Categoria: Opinião

  • O culto dos Santos

    O culto dos Santos

    Os barris de cervejas já rodam no asfalto, tilintando de vez em quando nos carris do 28. 

    A parada de WCs, que já estão estacionados junto ao parque  estacionamento clandestino, já denunciam que vai haver  festim.

    No cabeleireiro, a talentosa ‘patroa’ já mandou o seu estimado cãozinho de férias com a filha, por uns dias, porque vai estar a trabalhar nos Santos. E a estatueta de Santo António que protege num mini altar o estabelecimento, guarda as preces de esperança (procura-se marido para uma das cabeleireiras e força e sucesso para as restantes…)

    O palco está montado no largo, em frente ao coreto, pronto para receber artistas de variedades e DJs com reportório popular.

    As fitas, as fitas, os manjericos em papel, …. 

    As lojas que estavam em obras, estão em contagem decrescente para abrir a tempo da festa. Este ano, a grande novidade é o novo supermercado Continente que anunciou a inauguração para dia 12. (Saberá ao que vem?) 

    A marca da Sonae veio ocupar o espaço que estava arrendado a uma das lojas mais procuradas pela comunidade que vive e trabalha na Graça: ‘O chinês’.

    O chinês não era um chinês qualquer. Era uma espécie de mala do Sport Billy em que tudo, mas tudo  se podia encontrar. Fosse o produto ainda produzido por uma velhinha marca portuguesa, até acessórios de costura e tricôt, aos brinquedos de plástico da moda, aos panos da loiça a forra para camas de coelhos e porquinhos da Índia. E, claro, manjericos de papel. E fitas. Muitas fitas.

    Vai ser difícil ao Continente bater a popularidade d’ ‘O chinês’, até porque há populares que culpam a marca pela perda que a comunidade da Graça perdeu, quando ‘O chinês’ fechou.

    Talvez se oferecer sardinhas ou cervejas nos Santos, a coisa fique esquecida. Pelo menos até ao dia de Santo António.

    Para mim, viver na Graça, traz por esta altura duas tarefas: estacionar o carro num lugar onde ficará parado durante uma semana; colocar avisos à entrada das hortas para evitar as habituais invasões de festivaleiros em busca de casa de banho.

    Este ano, vou experimentar dois avisos novos, na esperança de que mesmo malta alcoolizada tema pela vida e fique longe do nosso portão. 

    Depois, é desfrutar da proximidade das festas e da música, embora já os miúdos não achem piada nenhuma a ir dar um pé de dança até ao largo, ao som de música dos anos 80 (com sorte). Já nem querem ir às farturas ou comprar um balão que depois fica lá em casa, a dançar pelo tecto até Agosto.

    ‘Sobram’ os amigos  com paciência para virem até à confusão, para conversar ao pé de colunas de som estridentes, e com o aroma a sardinha e bifanas a perfumar o ar quente das noites que se avizinham.

    As obras que alguém decidiu iniciar recentemente na rua do Forno do Tijolo prometem transformar a Damasceno num caos. O melhor é vir prevenido e deixar o carro longe. 

    No meio da azáfama local, é ir regando a horta. Observar os pimentos a crescer. Os pepinos. O tomate. A passarada ao fim do dia. As abelhas de manhã. E ter um saco de lixo à mão para recolher os copos, latas e garrafas que festivaleiros irão certamente ‘semear’ na horta por estes dias.

    ‘Os Santos’ trazem alegria e animam as ruas da Graça, por esta altura. Aqui, não há fogueiras para saltar (como as que saltei em criança). Também há poucas mesas compridas postas por vizinhos que se juntam em comunhão. Há, sobretudo, negócio. Dança, música. Alegria. Lixo. Mares de gente guiados por fitas coloridas que serpenteiam ruas, largos, praças, becos e miradouros. E há álcool (muito).

    Depois, não tarda nada, teremos, de novo, o sossego. Teremos a Graça só para nós (e alguns turistas). Para o ano há mais.

    Elisabete Tavares é jornalista

    Fotos da autora

  • A nova era de ódio às mulheres

    A nova era de ódio às mulheres

    A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) anunciou ontem que “apresentou queixa junto do Ministério Público e outras entidades públicas por factos que podem eventualmente configurar discurso de ódio e eventualmente incitamento ao ódio contra as mulheres, no sentido de apurar eventuais responsabilidades legais”.

    Em causa estão declarações proferidas nas redes sociais por um ‘influencer’. Segundo o Jornal de Notícias, o alvo será um personagem que se apresenta com o nome Numeiro.

    Por detrás da polémica estarão publicações que este ‘influencer‘ fez nos últimos dias, designadamente na rede X, sobre a questão da interrupção voluntária da gravidez e o papel da mulher. Num dos seus ‘posts‘ na rede X, Numeiro escreveu: “Aborto só devia ser permitido em casos extremos, tipo malformação do bebé ou engravidar uma amante”. Pensei que em 2025 já não existiriam ‘homens das cavernas’, mas existem.

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    Foto: Kristina Flour

    Este caso surge depois de um outro, que envolveu o empresário e ‘podcaster’ Miguel Milhão, uma espécie de Joe Rogan à portuguesa, que entrevista personalidades no seu programa. Milhão pagou para passar um anúncio na TVI supostamente ‘pró-vida’, condenando a interrupção voluntária de gravidez. O anúncio gerou uma onda de críticas e queixas junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    As acções de Numeiro e de Miguel Milhão demonstram, inequivocamente, um enorme desrespeito pela Mulher. Ignoram os direitos humanos alcançados por todas as mulheres ao longo de gerações. Enterram a Mulher e submetem-na a uma condição inferior de ser humano, cujo corpo não é efectivamente … seu.

    Os casos de Numeiro e de Milhão não surpreendem, infelizmente. Surgem num contexto e numa época em que há personalidades que promovem o culto do ‘homem de verdade’, a ideia de que ‘homem que é homem’ é ‘macho man‘, só que ultra vaidoso. Misógino, mas com abdominais bem definidos, cabelo bem cuidado e relógios caros. É um culto que vende a ideia da ‘libertação’ do homem, mas que não passa do oposto: destrói os homens. Por completo. Reduz os homens a uma condição básica que envergonharia homens com grandes feitos na História.

    Mas não só. O caso de Numeiro e de Milhão também não surpreendem porque surgem numa era em que o ódio contra a Mulher é promovido por Governos, organismos de Saúde e organizações de ‘defesa da Mulher’.

    A woman swims underwater with bubbles.
    Foto: Klara Kulikova

    O ódio contra a Mulher foi institucionalizado. Tem sido colocado em Lei. Tem sido normalizado e ensinado nas escolas e vendido pelos media.

    Por isso, o anúncio da CIG sobre a queixa contra Numeiro deixa no ar um cheiro nauseabundo a hipocrisia.

    A CIG tem ajudado a criar ‘Numeiros’ e ‘Milhãos’. A CIG tem destruído a condição da Mulher. A CIG tem sido um dos carrascos dos direitos das mulheres em Portugal. E tem-lo feito de forma subliminar, enquanto espalha cartazes e iniciativas em defesa da Mulher. Salva-se a sua acção no combate à violência contra mulheres.

    A CIG sacrificou a Mulher no altar da ‘inclusão’. Aplaude políticas que eliminam a palavra ‘MULHER’ de documentos oficiais. Que defendem que meninas, jovens e mulheres sejam forçadas a partilhar casas-de-banho com pessoas que decidiram adoptar outro género. Como se a recusa das mulheres e meninas em fazê-lo fosse um mero ‘capricho’ feminino.

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    Foto: Katherine Hanlon

    Possivelmente, para a CIG, as mulheres e meninas que se queixam das suas ‘políticas de inclusão’ serão talvez transfóbicas, intolerantes, umas ‘terf‘. Enfim, têm caprichos e são umas histéricas. São ‘doentes’ ou sofrem de desvios. São, enfim, candidatas a internamento para que, com choques eléctricos, talvez, tenham recuperação. Onde (e quando) já vimos isto?

    Mais do que aplaudir, a CIG promove essas iniciativas. A CIG admira-se que a Mulher seja vista como não tendo direitos, como um ser humano inferior? Não sei como. A sua hipocrisia não tem fim.

    As políticas apoiadas e promovidas pela CIG, que abafam ‘as queixas’ das mulheres, foram ‘mensagens’ que acabaram por servir para validar pessoas como Numeiro. Foram mensagens claras, como a água cristalina da mais pura das fontes. E a mensagem foi esta: a Mulher tem direitos a não ser nas políticas de ‘inclusão’. Nesse caso, os direitos da Mulher valem tanto como merda.

