Sou um antigo jornalista, trabalhei no Diário de Notícias entre 1991 e 2009, com experiências intercalares curtíssimas em redacções de outros jornais. Hoje, tendo a Internet como fonte genérica de informação, devido à perda de credibilidade dos media corporativos, consulto regularmente o PÁGINA UM. E foi de lá que extraí a motivação para escrever.
Quero apenas partilhar uma ideia, a que não posso chamar de reflexão porque me surgiu de impulso: temo que artigos como os do Paulo Salvador [‘Mea culpa’, jornalista] legitimem um atraso vergonhoso no reconhecimento de culpa da classe jornalística por parte de quem sempre possuiu todos os instrumentos de análise. Mais simplesmente: que abra caminho a Madalenas arrependidas chorando lágrimas de crocodilo que as abençoam à luz dos olhares comuns.
Eu nunca me considerei especial, sou um tipo normalíssimo, nem burro nem particularmente inteligente, mas vivo apontado ao que vejo como grandes virtudes: honestidade, simplicidade, bondade, etc. Por outras palavras, persigo horizontes, só me movem objectivos que sei de antemão não poder atingir. Talvez isso me tenha ajudado a perceber, há mais de 30 anos, para onde caminhava o jornalismo.
E foi isso, certamente, o que fez de mim uma das 123 pessoas despedidas pela Controlinveste, na primeira grande sangria de jornalistas de que tenho memória [em 2009]. Na altura, em assembleias, recorri a um clichê – aludir àquele tão estafado quanto preciso poema do Brecht que diz: “Primeiro levaram os negros/Mas não me importei com isso/Eu não era negro; Em seguida levaram alguns operários/Mas não me importei com isso/Eu também não era operário; Depois prenderam os miseráveis/Mas não me importei com isso/Porque eu não sou miserável; Depois agarraram uns desempregados/Mas como tenho o meu emprego/Também não me importei; Agora estão me levando/Mas já é tarde; Como eu não me importei com ninguém/Ninguém se importa comigo.” – para dar conta aos colegas do seu destino inevitável, inevitavelmente igual ao meu, mas apenas protelado.
Foi quase em vão, dado que a maior parte não se solidarizou connosco. Os tempos foram correndo e, em vagas espaçadas, a ampulheta da razão acabou por encher de areia a minha campânula. Mais uma vez, nada que espante: as coisas estavam-nos à frente dos olhos.
É por isso que me custa imenso aceitar estas epifanias de 25ª hora, mais ainda vindas de profissionais com cargos de chefia que podiam e deviam ter acordado a tempo de lutar contra o que agora denunciam. Supõe-se que um jornalista chegue primeiro à informação e depois a transmita aos seus leitores. Como podemos elogiar o contrário? Neste caso, aposto que a generalidade dos leitores do PÁGINA UM já tinha o diagnóstico mais que feito, anos ou décadas antes de o Paulo Salvador o vir anunciar.
Não quero com isto, até porque não o conheço pessoalmente, insinuar que o Paulo Salvador tenha escrito o artigo para salvar a face ou fazer-se passar por bonzinho quando já quase não há caldo na malga. Até acredito na bondade do seu gesto. Mas, sinceramente, não vejo como encaixar aqui o “mais vale tarde que nunca”. Preferia o silêncio dele e uma mudança de conduta.
Marcos Cruz é um antigo jornalista do Diário de Notícias
N.D. (4/2/2024) – Atribuído muitas vezes a Bertold Brecht, convém referir que, em abono a verdade, quem enunciou o texto conhecido por ‘First they came‘ foi o pastor protestante Martin Niemöller (1892-1984), que inicialmente foi um adepto do regime nazi. O texto aborda o desinteresse inicial nas perseguições aos comunistas, socialistas, sindicalistas e judeus.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Neste caso, o director do PÁGINA UM não apenas subscreve como aplaude este texto, considerando que constitui mais um bom contributo para uma reflexão séria sobre a crise no jornalismo, que começa na própria classe, e sobre a qual há muito a mudar. O PÁGINA UM convida todos os antigos e actuais jornalistas, bem como estudiosos sobre os media, a enviarem-nos textos para publicação.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Curto, cheio, em chávena larga, abatanado, pingado, duplo, garoto, com cheirinho, em chávena fria, em chávena escaldada, descafeinado, carioca, fraco, com canela, com adoçante, em chávena pequena, em chávena de plástico, com pingo de água fria, duplo pingado, duplo cheio, sem açúcar, sem começo, copo alto, italiana, bica, cimbalino, sem espuma…
Cada um de nós tem uma forma muito pessoal de apreciar um café, e por cada forma de o apreciar, há uma expressão bem específica de o pedir. O meu pai gosta de café à Benfica (muito fraquinho), já eu por norma peço meia chávena.
O meu grande amigo Ruy, que é um dos poucos portugueses que resistem a viver no centro de Lisboa, programou uma sessão de trabalho na sua casa, perto da Graça. Tendo eu vindo de Mafra já a sentir a falta de cafeína, sugeri que fôssemos tomar uma bica antes de nos embrulhar numa intensa sessão de não-trabalho. Como é habitual, antes de começarmos, gostamos de conversar e tentar compreender o mundo, uma tarefa que, por si só, é um trabalho a tempo inteiro. O Ruy propôs irmos à Pastelaria Tebas, na Rua Heliodoro Salgado, que faz esquina com a Angelina Vidal. E como me propus fazer um artigo sobre uma marca de café, imaginei logo que poderia começar por este. Montámos a Yamaha 125 SR verde-garrafa dos anos 90, e, como tivemos de parar numa passadeira, demorámos 45 segundos a chegar.
Mesmo ao desmontar da mota, notei logo que se tratava claramente de um negócio familiar em que ainda se pode usufruir de um ambiente de bairro resistindo à lógica de pastelaria para camones. Com uma boa variedade de bolos e pães semi-industriais, este estabelecimento é despretensioso saltando à vista a higiene e o cuidado com que os itens são apresentados. A decoração é a convencional das antigas pastelarias, tornando-a quase numa raridade em Lisboa, onde florescem estabelecimentos de paredes negras e de balcões feitos em OSB. Quadros de pastelarias parisienses, autocolantes de pastilhas e Ice Tea vão dando alguma cor às paredes claras.
O café que esta pastelaria oferece torna-a numa preciosidade, resistindo à padronização trazida pelo turismo maciço e pelas marcas que se apoderaram do mercado. O uso do lote Rubi da marca Negrita ao longo das décadas destaca-se como uma característica única e especial, uma verdadeira mais-valia para apreciadores de café como eu, traduzindo a oferta quase singular em Lisboa. Contudo, um aspecto a considerar é que a iluminação apresenta uma tonalidade excessivamente branca, tornando-se desconfortável passado alguns minutos. Os cafés «moderninhos» destacam-se nesse aspecto, dedicando uma atenção considerável ao design de luz. Além disso, como não oferecem o Correio da Manhã para leitura, não requerem uma intensidade luminosa tão elevada.
Como recentemente deixei de fumar, dei-me ao luxo de me sentar e beber o café sem a pressa de o acabar para ir fumar o meu Davidoff Classic. Mas caramba, que saudades! Num mundo perfeito, o cigarro seria um medicamento para a hipertensão sem efeitos secundários. Pedi à Soraia dois cafés em meia chávena. Para garantir cafés perfeitos, solicitei-lhe que abrisse o vapor da máquina por dez segundos, de forma a obter os 9 bar de pressão e os 90º C. Surpreendida, mas ainda assim com um largo sorriso, foi ela própria prepará-los. Durante o processo, olhámos para a televisão que estava ligada, felizmente sem som. Não entendo por que raio as pastelarias e restaurantes em Portugal têm por hábito manter as televisões acesas. Já não aguento aqueles extraterrestres que invadem permanentemente as nossas vidas. Conhecemos melhor a cara do Zelensky do que a dos nossos próprios filhos. Num mundo equilibrado, teríamos uns óculos escuros para ler e ver todas as mensagens subliminares que nos são dadas pelos meios de comunicação, tal como no filme de 1988 de John Carpenter They live. Com ele veríamos seguramente o Elon Musk sem os artifícios humanos.
Ilustração de Ruy Otero e Bruno Cecílio, a partir da identidade visual da marca de cafés Negrita.
Comecei a sentir no ar a essência de L’Eau D’Issey combinada com o aroma dos cafés pedidos. Fomos salvos pela Soraia, que, ao entregar as bicas, nos fez desviar o olhar do secretário-geral da OTAN, cujo nome nem sei, que entretanto anexou o ecrã. O café vinha exemplarmente tirado. O creme com uns 3 milímetros de espessura, nem muito claro nem muito escuro, com uma óptima consistência e cor. No primeiro gole, senti de imediato uma acidez ligeiramente frutada lembrando melão, de amargor equilibrado num corpo elevado e denso. A mistura das variedades robusta com arábica é harmoniosa, sendo o sabor duradouro no paladar. Com o passar dos segundos, comecei a sentir um travo a calcário levemente desagradável. Talvez deva ser hora de depurar a máquina? Um café de qualidade que teria sido ainda mais louvado se fosse acompanhado por um croquete de carne (enquanto ainda for permitido).
