Categoria: Opinião

  • Mixórdia de temáticas

    Mixórdia de temáticas


    1 – Acho sempre uma péssima ideia começar um debate com o argumento que do outro lado está alguém ignorante. Assim sendo, vou partir do princípio que Inês Pedrosa, quando disse que preferia Navalny, “o mártir heróico”, a Che Guevara, sabia quem eram as duas personagens que estava a comparar. Todos temos direito à nossa opinião e, por isso, respeito a de Inês Pedrosa. A minha é que ela disse um disparate em horário nobre da RTP3. No caso dela, um entre muitos que habitualmente vem dizendo desde os tempos da pandemia. Antes disso, não sei porque não lhe prestava atenção.

    Navalny veio para a ribalta por ser um opositor à ditadura de Putin, usando a guerra da Ucrânia como arma de arremesso para a sua posição de “defensor da democracia”. Nós, e por nós quero dizer o eterno moralmente superior Ocidente, corremos a abraçar a causa de Navalny seguindo aquela lógica do “inimigo do meu inimigo, meu amigo será”.

    Alexey Navalny

    Ora, não é propriamente o caso aqui. Os próprios ucranianos, de quem Navalny seria, em teoria, um amigo, referem-se a ele como um adepto do imperialismo russo, da anexação de partes da Ucrânia, da não-entrada na NATO e, ainda, com uma longa história de nacionalismo, xenofobia e pureza da raça, como disse à Time a professora da Universidade McGill Maria Popova. Em resumo, Navalny é apenas outro Putin que queria fazer o mesmo que o original, mas com uma ambição tal que, de facto, aceitou correr risco de vida para tomar o poder.  A figura de quem, como Inês Pedrosa, tenta transformar este homem num democrata, é semelhante à de Ursula Von der Leyen quando trocou o gás da ditadura russa pela ‘democracia’ azeri. 

    Temos um ditador no poder que mandou matar outro ditador em potência. Faz parte, infelizmente, da História Russa há 100 anos. É uma chatice, mas é o que é. Meter o Che Guevara no meio disto até me fez soltar um ou outro vocábulo mais rudimentar.

    2 – Em 2022 escrevi que este modelo de debate ‘express’ entre todos os líderes não beneficiava o estilo de Ventura. Quer dizer, não beneficiava ao fim de um certo tempo, que, na minha opinião, já passou. Interromper todo e qualquer raciocínio e apostar tudo em ataque pessoais, serve para um partido de protesto, mas é pouco para quem quer ser levado a sério e chegar ao poder. Três ou quatro anos depois, já todos conhecem os truques, e sobra a Ventura, se quiser passar da falange clássica de apoio ao Chega, começar a apresentar as ideias que não tem. Em todos os debates tentou a mesma estratégia de usar e abusar do ataque pessoal. Entre mentiras, populismo e factos com pouquíssimo interesse para as eleições, saiu dos debates a mendigar por uma aliança governativa que, aparentemente, ninguém quer aceitar. O Chega subirá, e muito, mas parece estar preso a uma cerca sanitária imposta pelo resto da direita, à qual estratégia de Ventura não parece ter conseguido dar a volta. Aliás, entre esquerda e direita, o único ponto comum ao fim de duas semanas de debates parece ter sido que o Chega é o parceiro com quem ninguém conta. Até Luís Montenegro, algo que honestamente me surpreendeu.

    O exemplo mais clássico, na minha opinião, de uma estratégia falhada, apareceu no debate com Rui Tavares onde, em vez de se discutirem soluções para a Educação, se passou o tempo a falar da escola privada dos filhos do líder do Livre.

    Como se uma pessoa precisasse de ter os filhos na escola pública para a defender. Ou nunca ir a uma clínica privada para defender o Serviço Nacional de Saúde. Ou não andar de avião para defender a ferrovia. Este tipo de discurso, e até de devassa da vida privada, é exactamente uma das razões para os melhores não quererem ir para a política. São salários baixos e uma exposição doentia, ao ponto de chegar à humilhação pública que, bem feitas as contas, se tornam absolutamente desnecessárias para quem tem carreiras sólidas nas respectivas áreas profissionais.

    Sobram-nos por isso artistas como o Ventura. É seguir, cantando e rindo.

    3 – Na Ucrânia chegámos ao ponto clássico das guerras alimentadas pelos Estados Unidos. Há sempre aquele momento em que desaparecem do radar como se nunca lá estivessem estado, deixando os locais entregues à sua sorte. O exército russo já teve milhares de baixas e o seu enfraquecimento é real, portanto, um dos objectivos de Washington está conseguido. As sanções produzidas pela União Europeia, por outro lado, pouco fizeram pela Economia russa que cresceu 3,2%. Agora, nesta fase de desespero, em que a Europa não tem armas para dar a Kiev, os russos vão fazendo o que querem, e alguns países, como a Alemanha, começam a tratar do seu próprio arsenal, antevendo o que aí virá.

    Há quase dois anos que repito isto, e volto a dizê-lo: acabaremos por negociar de qualquer forma os terrenos que passarão da Ucrânia para a esfera russa, mas, fá-lo-emos em muito piores condições e com muito mais mortes. Não sei se se lembram mas quem dizia há dois anos o que está a acontecer agora e o que a Europa será forcada, com maiores custos, a fazer, era apelidado de putinista. Desde o primeiro dia que sabemos que a invasão russa só se resolveria de duas formas: na mesa das negociações ou numa Terceira Guerra Mundial.

    Uma última nota sobre o formato da crónica desta semana: espero, até imploro, que Ricardo Araújo Pereira não me processe por usar um título que lhe pertence. Ainda pensei em usar uma frase como, por exemplo, “dizer o que não foi dito” para título deste pout porri” de temas, mas tive algum receio. Uma coisa é brincar com um humorista que tem o dom da palavra, outra é meter-me com um cantor que não canta. Ainda me mandava, olhem, Talvez Foder, que também deverá ter sido por ele patenteado.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Muitos anos a virar tofu

    Muitos anos a virar tofu


    É, para mim, um dos sinais de que estou a ficar mais velha: falo sem filtro, digo o que me apetece, sem o cérebro ter tempo para dar ordem à boca para que não saiam algumas frases. Isto tem-me acontecido, cada vez mais vezes. Se calhar, não tem nada a ver com a idade. Mas é a minha desculpa.

    Isto vem a propósito das minhas gafes constantes. Atenção: sempre cometi imensas gafes. Tenho episódios da minha vida que servem para entreter os filhos e sobrinhos com boas gargalhadas, tais são as trapalhadas e embaraço que as minhas ‘falhas’ provocaram. (O já célebre episódio do garfo espetado num tomate, a meio de um almoço chique, continua a ser o preferido na família).

    xi'an, gourmet, tofu

    Isto vem a propósito da minha entrevista com a porta-voz do partido PAN-Pessoas Animais Natureza, Inês Sousa Real, e de uma grande gafe que cometi, depois de desligados os microfones e após as fotografias.

    Estava eu a conversar amenamente com os três membros de topo, a cúpula do PAN, quando me sai a expressão “ando há muitos anos a virar frangos”. Ora… falar com vegans ou vegetarianos usando estas expressões não será a coisa mais inteligente. Mas saiu-me. 

    Rapidamente, me dei conta da falha. Estava ainda a minha boca a dizer a palavra “virar” e já eu me estava dar conta da trapalhada. (O emoji da mulher com a mão na cabeça veio-me à mente).

    Rapidamente, expressei o meu sincero arrependimento pela expressão muito mal escolhida. 

    Valeu a boa disposição da cúpula do PAN que, rapidamente, sugeriu substituir a expressão “virar frangos” por “andar há muitos anos a virar tofu“. “Ou virar seitan” – acrescentei eu, na tentativa de salvar a ‘pele’ e a imagem. 

    Mais tarde, fiquei feliz por não ter usado também a expressão “puxar a brasa à minha sardinha”. Mas foi por mera sorte, acredite. 

