Categoria: Opinião

  • Tivemos 478 leitores a fazer o PÁGINA UM em Dezembro. Quantos serão em 2024?

    Tivemos 478 leitores a fazer o PÁGINA UM em Dezembro. Quantos serão em 2024?


    Este mês, o PÁGINA UM fez o seu segundo aniversário, e registou o seu mais elevado número de visualizações de notícias. Este é um projecto inovador, porque, pela primeira vez, se aplica na imprensa portuguesa um modelo de ‘willingness to pay’ – ou seja, o leitor dispõe da liberdade de contribuir com o valor máximo que assim desejar (ou poder), sendo que, independentemente disso, acede às notícias e conteúdos.

    Essa modalidade tinha, tem e terá, do ponto de vista económico, todas as condições para fracassar, pois não há aqui qualquer rede: o PÁGINA UM assume que não tem (nem quer) publicidade, não realiza parcerias comerciais nem é suportado por misteriosos fundos das Bahamas ou de outras quaisquer paragens exóticas ou não. Vive – ou sobrevive – apenas com os donativos dos seus leitores – e cresce ou não em função desse fluxo, que constitui um barómetro da qualidade do nosso trabalho.

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    Nessa medida, o PÁGINA UM tem uma redacção ‘minúscula’ e grande parte dos colaboradores (não jornalistas) contribuem pro bono ou com muito simbólicas contrapartidas monetárias. Isso implica que tenhamos uma produção pequena, mesmo se com produtividade elevada, tendo em conta as abordagens que fazemos, sobretudo em áreas ou temas que órgãos de comunicação social não tocam ou temem tocar. Com este modelo, o PÁGINA UM jamais entrará em ‘aventuras’, e crescerá (ou não) sem dívidas, sem empréstimos e sem compromissos financeiros ou de outra natureza que possam colocar em causa a sua independência. Antes a morte deste projecto do que a sua sobrevivência comprometida.

    Todos os meses (ou dias) do PÁGINA UM – e falo como director do jornal mas também como gerente da empresa (que se criou por uma questão de transparência de contas) – são assim um desafio, porque em simultâneo com as investigações, as notícias, as opiniões, as entrevistas e outros tantos textos (e acreditem ou não, por um acaso, este será o texto 2.000 publicado neste nosso/vosso jornal digital), temos de apelar, de forma honesta, para que os primeiros leitores não se esqueçam da génese deste projecto e para que os novos leitores o compreendam.

    Viver supostamente de donativos – e ainda mais numa sociedade como a portuguesa e num mundo empresarial dos media assente na acumulação de prejuízos suportados pelos bancos, obrigacionistas, autarquias, empresas públicas e Governo – tem merecido, aqui e ali, um certo desdém e tentativas de menorização deste projecto.

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    Por exemplo, ainda este mês, em duas ocasiões, dois visados por notícias do PÁGINA UM tomaram a decisão de, em resposta a notícias a si desfavoráveis, darem uma ‘esmola’ via MBWAY. Um deles foi José Paulo Fafe, CEO da Global Media, após este meu texto; o outro foi o cantor e empresário André Sardet, depois desta notícia. A ambos devolvi o dinheiro, com acréscimo. Ao CEO da Global Media acrescentei 1,80 euros, o preço de uma edição em papel do Diário de Notícias; a Sardet (cujo apelido verdadeiro não tem o T) acrescentei 0,96 euros, o custo de uma embalagem de passas no Continente, indicando que serviam para que os seus lucros de 2023 não fossem afectados, até porque o mais recente ajuste directo que recebeu (de uma empresa municipal de Lisboa) foi ‘só’ de 248 mil euros.

    Além deste tipo de boutade demonstrar o quão necessário se mostra a existência de um jornal independente – a ‘esmola’ é fruto da surpresa porque pessoas como Fafe e Sardet se surpreendem por jornalistas não acharem ‘naturais’ as suas negociatas –, há nisto sobretudo uma ignorância sobre o passado do jornalismo e sobretudo sobre o papel da imprensa e da forma como deve ser valorizado e remunerado pelos seus leitores – que são, na essência, o destinatário e a causa.

    Tal como sucedia no passado, em que os editores e até administradores de jornais sabiam que a sua remuneração e a sua sobrevivência (e até aceitável lucro) advinham exclusivamente da valorização individual feita pelos leitores, que depositavam diariamente a moeda correspondente ao preço do matutino (ou vespertino), o PÁGINA UM também olha assim para os seus leitores. Com respeito individual.

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    Sabemos que o PÁGINA UM existe porque todos os meses há pessoas que compreendem que este projecto, de acesso livre, só é livre e aberto porque tem jornalistas profissionais independentes e sem agendas escondidas mas que precisam de ser valorizados e remunerados – para fazer mais. Aqui não há ‘esmolas’, porque prestamos um serviço, ainda mais nobre por sabermos que está disponível mesmo para quem não quer ou não pode contribuir.

    Mas também sabemos que somente poderemos informar mais, incomodar mais, tornar as nossas notícias mais impactantes, se tivermos cada vez mais força, mais receita, maior capacidade de crescimento com mais jornalistas. Nós representamos o modelo de um jornalismo que quer recuperar a credibilidade de outrora.

    Desde o início do PÁGINA UM são incontáveis as pessoas que apoiaram financeiramente este projecto jornalístico. Este mês, de forma individual, até ao dia de hoje, contamos 478 apoiantes, com montantes diversos e periodicidades distintas (pontuais ou regulares), atingindo uma média a rondar os 9 euros por pessoa. Aquilo que fazemos com esta (pequena) receita mensal (basta multiplicar 9 por cerca de 500), com oscilações ao longo destes dois anos, sem nos endividarmos, tem sido quase um milagre. E continuaremos a fazê-lo acontecer, enquanto tivermos capacidades.

    Editorial

    Mas também temos consciência das potencialidades deste projecto se o número de apoiantes crescesse, porque isso implicaria, de imediato, aumentarmos de forma proporcional o nosso trabalho. Muitos assuntos temos de ‘abandonar’ por manifesta incapacidade humana de os abordar, e isso custa-me pessoalmente.

    Por isso, o nosso objectivo (e desejo) para 2024: atingirmos, em média, pelo menos os 1.000 apoiantes mensais. Mostrámos já, nos últimos dois anos, não apenas pelo jornal mas também pelas iniciativas no Tribunal Administrativo de Lisboa em prol do acesso à informação, quais são os nossos objectivos, aquilo que valemos e aquilo que desejamos fazer como jornal independente. Mas sabemos que os leitores são soberanos – e é neles, sempre nos leitores (e não nas empresas ou nos Governos), que depende o PÁGINA UM.


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    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

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  • Manifesto de Natal by Estraca

    Manifesto de Natal by Estraca


    De volta a Dezembro, esquecemos tudo novamente

    Voltamos a ser mais humanos, a sopa quente do sem-abrigo,
    dos Aliados ao Oriente

    e este ano, excepcionalmente, temos o apoio do Parlamento,
    dos partidos

    Toma uma sopa e um panfleto, mas só comes se votares! Ouviste?

    Viva a campanha eleitoral

    em época de Natal.

    Viva Portugal!

    Tudo ao rubro entre o Wonderland, as compras e o trânsito infernal, o funeral da democracia e o orgulho nacional,

    da bandeira sem as quinas e os castelos.

    [Já agora, mudem também a poesia de Fernando Pessoa, o fado de Amália e o nome de Lisboa para… Lisbon; é mais bonito.]

    Vai, cala-te e come.

    Come mais um aumento da renda,

    da luz,

    da água.

    Reclama que está caro; é o progresso da agenda globalista: sem nada, feliz e cada vez mais escravo.

    A casa não é tua,

    o carro também não.

    Até o teu filho já é propriedade do Estado.

    Mas aguenta, aguenta, Zé Povinho, lamenta, mas no sofá: sentadinho, caladinho, a mandar postas de pescada na internet.

    “Eu sou Chega”, “ele é PS”, “o meu partido é que é honesto!”.

    “Mas que cor é que ele veste?”

    Isso é que importa, não é?

    Tirar o poder ao povo e dar aos políticos, e eles adoram isto, de dar aos políticos e tirar ao povo.

    Até aqui, nada de novo,

    mas pronto, vamos dar seguimento.

    Este ano, tivemos o aparecimento em massa do movimento burguês pelo clima, com um enorme esforço e financiamento internacional.

    Tivemos também o desentendimento da família PS. Eu relembro: 10 mudanças no alinhamento do Governo,

    com despedimentos por corrupção.

    Mais recentemente, o afastamento do Costa, que de repente voltou ao posto. Em breve… está na Europa.

    Tivemos o Galamba, o aluno do nosso querido engenheiro, o grande José.

    Ele está fora, mas continua sempre lá no meio.

    Ó Galamba passa a ganza que a bófia não vê, e o povo não sente o cheiro,

    nem da ganza, nem do dinheiro.

    Faz um esforço, corta no jantar, reduz no almoço.

    Hospital, ou é privado, ou acabas morto.

    Saúde é para quem tem dinheiro. Neste país, é assim,

    já dizia o outro: uns são filhos, outros enteados, e outros… Nuno Rebelo de Sousa.

