Categoria: Opinião

  • Jornalistas como defensores da democracia: o grande embuste

    Jornalistas como defensores da democracia: o grande embuste


    Vimos, na passada quinta-feira, uma classe em greve. Muitos jornalistas pararam. Muitas notícias não foram publicadas ou emitidas nas TVs e rádios. Muitos eventos não tiveram cobertura da imprensa.

    A greve dos jornalistas surgiu num momento particularmente triste para a imprensa em Portugal. O Diário de Notícias (DN) está num ‘buraco’, tanto financeiro como de credibilidade.

    Já escrevi várias vezes sobre a minha ligação afectiva ao DN, um jornal que entrou no meu coração quando, na infância, fiz uma visita de estudo à redacção do jornal e vi como era impresso. Guardo comigo a placa com o meu nome que trouxe de lá.

    Quando assinei notícias e entrevistas no DN, não era eu quem assinava. Era a miúda que se apaixonou pelo jornal naquela visita de estudo.

    (Foto: D.R.)

    Isso não me impede de ver como o jornal foi destruído ao longo dos anos, sobretudo nos anos mais recentes. As péssimas decisões de (má) gestão e a explosão da Internet e das redes sociais não explicam tudo. Também directores do jornal e jornalistas se sentaram ‘à mesa’ com o poder político e económico, com quem tinha poder, esquecendo o que era o DN e esquecendo o que é ser jornalista.

    Isto aconteceu também em outros meios de comunicação social. Tem sido mais visível, nos últimos anos, a grande quebra na qualidade da informação difundida pela imprensa. A precariedade, os baixos salários (para muitos, não para todos) e a praga do churnalism não explicam tudo. Também tem sido mais visível o enviesamento, a falta de rigor, a colagem ao poder político, económico e financeiro. Mas já existiam antes, talvez não fossem tão óbvios. Hoje, o enviesamento, está em níveis estratosféricos, ao ponto de muitos jornalistas nem perceberem que deixaram, há muito, de se comportar como jornalistas e são apenas meros papagaios.

    Em geral, os jornalistas e as direcções dos jornais acompanham o ambiente de cultura de cancelamento, censura e condicionamento da liberdade de imprensa e de expressão que é promovida, hoje, pelas grandes tecnológicas como a Meta (dona do Facebook) e a Google (dona do YouTube). Foi evidente na pandemia. Tem sido evidente no tema da guerra na Ucrânia. Tem sido evidente no conflito em Gaza.

    Jornalistas e directores podem ter ganho amigos poderosos com isso. Podem achar que assim são bem vistos e aceites pela generalidade dos pares. Mas os leitores vão percebendo que isso não é compatível com o Jornalismo. Daí ter também surgido o termo ‘jornalixo’ – que abomino.

    Muitos jornalistas portugueses vivem numa bolha. Pensam que são ‘especiais’ por serem jornalistas e pensam que são donos da verdade e que são ‘o farol da democracia’. Nada podia estar mais longe da verdade. A falta de humildade, de isenção, de pensamento crítico e rigor de muitos jornalistas dos grandes grupos de comunicação social são asfixiantes. Não se respira verdadeiro Jornalismo nas redacções dos grandes grupos de media portugueses, hoje, em geral (com raras excepções).

    Por outro lado, os jornalistas que querem fazer bom jornalismo não conseguem. Têm sido inúmeros os relatos que me chegam de jornalistas que não têm tempo para investigar e são pressionados a fazer notícias ao segundo. Outros não têm sido autorizados a fazer determinadas investigações, reportagens, entrevistas e notícias. Outros, já nem se ‘atrevem’ a propor alguns temas. Preferem salvar os seus postos de trabalho (para já).

    Nos media, como no mundo académico, está instalado um ambiente pútrido e podre de caça à opinião ‘divergente’ e de bullying e difamação em relação ao ‘dissidente’. Os factos, a verdade e a democracia pouco são para ali chamados. Quem diverge das ideologias e visões da moda é classificado como sendo militante de ‘extrema-direita’, ‘radical’. Dependendo do tema, o bullying e a difamação envolvem os mais diversos insultos e nomes pejorativos.

    É um ambiente de perseguição mas também de discriminação. Basta lembrar a discriminação e o discurso de ódio promovido nas TVs, jornais, revistas e redes sociais por alguns jornalistas e directores de órgãos de comunicação social durante a pandemia.

    Alguns desses jornalistas e directores são os mesmos que afirmam ser “totalmente” contra qualquer tipo de “discriminação”, contra “todo” o “discurso de ódio” e que dizem defender a “soberania sobre o próprio corpo”. Isto não se inventa. Isto é o populismo em acção.

    play figures, green, blue
    (Foto: D.R.)

    O mesmo ambiente de falta de rigor informativo, falta de isenção, enviesamento e perseguição é visível, hoje, na cobertura das eleições legislativas.  Além da falta de pluralismo, em geral, com partidos de ‘primeira’ e partidos de ‘segunda’. (Daí o PÁGINA UM ter levado a cabo uma iniciativa única na imprensa, a rubrica HORA POLÍTICA, para dar voz aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal.)

    Não votei num partido do espectro da direita. Mas farei tudo para que os portugueses e os europeus possam votar no partido que bem entenderem. Democracia é também isso. E é igualmente respeitar a decisão de quem vota.

    E, como jornalista, não posso – não devo – fazer uma cobertura diferente dos partidos consoante sejam de esquerda ou extrema-esquerda, de centro, de direita ou extrema-direita, ou partidos que assentam no princípio de serem formados por cidadãos independentes.  

    Democracia não é só quando ganha o “meu” partido. Mas, nestas eleições legislativas, ficou claro que, para alguns – incluindo jornalistas –, mudou o conceito de ‘democracia’.

    Desde logo, com a reacção ao queimar de um cartaz de um dos partidos – do Chega –, um acto que foi bem visto, em geral, na imprensa. Tivesse acontecido com um partido que se diz de esquerda ou de extrema-esquerda e caia o Carmo e a Trindade. Depois, com a forma claramente enviesada, deturpada e indigna como a maioria da comunicação social trata o Chega e André Ventura.

    (Foto: D.R.)

    A forma como a maior parte dos jornalistas e da imprensa trata o Chega e Ventura não é mau para Ventura nem para o partido. É mau para o Jornalismo e para a imprensa. E para os jornalistas.

    Aliás, com a má imagem que muitos portugueses têm dos jornalistas, quanto pior a imprensa tratar Ventura e o Chega, mais votos terão.

    Agora, é comum ver-se na imprensa notícias e artigos e entrevistas que difundem ideias sobre os perigos do populismo na Europa e da ascensão da extrema-direita (mas, para os media, quase tudo hoje que não é de esquerda é ‘extrema-direita’). Mas são a imprensa e os partidos no poder que têm sido decisivos para o crescimento dos votos em partidos de direita, populistas e de extrema-direita.

    É difícil encontrar notícias, entrevistas e artigos de opinião sobre um outro facto muito concreto e perigoso: a grande ameaça para a Europa, a democracia e a liberdade tem sido protagonizada pelos políticos que têm liderado a região nos últimos anos.

    Os relatórios que mostram um enorme recuo no nível de democracia nos países do Ocidente são claros. Os alertas de jornalistas, de activistas dos direitos humanos, de políticos e de reputados académicos e cientistas acerca da crescente censura e do condicionamento da liberdade de imprensa e de expressão são claros.

    white and black typewriter on green grass

    Não têm sido ‘partidos populistas’ ou a ‘extrema-direita’ que têm aprovado leis e regulação que constituem uma ameaça à liberdade de imprensa, à liberdade de expressão, aos direitos humanos e aos direitos civis. Tem sido a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e governos que têm tido o apoio de partidos que se dizem de ‘esquerda’, como é o caso de Portugal.

    O mesmo se passa em países como o Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália e Brasil. Nestes países, a liberdade de expressão, os direitos humanos e civis estão sob séria ameaça. Por isso, na Europa como em outras regiões, a população ‘abandona’ partidos que, se afirmando de ‘esquerda’, estão cada vez mais com tiques totalitários e de tirania (e de perseguição dos jornalistas isentos e não comprometidos com o poder).

    Não são partidos ‘populistas’ ou de ‘extrema-direita’ que estão a promover e que pretendem subscrever na íntegra – sem negociar – as alterações perigosas e desumanas ao Regulamento Sanitário Internacional. São partidos como o PS e o PSD. É a Comissão Europeia.

    Não são partidos ‘populistas’ e de ‘extrema-direita’ que apoiam e aprovam gigantescos desvios – de milhares de milhões de euros – de dinheiros públicos para entregar às poderosas indústrias de venda de armas para a compra de armamento e equipamento militar, para criar uma “economia de guerra”. (Aliás, pergunto-me onde andam os pacifistas da ‘esquerda’ em Portugal e outras países na Europa).   

    black and white labeled bottle
    (Foto: D.R.)

    Mas os jornalistas portugueses ignoram tudo isto. Se assistirmos aos noticiários, se lermos revistas, jornais e sites dos media, a ameaça é o Chega, os partidos populistas e a extrema-direita.

    Nenhuma notícia ou opinião (tirando uma ou outra excepção) sobre como as forças, os interesses e os políticos que têm estado no poder em Portugal e a nível comunitário têm colocado em risco a liberdade de imprensa, a democracia e os direitos humanos e civis. (E a paz e a defesa do meio ambiente, a meu ver.)  

    Isto só acontece porque os media estão capturados por interesses políticos e económicos. E porque há jornalistas que esqueceram o que é ser jornalista. Apropriaram-se da ‘verdade’, mas difundem notícias enviesadas e carregadas de ideologia. Pensam ser um ‘farol da democracia’ e fazem um trabalho sem o mínimo pensamento crítico, rigor e busca pela isenção.

    O Jornalismo é, para mim, uma das profissões mais belas. É uma Arte. E é fundamental para manter os poderosos sob escrutínio. Para o Jornalismo viver é preciso que haja jornalistas, profissionais com vontade de cumprir escrupulosamente os princípios que regem a profissão, incluindo o rigor, a isenção, a independência. Ter pensamento crítico, literacia em diversas áreas e cultura geral ajudam. Mas, se os jornalistas seguirem as regras de base no Jornalismo, também farão um trabalho competente.

    Mas, por enquanto, muitos jornalistas portugueses preferem continuar a viver na bolha. A bolha em que preferem ignorar que os media são coniventes com os poderes políticos e económicos. A bolha em que os jornalistas se sentem especiais, deixaram de ser humildes, e vivem agarrados às suas ideologias, crenças e preconceitos, agarrados à moda dos slogans do wokismo e dos slogans dos spin-doctors pagos pelos grandes partidos e pelas indústrias e lobbies. Os mesmos que, depois, pagam as parcerias comerciais com os grandes grupos do sector da comunicação social, como a Global Media, que é (ainda) a dona do DN.

    (Foto: D.R.)

    Enquanto a esmagadora maioria dos jornalistas, e quase todos os directores dos principais órgãos de comunicação social, viverem na bolha, a democracia continuará em risco e o Jornalismo também. Porque ser jornalista é a melhor profissão do mundo, mas também acarreta uma enorme responsabilidade: a de se ser independente, rigoroso e isento. De fazer escrutínio dos poderes. E de ser livre de amarras feitas em almoços e jantares com políticos, banqueiros, comentadores comprometidos, ‘almirantes-aspirantes-a-Presidente-da-República’ e lobistas de toda a espécie.