    Eu, que até fui vegetariana durante mais de 15 anos, sei perfeitamente quais são as regras de ‘etiqueta’ nestas matérias. Respeito muito e admiro – e escrevo a sério – todos os que promovem a causa animal.

    Valeu a capacidade de ‘encaixe’ e compreensão da direcção do PAN. É que os meus filhos e os meus sobrinhos já sabem das minhas gafes e trapalhadas. Mas o PAN não.

    A entrevista sem gafes (espero) a Inês Sousa Real será publicada a 24 de fevereiro.


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  • Como se mata o jornalismo de investigação? Em Portugal, através dos ‘reguladores’

    Como se mata o jornalismo de investigação? Em Portugal, através dos ‘reguladores’


    No ano passado, nas minhas deambulações pela plataforma da contratação pública – o Portal Base – deparei-me com o ‘comportamento’ muito sui generis do Hospital de Braga, uma das mais importantes unidades de saúde do país, que somente em despesas correntes gasta, por ano, cerca de 260 milhões de euros. E fui investigar . E deu notícias.

    A primeira notícia foi publicada em 12 de Junho e destacava sobretudo contratos de sete milhões de euros escondidos durante mais de dois anos. Meses mais tarde, em Setembro, já no âmbito do Boletim P1 da contratação pública – em que analisamos os contratos publicados no Portal Base – dei à estampa nova notícia em que destacava que só naquele mês o Hospital de Braga celebrara 393 ajustes directos, muitos dos quais usando este procedimento sem justificação plausível.

    question mark neon signage

    Num país decente, este tipo de investigação jornalística teria consequências para os administradores hospitalares. Ainda mais quando, na verdade, e como na investigação jornalística que o PÁGINA UM publica nesta terça-feira, o Hospital de Braga escondeu 1.354 ajustes directos de 47 milhões de euros por mais de dois anos, para além de outros detalhes de bradar aos céus.

    E, portanto, deveria estar a decorrer uma auditoria no Tribunal de Contas, talvez na Inspecção-Geral das Finanças, e talvez mesmo uma investigação pelo Ministério Público.

    Mas Portugal não é um país normal. E mais ainda para o jornalismo independente de investigação. Quer dizer, não estamos ao nível da Coreia do Norte, da China ou do Irão, ou mesmo da Rússia, da Palestina ou do Brasil, onde o risco de morte e prisão é uma realidade.

    Consciente do (pouco) impacte público das notícias do PÁGINA UM em Junho e Setembro do ano passado sobre si e o (seu) Hospital de Braga, João Porfírio Oliveira, que foi ‘premiado’ recentemente com a presidência da Unidade Local de Saúde do Alto Minho, decidiu ‘contra-atacar’. E apresentou duas queixas: uma ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas – cujo presidente, por uma certa coincidência, é investigador da Universidade do Minho, em Braga – e outra à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – cuja presidente, por mais uma certa coincidência, é professora da Universidade do Minho… em Braga.

    João Porfírio Oliveira: como reagir a uma investigação jornalística? Queixar-se a ‘reguladores’ amigos.

    E, ó surpresa, tanto a CCPJ como a ERC, mesmo não descobrindo um único erro, um único lapso, e baseando-se todas as notícias numa base de dados oficial (Portal Base, gerida e validada por uma entidade pública, o IMPIC) e sendo os registos feitos pela própria entidade adjudicante (neste caso, o Hospital de Braga), acharam por bem, e sem vergonha na cara, censurar o meu trabalho.

    No caso do CDSJ, os seus membros (que se rotulam de jornalistas) consideraram que existiam “nos artigos publicados ‘expressões, afirmações e conclusões’ suscetíveis de ‘qualificar de forma absurdamente desproporcional os membros do Conselho de Administração’ do Hospital”, e recomendaram que eu seguisse “escrupulosamente o Código Deontológico dos Jornalistas, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso,  deixando bem clara aos olhos do público a distinção entre factos e opiniões (Ponto 1) e abstendo-se de fazer acusações (Ponto 2), sem o total apuramento dos factos”.

    No caso da ERC, uma recente deliberação, chega a ser risível pelo absurdo, ao considerar que a simples análise de registos de contratos colocados pelo próprio Hospital de Braga exigia um contraditório. E considerava também que, cruzando as informações dos registos com o determinado pela lei, nunca poderia dizer que havia uma ilegalidade porque “não houve uma decisão nesse sentido de qualquer entidade habilitada para o efeito”.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Ou seja, para o regulador, o jornalista jamais pode denunciar uma ilegalidade enquanto não houver uma entidade oficial que assim o determine – no limite, uma sentença transitada em julgado. Daqui a nada só falta a ERC ‘decretar’ no alto da sua nescidade, que um jornal só poderá, interpretando dados meteorológicos, informar que choveu 5 milímetros em 24 horas depois de uma “entidade habilitada para o efeito” – neste caso, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera – assim o determinar.

    Bem sei, com ou sem articulação, qual foi o propósito do Hospital de Braga, da CDSJ e da ERC – que o PÁGINA UM parasse com as investigações. Não parou, nem vai parar. E até vai fazer algo que nem é função do jornalismo, mas que passa a ser uma necessidade de defesa do PÁGINA UM aos sistemáticos ataques à liberdade de imprensa perpetrados pelos dois ‘reguladores’ (ERC e CDSJ por motivos cavilosos): enviar todos os elementos desta investigação ao Tribunal de Contas, solicitando a sua intervenção.


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  • Raios partam a ‘empatia’

    Raios partam a ‘empatia’


    Se copiasse todos os exemplos, só do último mês, do jornalismo e dos habitantes do espaço público que usaram «empatia», «empático», «empatizar» para este jornal, esse acervo teria muito mais caracteres do que todos os artigos do PÁGINA UM. (Não, não é ironia. É matemática.)

    Comecemos com exemplos respigados da linguagem publicada.

    grayscale photography of kids walking on road

    «Duas palavras: empatia e humildade», disse o então recém-empossado secretário-geral do Partido Socialista, em 13 de Janeiro de 2024, palavra que repetiria, assim como outros dirigentes políticos, na campanha eleitoral, designadamente nos debates das legislativas. Para muitos problemas de Portugal, não poucos políticos apresentam-nos a solução em sete letras: empatia. Muito recentemente, houve até quem apresentasse a solução para os protestos da polícia e demais sectores profissionais da seguinte forma: «É preciso empatia.»

    Outro exemplo, desta vez do jornalismo: «A empatia, de uma forma geral, é enganosa, mas, na área artística, sofre do eterno défice: não chega a 1 %.»

    Neste fim-de-semana, no programa televisivo A Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio, falavam das grandes duplas futebolísticas e, em dada altura, disseram que dois futebolistas… jogavam com… grande… empatia. Zeus!

    É impossível passar um só dia sem ser inundado dos vocábulos «empatia», «empático», «inclusão», «inclusivo» e seus familiares.

    Quer insultar alguém? Diga que lhe falta empatia.

    group of man gathering inside room

    Como se resolvem todos os problemas do mundo? Com empatia.

    O uso descomedido do vocábulo «empático» e da expressão «com empatia» redundou no inevitável: qualquer palavra que seja utilizada imoderadamente acaba por perder precisão semântica. Hodiernamente, em muitas situações, encontramo-las («empático», «com empatia», «empatizar») para exprimir conceitos distintos (e alguns distantes dos dicionarizados), como «compassivo», «compreensivo», «carismático», «simpático», «com inteligência interpessoal (acima da média)» (diferente de «inteligência intrapessoal»). Quando alguém adjectivar outro como sendo «empático», pergunte-se-lhe a definição.