    Mas que venha 2024, com este grande aumento de ordenado.

    Já dá para comprar uma tenda nova e um casaco para os dias mais frios.

    É que isto com as alterações climáticas nunca se sabe.

    Aumenta a mortalidade, os enfartes,

    está tudo comprovado.

    Um aparte, cenário internacional: Rússia, Ucrânia, Israel, Palestina. Já só falta China e Taiwan.

    Não querendo ser chato, para terminar… desculpa, podes-me… um obrigado à Cristina Ferreira, ao Cavaco, ao Marques Mendes, ao Malato, ao ChatGPT, ao José Alberto Carvalho, ao Papa Francisco, à Kikas, à Joana Marques, à Prozis, ao lítio de Montalegre e às bifanas de Vendas Novas.

    Acho que não me esqueci de ninguém.

    Um obrigado.

    Feliz Natal e Bom Ano Novo.

    Até para o ano.

    Estraca é um rapper e activista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher

    O Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher

    A cama do menino Jesus era um colchão no chão, com pouca roupa, tão pouca que o menino raramente se despia, e muito menos no Inverno. Era, sem dúvida, um mau costume; mas também o Inverno é um mau costume.”

    Jorge de Sena

    ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1944)


    Então,  mas…

    …é ou não é verdade que 15% das mulheres tem ventres onde nunca há frutos?

    Caraças, estes malditos detalhes.

    Dão com os escribas em doidos.


    Vamos lá, agora deixem-se de tretas. Um lugar-comum que está grosseiramente errado logo à partida não se vai tornando ligeiramente correcto, e depois cada vez mais correcto até andar próximo de expressar a verdade, apenas porque é repetido milhões de vezes, espraiando-se pelo curso dos séculos e correndo pelas veias da geografia. O que estão sempre a dizer-vos não é verdade, e aliás nunca poderia ser verdade. Se calhar a rima é bonita[1], e se calhar o próprio conceito é aconchegante. Até pode ser que funcione como enzima desculpabilizante[2], sobretudo para as pequeninas minorias bem cuidadas que possuem a granel tudo aquilo que as colossais maiorias esfarrapadas nunca possuiram nem possuirão. A existência de uma única noite, ao longo de um total descontraído de 365 dias e seis horas, que é destinada à prática da solidariedade social[3] deve ser especialmente doce para estas pessoasmas com a ciência[4] não se brinca e não, desculpem mas não, o Natal não é quando um homem quiser. A data de celebração do Natal tem regras, pelo que, para fazer sentido, o Natal precisa obrigatoriamente de respeitá-las. E acontece que uma dessas regras, absorvida directamente do culto mitraico pelos legionários romanos acabados de chegar da Pérsia[5], é a regra de ouro da sua data, que sobrepõe o nascimento do Menino Jesus às festividades com que se celebra o Solstício de Dezembro. É nesta altura que os homens imploram aos deuses que a luz volte depressa.


    Creio que toda a gente sabe isto. Mas, na dúvida, vamos só rebobinar os pontos mais altos destes Himalaias improváveis.

    Até muito tarde no curso da História que se escreveu Depois de Cristo, o Natal celebrava-se na noite de 20 para 21 de Dezembro e não existiam cá mais mariquices. Existia, apenas, a calêndrica estóica herdada de Júlio César no grande esforço de criar uma contagem do tempo que servisse por igual todos os povos do mundo abrangido pelo Império Romano. Positivamente pejado de anos bisextos, dias pagãos feitos feriados, travessias religiosas e outras que tais, este Calendário Juliano usava essas alcavalas para manter o tempo sob controlo. Mesmo assim, quando entramos na primeira década do século XVI o calendário já transborda com abundância, porque já comporta doze dias a mais.

    Na primeira década do século XVI?

    Gaita que isto foi rápido.

    Na realidade, e tendo em linha conta que no século XVI ainda são os Papas quem toma as decisões finais por todo o mundo civilizado[6], isto apenas precisou de um Papa suficientemente empreendedor que conseguisse ver com clareza o que lhe trazia a curva do tempo – e depois, em vez de se dar por vencido e suspirar com tristeza à maneira do muito cristão Soren Kierkegaard “a maior ironia da vida é que a vivemos do princípio até ao fim mas só a entendemos do fim até ao princípio[7]”, contratar um punhado de estudiosos dedicados à calêndrica para que lhe apresentassem o projecto de um novo calendário.

    Esse Papa adoptara o nome Gregório III.

    Foi assim, para o melhor e para o pior, depois de imensa polémica e intensa gritaria, que nasceu o Calendário Gregoriano ainda hoje em uso.

    rock formations during daytime

    Agora, vão por mim e apreciem bem algumas histórias verdadeiras associadas às datas do Natal e da Páscoa. Se não aprendermos mais nada, no mínimo aprendemos, de uma vez por todas, que a calêndrica não é nenhuma brincadeira. Longe disso. É uma forma de estar na vida que ainda hoje separa os cristãos ortodoxos dos católicos, os católicos dos protestantes, e toda esta gente da grande heresia nestoriana que nos nossos tempos se abrigou em Turlock, California.

    Até à conversão do Império Romano, a celebração do Solstício de Inverno que faz concorrência directa com o cristianismo é a do culto indo-iraniano dedicado ao deus Mitra. Mitra, que apadrinha a amizade, o contrato, e a ordem, aparece na península italiana no final do século I, para depois se expandir a grande velocidade por todo o Império. O seu culto é secreto, pelo que cada um dos seus novos seguidores se vai sentindo especial perante todos os seus pares. Neste sentido, os templos de Mitra encontram-se muitas vezes dentro de cavernas, ou de grutas, ou em qualquer outra localização que os esconda dos olhos do mundo.

    Como é evidente, existe toda uma narrativa destinada a acompanhar os passos de Mitra entre os mortais. Um dos grandes pontos altos desta narrativa ocorre quando Mitra mata um touro. Simbolicamente, esta morte estabelece uma nova ordem cósmica, associada à Lua, que, por seu turno[8], está associada à fertilidade[9].

    Mas acontece que a vida não tem só um começo. Se formos verdadeiros mortais, a vida tem, sobretudo, um fim.

    Os primeiros cristãos acreditavam que o regresso de Cristo estava ali mesmo ao virar da esquina, e portanto celebravam a Páscoa todos os Domingos. Depois, com a passagem dos anos e dos séculos, já quase em contagem decrescente para o Milénio, tiveram que aceitar a sua ignorância total no respeitante ao Segundo Regresso[10] e encarar a necessidade de convocar uma data simbólica para funcionar no calendário enquanto Grande Metáfora de Luz.

    A data simbólica que saiu do subsequente Grande Debate de Fogo é uma espécie de aventura druídica que não poderia, certamente, aparecer aos nossos olhos com um cunho mais pagão.

    green grass field during sunset

    A Páscoa é o primeiro Domingo depois da primeira Lua Cheia que se segue ao Equinócio de Março.

    É a grande festa móvel do calendário, calculada de raiz para cada ano e usada como fiel da balança para a validade de todas as outras datas de carácter religioso. Cientes do poder desta metáfora no tocante à conversão dos pagãos estabelecidos no domínio do Império Romano, os cristãos aproveitaram o Equinócio da Páscoa para inserirem também no calendário o nascimento de Jesus no Solstício do Natal.

    Praticamente todos aqueles que não observam a fé cristã observam à mesma a celebração do Natal, baseando-se em lendas, cânticos, ou imagens mitológicas, frequentemente muito anteriores ao nascimento de Jesus. Entre essas imagens salientam-se a Árvore de Natal, o Presépio, a Grande Refeição Especial, e a troca de prendas. Quanto ao Pai Natal, coitado – deu-se este homem ao trabalho de viver uma conversão magnífica[11], de semear milagres a toda a sua volta e de proteger toda a gente, de deixar ao mundo um corpo incorruptível capaz de curar tudo, de tomar conta das crianças, de aparecer em sonhos às pessoas importantes do seu meio, de começar a carreira como São Nicolau de Bari o que quase instantaneamente fez dele o famigerado Saint Nic das Lounge Songs americanas, para agora ser apenas mais um motivo decorativo dos centros comerciais. A Sociedade de Consumo tem literalmente feito dele o que quer, chegando este ano ao ponto de organizar voos charter à Finlândia para que os pais possam mostrar aos filhos onde fica “a aldeia do Pai Natal.”

    Ewh.

    Imaginem o olhar cáustico que alguns dos grandes sábios que mudaram os céus deitam sobre tudo isto. Vejamos o caso de Galileu e Kepler, por exemplo – um em Piza e o outro na Praga dourada do Imperador Rodolfo II, os dois em constante correspondência.