    Os jornalistas podem continuar a querer viver na sua bolha. Mas enquanto não fizerem greve aos fretes, às ideologias, às conferências pagas, aos podcasts patrocinados (encomendados) e aos almoços e jantares com poderosos, a democracia e o Jornalismo continuarão em risco.

    Pode já não se conseguir salvar o DN. Mesmo que venha a ser alvo de perdão de dívidas e de uma mega injecção de dinheiros dos contribuintes (o que não defendo), dificilmente voltará a ser o mesmo de outrora. Mas pode ainda salvar-se o Jornalismo e a profissão de jornalista. Assim, os leitores exijam, os reguladores actuem e os jornalistas queiram.   


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  • Condução

    Condução

    É qualquer coisa como uma calma natural – não diria paz, diria harmonia. O motor segue, trabalhando, naquele compasso próprio, e ronronado, mais rápido do que nós poderíamos andar, talvez mais seguro, dependendo apenas da capacidade de ele, o carro, curvar, como se quer e para onde se quer, mesmo se a chuva martela o seu fino tecto sem piedade.

    Mãos calejadas de bate-chapas. E a forma como, numa curva, se desfaz a manobra, largando o volante na pressão exacta para deslizar pelas mãos, e pelos calos, de uma forma suave, macia, meiga, num shush arrastado, parecendo um corpo a esfregar-se nos lençóis ainda quentes da manhã.

    a close up of the front of a classic car

    Tanto assim é que, aliás, estamos sentados, a bordo da “viatura”, veículo, nave, como que argonautas percorrendo o mundo. E o mundo se move lá fora, tanto que estamos, aliás, sentados, a bordo, gestos suaves nos pedais, pressão suave no volante. E o mundo se abre à chuva, lá fora, e o sol tímido de Primavera surge e nos cega pelo vidro, ali, enquanto estamos, aliás, sentados.

    Sentados.

    Sentados.

    E o mundo é que se move lá fora.

    Cheiro a óleo de motor numa cave escura, panos esfarrapados tingidos de negro, tinir de martelos na distância, chapa amolgada, a queda de uma peça, metal, metal, metal. Calos nas mãos, e a pressão exacta que se exerce, com paciência, na condução, metade do caminho nem por nós é feito, mas pelo mundo que se move lá fora, forças cinéticas que nos levam, alguns a segurarem o leme, outros só à boleia.

    A acidez industrial que nos penetra as narinas, e sabemos que o mundo se constrói assim, de forma suja, veloz, violenta (mas a pressão exacta e a suavidade do couro nos calos das mãos, shush, shush).

    Fatos macacos azuis, semanas de segundas a sábados. Domingos desmaiados num sofá, que se esmaga debaixo de ossos, que vibraram em demasia em cada martelada. Sestas com sonhos nebulosos, e a pressão da água a ferver em radiadores que se preparam para declarar a sua irritação. Velas, faíscas, ar, combustível.

    white vehicle on road

    A forma de condução diz tudo de uma pessoa (já viste, já viste?) – se tem o sangue quente de novos imortais ou a frieza conformada de velhos curvados (que força é essa, que força é essa que trazes nos braços?).

    A espacialidade, a navegação, a rota imaginária. O olhar de soslaio para um retrovisor na esquerda, na direita (em cima?) e o não parar e o parar também.

    Há homens que nascem para conduzir uma vida inteira (eterna), conduzem e engatam mudanças, quebram ciclos com o pé na embraiagem, travam ao de leve, gerindo a poupança de calços, nariz no ar a medir a máquina, ouvidos afilados a auscultar os sussurros.

    Se tirais a máquina ao homem, que conduz, é vê-lo lá, desmaiado a um domingo eterno, durante a sesta, a premir ligeiramente o pé direito no acelerador e a mão (e os calos) a engatar a mudança, o volante a deslizar na curva de saída da via rápida, e o horizonte agora tão longe, porque a máquina se vai sem eles (e agora? E agora?).

    Agora, é montar puzzles, cismar, sem saber se envelhece, porque parou, ou parou porque envelhece.

    Como podemos nós envelhecer se ainda nos lembramos tão bem de ter sangue quente de jovem imortal, mas dentes que caem, gengivas que retraem, calos que amolecem, joelhos que petrificam se sentados.

    assorted-color car lot

    Sentados.

    Sentados.

    Ajustes na máquina. Calibragem, nariz no ar, a medir, ouvidos afilados, a auscultar. Reserva de combustível tem impurezas, contamina o circuito e tolhe os movimentos.

    Fatos macacos azuis.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Sou jornalista, não fiz greve e não tenho a cara de pau do Luís Delgado

    Sou jornalista, não fiz greve e não tenho a cara de pau do Luís Delgado


    Sou sincero. Não fiz greve nem ponderei fazer. Enquanto em simultâneo – como sócio maioritário e gestor de um pequeno órgão de comunicação social, com um mísero capital social de 10.000 euros, mas sem dívidas – escrevia mais um caso de contratações públicas de duvidosa legalidade e de questionável ética, congeminava argumentos para escrever um editorial sobre a razão para não participar na greve, mesmo sendo sindicalizado.

    Tinha uns quatro ou cinco motivos para explanar, mas eis que me enviam um texto de um outro gestor de uma empresa de comunicação social também com um capital social de 10.000 euros que escreveu este texto na revista Visão:

    Hoje estou em greve! Sou jornalista, não no ativo, mas acompanho todos os que vão parar neste dia. E incentivo essa manifestação de vontade, fortemente.

    Não é só o SNS, a Educação ou a Habitação que estão na Constituição. Também está a Comunicação Social. E para essa Carta Fundamental e fundacional ter existido, foi necessário ter uma Imprensa livre, respeitada e segura.

    people having rally in the middle of road

    Esta nova AR [Assembleia da República] e Governo têm o dever e a obrigação de prestar a mais básica atenção a toda a Comunicação Social.

    Era o que faltava preocuparem-se apenas com a RTP, RDP e Lusa. Merecem, sem dúvida, mas são a ínfima parte da Imprensa em Portugal.

    Com a Imprensa em greve, está suspenso um dos pilares fundamentais e independentes da Democracia. Assim não pode ser!

    Este texto é – como já exposto no título deste meu editorial – da autoria de Luís Delgado – um ex-jornalista, que é muitíssimo diferente de se ser “um jornalista, não no ativo” –, o detentor único da Trust in News, a empresa de media com um capital social de 10.000 euros (como a empresa do PÁGINA UM) que almejou comprar 17 títulos à Impresa no início de 2018, num nebuloso contrato que incluiu dinheiros do Novo Banco, a ser então intervencionado por um mecanismo de capitalização com fundos estatais.

    Ora, o “jornalista, não no ativo” Luís Delgado, que hoje fez greve, é um dos algozes da imprensa (e personifica todos), que transformaram a nobre função de watchdog do Jornalismo num servil vassalo do poder e dos interesses económicos e financeiros por força de sucessivos endividamentos e falta de ética e vergonha na cara.

    Photograph of a Vintage Typewriter on Table

    Em Economia há duas máximas: sem um produto de qualidade não há procura; e a falta de ética conduz a práticas de concorrência desleal, que a todos afectará.

    Ora, foi o “jornalista, não no ativo” Luís Delgado, que hoje fez greve por um jornalismo credível e independente, que, com os seus ‘produtos’, agora enxameados de parcerias comerciais promíscuas, foi permitindo, com a conivência do Governo socialista (a ‘festa’ começou desde o início de 2018), uma gestão ruinosa que acumulou sem parança dívidas astronómicas ao Estado, que foi escondendo publicamente, porque nem a Entidade Reguladora para a Comunicação Social as queria conhecer (o regulador está mais preocupado com outras minudências).

    Senão vejamos. A Trust in News devia no final de 2018 cerca de 942 mil euros ao Estado. Um ano depois subia para quase 1,6 milhões; em 2020 pulou para 5,1 milhões de euros; a seguir para 8,2 milhões e em 2022 estava já em 11,4 milhões de euros. O PÁGINA UM foi o primeiro e único jornal a falar deste vergonhoso estado de uma empresa de media, em Julho do ano passado.  

    Nada aconteceu. E o “jornalista, não no ativo” Luís Delgado surge agora a fazer greve e a armar-se em arauto do jornalismo credível e independente. Faltou explicar como gere a independência e a credibilidade da informação em 17 títulos da imprensa portuguesa quando a empresa gestora tem um capital social de 10.000 euros e um passivo total de 27,2 milhões de euros.

    PÁGINA UM revelou em Julho de 2023 que a Trust in News tinha um passivo de 27,2 milhões de euros e dívidas ao Estado de 11,4 milhões de euros, Ministério das Finanças sabia e nunca se pronunciou.

    Quem manda – ou quais são os custos para a Imprensa de qualidade – numa empresa onde o tal “jornalista, não no ativo”, único dono de fachada, controla, afinal, menos de 0,04% dos activos?

    Estamos a brincar?  

    Querem que eu faça greve para satisfazer a pedinchice do tal “jornalista, não no ativo”, Luís Delgado, e contribuir assim para que a “nova AR e Governo” concretizem “o dever e a obrigação de prestar a mais básica atenção a toda a Comunicação Social”? E assim, por tabela, ajudar a falida e vendida Trust in News? Ou a Global Media? Ou grande parte dos ‘mastodontes’ que nunca aceitarão que, em tempos difíceis, auxiliar os maus projectos só prejudicará os bons, porque são eles os maus?

    Saibam que a Lei de Gresham aplica-se também à Imprensa. Por isso, querer salvar empregos a todo o custo na Imprensa será o fim do Jornalismo. A greve dos jornalistas faria todo o sentido, mas apenas se fosse por motivos fundamentais, a começar por expulsar do mercado os lobos que se vestem de cordeiros.


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  • A liberdade de dizer coisas abjectas

    A liberdade de dizer coisas abjectas


    1 – Comecemos pelo que deveria ser uma obviedade: defender a liberdade de expressão para as ideias A, B e C não é concordar com as ideias A, B e C. Não compreender isto é não compreender a essência da democracia. Ou defendemos a liberdade de expressão para exprimir ideias que consideramos abjectas, ou não defendemos a liberdade de expressão.

    2 – O artigo «Why Do Citizens Think They Cannot Speak Freely?», de Jan Menzner e Richard Traunmüller, publicado em 11 de Agosto de 2022 na revista Politische Vierteljahresschrift, refere que as restrições à liberdade de expressão têm assolado o mundo dito democrático, e que, na Alemanha, enquanto, em 1971, 83 % dos Alemães se sentiam livres para expressar a sua opinião política, volvidos 50 anos, em 2021, apenas 45 % sentiam tal liberdade. Muito mais dados destes poderiam ser trazidos à colação, designadamente no Reino Unido, em que o direito a não ser ofendido se tem sobreposto à liberdade de expressão, bastando um indivíduo sentir que foi vítima de uma ofensa criminal com base numa determinada característica identitária para isso engrossar as estatísticas dos crimes de ódio.

    angry face illustration

    3 – Entre todas as dissemelhanças das ditaduras, há, pelo menos, uma característica comum a todas: a ausência de liberdade de expressão.

