Categoria: Opinião

  • A ‘solução’ para o neonazismo

    A ‘solução’ para o neonazismo

    Era uma tarde soalheira de Domingo. A Avenida das Forças Armadas estava vazia. Não havia o habitual frenesim de estudantes a subir e a descer a rua. A cantina universitária também estava fechada. Desci do autocarro e aterrei num dos momentos que mais me marcou na adolescência. Um grupo de rapazes e raparigas skinheads estava a chegar à paragem de autocarro no preciso momento em que eu estava já sozinha naquela avenida deserta.

    Quando eu era adolescente, e também na infância, parecia ser de origem asiática, com os olhos amendoados e o tom de pele claro no Inverno. No Verão, ficava morena e ainda acentuava mais o ar ‘exótico’. Era muitas vezes chamada de ‘chinesa’ na escola. Confundiam-me frequentemente como uma ‘uma rapariga oriunda de Macau’.

    brown game pieces on white surface

    Voltando à paragem de autocarro e aos skinheads. O motorista já tinha arrancado com o autocarro avenida acima. Olhei e estava aquele grupo infeliz no meu caminho. Percebi que já me tinham na mira. Senti um frio na barriga. Não havia ninguém à volta. Não havia edifícios de habitação ali. Ninguém à janela. O que havia, estava fechado. Passavam poucos carros e a ‘abrir’.

    O grupo acelerou na minha direcção. Tinham encontrado uma ‘presa’, pensaram.

    Senti como se fossem cães a vir morder-me. Como fui atacada por um cão em pequena, tinha algum medo de cães mais ferozes. Pensei no que aprendi sobre como agir perante cães: ‘fica quieta, anda muito devagar; não olhes nos olhos’.

    O grupo rodeou-me. Largou alguns insultos. Tentei continuar a andar, muito devagar. Fingi que não ouvia nada. Sobretudo, procurei não mostrar medo. Mas por dentro estava apavorada. Temia que tivessem alguma arma. Que me fossem magoar. O momento durou uns minutos e pareceu-me serem horas.

    a close up of a dog with its mouth open

    Lembro-me que me agarrei à alça da mala que levava pendurada ao ombro e que quase não respirava. Lembrei-me dos cães. Continuei a caminhar muito devagar, enquanto o grupo me cercava. Eventualmente, eles seguiram o seu caminho. Eu segui o meu.

    Passei a trazer uma navalha comigo na altura, confesso (mas não o recomendo hoje). Não que a fosse usar. Mas queria sentir-me segura de algum modo.

    Quando ouço hoje falar em neonazis recordo sempre aquele episódio. Por um lado, penso que se está a banalizar a palavra ‘neonazi’. E considero perigoso estar a misturar esse termo com outros. Banaliza. Normaliza. Preocupa-me que, ao se banalizar o termo, se esqueça o que ele significa e de onde vem. Por outro lado, não me surpreende que exista um aumento de extremistas. Aliás, era previsível que tal iria acontecer.

    Será sempre incompreensível para mim haver humanos que consideram outros humanos inferiores. Não falo apenas em termos de aspecto físico, como a cor da pele, a textura do cabelo. Não falo apenas da origem, da língua, da cultura. Falo de todos. Do outro ‘diferente’. Do humano que tem um problema na fala, um condicionamento cognitivo. Uma reduzida mobilidade. Um corpo ‘diferente’. O neurodivergente. O que é sensível aos ambientes, aos sons, às multidões. Aos ruídos. À pressão no trabalho ou na escola. O ‘gordo’, o ‘magro’.

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    Sou do tempo em que chamar ‘baleia’ a uma menina mais redondinha era normal, sobretudo na escola. Sou do tempo das alcunhas que se punham aos ‘diferentes’: ‘chamuça’; ‘banana’; ‘xinoca’; ‘mongoloide’.

    Já em adulta, era normal ouvir nas redacções expressões como ‘larilas’, ‘gaja’, ‘monhé’, ‘chamuça’, ‘preto’. Não havia igualdade de oportunidades para todos (não há, ainda). Não éramos todos iguais aos olhos de alguns.

    Também nunca compreendi como há humanos que se julgam superiores a outros humanos, apenas porque nasceram em famílias mais abastadas e com muitos apelidos. As castas sempre estiveram bem vivas em Portugal. Só me apercebi disso já adulta, no meio profissional.

    Mas, das muitas entrevistas que fiz, as que mais me custaram foram aquelas em que tinha à minha frente alguém racista, xenófobo, sexista. Os outros, os que se acham de uma ‘casta superior’, são almas que se encontram perdidas, iludidas. Já os racistas e sexistas, estão perdidos mas provocam-me arrepios. Como os cães ferozes.

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    Nos últimos anos, durante a pandemia de covid-19, vivi um verdadeiro choque em matéria de ódio e segregação. Foi profundamente desolador assistir à vaga de intolerância dirigida a cientistas de renome internacional que defendiam uma abordagem mais moderada e científica da gestão da crise de saúde.

    Assistimos não apenas à censura de vozes dissidentes, mas também à estigmatização brutal de quem, por convicção ou prudência, optou por não tomar as novas vacinas. Os media aplaudiram políticas de segregação e deram palco a figuras que incitavam ao ódio e à perseguição. O discurso de ódio tornou-se normal nos media.