    É evidente que os dois astrónomos se entendiam mesmo muito bem. Na realidade, entendiam-se tão bem que, na capa do seu DIÁLOGO SOBRE OS DOIS GRANDES SISTEMAS DO MUNDO, Galileu fez gravar a imagem de Aristóteles, Ptolomeu, e Kepler[12], todos ricamente vestidos, e completamente tu-cá-tu-lá numa amena cavaqueira. Galileu trata carinhosamente o jovem luterano alemão por “meu Kepler”, e tem com ele desabafos deliciosos, como este, que vem a propósito dos catedráticos da Universidade de Pisa e das suas observações pomposas quanto aos roteiros dos céus:

    “As pessoas deste género pensam que a Filosofia[13] é um livro como a ENEIDA ou a ODISSEIA, e que assim sendo a verdade deve procurar-se não no Universo, não na Natureza, mas na comparação de textos![14]

    silhouette of people riding on camels

    Certificarmo-nos da validade da data do Natal é muito provavelmente um dos maiores desafios que o nosso calendário tem que enfrentar todos os anos, porque a Igreja Católica não estabeleceu para a Festa a data precisa do Solstício de Inverno, 21 de Dezembro. A Noite de Natal celebra-se antes de 24 para 25 em homenagem a outras tantas festas pagãs que cantam louvores a um qualquer Menino Eleito acabado de nascer, e estes quatro dias de atraso têm uma razão de ser precisa e universal: como em várias outras Grandes Festas celebradas com catadupas de luzes, sejam elas pagãs ou monoparentais, observa-se este ritual para implorar a Deus o aumento da luz diária[15]. No dia 21 de Dezembro, assinalando o Solstício, essa luz atingiu a sua duração mínima. Agora, passados quatro dias, a duração da Luz já se faz sentir. Não démos por nada, parece que ainda não aconteceu nada – mas, no dia 25, os dias já voltaram a recuperar cerca de dez minutos da Luz que tinham antes do Solstício.

    Que esta Luz caminhe agora convosco.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1]Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser/ Natal é em Setembro/ É quando um homem quiser”, uma vez que “Natal é sempre o fruto/ Que há no ventre da mulher”. Antes de se rirem do esforço que José Carlos Ary dos Santos investiu na criação destas candidatas a “rimas bonitas”, por favor, não esqueçam o óbvio: naquela altura ainda nem sequer existia a MTV, nem nenhum canal pop que nos presenteasse o dia inteiro com videos pedagógicos. Não existiam rap, nem hip-hop, nem outras formas de arte urbana em que rimar bem e de improviso fosse a grande pedra de toque. Portanto olhem, “Canta o sol/ Que tens na alma/ És a flor de ser feliz.” Que remédio.

    [2] As enzimas desencadeiam e potenciam as reacções inter e extra-celulares sem se gastarem nelas. Bom termo de comparação para as brincadeiras do Menino Jesus e para todos os Demónios escondidos

    [3] Isto era mais fácil de perceber quando, à semelhança do que fazem os americanos, o pessoal ainda lhe chamava caridade. Mas enfim, a desculpa é que os americanos são brutos. Vivem num mundo sem economia de mercado, porque ainda lhe chamam capitalismo e não têm medo de ninguém. E a verdade é que, com eles, a pessoa ao menos não se perde.

    [4] Os exercícios de Astronomia e de Matemática destinados a inserir ou excluir datas importantes do calendário formam mesmo uma ciência, tão antiga e de prática tão disseminada que não demorou muito a ganhar um nome próprio. Chamamos-lhes calêndrica.

    [5] Detalhe acrescentado a partir do culto monoteísta de Ahora-Mazda, criado pelo sacerdote persa Zarathustra, em que a data do Solstício de Inverno representa, metaforicamente, a data do nascimento anual do Deus-Sol (natalis invicti Solis, sendo que o nosso Natal vem directamente deste natalis, que, por seu turno, é derivado de nãscor, que significa nascer). Esta Força do Bem, toda ela feita de luz, vai depois passar o ano inteiro a lutar contra a Força do Mal, toda ela feita de escuridão, e por conseguinte criadora da sombra. Se só existisse luz, ficávamos completamente encandeados. É a sombra que nos permite ver.

    [6] Daí, certamente, pelo menos uma boa parte de tanto Papa assassinado enquanto durou esta hegemonia. Os efeitos colaterais de manter sobre o mundo um feroz poder absoluto são assaz previsíveis, além de que muito Papa houve que, em vez de tranquilizar todas as almas inquietas à sua volta, preferia agarrar em armas e andar à porrada num lado qualquer cheio de Inimigos da Fé. “Quem vai à guerra dá e leva,” como toda a gente sabe.

    [7] Bela citação, sem dúvida. Mas parece concebida de propósito para tornar impossível todo e qualquer arroubo de recomeçar do zero e presentear os povos inquietos com um novo calendário onde cabe tudo.

    [8] E uma vez mais.

    [9] E, uma vez mais, nãscor. Note-se aqui que Mitra tem alguns ajudantes na tarefa de tirar a fertilidade ao touro: a maioria dos seus baixo-relevos mostram um cão e uma cabra que bebem o seu sangue, um escorpião que pica o seu escroto, e um corvo que se se senta na sua cauda para mediar o diálogo entre Mitra e o deus do Sol Invictus.

    [10] O Segundo Regresso aparece referido por São João em Patmos no Livro do Apocalipse. É o período de mil anos em que Cristo, tendo regressado à Terra, derrota a Besta e as nações de Gog e Magog para trazer a felicidade ao mundo.

    [11] Ver  Clara Pinto Correia e João Francisco Vilhena, O LIVRO DAS CONVERSÕES, Relógio d’Água e Círculo de Leitores.

    [12] É importante termos conhecimento desta amizade, porque não falta, ainda hoje, quem acuse Kepler de ser “excessivamente piedoso”, coisa que Galileu obviamente não era. Mas Kepler soube distinguir muito bem a sua Ciência da sua Piedade. Sim, fez todo o seu trabalho na corte de Rudolfo II em Praga porque ganhava a vida a fazer o horóscopo diário do Imperador do Sacro Império, mas e depois? Quantas vezes teremos que repetir que praticamente todos os grandes cientistas deste período foram ou monásticos ou cortesãos? E foi na corte de Rudolfo que Kepler percebeu, finalmente, que as órbitas dos planetas eram elípticas, e não esféricas. Sim, odiou publicamente esta conclusão porque a esfera simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos, mas há azar? Publicou à mesma os seus resultados, não publicou? Ah pois é.

    [13] Palavra genericamente utilizada também para a Ciência até aos finais do século XVIII.

    [14] No que respeita à maioria dos nossos catedráticos, dá ideia que as coisas não mudaram muito até agora.

    [15] Veja-se, por exemplo, o caso do hanukkah judaico. A data da “festa das luzes” é móvel, mas sempre centrada perto do Solstício de Inverno. Em 2024 será exactamente a 25 de Dezembro.


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  • Uma ideia luminosa: multar (ou roubar) turistas!

    Uma ideia luminosa: multar (ou roubar) turistas!


    Os turistas que nos visitam sempre me despertaram uma grande curiosidade.

    Que razões os levam a escolher o nosso país?

    Consigo perceber os que viajam até Portugal para, por exemplo, visitar Fátima.

     O “turismo religioso” é um fenómeno a nível mundial e os estrangeiros não precisam mais do que ser crentes para considerarem “obrigatório” conhecer o “Altar do Mundo”.

    A maioria destes visitantes é gente simples, pouco exigente no que respeita à qualidade das instalações hoteleiras e da gastronomia.

    Não que não haja, nas imediações, hotéis e restaurantes excelentes, porque os há, mas a verdade é que, nas principais datas, do meio milhão de pessoas que enchem o Santuário só poucos, muito poucos, milhares são suficientes para os esgotar.

    people walking on street during daytime

    A imensa maioria é malta de chegar a pé, partir em autocarros e alimentar-se a pão com chouriço, sumos e cerveja.

    O “turismo de saúde” quase desapareceu, com o encerramento das termas, e também porque passou de moda.

    Ao contrário, o “ecoturismo” tem, agora, um grande número de adeptos dispostos a gastar bom dinheiro numas férias repousantes.

    Mas o “número de camas”, neste conceito, é reduzido embora a maioria dos pequenos empreendimentos sejam de grande qualidade.

    O turismo de massas, em Portugal, tem a ver com a época balnear.

    Temos um litoral espectacular, em especial o Algarve, mas idêntico, ou até inferior, a outros países geograficamente perto.

    white and blue concrete building

    Os preços, e a reconhecida simpatia das nossas gentes, têm levado centenas de milhares de turistas a optarem pelas nossas praias o que faz com que o turismo represente 19,1% da riqueza produzida em 2022, de acordo com o relatório do World Travel & Tourism Council (WTTC), que aponta Portugal como o 5º país onde é mais forte a contribuição do turismo para o PIB.

    Chegados aqui, o que fazer?

    Como habitualmente, arranjar maneira de estragar tudo.

    Deixámos de, praticamente, participar nas “Feiras de Turismo”, onde as empresas do ramo têm oportunidade de promoverem os seus produtos e serviços, com o fim de captar um número ainda maior de visitantes, e começámos a cobrar uma taxa aos turistas por… serem turistas.

    Os últimos iluminados foram os Autarcas da Câmara Municipal de Portimão que decidiram que fosse cobrada uma taxa diária de dois euros, na época de Março a Setembro, e um euro nos restantes dias do ano, como taxa turística.