    4 – Se o critério para erigir restrição de discurso for a existência de pessoas que se sintam ofendidas ou melindradas, e se quisermos abranger todos os potencialmente ofendidos ou melindrados, concluiremos que não poderemos falar de nada, porquanto haverá sempre tantas sensibilidades diferentes quantas pessoas houver no mundo. Acresce que vivemos num ambiente cultural em que tudo hoje encerra algo potencialmente ofensivo para alguém. Citando a humorista Joana Marques: «Lembro-me de uma senhora que se ofendeu muito quando falei de comida servida em tábuas. Achei que era dos temas mais inócuos de sempre. Serviu-me de lição.» Vejamos outro exemplo: em lugar de se discutir se Will Smith deveria ter sido expulso da cerimónia dos Óscares na sequência da agressão física a Chris Rock, por causa de uma piada sobre alopecia, o jornalismo centrou-se nos «limites do humor», numa época em que tantos são cancelados e perdem o emprego (por vezes, a carreira, veja-se o que aconteceu a Tim Hunt) devido a uma piada — o que foi cristalinamente sintomático da atmosfera cultural hodierna.

    5 – Para quem entende que as «más ideias» devem ser proibidas, de modo que não se propaguem, sublinhe-se que Hitler e Estaline (muitos outros exemplos podem ser invocados, refiro apenas estes dois por serem muito fortes e muito conhecidos) subscreviam tal crença e que aplicaram tal tese com denodo — e com as consequências que conhecemos.

    photography of woman standing on desert

    6 – Tal como Christopher Hitchens não conhecia um período da História dos Estados Unidos em que «um cerceamento da linguagem» correspondesse a «um alargamento dos direitos», também eu não conheço tal período histórico (nem sequer conheço quem conheça): nem nos Estados Unidos nem fora deles.

    7 – A liberdade de expressão é o corolário democrático de cada cabeça poder pensar diferentemente, e, por conseguinte, o direito de cada um a não ser garrotado quanto à possibilidade de expressão do seu pensamento.

    8 – O direito de liberdade de expressão não é apenas o direito de falar expresso no ponto 7 — é também o (muito menos falado) direito de ouvir e conhecer o que cada um pensa. Quanto maior a autocensura (a censura efectuada pelo próprio) e a heterocensura (a censura do Outro), menos ficamos a saber o que o Outro pensa, ou seja, mais facilmente somos enganados e manipulados. Vejamos um exemplo muito concreto: quem leu e ouviu os comentários feitos no dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, concluirá, se acreditar, que, no Ocidente, são quase, quase, quase todos feministas encartados.

    9 – Ao longo da História, a ortodoxia dominante foi, não raro, quebrada por vozes de quem era encarado como louco, perigoso, diabólico. Todas as vozes dissonantes têm razão só por serem contra a ortodoxia dominante de determinado tempo e determinado lugar? Evidentemente, não. Assinale-se apenas que, dentro dessas vozes dissonantes, pode haver uma ideia que, ultraminoritária e herética à época, constituirá o embrião das «boas ideias» do futuro. A História está pejada de exemplos e mártires destes.

    10 – Convirá sempre lembrar que erigir tabus não apaga essas ideias impronunciáveis de todas as mentes, mas que apenas esconde a dimensão da sua existência, podendo, com uma probabilidade que não deve ser subestimada, pavimentar a estrada para o surgimento de maiorias silenciosas, que um dia poderão explodir de forma descontrolada. Mais: no dia em que aparece Fulano a quebrar tais tabus, as pessoas poderão vingar-se nas urnas do longo silêncio acumulado.

    people in green and black jackets standing on green grass field during daytime

    11 – A persuasão é um método mais eficaz de mudar mentalidades do que a proibição por decreto ou do que a «proibição» pela via de um ambiente cultural muito opressivo. Para convencer o Outro de que X é melhor do que Y, costuma ser preferível propor e conquistar mentalidades a impor sem ter um número considerável de mentalidades conquistadas. Enquanto a persuasão, os argumentos, as estatísticas, os números, a lógica (e a dose certa de pathos, consoante os auditórios) podem incrustar uma ideia na cabeça do Outro, a proibição incute apenas o medo de se defender uma ideia, desistindo de a inculcar nas mentes alheias pela força das palavras e dos argumentos. Em suma: a proibição é, perdoe-se-me a rima, uma rendição. Quanto ao mais, a proibição vem acompanhada da fragrância sedutora da transgressão, permite a vitimização («Não me deixam falar! Fui censurado! Não posso dizer o que penso! É isto uma democracia?») e cria a dúvida («Se não podemos defender esta ideia, deve haver interesses muito fortes que a querem proibir», «Têm medo de que esta ideia se discuta, estão assim tão seguros dela? Têm medo de quê, afinal?»).

    12 – Se é verdade que a violência verbal pode, em certos casos, concitar a violência física, não é menos verdade que deixar os outros aliviar a tralha que os enraivece pode funcionar como um saco de pugilismo que lhes esvazia o ódio, a raiva e o ressentimento. Daqui se segue que tirar-lhes tal saco de pancada pode desaguar na solidificação do ódio, da raiva, do ressentimento e na expressão de uma maior violência física.

    13 – Quando a censura é desocultada, a ideia proibida e a pessoa amordaçada crescem em simpatizantes. Mais: a solidificação de ódios é garantida, e tanto maior quanto maior a pena para o que disse o que não deveria ter dito.

    14 – Há dois tipos de censura: não podes falar sobre x de certa forma (censura negativa) e tens de falar sobre y desta forma (vejam-se os critérios anunciados para os Óscares).

    grayscale photo of people on street near buildings during daytime

    15 – Muitos terão ouvido a frase atribuída a Voltaire (mas de Evelyn Beatrice): «Não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo.» Seria tão saudável que os habitantes do espaço público a repetissem diariamente e, acima de tudo, a aplicassem. Não deixa de ser curioso que tantos invoquem a liberdade de expressão, mas que tão poucos a invoquem para a defesa das ideias que não são as da sua tribo. Em matéria de confinamentos, da guerra na Ucrânia, de Israel versus Palestina, encontramos tantas pessoas que procuraram garrotar a opinião dos outros e que um dia descobriram o princípio sacrossanto da liberdade de expressão: o dia em que sentiram a expressão das suas ideias cerceada. É forçoso dizer-lhes, de modo que aprendam a duras penas: «Desculpe-me, mas não defendeu a liberdade de expressão para a ideia X. Como pode agora reclamar o sacrossanto direito da liberdade de expressão para a ideia Y?»

    Termino com uma sugestão: faça-se um inquérito, totalmente anónimo, que pergunte a cada jornalista, opinador e comentador: Sente total liberdade por parte da sua entidade patronal para dizer o que pensa?
    Quando escreve ou fala, o medo da reacção das redes sociais e da ortodoxia dominante leva-o/a a não dizer o que pensa?

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Universidade de Harvard espezinha a verdade

    Universidade de Harvard espezinha a verdade


    Já não sou professor de Medicina na Universidade de Harvard. O lema de Harvard é Veritas, latim para ‘verdade’. Mas, como descobri, a verdade pode levá-lo a ser demitido. Esta é a minha história – uma história de um bioestatístico de Harvard e epidemiologista de doenças infeciosas, agarrado à verdade enquanto o mundo perdia o rumo durante a pandemia de covid-19.

    Em 10 de março de 2020, antes de qualquer solicitação do governo, Harvard declarou que “suspenderia as aulas presenciais e mudaria para o ensino online”. Em todo o país, universidades, escolas e governos estaduais seguiram o exemplo de Harvard.

    (Foto: D.R.)

    No entanto, ficou claro, desde o início de 2020, que o vírus acabaria espalhando-se pelo mundo e que seria inútil tentar suprimi-lo com confinamentos. Também ficou claro que os confinamentos infligiriam enormes danos colaterais, não apenas à educação, mas também à saúde pública, incluindo tratamento para cancro, doenças cardiovasculares e saúde mental. Durante anos vamos estar a lidar com os danos causados pelos confinamentos. As nossas crianças, os idosos, a classe média, a classe trabalhadora e os pobres em todo o mundo – todos sofrerão.

    As escolas também fecharam em muitos outros países, mas sob fortes críticas internacionais, a Suécia manteve as suas escolas e creches abertas para seus 1,8 milhões de crianças, de um aos 15 anos. Porquê? Embora qualquer pessoa possa ser infectada, sabemos desde o início de 2020 que existe uma diferença de mais de mil vezes no risco de mortalidade por covid-19 entre jovens e idosos. As crianças enfrentavam um risco minúsculo de covid-19, e interromper a sua educação iria prejudicá-las por toda a vida, especialmente aquelas cujas famílias não podiam pagar escolas particulares ou tutores para estudar em casa.

    Quais foram os resultados durante a primavera de 2020? Com as escolas abertas, a Suécia teve zero mortes por covid-19 na faixa etária de um aos 15 anos, enquanto os professores tiveram a mesma mortalidade que a média de outras profissões. Com base nesses factos, resumidos num relatório de 7 de Julho de 2020 da Agência de Saúde Pública sueca, todas as escolas dos Estados Unidos deveriam ter reaberto rapidamente. Não fazê-lo levou a “evidências surpreendentes sobre a perda de aprendizagem” nos Estados Unidos, especialmente entre crianças de classe baixa e média, um efeito não observado na Suécia.

    A Suécia foi o único grande país ocidental que rejeitou o encerramento de escolas e outros lockdowns em favor [da estratégia] do foco na protecção dos idosos, e o veredicto final está agora emitido. Liderada por um inteligente primeiro-ministro social-democrata (um soldador), a Suécia teve o menor excesso de mortalidade entre os principais países europeus durante a pandemia, e menos de metade da dos Estados Unidos. As mortes por covid-19 na Suécia ficaram abaixo da média e evitaram a mortalidade colateral causada por lockdowns.

    Crianças a brincar num parque infantil em Estocolmo, em Agosto de 2020. A Suécia manteve a sociedade a funcionar durante a pandemia. Manteve as escolas e creches abertas e recusou confinamentos, em geral. Também não recomendou o uso de máscara facial, com raras excepções. (Foto: PAV)

    No entanto, em 29 de julho de 2020, o New England Journal of Medicine, editado por Harvard, publicou um artigo de dois professores de Harvard sobre se as escolas primárias deveriam reabrir, sem sequer mencionar a Suécia. Foi como ignorar o grupo de controle placebo ao avaliar um novo medicamento farmacêutico. Esse não é o caminho para a verdade.

    Nessa primavera, apoiei a abordagem sueca em artigos de opinião publicados no meu país natal, a Suécia, mas, apesar de ser professor de Harvard, não consegui publicar as minhas ideias nos meios de comunicação social americanos. As minhas tentativas de divulgar o relatório da escola sueca no Twitter (agora X) colocaram-me na lista negra de tendências da plataforma. Em agosto de 2020, o meu artigo de opinião sobre o encerramento de escolas e a Suécia foi finalmente publicado pela CNN em espanhol mas não aquele em que está a pensar. Escrevi-o em espanhol, e a CNN-Español publicou-o. A CNN-English não estava interessada.