    Fiquei abalada com a facilidade com que o discurso de ódio se infiltrou e ganhou legitimidade, designadamente entre figuras públicas, governantes, políticos, jornalistas e celebridades. Percebi como foi possível nos anos 30 do século passado que os nazis tenham conseguido convencer famílias alemãs comuns a aderir à sua ideologia. Percebi, na pandemia, como pessoas comuns se podiam transformar, de um dia para o outro, em predadores e carrascos e disseminar ódio por outros humanos.

    Estocolmo, Suécia, 2020. Enquanto em Portugal se disseminava nos media todo o tipo de discurso de ódio contra os que questionavam as medidas covid impostas pelo Governo, na Suécia o país manteve-se a funcionar perto da normalidade, com ajustes ponderados, respeitando as liberdades fundamentais e sem impor o uso de máscara em geral. / Foto: PAV

    Em países como os Estados Unidos, a Austrália ou a Nova Zelândia, a loucura chegou a um nível distópico de perseguições, violência, opressão e bullying institucional. As medidas segregacionistas, os atropelos a direitos fundamentais tornaram-se o novo normal. Os insultos. Os atropelos à Constituição em Portugal. Os atropelos ao consentimento informado na Medicina.

    E assim se normalizou uma era de obscurantismo e impunidade. Assim se normalizou o extremismo e o discurso de ódio e o bullying em larga escala. Assim se normalizou o ódio. E este ódio evidente nos media durante a pandemia nasceu da mesma forma como sempre nasceu o ódio: por ignorância e por medo. Onde há medo e ignorância, está o terreno tratado para semear o ódio.

    Ver hoje o regresso do termo ‘neonazis’ aos jornais causa-me um arrepio. Mas não posso dizer que me surpreende. Foram feitos vários avisos de que o extremismo iria aumentar nestes anos. Porquê? É simples. O extremismo gera extremismo. Quando se começaram a adoptar políticas radicais e extremistas em países europeus, incluindo Portugal, era óbvio o que iria suceder.

    the word hate spelled with scrabbled wood blocks

    As políticas radicais, muitas das quais sem base científica, que foram impostas na pandemia, deixaram, além disso, um rasto de danos económicos, sociais, psicológicos, emocionais gigantescos. Mas não foram as únicas medidas que serviram de adubo para criar zanga e revolta. Para ajudar a fazer nascer extremistas.

    As políticas radicais referentes à imigração que têm sido impostas no Ocidente atiraram migrantes para redes de tráfico de humano e condenaram milhares a viver em condições indignas. Também não acautelaram devidamente questões como a da integração cultural. Por outro lado, a tentativa de se querer ‘proteger’ migrantes, escondendo do público a nacionalidade de suspeitos em crimes hediondos, alimenta a desconfiança e o extremismo. Pior: tentar diminuir alguns crimes aberrantes, como aconteceu no Reino Unido com os gangues de pedófilos e predadores de meninas britânicas vulneráveis, tem o efeito contrário: alimenta a xenofobia. São políticas que alimentam a divisão e a polarização.

    Depois, há as políticas que têm promovido a anulação dos direitos das mulheres, designadamente o direito a estarem seguras e a terem privacidade em espaços baseados no sexo. Tem sido promovida uma nova forma de misoginia, em que os direitos de algumas pessoas se sobrepõem aos direitos de meninas e mulheres. E, mais uma vez, esta é uma nova forma de … polarizar e dividir a população. Inclusão nunca devia servir para dividir.

    Mesmo políticas como as que incentivam à eutanásia em países como o Canadá, ou a descriminalização da interrupção de gravidez até ao nascimento no Reino Unido — são medidas radicais e que levantam profundas questões éticas. Onde está o bom senso nestas políticas? Estas políticas não alimentam extremistas? E não dividem a população?

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    Ontem, extremistas criaram extremistas. Hoje, continuam a alimentá-los.

    Os media têm sido parte do problema, não da solução. Têm aprovado e promovido muitas das políticas radicais e extremistas que governos têm vindo a adoptar, designadamente na Europa e nos Estados Unidos. Os media têm sido avessos ao contraditório e ao pensamento dos moderados.

    Os que optam pelo caminho do meio, pelo bom senso, não são bem-vindos aos media. Os que procuram manter o discurso numa base factual, racional, empírica, não são bem-vindos. Os que procuram a paz, o diálogo, a diplomacia, a razão, a compaixão, a compreensão, não são bem-vindos.

    São bem-vindos os populistas. Os radicais. Os opostos. Os extremos. Isso vende. Vende jornais, vende cliques. Atrai audiência. São bem-vindos os que promovem ódio. Os radicalizados. Os que defendem políticas e governantes que perderam todo o bom senso. Porque os media dependem, muitas vezes, de financiamentos de governos e entidades públicas, além de dependerem de parcerias comerciais de empresas de indústrias poderosas que lucram com algumas das políticas em curso.

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    E governos lucram com o aumento do extremismo. O extremismo e o medo lançam as bases para se criar o terreno ideal para o Estado policial em permanência. Reforçam as ideologias de vigilância, controlo, opressão e de aniquilação de direitos humanos e civis e das liberdades fundamentais. É a ‘desculpa’ ideal para reforçar poderes de políticos e mudar leis fundamentais, eliminando direitos como a liberdade de imprensa e de expressão ou o direito à greve.