    No fundo, a mensagem da CIG é de que a Mulher é inferior. Vale menos. Vale menos que todos os géneros. Tem menos direitos do que todos os géneros.

    Hoje, para a CIG, é normal que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) elimine as mulheres das informações sobre Saúde. Não há mulheres que amamentam, ou que menstruam. Ou que fazem interrupções voluntárias de gravidez.

    A CIG tem ajudado a criar ‘influencers‘ como Numeiro que será, segundo o Jornal de Notícias, o alvo da queixa da CIG. Numeiro limita-se a fazer o que aprendeu: angariar seguidores copiando a moda da promoção da imagem de que ‘homem que é homem’ não é ‘o gajo bronco das obras’, mas o misógino, com abdominais bem delineados e relógios caros no pulso. / Foto: D.R.

    Todos os géneros têm direitos humanos. Todos os seres humanos têm o direito de escolher ser do género que quiserem, desde que sejam maiores de idade e, portanto, estejam plenamente conscientes e tenham a maturidade adequada para tomarem essa decisão, muitas vezes definitiva. (Ao contrário do que defende o polémico ‘guia’ da CIG que, entre as suas sugestões, exclui os pais de aceder a informação crucial e de darem o devido consentimento a questões relativas aos seus filhos).

    Se a ‘Maria’, adulta, nascida mulher, sentir e decidir que passa a ser o João, tem esse direito. E se o ‘João’ engravidar, tem o direito de pedir para que na maternidade seja endereçado como João e seja tratado como ‘ele’ e não ‘ela’. Mas jamais pode uma franja da população, como é o caso das pessoas que decidem adoptar um outro género, ditar o fim da Mulher e dos direitos de todas nós à existência enquanto tal, designadamente nos documentos oficiais sobre Saúde.

    São um insulto e uma ofensa às mulheres todas as políticas que a DGS está a seguir nesta matéria, de mão dada com a CIG. Mais do que absurdo, é um crime de ódio contra as mulheres.

    Ou seja, para não se ‘ofender’ ‘homens’ (nascidos mulher) ou ‘não-binários’ quando engravidam e menstruam, decidiu-se que é normal ofender as mulheres e eliminá-las da literatura de Saúde e materno-infantil. Isto é um crime de ódio. Puro.

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    A mulher não tem de se sentir culpada por ter espaços únicos para si, como casas-de-banho, onde tem garantias de segurança e privacidade. Nem tem de ser sentir com vergonha e medo de defender os seus direitos. A normalização da ‘blame and shame‘ da mulher nas políticas de inclusão é inaceitável. / foto: D.R.

    Dir-me-ão que são assuntos diferentes dos casos de Numeiro e de Milhão. Que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Que a DGS e a CIG estão é a promover a ‘inclusão’. Sim, excluindo a Mulher. Para sempre.

    Dir-me-ão que se tiver esta opinião sou ‘transfóbica’, ‘terf‘ ou intolerante. Que o digam. Sempre tive, desde o liceu, amigas e amigos ‘gay‘. Muitos deles defendem, há muito, exactamente o mesmo que eu: a tolerância e a inclusão não são um ‘passe’ para eliminar os direitos fundamentais de um grupo inteiro de seres humanos. Incluindo a liberdade de expressão. (E veja-se o caso das lésbicas que, em alguns países, estão a ser forçadas a receber nas suas organizações e reuniões homens que agora se afirmam como mulheres.)

    Nós, mulheres, já ouvimos de tudo ao longo das nossas vidas. Já tolerámos muito. Está na altura de dar um murro na mesa. Trabalhámos em ambientes misóginos, sexistas, patriarcais, homofóbicos e racistas. Aturámos assédio que fingimos não ver para não ficar sem trabalho. Vimos colegas homens ganhar mais do que nós, sem terem mérito.

    Rita Sá Machado, directora-geral da Saúde (ao centro) no programa ‘Praça da Alegria’, da RTP. Sob a sua batuta, a DGS tornou-se misógina e eliminou a palavra Mulher da terminologia de saúde feminina e materno-infantil, com a justificação da inclusão de outros géneros. / Foto: D.R. / RTP

    Mas, hoje, em Portugal, a ideia de que a Mulher não merece existir tem sido promovida pela CIG. E pela DGS. E pela UMAR. E por organizações que têm beneficiado de fundos financeiros (incluindo comunitários) que pagam programas e iniciativas que tenham a palavra ‘género’ ou ‘inclusão’. Por psicólogos, médicos, personalidades e ‘influencers‘ que têm lucrado com a indústria do género e em torno da suposta promoção da inclusão. É de uma indústria que se trata.

    (E mesmo na inclusão, a CIG e outras entidades têm trabalho a fazer. Quando, a 13 de Novembro de 2024, o PÁGINA UM noticiou o aumento de violência doméstica sobre homens — alguns possivelmente agredidos pelo parceiro homem —, a CIG minimizou o assunto e a APAV-Associação Portuguesa de Apoio à Vítima nem se dignou a responder ao nosso pedido de comentário e de sugestão de medidas de apoio às vítimas.)

    Será que se, de repente, houver mais fundos comunitários e de fundações para apoiar projectos de defesa da Mulher, a CIG e todas as associações e psicólogos não mudariam as suas estratégias e ‘guias’?

    Inclusão é receber o outro, sem nos anularmos a nós. É integrar e abrir os braços ao diferente, mantendo os nossos direitos. Sem eliminar o que se conquistou com sangue e sofrimento.

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    Nos últimos anos, tem havido um recuo nos direitos das mulheres e na sua protecção. Nos pódios do desporto feminino, as mulheres e raparigas foram substituídas por pessoas que nasceram com o sexo masculino, e que têm óbvias vantagens físicas. Em alguns países, deixaram até de ter casas-de-banho e vestiários exclusivos, colocando em risco a segurança de meninas e mulheres. Até foram substituídas em concursos de beleza. Contudo, quem tem ousado falar sobre estes temas e defender os direitos das mulheres, é alvo de insultos, ameaças, censura e até violência e perseguição. Sobre isto, nem uma palavra das entidades que promovem a ‘inclusão’. / Foto: Sam McNamara

    A Mulher tem direito a existir. Tem direito a decidir sobre o seu corpo. Tem soberania sobre o seu corpo. Sobre o que entra e toca no seu corpo. E sobre o que quer para si e para a sua saúde, física e psicológica. Sobre o que quer para a sua vida. A Mulher é soberana. E tem direito a sentir-se segura. E respeitada.

    Numeiro é claramente alguém que percebeu como atrair seguidores. Milhão é alguém que defende que a Mulher não deve ser soberana sobre o seu corpo e alguém que defende que sejam retirados direitos humanos a todas as mulheres.

    Já a DGS e a CIG querem eliminar a Mulher, por completo. Não ao murro, à estalada, à facada, como fazem maridos e namorados agressivos e criminosos. Mas ao abrigo das leis que ajudam a criar. Querem eliminar a Mulher e já o fizeram, ao excluir o nome Mulher da terminologia de Saúde feminina.

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    Foto: Reed Naliboff

    A CIG e a DGS institucionalizaram o ódio contra a Mulher. Que Numeiro e Milhão se achem no direito de fazer anúncios e publicações misóginas é muito mau e condenável. Que entidades públicas o façam, a coberto da ‘inclusão’, é um crime.

    Numeiro e Milhão são meros alunos. A CIG e a DGS têm sido as professoras. A CIG e a DGS são as Mentoras nesta nova vaga de ódio à Mulher em Portugal.

    Além da CIG, há que salientar o papel de organizações como a UMAR-União de Mulheres Alternativa e Resposta, na tarefa de varrer a Mulher para debaixo do grande tapete da ‘inclusão’.

    O acto de a CIG apresentar queixa contra Numeiro não a iliba das suas culpas na criação dos ‘Numeiros’. Esta queixa não espia a culpa que a CIG tem no cartório. Só a torna mais evidente.

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    Foto: D.R.

    Jamais seria capaz de fazer uma interrupção voluntária de gravidez. Para mim, o momento da concepção é divino e, desde o primeiro momento, um ser humano existe. Mas defendo o direito de outras mulheres terem a opção de fazer essa escolha e de a exercer de forma segura, sem serem presas e condenadas.

    A CIG quer ser o carrasco de Numeiro. Mas enquanto a CIG existir como existe agora, mais Numeiros nascerão. Porque o ódio às mulheres vive e prospera. Através da CIG e da DGS. E isso é, infelizmente, evidente para todas, nós. Mulheres.

  • Direito de resposta ao artigo “Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas”

    Direito de resposta ao artigo “Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas”


    Direito de resposta, ao abrigo do artigo 24.º, e seguinte, da Lei da Imprensa, referente ao artigo Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas


    Num exercício de jornalismo-tainha, que confunde investigação com mera consulta de fontes abertas, prática a que nos tem habituado ao longo dos anos, publicou o site que V. Ex.ª dirige uma notícia sobre o congresso “Uma Cidade para Todos”, organizado dia 28 de maio pelo Correio da Manhã.