    Não fui o único cientista de saúde pública a manifestar-se contra o encerramento de escolas e outras medidas não científicas. Scott Atlas, uma voz especialmente corajosa, usou artigos e factos científicos para desafiar os conselheiros de saúde pública na Casa Branca de Trump, o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, Anthony Fauci, o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, Francis Collins, e a coordenadora da covid-19, Deborah Birx, mas sem sucesso. Quando 98 de seus colegas do corpo docente de Stanford atacaram injustamente Atlas numa carta aberta que não forneceu um único exemplo sobre onde ele estava errado, escrevi uma resposta no Stanford Daily para o defender. Terminei a carta salientando que:

    Entre os peritos em surtos de doenças infeciosas, muitos de nós, há muito que defendemos uma estratégia orientada para a idade, e eu teria todo o gosto em debater esta questão com qualquer um dos 98 signatários. Entre os apoiantes está a professora Sunetra Gupta, da Universidade de Oxford, a epidemiologista de doenças infecciosas mais proeminente do mundo. Assumindo que não há preconceito contra mulheres cientistas negras, peço aos professores e alunos de Stanford que leiam os seus pensamentos.

    Nenhum dos 98 signatários aceitou a minha proposta de debate. Em vez disso, alguém em Stanford enviou queixas aos meus superiores em Harvard, que não ficaram entusiasmados comigo.

    Eu não tinha nenhuma inclinação para recuar. Juntamente com Gupta e Jay Bhattacharya em Stanford, escrevi a Declaração de Great Barrington, defendendo uma proteção centrada na idade em vez de lockdowns universais, com sugestões específicas sobre a melhor forma de proteger os idosos, permitindo que crianças e jovens adultos vivessem perto de vidas normais.

    Com a Declaração de Great Barrington, o silenciamento foi quebrado. Embora seja fácil descartar cientistas individuais, era impossível ignorar três epidemiologistas seniores de doenças infeciosas de três universidades importantes. A declaração deixou claro que não havia consenso científico para o fecho de escolas e muitas outras medidas de confinamento. Em resposta, porém, os ataques intensificaram-se – e até se tornaram caluniosos. Collins, um cientista de laboratório com experiência limitada em saúde pública que controla a maior parte do orçamento de pesquisa médica do país, chamou-nos de “epidemiologistas marginais” e pediu aos seus colegas que orquestrassem uma “retirada devastadora da publicação”. Alguns em Harvard obedeceram.

    Um proeminente epidemiologista de Harvard chamou publicamente a declaração de “uma visão marginal extrema“, equiparando-a ao exorcismo para expulsar demónios. Um membro do Centro de Saúde e Direitos Humanos de Harvard, que tinha defendido o encerramento das escolas, acusou-me de “provocar [trolling]” e de ter “política idiossincrática”, alegando falsamente que eu estava “aliciado (…) com o dinheiro de Koch“, “cultivado por think tanks de direita” e “não iria debater com ninguém“. (A preocupação com os menos privilegiados não torna alguém automaticamente de direita!) Outros em Harvard preocuparam-se com a minha “posição cientificamente imprecisa” e “potencialmente perigosa”, enquanto “lutavam com as proteções oferecidas pela liberdade académica”.  

    Embora cientistas, políticos e os media poderosos a tenham denunciado vigorosamente, a Declaração de Great Barrington reuniu quase um milhão de assinaturas, incluindo dezenas de milhares de cientistas e profissionais de saúde. Estávamos menos sozinhos do que pensávamos.

    Martin Kulldorff, Sunetra Gupta e Jay Bhattacharya escreveram a Declaração de Great Barrington.
    (Foto: D.R./GBD)

    Mesmo de Harvard, recebi mais feedback positivo do que negativo. Entre muitos outros, o apoio veio de uma ex-presidente do Departamento de Epidemiologia – uma ex-reitora, uma cirurgiã de alto nível e uma especialista em autismo, que viu em primeira mão os danos colaterais devastadores que os lockdowns infligiram aos seus pacientes. Embora parte do apoio que recebi tenha sido público, a maioria foi nos bastidores, de professores que não estavam dispostos a falar publicamente.

    Dois colegas de Harvard tentaram organizar um debate entre mim e os professores de Harvard, mas, tal como aconteceu com Stanford, não houve interessados. O convite ao debate permanece em aberto. O público não deve confiar nos cientistas, mesmo nos cientistas de Harvard, que não estão dispostos a debater as suas posições com outros cientistas.

    O meu antigo empregador, o sistema hospitalar Mass General Brigham, emprega a maioria dos professores da Harvard Medical School. É o maior beneficiário individual de financiamento do NIH [National Institutes of Health] – mais de mil milhões de dólares por ano dos contribuintes dos Estados Unidos. Como parte da ofensiva contra a Declaração de Great Barrington, um dos membros do conselho do Mass General, Rochelle Walensky, uma colega professora de Harvard que havia servido no conselho consultivo do diretor do NIH, Collins, envolveu-me num “debate” unidireccional. Depois de uma estação de rádio de Boston me ter entrevistado, Walensky apareceu como representante oficial do General Brigham para me rebater, sem me dar a oportunidade de responder. Alguns meses depois, tornou-se a nova diretora do CDC [Centers for Disease Control and Prevention].

    Neste ponto, ficou claro que eu estava diante de uma escolha entre a ciência ou minha carreira académica. Escolhi a primeira. O que é ciência se não buscarmos humildemente a verdade?

    Na década de 1980, trabalhei para uma organização de direitos humanos na Guatemala. Nós fornecíamos acompanhamento físico internacional ininterrupto a camponeses pobres, sindicalistas, grupos de mulheres, estudantes e organizações religiosas. A nossa missão era proteger aqueles que se manifestaram contra os assassinatos e desaparecimentos perpetrados pela ditadura militar de direita, que evitou o escrutínio internacional de seu trabalho sujo. Embora os militares nos tivessem ameaçado, esfaqueado dois dos meus colegas e lançado uma granada de mão para a casa onde todos vivíamos e trabalhávamos, ficámos para proteger os bravos guatemaltecos.

    Escolhi, então, arriscar a minha vida para ajudar a proteger pessoas vulneráveis. Foi uma escolha relativamente fácil arriscar a minha carreira académica para fazer o mesmo durante a pandemia. Embora a situação fosse menos dramática e aterrorizante do que a que enfrentei na Guatemala, muitas outras vidas acabaram por estar em jogo.

    Jovens a praticar desporto em Estocolmo, em Agosto de 2020. Enquanto que nos Estados Unidos e em Portugal se fechavam escolas, creches e parques infantis, na Suécia a vida continuou praticamente como era habitual. (Foto: PAV)

    Embora o fecho de escolas e os lockdowns tenham sido a grande polémica de 2020, uma nova disputa surgiu em 2021: as vacinas contra a covid-19. Por mais de duas décadas, ajudei o CDC e a FDA [Food and Drug Administration] a desenvolver seus sistemas de segurança de vacinas pós-comercialização. As vacinas são uma invenção médica vital, permitindo que as pessoas obtenham imunidade sem o risco que advém de ficarem doentes. Só a vacina contra a varíola salvou milhões de vidas. Em 2020, o CDC pediu-me para participar de seu Grupo de Trabalho Técnico de Segurança de Vacinas covid-19. O meu mandato não durou muito tempo – embora não pela razão que possa pensar.

    Os ensaios clínicos randomizados e controlados (ECRCs) para as vacinas contra a covid-19 não foram adequadamente desenhados. Embora tenham demonstrado a eficácia a curto prazo das vacinas contra a infecção sintomática, não foram projectadas para avaliar a hospitalização e morte, que é o que importa. Em análises subsequentes agrupadas de RCT por tipo de vacina, cientistas dinamarqueses independentes mostraram que as vacinas de mRNA (Pfizer e Moderna) não reduziram a mortalidade de curto prazo, por todas as causas, enquanto as vacinas de vector de adenovírus (Johnson & Johnson, AstraZeneca, Sputnik) reduziram a mortalidade em pelo menos 30%.

    Passei décadas a estudar reacções adversas a medicamentos e vacinas sem receber dinheiro das empresas farmacêuticas. Toda a pessoa honesta sabe que novos medicamentos e vacinas vêm com riscos potenciais que são desconhecidos quando aprovados. Este era um risco que valia a pena correr para pessoas mais velhas com alto risco de mortalidade por covid-19 – mas não para crianças, que têm um risco minúsculo de mortalidade por covid-19, nem para aquelas que já tinham imunidade adquirida por infecção. A uma pergunta sobre isso no Twitter em 2021, respondi:

    Pensar que todos devem ser vacinados é uma falha científica tal como pensar que ninguém deve. As vacinas contra a covid-19 são importantes para pessoas idosas de alto risco e os seus cuidadores. Aqueles com infecção natural prévia não precisam dela. Nem crianças.

    A pedido do governo dos EUA, o Twitter censurou o meu tweet por violar a política do CDC. Tendo sido também censurado pelo LinkedIn, Facebook e YouTube, não conseguia comunicar livremente como cientista. Quem decidiu que os direitos americanos de liberdade de expressão não se aplicavam a comentários científicos honestos em desacordo com os do diretor do CDC?

    (Foto: D.R.)

    Fiquei tentado a calar-me, mas um colega de Harvard convenceu-me do contrário. A sua família tinha sido activa contra o comunismo na Europa de Leste, e ela lembrou-me que precisávamos usar todas as aberturas que pudéssemos encontrar – e autocensura, quando necessário, para evitar ser suspenso ou demitido.

    Nesse aspeto, porém, falhei. Um mês depois do meu tweet, fui demitido do Grupo de Trabalho de Segurança de Vacinas Covid do CDC – não porque eu fosse crítico das vacinas, mas porque eu contradizia a política do CDC. Em abril de 2021, o CDC interrompeu a vacina da J&J após relatos de coágulos sanguíneos em algumas mulheres com menos de 50 anos. Não foram notificados casos entre os idosos, que são os que mais beneficiam da vacina. Como havia uma escassez geral de vacinas naquela época, argumentei num artigo de opinião que a vacina da J&J não deveria ser suspensa para norte-americanos mais velhos. Foi isso que me deixou em apuros. Eu sou provavelmente a única pessoa já demitida pelo CDC por ser muito pró-vacina. Embora o CDC tenha suspendido a pausa quatro dias depois, o estrago estava feito. Sem dúvida, alguns norte-americanos mais velhos morreram por causa dessa “suspensão” da vacina.

    A soberania sobre o corpo não é o único argumento contra a obrigatoriedade da vacina contra a covid-19. [A obrigatoriedade] É também anticientífica e antiética.

    Com uma condição genética chamada deficiência de alfa-1 antitripsina, que me deixa com um sistema imunológico enfraquecido, eu tinha mais motivos para estar pessoalmente preocupado com a covid-19 do que a maioria dos professores de Harvard. Eu esperava que a covid-19 me atingisse fortemente, e foi exatamente isso que aconteceu no início de 2021, quando a equipe dedicada do Hospital Manchester, em Connecticut, salvou a minha vida. Mas teria sido errado para mim deixar que a minha vulnerabilidade pessoal às infecções influenciasse as minhas opiniões e recomendações como cientista de saúde pública, que deve concentrar-se na saúde de todos.

    A beleza do nosso sistema imunitário é que aqueles que recuperam de uma infeção estão protegidos se e quando forem novamente expostos. Isso é conhecido desde a Peste Ateniense de 430 a.C. – mas já não é conhecido em Harvard. Três proeminentes professores de Harvard foram coautores do agora infame memorando de “consenso” na revista The Lancet, questionando a existência de imunidade adquirida pela covid-19. Ao continuar a exigir a vacina para estudantes com uma infecção prévia por covid-19, Harvard está de facto a negar 2.500 anos de ciência.

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    Martin Kulldorff criticou a decisão de suspensão da vacina contra a covid-19 da Johnson & Johnson no caso dos idosos. (Foto: D.R.)