    Nunca as democracias ocidentais estiveram tão ameaçadas como hoje. Pelas forças (incluindo na Europa) que pretendem arrastar os países para guerras. Pelos grupos extremistas. Pelos governos e políticas extremistas. Uns alimentam os outros. E vice-versa.

    O problema criado por estes extremismos – o institucional, de governos, que viola liberdades e as leis dos países, e o de grupos ‘civis’ – vai ter uma ‘solução’. Cria-se o problema para oferecer uma solução. Essa ‘solução’ vai parecer ser a que nos vai ‘salvar’ dos neonazis. Da extrema-direita. Da extrema-esquerda. Dos terroristas. Vai incluir aquilo que já se chama nos media de ‘limites’ à liberdade de expressão. Vai incluir um aumento da vigilância. Um reforço dos gastos em defesa e armamento. A eliminação de leis fundamentais. Do espalhar o medo. Tudo para o ‘bem de todos’. O ‘bem comum’.     

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    Vivemos numa era de grande mudança. Mas também temos meios que não existiam em outros tempos. E temos uma capacidade de mobilizar e fazer passar a palavra como nunca houve antes. Apenas desejo que os moderados, os ponderados, os do caminho do meio, criem uma onda avassaladora que derrube os extremismos e o caminho que nos conduz ao fim das democracias. Porque só há um futuro que desejo para os mais novos. E não inclui cercos em paragens de autocarro por bandos de almas perdidas. Nem inclui jornais e TVs que incentivam e promovem o ódio contra grupos de humanos. Nem inclui políticas e governos que esqueceram a História e as conquistas do pós-Segunda Guerra Mundial, como direitos humanos.

    Tenho receio de neonazis? Tenho. Ainda hoje. Tenho receio de governos totalitários e que enterram as liberdades fundamentais e direitos conquistados? Mais do que nunca.  

    A verdadeira solução para combater os extremismos passa pela promoção de políticas de verdadeira inclusão, de tolerância, mas também políticas de combate à pobreza e de promoção de melhores condições de vida da população, migrantes incluídos. Passa pelo combate ao radicalismo de governos em matérias que têm dividido e polarizado a sociedade. Para por políticas ‘back to basics‘, o regresso ao fundamental, ao prioritário: pão; emprego; tecto; educação; solidariedade.

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    O futuro que sonho pertence aos moderados, aos ponderados, aos pacifistas, aos racionais, aos que defendem o bom senso. São eles que podem por ‘um pé na porta’ e travar o avanço do extremismo, mas também o avanço do Estado policial e de uma nova forma de totalitarismo e censura. Porque a solução para travar o neonazismo, o extremismo e o terrorismo não está no reforço de poderes de políticos que anseiam por estados de emergência permanentes e um dispendioso arsenal de armas.

    A solução do combate ao extremismo está no encontro entre a razão, o bom senso e a ética. E isso tem de estar reflectido nas políticas de governos.

    A solução do combate ao extremismo está no sabermos que somos iguais, nós humanos. Com sexos diferentes. Com culturas e origens diferentes. Com tons de pele diversos. E temos de ambicionar chegar a um terreno comum para alcançar um mesmo propósito: avançar e progredir, vivendo em paz e em harmonia. Entre nós. E neste planeta em que, sendo nós a espécie dominante nesta era, somos apenas uma das muitas que aqui têm o seu lar. Pelo menos, enquanto não nos aventurarmos galáxia fora e ‘emigrarmos’ para novos planetas, transportando o melhor que temos para dar: a nossa humanidade.  

    Elisabete Tavares é jornalista

  • Irão, ou como a impressora de notas norte-americana tudo arrasa

    Irão, ou como a impressora de notas norte-americana tudo arrasa


    Na madrugada do último 13 de Junho, Israel lançou uma ofensiva aérea massiva contra o Irão, numa acção coordenada que envolveu cerca de 200 aviões de combate e mais de 300 bombas lançadas sobre instalações nucleares, bases militares e centros de comando iranianos.

    A operação, baptizada “Leão em Ascensão”, visa destruir o programa nuclear iraniano e eliminar altos quadros políticos, militares e científicos iranianos. Em resposta, o Irão retaliou com mísseis e drones, atingindo alvos civis e militares em Israel, provocando dezenas de mortos e reacendendo a instabilidade regional, num confronto que se anuncia prolongado e potencialmente devastador, pois a este conflito poderá juntar-se ainda o colosso norte-americano ao lado de Telavive.

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    Se há povo que sabe o preço do sangue colonial é o persa. Entre 1917 e 1919, em plena Primeira Guerra Mundial, o Reino Unido converteu a neutral Pérsia num matadouro a céu aberto: confiscou cereais, bloqueou importações e lançou o país numa fome que ceifou entre seis e dez milhões de vidas — até metade da população de então. Esta tragédia, apagada dos manuais ocidentais, permanece tatuada na memória colectiva iraniana como o seu holocausto silenciado

    Quando, décadas depois, Londres e Washington derrubaram o nacionalista Mohammad Mossadegh — que ousara nacionalizar o petróleo iraniano —, o fantasma do Império voltou a erguer-se. A Operação Ajax, comandada pela CIA e pelo MI6, reinstalou o Xá e entregou o ouro negro de volta às sete irmãs anglo-americanas (BP, Shell, Exxon, Mobil, Chevron, Gulf Oil e Texaco). Os documentos desclassificados da própria CIA não deixam dúvidas: foi um golpe palaciano puro e duro

    Para vigiar o novo vassalo, inventaram a SAVAK, polícia secreta treinada por ex-nazis e “sionistas revisionistas”: tortura industrial em nome da estabilidade. O serviço foi montado com o apoio directo da CIA e da Mossad, que forneceram métodos, quadros e doutrina. A sua actuação estendia-se das escutas domésticas à eliminação de dissidentes, passando por práticas sádicas dignas da Gestapo.