    A Presidente do Município foi clara:

    “Aquilo que nós pretendemos é, primeiro, fazer a divulgação do destino turístico de Portimão como um destino turístico atrativo e atrair cada vez mais outros mercados turísticos para o nosso município e, depois, na melhoria daquilo que nós temos para dar aos nossos turistas, isto é, a melhoria dos espaços verdes, a melhoria dos arruamentos, tudo aquilo que implica termos um destino turístico de qualidade e é isso que pretendemos”.

    people on beach during daytime

    Numa frase onde a palavra turístico surge cinco vezes, fica claro que, não fosse pelos estrangeiros, os algarvios ficariam bem com “espaços verdes” repletos de silvas e arruamentos cheios de buracos.

    Havendo turistas nas nossas ruas há que arranjar estas ainda que, para tal, os obriguemos a pagar as obras.

    A ideia pode parecer estranha, mas nem sequer é original.

    Carlos Moedas, de Lisboa, já está a taxar os turistas que visitam a capital em viagem de cruzeiro e Eduardo Vítor Rodrigues, de Vila Nova de Gaia, decidiu que estes pagassem, também, dois euros por cada dia passado no seu concelho.

    Explicou o motivo:

    Vale a pena dizer que não somos os únicos: por essa Europa fora é cada vez mais usual, e bem, e não é com as taxas baixas que nós cobramos, é com taxas bem mais elevadas. Roma com seis euros, por exemplo.”

    white and black cruise ship on sea during daytime

    Segundo consta pretende continuar a copiar os italianos começando, desde logo, com a frase “Ir a Gaia e não ver o Rodrigues” em contraponto ao “ir a Roma e não ver o Papa”.

    O pior é se esta medida, que tem mais de multa que de taxa, não vai levar a que muitos dos que nos visitam optem por passar a ir a países onde não sejam vítimas de autênticos saques.

    Há uma lição, que se costuma dar a miúdos de quatro ou cinco anos, que mete galinhas e ovos de ouro.

    Talvez fosse útil estes autarcas pedirem a opinião a catraios, numa creche, antes de irem para as reuniões camarárias.

    Vítor Ilharco é assessor


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  • Famalicão 3.0

    Famalicão 3.0


    Tenho um carinho especial pelo Famalicão, benfiquista me confesso. E já agora também confesso ser um adepto (secundário) do Leixões – não me perguntem a razão, não tenho dali quaisquer raízes, mas vem de infância, talvez porque a equipa de futebol tinha um tipo que dava cambalhotas quando marcava golos (o Folha), além de um guarda-redes chamado Tibi, e ainda um médio habilidoso chamado Frasco. Talvez também por os chamarem de ‘bebés de Matosinhos’, se bem que os fervorosos adeptos no Estádio do Mar fossem mais conhecidos por cascar até em árbitros. Além disso, o emblema é estranho, por meter uma raquete de ténis, um pau de críquete e uma bola que mais parece de basquetebol, embora o clube seja mais famoso no voleibol, com vários títulos de campeão.

    Enfim, mas se o carinho pelo Leixões e por Matosinhos vem da infância e não é explicável, já o do Famalicão vem também da infância e é explicável, embora nada tenha a ver com futebol e com Vila Nova de Famalicão, de onde vêm os jogadores que agora mesmo começaram a pelejar com o Benfica, esperando eu que levem o mesmo número de golos que o número do ticket do meu farnel: 14.

    (por agora, 11 minutos, duas ameaças para marcar, mas ainda faltam 14 golos… o melhor é dar uma trinca na baguete de panado de aves com alface)

    Portanto, vamos à explicação sobre a minha infância e Famalicão. Como não há apenas uma Maria na Terra, também não há somente um Famalicão (ou uma…. ou será ‘ume’?) em Portugal, e dessa sorte a ‘minha’ Famalicão, ali no concelho de Anadia, é terra que viu os meus pais conhecerem-se nos idos de 50 (século passado, claro) – e tenho a impressão de que isso me foi favorável – e também onde se localiza(va) a escola primária onde estive três anos, não sendo preciso o quarto (‘gaba-te cesto’ por teres feito a primeira e segunda classe em apenas um ano).

    Assim sendo, aqui fica a minha homenagem a Famalicão (de Anadia), e à sua escola que me viu começar a contar e a escrever (não foi bem assim, porque, ‘gaba-te cesto’ outra vez, já lia legendas da TV e contava pelos dedos antes da ida para a primária).

    (goloooooooooo… Arthur Cabral, já com veia goleadora… o que faz um dedo do meio)

    Continuemos depois deste introito do primeiro do Benfica contra este Famalicão que não me interessa nada, excepto quando joga contra o Sporting, o Porto e o Braga. Aí sou adepto ‘deste’ Famalicão desde pequenino.

    Escola primária de Famalicão, no concelho de Anadia.

    Já que estamos aqui numa de recordar a infância, e para isto ter a ver com bola, e sobretudo, com o Benfica, informo também que ‘este’ (ou ‘esta’ ou… espera… como uso, neste caso pronome demonstrativo inclusivo?) Famalicão ficava paredes-meias com a Malaposta, aldeia atravessada pela famosa Estrada Nacional, então percorrida (antes da auto-estrada) por todos aqueles que queriam ir para o Norte (e para o Sul, claro), entre os quais os jogadores do Benfica, que, nos tempos da minha infância, tinham como habitual poiso para almoço (os jogos eram quase sempre ao domingo à tarde, todos à mesma hora) o restaurante Pompeu do Frangos, famoso pelos churrascos em terras de leitão à Bairrada. Acredito que por recomendação de um senhor de seu nome António José Conceição Oliveira, Toni para os amigos (e todos os demais, onde me incluo), nado e criado em Mogofores, a menos de 500 metros onde morei até aos 10 anos.

    (entretanto, sem glória, e desesperançado dos 14 a zero, e vejam como já nem almejo o mítico 15 a zero, acaba a primeira parte; menos mal, estamos a ganhar)

    Adiantada que vai a crónica, fui gastar os 15 minutos de intervalo a contornar as filas para a casa de banho e para os comes-e-bebes, até dar um abraço ao nosso colunista Tiago Franco, que das terras suecas (e de Santa Maria, de quando em vez), aqui está pela Grande Lisboa, e não perde oportunidade para se exasperar ao vivo e in loco com as opções do Robert Schmidt, enquanto zurze na ‘tosquicidade’ do João Mário e de mais uns quantos…

    Aspecto de um bom arroz de molho pardo.

    (e a segunda parte avança enquanto escrevo, e tirando um ‘tiro ao boneco’, leia-se ao guarda-redes, do Arthur Cabral, que devia ter feito melhor, o melhor que se viram foram as defesa do Trubin, por sinal guarda-redes benfiquista, que contribui para que do 14 a zero desejado, pelo menos que no zero à direita se acerte)

    Como bons benfiquistas, este um a zero não nos satisfaz nada. ‘Parece que estão todos de férias como o Di Maria na Argentina’, digo-lhe, enquanto lhe peço dois ‘linguados’ (gíria jornalística) para compor esta crónica para ficar com maior sapiência na arte do bitate futebolês.

    Escreve-me ele, na bancada Emirates, de esguelha, por ser o sector 4, que “durante toda a semana a discussão centrou-se no casamento da irmã de Di Maria”, que eu ignorava, avisando que “se déssemos tamanha atenção ao nosso próprio matrimónio, a taxa de divórcios no país cairia a pique”. E remata dizendo que agora percebe afinal, “aqui no estádio, qual era o real problema da ausência do astro argentino” nesse do jogo contra o Famalicão.

    Tiago Franco, comigo numa selfie, em pleno intervalo, sempre pouco satisfeito com as exibições do Benfica.

    E concretiza: “A julgar pela amostra dos primeiros 45 minutos”, opina ainda o Tiago, “o Di Maria seria provavelmente o único com disponibilidade para jogar”, pois “em campo estão nove rapazes a passar um serão entre amigos, Trubin a defender os poucos ataques do Famalicão, e anda ali o João Neves a jogar sozinho outra partida, a uma velocidade totalmente diferente”.

    Como a escrever sobre Famalicão, Malaposta, Mogofores e o Pompeu dos Frangos (onde há uns anos lá comi um arroz de molho pardo, que é como se chama ao arroz de cabidela, de se chorar por mais…), quase não vi a primeira parte, vou aproveitar todos os comentários do Tiago. Ainda me diz que o seu homónimo, o jovem Tiago Gouveia, “está a desperdiçar esta oportunidade, enquanto o Rafa, para lá dos arranques, falha em tudo o resto”.

    Quanto ao Arthur Cabral, afiança-me o Tiago que ele “consegue tropeçar mais na bola do que correr com ela”, e sobre o João Mário, ó surpresa?, digo eu, não é mais meigo: “continua a passar para trás com uma elegância sublime”. Na defensiva, diz ainda que o “Morato, a quem ninguém passa a bola, não tem culpa porque, como diz o meu colega de bancada, ‘ele não sabe mais’”.

    Deu para o farnel, mas não deu para o desejado 14 a zero.