    Desde meados de 2021, sabemos, como seria de esperar, que a imunidade adquirida pela covid-19 é superior à imunidade adquirida pela vacina. Com base nisso, defendi que os hospitais deveriam contratar, e não demitir, enfermeiros e outros funcionários hospitalares com imunidade adquirida pela covid-19, uma vez que têm imunidade mais forte do que os vacinados.

    Os mandatos de vacinação são antiéticos. Os ECRs incluíram principalmente adultos jovens e de meia-idade, mas estudos observacionais mostraram que as vacinas contra a covid-19 evitaram hospitalizações e mortes por covid-19 em pessoas mais velhas. No meio de uma escassez mundial de vacinas, era antiético forçar a vacina em estudantes de baixo risco ou aqueles como eu que já estavam imunes por terem tido covid-19, enquanto o meu vizinho de 87 anos e outras pessoas idosas de alto risco em todo o mundo não podiam receber a vacina. Qualquer pessoa pró-vacina deveria, apenas por esta razão, ter-se oposto aos mandatos de vacina contra a covid-19.

    Por razões científicas, éticas, de saúde pública e médicas, opus-me pública e privadamente aos mandatos da vacina covid-19. Eu já tinha imunidade superior adquirida por infecção. E era arriscado vacinar-me sem estudos adequados de eficácia e segurança em doentes com o meu tipo de imunodeficiência. Essa postura fez-me ser demitido pelo General Brigham e, consequentemente, demitido do meu cargo de professor de Harvard.

    Embora várias isenções de vacina tenham sido dadas pelo hospital, o meu pedido de isenção médica foi negado. Fiquei menos surpreso que o meu pedido de isenção religiosa tenha sido negado: “Tendo tido a doença covid-19, tenho imunidade mais forte e duradoura do que os vacinados (Gazit et al). Sem fundamentação científica, os mandatos de vacina são dogmas religiosos, e solicito uma isenção religiosa da vacinação contra a covid-19.”

    Se Harvard e os seus hospitais querem ser instituições científicas credíveis, devem recontratar aqueles de nós que despediram. E Harvard seria sensata em eliminar seus mandatos de vacina contra a covid-19 para estudantes, como a maioria das outras universidades já fez.

    (Foto: D.R.)

    A maioria dos professores de Harvard busca diligentemente a verdade em uma ampla variedade de campos, mas Veritas não tem sido o princípio orientador dos líderes de Harvard. Nem a liberdade académica, a curiosidade intelectual, a independência em relação a forças externas ou a preocupação com as pessoas comuns orientaram as suas decisões.

    Harvard e a comunidade científica em geral têm muito trabalho a fazer para merecer e recuperar a confiança do público. Os primeiros passos são a restauração da liberdade académica e o cancelamento da cultura do cancelamento. Quando os cientistas têm visões diferentes sobre temas de importância pública, as universidades devem organizar debates abertos e civilizados para buscar a verdade. Harvard poderia ter feito isso – e ainda pode, se quiser.

    Quase todo mundo agora percebe que o fechamento de escolas e outros lockdowns foram um erro colossal. Francis Collins reconheceu seu erro de se concentrar singularmente na covid-19 sem considerar danos colaterais à educação e resultados de saúde não-covid-19. Essa é a coisa honesta a fazer, e espero que essa honestidade chegue a Harvard. O público merece-o e a academia precisa dele para restaurar a sua credibilidade.

    A ciência não pode sobreviver numa sociedade que não valoriza a verdade e se esforça por descobri-la. A comunidade científica perderá gradualmente o apoio do público e desintegrar-se-á lentamente nessa cultura. A busca da verdade requer liberdade acadêmica com discurso científico aberto, apaixonado e civilizado, com tolerância zero para calúnias, bullying ou cancelamento. A minha esperança é que, um dia, Harvard encontre o seu caminho de regresso à liberdade e independência académicas.

    Martin Kulldorff é ex-professor de Medicina na Universidade de Harvard e no Mass General Brigham. É membro fundador da Academia para a Ciência e a Liberdade.

    Nota:

    Este artigo foi publicado originalmente, em inglês, no dia 11 de Março de 2024, no City Journal.


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  • Meio país completamente zangado

    Meio país completamente zangado


    Durante a recente campanha eleitoral, tanto os partidos políticos tradicionais como a legacy media – mais os seus jornalistas e comentadores – tiveram um único objectivo: atacar o Chega anunciando uma suposta ameaça fascizante. O resultado está à vista: André Ventura ‘tripartidarizou’ Portugal, tornando o Chega um partido verdadeiramente nacional, apenas sem representação no círculo de Bragança. Foi aquilo que se costuma dizer, ‘um tiro pela culatra’.

    Era expectável. Na busca insana de diabolizar o Chega, não se avaliaram, portanto, os oito anos de falta de visão política dos sucessivos Governos Costa, que serviram para alimentar uma despudorada rede de gestão de dinheiros públicos, sem controlo nem regras, e que a pandemia apenas ajudou a propagar como um vírus. Hoje, a corrupção, moral e financeira, está encrustada na sociedade, perante um Ministério Público temeroso da sua própria sombra (e de falhar, como falha muitas vezes), perante tribunais vagarosos num ambiente de canceroso corporativismo. Deixar que a denúncia à corrupção (moral e financeira) fosse uma ‘bandeira do Chega’ terá sido um dos maiores erros políticos dos últimos anos dos partidos da oposição. Achar que Costa não se deveria demitir perante a Operação Influencer, porque redundou no crescimento do Chega é defender que o mau cheiro da ‘decomposição’ da democracia se pode resolver com um simples perfume.

    No processo de diabolização do Chega, ao longo da campanha eleitoral, não se avaliaram as perdas de soberania de Portugal como Nação, patente na forma como as políticas e as regras são agora já ditadas por uma União Europeia que foi perdendo os seus princípios, e se transformou num polvo encimado por uma elite não-democrática que distribui entre si as riquezas artificialmente produzidas por um Banco Central. Os portugueses estão hoje como estavam os nossos patrícios na segunda década do século XIX, ou seja, sob um estranho jugo dos ingleses, que, na prática, governavam o país, a pretexto de protecção após as invasões napoleónicas e da ausência do rei D. João VI (então no Brasil). Hoje, não temos um ‘rei’ no outro lado do Atlântico, mas temos burocratas europeus, que nem sequer nos conhecem (nem querem conhecer), conluiados com os nossos governantes num sistema de quase absolutismo.

    Não se avaliaram os sistémicos e duradouros efeitos (económicos, sociais, de saúde, etc.) de uma pandemia – ou melhor dizendo, de uma gestão da pandemia –, onde muitos enriqueceram sem ética nem controlo, e se criou um ambiente de mão-estendida, mesquinha e comezinha, perdendo-se o espírito crítico. Os pequenos escândalos que foram surgindo, uns atrás dos outros, mas ‘apagados’ rapidamente pela imprensa, deu no absurdo de nem sequer termos assistido a uma renovação do PS, e de assistirmos a uma oposição de esquerda fofinha – leia-se Bloco de Esquerda, Livre e PCP – que aparentou sempre estar interessada em não beliscar demasiado o legado desastroso do PS, numa vã esperança de ter sol na eira e chuva no nabal.

    Cada um dos três partidos à esquerda dos socialistas pareceu contrariado em querer mais votos, receosos de retirarem a possibilidade de o PS ser o mais votado, e mais votado do que o PSD (ou AD) e o Chega. Depois de oito anos de Governo PS, secundados por uma ‘esquerda fofinha’, achar que a Esquerda ainda poderia almejar vencer estas eleições é de uma ingenuidade que me surpreende. Livre e Bloco de Esquerda – e menos o PCP – perderam talvez a derradeira hipótese de crescerem para, um dia, serem uma alternativa ao PS. Assumiram em 2024 que somente almejam ser duas muletas (ou mulas) de Governos socialistas.

    Não se avaliaram, enfim, nesta campanha, as políticas de imigração, colocando o tema numa ‘redoma de tabu’, esquecendo que a obrigação de aceitarmos alguém em ‘nossa casa’ desemboca sempre em duas premissas: primeiro, termos os nossos bem tratados (por exemplo, dar médicos de família a TODOS os imigrantes ‘exige’ dar médicos de família a TODOS os portugueses, incluindo os que se vão naturalizando) e tratarmos os que recebemos com dignidade e ajudando-os numa adaptação às nossas regras e costumes. Transformar assuntos sensíveis em dogmas é arranjar lenha para uma fogueira.

    Acredito que a forma como a imprensa tratou a campanha do Chega – que, no seu programa para estas legislativas, de um modo oportunista, ‘eliminou’ quaisquer laivos de xenofobia, tornando-se meramente populista – possa ter refreado um maior crescimento em regiões mais metropolitanas.

    De facto, se analisarmos os resultados eleitorais do Chega – que, na minha opinião, funcionam muito mais como um indicador de insatisfação do que uma opção ideológica –, verificamos que em Lisboa e Porto – e também em Coimbra e Braga –, o partido de André Ventura teve um desempenho abaixo da média nacional. Significa que num ‘ecossistema’ mais urbano, mais dependente do Estado, a insatisfação ainda não atingiu os níveis dos registados no ‘país real’, por via do efeito comunicacional. Mas o Chega tem hoje um horizonte de crescimento impressionante, sobretudo por ser agora um partido de dimensão nacional de forma absoluta, e de não ter ainda ‘conquistado’ a população feminina e os mais idosos.

    E não se duvide: a sua representatividade subirá muito se se continuar nesta absurda diabolização como um perigo para a democracia.

    Não é! Os perigos para a democracia vieram das políticas que nos conduziram a um tal grau de insatisfação que o ‘escape’ se fez sob a forma de voto no Chega. Vieram da contínua insatisfação e desilusão das pessoas, muitas das quais que até votavam na esquerda, quando os ‘amanhãs’ ainda cantavam.

    Estou muito longe de ser eleitor do Chega, e o meu voto neste domingo esteve nos antípodas do partido de André Ventura, embora não tenha votado com convicção, mas mais pela via de ser um ‘mal menor’. Em todo o caso, este resultado mostrou ser – e acrescente, finalmente – um ‘cartão amarelo’ aos partidos tradicionais, sobretudo aos partidos da esquerda ideológica, que de forma incompetente perderam a capacidade de auto-crítica, de renovação de ideias, insistindo e reiterando sempre no ‘perigo do fascismo’ como se não houvesse leis fundamentais e Justiça para aplacar quaisquer derivas.

    Aliás, se coisas próximas do fascismo se viram nos últimos anos foi entre 2020 e 2022 – e não num Governo de André Ventura – com supostas medidas de Saúde Pública, que colidiram (Tribunal Constitucional dixit, embora tarde e a más horas) com direitos, liberdades e garantias.

    Não sou dos que esquecem as multas às pessoas que estavam durante a pandemia a comer sandes no carro.

    Não sou dos que esqueceram os absurdos lockdowns e outras restrições patéticas (até vedaram bancos de jardim!).

    Não sou dos que esqueceram encerramentos de estabelecimentos comerciais ou de actividades por via de nunca justificadas razões de saúde pública.

    Não sou dos que esqueceram como o Estado (leiam-se, pessoas da máquina estatal) lidou com aqueles que apelavam à racionalidade na gestão da pandemia, que se recusavam a vacinar (por, entre outras razões, terem imunidade natural adquirida), apodando-os de negacionistas (isto já não era discriminação?!), vedando-lhes o acesso a locais públicos e impedindo-os até de viajar.