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    Hoje, as celas húmidas, os instrumentos de afogamento e os manequins ensanguentados ainda podem ser visitados no Museu Ebrat, em Teerão — antiga prisão política da SAVAK, agora convertida em memorial da dor. Ali se expõem as marcas do horror, como aviso e testemunho. Quando o Xá caiu em 1979, os iranianos sabiam, quem, em Londres e Washington, mexia os cordelinhos.

    Em Janeiro e Fevereiro de 1979, graças a manobras dos EUA e de França nos bastidores, o Xá Mohammad Reza Pahlavi foi pressionado a abdicar — dentro, aliás, de planos discutidos na cimeira de Guadalupe, onde Carter, Callaghan, Giscard e Schmidt deliberaram sobre a crise iraniana. Dois dias após a sua partida (entre 16 e 18 de Janeiro), Khomeini regressou ao Irão, desembarcando em Teerão a 1 de Fevereiro e recebendo a homenagem de milhões de apoiantes nas ruas.

    O exílio acabava, o poder clerical começava. A liderança militar realinhou-se rapidamente, rendeu-se, e apenas onze dias depois — a 11 de Fevereiro — o regime do Xá desmoronou por completo, dando lugar ao governo provisório liderado por Mehdi Bazargan.

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    Até mesmo membros da oligarquia ocidental, como o secretário de Estado Cyrus Vance, defendiam que o Irão devia aceitar uma transição moderada, a fim de estabilizar o país após o regresso de Khomeini.

    Da ocupação britânica ao xadrez nuclear contemporâneo, o nó górdio chama-se petrodólar. Desde o final da Segunda Grande Guerra, mas em particular desde o final de Bretton Woods em 1971, o dólar norte-americano sobrevive não pela virtude, mas pela coerção: petróleo, sanções, sistema Swift.

    O Irão é um dos poucos Estados que evita essa camisa-de-forças — vende petróleo em iuanes, rublos, rupias, ouro, qualquer coisa menos dólares norte-americanos. É, pois, um herege monetário e, logo, inimigo sistémico desde que é governado por um regime teocrático abominável, cuja ascensão foi, no mínimo, tolerada — e até encorajada — pelos estrategas ocidentais, que viram em Khomeini um antídoto conveniente ao nacionalismo laico e à influência soviética.

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    Desde o final da convertibilidade do dólar norte-americano em ouro, em 1971, sempre que algum Estado ousa levantar-se contra esse trono verde-oliva, a resposta é sempre a mesma: bastão e dor. Veja-se o Iraque de Saddam Hussein, que em 2000 começou a vender petróleo em euros — três anos depois, foi acusado de esconder armas de destruição maciça (nunca encontradas), invadido, ocupado e transformado num cemitério civilizacional.

    Veja-se a Líbia de Kadhafi, que planeava lançar um dinar-ouro africano e escapar ao dólar norte-americano e ao franco CFA (Colonies Françaises d’Afrique). Foi bombardeada pela NATO em 2011, e hoje é um Estado falhado onde se traficam órgãos e escravos. Estes não são acidentes: são castigos exemplares.

    Rejeitar o dólar norte-americano não é uma simples opção económica — é uma declaração de guerra ao império monetário, e quem ousa rebeldia paga invariavelmente com sangue. O Irão, que há décadas vende petróleo em quase todas as divisas excepto o dólar norte-americano, conhece esse preço até à medula.

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    Nesta arquitectura, as “instituições independentes” e supranacionais — FMI, Banco Mundial, A Agência Internacional para a Energia Atómica (AIEA) — são fiadoras da primazia verde-oliva norte-americana. Se a AIEA se revelar uma correia de transmissão de Telavive (e, por tabela, da Casa Branca), desmorona-se o mito da imparcialidade tecnocrática que sustenta o regime global de sanções. Sem sanções, não há chantagem; sem chantagem, o dólar norte-americano perde o trono.

    Antes da análise à presente crise, importa recordar que em 2006, quando as autoridades libanesas anunciaram a descoberta de uma vasta rede de espionagem ligada à Mossad — chefiada por Mahmoud Abou Rafeh, um oficial da polícia que confessou operar para Israel e escondia explosivos e equipamentos de escuta em casa —, Telavive respondeu como habitualmente sabe: com mísseis.

    O cerco à verdade foi silenciado a fogo e aço. As investigações, que ameaçavam revelar infiltrações israelitas nos mais altos escalões libaneses, foram abruptamente interrompidas quando Israel lançou uma ofensiva devastadora contra o Líbano sob o pretexto de resgatar dois soldados capturados. Tal como agora, a sequência foi clara: primeiro a revelação, depois os bombardeamentos. O padrão é sempre o mesmo — quando a verdade ameaça emergir, há que criar uma cortina de fumo feita de explosões.

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    Foi aqui que o enredo se repetiu. A 7 de Junho do presente ano, Teerão divulgou ter capturado documentos confidenciais que comprometeriam Rafael Grossi, o director-geral da AIEA, em alegada colaboração ilícita com Israel. O argentino, recorde-se, já ficara mudo em 2022 quando admitiu, em Davos, que Kiev armazenava toneladas de plutónio e urânio — assunto logo abafado.