Sem termos combinado nada, apareceu o Tim, que vive ali perto e é frequentador assíduo do Tebas. Enquanto ele saboreava um pastel de nata, e a propósito da conversa que estávamos a ter sobre o poeticamente correcto, sugeriu que fôssemos visitar a fábrica da Negrita, ali ao virar da esquina, na Rua Maria Andrade. Ficou apenas cinco minutos, pois estava atrasado para o trabalho, como sempre, e escolheu tomar apenas o café funcional da manhã. A 80 cêntimos, ainda nos podemos dar ao luxo de satisfazer o vício. Fez-me lembrar a compilação das onze curtas metragens de Jim Jarmush que deram origem ao filme de 2003 Coffee and Cigarettes. Figuras como Tom Waits, Iggy Pop, Jack White e Roberto Benigni, entre outras, exploram uma ampla variedade de temas, enquanto desfrutam de cafés e cigarros.
Pedi outro, desta vez pingado. Sem todas aquelas complicações do primeiro. A Soraia já tinha entendido que, em relação ao café, sou mais metódico e preciso do que o Froes em relação às infecções respiratórias. O que nos vale é que entretanto ficou tudo bem! Apesar de o ter apreciado com menos atenção, é o pingado que mais recomendo. O leite incorpora muito bem o sabor terroso do lote Rubi da Negrita. Após pagarmos e agradecermos o serviço, saímos pela esplanada em que o inglês era a língua mais falada por entre os clientes que a povoavam. Os computadores na mesa indicavam que provavelmente eram nómadas digitais. Para não variar, a mota só à quinta é que pegou. O fumo agora era outro. O piso estava escorregadio, e, os carris do eléctrico atrapalham sempre. Até lá chegarmos, tivemos de perguntar o caminho duas vezes.
Ilustração de Ruy Otero e Bruno Cecílio a partir do filme Coffee and Cigarettes.
Lá demos com o portão da fábrica da Negrita, que completa 100 anos no dia 24 de Março de 2024. Notavelmente, conseguiram manter-se em plena actividade, proporcionando emprego a uma dúzia de trabalhadores que, ao longo de décadas, têm infundido vida e o vigoroso aroma a café a toda a zona de Arroios. A riqueza visual e as fascinantes histórias que começamos a descobrir inspiraram-nos a tomar a decisão de produzir um pequeno documentário, o qual prometemos lançar nos próximos tempos.
Apesar de o mundo estar virado de pernas para o ar (isto para quem acredita como eu que o mundo tem pernas), e o cancelamento ser a grande tónica desta nova profissão que é o activismo, a Eng. Helena Pina, com o seu manifesto entusiasmo e paixão pelo trabalho, vai continuando a liderar esta empresa familiar contra todas as expectativas, e contra toda a lógica metacapitalista que se apoderou da indústria alimentar. Ao que parece, nos dias de hoje, os vários -ismos favorecem os metaqualquercoisa, pensando que estão a ser anticapitalistas. Auto-Karate Kid!
Assumindo o compromisso de desenvolver a minha perspectiva no formato de vídeo sobre os Cafés Negrita, por agora evito estender-me sobre estes assuntos. Dependendo eu da Direcção-Geral das Artes e de uma fundação que cresceu financiada por recursos petrolíferos mas que agora generosamente destina um milhão à Greta, opto por manter um perfil discreto e reservado. Não vá o Schwab tecê-las.
Bruno Cecílio é artista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Como qualquer jornalista, a actual situação dos media preocupa-me por tudo aquilo que representa para nós, profissionais. O esgotamento de um modelo de negócio e o claudicar das redacções enquanto agentes de intervenção e de mudança.
Nesta, como em todas as crises, não há responsabilidades de um só lado. Não foi só o mercado que mudou, os empresários que se transformaram, o neoliberalismo que deixou de respeitar limites de decência. Fomos também nós que mudámos, aos poucos, sempre levados a reboque das novas formas de comunicação com as quais não podemos rivalizar.
A nossa profissão está cada vez mais desacreditada junto de quem nos move: os nossos leitores, ouvintes e espectadores. Perdemos muita da credibilidade que nos garantia algum respeito por parte dos vários poderes instituídos e da população em geral. Não faltam estudos a comprovar a degradação da nossa imagem enquanto classe profissional.
As redes sociais foram uma grande ajuda para essa perda de influência. No entanto, ao fazer delas a nossa própria fonte de noticias, de temas, opiniões e agitação informativa, contribuímos para lhes atribuir um estatuto que não tinham. Enchemos páginas, minutos e horas de emissão com milhares de casos plasmados das redes. Acríticos e fascinados, sucumbimos ao poder de fogo de uma realidade que nos ultrapassava e que não é permeável a critérios jornalísticos.
A gradual degradação do mercado publicitário, o decréscimo de leitores e de investimentos, empurrou a nossa profissão para lá dos limites do suportável e jornalisticamente sustentável.
Podemos e devemos criticar os gestores que fazem cortes cegos numa simples e anónima folha de Excel, porque afinal muitos deles nem sequer entendem que o negócio dos media é diferente de todos os outros. Porém, o que é mais difícil de aceitar é que camaradas aceitem, ou se sintam obrigados a aceitar, condições inviáveis para o exercício da profissão e as imponham às suas redacções, sabendo que tal terá efeitos na degradação do qualidade do trabalho produzido.
Fomos tentando trabalhar com cada vez menos, para fazer cada vez mais. Aceitámos retóricas puramente financeiras, uma, outra e outra vez.
A cada argumentação de que era preciso cortar, porque as receitas estavam a cair, pactuámos silenciosamente com lógicas de racional duvidoso. Acredito que muitas das vezes o fizemos para tentar salvar postos de trabalho, camaradas e projectos. Mas nunca nos interrogámos se não estaríamos a comprometer a essência da nossa profissão, a independência e a credibilidade. Fomos aceitando tentar salvar uma árvore e depois outra, sem pensarmos nunca na floresta.
Directores, coordenadores, editores, os cargos de chefia, fomos sempre cúmplices de uma lógica de despedir, não renovar e substituir o melhor pelo menos mau. Abdicámos de profissionais com carreira e saber para poder contratar mão de obra barata, sem nos interrogarmos se não estaríamos apenas a adiar um problema. Poucos são os grandes projectos de jornalismo que sobreviveram e recuperaram desta esta lógica suicida.
Quando o “monstro” chamado Internet ajoelhou a imprensa mundial nos anos 90, o desespero foi grande nos Estados Unidos (EUA). A perspicaz fórmula “mais por menos” fez o seu caminho, com milhares de despedimentos. Nos últimos 20 anos, os EUA perderam um quarto dos seus jornais, 57% da sua mão de obra jornalística.
No entanto, quando um jornal de referência mundial resolveu salvar-se do abismo por via inversa, muitos outros o seguiram, investindo no saber e na experiência que os podia prestigiar, não em mão de obra mais barata. Foi assim com o New York Times, depois o Washington Post.
Portugal é um outro mundo, sabemos, mas de cedência em cedência, qual uma velha história popular, tentámos ensinar o burro a viver sem água e, agora que ele está quase a aprender, corre o risco de morrer de sede.
Não podemos ignorar que ao longos das últimas décadas fomos os únicos responsáveis por todos os atentados aos mais básicos princípios do jornalismo. Violámos todos os códigos éticos para ganhar vantagem, para conseguir mais um “exclusivo de primeira mão”. Foram muitos os exemplos que minaram o nosso património de respeito e credibilidade, agora tão pouco valorizado. Fomos nós que o fizemos, não os gestores, não o mercado.
Se de uma forma geral a oferta jornalística é cada vez mais superficial, espectacular, pouco sustentada, tecnicamente deficiente, acrítica, seguidista das agendas dos poderes políticos e das agências de comunicação, sem rasgos nem imaginação. Se os vários media se tornaram cada vez mais iguais, miméticos e cinzentos, só a nós se deve. Devíamos ter conseguido lutar por melhor jornalismo, melhores profissionais, melhores condições e real autonomia editorial.
Quantas vezes não nos apercebemos de ingerências inaceitáveis na nossa cadeia produtiva de notícias e pouco fizemos para as contrariar, expor ou combater? Tais práticas sempre existiram, mas numa outra escala e noutras circunstâncias. Hoje, a fragilidade contratual das redacções é terreno fértil para atropelos, já tidos como aceitáveis. E assim fomos vivendo estes anos, mudando, encolhendo, em direcção a nada, em direcção a isto que vivemos hoje.
O jornalismo tem vindo a ser encurralado e tem estado a ceder a incontáveis pressões, algumas delas novas, mais eficientes, mais discretas. Os anunciantes, os departamentos comerciais, os financiadores e os “parceiros” estratégicos, ganharam uma influência inusitada nas redacçōes dos media nacionais. Não a tinham a esta escala nos anos 90, porque havia dinheiro suficiente para garantir a independência de jornais, rádios e TV”s. Ao longo deste tempo não nos soubemos defender. Os nossos organismos de classe fecharam os olhos a claros atropelos da lei e dos códigos profissionais, legitimando a indiferença e irrelevância de conduta. O mesmo fizeram as instituições fiscalizadoras do sector.
