega e candidato à autarquia de Cascais pela Nova Direita.

    Apresentação de José Gabriel Quaresma no seu site, detido pela sua empresa de comunicação Sardine Conjugation, e onde oferece uma panóplia de serviços. Quaresma considera que expor estas situações, usando imagens públicas viola a sua privacidade e direitos de autor.

    Quaresma detém 70% do capital social da empresa, sendo também seu gerente. No objecto social da empresa estão actividades incompatíveis com o jornalismo: “consultadoria em comunicação, formação, media training e consultadoria online”. No site da Sardine Conjugation, onde José Gabriel Quaresma se apresenta como “um especialista reconhecido, em comunicação, com experiência e capacidades técnicas e humanas que o posicionam como um guia essencial para quem procura aperfeiçoar as suas competências em comunicação”, há uma panóplia de serviços que colocam em causa a isenção de um jornalista – além da ilegalidade.

    Com efeito, o pivot da CNN Portugal – que quer encerrar o PÁGINA UM – oferece um portefólio diversificado de serviços na área da comunicação, combinando formação, mentoria e apresentações públicas. Inclui programas de mentoria personalizada para desenvolvimento de competências estratégicas de comunicação; masterclasses sobre saúde mental nas organizações e sobre “Comunicar com Impacto”; workshops práticos que vão desde falar em público, escrita de discursos e storytelling até técnicas para enfrentar câmaras e criar conteúdos para redes sociais; apresentação e moderação de eventos, com ênfase na gestão da comunicação e no envolvimento de diferentes públicos; e actuação como keynote speaker em empresas, escolas e universidades, transmitindo experiências e técnicas que, segundo o próprio, visam gerar impacto e resultados tangíveis.

    Aparentemente, não lhe têm faltado clientes – embora não se saiba a facturação, porque a Sardine Conjugation não apresentou as demonstrações financeiras de 2023 e de 2024 na Base de Dados das Contas Anuais. Nos últimos meses, e já depois das notícias do PÁGINA UM, José Gabriel Quaresma acrescentou, a par da sua actividade de jornalista na CNN Portugal, a função de “Coach de Comunicação” na Turim Hotel Group e na Centralmed, como freelancer, e ainda de formador em cursos (não académicos) de comunicação na Universidade de Aveiro. Além disso, desde 2012 treina a Força Aérea a comunicar com a imprensa – tudo isto actividades incompatíveis.

    José Gabriel Quaresma faz publicidade activa dos seus serviços de serviços de “treinamento corporativo”, de coaching, consultoria e redacção. No LinkedIn, a última vez foi há uma semana.

    Mas, apesar destas evidências, Quaresma – que aparentemente não foi escrutinado nem pela sua entidade empregadora nem da CCPJ por acumular actividades de consultor de comunicação com o jornalismo – sentiu-se encorajado a lançar um chorrilho de acusações contra o PÁGINA UM, não apenas reputando de falsas as notícias – que apresentam provas e evidências – como garantindo que foram usados “documentos de carácter privado”.

    Note-se que o PÁGINA UM apenas usou printscreens (capturas de ecrã) de imagens das redes sociais e do site de José Gabriel Quaresma, de acesso público, exactamente para demonstrar as suas actividades incompatíveis, não havendo, pelo contrário, qualquer violação legal.

    Mas Quaresma vai mais longe e acusa o PÁGINA UM de usar “conteúdos” da sua autoria e lança a suspeita de que o jornal até tenha tido acesso a documentos privados que estavam guardados no seu computador.

    Na sua página do LinkedIn, Quaresma revela, por vezes, clientes satisfeitos com as suas formações em comunicação.

    Para compor o ramalhete, o pivot da CNN Portugal aponta ainda a existência de alegadas irregularidades na ficha técnica do PÁGINA UM, entre as quais destaca a inclusão do Serafim como mascote.

    Quaresma, que nem sequer terá entendido a ironia desta inclusão (permitida pelas interpretações da ERC, uma vez que, segundo o regulador, a Lei de Imprensa não impede que outros elementos, para além dos que discrimina, integrem a ficha técnica, pelo que não existe violação de lei), diz que o Serafim é um cão – uma ultrajante falsidade, uma vez que o Serafim é um verdadeiro gato com a provecta idade de 17 anos, e que dá o seu nome à rubrica satírica Arranhadelas’. Quaresma – que se intitula de Chief Magic Officer [Director-Chefe de Magia, em tradução livre] da Sardine Conjugation – diz que a existência de uma mascote pelo PÁGINA UM aparenta “descompensação psíquica, sem qualquer ironia e alegadamente”.

    O pivot da CNN Portugal e gerente de uma empresa de treino em comunicação defende ainda que o modelo de financiamento do PÁGINA UM é “irregular”, por ser, diz, “o único órgão de comunicação social registado na ERC, que eu tenha conhecimento, que solicita doações directas aos leitores”, algo que, na sua opinião, “pode condicionar a linha editorial e a independência do jornal”.

    José Gabriel Quaresma acusa o PÁGINA UM de não o ouvir, mas vedou o acesso ao jornal á sua página do LinkedIn. Em todo o caso, até já comunicou com o PÁGINA UM, sendo as suas declarações integralmente transcritas. Jocosamente fez também um donativo de 50 cêntimos ao PÁGINA UM, através da sua empresa de comunicação Sardine Conjugation.

    A acusação da eventual ocorrência de influências externas sobre a direcção editorial do PÁGINA UM, um jornal de acesso livre, por via de se financiar através dos seus leitores – e que teve 595 donativos no mês passado e contabilizou receitas de 63 mil euros em 2024 e ostenta um passivo virtualmente nulo – não deixa de ser curiosa, sobretudo por vir de um jornalista da CNN Portugal.

    Com efeito, a empresa que detém a TVI (dona da CNN Portugal), e que paga o salário de jornalista de José Gabriel Quaresma, contabiliza um passivo de 91 milhões de euros e o seu detentor, o Grupo Media Capital, tem como accionistas uma sociedade por quotas (Zenithodissey) e quatro sociedades anónimas (Pluris Investments, Trium, Biz Partners e CIN), além de outras entidades minoritárias, estando assim muitíssimo mais dependente de influência externa. Acrescente-se ainda que a prática de donativos por leitores tem sido vista, mesmo internacionalmente, como um selo de independência, sendo usado nomeadamente pelo Guardian e Associated Press.

    Em todo o caso, isso pouco interessa para José Gabriel Quaresma que, nas suas denúncias, além de requerer o encerramento do PÁGINA UM – justificando que “a democracia não pode permitir que se tente manchar uma carreira intocável (a minha) sem que uma única coisa afirmada seja verdade, nem uma. É intolerável, a democracia, assim”, conclui –, exige também a “adopção de medidas sancionatórias fortes e definitivas”.

    Extracto da queixa de José Gabriel Quaresma ao Ministério Público, à ERC, à CCPJ e ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas onde se solicita o encerramento do jornal PÁGINA UM.

    E acrescenta ainda que “a existência destas plataformas [referindo-se ao PÁGINA UM], com o aval da ERC, apenas servem para destruir o já a definhar jornalismo, porque nestes casos não existe jornalismo”.

    Quaresma acusa o PÁGINA UM de nunca ter sido contactado para exercer o contraditório, o que é falso. Na verdade, o pivot da CNN Portugal até bloqueou o acesso ao seu perfil do LinkedIn numa tentativa de esconder as suas actividades mercantilistas apoiadas no jornalismo.