    Cinco dias depois, o Conselho de Governadores da AIEA aprovou, à pressa, uma resolução acusando o Irão de falta de cooperação. Rússia, China e Burkina Faso votaram contra. O escândalo ameaçava romper a cortina de credibilidade da Agência.

    Na madrugada seguinte, a 13 de Junho, rugiu o “Leão em Ascensão”: 200 F-35l e F-15, 330 bombas guiadas, 100 alvos — Natanz, Fordow, bases Quds, radares S-300. A sincronização é cirúrgica: denúncia de conluio hoje, bombardeamento amanhã. Quem duvide da causalidade que estude a cronologia.

    orange and yellow abstract painting

    A propaganda internacional alinha-se: Telavive exerceu “legítima defesa preventiva”. Nada de novo no teatro das operações psicológicas. Desapareceu a pergunta essencial: por que motivo se bombardeia exactamente no dia em que a máscara da AIEA estala?

    Porque admitir a parcialidade da Agência equivaleria a admitir que o sistema multilateral é um jogo viciado. Sem árbitro “neutro”, ruem as sanções; sem sanções, ruem as cadeias que prendem economias inteiras à liquidação de transacções internacionais em dólares norte-americanos; sem essa algema cambial, o “excepcionalismo” norte-americano dissolve-se.

    Convém nunca esquecer quem plantou a semente: o Reino Unido, o primeiro carrasco da fome persa, primeiro arquitecto do mapa sectário do Médio Oriente, primeiro fiador do Estado de Israel “incapaz de se defender sozinho”, como estipulou em 1915. Hoje sustenta Benjamin Netanyahu à direita e a Irmandade Muçulmana à esquerda, mantendo o conflito em eterno ponto de ebulição. A velha Albion a jogar xadrez com sangue alheio, como sempre fez.

    chess pieces on board

    Israel não atacou apenas centrifugadoras. Atacou a hipótese de vermos, a cores, a promiscuidade entre a AIEA e o seu arsenal nuclear não declarado. Atacou, por ricochete, qualquer questionamento à ordem monetária que mantém 330 milhões de norte-americanos a viver à custa de um planeta forçado a usar pedaços de papel verde.

    Enquanto um só míssil cair sobre Teerão ou Telavive, o debate sobre o petrodólar, a farsa das sanções e o genocídio britânico de 1917-19 permanecerá fora da “imprensa”. É assim que se conserva um império: mata-se a verdade à fome, exactamente como se matou metade do Irão há um século.

    Que ninguém se engane: o “Leão em Ascensão” não defende Israel — defende o trono do dólar norte-americano. Cada bomba que explode é, afinal, uma nota verde impressa com tinta de sangue.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ‘Grátis’: um caso de demência entre jornalistas

    ‘Grátis’: um caso de demência entre jornalistas


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo.

    No 21º episódio, analisa-se o caso dos títulos que anunciam concertos ‘grátis’ e festivais ‘grátis’, mas que, afinal, são pagos pelos contribuintes…

    Também se analisa: a ‘não cobertura’ da reunião anual do Grupo Bilderberg; a repentina preocupação dos media com conflitos de interesse entre ‘especialistas’ de saúde pública; a cobertura ‘fofinha’ da presença de Portugal na Expo 2025; e a bipolaridade dos media ao noticiar motins como protestos ‘pacíficos’.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

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  • Serafim: 17 anos cheios de vida

    Serafim: 17 anos cheios de vida


    Formalmente Mascot do PÁGINA UM, com direito a estar incluída na Ficha Técnica, e presumido autor da crónica ‘Arranhadelas’, informamos que o Serafim faz hoje, dia 13 de Junho, 17 inteiros anos de uma rica vida.

  • Portugalidade: uma maçada para a RTP, uma irrelevância para a ERC

    Portugalidade: uma maçada para a RTP, uma irrelevância para a ERC


    No Dia de Portugal, a 10 de Junho, a escritora Lídia Jorge proferiu em Lagos um discurso em que evocou, além da multiculturalidade e da miscigenação do povo português ao longo da História, o papel decisivo de Camões na fixação de uma “língua nova à altura de um pensamento novo”. Mais do que tudo o resto, subscrevo a ideia de que aquilo que verdadeiramente marca Portugal é ser uma Nação — algo que se distingue de um simples país por deter um património que transcende as fronteiras da biografia ou do território.

    Mas mais do que o conceito de Nação, atrai-me o conceito de portugalidade, porque esse é o traço mais subtil e profundo que molda o nosso modo de ser e de resistir — um sentimento que não cabe em estatutos nem se impõe por decreto. E que começa na língua, mas se reflecte, ou deveria reflectir-se, sobretudo no nosso olhar irónico perante o poder, na resistência ao absurdo, na memória entranhada das partidas e regressos, no génio de reinventar-se com poucos meios e no talento invulgar de desconfiar de tudo, inclusive de nós próprios. E isso tem-se perdido.

    Tem-se perdido porque se esvaziou o orgulho em promover Portugal como berço de uma língua com História. Mas o que mais dói é que esta erosão não resulta de ataques externos ou de falantes estrangeiros que tropeçam nos seus sons e ritmos — mas sim de gestores públicos, decisores políticos e instituições nacionais que tratam a língua como um adereço cerimonial ou, pior, como um entrave à modernidade cosmopolita.