    Nessa notícia, e com a alegação de que a autarquia lisboeta terá pag[ad]o “147.600 euros à Medialive”, caracteriza-se esta organização como “promiscuidade sem recibo”, sugerindo uma transacção comercial que visaria comprar a minha consciência.

    Ora, quero deixar bem claro que não admito essa insinuação insidiosa.

    Não tolerarei lições de ética nem de moral de ninguém, nem estou disponível para admitir que se lancem atoardas sobre a minha independência ou sobre a independência do jornal que dirijo.

    A minha liberdade e a minha independência, tal como as das minhas equipas e do projeto que dirijo, não são transacionáveis por nenhum dinheiro do mundo, como, aliás, os nossos leitores e espectadores bem sabem.

    Quero também deixar claro, e de uma vez por todas, que a participação nesta, como em qualquer outra conferência, não pode ser confundida com publicidade.

    Discursar, apresentar ou moderar debates em eventos públicos organizados pela nossa empresa nunca, jamais, em tempo algum será influenciado pelo modelo de financiamento, seja ele qual for.

    Misturar estes conceitos visa unicamente denegrir e espezinhar a dignidade profissional dos jornalistas visados, entre os quais me incluo.

    Insinuar que deixarei de ser o jornalista livre que sou há 33 anos, dia por dia, simplesmente por dar os boas-vindas a participantes num congresso porque os custos da organização são partilhados com um qualquer parceiro seria tão cobarde e canalha como insinuar que o site que V. Ex.ª dirige me ataca porque não obteve determinado investimento, ou, pior ainda, que não investiga as tropelias no alojamento local porque vive de rendimentos similares em Lisboa.

    Ora, quero garantir-lhe que jamais ouvirá da minha boca esse tipo de ataques, vis, torpes e soezes.

    Aproveito para endereçar-lhe afetuosos cumprimentos.

    Carlos Rodrigues

    Director-Geral do Correio da Manhã e da CMTV

    N.D. O PÁGINA UM desconhece o significado de “jornalismo-tainha”. Jamais utilizou a expressão “promiscuidade sem recibo”; só usou a expressão “promiscuidade”. Em vez de alegações, apresentou documentos. Diverge na concepção sobre fontes abertas – aliás, tem batalhado precisamente para que toda a informação administrativa seja pública. A notícia refere um contrato de prestação de serviços em que a autarquia de Lisboa pagou um serviço executado por jornalistas. O director do PÁGINA UM revela todos os seus interesses (económicos, sociais e ideológicos) numa Declaração de Transparência, desde a fundação do jornal, ao contrário do director do Correio da Manhã. Os homens não são aquilo que dizem; são aquilo que fazem.

  • O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado

    O Humor nos tempos do puritanismo: até o Diabo será censurado e encarcerado


    Vivemos em tempos perigosos para o pensamento. Tempos de lápis azul digital, de fogueiras morais disfarçadas de virtude cívica, de censores de toga que não se chamam Torquemada mas se julgam apóstolos da redenção social. Tempos em que, dos jornais aos tribunais, passando por grupos de puritanos ideologicamente diversificados — com o zelo puritano dos convertidos —, se decide quem pode ou não fazer humor, quem pode ou não rir e, sobretudo, de quem se pode ou não fazer troça.

    A condenação do humorista brasileiro Léo Lins a mais de oito anos de prisão, por fazer piadas, marca um momento histórico sinistro — não apenas no Brasil, mas no mundo civilizado que supostamente defende a liberdade. Léo Lins foi acusado de “racismo recreativo”, um neologismo ideológico que traduz uma ideia perigosa: a de que o riso é admissível apenas quando sancionado pelos dogmas do politicamente correcto. Um riso domesticado, asséptico, higienizado — como se a função do humor fosse reforçar consensos em vez de os questionar.

    Léo Lins

    O caso de Léo Lins não deve ser olhado de forma isolada. Representa o sintoma máximo de uma metástase que alastra: a ideia de que as palavras ferem como punhais, que piadas são crimes, que perpetuam preconceitos e estereótipos, que a ironia é perigosa se não vier acompanhada de uma cartilha de inclusão. O humor sempre foi uma forma de transgressão simbólica. A sua função, desde Aristófanes aos Monty Python, passando até pelo nosso Gil Vicente, não é confortar nem elogiar, mas desestabilizar. Rir do poder, das convenções, dos dogmas — e também das fragilidades humanas. O humor é o último reduto da liberdade de pensamento porque recusa ser domesticado. A democracia não pode querer domesticar o humor, qualquer que ele seja, mesmo que se trate de uma má piada.

    Mas essa liberdade está agora em risco porque se está a impor uma nova moral que recusa a transgressão. Cada grupo social, cada identidade, cada tribo autoproclamada ofendida exige imunidade à crítica e santidade de tratamento. E quando todos exigem ser tratados como santos, o mundo torna-se um imenso altar de porcelana — onde ninguém ousa mexer sob pena de blasfémia. A consequência é terrível: o humor deixa de ser arte e torna-se liturgia. Não se pode rir de um judeu, de um indígena, de um obeso, de um deficiente, de uma mulher, de um transexual — e não tarda, não se poderá rir sequer de um banqueiro, de um político, de um padre ou de um juiz. Porque todo o riso, mesmo o mais leve, será interpretado como violência simbólica.

    Este moralismo não nasce da bondade — nasce de um desejo de controlo. Da vontade de impor o silêncio àquilo que perturba, àquilo que ironiza ou rasga o véu da perfeição socialmente encenada. E o problema não é a necessidade de defesa das minorias. O problema é a sua canonização — e a transformação da crítica, do sarcasmo e da caricatura num acto sacrílego.

    Pergunto-me: que escreveria hoje Gil Vicente? Ou melhor: que fariam hoje a Gil Vicente, se escrevesse agora aquilo que escreveu no século XVI?

    O dramaturgo português, pai do teatro em língua portuguesa, escreveu há mais de 500 anos peças onde ridicularizava padres libidinosos, almocreves aldrabões, prostitutas sem escrúpulos, velhas devassas, judeus gananciosos, frades desonestos, corregedores corruptos, sapateiros trapaceiros e, sobretudo, a falsa santidade dos que se julgavam virtuosos. A sua obra-prima — Auto da Barca do Inferno — é um desfile de estereótipos: o frade leva consigo a amante Florença; o judeu tenta comprar indulgência; o sapateiro gaba-se da sua religiosidade enquanto vende calçado falsificado; o cavaleiro quer entrar no Céu porque morreu em combate, esquecendo-se dos seus pecados de soberba e opressão. É o julgamento universal, sim, mas feito com escárnio e maldizer.

    Praticamente todas as personagens vicentinas seriam hoje canceladas à primeira leitura. Representar o Frade seria tido como ofensa à fé católica. A Florença, exemplo flagrante de objectificação misógina. O Judeu, manifesto de antissemitismo. O Almocreve, caricatura abjecta de classe. A Velha do Auto da Cananéia, puro idadismo intolerável. A moça de A Sibila Cassandra, mais um caso de misoginia estrutural. Os pastores e vaqueiros, alvo de acusação por ridicularização grotesca das populações rurais. E, inevitavelmente, algum zelador académico denunciaria Gil Vicente por exercer “violência simbólica interseccional”.

    Aquilo que hoje passa por sensibilidade é, na verdade, censura travestida de virtude. A arte, incluindo a ficção, está a perder o direito de ofender. E até o humor está a perder o direito de errar. Porque todo o erro é lido como malícia, toda a sátira como agressão, toda a caricatura como opressão.

    É certo que há limites — sempre houve. Mas esses limites eram antes atribuídos pelo bom senso, pelo gosto, pela reacção do público — pela sociedade no seu todo, não por um tribunal inquisitorial. Quando um juiz define o que é aceitável no humor, o riso morre. E quando o riso morre, nasce o medo. O medo de escrever, o medo de representar, o medo de rir.

    Chegamos à conclusão de que Gil Vicente viveu, afinal, com mais liberdade do que os artistas de hoje. Escreveu as suas peças na transição entre a Idade Média e o Renascimento, quando Portugal ainda não conhecia a Inquisição formal — e mesmo depois desta surgir, o seu génio sobreviveu porque o ridículo era aceite como forma de crítica social. Hoje, porém, não vivemos um Renascimento, mas aparentemente uma nova Idade das Trevas, onde os censores não queimam livros — cancelam ou prendem pessoas.