    Não sou daqueles que se esqueceram do obscurantismo de uma Administração Pública (e de um Governo) que manipula informação e esconde documentos, aproveitando-se de um poder judicial complacente.

    Não sou daqueles que se esqueceram das perseguições dos reguladores da imprensa quando um órgão de comunicação social começou a incomodar o status quo de uma imprensa em podridão (ética) e falida, ou a denunciar esquemas (muito) suspeitos.

    Estes anos, sim, pareceram-me muito mais próximos de um regime fascista do que aqueles que poderão vir por um partido como o Chega ser (apenas) o terceiro mais votado.

    Repito: não fui eleitor do Chega – mas compreendo, e mais do que isso: até aceito como justo que mais de 1,1 milhões de portugueses tenham votado no partido de André Ventura. Têm toda a razão para esse voto de protesto, para esse voto de indignação. E, por isso, resta agora saber como evoluiremos a partir daqui: ou os partidos de génese ideológica de esquerda corrigem a sua concepção de Estado Social – exigindo uma gestão criteriosa e transparente dos dinheiros públicos, não ‘sufocando’ a iniciativa privada e as finanças dos cidadãos; ou a insatisfação aumenta e o Chega aumentará, inevitavelmente, a sua influência.

    Mas, se este último for o caminho, nunca se culpe o Chega, nem a sua (quase certa) impreparação para fazer diferente e melhor. Numa derrota, a culpa nunca é do adversário; é nossa.


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  • Estoril 3.1 (com eleições à mistura)

    Estoril 3.1 (com eleições à mistura)


    Aviso já. Cheguei uma hora antes do jogo. Uma vez para nunca mais, presumo. Na carruagem do metro, quase vazia, poucos cachecóis encarnados vislumbrei, embora o casal sentado à minha frente os tivesse; o cão, que traziam à coleira, não – imperdoável. Nos ‘torniquetes’ de saída da estação, nenhuma fila. O acesso ao estádio livre estava, se bem que nos comes-e-bebes a afluência fosse bem maior de trincadores de bifanas e afins, sem o aspecto do ‘cemitérios de despojos’ de guardanapos e copos de plástico que se espraiam minutos antes dos jogos. Isso vejo eu nos outros encontros, onde chego em cima da hora, por norma.

    Quanto ao estádio, nunca o vi assim. Quer dizer: já o vi várias vezes assim – muitas mesmo desde que escrevo esta Varanda da Luz –, mas depois da debandada geral, no fim dos jogos. Antes dos ditos, como por regra chego à pele, ou mesmo atrasado, entro sempre com a mole humana já bem atiçada. Ora, hoje, cheguei com meia dúzia de gatos pingados nas bancadas, o relvado ainda vazio (estão agora os jogadores a aquecer), e fui descansadamente buscar o farnel constituído, desta vez, por batatas fritas, garrafinha de água de pH básico e baguete de frango assado com espinafres. E uma banana. Melhor foi o almoço regado a Reserva 2018 de marca que agora esqueci, mas que me foi oferecido no meu aniversário pelo Luís Gomes. Sobrou uma, para próxima oportunidade.

    Vista está a razão desta minha chegada antecipada. O jogo começa 30 minutos depois do fecho das urnas nos Açores. E eu quis que esta crónica fosse histórica, no sentido de que, desconfio, nenhuma outra antes, em lado algum misturou, àquilo que for calhando numa crónica futebolística (como as referências ao farnel ofertado pelo Benfica ou outras relevantes minudências), os avanços de uma noite eleitoral. Mas, enfim, quando em 2010 escrevi o meu romance ‘Corja Maldita’ e meti um papa a interromper um diálogo para ir mijar, pensava que nunca ninguém fizera tal coisa, até poucos meses depois ter lido a setecentista ‘A Viagem Sentimental’, do inglês Laurence Sterne, que coloca uma senhora a mandar parar o coche para fazer as devidas necessidades fisiológicas. Tudo, na verdade, está inventado.

    Para colocar um pouco de ordem no desnorte que será esta crónica, vou então definir que os comentários sobre a bola ficarão entre parêntesis curvos…

    (aliás, entraram agora os jogadores do Benfica, onde estará no 11 o João Mário… e acrescento que, há pouco, o nome de Roger Scmidt ecoado nos altifalantes foi brindado por um pequeno coro de assobios, apesar de estar apenas ocupado um décimo das bancadas)

    … e os comentários da noite eleitoral ficarão entre parêntesis rectos com as palavras a negrito.

    [falta pouco para as primeiras projecções… nem sei o que vem aí, mas o meu palpite é ficarem três partidos na casa dos 20%]

    Se a noite aqui no estádio se prolongasse não sei que parêntesis teria para comentar a noite dos Oscars, embora a minha desgraçada vida tenha causado um rombo vergonhoso na minha cultura cinéfila ao ponto de não ter visto sequer um único filme dos ‘oscarizáveis’.

    [pronto, saiu uma projecção da SIC-Expresso, com um empate técnico entre AD e PS…]

    (espero bem que não haja empate ali em baixo)

    [embora com o limite inferior do intervalo a ser superior para a coligação liderada pelo Luís Montenegro, enquanto o Chega pode ‘chegar’ aos 20%, dando-lhe entre 44 e 54 deputados. Nos restantes partidos, uma grande incerteza, porque como tudo depende das respectivas votações nos maiores distritos, sobretudo em Lisboa; mas, aparentemente os pequenos partidos da esquerda tramaram-se com a campanha suave que fizeram contra os socialistas]

    Entretanto, reparo que ainda estamos a 20 minutos do início do jogo, ainda vai dar tempo para ver o voo da águia Vitória, o espectáculo de luzes para galvanizar o pessoal, embora o estádio esteja a meio – não sei se pelos extraordinários desempenho dos pupilos do Roger Schmidt nas últimas duas semanas (ou de todas) –, e depois a música das ‘papoilas saltitantes’ seguindo-se o ‘la la la la la’ com cachecóis a rodar.

    [tempo agora para ver as projecções de outros órgãos de comunicação social. A sondagem da RTP dá AD e PS com possibilidade de se ‘tocarem’ mas com vantagem para a coligação liderada por Luís Montenegro, com um intervalo de 29% a 33%, enquanto o PS de Pedro Nuno Santos tem uma projecção entre 25% e 29%. O Chega nesta fica-se entre os 14% e os 17%. E os restantes partidos com variações que não permitem saber se sairão derrotados ou muito derrotados]

    Entretanto, início de jogo antecedido por um minuto de silêncio em homenagem a Minervino Pietra, que me ‘viu’ tornar benfiquista, pois desde que tenho memória de gostar de futebol – e acompanhar então os relatos na rádio –, desde talvez os meus seis ou sete anos, lá estava ele: foi lateral direito de pedra e cal, e águia ao peito, com aquela sua cabeleira inconfundível, entre 1976 e 1987.

    (e começa o jogo, e vou continuar a ver as outras projecções eleitorais, depois de um livre marcado pelo Di Maria quase rasar o poste)

    [antes das projecções, vejo no site da RTP que já estão eleitos quatro deputados; ainda me lembro daqueles épicas noites eleitorais que se prolongavam madrugada adentro como os Oscars… Vejo que já estão apurados 62,2% dos votos, e a AD vai à frente com 31,85%, seguindo-se o PS com 28,94% e o Chega em terceiro com 19,28%… A surpresa vem com o ADN, acidental beneficiário da ‘confusão’ com a AD, que surge com 2,02%, à frente até do Livre… entretanto, já foram eleitos seis deputados, três para a AD e outros tantos para o PS… isto promete]

    Entretanto, com isto, ali em baixo segue o jogo já com 13 minutos, e eu ainda nem sequer vi bem quem está a jogar, e mesmo que estivesse atento, como ainda não fui mudar de lentes se calhar vou ter dificuldades… Mas garantido é estar o João Mário a jogar porque já vi passes para trás.

    [e o Chega elegeu entretanto o primeiro deputado… fui entretanto bisbilhotar a projecção da TVI/CNN, e também dá vitória da AD, com um intervalo entre os 28% e os 33%, mas em empate técnico com o PS…]

    (goloooooooooooooooo…. já está, derrotado o empate técnico entre Benfica e Estoril: marca o turco Kökçü, que agora reparo, ao sacar o seu nome com as tremas, a partir da Wikipedia, nasceu na Holanda e até jogou nas selecções jovens por aquele país… estou mesmo ‘out’ nestas coisas do futebol, uma desgraça)

    [… continuando pela noite eleitoral: as projecções da TVI/CNN dão o terceiro lugar ao Chega, que pode ir dos 16,6% até aos 21,6%… Mas na contagem a sério…]

    (raios m’partam: golo do Estoril. Remate de um estorilista, Trubin a socar para a frente e leva um balázio; portanto, por aqui estamos de novo com empate técnico na contagem a sério)

    Vou agora ver uns cinco minutos do jogo para descontrair e perceber as razões para se estar a assobiar tanto nas bancadas, que estão com imensas abertas. Já volto aqui, ou com um golo ou com os resultados eleitorais em curso, se entretanto chegar o intervalo. Ou com outra qualquer coisa que surgir… Também não posso estar sempre a escrever…

    Olha, vou comer a banana enquanto tremo com os contra-ataques do Estoril.

    Quer dizer, ainda deu para um breve telefonema com o nosso colunista Luís Gomes, entusiasmado com a noite eleitoral…

    Para estragar a festa, lançamento de very lights por parte de uma claque benfiquista… portanto, um multa a caminho.

    [e enquanto se aguarda que se disperse a fumaça, adianto que, neste preciso momento em que vos escrevo, com 78% dos votos apurados, estão eleitos 12 deputados da AD, nove do PS e quatro do Chega, mas, por conta do método de Hondt, só mais para o final se saberá a distribuição. Em todo o caso, parece garantida a vitória de Luís Montenegro; quanto a Pedro Nuno Santos saiu-se melhor do que eu esperaria, e a ‘coisa’ não está fácil para o PAN e para o Livre, sobretudo para o partido de Rui Tavares que aparentava querer ultrapassar um Bloco de Esquerda que tem em Mariana Mortágua um flop]

    Ali em baixo entretanto, está a precisar-se de um intervalo. Nos pouco momentos que olho para o jogo, constato que o Benfica continua a não me dar arrependimento por estar desatento. A continuarem assim, prevejo, sem necessidade de projecções, que as bancadas vão começar a esvaziar-se até ao final da época.

    (golooooooooooo… chiça! Nos descontos, parecia que ninguém queria cruzar para a área; lá se cruzou, não vi quem, e ao segundo poste Tiago Gouveia assiste Marcos Leonardo, que factura em cima da linha)

    Sem se saber ler nem escrever, lá chegou o intervalo com o Benfica a desfazer o empate, dando-me tempo agora para olhar melhor para os resultados eleitorais e fazer um ou outro telefonema.