Aqui chegados, lutamos todos por um lugar ao sol, uma réstia de luz que nos permita fazer um pouco mais daquilo que sabemos e gostamos. Fazemo-lo com uma esperança decrescente no futuro da profissão. Não acredito em jornalismo livre sem liberdade financeira, sem estabilidade contratual, assim como não podemos acreditar num futuro sem uma profunda e séria autocrítica, sem redacções fortes, reivindicativas e com memória. Mas isso custa aquilo que dizem não haver, dinheiro.
Isto é quase como afirmar que o jornalismo é um luxo. Em boa verdade já o foi, mas era assim que ainda o deveríamos entender dada a sua importância social. Caso contrário, estaremos a caminho do lixo, pois o preço da jorna já disso nos aproxima.
Paulo Salvador é jornalista (CP 827), editor executivo e grande repórter da TVI
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Neste caso, o director do PÁGINA UM não apenas subscreve como aplaude este texto, considerando que constitui um bom ponto de partida para uma reflexão séria sobre a crise no jornalismo, que começa na própria classe, e sobre a qual há muito a mudar.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Experimente ouvir uma pessoa na televisão, na rádio, num contexto público ou privado, a falar durante quinze minutos. Quantas vezes disse «agora»? Com o sentido de quê? De «mas», de «por outro lado», de elemento de ligação de raciocínios quando tacteia em busca das palavras, de coisíssima nenhuma.
Exemplos deste (ab)uso que devemos evitar:
«Concordo consigo… Agora… em relação à crise, eu não penso que haja crise alguma.»
«Nada tenho contra a Paula… Agora… não me casava com ela.»
«Os extremismos têm crescido. Agora… a melhoria da qualidade das instituições e da percepção que os Portugueses têm delas é importantíssima neste combate aos extremismos e populismos.
Amigo
Por preguiça, por macaqueação, por jactância («oh!, eu tenho muitos amigos, eu sou encantador»), por pudor em usar «um conhecido meu» (como se isso escondesse atritos e má vontade), por contaminação do mundo digital, em que aqueles que até podemos nunca ter visto na vida são «amigos» (repare-se que há tantas pessoas que têm milhares de «amigos» nas redes sociais e repare-se ainda na quantidade de vezes que ouvimos: «é meu amigo [nas redes sociais]», «não tenho a certeza, mas acho que somos amigos [nas redes sociais]»); por tudo isso, a palavra perde peso e solenidade — perde importância.
Se tudo é especial, nada é especial.
Se amamos tudo, não amamos nada.
Se tudo está sublinhado, nada está sublinhado, porque o efeito diferenciador se perdeu.
Se Fulano tem 50 mil «amigos», muito provavelmente não terá nenhum.
Porque é o diamante um bem tão valioso?
Porque é raro.
Arrasar
É impressionante o número de ocorrências, na linguagem publicada, na oralidade (seja num contexto público ou privado), deste verbo. No jornalismo, no mundo digital (notadamente nos títulos dos vídeos), o verbo superabunda. Se a equipa ganhou confortavelmente a outra, a equipa arrasou. Se Fulano esteve melhor numa discussão do que Sicrano, Fulano arrasou. Se Fulano criticou outro ou alguma coisa, Fulano arrasou outro ou alguma coisa. Se uma pessoa publicou fotografias sensuais ou se escolheu uma boa indumentária, essa pessoa, claro está, arrasou.
Evento
Saberão os jornalistas que, antes do moderninho anglicismo «evento» (saco em que cabe tudo), não se sentia falta de vocábulos para descrever acontecimentos, iniciativas, certames, actividades, exposições, mostras, espectáculos? (Revisitem jornais «antigos».) Que a diversidade vocabular e a consequente precisão informativa eram outras?
A lógica é esta:
— Ó pá, não sei bem do que se trata…
— Se não sabes bem o que é, põe aí que é um evento.
Dá para jantares, encontros de antigos alunos, corridas, bailes, noites em discotecas, observação de aves, palestras, festivais da marmota, tertúlias, discussões, colóquios, simpósios, manifestações, acrobacias de golfinhos.
Quando não sabemos bem o que dizer, como definir, vamos ao saco das palavras e expressões que dão para tudo.
Parafraseando Miguel Esteves Cardoso a propósito de outra expressão, quando dizemos «dentro do género», encerramos o assunto e o nosso interlocutor fica na mesma. O filme é bom? Dentro do género. Gostaste do professor? Dentro do género. Come-se bem lá? Dentro do género. Ele é giro? Dentro do género.
Pecado mortal das traduções: passar sempre event para evento. Sim, é só acrescentar uma letrinha.
Que dizer quando já temos os Grandes Eventos da Antiguidade e da Idade Média (colecção de DVD)? Que dizer quando lemos «eventos traumáticos», em lugar de «experiências traumáticas»? Etc., etc., etc.
Expectativas e seus parentes
«Anseio», «vontade», «desejo», «esperança», «previsão», «era o esperado»… alto lá! Tudo isso para quê? Hoje, bastam as «expectativas», que ainda têm os familiares «expectante», «expectável» e «expectar» a acompanhá-las diariamente.
«O que nós expectámos aconteceu. Era o expectável.»
O horror, o horror.
Repare ainda no seguinte: ora se usam as palavras «expectativas» e «expectável» com o sentido de aquilo que se desejava, ora com o sentido de aquilo que se previa. Amalgama-se tudo, é mais fácil. O que se transmite não vai ao encontro do que se pensa? Oh, purismos e preciosismos da treta.
Impacto
É oficial: já não há efeitos, consequências ou repercussões. Já não há choques ou embates. Só há impactos. Impactos que impactam. Impactos que são impactantes.
Experimente passar um dia sem ler e ouvir esta praga. Um dia? Uma hora.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O Público – e falo do Público, porque fez ontem um trabalho sobre esta matéria – e outros órgãos de comunicação social ‘mainstream’ andam muito entusiasmados com a possibilidade de os ‘gigantes digitais’ combaterem a denominada ‘desinformação’ durante os actos eleitorais deste ano.
Contas feitas, ao longo de 2024 haverá mais de 80 países a irem às urnas, incluindo os Estados Unidos, o Reino Unido, a Rússia, a Ucrânia, a Índia e, claro, Portugal. Estão ‘todos’ – não sei bem quem são os ‘todos’, mas encabeçados pelos directores dos media ‘mainstream’ – preocupados com os malefícios da ‘desinformação’ nas campanhas políticas, como se o Mundo só agora tivesse descoberto a existência de mentiras, de manipulações, de promessas faraónicas feitas por certos políticos. Eu, sinceramente, pensava que sempre foi assim e por todos quadrantes. Neste frenesi, Otto von Bismarck deve estar a rir-se na sua sepultura em Friedrichsruh – isto se não for, hélas, uma mentira a frase que lhe atribuem: “nunca se mente tanto como antes de umas eleições, durante as guerras e depois das caçadas”.
Sabemos bem, pela amostra dos últimos anos, como os ‘gigantes digitais’ actuam, e a forma tentacular com que seduzem e envolvem os media ‘mainstream’ (que aceitam a ‘linha’ directora adoçada com financiamentos para supostos ‘fact checkings’), catalogando e tratando a ‘desinformação’ com critérios do poder. A verdade, em tristes épocas, sempre se impôs pelo poder, em vencer em vez de convencer. Antes, e num sistema verdadeiramente democrático, quando a credibilidade da imprensa valia por si, a verdade sobrepunha-se à mentira através do debate e sobretudo do papel intermediador dos jornalistas. E da pluralidade de opinião. Acabava por ser premiada, pelos leitores, a imprensa que ‘dizia’ a verdade; e penalizada a que mentia.
Agora, não! Tudo mudou. Agora, são os ‘gigantes tecnológicos’ que determinam a ‘verdade’, através de algoritmos comandados e manipulados à distância por ‘entes’ absolutamente nada democráticos (inalcançáveis e não-identificáveis), mas seguindo uma ‘narrativa’, determinando-se à priori se algo é verídico ou não, se algo é aceitável ou não, se algo é censurável ou não. Vimos isso na pandemia, onde, por exemplo, eu e muitos – e muitos com Ciência feita de décadas – fomos censurados por dá cá esta palha, sem apelo nem agravo.
Tão fácil que foi então, e agora continua a ser, rotular, catalogar, censurar. Se o Facebook bloqueava, era porque se era negacionista, lunático, chalupa. Ainda hoje, por exemplo, a minha conta do Facebook está condicionada por ter divulgado notícias do PÁGINA UM baseadas em artigos científicos de revistas científicas com peer review. Julgo que o ‘castigo’ terminará em Março, pelo que talvez consiga, depois disto, ultrapassar as agora 20 ou 30 reacções por post. Nunca houve sequer oportunidade de apelação. Os ‘gigantes digitais’ são inalcançáveis.
E vimos isso, depois da pandemia, na invasão da Rússia à Ucrânia, onde também se permitiu a imposição de uma absurda censura aos órgãos de comunicação social russos, como se a Comissão Europeia se achasse detentora de um mandato paternalista considerando-nos inaptos por ineptos em distinguir a verdade da mentira, os factos da ficção.