    Eis a hipocrisia do nosso tempo: grita-se liberdade enquanto se ergue um muro de vigilância moral à volta de cada palavra. Dissimula-se a censura com o pretexto da inclusão. E, enquanto isso, o humor, que é um acto de coragem, torna-se um acto de risco judicial.

    Os novos inquisidores têm medo do riso porque sabem que ele desmonta as verdades absolutas. Rir de alguém não é odiá-lo — é reconhecê-lo como humano. A sátira aproxima mais do que afasta. Vivemos um tempo de pseudohipocriasia: essa mistura tóxica de hipocrisia e exigência histérica de perfeição, que quer proteger os indivíduos do mundo em vez de os preparar para ele.

    Se Léo Lins fosse condenado por incitar à violência, à perseguição, ao ódio concreto, não haveria polémica. Mas foi condenado por palavras ditas num espectáculo de comédia — por piadas. E isso deve aterrorizar-nos, porque o que hoje se aplica ao humorista, amanhã aplicar-se-á ao cronista, ao romancista, ao jornalista, ao historiador.

    O problema do nosso tempo não é a ofensa — é a intolerância a qualquer dissonância. Não é a violência das palavras — é a fragilidade de quem se recusa a ouvi-las. E, quando a fragilidade se transforma em arma de poder — então sim, já não rimos. Trememos.

  • O valor do jornalismo, o preço da independência

    O valor do jornalismo, o preço da independência


    Numa postura de transparência que sempre me impus no início do projecto do Página Um, em finais de 2021, apresentamos e divulgamos os resultados financeiros de 2024da microempresa que gere este jornal. Quando os vejo, e tendo presente tanto os contratos despesistas do Estado como os balanços catastróficos das grandes empresas de media em Portugal, não posso deixar de sorrir — mas é um sorriso com amargura.

    O PÁGINA UM conseguiu, em 2024, mais um milagre. Sem publicidade. Sem parcerias comerciais. Com acesso livre a todos. Recebemos mais de 61 mil euros em donativos de leitores generosos e conscientes. Parece muito dinheiro — e é, tendo em conta o panorama actual da imprensa —, mas não é suficiente. O nosso orçamento mensal ronda os 5.000 euros, valor que cobre os custos operacionais do site, comunicações, despesas logísticas, renda da redacção, e o pagamento — em montantes que envergonhariam qualquer tabela sindical — de dois jornalistas fixos. Não há desperdício. Não há luxos. Não há salários dourados.

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    Todos os dias, ao consultar o extracto bancário do PÁGINA UM, agradeço em silêncio cada apoio que surge. Só a falta crónica de tempo — esse tempo que se gasta a investigar, confirmar, redigir, editar — impede que cada contributo tenha o agradecimento personalizado que merece. Mas todos os nossos apoiantes sabem que este jornal não seria possível sem eles. E sabem também que nunca fizemos dívidas, nunca apresentámos prejuízo.

    Com um capital social de apenas 10 mil euros, a empresa que detém o PÁGINA UM cumpre religiosamente todas as obrigações fiscais e sociais. O único valor registado no passivo de 2024 referia-se ao IRC — que, aliás, já está pago. Temos orgulho nesse rigor. Somos pequenos, sim, mas somos íntegros.

    Esse rigor é também o que nos permite apontar o dedo à promiscuidade e à irresponsabilidade reinantes noutros lados da imprensa. Veja-se o caso paradigmático da Trust in News. Com o mesmo capital social de 10 mil euros, conseguiu, não se sabe bem como, manter uma operação com mais de duas centenas de empregados — mas acumulou também um passivo superior a 30 milhões de euros, dos quais metade são dívidas ao Fisco e à Segurança Social. E o seu dono, Luís Delgado, continua serenamente a acumular dívida, enquanto atira a credibilidade do jornalismo português para a sarjeta.

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    No PÁGINA UM, recusamos esse caminho. Preferimos não crescer a qualquer preço. E essa decisão tem custos. Apesar de tudo aquilo que conseguimos construir nos últimos três anos — credibilidade, impacto, notoriedade — há uma frustração que persiste nos números. Temos hoje cerca de meio milhar de apoiantes regulares, que nos financiam com o que consideram justo e possível. É, na prática, a aplicação espontânea e honesta do conceito económico de willingness to pay — a disposição individual a pagar por um bem imaterial que se reconhece como valioso.

    Esse princípio, aliás, é uma viagem à raiz do mais puro e nobre jornalismo: um contrato de confiança entre quem informa e quem quer ser informado com rigor, isenção e coragem. Não temos paywalls. Não exigimos quotas obrigatórias. Confiamos no julgamento dos leitores. E por isso cada euro doado vale mais do que mil de publicidade: é uma demonstração de respeito mútuo.

    Mas os desafios são reais. O crescimento das visitas — temos tido sistematicamente mais de 300 mil acessos mensais, chegando nalguns meses a ultrapassar os 400 mil — traz consigo uma exigência acrescida. Chegam-nos denúncias sérias, sugestões fundamentadas, propostas de investigação com potencial noticioso. E nós, por falta de meios humanos, por absoluta escassez de tempo, não conseguimos sempre responder. Sabemos o quanto isso é frustrante para os leitores. É também frustrante para nós.

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    Estamos, pois, num dilema. Não queremos desarmar. Mas temos consciência de que será cada vez mais difícil sustentar um projecto que se recusa a vender a alma, mas que está a exigir-me os limites. Precisamos de encontrar formas complementares de financiamento, para conseguir aumentar uma redacção que tem limites físicos, sem ceder um milímetro nos princípios que nos trouxeram até aqui. E a todos os que nos leem, vos deixo uma garantia: no dia em que sentir que a independência jornalística do PÁGINA UM está em risco de ser trocada por sobrevivência, será também o dia em que encerrarei este projecto.

    Mas esse dia não chegou. e nem quero que chegue — se continuarmos a merecer a confiança dos nossos leitores. Por isso, este é também um apelo: continuem connosco. Ajudem-nos a resistir. Acreditem que vale a pena fazer jornalismo livre, mesmo num país pequeno e com tantos interesses instalados. E saibam que, enquanto tivermos forças, estaremos aqui. Porque há coisas que ainda precisam de ser ditas. E, mais importante ainda, há verdades que ainda precisam de ser contadas.

    Obrigado a todos.

    Pedro Almeida Vieira

  • Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia

    Gouveia e Melo: um populista de farda como epitáfio da democracia


    Portugal vive hoje sob um regime político que se apresenta como democrático, mas que já não o é. Persistem as eleições, os parlamentos, os jornais, os partidos, os discursos inflamados na Avenida da Liberdade para comemorar o 25 de Abril. Não há perseguições nem presos políticos. Mas falta-lhes todo o resto. Falta já a substância.

    A democracia portuguesa – e, por extensão, a de toda a União Europeia – tornou-se um teatro de sombras, onde os actores se movimentam obedientes a um guião traçado por interesses supranacionais, alheios à vontade popular. A liberdade política esvai-se sem tiros nem quarteladas, numa erosão subtil, mas implacável, em que o cidadão comum é reduzido a figurante.

    Gouveia e Melo com Isaltino Morais.

    Tal como em Matrix, os portugueses continuam a acreditar que vivem numa democracia porque ainda votam, ainda discutem política, ainda protestam de vez em quando. Mas já não mandam. Já não decidem. Já não influenciam. O poder efectivo – aquele que determina o rumo da Economia, os modelos de governação, os critérios de financiamento, as regras sociais, os limites da acção individual e colectiva – reside noutras mãos. Mãos frias, cinzentas, instaladas em Bruxelas, Estrasburgo e Frankfurt. Mãos de burocratas não eleitos, ou eleitos por cliques governamentais sem qualquer representação directa de vontades nacionais. A Comissão Europeia, hoje desprovida de qualquer sentido de solidariedade ou humanismo, tornou-se uma instância autocrática que olha para os cidadãos como carne para canhão, peças sacrificáveis num tabuleiro de xadrez onde só importa proteger o rei e os bispos.

    Onde antes se vislumbrava um projecto de desenvolvimento económico e social, temos agora um modelo de gestão tecnocrática e autoritária, que invoca a “governança” para justificar a opressão fiscal, a vigilância digital, a neutralização da dissidência e o esvaziamento do Estado-Nação. Em nome da estabilidade, da transição ecológica, da saúde pública ou da “resiliência”, tudo é permitido – menos resistir.

    A comunicação social mainstream, falida e dependente cada vez mais do ‘oxigénio’ das corporações e do Estado – porque os seus clientes tradicionais, os leitores, já não lhe concedem a credibilidade e o valor económico de outrora –, traiu os seus princípios. Neste novo cenário, deixou de ser watchdog para ser o petdog, abanando a cauda a cada migalha do poder.