    Temos de ser «empáticos», temos de ser «inclusivos», temos de cultivar e promover a «empatia» e a «inclusão» (a «diversidade» — ora explícita, ora implicitamente — é parceira da «inclusão»). Por paradoxal que possa parecer, a toda a hora, dizem-nos concomitantemente que devemos evitar pessoas «tóxicas» e relações «tóxicas». E temos, claro está, a crescentemente falada e escrutinada «masculinidade tóxica» (não deixa de ser curioso que se empreguem tantas vezes os vocábulos «misoginia»/«misógino», sem nunca se nomear sequer a misandria — certamente, a primeira superabunda, enquanto a segunda é inexistente), temos os «activos tóxicos», temos ambientes de trabalho «tóxicos», entre uma pletora de exemplos.

    white and black metal pipe

    Ficamos, por conseguinte, sem saber se quem é «tóxico» será digno de «empatia», e se a tão proclamada «inclusão» deverá abranger as pessoas «tóxicas».

    O historiador dos primeiros decénios da linguagem publicada do nosso século há-de interrogar-se atónito sobre dois paradoxos: aqueles que mais clamavam pela criminalização do discurso de ódio atiravam, do alto da torre da superlativa moralidade, frases prenhes de ódio, enquanto esbracejavam com as fácies carregadas de ressentimento e ódio, e inúmeras criaturas que tinham a empatia e a inclusão na boca a toda a hora estavam constantemente a sinalizar os outros como entes tóxicos de quem nos deveríamos afastar e, se possível, ostracizar e linchar.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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  • É o ‘estado a que chegámos’ que abriu as portas ao populismo

    É o ‘estado a que chegámos’ que abriu as portas ao populismo


    No ‘Arranhadelas’, a rubrica do Serafim, o Mascot aqui no PÁGINA UM, glosava-se hoje, gozando, com o facto de o Público, tal como a generalidade dos media, ignorar os pequenos partidos (ainda) sem assento parlamentar. E esse desprezo assume-se em pleno, quando se mostra pacífico, nas televisões, que apenas os partidos com deputados (numa Assembleia da República) já dissolvida merecem participar em debates do tipo duelo, concedendo ainda por cima um duelo especial para os dois partidos de um ‘Bloco Central’ que se perpetua.

    Compreendo as razões deste modelo – seria quase impraticável a realização de 153 debates, se se incluíssem duelos com os 18 partidos e coligações (contabilizando os participantes no círculo de Lisboa) –, mas não menos relevante é apontar a responsabilidade da comunicação social em manter um espírito democrático numa… democracia.

    people walking on grey concrete floor during daytime

    Na democracia, não se aplica somente o princípio ‘uma pessoa, um voto’; isso é pouco, ou quase nada, para consolidar esse regime. A imprensa não pode, em Portugal, em período eleitoral, fazer de conta que, na hora da cobertura, nem sequer tem de fazer os trabalhos mínimos.

    Tem sido, na minha opinião, as enormes dificuldades ‘impostas’ pela imprensa em ‘ouvir’ novas propostas, que tem mantido no poder, quase ininterruptamente dois partidos que, ao fim de 50 anos, deixam mais do que um amargo de boca a uma geração que nasceu ou cresceu em Liberdade. Os Governos PS e PSD (com umas coligações à mistura), com ou sem maioria, conduziram-nos a um país de compadrios, de partidocracia, de esquemas, de obscurantismo, de impunidade política e criminal.

    Não se ter contrariado ao longo de décadas este bipartidarismo – pelo contrário, a media mainstream promoveu-o –, com as dificuldades de crescimento de novos partidos e movimentos políticos (com novas ideias), descambou no “estado a que chegámos”, parafraseando Salgueiro Maia. E, por triste ironia, abriu portas a um crescente descontentamento colectivo, que primeiro se foi ‘escoando’ para a abstenção, mas que agora se vira para o voto, um voto no populismo que, começando por uma linha de xenofobia, se foi amenizando para recolher todos os descontentes. E são muitos.

    shallow focus photography of condenser microphone

    Talvez após o dia 10 de Março, mesmo que não se confirme a ascensão de um populismo – e que, se surgir, não perigará os alicerces do sistema democrático, se a Justiça (Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, tribunais administrativos e judiciais, e Procuradoria Geral da República) estiver atenta, activa e preventiva –, a imprensa faça uma reflexão.

    Uma reflexão sobre a sua (perdida) acção de ‘fiscalização’ da acção governativa, que perdeu.

    Uma reflexão sobre o seu (perdido) papel de denunciador das falhas governativas ou das injustiças sociais, tornando-se um agente promotor do ‘agenda setting’, e não um mero comunicador das mensagens e narrativas governamentais e empresariais.

    Uma reflexão sobre o seu (perdido) papel de estimulador das actividades cívicas e até políticas dos diversos agentes sociais.

    E, por fim, uma reflexão sobre a forma como nunca concedeu as mesmas oportunidades ao surgimento de partidos alternativos aos ‘mesmos do costume’, mesmo que seja no curto período das campanhas eleitorais.

    Nesse último aspecto, com os parcos meios ao seu alcance, o PÁGINA UM mostra, com um singelo mas simbólico contributo, como é uma democracia plena: ouvir todos em pé de igualdade. A oitava entrevista da HORA POLÍTICA, que hoje publicamos, iniciativa que inclui partidos com assento parlamentar (Iniciativa Liberal e Chega) e sem assento parlamentar (Nova Direita, Volt Portugal, RIR, Aliança, PURP e Nós, Cidadãos), é um exemplo do papel sério que se ‘exige’ à comunicação social num sistema democrático.

    A caminho da segunda semana da HORA POLÍTICA, apenas faço votos pessoais para que, até dia 4 de Março (com a derradeira entrevista ao mais antigo partido, o PCP), consigamos o pleno. Seria também um sinal de que todos os partidos (sobretudo aqueles com assento parlamentar) compreendem as regras leais do ‘jogo democrático’.


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  • Vizela 6.1

    Vizela 6.1


    Sendo certo que, mais uma vez, cheguei uns minutos atrasado, ao ponto de no elevador do piso -2 para o piso +3 – para se chegar à edénica Varanda da Luz tenho de passar sempre pelo ‘inferno’ de descer ao -2 para seguir para o +3 –, ter sabido pelo intercomunicador de um polícia que o jogo já começara, daí só ter começado a escrever esta crónica ao minuto 13 (oh! diabo), porque tive de ir ainda buscar o farnel, dar dois dedos de conversa a uma leitora confessa do PÁGINA UM, e subir umas escadaria de causar enfartes, estou hoje com um feeling – vá lá, à portuguesa, uma fezada – de ser este o dia para me deslumbrar com o almejado 15 a 0.

    (goloooooooo…. já está: depois de uma cena do típico goleiro de pés cegos, perante a proximidade de um avançado, a defesa do Vizela aos papéis, e à segunda insistência lá marca o David Neres)

    Bom, faltando 14, e já com um falhanço de permeio, explico as razões da fé: primeiro, está bom tempo. Não é o empapado de Guimarães, que ‘roubou’ dois pontos na semana. Ou contribuiu, porque a outra parte se deveu a não se ter feito um corno para se ganhar, mesmo com o habitual ‘Big Brother’, ou seja, a expulsão (e merecida, sem faccionismos) de um adversário. Depois, hoje deram-me um cartão de acreditação que está guilhotinado no canto inferior direito. Será, de certeza, um sinal de boaventura – calma, não é o César Boaventura, condenado na semana passada por corrupção a favor do Benfica sem, oh claro, o Benfica saber, mesmo se a palavra Benfica é citada 64 vezes na sentença do juiz. E, se se confirmar o 15-0, deverá depois haver também uma explicação científica para o fenómeno do cartão guilhotinado, pelo menos equivalente à ciência do Doutor Filipe Froes sobre a tripla pandemia que ele anunciou em Novembro de 2022, e que nunca se viu. Depois, porque…

    (goloooooooo… Otamendi, nas alturas, a facturar, como se diz)

    Nem me deram tempo de explicar tudo. Assim não há condições. Estava para dizer que a terceira razão era o infortúnio do Vizela, que acabou de perder por lesão o seu guardião principal, Fabijan Buntic. Se antes deste jogo já tinham encaixado 38 golos na Liga desta época com o efectivo, imagino que terão uma média pior com o suplente. Aliás, entrou, levou logo um. Além disso…

    (golooooooo… Tiago Gouveia… 3-0. O regressado Tengstedt faz um chapéu para o poste, mas o miúdo não falha na recarga. É melhor pôr o resultado sempre que o Benfica marcar, de contrário arrisco perder-se a conta).