E vimos isso agora nas represálias de Israel à Faixa de Gaza, onde se ‘declarou’ como dogma que qualquer crítica aos israelitas será um discurso anti-semita e qualquer atitude de compaixão sobre os palestinianos passaria a ser considerada uma apologia ao terrorismo.
E vemos agora em todas as questões fracturantes (e.g., alterações climáticas, migrações, género, etc.), onde quem quer fracturar deseja partir literalmente os seus opositores, promovendo medidas de cancelamento, de ostracismo, de silenciamento, de perseguição – e isto enquanto batem no peito clamando as virtudes da democracia. Mesmo os artistas, agora já nem podem ser subversivos, provocadores, imperfeitos, de contrário perdem o sustento.
Por isso, quando vejo o entusiasmo da imprensa ‘mainstream’, da qual o Publico é um flagrante expoente nacional, congratulando-se orgasticamente pela intervenção censória dos ‘gigantes digitais’, identificando, desde logo a ‘desinformação’ como sinónimo (ou somente proveniente) do Trump, da extrema-direita e da Rússia, assusto-me com o triste caminho que estamos a trilhar.
A simplificação da origem da ‘desinformação’ tem um propósito: não é apenas calar (pela pior forma) opositores (mesmo que sejam pouco recomendáveis, como a extrema-direita ou regimes não-democráticos como a Rússia), mas validar como ‘verdades’ todas as mentiras, todas as manipulações, todas as promessas não cumpridas, todos os actos de corrupção moral e material dos políticos ‘mainstream’.
Fazer esquecer, aliás, que foram eles, os políticos ‘mainstream’, com os seus actos e omissões. ‘benzidos’ por uma imprensa comprometida e vendida, que deixou de ser o ‘watchdog’ dos cidadãos, que ‘empurraram’ uma cada vez maior franja da população portuguesa (e ocidental) para os braços dos partidos populistas, antissistema e até de extrema-direita. Os europeus (e os portugueses incluídos) não se tornaram de repente fascistas: estão é fartos dos políticos que usurparam a expressão ‘partidos democráticos’. E começam também a estar fartos de uma imprensa que acha bem uma ‘Censura do Bem’.
A ‘fúria’ em combater a ‘desinformação’ dos ‘outros’ com o borrão da censura, passando uma esponja pelas próprias mentiras, não é um acto democrático; é o acto próprio de uma ditadura. É um acto que deve ser denunciado pela Imprensa, nunca apoiado. É um ultraje aos princípios do Jornalismo achar que há ‘Censura do Bem’, ainda mais por ‘gigantes digitais’ que janelas opacas.
Convençam-se: permitir ‘regulação’ através de ‘gigantes digitais’ não é regulação: é uma ditadura. Não se substitui o papel de uma Justiça lenta e coxa através de empresas que ‘silenciam’ carregando num botão. Isso é uma ditadura mesmo que supostamente esteja imbuída de santos princípios.
Convençam-se: não há ‘Censura do Bem’. Não há ‘Ditaduras do Bem’. Uma ditadura é uma ditadura – sempre será má. E sobretudo quando apadrinhada, como anda a suceder, pela própria imprensa ‘mainstream’.
Convençam-se: a ‘desinformação’ combate-se sim com (boa) educação, (boa) formação e (boa) informação, para melhorarmos o entendimento das coisas por parte das pessoas, sem doutrinamentos nem dogmatismos; não se combate recorrendo à censura. E ver certa imprensa explicitamente a apoiar qualquer forma de censura faz-me dar voltas ao estômago. Por isso, camaradas jornalistas, preocupem-se, sim, em dar boa informação; apenas isso. E vigiem sim Governos e ‘gigantes digitais’. Já não será pouco. É muito – é, aliás, uma fundamental razão da existência do Jornalismo.
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Pertenço à APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso. É uma associação de direitos humanos que luta na franja mais complexa da rejeição e da demagogia. Uns utilizam as penas de prisão como solução de inevitabilidades, como desincentivo ao crime, redução de maus comportamentos. Claro que inibitório é utilizar o medo como fazem os talibans. Queremos isso para nós? Claro que as ditaduras tendem a ter menos criminalidade e muito mais policiamento. Queremos ditadura?
É nessa linha que, em Abril de 2024, nos dias 6 e 7,lançamos um Congresso para debater o sistema prisional, bem como o sistema judiciário e as políticas para a saúde mental. É um conjunto de seis mesas de debate e apresentações onde estarão vinte pessoas de reconhecidos conhecimentos, idoneidade e inigualável coerência na luta pelos direitos humanos.
Cintaremos com a presença do Professor José Manuel Silva actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra, do Arquitecto Jorge Mealha, do Engenheiro Almeida Santos da OVAR, entre outros advogados, médicos, arquitectos, engenheiros, artistas, jornalistas e entidades envolvidas nesta temática.
Vamos discutir a Saúde no contexto de ausência de liberdade. As crianças e as mães nas prisões. A estrutura e desenvolvimento do sistema prisional, desde a arquitectura das cadeias até à importância da reintegração. Se existem, onde se devem localizar os presídios? Aqui se inclui a sobrelotação dos estabelecimentos, a organização e gestão do sistema prisional, o regime de execução das medidas privativas da liberdade, a reinserção social, as religiões no seio prisional, a tecnologia no contexto das soluções para a verificação do cumprimento de penas.
E tantas outras questões. Por exemplo, carecemos de tantas prisões? Podemos pensar a Inteligência Artificial num modo de suprimir os presídios? Até que limite podemos utilizar a tecnologia? Pulseiras com medicação? Controlo de distância com descargas punitivas de aviso? Devemos usar sempre a limitação de liberdade como castigo? Faz sentido Portugal ser o país com mais longas prisões preventivas e menor percentagem de acusações aos que estiveram em reclusão? Faz sentido manter a inimputabilidade das decisões dos juízes e do Ministério Público?
Estaremos a discutir urbanismo e lugares adequados para este tipo de instituições. Estaremos a discutir o que é um sistema punitivo e os mecanismos de prevenção e antecipação da violência. Não pode estar de fora a inocência que vai para a cadeia, nem a permissividade de processos sem fim. Um inocente preso é uma barbaridade sem nome. Um doente num presídio é uma deformidade.
A APAR arrisca assim um congresso internacional onde deseja ouvir e dar a conhecer pessoas que pensam e discutem há décadas os sistemas prisionais. As prisões deverão servir como lugares de expiação de castigos, ou como lugares de reinserção, ou ainda como a montra mais dura da exclusão social? O que é que penalizamos e podíamos resolver com políticas adequadas, na toxicodependência, na violência de género, nas questões de trânsito?
Sabemos hoje que o sistema judicial e as políticas de saúde mental estão diretamente ligados ao sistema penal, e por isso nunca poderiam ficar de fora desta reunião. Também a saúde terá, por isso, de estar neste debate. A Saúde nas prisões insere-se num conceito moderno de Saúde para todos, desde a componente psicológica, emocional e física, nunca esquecendo a alimentação e o trabalho e o desporto. Quem sabe se este assunto não seria uma excelente base de desenvolvimento de uma solução sem grades e sem guardas?
Sou desta Associação e sou deste desafio incrível: o debate e a discussão na franja da exclusão, na zona de fronteira onde se perdem votos e se ganha demagogia.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Pedro Sanchez toma o pequeno almoço enquanto passa a vista pelo seu El País. Depara com um par de fotografias da sua cara bastante animadoras, certamente dadas pelos seus spins, que têm excelentes relações com o jornal castelhano. Este Presidente de Governo tem muito know-how, dizem os experts. Prepara-se para ir de Falcon até à Suíça, onde será um dos participantes. Entretanto, compõe a gravata com a qual se apresentará no Fórum, embora tenha durante o Verão pedido de urgência aos Espanhóis para não a usarem por causa do clima cambiático (alterações climáticas na boca da dissidência espanhola).
Há uns dias, aconteceu o Fórum Económico Mundial de 2024, em que se reúniu a flora e a nata da política e economia mundial, uma «coisa» fundada em 1971 por Klaus Schwab (KS), ainda que tenha começado por se chamar Fórum Europeu de Gestão, mas desde 1973 que tem o seu actual nome. Ainda é o mesmo presidente 53 anos depois. Klaus Schwab é também membro da importante família Rothschild. Como sempre, e mais uma vez, além de outros assuntos fulcrais para o nosso tempo de bem-estar e insegurança, falou-se da pegada de carbono, a grande obsessão de Davos e de Schwab, embora seja já comum, nomeadamente através de activistas da Net ligados muitas vezes às extremas-direitas, (pelo menos, assim denominados pelas extremas-esquerdas), a crítica à quantidade de aviões privados dos actores principais e secundários que aterram na zona. Neste departamento, e muito estranhamente (ou não), as «esquerdas» (ou sinistras) não se metem. Não querem voar nesses aeroportos cheios de algoritmos humanos desinformativos que são a maioria dos canais de YouTube com visibilidade. Escrevo isto, mas posso assegurar que não sou de nenhum extremo político. Aliás, digo já que nem sou de direita, nem de esquerda, sou normal.