    [portanto, neste momento, com 87% dos votos apurados – isto vai ser rápido! –, a AD conta 17 deputados, a que acresce mais um do PSD-CDS na Madeira; o PS vai em 15 e o Chega segue com nove. Ainda falta muito deputado a ganhar lugar, mas pelas percentagens, as ‘coisas’ não estão famosas para os pequenos partidos, pois todos estão abaixo dos 4%, por agora. A maior surpresa será o resultado do ADN, que com 1,81% provavelmente elegerá pelo menos um deputado em Lisboa, e encontra-se à frente do PAN e muito próximo do Livre, que andou a ‘cantar de galo’ na campanha e se calhar pouco mais terá do que o Rui Tavares no hemiciclo… Em todo o caso, vejo que no distrito de Lisboa, por agora, só estão apurados 37% dos votos, significando que há muita coisa ainda a decidir quanto aos pequenos partidos, sendo que, se se mantiver esta tendência, o Livre conseguirá eventualmente dois deputados, e o PAN e o ADN um cada, aumentando-se assim a representatividade partidária na Assembleia da República. Curiosamente, por agora, no distrito de Lisboa está o PS à frente, embora PS, AD e Chega estejam todos na casa dos 20%]

    Lá em baixo já se encontram no meio-campo os árbitros, chegam entretanto os jogadores e vai este joguinho morno recomeçar.

    (e recomeçou mesmo, morninho, tanto assim que nas bancadas quase não se ouve nada, e daqui onde estou até consigo ouvir um jornalista, que está na bancada acima daquela onde me encontro, a relatar o jogo para uma rádio)

    [Entretanto, estou a divertir-me com os resultados do ADN que consegue mais de 3% no distrito de Viseu, e ‘arrisca’ eleger no Porto… neste momento os ‘gajos’ da AD devem estar a chamar-se estúpidos com a lembrança de ‘ressuscitarem’ a Aliança Democrática de Sá Carneiro, Freitas do Amaral e Ribeiro Teles… pobre alma do Ribeiro Teles, substituído pelo ‘desaparecido’ Gonçalo da Câmara Pereira]

    (golooooooooooo… 3-1. Belo remate cruzado de Tiago Gouveia. Aqui, pelo menos as coisas estão a clarificar-se)

    No meio disto, diz-me o Ruy Otero, um dos co-autores (e, para ser justo, o principal autor) da (imperdível) série ‘Indecisos’, que o PÁGINA UM publicou no seu novo canal do Youtube, que já está a pensar na nova remessa para daqui a uns seis meses, com as novas eleições. Vamos lá  ver como estão os resultados, que isto muda agora muito de repente…

    [Pois bem, com 93% dos votos apurados, AD conta com 32 mandatos, se incluirmos o deputado da Madeira eleito pelo PSD-CDS, enquanto o PS vai com 29. Um quase empate, por agora. O Chega vai com 14 e 18,88% dos votos, e os restantes partidos estão ainda a aguardar que o ‘amigo’ Hondt se decida com as contas finais. Neste momento, a IL está com 4,23%, Bloco de Esquerda com 3,95%, CDU com 2,96%, Livre com 2,30%, ADN com 1,77% e PAN com 1,61%… Enfim, acho que vamos mesmo daqui a pouco para eleições novamente, excepto se o Montenegro quiser ‘engolir’ um sapo chamado Ventura]

    E ali em baixo estamos no minuto 60, tudo calmo, vai haver um canto a favor do Benfica, e anda-se ali a passar o tempo. Houve um remate mas nada se especial. Nem as habituais substituições do Schmidt ao minuto 60 foram feitas. Já que estamos em noite de eleições, e houve sondagens e projecções, e agora resultados quase finais, vou alvitrar um palpite: sem jogar a ponta de um corno, o Benfica ainda vai ganhar 5-1.

    [E como estou com curiosidade, vejamos a evolução dos resultados eleitorais, a esta hora, isto é ao minuto 64 do Benfica-Estoril. Apurados 95% dos votos, há finalmente dois deputados eleitos fora dos ‘três grandes’: IL e Bloco de Esquerda contam o primeiro.  Quanto à AD vai…]

    (entretanto, jogada a ser revista pelo VAR por possível penalty… segue jogo)

    […a AD ia com 35, se contássemos com a Madeira, mas entretanto, por causa da espera do VAR, vai agora já com 38, porque acrescem agora dois na Madeira para o PSD-CDS. O PS segue perto, com 37; o Chega tem já uns impressionantes 22]

    Esta crónica está, como seria previsível, bastante esquisita. Ainda por cima, como director de um jornal que até foi inovador na cobertura da campanha eleitoral – por ter sido o único que se predispôs a ouvir todos os líderes partidários, havendo apenas cinco faltosos em 24 ‘convocados’ – deveria estar a fazer uma ‘noite eleitoral’ à moda antiga, talvez em directo, que não nos faltam excelentes comentadores políticos, como sejam o Tiago Franco e o Luís Gomes; mas enfim, foi uma semana complicada, e não dá para tudo. E sobretudo não dá porque não nos podemos dar ao luxo da Impresa, o luxo de acumular mais oito milhões de euros de dívidas para contabilizar depois dois milhões de euros de prejuízos à conta do pagamento de juros.

    (anunciam-se 48.964 espectadores no estádio… bem me parecia que hoje ficávamos abaixo dos 50 mil, e não sei se foi por causa da noite eleitoral)

    [noto, entretanto, que apesar de estarem apurados 96% dos votos a nível nacional, ainda há um grande atraso nos distritos que decidem. Em Lisboa estão apurados apenas 59%, e em Setúbal 76%. Noto também que, em Beja, o Chega ganha um deputado e fica mesma à frente da AD. Em Évora ficará um deputado para cada um dos ‘três grandes’ e em Portalegre o Chega ‘rouba’ surpreendentemente o deputado à AD. E nisto, o Alentejo já foi chão que deu votos aos comunistas… Ficam a zero pela primeira vez. Saramago dá voltas na tumba]

    E nisto do jogo, estamos no minuto 88, e o meu palpite do 5-1 falhou, tal como têm falhado todos os meus desejos de…

    (bola ao poste… era o 4-1… e no contra-ataque foi uma sorte não ser o 3-2… vai haver cinco minutos de compensação)

    … ver um jogo empolgante. Quer dizer: ver, não vejo, não apenas por nunca mais aviar as dioptrias de que necessito; não apenas por, escrevendo crónicas em directo, ser complicado acompanhar o jogo; mas porque, enfim, esta equipa anda longe de empolgar os seus adeptos. Mas gostava de, pelo menos, sentir a vibração nas bancadas, e acabar a escrever uma crónica em branco porque lá em baixo me ‘agarraram’…

    [E enquanto o árbitro não finaliza isto, vamos lá ver as novidades eleitorais nesta noite em que poucos vão gritar vitória. Pois bem…]

    (não deu para ver ainda, porque o árbitro acabou isto… vamos lá agora para as eleições)

    [Neste preciso momento, às 22h28, faltam apenas apurar os resultados totais de 28 concelhos e de 2% dos votos, mas isto resulta numa indecisão sobre os partidos de 86 futuros deputados. Mas vejamos como a coisa está, por agora, distribuída: 54-54 no despique entre a AD (com PSD-CDS na Madeira) e o PS, depois segue-se o Chega com 34 deputados (e será o único a cantar vitória), e muito mais atrás a IL contabiliza três deputados, e o Bloco de Esquerda e o Livre já conseguiram um… Mas, como digo, ainda falta distribuir muita coisa… Vou aqui paginar esta estranhíssima crónica, e já regresso para os resultados finais. Se os houver]

    Tudo paginado à trouxe-mouxe, reparando que não tirei assim muitas fotos durante o jogo, e atendendo que são daqui a nada 23:00 horas, e vendo ainda que hoje já nem houve sequer umas corridas dos suplentes não utilizados, vamos lá acabar com isto, olhando uma derradeira vez para os resultados.

    [com parênteseis rectos?]

    Tanto faz. Vai assim: terminada a escrita desta crónica às 23h06 do dia 10 de Março do ano da graça de 2024, tendo 99% dos votos apurados e 297 concelhos definidos, mas faltando assim distribuir, à conta do Hondt e dos círculos distritais, ainda 45 dos 230 mandatos (farei depois uma adenda), a AD lidera com 68 deputados (contando com os três ganhos pelo PSD-CDS na Madeira), o PS conta 65, o Chega vai com 41, e depois, bem cá para trás, a IL tem cinco e Bloco de Esquerda, CDU e Livre estão com dois, cada um. O PAN tem uma votação de 1,88% a nível nacional, mas elegerá Inês Sousa Real em Lisboa, onde tem 2,49%. O ADN vai com 1,65% e dificilmente elegerá alguém porque em Lisboa (onde há 48 mandatos) está com apenas 1,49%.

    E pronto, temos uma situação política assaz interessante! Decididamente, mais interessante do que os jogos do Benfica.


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  • Da hipocrisia da esquerda

    Da hipocrisia da esquerda


    Já votei Bloco de Esquerda. Não vou votar agora nem sei se aguento votar em qualquer partido da esquerda, mesmo mantendo-me ideologicamente de esquerda. E não vou votar por variadíssimas razões, entre as quais destaco as sucessivas incongruências, os contínuos disparates ideológicos e sobretudo a hipocrisia.

    Esta noite, citada pelo Público, Mariana Mortágua disse num comício que “ser jornalista é uma espécie de teimosia perante todas as adversidades”, assinalando que não só sofrem da “mesma desregulação e precariedade que a economia”, como da “concentração do poder económico”.

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    E apontou baterias à “extrema-direita [que] não perde uma oportunidade para intimidar jornalistas”, reforçando que a “extrema-direita odeia o jornalismo livre porque odeia a democracia”.

    Acho muito curioso, para usar um eufemismo, que Mariana Mortágua tenha tecido loas ao “jornalismo livre” e tenha, em simultâneo, recusado conceder uma entrevista ao PÁGINA UM na rubrica HORA POLÍTICA, mesmo conhecendo a jornalista que a iria entrevistar há anos. O Bloco de Esquerda foi um entre apenas cinco partidos faltosos, três dos quais da esquerda (além do Bloco de Esquerda, recusaram Livre e Partido Socialista). Houve 19 partidos que aceitaram o jogo da democraticidade.

    Se há um jornal que melhor encaixa no conceito de imprensa livre, esse é o PÁGINA UM: somos um jornal sem ‘empresários’ por detrás, sem agendas económicoas ou ideológicas escondidas, de acesso livre, contas transparentes, sem dívidas nem publicidade nem parcerias com entes públicos ou privados, e sobrevivendo apenas de donativos dos leitores. Fazemos aquilo que as nossas capacidade financeiras permitem, e preferimos ‘morrer’ a ‘vender-nos’. Mas que faz Mariana Mortágua? Recusa uma entrevista, mas tem tempo para ir a programas de graçolas.

    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao jornal que nos últimos dois anos apresentou cerca de duas dezenas de intimações no Tribunal Administrativo para aceder a informação escondida deliberadamente por entidades públicas.

    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao jornal que nos últimos dois anos denunciou as promiscuidades em empresas de media, as falhas ou compadrios na regulação (quando a situação da Global Media explodiu, o PÁGINA UM noticiava sobre o assunto há meses), e não vimos Mariana Mortágua incomodada pelos ataques cerrados da ERC e da CCPJ ao nosso trabalho.

    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao jornal que nos últimos meses mais casos suspeitos tem revelado de desbaratamento de dinheiros públicos em estranhos contratos.

    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao único jornal que deu voz, através de uma entrevista, à mulher de Julian Assange, fundador da Wikileaks, que arrisca ser extraditado para os Estados Unidos, sendo uma vítima do mais infame ataque político à liberdade de imprensa e de informação.