    E já agora, antes de continuar, um agradecimento ao Tengstedt por ter falhado um golo de calcanhar, e também ao fora de jogo do Rafa, que marcou, mas foi anulado. Se se metem a marcar de empreitada, esta crónica, escrita em tempo real, fica completamente atípica. Se repararem, nas outras, tento sempre escrever dois ou três parágrafos entre comentários às incidências do jogo, mas com golos à cadência de cinco minutos isto não fica fácil ao escriba compor um texto em estilo digno.

    Portanto, e finalmente com a possibilidade de escrever um segundo parágrafo sem acrescer nada sobre as incidências do jogo, lá em baixo no gramado, continuo: a quarta razão para a grande fé num 15-0 é por o Vizela ser o ‘lanterna vermelha’, um lugar propício para uma infernal gloriosa tarde de cabazada à antiga portuguesa. Se o Sporting até já consegue meter oito golos ao Dumiense e ao Casa Pia, mais fácil será enfiar mais 12 ao Vizela…

    (11, pá! 11… já só faltam 11… golooooooooooo… 4-0. David Neres numo belo remate corrido em assistência primorosa do Rafa)

    Agora a sério. Isto está a correr melhor do que eu pensava. Vou mesmo acreditar na história do cartão de acreditação guilhotinado no canto inferior direito… Além disso, os árbitros hoje vestiram-se de preto, lembrando os gloriosos tempos, antes do wokismo, em que um homem do apito que era homem do apito apenas de preto vestia, e nada mais. E o Benfica sempre se deu bem com árbitros que apitam de negro…

    (golooooooooo… 5-0. Rafa a marcar numa das suas arrancadas…)

    Qual acreditar? Qual fé, qual carapuça! É evidência! Vou passar a exigir ao Benfica que me passe a guilhotinar o cartão de acesso quando aqui vier escrever a crónica. E já agora: prefiro um ‘sumito’ à água engarrafada da Serra de Monchique que andam a fornecer no farnel. Tem pH de 9,5; demasiado alcalina.

    (e pronto!, intervalo; toda a gente satisfeita por aqui, excepção à equipa do Vizela, presumo, e aos duzentos adeptos que andaram 348 quilómetros para empochar este vexame que se anuncia)

    Entretanto, começa a segunda parte e, enquanto não surge novo golo, estou aqui a meter uma nova entrevista do Hora Política no Spotify e a descarregar as fotos para o WordPress. Enfim, enquanto aguardo pelo 15-0, o trabalho por aqui tem de avançar, que o PÁGINA UM não é só futeboladas.

    (porca miséria! Como é possível? Golo do Vizela! Como é possível!)

    Já me estragaram a tarde. Eu bem achei estranho que a segunda parte começasse quase em silêncio, sem as cantorias das claques. Entrou-se descontraído, e pronto: lá se foi pelo cano abaixo o meu sonho da crónica do 15-0, do ‘eu estava lá’, para inveja dos vindouros. Pelo menos que façam então um 16-1, que menos do que isto sempre será pouco. E mais do que isso já nem apaga o deslustre de apanhar um golo de uma equipa que, nesta época, é a menos concretizadora da Liga (20, agora). Caramba: ainda há menos de um mês levaram cinco sem resposta do Arouca!

    Enfim, respiremos fundo: sempre é bom lembrar as dificuldades passadas. Se hoje, daqui do alto de um descontraído 5-1, já damos mais que certo os três pontos, apesar das invenções do Roger Schmidt…

    (penalti a favor do Vizela… defendido pelo Trubin; acreditem, isto estava tão morno nas bancadas que eu, entretido numas pesquisas, só me apercebi de ter havido grande penalidade após a defesa guarda-redes do Benfica por via de um bruaá quase semelhante a um golo dos nossos)  

    Bem, continuemos. Falemos então das dificuldades passadas, que a quimera por hoje já foi. Na última vez que se defrontou o Vizela na Luz para a Liga, em 2 de Setembro de 2022, ganhámos apenas por 2-1, com um golo de penálti do João Mário aos 12 minutos de compensação, e esteve-se a perder entre os minuto 20 e 76. E na época anterior, em Março desse mesmo ano, não se fez melhor do que um empate a uma bola, e andou-se também atrás do prejuízo, ‘ó tio, ó tio’, depois do Taarabt ter feito das suas e sido expulso logo ao minuto 8. Por falar em expulsões: esta noite ainda não houve o momento ‘Big Brother’; ainda ninguém foi expulso. Só dois ou três amarelos. Além disso, aquele Vizela era do Álvaro Pacheco… Aquele boné tinha alguma coisa de mago, como o computador do Carlos Antunes a fazer previsões durante a pandemia.

    (e o jogo, lá em baixo, decorre morno; o Benfica ainda não teve, pelo que vi, uma única oportunidade de golo nesta segunda parte, e já vamos no minuto 87)

    Enfim, acho que encerro por aqui esta crónica; a crónica sobre o insucesso de se escrever uma crónica sobre o quimérico, o utópico 15-0.

    (caraças!, devia ter feito o lamento mais cedo: Marcos Leonardo marca o 6-1… sempre empatamos na segunda parte).

    Últimas substituições ali em baixo, onde, enfim, fiquei a saber que o Benfica tem um jogador chamado Benjamim Rollheiser! Ando mesmo afastado destas questões da bola. Fui agora ver: é um argentino de 23 anos, contratado no mercado de Inverno ao River Plate, e que até já jogara três minutos contra o Estrela da Amadora, mais quatro contra o Gil Vicente, e agora mais um minuto neste jogo, porque, entretanto, o homem de negro [engraçado, ontem revi, por acaso, quase todo o filme Homens de Negro, aquele dos alienígenas, com o Will Smith, antes da chapada, e o Tommy Lee Jones] apita para o fim do jogo. E pronto: mais três pontos, crónica concluída.

    Para a semana há mais. Portimonense: és o próximo candidato ao 15-0. Estás a ouvir-me, Roger Schmidt?Mas antes, vê lá se nos passas o Toulouse…

    Sim, Schmidt, tu aí que estás ainda a falar para os meus comparsas de profissão, enquanto eu, aqui de luzes vermelhas acesas, na Varanda da Luz, acabo de meter esta crónica online no PÁGINA UM: ainda acredito que sejas o ‘patinho feio’ que nos vais presentear com um 15-0. Mas, e digo eu que nem treinador de bancada sou, convém ser a jogar as duas partes como se fez hoje na primeira. Se queres a glória, jamais será sem um 15-0. E hoje perdeste uma boa oportunidade.


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  • Comissão Nacional de Eleições: uns cómicos

    Comissão Nacional de Eleições: uns cómicos


    Um cidadão recluso é um cidadão privado (temporariamente) da liberdade, mas não é um “não cidadão”, ou seja, uma pessoa privada dos seus direitos civis e políticos.

    Nos termos do artº 48º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos políticos do país, sendo que essa participação, directa e activa na vida política, constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático (artº 109 da CRP) e exerce-se, designadamente, através do direito de sufrágio, reconhecido no artº 49º, nº 1, da Constituição a todos os cidadãos maiores de 18 anos.

    book lot on black wooden shelf

    Por outro lado, se a lei pode fazer corresponder, a certos crimes, a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões, nos termos do nº 2 do artº 65º do Código Penal, certo é que nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos civis ou políticos, por força do nº 1 da mesma disposição legal.