Queres ver os últimos e impressionantes modelos de aviões do mercado? Dá uma volta até ao aeroporto, leva os teus óculos escuros cheios de style e echa un vistazo, como dizem os Espanhóis e mesmo os Catalães. Vais ficar surpreendido com os últimos modelos ultra, mega, espectacularmente sónicos desses ecomultimilionários, enquanto descansam as asas nesses não-lugares cheios de estilo pós-moderno. Esses jactos têm, no mínimo, só para abrir o apetite, serviços de mensagens de texto e telefone NetJets Connects, tecnologia Wi-Fi e Bluetooth à discrição, sistemas de entretenimento em voo on-demand,tabletsiPadCozinha completa, com assistente de bordo, chega? Ou os Falcon 50, por exemplo, cujo modelo PW307A tem, só para começar, a Honeywell a trabalhar para a arquitectura de avionics, tem Auxiliary Power Unit (APU), e sistema de gestão do ar, brincamos? Parker Hannifin para o sistema gerador de energia e freios, e a TRW Aeronautical Systems para os sistemas de Flap hidromecânico… Não é preciso dizer mais nada, pois não?
O Fórum, neste ano, ofereceu-nos sinais de mão beijada acerca da direcção das políticas no imediato. Se o mundo fosse ainda mais redondo e justo, saberíamos, pelos canais mainstream oficiais, mais sobre esses encontros de contornos duvidosos, não ignorando de antemão, que muitas coisas são sempre negociadas por baixo da mesa, o que não é nenhuma ilegalidade em si, e se for, também quem é que está acima daquela gente?… Só Deus… mas como vi num programa da National Geographic, Ele não existe, por isso, não se pode fazer nada. Não estou a ver também a bófia a entrar por ali, muito menos a bófia suíça, que deve andar preocupada com canivetes o tempo inteiro.
A maior parte das pessoas que conheço, quando muito, acha que Davos é uma estância na Suíça em que se podem partir umas pernas em cima de um ski e pouco mais. Quanto a partir umas pernas, talvez estejam certos, economicamente falando, para ser bonzinho, já que não estou a falar da Cosa Nostra nem de Francis Ford Copolla. Nem tão-pouco, a realidade atingiu o glamour do cinema. Se há gente sem glamour é aquela, basta tirar uma foto ao KS e ficar à espera da revelação para percebermos que, quando muito, estamos perante um daqueles vilões dos anos 70 com passado duvidoso, que fumam o cigarro entre os dedos anelar e o médio (nunca percebi se os nazis fumavam mesmo assim ou se é uma criação do cinema).
O sotaque kissingeriano de KS é, por si só, assustador. Também é verdade que a maior parte das pessoas não sabe quem é o KS. Para alguns mais velhos a quem perguntei, foi um jogador do Fortuna Düsseldorf, dos anos 80 do século passado. Errado, metam-lhe uma bola nos pés e vislumbrará logo um planeta verde (negro) cheio de futuro, em que não terás nada e serás feliz, expressão inventada pelo menino, que entretanto fez parte de um vídeo com os dez novos mandamentos da Agenda 2030, mas já retirado de circulação. Os conspiradores e fascistas da Net devoraram e partilharam até à medula esse vídeo(game), a ponto de termos até tido pena do pobre KS, que para alguns, muito se esforça para que tenhamos um futuro verde sustentável, assegurado. Ele certamente quer morrer com a consciência tranquila de que fez tudo para nos proteger. Como não sou romântico, fico-me só pela parte do fez tudo. Uma vez, tentei melhorar a imagem do KS no Photoshop, e ainda veio pior. Talvez só a Inteligência Artificial lhe consiga melhorar a imagem. Ele agora também nos quer salvar da má imagem da IA, quando usada e ensinada pelos desinformadores.
Estará mesmo o mundo a precisar de tanta salvação?. O António Guterres não fala de outra coisa. O planeta é um pântano.
A Web 2.0 já não nos dá a hipótese de ver sempre o sol sem quadradinhos quando nos apetecer. E esperem pela Web 3.0, ela virá como um asteróide a alta velocidade contra o planeta, que por acaso, para uns nem redondo é.
Às vezes, pergunto-me, se esta gente não se achará uma espécie de anjos na terra, ou anjos caídos, ou se não serão mesmo um bando de psicopatas que perdeu o norte e agora está com medo de perder a Antárctida.
A verdade é que estas elites estão a entrar a pés juntos à boa maneira do Paulinho Santos, é tudo muito rápido. Agora vem aí o vírus X, outro tema de passadeira vermelha, mas ainda não sabem bem o que é, ainda que nos garantam que é vinte vezes pior do que o coronavírus, e pelo que imagino, já terão na manga, medidas vinte vezes mais radicais do que as «choninhas» do covid, que até deixavam as pessoas sair, se fosse para ir comprar Sonasolao Pingo Doce.
Klaus e companhia, neste ano, estão a passar mensagens e ideias, de forma que se perceba efectivamente que têm um projecto bem definido.
O pior é que não é nada bom para as pessoas a curto prazo, vejamos: combate ruidoso à desinformação, que já se sabe que é tudo aquilo que não coincide com as ideias deles; alterações climáticas, que vão trazer mais restrições às pessoas em grosso modo e à classe média particularmente; vírus que agora será o X, um vírus virtual hipotético, mas que infunde vinte vezes mais medo; combate às guerras, embora a guerra à desinformação seja considerada a principal; imigração; mundo árabe; Irão… Enfim, urge combater os maus, sendo eles naturalmente os bons. Tudo isto até soa a cómico, uma vez que vivo finalmente em Gotham City, e posso desfrutar do filme por dentro sem o incómodo dos óculos RV, que ainda não acertaram no alvo, já que desfocam demasiadamente e causam muitas tonturas, para não falar da porcaria do joystick. Não sei é se há outra realidade à minha espera.
Mas acho que as pessoas estão a perceber aos poucos que nesta saga, infonarrativa, aos «bons» também se vira, de vez em quando, o feitiço contra o feiticeiro. Sim, a IA faz ricochete e tem efeitos boomerang.
Andam preocupados com o GPT, e por isso o seu CEO estará lá neste ano. Outro actor importante desta saga é Yuval Harari, um filósofo israelita que pinta uma realidade bastante virtual com hackeamentos radicais à mistura e deuses na Terra, que até imaginamos que seja a velha guarda do costume mais os outros invisíveis que ninguém há-de conhecer, o que é bom para a especulação matrix da nossa era, e para os conspiranóicos do QAnnon, de origem duvidosa. Há quem jure a pés juntos que esta espécie de organização se trata de dissidência controlada, mas também quem o jura pertence à esfera da conspiração. O mundo já é a sua própria conspiração e, às vezes, respirar ar puro digital torna-se difícil, se não tiveres um dogma prêt-à-porter a dar-te guarida… digital. Esqueçamos o puro.
Será tudo isto uma questão de entretenimento? De quando em quando, pergunto ao espelho negro que tenho em casa, à imagem da série de televisão (que também tenho em casa com o mesmo nome), e não percebo bem se ainda estamos na sociedade do espectáculo debordiano, que as esquerdas sociais tanto citavam, ou se já não somos mesmo a carne para o canhão do cinema moribundo com guiões de série B pouco recomendáveis.
É que eu não preciso de mais entretenimento. Não fui daqueles que se agarraram à Netflix nos confinamentos, nem muito menos dos que fizeram o pão que o Diabo amassou, enquanto os padeiros faziam as carcaças e as vianinhas do costume, sem câmaras a bombardear as redes exibicionistas. Tanto entretenimento também farta. Agora, queria um bocadinho de descanso. E já agora paz como pediria o Mister Universo.
Sem dúvida, o globalismo é isto. Eu até gosto da palavra, mas quando percebi que o globalismo é a tentativa de controlar a globalização, ou seja, de controlar o livre intercâmbio de recursos, ideias, pessoas e produtos, fiquei a achar que estes voadores hipersónicos, na verdade, nunca o quiseram, ao contrário do que se pensa, porque isso implicaria diversidade, e não hegemonia das multinacionais às quais pertencem, tendo assim os pobres dos Estados na mão, com a conivência dos políticos e das políticas, em que se inclui a comunicação social, claro. Isto tudo baseado num sistema económico fraudulento na sua essência, que está alicerçado na ideia de dinheiro fácil criado do nada, sujeito a crises recorrentes controláveis e até antecipáveis como o vírus X. Mas que se mantém, porque permite os agarrados à liquidez (e estamos a vê-lo com Wall Street), a manutenção de modelos de negócio obsoletos que só podem funcionar com a manipulação dos juros.
Também percebo que é difícil parar o tsunâmi, sobretudo quando ele vem cheio de ideias de paz e de amendoeiras em flor, em que um pássaro vale mais do que uma pessoa, e até do que mil palavras. O pior e mais estranho é que são pessoas que votam, e não pássaros. Este sistema, quanto a mim, já deu sinais de ser problemático em 2001 e causou crises como a de 2008, que trouxe consequências graves para Portugal, deixando os Portugueses sem frangos no congelador, trocando-os pelos ordenados. O mundo ficou em respiração assistida, como os doentes covid anos mais tarde. O problema, como sempre, são os efeitos secundários do uso e abuso de tubos a entrar-nos pelos pulmões. Começámos finalmente a acelerar com uma scooter numa auto-estrada, mas em segunda. Já para não falar da inflação e da corrupção institucional. E agora usam como argumento a religião climática que até vem pôr Picassos em apuros, não fossem os vidros hiper-sofisticados a proteger as obras dos climáticos do lítio. É bom ter inimigos externos contra os quais não podemos lutar.