    Portugal, outrora nação soberana, é hoje um protectorado sem identidade política – mais submisso aos ditames dos comissários europeus do que o foi à Coroa espanhola entre 1580 e 1640. A diferença é que, ao menos, o domínio filipino não disfarçava a sua natureza. Hoje, os nossos dirigentes sorriem, assinam, bajulam e até agradecem por sermos tutelados. E não são apenas os burocratas estrangeiros os culpados: são, sobretudo, os nossos próprios políticos, que cedo perceberam que em Bruxelas há mais poder, mais visibilidade e melhores poisos do que em São Bento. De Durão Barroso a António Costa, temos assistido a uma sucessão de ambiciosos que trocaram a lealdade à pátria pela ascensão nas hierarquias internacionais. Portugal serve já apenas como trampolim.

    E, no entanto, os tempos difíceis não surgem apenas do exterior. A deriva antidemocrática alastra também no plano interno, disfarçada sob novas roupagens. Se muitos se escandalizam com o Chega – e bem, diga-se, pois a retórica populista não oferece soluções, apenas ressentimentos –, poucos se apercebem de que o verdadeiro risco está na emergência de uma nova direita pretensamente respeitável, que nasce das borralhas de um antigo PSD e CDS e que se tenta reabilitar à boleia de uma figura tão popular quanto perigosa: o Almirante Gouveia e Melo.

    Há quem trema com os apoiantes do Chega. Eu tremo tanto ou mais com os que se juntam, discretamente, em redor de Gouveia e Melo. Começa-se pelo novo BFF (best friend forever) do Almirante: Isaltino Morais, o velho cacique que gere Oeiras como um paxá num feudo medieval. Junte-se-lhe Rui Rio, o ex-presidente do PSD, agora mandatário da candidatura a Belém, com contas a ajustar com os seus ‘fantasmas’ que o impediram de ser primeiro-ministro. Adicione-se ‘senadores’ reformados do PSD ou derrotados do CDS, bem da vida por terem aproveitado da rede de contactos políticos uma existência inteira, mas saudosistas das luzes da ribalta, como Ângelo Correia, António Martins da Cruz e Francisco Rodrigues dos Santos. Esta frente discreta, mas não menos inquietante, de figuras em busca de redenção ou vingança compõe um coro de sombras que encontra em Gouveia e Melo uma âncora, um novo D. Sebastião vestido de almirante. É isso que tentam vender.

    Gouveia e Melo com Rui Rio.

    Aliás, de entre os sete fundadores e membros da direcção de apoio ao AlmiranteHonrar Portugal, que curiosamente repete uma denominação com laivos de Estado Novo de um grupo de pensamento do Chega no Facebook –, não é de admirar que haja quatro especialistas em marketing, porque Gouveia e Melo é um produto apenas com embalagem: Carlos Sá, Catarina Santos Cunha, Manuel Vaz e Tiago Mogadouro. De facto, bem precisam de vender um senhor que de carisma tem zero, sem um pensamento teórico, político ou social minimamente estruturado sobre assunto algum, que lê o teleponto como um boneco de cera – talvez seguindo as recomendações de Tiago Mogadouro, que é director-geral do Museu Madame Tussaud, em Nova Iorque.

    Mas mais preocupante ainda é ver neste grupo avançado de lugares-tenentes de Gouveia e Melo – que se tornou conhecido por ter sido o director logístico de um produto (vacinas contra a covid-19) durante três trimestres – uma constitucionalista, Teresa Violante, que já defendeu, sem pudor, que houve, sim, atropelos constitucionais durante a pandemia, mas que tal problema se resolve facilmente: basta mudar a Constituição. Talvez também queira mudar a Constituição para que os atropelos cometidos por Gouveia e Melo, na sua sanha justiceira a bordo do NRP Mondego, se tornem legais.

    É este o perigo de se embarcar em populistas – que é exactamente aquilo que Gouveia e Melo é. Se a lei incomoda, muda-se a lei. Se os direitos atrapalham, cortam-se os direitos. Tudo pela eficácia – e ele já defendeu ser contra a burocracia, porque, hélas, promove a corrupção. A democracia, com os seus equilíbrios, os seus freios e contrapesos, os seus incómodos, é hoje vista como um obstáculo.

    O problema da crise dos partidos tradicionais, que fizeram crescer os populismos e os extremismos, faz também ‘nascer’ este tipo de figuras que, tal como André Ventura, querem mudança – mas essa mudança vem acompanhada de veneno. Em vez de vir revestida de ideias, vem mascarada com palavras como “modernização”, “responsabilidade” ou “realismo”. Traz, na verdade, um conteúdo bem mais sinistro: menos democracia, mais controlo.

    Gouveia e Melo é o rosto ideal para esta operação – e será talvez o mais desejado aliado, mesmo que involuntário, de André Ventura. Se Gouveia e Melo for eleito para Belém, aí teremos um populista sem ideias – ou com ideias feitas por outros –, mas com farda e voz grave. Um produto de marketing, com teleponto e conselheiros. Um símbolo de autoridade artificial, que seduz quem anseia por ordem, mas não percebe que está a abrir caminho ao autoritarismo. A ascensão de Gouveia e Melo não representa apenas um risco político: representa um sinal de desespero democrático. Quando o povo deposita as esperanças num almirante vazio de pensamento, é porque já perdeu a confiança nos partidos, nas instituições, na democracia em si mesma.

    Portugal vive, pois, um tempo de simulacro: simulacro de soberania, simulacro de debate, simulacro de escolha. E como em todos os simulacros, o espectáculo continua – com Gouveia e Melo em Belém seguirá, pois, em agonia, já sem alma, sem sentido e sem verdade.

  • Médicos: o escândalo do Adicional

    Médicos: o escândalo do Adicional


    “Exclusivo: dermatologista ganhou 400 mil euros por 10 dias de trabalho no maior hospital público do país”. Este título sensacionalista abriu uma autêntica caixa de Pandora, cujos segredos ainda mal começaram a ser revelados. Tudo começou “a propósito de um caso”, mas rapidamente se multiplicaram as denúncias de situações semelhantes, envolvendo alegados abusos de médicos que, contornando o sistema, chegam a auferir entre 20 e 30 mil euros por mês.

    Os médicos envolvidos nestes “esquemas”, a confirmarem-se as acusações, terão usado o chamado Adicional para benefício próprio. Se assim for, não merecem comiseração. Mas para compreender o verdadeiro problema, convém olhar para a floresta e não apenas para a árvore.

    O Programa Adicional foi criado com o objectivo de reduzir as listas de espera — particularmente em especialidades com maior atraso, como a oftalmologia e a ortopedia — oferecendo incentivos financeiros para trabalho fora do horário habitual.

    Na prática, e sob orientação do Ministério da Saúde, as administrações hospitalares industrializaram o Adicional. Os blocos operatórios passaram a funcionar para lá do horário normal, incluindo sábados e domingos. O horário habitual manteve-se pouco produtivo, enquanto os turnos extra se transformaram em verdadeiras linhas de montagem. Para tal, seleccionam-se os casos mais simples e rápidos, maximizando a produção (e a facturação). Sem esta “desnatação”, os resultados impressionantes seriam impossíveis.

    Quem beneficia? Não são apenas os médicos. Enfermeiros, técnicos, auxiliares — todos recebem remuneração adicional. As administrações hospitalares asseguram financiamentos extra e os fornecedores de consumíveis registam aumentos consideráveis nas vendas.

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    Quando se operam 30 cataratas, compram-se 30 lentes intraoculares. Quando se realizam 6 próteses da anca, adquirem-se seis próteses. Quando se corrigem 12 hérnias com recurso a redes protésicas, estas têm de ser compradas.

    Segundo estimativas actuais, o custo médio de uma lente intraocular ronda os 950 euros, enquanto o de uma prótese total da anca varia entre 1.200 e 4.000 euros. Se, num domingo tranquilo, um hospital distrital realizar 30 cirurgias às cataratas e 6 próteses totais da anca, o SNS despende cerca de 40 mil euros apenas em próteses (28.500 euros em lentes e 12.000 euros em próteses da anca, a um valor médio de 2.000 euros).

    Um serviço de oftalmologia bem ‘adicionalizado’ pode gerar mais de 3 milhões de euros por ano só para o fornecedor de lentes. Imaginem as pressões que os administradores — pobrezinhos — devem sofrer para “adicionalizar” ao máximo… e até o próprio Ministério.

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    O leitor incauto questionará: «Mas não é importante tratar os doentes?». Sem dúvida. Mas vejamos os números de cirurgias às cataratas por 100.000 habitantes, segundo dados de 2022:

    • Portugal – 1.273
    • Bélgica – 950
    • Finlândia – 900
    • Dinamarca – 850
    • Países Baixos – 800
    • Hungria – 480

    É legítimo perguntar: estamos realmente a responder a uma necessidade ou a alimentar uma máquina?