    Significa tudo isto que os cidadãos reclusos têm, teoricamente, o direito de votar em todos os sufrágios para a eleição de titulares de órgãos do poder político, seja ele central, regional ou local.

    Porém, o certo é que, sendo a sua situação de recluso precisamente uma das que está legalmente prevista para o efeito de ser possível votar antecipadamente, por correspondência, como modo de garantir o exercício do direito de voto, na realidade são inúmeros os obstáculos levantados, na prática, o que leva a que, ilegitimamente, lhe seja vedado o exercício desse direito básico, cívico e político.

    E que não se pense que tal se deve aos responsáveis do Sistema Prisional.

    Os dois últimos Directores-Gerais têm feito um excelente trabalho na procura do aumento da percentagem de votos nas cadeias.

    O que têm conseguido, diga-se.

    gray barbwire on fence near building during day

    O problema, por incrível que pareça, está no total desleixo, na absoluta ignorância, no incrível desprezo da Comissão Nacional de Eleições para com os cidadãos em reclusão.

    É pouca, praticamente inexistente, a divulgação, entre os reclusos, de que estes dispõem do direito ao voto, e muito em particular o específico direito de exigirem, à Direcção da cadeia, a documentação necessária para poderem votar.

    A que há é de tal modo absurda que só pode ter sido redigida por dementes.

    O cartaz da Comissão Nacional de Eleições, que é afixado nas nossas cadeias, “explica” como é que os presos devem proceder para poderem votar.

    É, “ipsis verbi”, assim:

    Saiba o seu número de eleitor:

    – Na Junta de Freguesia do seu lugar de residência.

    – Através de SMS (gratuito) para 3838 com a mensagem

    RE (espaço) número de BI/CC (espaço) data de nascimento

     – Na internet www.recenseamento.mai.gov.pt

    O recluso poderia, portanto, na óptica destes génios, optar por uma de três soluções:

    1. – Dirigir-se à porta da cadeia e pedir ao Guarda Prisional que a abra para ir à Junta de Freguesia;
    2. – Mandar um SMS por telemóvel, aparelho proibido em todas as prisões;
    3. – Fazer uma busca na internet sem ter acesso a qualquer computador.

    A APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso, há dez anos, enviou uma carta à Comissão Nacional de Eleições, apontando o ridículo do acima relatado.

    A 28 de Maio de 2014 recebeu a resposta.

    Uma carta amável, agradecendo “os contributos que possam ser remetidos a esta Comissão no sentido de gerar melhorias nas condições de exercício do direito de voto pelos cidadãos presos e não privados de direitos políticos” e garantindo que “terá presente o teor da exposição em apreço nos próximos actos eleitorais”.

    Desde então houve uma dezena de eleições sendo que os reclusos continuam a conhecer “os seus direitos” com as mesmas informações.

    Agora, até pelas Estações de Rádio, são informados que podem dirigir-se à CNE através da internet.

    a person is casting a vote into a box

    Temos assim que, num Estado que se diz de Direito, cidadãos formalmente não privados de direitos políticos, são-no afinal na prática por uma tão antiga quanto persistente ausência de percepção e de informação de que o recluso mantém o direito de voto e por uma cultura assente na lógica da denegação efectiva desses mesmos direitos políticos.

    A estupidez deste cartaz tem, como única vantagem, a possibilidade de os reclusos terem uns momentos divertidos e rirem, à gargalhada, dos senhores doutores da CNE.

    Valha-nos isso!

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Condição

    Condição

    É um rapaz de cinquenta anos, esguio, alto, moreno. Faltam alguns dentes, os que restam encavalitam-se em cima do cigarro.

    Cabeça baixa a vencer a distância ao chão. Nunca o vi caminhar devagar, e caminhar é o que sempre faz, quase corre, não tem outro meio que não as pernas.

    Acena-me sempre, se em mim tropeça na corrida, estende-me o punho para chocar metacarpos na distância de quem se acanha.

    silhouette photography of man

    Ocasionalmente, pede trabalho para amigos. Ninguém tem condição para comer, não com as moedas que recebem por hora. Maioria das vezes ao negro. Não têm condição.

    Para ele vai-se andando. Não se pode parar. Levanta-se sempre às seis da manhã, vai até ao concelho vizinho ver um irmão. Pelo caminho visita quem lhe estende o punho. Quem lhe dá sacas de laranjas, pão, massa, arroz. Frascos de salsichas e latas de atum.

    Sempre dá, vai dando, enquanto não respondem da segurança social.

    Trabalhou muitos anos numa confeitaria, tem orgulho no trabalho que fazia e diz que faz o que for preciso. Se é preciso varrer, varre-se. Se é preciso limpar, limpa-se.

    Levanta o nariz enquanto recorda; a cabeça quase se ergue também.

    Isto está, sabe, não sei… Não sei onde isto vai parar. Não conhece quem precise? Não é assim para trabalho fino de obras, mas para as massas, os baldes, o entulho, sabe?

    brown and green metal handrails

    Fica condicional, conjugação permanente, nem sabemos o quanto até que temos de contar só com as pernas e as sacas para comer. Num vaivem infinito que atravessa cidades, a empurrar os dias para as noites e as noites pela janela fria da casa de adobe com estuques embolorados.

    Como se chega a esta condição e o quanto parece impossível sair de lá, por mais que se continue a caminhar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • CDU: ‘É hora. Mais força à CDU’

    CDU: ‘É hora. Mais força à CDU’

    Faltam menos de 25 dias para as eleições legislativas antecipadas em Portugal, com as comemorações do 50º aniversário da Revolução dos Cravos como pano de fundo, um dos momentos mais marcantes da nossa história democrática. O mês de Abril e os seus princípios inspiram as propostas do Partido Comunista Português (PCP), enraizado na ideologia marxista-leninista. Desde a sua origem em Março de 1921, o PCP tem sido um pilar essencial na evolução dos movimentos operários portugueses, desempenhando um papel significativo na consciencialização e no desenvolvimento político das massas trabalhadoras.

     Em 2022, Paulo Raimundo foi escolhido para assumir o papel de líder do PCP, sucedendo ao histórico Jerónimo de Sousa. Trabalhou em carpintaria, foi padeiro e animador cultural na Associação Cristã da Mocidade na Bela Vista. Desconhecido para a maioria dos portugueses, é no entanto reconhecido no partido pelas suas qualidades humanas e pela vasta e diversificada experiência política. Raimundo traz consigo uma trajectória marcada por múltiplas áreas de actuação, incluindo sindicatos e o acompanhamento de empresas e serviços públicos. Nas eleições antecipadas de 2024, Raimundo encabeça assim a lista da CDU — Coligação Democrática Unitária, em Lisboa.

    Mupi da CDU na Avenida da República, em Lisboa. Foto: ©Sara Battesti

    O perfil do eleitorado da CDU revela uma distribuição diversificada com  destaque para a faixa etária acima dos 54 anos, mas curiosamente com uma participação significativa de jovens adultos. E recebe grande apoio de pessoas com menor escolaridade, enquanto a diferença entre os votos de homens e mulheres é praticamente inexistente.

    Desde Janeiro, na campanha que se vê nas ruas, especialmente em vários mupis, destacam-se promessas como a criação de uma rede pública de creches, aumento de salários e pensões, direito à saúde e melhorias nos transportes públicos. Numa recente sondagem da Católica apresentada no jornal Público, a Saúde e Educação são os assuntos que mais preocupam os inquiridos, com respectivamente 72% e 48% pelo que os temas da campanha do PCP são certeiros.

    O slogan “Basta de injustiça!” é uma presença comum nesses materiais, reflectindo a tradição do PCP em denunciar problemas e mobilizar a população para construir um país mais justo. No entanto, “Basta de injustiça!” tornou-se um leitmotiv bastante desgastado, amplamente usado não só noutras ocasiões, como também por outros líderes, nomeadamente em 2007 por Jerónimo de Sousa.