    (eu confesso que, enquanto escrevo as crónicas não tenho muito tempo para perceber estes detalhes, além de que não detenho o sarcasmo futebolístico do Tiago em falar mal de quem se ama)

    Enfim, bela análise, Tiago. Depois disto, vou mesmo tentar ver como consigo que venhas para a bancada de imprensa, para esta Varanda da Luz, fazer análises futebolísticas com direito ao competente farnel (a maçã hoje está um pouco ‘farinácea’ ao contrário do habitual). Talvez envie um e-mail à Presidência da República, e, se não der a cunha, vou então falar directamente com o Lacerda Sales, ou com outro qualquer que prove que Marcelo Rebelo de Sousa é imune a cunhas, venham elas do Doutor Nuno ou de outro qualquer mafarrico.

    (goloooooooo! Rafa com um remate de belíssimo efeito… Vá, Tiago, diz mal agora do nosso Rafinha, que conta, segundo o speaker, 300 jogos de encarnado vestido, made in Luz, porque ainda teve uns quantos pelo Braga)

    Finalmente, estou mais aliviado. Já não aguentava mais nenhum empate com este tipo de equipas, como sucedeu com o Casa Pia e o Farense. Esta época, o Benfica consegue fazer jogos num ritmo sonambúlico, mas que permite, paradoxalmente, pelos sucessivos calafrios causados pelos ataques adversários (de qualquer um), manter-nos sempre activos, na expectativa… de um desastre… ou de uma alegria. Rafa lá consegue garantir-nos descanso ao minuto 85… espero…

    (goloooooo. Musa!, aos 89 minutos…ai agora, quando isto está a acabar?!)

    Enfim, ufa! Não está nada mal, afinal: 3-0 parece-me bem.

    (e só não foi o quarto antes do apito final porque não calhou… ou, melhor dizendo, o Musa falhou escandalosamente na cara do guarda-redes)

    E tu, que me dizes agora, Tiago? Valeu a pena?

    Ai agora já não me dizes nada?

    (…)

    Tarde, mas ainda a tempo, porque ainda demora alinhavar o texto, escolher fotos, e editar tudo, e enquanto os suplentes não utilizados andam ali a correr no relvado, com as bancadas vazias e o Paulo Gonzo aos berros nos altifalantes, responde-me o Tiago:

    “Nunca fico satisfeito com serviços mínimos, mas agrada-me ver o Rafa no papel de herói. Há cinco anos que o ataque depende das arrancadas dele e, enfim, se precisa de 10 oportunidades para concretizar uma… paciência. Se a eficácia fosse outra, nunca teria cumprido 300 jogos (hoje) de águia ao peito [porque seria contratado por um ‘tubarão europeu’, digo eu] . Agora satisfeito, mesmo satisfeito, era se hoje tivesse sido a despedida do João Mário e do Jurasek”.

    És terrível, Tiago, és terrível. Se estivesses aqui no meu lugar, já te tinham posto estricnina na baguete…


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  • Impostos: um roubo defendido pela casta parasitária

    Impostos: um roubo defendido pela casta parasitária


    Foi publicado, há dias, um estudo sobre a fiscalidade em Portugal, promovido pela Associação “Causa Pública”, cujos órgãos sociais são compostos por figuras ligadas à extrema-esquerda, como Paulo Pedroso, Ricardo Sá Fernandes ou Ana Drago.

    Como é normal neste país, qualquer iniciativa desta área política beneficiou de imediato de uma enorme publicidade, com um conhecido programa de rádio a discuti-lo horas a fio com os seus ouvintes, sob o tema: Temos um Sistema Fiscal injusto?

    a person stacking coins on top of a table

    É sempre uma discussão pungente de como aplicar “justiça” a um gigantesco assalto, que nem mesmo o mais maquiavélico e inventivo criminoso lembrar-se-ia de conceber. Como é hábito nestes “estudos”, o seu autor fala em causa própria, pois, até à data, tem sempre vivido do confisco de terceiros, sem nunca ter ido a uma entrevista de emprego, criado uma empresa ou pago um salário na vida.

    Talvez por isso, os autores destes “estudos” apresentam sempre as mesmas conclusões: o roubo nunca é realizado a uma escala suficiente; os “ricos” necessitam de “contribuir” mais! Num país que não cresce há mais de 20 anos, é natural que disputem uma fatia maior de um bolo que não cresce, apelando sempre ao monopolista da força, o Estado, por casualidade o seu empregador, que assalte mais um “bocadinho” o bolso dos outros!

    O estudo começa por citar a Constituição da República Portuguesa (CRP), em particular o n.º 1 do art.º 103º da CRP: “[o] sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza”. Daqui o autor conclui o seguinte: (i) o Estado deve “financiar a actividade da Administração Pública e as despesas do Estado Social”; e (ii) “corrigir desigualdades geradas pelo mercado, não só em termos de fluxos anuais de rendimento como também ao nível dos stocks de riqueza existentes”.

    despaired, businessman, business

    Em resumo: as necessidades financeiras do Estado significam as “despesas do Estado Social” e a “repartição justa dos rendimentos e da riqueza” significa “corrigir desigualdades geradas pelo mercado”. Para o autor, um sistema voluntário de cooperação social, onde se trocam livremente direitos de propriedade sobre bens e serviços, é algo perverso e gerador de “iniquidades”; provavelmente, uma destas “iniquidades” seja a sua não contratação ao preço que o autor julga merecer.

    Por outro lado, gera sempre espanto os apelos desta gente ao cumprimento da CRP, quando interessa! Quando não interessa, ocultam a contradição entre a garantia da propriedade privada (n.º 1 do art.º 62º) e o seu confisco com impostos; ou esquecem-se de denunciar que praticamente todos os orçamentos do regime democrático foram inconstitucionais (n.º 4 do art.º 105º); ou que estiveram calados em relação aos atropelos à mesma durante a putativa pandemia.

    Mas a CRP não serve apenas para corrigir o “ferino mercado”. O autor também nos informa que esta obriga à “provisão de saúde e de educação formal universal e tendencialmente gratuita”. Aqui temos mais um doutorado em ciências económicas que considera possível a existência de um bem económico “grátis”, que obriga sempre ao despojo prévio dos “ricos”.

    From above of crop anonymous economist calculating on calculator with plastic buttons while making budget on marble table

    Depois das “obrigações” da CRP, o autor esforça-se por justificar uma baixa carga fiscal em Portugal, com estas palavras: “A discussão pública em torno da fiscalidade tende a centrar-se na ideia de que Portugal deve baixar os impostos porque eles são demasiado elevados… apesar de ser aliciante, esta ideia não encontra sustentação empírica.”

    Para suportar a sua conclusão, apresenta-nos na página 5 um gráfico em que Portugal aparece na 16ª posição, longe da média, numa ordenação descendente da carga fiscal para os países que fazem parte da União Europeia (EU27). Parece que o autor não consultou correctamente os dados, pois, na verdade, não estamos na 16ª posição, mas sim na 13º, segundo o Eurostat, como podemos observar na seguinte figura:

    Receitas fiscais e contribuições para a Segurança Social em % do PIB, em 2022
    (Unidade: em percentagem / Fonte: Eurostat; Análise do autor)

    Se tivermos em conta a totalidade das “receitas” do Estado, nesse caso, estamos na 12ª posição, com 43,8% do PIB em 2022. O facto de estarmos abaixo da média, não significa que a população portuguesa não seja das mais confiscadas da União Europeia, pois o autor esquece-se de comparar esta carga fiscal com o rendimento anual de cada cidadão, neste caso a riqueza per capita corrigida pela paridade do poder de compra (PPC).

    Como podemos observar na Figura 2, no que respeita ao rendimento per capita (corrigido pela PPC), Portugal encontra-se na 20ª posição, mas está na 13ª posição na intensidade do assalto, com um diferencial de 7 posições (13ª vs 20ª= -7; ver Figura 2), apenas superado pela França, o único país mais rico, pela Croácia e Grécia, países que, tal como Portugal, lutam na liga dos últimos.

    Apesar de todos os contorcionismos do autor, é uma evidência a actual excessiva carga fiscal no nosso país, que poderá piorar, caso sejamos ultrapassados pela Roménia e Hungria.

    PIB per capita corrigido pela paridade do poder de compra (UE27=100 / Unidade: Índice)

    Seguidamente, o autor parte para um ataque aos “ricos”. Este ódio a minorias anónimas é característico de regimes totalitários, onde uns malvados são culpados de todos os males, sejam eles os especuladores, os judeus, os negros, os ciganos, os palestinos. Neste sentido, o autor dá-nos conta desse ódio nas cabeças dos miseráveis portugueses, embriagados de tanto socialismo: “Portugal é o país da OCDE onde mais pessoas (80% dos inquiridos) concordam em aumentar impostos sobre os mais ricos para apoiar os mais pobres”.

    Na sua cabeça, é legítimo roubar a uns para dar a outros. Para legitimar o assalto, o autor propõe tornar o sistema fiscal ainda mais progressivo, já que este assenta maioritariamente em impostos indirectos, onde isto não acontece. O que é a progressividade? À medida que o rendimento de um indivíduo aumenta, a proporção objecto de assalto é igualmente crescente.