    Disse, no início, que o caso dos 400 mil euros abriu uma caixa de Pandora — e é verdade. Mas não devemos esquecer que, segundo a lenda, o último item na caixa é a esperança. E é por acreditarmos que as coisas podem melhorar, que elas se mantêm em movimento.

  • Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida

    Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida


    Na Exposição Universal de Osaka, em pleno 2025, sobre a qual hoje escrevi para falar dos gastos, fiquei estupefacto com uma constatação: o pavilhão de Portugal optou por apresentar-se ao mundo sem uma única mensagem em português. Nas projecções que “recebem” os visitantes, apenas se lêem mensagens em japonês e em inglês. Presumo que a palavra Portugal apareça como Portugal porque assim se escreve em inglês.

    Esta aberração num projecto de quase 26 milhões de euros — que é o que custará aos cofres públicos a presença portuguesa em Osaka — não se trata de um lapso trivial. Trata-se de uma vergonha. Uma vergonha diplomática. Uma vergonha cultural. E, sobretudo, um acto de ignorância desmedida da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) sobre a própria História de Portugal — precisamente no Japão, um país onde o português foi, durante décadas, a língua da diplomacia, da fé, do comércio e da ciência.

    Ricardo Arroja e as “alminhas” da AICEP podem não saber da riqueza histórica entre Japão e Portugal, nem sempre pacífica quando mundos se contactam pela primeira vez. Mas, se tiveram mais de 13 milhões de euros para montar um edifício com 10 mil cordas, talvez por meia dúzia de patacas (não as de Macau, que isso é China) pudessem contratar um historiador.

    Se tiveram 200 mil euros para contratar a Ernst & Young para lhes fazer a contabilidade, poderiam ter contratado a decência para lhes explicar que, quando se promove Portugal, só se promove com a língua portuguesa, porque, como escreveu bem Fernando Pessoa (ou Bernardo Soares), “minha pátria é a língua portuguesa”.

    Num país que se envergonha pelo que faz no presente, parece agora querer vilipendiar o passado. Quer apagar da História Universal que o primeiro grande contacto da Europa com o Japão moderno foi feito por intermédio dos portugueses. Em 1543, três navegadores — António da Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto — ancoraram nas ilhas nipónicas, dando início a uma relação de trocas e fascínio mútuo que marcaria profundamente ambos os povos.

    Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação, misto de verdade e ficção, reclama para si um lugar nesse feito inaugural, descrevendo com minúcia a sua chegada ao Japão, o assombro dos locais perante as armas de fogo portuguesas e o espanto recíproco perante os costumes e a cultura. É dele um dos primeiros retratos europeus do Japão — colorido, cheio de admiração e revelador de um encontro entre civilizações.

    Na sua narrativa, refere a entrega de espingardas a um senhor feudal japonês e o impacto profundo que esse gesto teve, ao ponto de modificar para sempre o modo como os japoneses concebiam a guerra. Mais do que uma crónica de aventuras, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é um testemunho vivo da presença portuguesa no Japão do século XVI. E é, também, um monumento literário que dá voz à nossa língua nas lonjuras do Oriente.

    Recorde-se ainda que Francisco Xavier, missionário jesuíta português, foi um dos primeiros evangelizadores do arquipélago. A cidade de Nagasáqui foi doada aos jesuítas portugueses. A primeira gramática da língua japonesa foi redigida por um português. A imprensa de tipos móveis foi introduzida por missionários portugueses. A língua portuguesa foi, até ao século XVII, o veículo oficial da comunicação dos japoneses com o mundo. Que país mais poderá reivindicar tal feito no Japão?

    E como poderemos honrar, com esta postura, esse insigne vulto que foi Wenceslau de Moraes, que nos deixou um legado sobre o Japão em tantos escritos? Logo ele que, por lamentável ironia, até foi cônsul em Osaka…

    E, no entanto, o Portugal de 2025 apresenta-se no Japão ignorando a sua própria língua — como se o português fosse um fardo do passado, um acessório irrelevante, uma relíquia a esconder. Como se a língua de Camões e de António Vieira, de Eça e de Pessoa, não merecesse aparecer agora num dos países que primeiro a escutaram no Extremo Oriente. Este apagamento não é casual. É sintoma de um Estado que já não se entende como Nação, que prefere o inglês da conveniência ao português da identidade.

    Numa era em que o multiculturalismo é brandido como bandeira, Portugal é dos poucos países que insiste em esconder a sua Cultura para parecer moderno. Mas não há modernidade possível sem memória. E não há presença internacional digna quando se abdica da própria língua — sobretudo quando essa língua é um dos maiores legados da presença portuguesa no Japão.

    O pavilhão português em Osaka já não é apenas um edifício; é uma metáfora da forma como o Estado português se vê a si mesmo: envergonhado da História, ignorante do seu papel no Mundo, submisso aos ditames de uma comunicação global onde tudo se quer nivelado, uniformizado, sem raízes.

    Não sou dado a sentimentalismos patrioteiros nem a arroubos diplomáticos, e muito menos me comovem cortejos de bandeiras ou salamaleques culturais. A minha pátria — como bem disse Pessoa — continuará a ser a língua portuguesa. Não me indigno demasiado com quem tropeça no português por ignorância — isso tem cura. Mas o que já me enoja é a opção consciente de apagamento da língua que nos define, como se se varresse Camões para debaixo de um tapete institucional ou se riscasse Pessoa das vitrinas da História.

    Com a indiferença burocrática dos que não percebem que se pode vender um país em silêncio, bastando para isso omitir-lhe a fala, a AICEP não cometeu apenas um deslize administrativo — trata-se de um acto simbólico de rendição cultural. E a rendição, quando feita sem disparar um só alfabeto, é ainda mais vergonhosa — porque já nem é traição: é desistência.

  • Lisboa não é Portugal: como a cegueira elitista urbana alimenta a ruptura politica no país real

    Lisboa não é Portugal: como a cegueira elitista urbana alimenta a ruptura politica no país real


    Mais do que a confirmação de não ser necessária a ética para se ser primeiro-ministro em Portugal – com a vitória em minoria (39% do Parlamento) de Luís Montenegro –, as eleições legislativas de ontem deixaram claro que o país político que habita a cidade de Lisboa está cada vez mais desligado do restante território nacional. A velha máxima “Portugal é Lisboa, e o resto é paisagem” já não tem graça — tornou-se um diagnóstico clínico da arrogância das elites urbanas, políticas e mediáticas, sobretudo à esquerda do Partido Socialista, que vivem encerradas nas suas redomas ideológicas, incapazes de compreender os sinais de desconforto e insatisfação que se acumulam há anos fora da capital política e mediática.

    A evolução entre os resultados eleitorais de 2024 e 2025 no concelho de Lisboa e no país – e mesmo na Área Metropolitana de Lisboa – é reveladora dessa dissonância. E não tanto pelo chamado Bloco Central, que governa alternadamente desde 1975, e que pragmaticamente não são assim tão diferentes na praxis política. Na capital, é certo que estas forças partidárias desceram, no seu conjunto, de 58,52% no ano passado para 54,95%, mas não fogem muito do desempenho nacional: no ano passado, o Bloco Central registou 56,84%, enquanto este ano ficou, por agora, nos 56,10%.

    Mariana Mortágua, ontem a votar: um hara-kiri político quando se olham para os problemas do país com ideologite. Foto: BE

    No caso do Chega, a sua votação no concelho de Lisboa é francamente pior do que no global do país. No ano passado, o partido de André Ventura teve apenas 11,73% na capital, quando teve 18,07% no país (diferença de 6,34 pontos percentuais); ontem, contabilizou 14,53% em Lisboa e 22,56% no país (8,03 pontos percentuais).

    A grande diferença está no facto de, em Lisboa, existir uma forte presença dos partidos da ‘esquerda alternativa’ – a denominação que prefiro; ou ‘radical’, como muitos lhes chamam –, ou seja, no Livre, Bloco de Esquerda e PCP. Estes partidos, e o seu eleitorado urbano, conseguiram suster o crescimento da simplificadamente chamada ‘extrema-direita’ sem se aperceberem das mudanças sociais, dos desafios, das necessidades do país, porque já não saem sequer das suas freguesias e da sua bolha. Atacam com eficácia o ‘papão da extrema-direita’ que gravita nos media, mas não criaram condições para atacar os problemas sociais e económicos que alimentam o dito ‘papão’.