Pessoalmente, tento lutar contra as alterações climáticas e até contra o clima, embora tudo me pareça cada vez mais gelado na aproximação (aludindo a um antigo jogo da minha infância), mas não sei muito bem como, se isto está sempre em mudança. Ainda pensei em comprar um carro a lítio, sabendo também que o lítio é a substância usada para as crises disfuncionais da bipolaridade. Ainda faria um dois em um, antecipando a crise nervosa que virá inevitavelmente, depois de perceber definitivamente que estes carros poluem sete vezes mais do que os Vauxhall Deluxe dos anos 70 do século passado. Ao menos, nesses, simulávamos assaltos a bancos como nos filmes, e a brincar, uma vez lá dentro, pensávamos que éramos gangsters, longe de imaginarmos fóruns de Davos. Eram cá umas banheiras… que hoje só me fazem lembrar, por livre associação, água ou a falta dela. Mas abro a torneira e saem-me imediatamente inúmeros Vauxhalls em catadupa. Ou melhor, segundo os conspiradores, água cheia de metais pesados.
É tudo muito confuso. É tudo associação, é tudo psicanálise, é tudo fado. É tudo infância.
Acho que as alterações climáticas são uma inevitabilidade. A esquerda caviar acha que não, acha que podemos ficar sempre com sol à vista sem que produza queimaduras. Basta… não consumir. Problema do capitalismo. Então mas Davos é o quê? Não me parece que os actores cheguem de trenó nem lanchem uma tostinha de alface com queijo Philadelphia.
É frequente pensar, que esta esquerda sensível é composta por uma espécie de neoliberais… de esquerda… como Davos. Mas também há quem tivesse previsto este romance. O que ninguém previu, que eu saiba, é que o Bill Gates e o Bill Clinton, dois frequentadores assíduos do Fórum, não parassem de entrar no Lolita Express como quem entra nas Amoreiras, e se viesse a descobrir. Mas não sei se as Amoreiras são uma boa metáfora. São grandes, altas e estão um bocado envelhecidas. Há coisas que convém não dizer nesta democracia totalitária. A verdade é que ambos os Bills têm muito que dizer sobre o Fórum Económico Mundial. Uma vez que falei neles, também devo dizer que este ano, os organizadores garantiram que não haveria prostituição de luxo, à semelhança do ano anterior. O Fórum é assumidamente feminista.
Mas a ementa deste Fórum, foi o ataque às redes de desinformação, ainda por cima em ano de eleições trumpistas.
A ideia, no fundo, é que a opinião pública seja igual à opinião publicada. Se não for assim, seremos dissidentes e agentes da desinformação. Tenho a certeza de que este texto, mais tarde ou mais cedo, caso seja lido por um algoritmo, será varrido do mapa. Rock and roll hoje, só com camisolas da Zara. Tenho uma dos Clash comprada lá. Mas também tenho uma da NASA. Na pós-modernidade, é tudo uma festa, desde que não digas mal da Pfizer e da Apple. Tens de concordar com o Great Reset, caso contrário és um conservas de primeira apanha. Great Reset é um livro escrito por KS, e publicado três meses depois do início da pandemia. Só um génio para escrever em três meses um livro daquela envergadura e importância, que explica abertamente que o grande cancro da nossa era somos nós, os humanos. Até parece que ele não é!…
Um dos temas preferidos destas elites foi precisamente o da desinformação. Discutiu-se a ideia de dares os teus dados primeiro para acederes à Net, tipo, dispara primeiro e pergunta depois à boa maneira do Dirty Harry, que por sinal, também lutava contra os maus. O próprio Bush dizia que se não aceitasses a invasão ao Iraque, estavas contra os Estados Unidos, e se dissesses que o país do Saddam podia não ter armas nucleares, eras persona non grata.Ou estás connosco ou és contra nós, e se fores contra, o teu avatar vai direitinho para a prisão do silêncio. O que vale é que eu sou o meu próprio avatar e raramente discutimos em público.
De vez em quando, penso se não terão mesmo administrado clorofórmio à grande maioria da população, uma vez que parecem tão absurdos certos paradoxos vindos destes encontros. Não digo que dormir não seja bom, mas por vezes, convém acordar para desentorpecer as pernas, isto para não falar do cérebro. Por outro lado, se a grande maioria, pelo menos em Portugal, não se revela crítica destes paradoxos, pode querer dizer que até está tudo bem.
E os académicos, onde andam os académicos? Se calhar, estão todos a jogar na Académica, que anda a arrastar-se por ligas menores há muito tempo, sem nenhum fulgor. Efectivamente, não estou na cabeça de milhões de pessoas para o saber, mas também não quero que esses milhões invadam a minha. Para isso, basta não ver televisão e não ler jornais. Quanto às redes sociais, também não sou grande adepto. Não gosto de discutir penáltis nem foras-de-jogo, prefiro meter uns golos de quando em vez, nem que seja na própria baliza.
O mundo está a precisar de um checkup. Parece que estamos como no Titanic: enquanto o barco se afundava, ainda havia passageiros a fazer planos para o futuro. Estamos na era do complexo Titanic. O mundo é uma selfie meio desfocada. Mas eu não. Eu vejo o guião como literatura. Sempre é mais libertador. Hoje é tudo uma questão de dados. Estás sempre a enviá-los, são a tua corrente sanguínea. Os dados são o poker, os truques és tu. Se quiseres, ou não, és o próprio produto. A diferença é que ninguém tem trinta dias para a reclamação. Os dados, para mim não são o lixo, são os camiões do lixo todos a trabalhar ao mesmo tempo. Os dados são as discotecas em que os cavalos nunca se abatem. Estás sempre ligado à corrente. Se a corrente vai para um lado, embora para esse lado. Só um estúpido é que rema contra a maré. Já não há bem marés. Hoje há mais marinheiros e bots. Há mesmo mais bots do que marinheiros. A táctica é seres mais dados do que os próprios dados. Ser mais banqueiro do que os banqueiros. Seres um único e grandioso dado.
Um BOT-PLUS.
Enfim, ser o próprio Banco e ficar lá sentado à espera de que tudo se desmorone. Por isso, eu até posso compreender esta passagem para o mundo twilight definido pelo Fórum, e até de o desejar, é certamente uma forma de ser o actor e espectador ao mesmo tempo, ainda para mais com a possibilidade de viver para sempre. Mas assim não dá.
Claro que quero um robot escravo a trabalhar para mim movido a hidrogénio. Claro que quero uma torradeira high tech com design do Philippe Starck a dizer piadas sobre a liga de carbono. E se, no meio disto, puder comer hambúrgueres de oxigénio com sabor a carne de vaca, melhor ainda. Se puder viajar no tempo, ui!… Ia de imediato até ao paraíso Viking, chamava-lhes nomes, gozava com os capacetes e pisgava-me logo, accionando a mente e nunca um botão anacrónico, como se vê nos filmes, antes que eles me dessem uma espadeirada. Mas assim não dá. A vossa táctica parece a do treinador do Fafe.
Por muito estúpidas e incultas que as pessoas sejam, vocês estão a exagerar. Eh pá, aviões supersónicos e converseta do carbono? Vírus inexistentes vinte vezes piores do que o monstro de Lochness? Eh pá, não terás nada e serás feliz? Fogo… crises recorrentes? Ameaças? Blackrocks, Vanguards? Os juros da dívida dos países a subir em flecha… Eh pá… qualquer dia, a maralha percebe, e lá se vai o nosso futuro quântico e cyborg 4.0, cheio de novas possibilidades narrativas para o galheiro.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações da autoria de Ruy Otero com a colaboração de Nuno Bettencourt.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Eram as condições de vida na capital e não a destruição pela tuberculose que o haviam aniquilado. Tinha a coragem e o bom-humor dos derrotados.
Graham Greene
OS COMEDIANTES (1966)
As legendas matam-me. Não aguento o seu espectáculo alarve e satisfeito de ignorância total, e cheia de pressa de ganhar uns cobres por um trabalho feito com os pés. Chego ao ponto de estar na ópera e de deixar momentaneamente de voar nas asas das músicas imortais mais poderosas da civilização ocidental porque apareceram no écran do texto traduções apressadas em que “va pensiero” quer dizer “vá pensar[1],” que nos oferecem uma nova versão de “l’amour est enfant de bohéme” segundo a qual “oamor é… beber Sagres Boémia[2]”, ou mesmo que nos juram que “ich bin eine Walkure[3]” significa “eu sou a música de abertura do APOCALYPSE NOW[4].” Perco o fio à meada de grandes filmes porque quando o Don Corleone mostra ao advogado o seu filho Sonny passado a ferro por dezenas de rajada de metralhadora numa portagem envenenada[5] e diz “now you just look what they did to my Sonny”, o tradutor, consciente de que este filme foi feito nos anos 70, decide escrever para a legenda, textualmente “agora você veja só o que eles fizeram ao meu leitor de cassettes[6]”. E, quando nos entram todos os dias em casa através da televisão, há casos ainda piores do que estes. Muito piores.