    Vamos supor que A aufere 100 euros e B 1.000 euros. Se o imposto é 10%, não progressivo, o primeiro paga 10 euros e o segundo paga 100 euros, ou seja, o segundo paga 10 vezes mais. No entanto, o autor quer algo progressivo, do tipo: 10% para o primeiro e 50% para o segundo, neste caso seria 10 euros para o primeiro e 500 euros para segundo, 50 vezes mais! Os ladrões começam sempre por assaltar os bairros dos ricos em primeiro lugar, seguindo a máxima: “Temos de perder a vergonha de ir buscar a quem está a acumular dinheiro”.

    close-up photo of assorted coins

    Para além de impostos indirectos, não progressivos, como o IVA, o autor também ataca as “vantagens” dos rendimentos de capital em Portugal, onde se aplicam taxas liberatórias e beneficiando obviamente os malvados “ricos”, usando um exemplo mirabolante: “Acontece que o IRS, o imposto sobre o rendimento dos indivíduos, isenta totalmente os lucros não distribuídos. Suponhamos que o lucro foi de 1.000 milhões de euros e que a empresa não distribui dividendos (o rendimento do accionista é de 200 milhões de euros, 20% dos lucros). Imaginemos até que o accionista também é o CEO, recebendo um salário de 2 milhões de euros por ano. Mesmo que a taxa de IRS aplicada fosse de 100%, a taxa efectiva sobre o seu rendimento real seria de 0,99% (2 milhões de euros / 202 milhões de euros). E continuaria a ser perto de 0% até que o accionista deixasse de o ser, vendendo as acções e realizando mais-valias. Se a taxa de IRC aplicada for de 21%, e abstraindo dos outros impostos, essa pessoa pagaria uma taxa efectiva total de 21,78% [(2 milhões de euros em IRS + 42 milhões de euros em IRC) / 202 milhões de euros]”.

    Isto é o que acontece a quem nunca abriu uma empresa na sua vida. Se a empresa não distribui dividendos, obviamente o accionista nada recebe, pois o dinheiro continua na empresa! O que ele oculta é que no momento de distribuir os dividendos, o tal milionário imaginário irá receber 114 milhões de euros dos 200 milhões de euros, resultando numa taxa efectiva de 43% – aplicando-se 21% aos lucros e 28% aos dividendos distribuídos ao accionista.

    euro banknote collection on wooden surface

    O autor entende que as poupanças obtidas no passado, através de rendimentos de salários tributados violentamente, devem voltar a sofrer um novo assalto sem quaisquer contemplações. Por ele, na hora de distribuir dividendos, estes deviam ser englobados e tributados a 50%: neste caso, em lugar de receber 114 milhões de euros, receberia 79 milhões de euros e estaria sujeito a uma tributação efectiva de 60%. Ele que nos explique ondem existem “tansos” dispostos a serem sujeitos a tal ultraje?

    No fim, para além de propor o englobamento de tudo por forma a assaltar de forma ainda mais violenta os “ricos” – uma realidade que praticamente não existe em Portugal –, propõe a criação de mais um imposto, desta vez sobre a morte. Não é suficiente o confisco do trabalho, da poupança, do consumo, do património, também é necessário assaltar o morto.

    Segundo o autor é simples: “A recriação de um imposto sobre as sucessões e doações tem mais vantagens do que corrigir alguma desigualdade de riqueza. É talvez a maneira mais simples e eficaz de tributar mais-valias não realizadas durante a vida do falecido.” Não vá o morto fugir com a mais-valia!

    Estes “estudos”, que aparecem cirurgicamente antes das eleições, produzidos sempre pelos mesmos, não logram ocultar uma realidade: estamos a caminhar para o fundo. Em 1995, estávamos à frente de 12 países num grupo de 27 países (EU27); hoje, são apenas 7, a caminho de serem apenas 5 (Hungria e Roménia irão ultrapassar-nos).

    Evolução da carga fiscal em % do PIB e do ranking de Portugal – número de países mais pobres do grupo UE27 – entre 1995 e 2022 (Fonte: Eurostat; Banco Mundial; Análise do autor)

    Durante este período, em que reino “socialista” foi preponderante, a carga fiscal subiu de 31,4% para 38%, ou seja, se o Estado português assaltasse como em 1995, significaria aproximadamente mais 1.600 euros no bolso de cada português (242 mil milhões de euros de PIB em 2022), incluindo idosos e crianças. Os órgãos de propaganda estão, mais uma vez, de parabéns: continuam a promover as ideias que nos empurram para a mais abjecta miséria.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • Portugal não é um país normal

    Portugal não é um país normal

    Esta é, por excelência, a altura de fazer os habituais balanços e traçar metas para o ano seguinte. Se fizermos esse exercício, enquanto país, provavelmente concluiremos que 2023 foi negro, em todas as dimensões. A menos, claro está, que partilhemos da opinião da redactora principal do Público, Bárbara Reis, para quem “Portugal é um país normal”, e os ‘rumores’ de que as coisas não estão nada famosas, mais não são do que mentiras para ganhos políticos. Curiosamente, ou por ironia, no encadeamento deste texto da antiga directora do Público surge a ligação para uma notícia do mesmo jornal, deste mês, revelando que o “preço das casas duplicou desde o início da governação de Costa” e “as rendas aumentaram em 56% desde 2017”.

    Enfim, adeptos da mediocridade, e acomodados com a miséria, sempre os haverá. Neste caso, compreende-se, pois o jornal que emprega Bárbara Reis também aparenta ser “normal”; se o “normal”, singelo até, é seguir o optimismo de quem está no poder.

    man in white t-shirt and brown shorts standing on rock

    Seja como for, não é aos concidadãos acomodados e confortáveis que me dirijo aqui, porquanto, quero acreditar, os leitores do PÁGINA UM, como sabemos, não se contentam com o “normal”.

    Dirijo-me sim àqueles que sonham com um Portugal melhor, e aproveito o elã tão característico desta época para recomendar um livro que considero ser de leitura obrigatória: As causas do atraso português, do economista e professor catedrático Nuno Palma, da Universidade de Manchester. Em resumo, a obra tenta explicar as raízes históricas da nossa divergência económica face aos países mais ricos da Europa Ocidental.

    Para que consigamos inverter esta acelerada marcha de empobrecimento, é vital procurar entender, primeiro, os motivos da nossa desgraça. O porquê de estarmos como estamos; um diagnóstico acertado. E a meu ver, tal só será possível se deixarmos os clubismos de lado (ou clubites, nos casos mais agudos), e os dogmas cristalizados (alguns com mais de um século).

    E esta é uma das razões por que destaco o livro: tanto quanto humanamente possível, trata-se de uma análise objectiva e bem suportada cientificamente. Ouvir o autor falar em entrevistas confirma a minha tese: critica com igual facilidade tanto as típicas propostas de esquerda como de direita (liberais incluídos); muitas delas “míopes”, embora por motivos diferentes.

    person in yellow coat standing on top of hill

    De facto, dificilmente os acólitos das várias ‘seitas’ políticas (vulgo partidos) conseguirão metê-lo numa ‘caixinha’ – esta liberdade de pensamento é, quanto a mim, uma fantástica qualidade.

    Poderá dizer-se que é uma obra polémica, porque desfaz muitos ‘mitos’. Aconselha-se, por isso, uma leitura livre de preconceitos, e uma abertura para questionar até algumas “verdades” ouvidas repetidamente ao longo da vida. Não é tarefa fácil, mas diria que vale a pena o esforço.

    Prevendo-se um 2024 com desafios acrescidos, é urgente repensarmos ideias e fórmulas datadas, anacrónicas e mais do que experimentadas que, já vimos, não resultam.

    Como se diz por aí, loucura é repetir as mesmas acções, à espera de resultados diferentes. Há que abandonar esta insistência esquizofrénica nas mesmas práticas, na esperança de que algo mude.

    Assim, para levantar um pouco o véu, destaco aqui algumas ideias, que talvez surpreendam alguns, avançadas neste As causas do atraso português.

    –  É preciso recuar muito para se entender as origens do “atraso português”, havendo já, no século XIX, personalidades como Antero de Quental que tentavam apurar as causas do ‘fenómeno’. E, de facto, é uma questão antiga: foi logo a partir do século XVII que Portugal começou a divergir da Europa Ocidental.

    – Cada novo regime procura sempre desresponsabilizar-se dos resultados das suas más políticas, remetendo as culpas para os antecessores. Tal como António Costa agita o fantasma do “Passos Coelho”, e como a democracia culpa o Estado Novo, Salazar fazia o mesmo com a República, e por aí fora. Acredita quem quer…

    – De diversas formas, a escravatura não teve um efeito benéfico para o país, tendo até sido perniciosa, assim como foi a descoberta do ouro no Brasil. A este respeito, Nuno Palma fala numa “Maldição dos Recursos”.

    – A cultura portuguesa e o catolicismo “entranhado”, ao contrário do que muitas vezes se diz, não parecem factores revelantes para explicar o nosso crónico atraso; nem sequer a nossa localização “periférica”.

    – E last but not the least: os fundos europeus são, em grande medida, prejudiciais ao desenvolvimento do país.