    Senão vejamos: no concelho de Lisboa, o Chega continua com ‘dificuldades’ de penetração, porque a ‘esquerda alternativa’ mantém os seus bastiões. Nas eleições de ontem, no seu conjunto, Livre, Bloco de Esquerda e PCP conseguiram 15,76%, superando os 14,53% do partido de André Ventura. Repetiram 2024: Livre, Bloco de Esquerda e PCP tiveram na capital 16,25% dos votos; o Chega ficou então pelos 11,73%.

    Luís Montenegro, vitória com 39% dos deputados no Parlamento, confirma que a ética se afastou definitivamente da política. Foto: PSD.

    No entanto, Lisboa é um excelente exemplo do falhanço da ‘esquerda alternativa’ – porque do Bloco Central não se pode esperar muito perante o esgotamento de 50 anos de ‘serviços’ prestados à Nação. Achar que as questões de segurança e de imigração – os bastiões do Chega – são falácias e meras percepções, ou que são discursos xenófobos ou racistas, encerrando-se o tema colocando-o como tabu, foi um dos erros crassos da esquerda.

    E basta olhar para algumas freguesias, colocando uma singela pergunta: qual a razão para que, mesmo em Lisboa, na elitista freguesia de Belém, o Bloco Central tenha contabilizado 59,78% e o Chega apenas 9,95% (ficou em quarto, atrás da Iniciativa Liberal), mas em Marvila o partido de André Ventura tenha vencido com 31,09%, tendo o Bloco Central registado apenas 47,08%? Ou então, como é possível a ‘esquerda alternativa’, tradicionalmente mais preocupada com os injustiçados, conseguir menos eleitores na ‘marginalizada’ Marvila (10,96%) do que nas abastadas freguesias de Belém (12,91%), Campo de Ourique (15,71%) e Avenidas Novas (14,21%)?

    O fenómeno de perda de noção do país por parte de uma certa clique política, social e da comunicação social lisboeta adensou-se com a crescente endogamia profissional, cultural e ideológica. Os jornalistas e opinion makers vivem e trabalham nos mesmos bairros, frequentam os mesmos círculos sociais e partilham códigos morais e linguísticos que os afastam da maioria da população. Esta homogeneidade de visões faz com que, mesmo sem má-fé, olhem para o país a partir de uma lente distorcida. Incapazes de escutar o que se diz nas ruas de Marvila, nos subúrbios de Sintra ou nas praças de Beja, produzem análises e manchetes que apenas confirmam o que já pensavam antes de sair da redacção — se é que saem.

    Rui Tavares: Livre reforçou a sua presença no Parlamento num contexto de perda de influência da ‘esquerda alternativa’, e ganhando votos sobretudo nas zonas mais elitistas. Foto: Livre.

    Os resultados estão agora à vista. Basta atravessar o Tejo ou afastar-se alguns quilómetros do Marquês de Pombal para ver como o país já está divorciado de Lisboa. No próprio distrito da capital, o Chega foi o partido mais votado em cinco concelhos: Alenquer, Azambuja, Sintra, Sobral de Monte Agraço e Vila Franca de Xira — este último com mais de 26% dos votos. Ou seja, a escassos 30 minutos da capital, o Chega ultrapassa largamente os 14,5% obtidos no concelho lisboeta, chegando em alguns casos a mais do dobro da sua expressão na cidade.

    No distrito de Setúbal, o cenário é ainda mais paradigmático: o Chega venceu o distrito e foi o partido mais votado na Moita, Montijo, Palmela, Seixal, Setúbal, Sesimbra e Sines. São territórios urbanos e suburbanos densamente povoados, com historial de voto tradicionalmente à esquerda, agora convertidos em bastiões de um partido que tem como bandeiras a segurança, a imigração e o combate à corrupção. O Chega venceu também em Faro – como já ocorrera no ano passado, o que mostra que não foi um acaso –, em Portalegre e até em Beja. Não é o “Portugal profundo” que está a mudar — é o país metropolitano não lisboeta que se revolta contra uma elite urbana que o ignora sistematicamente.

    É aqui que reside o problema. A comunicação social, enraizada quase exclusivamente em Lisboa, e que tem como estratégia brandir o ‘bicho-papão’ da ‘extrema-direita’, continua a olhar para o país com lentes deformadas. Ignora ou menospreza os temas que verdadeiramente mobilizam milhões de eleitores, sobretudo fora dos grandes centros urbanos mais ricos. Pior: quando esses temas emergem com força eleitoral — como a imigração e a segurança — são imediatamente classificados como “discursos de ódio”, “populismo” ou “alarmismo”. Esta resposta reflexa, moralista e simplificadora não só revela uma profunda incompreensão da realidade, como também contribui para o crescimento do fenómeno que se pretende combater.

    Apenas três anos depois da mairia absoluta de António Costa, em Janeiro de 2022, o Partido Socialista tem o pior resultado das últimas quatro décadas e arrisca nem sequer liderar a Oposição. Foto: PS.

    É um erro crasso da esquerda política e comunicacional pensar que pode derrotar o Chega silenciando as suas bandeiras. A segurança e a imigração não são fantasmas inventados por agitadores — são preocupações reais, mesmo que nem sempre sustentadas por estatísticas. E, em política, como se sabe, as percepções são quase tão relevantes como os factos. Quando uma família em Loures sente medo de sair à noite, ou quando um trabalhador rural no Alentejo vê os salários a baixar devido à exploração de mão-de-obra estrangeira em condições precárias, não adianta dizer-lhe que tudo está dentro dos parâmetros europeus. A sensação de insegurança e injustiça instala-se. E quem a vocaliza com clareza ganha terreno.

    A esquerda urbana, em vez de enfrentar estas questões, refugia-se numa superioridade moral que aliena os eleitores. Fala de inclusão, diversidade e cosmopolitismo com o fervor de quem nunca precisou de partilhar um hospital público superlotado ou de viver em zonas onde o Estado já mal chega. Esta esquerda prefere desconstruir conceitos a resolver problemas, prefere aulas sobre “privilégios inconscientes” a propostas sobre habitação acessível promovida pelo Estado (e não tectos mno arredamento) ou policiamento de proximidade.

    Se quer recuperar influência junto do eleitorado popular, a ‘esquerda alternativa’ precisa de abandonar a sua torre de marfim e olhar o país nos olhos. Isso significa tratar a segurança como uma prioridade legítima — mesmo que, em muitos casos, o problema seja mais de percepção do que de realidade. Significa também promover um debate sério sobre imigração, livre de dogmas e preconceitos, que reconheça as necessidades económicas do país, mas também a pressão social que uma imigração mal gerida pode causar. E mais: sobre as condições desumanas em que vivem muitos destes imigrantes. É preciso encontrar um equilíbrio entre integração e exigência, entre acolhimento e responsabilidade, entre as condições de vida dos imigrantes e os direitos das populações locais.

    André Ventura: líder da extrema-direita, populista ou aproveitador da insatisfação? Quaisquer que sejam as causas do crescimento do Chega, o país está a divorciar-se das elites. Foto: Chega.

    Ignorar estes temas só serviu e servirá para os entregar de bandeja a quem os instrumentaliza com discursos fáceis. E não basta agora correr atrás do prejuízo com campanhas de fact-checking ou projectos de literacia mediática. O eleitorado não é estúpido nem manipulável ao sabor dos moralismos do momento. É informado, é atento, sente na pele o que vive, e sabe distinguir quem lhe fala com frontalidade de quem o trata como incapaz de compreender o que se passa à sua volta.

    O resultado das legislativas de ontem prova ainda o esgotamento do bipartidarismo tradicional, e isto também não são boas notícias para os partidos da ‘esquerda alternativa’, sobretudo se ficarem abaixo dos 10% ou, pior ainda, dos 5%, porque o método de Hondt os aniquila. Com a ascensão do Chega, o Bloco Central resiste, mas enfraquece: PSD e PS, juntos, valem hoje pouco mais de metade dos votos. O crescimento do Chega, a par da agonia do PCP, da irrelevância do BE e da (ainda) fragilidade do Livre e da Iniciativa Liberal, demonstra que os eleitores estão à procura de alternativas. Não se trata apenas de uma mudança de nomes — é uma exigência de respostas concretas. O eleitorado quer menos retórica e mais soluções, menos censura moral e mais escuta activa.

    É sintomático que os círculos de opinião mais activos nos media continuem a defender que o país sofre de um “problema de populismo”. Aquilo de que o país sofre, na verdade, é de um problema de elitismo urbano. Um elitismo que acha que votar Chega é uma aberração moral, mas que aceita como natural viver num país onde o acompanhamento médico se degrada, onde a escola pública está em colapso, onde os salários não chegam para pagar rendas nem alimentação, onde não há vigilância policial e o pequeno crime (que nem chega às estatísticas) prolifera até ameaçar ser grande, e onde os gastos públicos absurdos e sem transparência são um convite para a corrupção. A indignação selectiva é um luxo de quem pode escolher os seus problemas. O povo não pode.