    Mupi da CDU na zona do Beato, em Lisboa. Foto: ©Sara Battesti

    Consistente na sua abordagem panfletária, diversifica o chamamento ao protesto bem como convoca a população à construção de um futuro para Portugal com base numa distribuição de riqueza mais justa. O facto de ter sido um dos partidos que apoiou o governo de António Costa por seis anos fez com que se acalmassem os sindicatos com a redução da intensidade da luta.

    Durante a pandemia, o PCP nunca adoptou uma postura de confronto com as medidas restritivas que foram impostas, as quais prejudicaram severamente as classes mais desfavorecidas. Ora, desde os trabalhadores precários até aos operários fabris, as medidas tiveram como consequência o agravamento das disparidades de género e raciais. Se porventura o partido proclama a defesa dos desfavorecidos aos quatro ventos, quando chega a hora de agir, parece recuar, o que levou alguns eleitores a afastarem-se. Porém, ao ser um dos partidos responsáveis pela queda do governo, o PCP voltou a assumir a defesa da classe operária, embora deixando de ser uma proposta revolucionária para se tornar reaccionária. Há muito tempo que deixou de nos oferecer sonhos para apenas constatar doenças. Para muitos, esses seis anos são imperdoáveis e, sem dúvida, deixaram uma marca indelével no PCP.

    Nesta primeira fase de campanha, as cores predominantes são o verde, roxo e azul com a mensagem grafada num lettering geralmente aberto a branco. Se porventura, a composição é reconhecível ao longe, a leitura da mensagem ao ser muito descritiva requer demasiado tempo, o que reduz o impacto desta campanha old fashion. Os motivos integram fotografias de pessoas com um filtro de cor verde, o que resulta bastante mal lembrando vultos extraterrestres. Muito embora a presença humana permita sublinhar a empatia com o povo, resulta num design definitivamente pouco atractivo.

    Cartaz 8×3 da CDU ©DR

    Curiosamente, somente na versão de grande formato 8×3 metros é que está representado o líder, aqui também com um filtro azul que acompanha a cor de fundo como parte da identidade CDU. Uma opção que evidencia distância, com o Raimundo que não olha de frente como sugerem os preceitos do marketing político. O resultado é uma composição antiquada que denuncia um partido envelhecido que opta por modelos que pouco se adequam ao actual panorama social, político, e até mesmo comunicacional.

    Em Fevereiro, surge uma nova fase de campanha que aposta numa composição refrescada com um impactante retrato de Paulo Raimundo em grande destaque. De visual mais contemporâneo, o cartaz dá ênfase a valores de esperança e a confiança, apelando à união do eleitorado. A fotografia foi extremamente bem produzida, tendo como fundo árvores frondosas de cores outonais que sugerem uma quinta ou um jardim. É nesta representação da natureza que reside o apelo emocional, para evocar emoções como esperança e confiança simbolizada à verticalidade das árvores.

    Agora, não se percebe por que o PCP não apostou num secretário-geral com maior projecção pública, que transmita uma imagem de menor ortodoxia, como João Ferreira, e preferiu optar por uma figura sem qualquer reconhecimento público. Neste cartaz, denota-se uma clara intenção de tornar a imagem de Paulo Raimundo mais atractiva. Apresenta-se de forma bem cuidada e olha para a o meio da lente da câmara de modo a nutrir um elo de confiança e intimidade com o eleitorado (real e potencial).

    Nova campanha de Outdoor do PCP © DR

    Dispensa a gravata — outra coisa não seria de esperar—, usando um vestuário informal mas elegante, combinando o castanho de um blusão numa alusão à terra, e o azul eléctrico da camisola de lã que sobressai e atrai o olhar das pessoas. Esta renovação de imagem é crucial para poder gerar um vínculo positivo e formar a opinião do eleitorado. De composição simples, esta é uma fórmula clássica feita a partir de uma única fotografia retratando o líder em plano americano, com a expressão grifada “É hora. Mais força à CDU.” Enquanto apelo directo e claro, é uma mensagem curta e fácil de memorizar a que está subjacente o mote “a união faz a força”. Ao contrário de outros cartazes políticos destas eleições, Raimundo encontra-se no centro do cartaz e não num dos lados, inserindo-se mensagem do lado esquerdo, aliás como no caso do Bloco de Esquerda.

    Aqui, o logótipo PCP-PEV é ajustado para encaixar a cruz do boletim de voto. O headline usa a fonte identitária da Coligação Democrática Unitária, permitindo à sigla do CDU estar somente escrita em prol da simplicidade e clareza. Uma acertada aposta nesta campanha que transmite uma postura de homem de estado, compensando o facto do secretário-geral do PCP ser estreante nos palcos televisivos e estar em franca desvantagem face aos adversários.

    Surpreendente é verificar que nestas eleições legislativas de 2024, a CDU é a terceira força política que mais gasta com uma previsão de investimento de 785 mil euros, o que corresponde a um aumento de mais 90 mil euros comparativamente a 2022. Um dos motivos é ter uma campanha de cartazes com uma distribuição alargada pelo território nacional.

    A força. Ilustração Ruy Otero a partir de fotografia de arquivo

    A fotografia de Raimundo neste ambiente natural permite assim transmitir uma mensagem de proximidade e autenticidade. Contudo, a CDU enfrenta desafios nas últimos sondagens, com apenas 2% de intenções de voto, sendo ultrapassada pelo Livre que alcança 3%. Estas sondagens revelam que o surgimento de novos partidos que diversifica o cenário político nacional, tem também desafiado o protagonismo do PCP.  Muito por culpa própria, ao ter-se afastado da sua raiz poética, dando claros sinais de que a sua noção de funcionamento do mundo ainda é do século XIX. Proletariado e capitalismo…onde é que isso já vai!

    Como observou o político e filósofo polaco Schwartzenberg, a política moderna tende a focar mais em pessoas e personagens do que em ideias. Apesar disso, é essencial uma regeneração na classe política para manter a democracia resiliente. À medida que nos aproximamos da votação de 10 de Março, resta saber como o eleitorado responderá a um partido cuja base de apoio está em declínio. Não obstante a abstenção e o envelhecimento da base de apoio, cabe a nós não sucumbirmos a projectos pouco democráticos (e não estou a falar do Chega), mas que, por estarem tão distantes da essência humana, correm o risco de falhar, como aliás se faz sentir um pouco por todo o mundo ocidental. Como é referido nalguns meandros das redes sociais, o primeiro passo é não nos darmos ao luxo de permitir que pensem por nós.

    Sara Battesti é especialista em Comunicação


    Avaliação do cartaz

    Design: 2/5

    Impacto: 2/5

    Eficácia: 2/5

    Média: 2/5


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

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  • Marquês de Pombal: uma estátua a gozar com a democracia

    Marquês de Pombal: uma estátua a gozar com a democracia


    Há dias, o autor do polémico livro As causas do atraso português, Nuno Palma, que recentemente deu uma entrevista ao PÁGINA UM, afirmava o seguinte acerca do facínora que tem uma estátua na principal avenida do país: “O Marquês de Pombal foi criminoso pelo impacto que as suas acções tiveram para o desenvolvimento do país, com efeitos até aos nossos dias. Ele é o político da História de Portugal que mais responsabilidade tem no actual atraso do país”.

    A colossal estátua é uma homenagem ao crime, ao terror, à tirania, ao analfabetismo, à ignorância, ao retrocesso económico, à subserviência, ao culto do burocrata. Foi provavelmente o governante que mais atrasou Portugal em toda a sua história quase milenar. Ele abriu a porta para o que se seguiu. Alguns personagens da actual “democracia” fá-lo-iam orgulhoso!

    black sedan parked on parking space

    Uma biografia de Pedro Sena-Lino sobre o Marquês de Pombal, publicada em 2020, De quase nada a quase Rei, merecia ser de leitura obrigatória em todas escolas; certamente lograria eliminar a propaganda – manuais de história, programas de televisão, livros – a que todos fomos sujeitos em relação ao personagem mais sombrio da nossa história.