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    Nuno Palma é pessimista: na sua óptica, caminhamos a passos largos para nos tornarmos no país mais pobre da Europa – da Europa Ocidental já somos – e pouco há a fazer quanto a isso, de tão acomodados que estamos. Poderia dizer-se que “estamos como a Bárbara Reis”. Vemos a Saúde, a Economia, a Educação e a Justiça em farrapos, com margem para piorar… e achamos “normal”.

    Sendo eu mais optimista, talvez por ser mais jovem, não deixo de sofrer de um medo aterrador que o vaticinado pelo economista se concretize; por isso, e porque não me conformo com esta podre ‘normalidade’, não poderia recomendar de forma mais veemente As causas do atraso português, ou a escuta das entrevistas dadas pelo autor. Não para que 2024 seja o ano em que finalmente saímos desta ‘cloaca’ (já estamos um bocado em cima da hora) mas para que comecemos desde já a trabalhar nesse sentido.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • O condutor português é incrivelmente estúpido

    O condutor português é incrivelmente estúpido


    Acho alguma piada às operações de Natal da PSP e de GNR, com os directos do tabuleiro da Ponte 25 de Abril ou da VCI, onde um capitão qualquer, oriundo de Viseu, nos explica o sucesso da operação pelo número de condutores apanhados nas mais diferentes infracções.

    Sei que há uma coluna no Orçamento do Estado para as multas, e boa parte deve ser preenchido nesta quadra.

    Mas o que realmente se mostra hilariante, em todo o aparato, é como tudo aquilo mais não faz do que nos passar um atestado de estupidez. A polícia tenta, num período festivo, controlar aquilo que o mais comum dos portugueses faz o ano todo: conduzir depressa, ou bêbedo, ou sem documentos ou sem respeitar as mais elementares regras do Código da Estrada. E, por vezes, todas as situações em simultâneo.

    closeup photo of black analog speedometer

    Mesmo assim, com todos os avisos e intermináveis directos de manhã à noite em todos os canais informativos, milhares de condutores são apanhados em flagrante. E temos ainda 1.500 que conseguem ter acidentes. E ainda há, em média redonda, 20 desgraçados que morrem sem chegar ao jantar de família. Ou depois dele.

    Na verdade, o período de Natal não é diferente do resto do ano. Simplesmente os acidentes passam a ser notícia. Mas estupidez do condutor português, essa, é exactamente a mesma de Janeiro a Dezembro.

    Não sei se alguma vez consultaram as estatísticas de mortalidade nas estradas da União Europeia. Portugal está em destaque juntamente com países como a Bulgária, Roménia, Letónia, Hungria, Polónia e Croácia. Nenhum tem uma rede rodoviária como a portuguesa. Aliás, arrisco-me a dizer que não existe outro país no Mundo com o tamanho de Portugal (continental) e com igual quantidade de autoestradas, IPs, SCUTs e todo um conjunto de vias rápidas que deveriam facilitar a circulação em segurança.

    Mas isso de pouco serve se ao volante estiver um mentecapto que arrisca em cada curva e que conduz a três metros do carro da frente, não é?

    man driving car during golden hour

    Se eu atravessasse a Europa sem ver uma única placa, saberia, ainda assim, quando me estivesse a aproximar de Portugal. Bastaria ver o momento em que os carros ultrapassam, de uma forma geral, todos os limites de velocidade impostos na ânsia de chegar uns minutos mais cedo.

    Nesta semana que passou, enquanto conduzia entre a Suécia e Portugal, e com a quantidade de emigrantes que se deslocaram de países como Bélgica, Luxemburgo, França, Suíça ou Alemanha, conseguia quase sempre perceber, pelo tipo de condução, se eram portugueses ou não.

    Uma vez na estrada, fico com a sensação que estamos sempre dentro de um circuito do NASCAR e aflitos para chegar a algum lado, mesmo sabendo que aquilo é um percurso oval, sem saída possível.

    E tanto faz se estamos numa auto-estrada, no Marquês do Pombal ou no centro da vila. As regras são para os outros, os limites de velocidade uma chatice e a cordialidade no trânsito um acto de fraqueza.

    cars on road in sunset

    Quem não levou já uma buzinadela do ‘amigo’ de trás por dar passagem a um condutor ao lado? Todo o metro conta, a luta é constante, só os mais espertos se safam.

    Ninguém sabe que a uma velocidade constante não há filas porque não existem travagens bruscas nem efeitos de onda. Ninguém consegue ver para lá de 10 metros do próprio motor.

    Uma das coisas que me habituei a pensar, quando comecei a atravessar a Europa de carro, e já lá vão 20 anos, é que há sempre alguém que não chega ao destino. Há sempre alguém que fez planos com a família que não vai cumprir. E há sempre alguém que aguarda um abraço mas que não vai receber.

    Em Portugal, torna-se difícil explicar a quantidade de mortes na estrada sem fazer uso da nossa própria estupidez.  Não é a qualidade das estradas, porque são óptimas. Não é a sinalização. Muito menos o clima. Vou repetir as palavras, porque não encontro outras melhores: o condutor português é incrivelmente estúpido.

    time-lapse photography of highway road at night

    Na mesma estatística que acima mencionei, aparecem Dinamarca e Suécia com as estradas mais seguras da Europa. Notem: são países com estradas que não chegam aos ‘calcanhares’ das portuguesas. A Suécia, com 2.500 quilómetros de comprimento, tem uma mão cheia de auto-estradas. Portugal, só entre Lisboa e Porto, tem três. Ainda assim, os suecos têm pouquíssimas mortes na estrada porque cumprem duas regras básicas: respeitam os limites de velocidade e não conduzem bêbedos.

    E se o fizerem, só fazem uma vez, porque a polícia não brinca às “Operações Natal”. Aqui há uns anos, um amigo meu foi apanhado a conduzir sob efeito de álcool e acabou obrigado a pagar 5.000 euros ali, no momento, ficou sem carta e durante um ano teve visitas semanais obrigatórias à esquadra para mostrar análises ao sangue.

    Ou a população percebe, sozinha, que não pode meter a vida dos outros em risco, ou então deve isso ser-lhe explicado pelas autoridades. Mas não é com operações de Natal, Páscoa ou Ano Novo.

    selective-photography of stop signage

    É com multas a doer e com consequências que não deixem vontade de arriscar. Na Finlândia, as multas de velocidade são proporcionais ao valor declarado do IRS. Um milionário foi apanhado e encheu os cofres da polícia com uns milhares, numa simples multa por excesso de velocidade.

    Sugiro o mesmo para o caso português. Multas que afectem o bolso de cada um consoante as suas possibilidades. Ao fim de duas, começava-se a dispersar a estupidez e a sobressair o bom senso. Ou civismo, se preferirem.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Fruta da época

    Fruta da época

    Sentada numa cadeira de assento puído e desengonçada, baixou-se para apanhar uma pastilha cerâmica (rosa) que se soltava do chão, no meio da ausência já de muitas outras, como um charco de ruína que alastrava naquele fundo da sala do café Les Deux Moulin, encostada à passagem para a casa-de-banho onde Jeunet ilustrou um dos seus famosos e gritantes orgasmos.

    Recordação, pensou, leva com ela e guarda como tesouro incógnito para os descendentes reencontrarem e ficarem desconcertados. A versão em película estava mais envernizada, aromatizada de canela, lustrosa, mas nesta versão pode arrancar bocado como quem descarna a crosta da ferida para levar com ela.

    brown fabric seat near brown wooden pedestal table

    São pequenos gestos, de criança, que repara que tudo termina. Pequenos gestos, como quando se vive um tempo apressado e estouvado em que todos os dias se roça os nós dos dedos em muros ásperos e se carrega a pele esfolada, a lembrar que as arestas nos rompem a carne quando a alma quer esvoaçar demasiado rápido (azul). Não há tempo para tantas referências a mapear o caminho, recordações de encher os bolsos, paus e pedras, folhas secas de árvore que se colhem no caminho e que povoam a casa. As pedrinhas mais brancas, mais polidas. As rochas mais brilhantes com cristais de quartzo.

    – Mãe, ensinas a desenhar uma bola de Kémon?

    – Uma bola de “cámone”?

    – Sim!

    – Se desaguarmos de novo na estação de São Bento, e a usares, vais apanhá-los a todos?

    Mantos verdes a atapetar o caminho das ruas e, no entanto, “não pise a relva” para atalhar a viagem; mas, se no destino encontrarmos bivalves abandonados na praia do mar de Inverno, lá vão eles para a caixa de recordações (azul) em que os objectos absurdos, perdidos, abandonados, quebrados e esquecidos, se guardam para cristalizar memórias de cada ano. 1989. 1998. 2004. 2019. Canhoto de concerto, de comboio, de cinema. Cartão desbotado.

    From above stylish workplace consisting of clipboard with calendar and golden notebook on pink background

    Será que alguma vez pudemos realmente partilhar uma discórdia sem trincheiras? Parece que já foi há tanto tempo. 2020. 2021. 2022. 2023.

    O que é a covid?, o que é a vacina?, o que é a Ucrânia?, o que é uma mulher?, o que é Gaza?