    Partido Comunista Português: eleição após eleição, apenas fica satisfeito por sobreviver. Ver o Chega vencer em Beja e Setúbal é sobretudo um sinal da sua perda de capacidade de responder a uma população diviorciada das elites políticas. Foto: PCP.

    O Parlamento que agora se forma é mais plural, mais fragmentado e, paradoxalmente, mais representativo. Resta saber se os partidos que perderam influência saberão fazer a sua própria reflexão. A ‘esquerda alternativa’, em particular, que perdeu uma oportunidade de crescer em 2024 – mas não quis criticar o PS para então não fazer crescer o peso relativo do Chega –, tem de decidir se quer continuar a falar para si própria — ou se quer voltar a ser relevante para o país. A comunicação social, por sua vez, precisa de reencontrar a sua função: não é catequizar o eleitorado, mas informá-lo com rigor, escutá-lo com respeito e servi-lo com humildade.

    Se Lisboa continuar a querer falar sozinha, continuará a não ser ouvida. E Portugal seguirá o seu caminho — com ou sem ela. Nisto, há uma enorme virtude na democracia: Lisboa, e as suas elites, já não valem nada, embora tenham muito tempo de antena no media. Ou melhor, proporcionalmente, valem somente o seu peso demográfico. Nada mais.

  • O pote dos 133 mil milhões e os parasitas em campanha

    O pote dos 133 mil milhões e os parasitas em campanha


    Termina hoje mais uma campanha eleitoral neste bordel institucionalizado a que insistem em chamar democracia representativa. Foi, como sempre, uma campanha sem debate sério, sem ideias que rompam com o estatismo doentio que define o regime, e marcada — outra vez — pela suspeita de corrupção no seio do poder.

    Desta feita, não foi o PS que caiu do cavalo, mas o PSD, em plena montada: o escândalo tem nome de clínica privada de fisioterapia ou rótulo de uma garrafa de vinho verde — Spinumviva. A empresa do agora primeiro-ministro Luís Montenegro e família, que afinal tinha como clientes os senhores da Solverde, uma empresa que explora casinos.

    Ninguém, porém, ousa colocar a verdadeira questão: se vivêssemos em mercados livres, onde qualquer indivíduo pudesse abrir um casino, como um talho ou uma padaria, por que razão um empresário pagaria a Montenegro por acesso e favores?

    A resposta é óbvia: porque os mercados não são livres — são cartéis legislados, concessões para monopólios, onde os donos mudam de camisa conforme o partido no poder. O Estado, esse buraco negro de favores e regulações, cria a escassez artificial, fecha a porta ao concorrente e permite que os Montenegro desta vida vendam a chave da entrada. É a porta giratória do banditismo democrático.

    Mas não se pense que isto se resume à Solverde ou ao PSD. O verdadeiro drama português é o pote. Um pote de 133 mil milhões de euros, segundo o Orçamento do Estado para 2025. É a soma colhida à força por um exército de fiscais, inspectores e cobradores de dízimos, sob a égide de uma máquina chamada Autoridade Tributária. Chamam-lhe o “nosso dinheiro”. Mas o que é arrancado com ameaças não é “nosso” — é deles, os que decidem quem mete a mão no pote. Todos, mas todos os partidos, disputam apenas isso: quem o esvazia, quanto e para quem.

    A única preocupação das duas alas do Partido Socialista — PS1 (de Pedro Nuno) e PS2 (de Montenegro) — é garantir que continuam a ter prioridade na colher. O medo não é o colapso do regime, mas a entrada de um novo parasita: o Chega. Ventura, esse populista profissional, não quer mudar o sistema, apenas alterar os convidados à mesa. Nada de cortes na despesa, nada de redução do Estado, nada de liberdade. Quer mais leis, mais regulamentos, mais penas e mais polícia — ou seja, mais Estado.

    No entanto, o problema estrutural é evidente: há milhões de portugueses que já não contribuem para o pote, mas dele dependem. Em 2025, o Estado prevê gastar 43,5 mil milhões de euros em pensões — incluindo as não contributivas, os complementos solidários e os reformados da CGA.

    Acrescem os subsídios: 1,7 mil milhões em desemprego, fora os de doença, maternidade, inserção e por aí fora. No total, são 51,3 mil milhões de euros a sair do pote — ou seja, quase 4.800 euros por português. Entretanto, as contribuições para a Segurança Social somam apenas 37,9 mil milhões — um défice de 13,4 mil milhões que é coberto com os impostos gerais: IRS, IVA, ou seja, o roubo normalizado aos que ainda trabalham.

    A mentira do porquinho é das mais perversas. Disseram a cada português que poupava para si mesmo, mas o que sempre existiu foi um sistema de redistribuição forçada — onde os activos são saqueados para comprar os votos dos inactivos. É o modelo do bandido estacionário: o político não destrói a sua base de exploração, mas confisca de uns para comprar os outros. O tempo é curto, por isso urge perpetuar-se no poder.

    É nesse desespero que nasce a política de importação de gado humano. Milhares de imigrantes do terceiro mundo, muitos sem qualificações e com um sonho na cabeça, são despejados num país sobrelotado, com rendas absurdas, hospitais de campanha, transportes públicos ao estilo de Calcutá e escolas onde o português já é a segunda língua. Tudo “grátis”, claro. Gratuito para quem chega, pago por quem fica — até à exaustão.

    O povo acorda, e eis que a “extrema-direita” ganha palco. Palavras como “deportação” entram na arena pública com o Chega, o Ergue-te e o ADN, cada um à sua maneira, apontando o dedo aos imigrantes. Mas, paradoxalmente, não se insurgem contra o sistema que os trouxe. Esperam, com algum cinismo, que o mesmo Estado que os atraiu com subsídios e serviços “grátis”, pagos pelo colectivo saqueado, agora os expulse.

    À esquerda, o delírio mantém-se intacto. O Bloco de Esquerda fala de tectos às rendas como se a inflação, a invasão do terceiro mundo, os impostos, as taxas, as licenças, o IMI, o IMT, o IRS, o IRC e a impressora do BCE não existissem. O problema do preço das casas é, para eles, apenas o senhorio. Vivem, definitivamente, num universo paralelo.

    A CDU segue fiel à cassete: nacionalizar a banca e os “sectores estratégicos”. Quais são? Nunca se sabe. É a mesma dúvida quando se trata de identificar os rostos do “Grande Capital”. São os que o Comité Central definir numa noite de tinto e tremoços. Com que dinheiro? Com o dinheiro do gado, claro. Porque, no fundo, a vaca fiscal tem de continuar a ser ordenhada — mesmo que já só largue sangue.

    O Livre, por sua vez, atinge novos cumes de comédia trágica. Propõe “dar” 5 mil euros por cada nascimento. É como se o ladrão, depois de nos assaltar, nos oferecesse uma manta para o berço. É a ilusão estatista no seu esplendor: tiram-nos 10, devolvem-nos 2 e esperam que agradeçamos de joelhos.

    O mesmo raciocínio se aplica à sua proposta de taxar as “grandes fortunas”. Como se alguém que emprega centenas, arrisca o seu capital e gera riqueza devesse ser castigado por ter sucesso. Talvez desejem que os empresários vendam as suas fábricas para pagar os caprichos de Paulo Raimundo ou Rui Tavares. É a destruição da criação para alimentar a redistribuição.

    E a Iniciativa Liberal? São apenas globalistas simpáticos? Dizem que “desejam” cortar impostos — roubar menos. Mas propõem cortar 1% por ano na despesa pública!, o que é uma anedota em câmara lenta. É como prometer emagrecer comendo mais arroz e a mesma feijoada. Sem cortes reais na máquina pública, a redução de impostos é só um aperitivo de ilusão.

    O PS1 defende o Estado Social como “a maior conquista de Abril”, esquecendo convenientemente que nos trouxe três bancarrotas e abriu as portas a uma invasão do terceiro mundo. A ideia de que um punhado de políticos e burocratas gere melhor o dinheiro dos outros do que os próprios indivíduos é o dogma central desta seita.

    Já o PS2 fala em baixar impostos, mas sem mexer na despesa. Tal como a IL. Resultado: nada de novo. A dívida continuará a crescer, a despesa continuará a explodir e o empobrecimento será inevitável.

    Portugal está entregue. Não à direita ou à esquerda. Está entregue à lógica do saque. A única variável que muda é o nome do assaltante. O pote de 133 mil milhões continua a ser servido na mesa. Os comensais, de garfo e faca na mão, olham para si!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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