    Neste sentido, através do presente artigo, destaco alguns episódios.

    Curriculum vitae manchado

    D. João V, o pai de D. José I, casou-se com uma austríaca, Maria Ana Josefa de Áustria, pertencente à Casa de Habsburgo. O nosso Marquês de Pombal também se casou com uma austríaca, Eleonora Ernestina von Daun. Conheceu-a quando foi enviado a Viena pela corte de D. João V a intermediar um conflito entre o Sacro Império Romano e o Vaticano.

    Depois do seu casamento com Eleonor, e terminada a sua missão em Viena como mediador, o Marquês de Pombal regressou a Portugal, passando a estar necessitado de emprego. A sua esposa ajudou-o nessa tarefa. Como? Tentou meter uma cunha junto da rainha, no sentido de o nomear ministro – designado então por secretário de estado.

    Quando a cunha chegou a João V, qual era a opinião deste em relação ao ilustre Marquês de Pombal. Este respondeu assim à mulher, quando esta “fortemente instava para que o fizesse secretário de estado”, que o ex-enviado tinha “irremediáveis defeitos”. Mais: porque o Rei sabia-o “dotado de boa capacidade, delicadeza de engenho, e agudeza de juízo, tinha espírito sanguinolento, génio vingativo: era mal afecto à sua religião, desprezador do estado, e jurisdição eclesiástica, e tudo isto eram do seu conceito, circunstâncias muito atendíveis, que o inabilitavam para aquele ministério.”

    O ancião D. João V era um sábio: já pressentia o verdugo em que se tornaria o notável Marquês de Pombal. Depois da morte deste, a ocultação de tal opinião, faz-nos recordar aqueles que são propostos na Europa com resumos biográficos contrafeitos, em que as trapalhadas do passado são dissimuladas e o favor sem pudor é evidente.

    O instigador da Bufaria

    Em 1756, o prócere Marquês de Pombal ainda não era o senhor absoluto do país, mas para lá caminhava; nesse ano, já era membro do governo há cinco anos, desempenhando o cargo de Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.

    Nas outras duas secretarias, encontravam-se Pedro da Motta, o Secretário de Estado do Reino – o mais importante cargo, equivalente à de um primeiro-ministro na actualidade – , e Diogo de Mendonça Corte-Real, o Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos.

    Este último supervisionava o trabalho do irmão do Marquês de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o então governador do Brasil – o nepotismo dos irmãos Carvalho e Melo parece-nos familiar!

    Ora, no início da 1756, Pedro da Motta faleceu, deixando vago o posto mais importante da nação. De imediato, os opositores do Marquês de Pombal iniciaram uma conspiração contra este, tentando afastá-lo não só do cargo, mas também do governo. Entre os conspiradores encontravam-se o Duque de Aveiro – depois envolvido e executado no processo dos Távoras – e Francisco Teixeira de Mendonça. Este último foi o autor de uma carta anónima escrita a um grande de Espanha.

    Naquele tempo, esta forma de denegrir alguém consistia em escrever uma missiva sem autor, com a aparência de correspondência privada; mas fazendo-a, claro está, chegar à opinião pública: conventos, casas de nobreza, casas do comércio.

    A carta punha a nu os podres do Marquês de Pombal: um alpinista social, que tinha chegado ao poder sem um tostão, carregado de dívidas, e possuidor de um enorme complexo de inferioridade, dado pertencer à baixa nobreza. A carta obviamente chegou ao conhecimento do Rei.

    Em paralelo, os jesuítas realizaram um relatório sobre a administração do irmão do Marquês de Pombal, tal como sobredito, o então governador do Brasil. Claro está, com imensas queixas em relação a este último. Não espanta que depois tivessem sido perseguidos sem quartel, causando um desastre sem paralelo na educação da população portuguesa – um rifenho, que não perdoava.

    Em face destas duas “bombas”, D. José I não actuou de imediato; solicitou uma auditoria do relatório dos inacianos a Lucas de Seabra da Silva, um homem então muito considerado e mestre de leis.

    Os conspiradores acertaram na estratégia, mas cantaram vitória cedo; o sentimento de confiança era tal, que começaram a tratar de assuntos da corte, assumindo postos que ainda não lhes tinham sido confiados, trocando correspondência eles. Estas relações por escrito não escaparam aos inúmeros espiões colocados na administração da corte pelo insigne Marquês de Pombal. Este último mostrou-as a D. José I, tendo este ficado impressionado com a violência dos vitupérios ao seu ilustre ministro. A primeira “bomba” perdia o detonador.

    Em relação à segunda “bomba”, a averiguação de Lucas de Seabra da Silva teve resultados: “a favor dos jesuítas e muito contra o governador”. O Marquês de Pombal, como exímio manipulador, logrou abordar Lucas de Seabra da Silva e solicitar-lhe a leitura do texto; no final, aconteceu o esperado: convenceu-o a modificar a versão, alterando-a a favor do mano e contra os inacianos. Era o mestre da conspiração palaciana.

    Quando Lucas de Seabra da Silva foi chamado por D. José I para entregar as suas indagações, teve que apresentar uma desculpa, dizendo que teria de recolher esses documentos a sua casa. No regresso a esta, faleceu, tal o remorso que sentiu, dada a sua fraqueza em face da loquacidade sedutora do Marquês de Pombal.

    Como terminou tudo isto? O ilustre marquês terminou nomeado para o almejado posto: Secretário de Estado do Reino.

    Seguidamente, obteve a prisão de todos os conspiradores, através de legislação decretada no início do reinado de D. José I – sempre se encontra algo na legislação para destruir quem se opõe ao poder -, que assim rezava: “o prestígio dos representantes do poder majestático e a interditar de uma vez costumes antigos… como a factura e a distribuição de textos satíricos e libelos famosos.” A liberdade de expressão já era muito ampla naqueles tempos, tudo servia para calar as vozes incómodas!

    Em paralelo, eliminou o seu principal adversário político: Diogo de Mendonça Corte-Real, o Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos. Este último, apesar de não ter participado na conjura, teve a ousadia de criticar publicamente o Rei: este era o culpado pelos constantes benefícios a favor do Marquês de Pombal. Qual o seu fim? Foi preso e deportado para Mazagão (antiga possessão ultramarina portuguesa no actual Marrocos).

    aerial view of city buildings during daytime

    Para terminar de forma espectacular, nomeou o seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos! Este passou a ocupar o posto do pobre Diogo de Mendonça! O poder absoluto terminou entre os manos, pois o seu outro irmão, Paulo António de Carvalho e Mendonça, terminou como Presidente do Conselho do tribunal do Santo Ofício – o nepotismo não tinha limites! Isto faz-nos recordar algo, não?

    O leitor pergunta, e então o instigador da bufaria? Ora, no final de tudo isto, para que nunca mais fosse possível outra conjura contra o sagrado Marquês de Pombal, decidiu emitir um “decreto específico que alargava os incitadores de ofensas contra ministros que despachassem com o monarca… e abrir e conservar uma devassa em segredo, e sem determinado número de testemunhas, onde pudesse qualquer pessoa ir delatar, sem receio de algum tempo, se poder revelar o segredo, toda a conspiração contra a vida dos ministros de Estado, nomeando para juiz dela um desembargador da sua confidência, e prometendo grandes prémios e perdão de culpas”.

    Para os bufos, tudo! Parece que nada mudou desde então!

    O enriquecimento pessoal por decreto

    A Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro foi fundada por um alvará de 10 de Setembro de 1756. A razão da sua fundação? Existia, segundo os seus promotores, “uma anomalia de mercado” que urgia corrigir: o planeador central sempre aparece, que nunca investiu um cêntimo do seu bolso, a opinar e a impor a sua vontade sobre o malvado mercado.