    Objectos absurdos, perdidos, abandonados, quebrados, esquecidos…

    Somos o que comemos; e quando ela se baixou para apanhar o chão desfeito, raspou a mão ao de leve em reboco areado, o suficiente para romper a pele. E será que, na verdade, somos uma rabanada, um pão frito, um leite com casca de limão, um ovo batido? Somos o que comemos; e mesas fartas junto a mesas vazias, paredes não divisórias se encostarmos os ouvidos ao reboco (areado), o suficiente para romper (a pele), e ouvir que na casa ao lado se pode falar outra língua e sorver o caldo com colheres diferentes.

    Somos como comemos; e quem se sente (sente) no chão endireita a coluna de maneira diferente da nossa, se sentarmos na cadeira quem se alimenta de cócoras, corremos o risco de entortar a pessoa. Então fazemos o farrapo velho e honramos os ascendentes. Digo farrapo porque roupa pode trazer o cheiro de cedro do armário e naftalina esquecida nos cantos do fundo. Já nem as traças nos comem as roupas, deram uma trinca em poliéster e acrílico, e partiram com indigestão para outras paragens mais doces.

    Sacos de excesso e seres humanos a alastrar em cadeiras puídas e desengonçadas. Discussões com boca cheia ou silêncios compungidos, comendo pecados, oleando beiços. Rega com vinho, vamos falar de política? Qual delas?

    green glass bottles

    Um pateta de barba rala e cinzenta, tão mais pateta como os patetas que o clamam como mal menor. Chefe, mas pouco. Larápio, mas pouco. Chão desfeito em pastilhas cerâmicas (rosa).

    Um sorriso de sapo com esgar de alface (fora de época), tão mais sapo e verruguento como quem o clama como mal necessário. Os truques do costume na embalagem, boas contas, porte de patriarca (laranja), mais cómico só se entrar de braço dado na missa do galo com madeixas lisas e baças (azul), papagaios a saltitar em busca de poleiro presos por corrente curta nos tornozelos.

    Ui, ui, ui, mas o bicho papão que papava bola no pequeno ecrã, para entrar na sala de estar da vizinhança e alapar-se no sofá com alarvidades, durante anos, no quentinho a debitar, pôs-se em bicos de pés e foi trepando um degrau de cada vez e agora ui, ui, ui, melhor é ser saneado na entrada. De certeza que patetas e sapos não usam o bicho papão para mandar dormir as criancinhas. De certeza que o bicho papão é diferente. Ou de certeza que o bicho papão é real.

    Mas como ela se baixou para apanhar do chão desfeito e guardou na caixinha das recordações, eu sei e lembro de pequenos cubos de memória, como quem sugeriu confinamento especial e agravado a ciganos, como quem defendeu mais dinheiro português enviado para leste. Pequenos cubos. Coisa pouca. De certeza que é real, de certeza que é diferente. Coisa pouca.

    a close up of two people holding hands

    Sobram os sacos de excesso (de gatos), da minha esquerda que fica à direita de alguém, saudosa Odete, que gargalhada darias tu à bola de bilhar que faz tabela em tacadas, o povo, unido. E ainda as gémeas de Kubrik, a dar ao pedalinho com os joelhos para fora para caberem no triciclo, devagarinho lá chegarão, mordazes, ferozes, com a probabilidade genética de ambas não possuírem sentido de orientação nem encontrarem o norte que lhes permitiria defender o próprio sexo, em vez de sucumbirem à treta ideológica de fábulas mágicas com sabor a alcaçuz de panteras cor-de-rosa.

    Ui, ui, ui que consolo de humor é ver os animaizinhos a rabear cheios de fome, e o pastorinho já a descamisar para o primeiro mergulho do ano, a ver se esquece a vergonha, tronco nu e aberto, que isto de fazer simpatias e favores é coisa pouca, de certeza que é real, de certeza que é diferente. Coisa pouca.

    Abram as portas, depois vê-se, vai tudo ficar bem. Baixem-se para apanhar do chão desfeito, que entre cerâmica de recordação e bivalves, com jeitinho conseguimos construir um muro de retalhos que mantenha o lobo à porta e nos preserve os aromas de canela enlatados em casa.

    Pudim.

    E o serviço da Vista Alegre a banhar-se na torneira na sua saída anual.

    orange persimmon fruits

    Fruto da época, cada um de nós terá de falar sempre do que a árvore apresenta. Será demasiado enfado debruçar-nos no tronco ou na raiz, porque áspero e rompe a pele dos nós dos dedos. E mais a mais, que importará afinal falar de cascas? Se nada mais rompe que as nossas mãos, ninguém quer comer conservas de há muitos anos que isto avinagra e nem todos têm cascos de carvalho para embrulhar a pinga.

    Fruta da época, comam laranjas. Tangerinas, dióspiros, se ainda os houver por aí e talvez um kiwi, que as constipações voltaram a existir e disse-me a minha mãe que Deus pôs uma farmácia para nós nas florestas.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Cristo e a hipocrisia (que nos rodeia)

    Cristo e a hipocrisia (que nos rodeia)


    Hoje é dia de Natal, e começo com uma obviedade: não haveria Natal sem Jesus Cristo. Um dos aspectos mais interessantes de Cristo foi mencionado por Chesterton: Cristo é tão rebelde (Chesterton não usou este termo) que, na Cruz, desafia a própria divindade que reclama para si: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?»

    Outro aspecto pouco falado e curiosíssimo em Cristo é a sua veemente repulsa da hipocrisia e, particularmente, do moralismo hipócrita, ele que tantas vezes usou as palavras «hipocrisia» e «hipócritas».

    Cristo condenou duramente a auto-sinalização de virtude e usou a palavra «hipócritas»: «Quando deres esmola, não te ponhas a trombetear publicamente, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, com o propósito de ser glorificados pelos homens.» Há mais citações de Cristo deste jaez.

    low angle photography of turned on lamp

    Quando condena os escribas e os fariseus, chama-lhes «hipócritas», que eu contasse, sem a ajuda do ChatGPT e consultando a Bíblia em papel, oito vezes. Apenas um trecho a título de exemplo: «Escribas e fariseus, hipócritas, que limpais o exterior do copo e do prato, mas por dentro estais cheios de ganância e cobiça! […] Sois semelhantes a sepulcros caiados, que por fora parecem belos, mas por dentro estão cheios de ossos de mortos e de toda a podridão.»

    No Inferno de Dante, os hipócritas são condenados ao castigo de vestir belos mantos que brilham como ouro, mas que, por dentro, pesam como chumbo e fazem os ossos ranger.

    Lembrei-me de tudo isto porque muito recentemente ouvi um indivíduo dizer que a coisa que mais asco lhe causava eram as pessoas que traíam as namoradas na noite, cinco amnésicos minutos antes de procurar a sorte com todas as que encontrava na noite, enquanto a namorada dormia a sono solto em casa.

    Dei por mim a reflectir…

    closeup photo of religious statue

    Oh, quantos pequenos aldrabões vi eu bradar contra os grandes aldrabões, o seu inimigo dilecto.

    Oh, quantos clamam pela criminalização do discurso de ódio enquanto o praticam com frequência…

    Oh, quantos se deslocam nos transportes mais poluentes para ir a grandes cimeiras pelo clima…

    Oh, quantos engraçadinhos vemos hoje a moralizar e policiar os outros por fazerem piadas não-inclusivas, e que faziam facécias mil vezes menos inclusivas quando os ventos do tempo eram outros… Desconfiai sempre daqueles que estão com os ventos do tempo… deles, a História não reza… nem nunca rezou.

    Oh, quantos são ardentes defensores da liberdade de expressão, mas apenas para as suas ideias…

    Oh, quantos adoram e se preocupam com os pobrezinhos e sofrem, contudo, de aporofobia, isto é, da fobia de pobres, de quem gostam muito… mas longe, bem longe. A demagogia com os pobres fica sempre bem, é fácil e dá palmas.

    Oh, quantas criaturas vi nas redes sociais a proclamar-se feministas e que, fora das redes, são precisamente as menos feministas que conheci…

    Oh, como tantos proclamam com sorrisos de plástico o multiculturalismo enquanto abstracção e têm nojo dele na prática…

    Oh, quantos patrões conheci que pagam menos de cinco euros por hora aos seus trabalhadores, que adoram ter estagiários não-remunerados por seis meses ou mais, e vão a colóquios e comícios proclamar-se anticapitalistas.

    Oh, quantos valentes que garantem que dizem sempre o que pensam, mas que, perante o patrão ou alguém com bons contactos, estão sempre a dar graxa e a perguntar com as costas curvadas e voz delico-doce:

    «Quer o chazinho mais quente? Quer mais um pacote de açúcar? Ou prefere adoçante? Deixe estar, que eu vou buscar. Veja lá se está bem assim.»

    Comecei com Cristo e termino com Cristo.

    Antes de citar Cristo, permitam-me citar Scott Fitzgerald: «De cada vez que te apetecer criticar alguém, lembra-te sempre de que nem toda a gente neste mundo gozou algum dia das mesmas vantagens que tu.»

    E agora, sim, cito novamente Cristo:

    «Como podes dizer a teu irmão: “Irmão, deixa-me tirar o cisco do teu olho?”, quando não vês a trave no teu próprio olho? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão.»

    Feliz Natal, caríssimos.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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