    Veja-se, por exemplo, o que fez recentemente a AICEP, ao conceber o pavilhão de Portugal para a Expo 2025 em Osaka, omitindo ostensivamente o uso do português em quase toda a exposição — como se a identidade nacional se limitasse a branding, fado, cortiça e arquitectura de interiores.

    Mas o caso mais gritante — e de consequências directas — passa-se com a RTP, televisão pública que todos os portugueses são forçados a financiar. Por via da factura da electricidade, os contribuintes canalizaram, nos últimos cinco anos, quase mil milhões de euros para uma empresa que tem, entre as suas obrigações legais, uma missão clara: promover e difundir a língua portuguesa, independentemente de audiências, quotas de mercado ou modas.

    Se a RTP é culta e adulta, como se proclama, menos desculpável é o incumprimento na promoção da Língua Portuguesa e da produção audiovisual nacional.

    Ora, aquilo que se exige à RTP não é um capricho cultural nem uma imposição ideológica. É uma norma legal expressa, consagrada no artigo 44.º da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido, que estabelece que os canais com cobertura nacional, como a RTP2, devem emitir, anualmente, pelo menos 50% da sua programação em língua portuguesa, excluindo publicidade, televenda, autopromoções e serviços de teletexto. E, dentro dessa quota, pelo menos 20% deve corresponder a obras criativas produzidas originariamente em português, contando-se até às cinco primeiras exibições de cada obra.

    Não são meras orientações: são obrigações legais que visam preservar o espaço público audiovisual como território da nossa Cultura. Deveriam ser consideradas sacrossantas.

    Porém, pelo menos desde 2017, a RTP2 tem incumprido sistematicamente ambas as exigências. Durante cinco anos consecutivos, pelo menos, por agora, até 2021, falhou o mínimo de 50% de programação em português e nunca atingiu os 20% de obras criativas originais. Tudo documentado em relatórios públicos da ERC. E, ainda assim, nenhuma consequência prática.

    Golden Gate Bridge

    Num país decente, uma infracção sistemática como esta teria consequências óbvias: demissão da administração, apuramento de responsabilidades políticas e aplicação de sanções efectivas. Mas em Portugal, as obrigações legais são tratadas como metáforas regulamentares — enunciados solenes sem qualquer valor operativo. As normas existem, sim, mas para parecerem existir. E a ERC, em vez de agir com firmeza, entretém-se há anos a “instar”, numa coreografia burocrática onde a indignação nunca chega e a penalização nunca dói.

    Por cada infracção anual por incumprimento dos limites mínimos de emissão de programas em língua portuguesa e de produção nacional, a RTP poderia ser punida com uma coima de até 200 mil euros. Considerando que se verificaram dois incumprimentos por ano, o valor acumulado poderia, em teoria, ascender a 400 mil euros. Mas a ERC, magnânima e indulgente, decidiu sancionar de forma simbólica: em 2023, aplicou uma multa de 15 mil euros, e mandou o INBAN para a RTP pagar. E no mês passado, numa deliberação tornada pública esta semana, subiu generosamente a fasquia para… 16 mil euros.

    Isto não chega para pagar dois episódios de uma série de segunda linha, e nem atinge o bolso e o cargo dos administradores e directores de programa da RTP. E é uma quantia que nem sequer incomoda uma estrutura mastodôntica com orçamento anual a rondar os 200 milhões. É, na prática, uma palmadinha indulgente, um convite à reincidência, uma forma discreta de arquivar o incómodo. Como se dissesse: “Sim, falharam, mas enfim… todos falham. Continuem.”

    Helena Sousa, presidente da ERC: ainda se concede um desconto na multa pelo incumprimento recorrente dos níveis de promoção da Língua Portuguesa por parte de uma empresa pública que recebe quase 200 milhões de euros dos consumidores de electricidade.

    Portugalidade? Isso parece uma maçada para a RTP — mas também uma irrelevância para a ERC, que aplica multas como quem distribui advertências escolares a alunos preguiçosos. E, para os portugueses — esses que financiam tudo isto através da factura da luz —, uma palavra vazia, que serve para discursos floridos no 10 de Junho, mas que, no dia seguinte, já ninguém quer levar a sério. Muito menos quem devia levá-la à letra.

    E, com igual certeza, haverá mais um discurso, em português irrepreensível, a entoar loas cerimoniosas à Portugalidade — enquanto, nos bastidores, se continua a tratá-la como um empecilho dispensável.

  • Habemus Papam, ou A influência da Igreja Católica no contexto político brasileiro

    Habemus Papam, ou A influência da Igreja Católica no contexto político brasileiro


    Habemus Papam.

    Quando o fumo branco começou a sair pela chaminé instalada no telhado da Capela Sistina, toda a gente já sabia: a Sé não estava mais vacante; os cardeais haviam escolhido um novo bispo para Roma. Cumprido o ritual milenar, restava ao cardeal protodiácono, Dominique Mamberti, pronunciar a fórmula estabelecida desde o século XV, após a eleição de Martinho V: “Habemus papam!” Só então o planeta descobriu que o sucessor de Francisco também era oriundo do Novo Mundo: Robert Francis Prevost. Ou, como será doravante conhecido por toda a eternidade, Papa Leão XIV.