    Qual era essa anomalia de mercado? Dizia-se que tinha “crescido o número dos taverneiros da cidade do Porto a um excesso extraordinário”, acusados de “adulterar” e “arruinar” o vinho. Faz sempre enorme confusão que alguém esteja interessado em enganar perpetuamente os seus clientes, como se estes fossem absolutos ineptos para aquilatar a qualidade do que compram.

    a bunch of grapes that are growing on a vine

    A companhia era um monopólio; previa preços fixos de compra aos produtores – isto de concorrência é sempre desagradável, nada como preços fixados administrativamente –; e detinha o monopólio da exportação.

    Os artigos da Companhia fixavam um território para a produção dos vinhos do Porto; mas eis que surge um aspecto curioso. O único território fora desta área delimitada coincidia – surpresa! – com a do “principal fornecedor individual”: as vinhas que pertenciam ao conspícuo Marquês de Pombal; segundo as suas palavras, os seus vinhos, produzidos em Oeiras, melhoravam o corpo e o paladar dos vinhos do Douro e davam-lhes uma cor mais forte. O topete do nosso Marquês não tinha limites!

    O homem não tinha qualquer rebuço para se enriquecer a si e aos seus acólitos. O seu amigo, o dominicano frei João de Mansilha, descendente de uma família de vinhateiros e que participou na elaboração dos artigos da Companhia, também tinha incluído na região demarcada quintas de parentes seus!

    Em 1773, atravessando problemas de liquidez, o nosso amado Marquês de Pombal propôs a Francisco Mendanha a venda da sua Quinta do Porto de Vila Velha de Ródão, pois fazia todo o sentido: a propriedade era contígua à propriedade de Francisco Mendanha, tinha enorme rendimento, dado que se beneficiava do comércio portuário. Perante tal magnífico negócio, Francisco replicou que o preço pedido pelo Marquês de Pombal não fazia qualquer sentido, dado que a quinta não era mais que “umas casas de pedra, e barro…”. Mas eis que surge a nossa ilustre figura histórica: prometeu-lhe que a expensas do Governo, far-se-iam enormes melhorias na propriedade, permitindo que esta se beneficiasse ainda mais do comércio portuário.

    O dinheiro público a olear um negócio privado, nada que pareça invulgar nos nossos dias! O homem acabou convencido; no entanto, mais tarde, solicitou a anulação do negócio. O que lhe aconteceu, em consequência de tal desfaçatez? Foi parar à cadeia, e teve sorte em não ter perdido a vida. O tratamento era sempre o mesmo para adversários e revoltosos – ninguém brincava com o todo-poderoso Marquês de Pombal.

    No final da vida, o Marquês de Pombal era proprietário de um enorme império imobiliário. Segundo a sua versão, tal façanha apenas provinha dos seus salários de funcionário e heranças – na verdade, uma montanha de dívidas – que tinha recebido. Onde é que já vimos uma história igual?

    Para construir e valorizar tal império imobiliário, muitas dúvidas surgiram sobre a sua origem e métodos. Desde obras no porto de Paço d’Arcos, por forma a facilitar o escoamento dos seus vinhos da sua propriedade em Oeiras, realizadas à custa do erário público; à estrada entre Lisboa e Oeiras, por ele mandada construir, obviamente paga com recursos públicos, que obrigou a trabalhos complicados no Alto da Boa Viagem, para facilitar as suas viagens entre Lisboa e Oeiras ao fim-de-semana; ao palacete nas Janelas Verdes, herdada do seu irmão Paulo e que tinha pertencido à família dos Távoras – aquela que foi acusada e executada sem provas pela tentativa de regicídio; às casas arrendadas a um preço elevadíssimo a estrangeiros que vinham a Portugal fazer negócios com investimento público, como foi o caso do seu amigo Ratton, que geriu a fábrica de chapéus na Rua Formosa, tornando-a depois sua casa particular – actual sede do Tribunal Constitucional.

    Mas a cereja no topo do bolo do seu império imobiliário foi o chafariz da Rua Formosa, onde o Marquês possuía vários imóveis, muitos por si “adquiridos” – muitas dúvidas existem na utilização do erário público para tais aquisições – durante a reconstrução da cidade após o terramoto. Foi-lhe autorizado pelo Rei a sua utilização apenas para “sobras”, com o propósito de levar água canalizada ao seu palácio e a outras suas propriedades. Muitos dos beneficiamentos do dito palácio, como a entrada, foram realizados à custa do erário público. Apenas em 2008, vejam só, confirmou-se, depois da investigação subterrânea de Fernando Teigão e Pedro Costa, que afinal não tinham sido só as sobras, mas tinha ocorrido o efectivo desvio de águas públicas para as propriedades do nosso estimado marquês!

    Após a morte do Marquês de Pombal, William Beckford, um aristocrata inglês, escritor de viagens e político inglês, contava a respeito do seu filho, Henrique José de Carvalho e Melo, o seguinte: “Embora ele – o filho de Pombal – seja uma das maiores fortunas portuguesas, cerca de cento e dez mil coroas de rendimento anual, quis-me fazer acreditar que o pai tinha morrido em péssimas circunstâncias, sobrecarregado de dívidas contraídas para manter a dignidade da sua posição e a honra do país”.

    Há tempos atrás, um insigne ex-membro da oligarquia do nosso regime, explicava-nos a origem da sua fortuna: resultava de uma herança de um milhão de contos da sua mãe e que se encontrava num cofre. Ainda hoje, desconhecemos a forma como tal pecúlio foi transformado em Euros. Isto afinal não mudou muito desde então!

    O mestre da propaganda

    Já em Pombal, depois do seu reinado de terror durante quase 30 anos, e afastado de Lisboa e da Corte, D. Maria I ordenou uma investigação aos “negócios” do Marquês de Pombal, por essa razão, esse período denominou-se de “Viradeira”.

    Para se defender, em 1777, publica umas cartas em inglês, denominadas Letters from Portugal. Estas cartas tornam-se conhecidas da opinião pública portuguesa apenas no ano seguinte. O ilustre Marquês de Pombal, o autor, afirmou que apenas teve conhecimento das mesmas em 1780. Além disso, teve de as mandar traduzir, pois não sabia inglês – um homem que esteve anos como embaixador de Portugal em Londres e que tinha de ler todos os dias a imprensa! As cartas, claro está, constituem um encómio à sua governação – pura propaganda.

    E como sabemos que ele foi o autor desta propaganda? Na colecção Pombalina da Biblioteca Nacional de Portugal de Portugal, a mesma versão da carta, em português, foi encontrada, com anotações, correcções e cortes da pena do nosso louvável Marquês de Pombal.

    Durante toda a sua vida usou da propaganda e de falsas acusações para atingir os seus propósitos – para eliminar, vingar, calar, intimidar – , como foi o caso da expulsão dos jesuítas e do processo dos Távoras.

    Conclusão

    Não espanta que aceitemos um regime que nos retira todas as liberdades individuais, sem qualquer assuada da nossa parte, em nome de medidas com resultados nulos.

    Não espanta que não nos indignemos com o nepotismo dos nossos governantes. Não espanta que não nos suscite qualquer curiosidade a forma como alguns governantes apareçam com enormes fortunas, depois de terem estado no poder vários anos, sem qualquer explicação sobre a sua origem.

    Não espanta que o país não se indigne que as crianças, em particular as mais pobres e desfavorecidas, sejam votadas ao analfabetismo e ao sedentarismo. Não espanta que surjam de todos os quadrantes apelos ao respeitinho pelo poder, que deverá ser sempre sagrado e intocável, em particular pelos jornalistas dos órgãos de propaganda.

    Não espanta que os negócios entre amigos e correligionários nunca sejam objecto de investigação. Não espanta que tenhamos um enorme apreço por quem nos trata com o azorrague a toda a hora.

    Não espanta que sejamos a todo o momento ludibriados pela propaganda em uníssono de toda a imprensa, paga pelo nosso dinheiro, em lugar de leitores e audiências.

    No fundo, o maior facínora da história de Portugal é um símbolo perfeito da actual democracia. A colossal estátua é intocável para o actual regime!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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