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    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao único jornal onde os seus colunistas têm uma única condição: liberdade de expressão, e por esse motivo não poucas vezes o ‘amaldiçoado’ Chega foi e é vilipendiado. Mas é um jornal que não coloca o Chega (ou qualquer outro partido fora do arco de governação) como o principal perigo para a democracia – embora já lhe tenha apontado linhas vermelhas que ultrapassaram recentemente -, sendo aliás o contrário: é por os partidos tradicionais terem colocado a democracia em perigo (e vimos todos os atropelos sobre direitos básicos durante a pandemia) que, infelizmente (e digo isto do ponto de vista ideológico), há partidos populistas como o Chega em forte crescimento.

    E estão em crescimento até a esquerda deixar de ser hipócrita. E passar verdadeiramente a defender os princípios que a definem, e não a arranjar bodes expiatórios.  


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  • O candidato Miguel Guimarães e os beijinhos à jornalista do PÁGINA UM

    O candidato Miguel Guimarães e os beijinhos à jornalista do PÁGINA UM


    Campanhas eleitorais trazem sempre muito convívio com o povo, arruadas, comícios. E beijinhos. Muitos beijinhos. Muitos abraços. Tudo sem álcool-gel, sem distanciamento de dois metros, sem máscaras cirúrgicas ou de pano, daquelas com bonecos. Já ‘não há’ covid-19. Já não há testes (não dariam jeito nenhum). Já não há quarentenas. Agora, é beijinhos atrás de beijinhos. (Viva a Ómicron!)

    Pois esta jornalista, não comparecendo em comícios, fugindo de arruadas e de qualquer tipo de ajuntamento de caça ao voto, não conseguiu escapar de uns beijinhos de um candidato.

    Miguel Guimarães, na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia.

    O próprio candidato também não se deve ter apercebido, até agora, a quem deu dois beijinhos de cumprimento em plena campanha eleitoral. Se soubesse quem eu era, ter-me-ia cumprimentado com tanto entusiasmo? Com aquele entusiasmo de candidato em campanha? Desconfio que… não.

    Isto porque o candidato em questão é, nada mais nada menos, do que Miguel Guimarães. Esse mesmo. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual cabeça de lista no círculo do Porto na coligação Aliança Democrática (AD), que junta o PSD, o CDS-PP e o PPM.

    Para quem não sabe, ou se tiver esquecido, pode ficar a saber mais sobre a ‘relação’ entre Miguel Guimarães e o PÁGINA UM nesta notícia AQUI ou esta AQUI e ou ainda AQUI (e há tantas outras). O PÁGINA UM intentou três processos de intimação contra a Ordem dos Médicos por informações escondidas por Miguel Guimarães, e por três vezes o Tribunal Administrativo de Lisboa deu-nos razão. Em troca, Miguel Guimarães – em conjunto com a Ordem dos Médicos, o pneumologista Filipe Froes e o pediatra Luís Varandas – processou o director do PÁGINA UM. Aliás, o processo acabará mesmo em tribunal, porque agora, mesmo que Miguel Guimarães queira desistir da queixa, Pedro Almeida Vieira já manifestou formalmente a sua oposição.

    Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos e candidato pela coligação AD. (Foto: AD)

    Mas, pergunta, e bem, o leitor: em que circunstâncias é que a jornalista foi ‘apanhada’ no meio de um evento de caça ao voto de Miguel Guimarães?

    Passo a explicar. Tudo aconteceu no dia em que o PÁGINA UM foi fotografar Joaquim Rocha Afonso, presidente do partido Nós, Cidadãos. A sessão fotográfica foi combinada para o mesmo local onde tinha entrevistado aquele mesmo líder partidário, no dia anterior: o Clube Militar Naval, na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa.

    O edifício apalaçado é belíssimo e os interiores prestam-se a sessões fotográficas. As diferentes salas, a decoração, os ambientes, a escadaria, os vitrais…

    Ora, acontece, que nesse dia, estava agendado um jantar-debate com a presença de Miguel Guimarães. Eu sabia que estava marcado um jantar-debate, mas desconhecia que o candidato da AD seria um dos presentes.

    Assim, estava eu no hall no rés-do-chão, a aguardar pelo presidente do Nós, Cidadãos, quando passa por mim Miguel Guimarães, em passo apressado, a caminho de subir a escadaria para o primeiro andar.

    Com aquele gesto automático de político em plena campanha, que lhe terão ensinado, Miguel Guimarães olha para mim com um largo e simpático sorriso – como se tivesse gostado muito de me ver – e toca a cumprimentar-me com dois rápidos beijinhos no rosto, bem à português (obviamente, o português ‘normal’, não o português com tiques de aristocrata ou da linha de Cascais).

    Nem tive tempo de reagir. Inicialmente, pensei que se dirigia a mim porque nos conhecíamos (como jornalista, conhecemos muita gente, mas a minha memória já teve melhores dias e não guarda todas as caras e nomes).

    Depois, quando vi o enorme sorriso, desconfiei (imaginem a cena em câmara lenta, mas a acontecer, na realidade, em milésimos de segundo). Pensei: “está a sorrir em demasia, não deve saber que sou a jornalista Elisabete Tavares, do PÁGINA UM”.

    Sede do Clube Militar Naval. (Foto: D.R.)

    Quando, por fim, me cumprimenta com dois beijinhos, entusiasticamente, tive a certeza: “não sabe quem sou e pensa que sou uma participante do jantar-debate”.

    Foi tudo tão rápido que apenas me saiu um automático: “Como está?”. Fiquei a sentir-me mesmo parva por não ter travado o candidato da AD para me apresentar convenientemente. Ao mesmo tempo, chega o Joaquim Rocha Afonso e Miguel Guimarães já ia escadaria acima, apressado. É que ainda havia muitos abraços, cumprimentos e beijinhos a dar. E vírus a espalhar.


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  • Quem quer ser político em Portugal?

    Quem quer ser político em Portugal?


    Termina esta semana a enorme, penosa e pouco esclarecedora campanha eleitoral para as legislativas deste domingo.

    No momento em que escrevo, um pivô de um telejornal apresenta a última sondagem da Universidade Católica.

    A Aliança Democrática [AD] vence(rá) e a direita consegue a maioria dos deputados (com o Chega). É um cenário dantesco, confesso; mas razoavelmente normal para a alternância histórica dos partidos do centrão.

    Não me lembro de grandes discussões em torno da Educação, ou de o que fazer com a Ucrânia ou com Gaza. Também não me recordo de ouvir explicações da AD sobre a aliança com a Iniciativa Liberal [IL], que obrigará Montenegro a quebrar várias promessas eleitorais.

    Ficámos pelas promessas de tudo a todos – uns mais ridículos, e outros, poucos, mais objectivos.

    Enquanto acompanhava a campanha, em particular as arruadas, perguntava-me quem é que quer ser político em Portugal? A sério: quem?

    O desconforto no contacto com a população, para a maioria deles, é notório. Fora dos gabinetes e dos tapetes vermelhos da Assembleia da República, os candidatos parecem peixes fora de água, ouvindo insultos e sujeitando-se a momentos de vergonha alheia que me fazem pensar que não têm mesmo outra saída profissional que não seja aquela.

    Este período dos beijos a velhinhas nos mercados, passeios na linha férrea de interior escondido ou copos de três nas planícies alentejanas cheira a plástico por todo o lado. Tudo aquilo é feito com um esgar de dor e um sorriso amarelo que esconde o “quando é que isto acaba?”.

    A arruada é aquele momento em que o político profissional, algo que não deveria existir, faz o que mais se aproximará, na sua vida, com uma entrevista de emprego. Depois, se passar, pode estar mais quatro anos descansado e escondido atrás de um portão qualquer.

    Não há grande contacto entre as populações e o poder político. Pensem nisso. Quantas vezes na vossa vida chegaram ao contacto com um autarca, um deputado, um ministro? Há um sem número de degraus burocráticos que permitem, à classe política, “servir o povo” sem ter de o ver. Nem todos os partidos e/ou políticos são assim, mas, convenhamos, serão a maioria.

    Em Portugal gostamos muito das hierarquias e dos lugares no Olimpo, para onde mandamos uma boa parte dos incompetentes deste país. Não quero ser injusto, generalizando, mas acho mesmo que temos, actualmente, uma classe política medíocre e mais preocupada em “orientar a vida” do que servir a coisa pública.

    Um dos problemas, julgo, é a baixa remuneração dos políticos. Pode ser uma afirmação chocante, tendo em conta os baixos salários em Portugal, mas acho mesmo que o salário (oficial) de um político é muito pouco atrativo. Isso afasta os mais competentes, que ficam no sector privado e seguem as suas carreiras longe do lamaçal em que se transformaram estas décadas de “centrão”.

    Quem é que quer estar a ser analisado, criticado, vigiado e julgado na praça pública todos os dias? Culpado ou inocente, pouco importa; a imagem é arruinada em minutos nas televisões sensacionalistas, seja lá qual for o veredicto final dos tribunais. Isto, claro, quando há sequer veredicto.

    Pensem nos casos dos últimos anos e na forma como os ciclos se repetem. Soćrates, Galamba, Portas, Relvas, Albuquerque, Costa, Isaltino, os envolvidos do PS e PSD no tutti-frutti e por aí fora. Por todos, vimos directos, dias infindáveis de debates, suspeições, análises, escutas e imagens públicas devassadas antes das condenações. Alguns acusados, outros por acusar. Uns com penas, outros abafados. Uns com travessias no deserto e regressos triunfantes, e outros, ainda à espera do desfecho final.

    Mas reparem: independentemente da verdade que só à investigacão pública e aos tribunais deveria dizer respeito, todos formamos a opinião sobre a honestidade dos políticos visados. Lembrem-se do Galamba, anos e anos a ser escutado, com televisões à porta de casa enquanto levava o filho para a escola, sem que até hoje se perceba se o homem é inocente ou culpado. Longe de mim ter simpatia pela personagem em questão, mas onde quero chegar é: alguém se quer sujeitar a isto?

    Quem poderá querer viver neste permanente sensacionalismo e desgaste da imagem pública, seja inocente ou culpado, a troco de um salário que qualquer imigrante com formação universitária consegue, tranquilamente, mal apanha o avião de ida?

    Será pelo prestígio de ser ministro de um país pobre e sem qualquer relevância internacional? Será por amor à causa pública? Será pela ambição de poder num sítio onde quem manda verdadeiramente são meia dúzia de milionários?

    Não creio. Amor à causa pública afasta, por norma, as pessoas da corrupção e de actos ilícitos de favorecimento próprio. Poder? Talvez, para quem nunca saiu do próprio bairro e não perceba onde nos situamos no século XXI.

    Eu acho mesmo que é por falta de opções. Para um inútil sem grande currículo, ser político profissional é o melhor que pode almejar. E quanto mais inútil for, mais precisa de concorrer ano após ano – ao parlamento, às autarquias, ao que for. Tem de garantir um emprego. Ao contrário do que acontece nos países civilizados, ser político em Portugal é uma profissão para a vida. Mesmo com escutas, vigias, prisões em directo nas mangas dos aviões, horas e horas de devassa da vida nas televisões.

    Ainda assim, entre culpados e inocentes, há quem queira fazer disto vida a troco de um salário pouco mais do que risível. Especialmente se contabilizarmos o custo do circo e dos momentos de vergonha alheia.

    A quem serve esta profissão? Essencialmente, a quem não consegue mais nenhuma. E é por isso que nos boletins de voto, o que realmente abunda, é mediocridade e ausência de vida real.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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