    Para os céticos e não crentes, as tradições papalinas não se diferenciam muito das demais sucessões monárquicas: “rei morto, rei posto”, é o ditado que vem desde Carlos VI, Rei de França. Para os crentes do universo católico, significa que novamente temos um Vigário de Cristo para dar seguimento à Sua palavra. Para o mundo político brasileiro, contudo, o significado é potencialmente bem outro.

    Papa Leão XIV. Foto: Vatican News.

    A história política da Igreja Católica no Brasil

    Não que a ligação entre política e Igreja Católica seja algo recente na história política brasileira. Pelo contrário. Desde quando aqui aportaram as caravelas de Cabral, Estado e Igreja caminharam lado a lado. Enquanto os portugueses lideravam a dominação territorial, aos padres competia a “salvação das almas” dos povos conquistados. Esse foi o balé dançado a dois desde 1500. Mesmo quando a música era atravessada por episódios tragicómicos, como a “deglutição” do Bispo Sardinha – primeiro prelado do país, canibalizado pelos índios caetés –, o baile seguia, dada a comunhão de interesses entre os pares.

    A coisa só começou a desandar no final do século XIX. Pela Constituição de 1824, cabia ao Imperador não só nomear os bispos, como também “conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios, e letras apostólicas, e quaesquer outras constituições ecclesiasticas que se não oppozerem á Constituição” (Art. 102, inc. XV, da Constituição de 1824). Quando Pio IX decretou a Bula Syllabus Errorum, D. Pedro II foi colocado numa sinuca de bico. A diretriz papal condenava “ideologias” incompatíveis com a fé cristã – e a maçonaria era uma delas. Se o imperador brasileiro fizesse cumprir a determinação de Sua Santidade, ofenderia os maçons; se negasse sua aplicação, compraria briga com o Vaticano. Entre a Santa Sé e suas bases, D. Pedro II preferiu ficar com os maçons.

    Ritual antropofágico desenhado por Theodore de Bry (1528-1598)

    Desse embate resultou a prisão por “insubordinação ao Imperador” dos bispos de Olinda e do Pará, que ameaçaram de excomunhão quem frequentasse templos maçons. Um arranjo posterior permitiu o funcionamento da maçonaria sem a condenação religiosa, em troca da libertação dos bispos. O cristal, contudo, encontrava-se irremediavelmente trincado. Ao lado da questão militar e da questão abolicionista, a questão religiosa foi decisiva para o fim do Império e o consequente golpe que instaurou a República no Brasil.

    Ainda que a primeira constituição republicana tenha estabelecido como um de seus princípios fundantes a separação entre Igreja e Estado (Art. 11, n. 2º, da Constituição de 1891), seria ingénuo acreditar que uma cultura arraigada de forma tão profunda no imaginário popular pudesse desfazer-se assim tão rapidamente. Durante todo o século XX, a Igreja Católica foi, juntamente com a sombra do fantasma militar, o maior fator de desequilíbrio eleitoral no cenário político brasileiro. Membro da Ação Integralista no Ceará (os fascistas da época), D. Hélder Câmara – que viria a ser o líder religioso mais influente do país – fez campanha em 1934 para a Liga Eleitoral Católica em seu estado com o slogan: “um voto para a LEC é um voto para o Nosso Senhor Jesus Cristo”. Foi o que bastou para que a oposição fosse varrida nas urnas.

    D. Hélder da Câmara (1909-1999)

    Não surpreenderá a ninguém constatar que, trinta anos depois, o chão tenha começado a ruir sob os pés de João Goulart justamente quando militares e católicos ultraconservadores resolveram unir-se contra o seu governo. Em 19 de Março de 1964, meio milhão de pessoas saíram às ruas em São Paulo naquela que ficou conhecida como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Duas semanas depois (2 de Abril), outras 200 mil saíram às ruas da antiga capital federal, no Rio de Janeiro, para comemorar o golpe militar contra o governo constitucional na chamada “Marcha da Vitória”.

    No início da ditadura, militares e a cúpula da Igreja Católica mantiveram-se razoavelmente próximos. D. Hélder Câmara – que batalhara junto ao então Subsecretário de Estado do Vaticano, Giovanni Battista Montini, pela criação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e ocupara por treze anos a sua Secretaria-Geral – foi defenestrado meses depois do golpe em favor da ascensão de um prelado inexpressivo, porém alinhado à nova ordem: D. Agnelo Rossi.

    Batido, D. Hélder teve de resignar-se com a perda da poderosa arquidiocese do Rio de Janeiro. Tentaram exilá-lo no Maranhão, mas, nomeado para a diocese de São Luís, a “sorte” atravessou-lhe o caminho, matando pouco dias antes da sua efectivação na capital maranhense o arcebispo de Olinda e Recife, Dom Carlos Coelho. Para os militares e para os católicos ultramontanos, teria sido melhor vê-lo em São Luís, mas mesmo assim o Recife era uma vitrine menos vistosa do que a antiga capital do estado da Guanabara.

    A capital pernambucana, contudo, ainda guardava nos anos 1960 muito do espírito revolucionário que levou a outrora gloriosa capitania de Pernambuco a ser palco de oito em cada dez insurreições no período do Império. Estudantes revoltosos e insurretos de todas as idades viam naquela figura magra e pequena o vulto de um líder. Não se podia dizer que D. Hélder quisesse liderar uma revolução que conduzisse ao fim da ditadura, mas era certo que sabia da influência que detinha para distribuir cotoveladas aos militares através de suas palavras.