Vamos voltar à última tradução apressada, que estaria profundamente incorrecta mesmo que o Sonny não tivesse passado a ser um leitor de cassetes. A construção “now you just look what they did to my Sonny” está perfeita em inglês quando prevista para ser posta ao serviço de um sotaque italiano. Mas, e em grande medida até por isso mesmo, torna-se imensamente imperfeita quando traduzida à letra para português. “Agora você veja só o que eles fizeram ao meu Sonny” é português, sem dúvida – é excelente português do Brasil, pronto para ser grasnado por alguém ao serviço do Tio Patinhas. E, se assim fosse, estaria tudo bem.
Quando eu era miúda[7] e lia um rompante da Magda Patalógika a dizer “que mau, Peninha, eu vou matar você!”, o que fazia o famoso repórter d’A PATADA encostar a ponta dos dedos à palma das mãos[8] e perguntar, com um cabelo para cada lado[9], “pô-pôxa, você acha mesmo, Magda?”, este linguajar não me incomodava absolutamente nada. Toda a gente sabia que aqueles bonecos falavam brasileiro, e parte da sua graça vinha-lhes exactamente disso. Mas, quando estamos a ver televisão portuguesa, nas nossas casas portuguesas, e nos entram por ali dentro legendas supostamente portuguesas que no entanto nos oferecem um português de Portugal de tal forma adulterado que bem podemos pôr-nos de joelhos e pedir perdão às divindades pela loucura dos impérios que construímos no passado – que estupidez, a nossa casa não é nem o lugar nem o contexto para catarses destas, os nossos filhos e netos nunca perceberão sequer que estava em causa uma catarse quando estiverem sozinhos, toda a gente fica confusa em relação às formas certas e erradas de dizer as coisas, e francamente, deixem-me que vos diga.
As legendas na televisão nunca deveriam poder ter o fraco profissionalismo dos trabalhos que os alunos nos entregam, onde é fácil distinguir o que foi que eles escreveram do que foi que eles copiaram e colaram da Wikipedia porque uma parte está num português que tem bastantes erros mas que ao menos é, satisfatoriamente, português de Portugal, e a outra parte está num brasileiro académico que se mete de tal forma pelos olhos dentro que até dá vontade de chorar[10]. Adiante.
Procure-se o pior de tudo, que se insinua mesmo por baixo da pele.
Esta qualidade costuma pertencer aos predicados das frases.
Há milhares de formas de escrever um verbo sem ele estar ortograficamente errado, embora a alteração da sua sintaxe possa roubar todo o sentido às frases. Imaginem, só para dar um exemplo, um sitcom americano qualquer com gargalhadas e palmas da audiência, em que um personagem mauzinho que guincha muito diz para os outros, só para os chatear, “então mas é impressão minha ou ontem os Yankees perderão o jogo?”. E toda a gente ri. Mas os telespectadores, se precisam de legendas e sabem conjugar verbos, não riem porque já se perderam. Os Yankees ontem… perderão o jogo? Claro que não, foi balda da legenda. Ontem, os Yankees perderam o jogo. Mas depois não digam que a juventude portuguesa escreve cada vez pior.
Há montes de galegadas destas que até nos cortam a respiração. Devo dizer que, quando estou especialmente bem disposta no sentido mais pérfido do termo, a minha galegada preferida é a confusão entre o imperfeito do conjuntivo e o presente do indicativo na conjugação pronominal reflexa. Ou seja, se eu fosse uma série de animação cerrava os olhos até só serem duas frinchas, e o meu sorriso ficava horrorosamente cheio de dentes inquietantes, de cada vez que as legendas rezassem “aqui comesse bem” quando o indivíduo do filme está a dizer “aqui come-se bem.” Querem que algum cérebro ainda em formação saia incólume destas aventuras? Por favor. A corda só estica até onde consegue esticar.
Escrevo tudo isto porque ontem apanhei um destes meus ataques de fúria de estimação, que àquela hora da noite ficou reservado exclusivamente para as orelhas arrebitadas e atentas do meu Sebastiãozinho, sempre incrivelmente paciente nestes tratos de polé de ver a dona gesticular, largar brados de guerra, e bater com os pés no chão. Estava positivamente maravilhada, de olhos cravados na jovem Gong Li, que continuo a considerar uma das mulheres mais bonitas do planeta[11], no venerando ESPOSAS E CONCUBINAS. Da primeira vez que o vi, as legendas eram em inglês e honra lhes seja, os americanos pautam-se por muito mais rigor do que nós quando são obrigados a fazer subtitles para os filmes[12] – o que, para eles, é quase um exercício académico, e como tal levado muito a sério. Já perto do fim, quando ela bebe demais e pergunta ao Feipu[13] “alguma vez acreditaste que estavas apaixonado?”, apareceu uma legenda que dizia:
“Alguma vez acreditas-te que estavas apaixonado?”
Sei que a partir dali é tudo a descer e que a história acaba pessimamente, portanto nem continuei a ver o filme.
Acabem com isto, pelo amor de Deus.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Atenção, que a versão completa desta frase seria “vá pensar para o cantinho durante meia hora”: usa-se quando as crianças fazem alguma coisa particularmente estúpida.
[3][3] A ópera A VALQUÍRIA está toda ela centrada no braço de ferro entre a valquíria Brunhilda e o seu pai Wotan, o rei dos deuses. É, portanto, bastante normal que ela lhe puxe várias vezes dos galões durante a disputa com o memorando Ich bien eine Walkure. Esta disputa só acaba quando Wotan põe a filha a dormir, rodeada de um círculo de fogo. E este feitiço só se quebra quando vier de lá um verdadeiro super-homem que a acorde e apague o fogo (só falta dar-lhe um beijo – quem é que não conhece o leit motif?). Esse super-homem só aparece na terceira ópera, que, aliás, tem o nome dele: chama-se SIEGFRIED. É grande, musculoso, loiro, um perfeito ariano. Século XIX. Os motores aquecem.
[4] O infame filme de Francis Ford Coppola APOCALYPSE NOW abre com uma sequência horrorosa de helicópetros assassinos que aparecem a pavonear-se no céu ao som da CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS. E esta cavalgada é o quê? É a passagem musical mais popular da óperaA VALQUÍRIA (DIE WALKÜRE, em alemão), que abre a primeira cena do terceiro acto. Esta ópera foi composta por Richard Wagner em 1870, e é a segunda parte das quatro que compõem a tetralogiaDER RING DES NIBELUNGEN (O ANEL DO NIBELUNGO). Como as pessoas gostam de músicas que ficam no ouvido, não falta quem diga que A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS é a música mais famosa de Richard Wagner. É injusto.
[5] Sonny era o filho mais velho do padrinho, predestinado a herdar o reino criminoso que Michael acaba por herdar. Era também, e consabidamente, um grande bruto e um carniceiro feroz, e é isto que o deita a perder. Mas ainda está vivo o tempo suficiente, tanto no livro como no filme, para descobrirmos que era também especialmente bem aviado, sendo que este detalhe anatómico está na base do seu envolvimento – hm – romântico? – com Lucy Mantini, também ela uma rapariga particularmente “larga”.
[6] O “leitor de cassetes” aparece aqui a prestar homenagem aos objectos de uso doméstico que a marca SONY produzia com mais abundância nos anos 70. Claro que o nome da marca só tem um n enquanto que o nome do filho primogénito tem dois, mas o autor das legendas passa por esta discrepância como cão por vinha vindimada.
[7]Quem é que eu estou a ver se engano? Ainda hoje me parto a rir com esta bonecada.
[8] Magia dos quadradinhos, claro. Os patos não têm propriamente pontas dos dedos, porque todos os seus dedos estão unidos por uma membrana. Pela mesma ordem de razões, ainda menos têm palmas das mãos.
[9] Idem. Toda a gente sabe que os patos não têm cabelos.
[10] Sim, jogo de palavras. Até pareço um homem, hoje.
[11] São milhares de anos de civilização. Uma beleza destas não se constrói em meia dúzia de séculos.
[12] É raríssimo, se pensarmos duas vezes – na sua esmagadora maioria, os filmes são filmes americanos.
[13] O filho do Senhor, de quem a Gong Li é a Quarta Esposa.
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Como a maioria dos portugueses, fiquei surpreendido ao saber do número de oficiais generais das nossas Forças Armadas.
Nada mais, nada menos do que 253.
Comecei por perguntar, a mim próprio, o que fariam todos estes militares no seu “dia de trabalho”.
Imaginei essas duas centenas e meia de criaturas a levantarem-se cedo, como é exigido a qualquer militar, tomarem o seu banho, fazerem a barba ou maquilharem-se, consoante o sexo, e saírem de casa, depois do pequeno almoço, pelas 8,30 da manhã.
Mas, com que destino?
Há mais generais no nosso Exército do que quartéis, e outras instalações da Força, em todo o país.
Há mais generais na Força Aérea do que aviões, helicópteros, avionetas e outros aparelhos voadores.
Há mais almirantes do que navios, submarinos, corvetas e cacilheiros.
E têm cerca de 20.000 militares sob as suas ordens.
O que farão, então, estes cidadãos?
Sei que alguns são colocados na Guarda Nacional Republicana, outros ocupam cargos de assessoria, outros fazem comentários nas televisões.
No concreto, todavia, o que fará a maioria deles?
Para se perceber o ridículo destes números podemos, e devemos, compará-los com os de outros países.
Vejamos:
As Forças Armadas dos Estados Unidos têm 1,3 milhão de soldados, 13.300 aeronaves, 303.553 veículos blindados de combate e 484 embarcações, com um orçamento anual de 760 bilhões de dólares e… 31 generais!
A nossa vizinha Espanha tem 120 mil militares no activo, e 345.486 na reserva, e 28 generais.
A França dispõe de 215.000 militares, entre os quais 55 generais.
A Alemanha conta com 183.730 militares incluindo 189 generais.
O Brasil tem 235.000 militares e 100 generais.
Ou seja, Portugal tem mais generais do que Estados Unidos, Espanha, França e Brasil, juntos!
Os 20.000 elementos das nossas Forças Armadas seriam, em qualquer daqueles países, comandados por um major. Ou um coronel.
Neste nosso cantinho, onde há menos praças do que graduados, se contarmos com sargentos e todo o tipo de oficiais não generais, algo tem de ser feito para mudar esta situação.
Em primeiro lugar há que saber quais os verdadeiros objectivos que os nossos governantes pretendem alcançar com as nossas Forças Armadas.
Militares para “garantirem a defesa da nossa soberania” contra um qualquer eventual ataque de outro país?
Se for esse o caso, então podemos temer o pior.
A Espanha, por exemplo, se pretendesse tal (e obviamente não quer, a não ser que os seus dirigentes enlouqueçam…) bastaria mandar um pelotão, comandado por um sargento, e em 24 horas teríamos de começar a falar castelhano.
Papel preponderante que os nossos militares podiam ter seria, por exemplo, a defesa das nossas costas marítimas, quer no impedimento de pesca ilegal quer impossibilitando que, por essa via, entrem em Portugal produtos ilegais ou gente indesejável.
Só que, para estas acções, precisamos de operacionais em forma física e bem treinados, não de generais idosos e bem nutridos, e aquele é o tipo de gente em falta nos quartéis.
Desde logo porque a juventude, na sua imensa maioria, nem quer ouvir falar de “tropa”.
Disciplina, regras apertadas, levantar cedo, obedecer cegamente, péssimos ordenados, não poder dispor da sua vida em nenhum dia do ano, já que ficam sujeitos a ver as regras alteradas a qualquer momento?
Jamais! A não ser que tornem o Serviço Militar obrigatório e voltarem a fechar as fronteiras.
O mais certo, portanto, é que o número de generais vá aumentando, com as promoções por antiguidade, e o de praças vá diminuindo pelo total desprezo dos jovens pela carreira militar.
Perde-se muito com isto?
Provavelmente alguma da nossa juventude ficaria mais bem preparada para o resto da sua vida se tivesse de cumprir um ou dois anos de serviço militar.
Eventualmente, poderíamos pensar no cumprimento obrigatório desse serviço por parte daqueles que abandonassem os estudos sem o cumprimento de um determinado objectivo (licenciatura ou curso profissional, por exemplo).
Difícil seria explicar, a estes, a estrutura onde seriam integrados, com mais chefes que funcionários.
O que resta é dar razão à frase de Aldous Huxley: “Há três qualidade de inteligência: ahumana, a animale amilitar”.
Vítor Ilharco é assessor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Há uns anos, ao fim de quase duas décadas de emigração, quando comecei a pensar regressar a Portugal ou passar por cá períodos maiores de tempo, decidi ir procurar casa em “casa”.
Não sendo a minha cidade natal uma hipótese por causa dos preços (Lisboa), fiz como a maior parte de nós e fui averiguar na Margem Sul, onde vive boa parte da minha família. Lembro-me de ver umas maquetes de uns prédios em construção, ali perto do centro de estágio do Benfica (Seixal) e de comentar com o vendedor como achava tudo aquilo um absurdo e completamente fora do contexto real do país. Ele, obviamente feliz pela forma como corria a venda da maquete, dizia-me, a propósito do meu país de acolhimento, o seguinte: “olhe… ainda ontem saiu daqui um sueco velhote com a filha. Compraram um T4 por 800.000 euros. Onde amigo, onde, é que eu na minha vida alguma vez pensei vender um T4 no Seixal por 800.000 euros?”
De facto, não pensou ele e, imagino, ninguém que tenha crescido e vivido por ali, como foi o meu caso. A “praia” para onde fugíamos tentando evitar as aulas, ali pelo final do século passado, baptizada com um nome pouco abonatório que incluía o recurso a adjectivos escatológicos, é hoje uma “vista desafogada para a baía”.
Como imaginarão, fico contente com a reabilitação dos espaços urbanos, em especial nas zonas dos subúrbios que são, normalmente, pouco dadas a embelezamentos ou cuidados arquitectónicos. Mas há aqui toda uma matemática que, por mais que tentemos, não parece fazer qualquer sentido.
Portugal tem um salario médio de 1.200 euros brutos (aproximadamente) e isto significa que a nossa classe média, a existir, é pequeníssima. A não ser que consideremos que a classe média recebe pouco mais do que o salário mínimo. Se for essa a bitola, então temos um país quase sem pobres.
Se a maior parte dos portugueses vive com menos de 1.000 euros líquidos, como é que o preço médio de um apartamento com, por exemplo, 100 m2, vai de 445.700 euros em Lisboa a 285.700 euros no Porto? Ou até 230.600 euros em Faro e 193.300 euros em Setúbal?
Como é que isto é possível? Economistas defendem que há pouca construção e isso faz aumentar o preço dos imóveis disponíveis no mercado. É um facto que o nosso parque habitacional subiu pouco na última década (cerca de 1%), mas também não é menos verdade que a população é essencialmente a mesma. Entre entradas e saídas, mortes e nascimentos, continuamos a rondar os 10,5 milhões.
Se os portugueses com poder de compra são cada vez menos, os imigrantes que tanto incomodam o Ventura recebem salários miseráveis… Quem é que compra estas casas em Lisboa entre 500.000 e um milhão de euros? São todos suecos como o amigo do Seixal? Ou franceses? Árabes? Russos?
Segundo o Pordata, em Dezembro de 2023, Portugal tinha uma população estrangeira de 800.000 pessoas, das quais 30% seriam brasileiros. Admitindo que os brasileiros não são todos milionários, serão os restantes 70% compostos por golfistas ingleses e nómadas digitais australianos?
Quando me falam no mercado para justificar tudo, é quando o fumo começa efectivamente a chegar à zona das orelhas. “Se alguém paga o valor, é porque vale. É assim o mercado”. Esta é uma versão redutora e que serve, na realidade, para justificar o injustificável. Para distribuir lucros pornográficos por uma minoria e prender boa parte da população a créditos eternos.
Vi um prédio na Avenida do Brasil com apartamentos entre 300.000 e 1.200.000 euros. Dir-me-ão que tem melhores acabamentos, que os custos de produção aumentaram com a inflação, a guerra, e todo o novelo do costume. Mas, quando saímos de casa, do T3 que custa 1,2 milhões de euros, continuamos na Avenida do Brasil, não é? Com lixo a transbordar dos caixotes, merda de cão no passeio e marquises no prédio da frente. Não estamos na 5ª avenida ou nos Campos Elíseos. O preço surreal que o “mercado” atribui a uma casa em Portugal, seja esta no subúrbio ou no centro das cidades, é absolutamente incompreensível.
Os custos de construção aumentaram? Por acaso têm visto pedreiros e carpinteiros em ferraris? O que aumentou verdadeiramente foram as margens de lucro de quem constrói e vende. Alguém acredita que o custo de produção de um T3 em Lisboa se aproxima sequer do milhão de euros? Não é mais ou menos óbvio que as margens subiram para valores que ninguém consegue perceber e muito menos, pagar?
Nós, portugueses, chegámos a um ponto da nossa evolução em que não temos dinheiro para viver nas zonas onde somos forçados a trabalhar. Bem sei que devemos todos mudar para o interior onde tudo é mais barato e arranjar emprego na lavoura, mas eu ainda sou daqueles que defende que uma pessoa deve viver onde lhe apetecer, perto da família, do mar, da barragem, dos campos de girassóis ou na borda do rio. Um país não pode ter um parque habitacional onde o custo médio está muito, muitíssimo acima, daquilo que é o salário médio.
No outro dia, li algures que isto só lá vai com ocupações à força. Parece-me radical, até porque defendo o direito à propriedade privada (com regras). Ainda assim, não consigo aceitar que todos sejamos obrigados a viver em condições miseráveis para alimentar a especulação imobiliária ou então, em alternativa, sermos despejados para a porta da emigração.
Há algo mais a fazer para resolver a crise da habitação. Desde logo, simplificar o processo de construção e deixar o mercado da concorrência funcionar. Depois, dar algum uso ao imenso parque habitacional público. E por fim, nos casos da mais pura e nojenta especulação, não me venham com conversas de investidores e segurança de mercado. Há que taxar sem complexos. Já se faz no primeiro mundo, não precisamos de inventar a roda.
O que não podemos é continuar a viver em barracas enquanto pagamos palácios.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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