    Como não pudessem prendê-lo – o que seria visto em toda a parte como uma afronta inaceitável –, os militares iam atrás de quem estava no seu entorno. Por mais de uma vez, coroinhas de D. Hélder foram presos e levados incomunicáveis a quartéis do Recife. Quando não prendiam sem razão, metralhavam sua casa ou o Palácio de Manguinhos, residência oficial do arcebispado de Olinda e Recife. Se isso fosse pouco, no dia 27 de Maio de 1969, um cadáver foi descoberto nas cercanias da Cidade Universitária no Recife. Era o corpo do Padre António Henrique Pereira Neto, assistente da arquidiocese para assuntos da Juventude, a quem D. Hélder estimava como um filho. Os restos do Padre António Henrique continham uma corda passada no pescoço, feridas espalhadas por todo o corpo, cortes de facão na garganta e na barriga, além de três tiros na cabeça. No seu enterro, D. Hélder fez questão de indicar os assassinos: “Aqueles que julgam estar salvando a civilização cristã com a eliminação de sacerdotes e líderes estudantis”.

    O caldo – sempre fervente – entornara de vez. Pela primeira vez na história do Brasil, um clérigo havia sido assassinado por motivos políticos. D. Hélder – que passara quase cinco anos como voz solitária a pregar no deserto – comprou um bilhete aéreo e foi a Roma ter com o Santo Padre. Seu velho amigo Montini – agora Papa Paulo VI – resolveu tomar partido nessa briga: “Nós lemos a documentação referente à tortura que você nos mandou. Então, tudo o que você havia nos contado era verdade. A Igreja não deverá tolerar mais as atrocidades e torturas cometidas num país que se diz católico”.

    Dom Helder com uma multidão no cortejo do Padre Henrique em 1969. Foto: Arquivo/Jornal A Verdade.

    Foi a senha para o divórcio definitivo entre a Igreja Católica e a ditadura militar. Alguns meses depois, D. Hélder verbalizou no Palais des Sports, em Paris, o que todo o brasileiro decente já sabia, mas não podia falar: “A tortura é um crime que deve ser abolido. Os culpados de traição ao povo brasileiro não são os que falam, mas sim os que persistem no emprego da tortura. Quero pedir-lhes que digam ao mundo todo que no Brasil se tortura. Peço-lhes porque amo profundamente a minha pátria e a tortura a desonra”. Dali em diante, a Igreja Católica passou a ser praticamente a única instituição regular organizada a denunciar os crimes e os desmandos da ditadura brasileira.

    A Igreja no pós-redemocratização e um possível cenário para 2026

    Quando a ditadura caiu em 1985, a Igreja ainda era, com sobras, a denominação religiosa mais influente do país. 90% da população professava a fé católica. Nas pequenas cidades do interior, as maiores autoridades locais eram – não necessariamente nessa ordem – o prefeito (representante do poder secular), o juiz (representante da lei), o delegado (representante da ordem) e o padre (representante do poder divino).

    De lá para cá, entretanto, o panorama mudou bastante. Hoje, não mais do que metade da população brasileira declara-se católica. Os evangélicos, que em 1980 não chegavam sequer a 10% do total, atualmente somam mais de 30%. Embora não seja possível definir a posição política do cidadão a partir da sua fé declarada, é certo que a maior parte dos protestantes rejeita Lula ou qualquer coisa que se pareça com o PT. Aproximadamente 60% deles votaram em Jair Bolsonaro na eleição de 2022. Se Lula conseguiu vencer por estreita margem no pleito passado, isso deveu-se em sua maior parte aos votos católicos, onde o babalorixá petista amealhou mais de 50% do total. Como os católicos (ainda) são maioria no país, essa diferença – somada aos votos dos ateus – resultou nos pouco mais de 2 milhões de votos que deram a vitória a Lula.

    E o que o novo Papa tem a ver com isso?

    Em que pese a doutrina católica professar a crença fundamental de que o Santo Padre é o representante legítimo de Jesus na Terra, muitos dos sedizentes católicos brasileiros abominavam o Papa Francisco mais do que o próprio demónio. “Comunista”, o argentino Jorge Mario Bergoglio recusara-se a receber o “mito” dessa malta, Jair Bolsonaro. Trata-se de façanha única entre os presidentes brasileiros desde a redemocratização em 1985. Para o eleitorado bolsonarista, Francisco era antes um rival a ser combatido do que um líder espiritual a ser reverenciado. Não causa espanto, portanto, que sua morte tenha sido objeto de comemoração nesses círculos mais sombrios.

    Felizmente, essa porção dantesca do catolicismo brasileiro constitui minoria na Igreja brasileira. A imensa maioria ainda reza à vera o credo niceno-constantinopolitano e não acredita na teoria de que a Terra é plana. Para essa porção, a palavra do Bispo de Roma segue tendo peso, e ele está longe de ser irrelevante.

    Papa Francisco, à direita.

    Embora seja tradição o Papa não declarar voto em ninguém, as seguidas demonstrações de “apoio” de Francisco a Lula certamente não passaram despercebidas pelos crentes católicos. Ainda quando o actual presidente estava preso, Jorge Mario Bergoglio escreveu-lhe uma carta. Depois que Lula saiu da prisão, em 2020, recebeu-o no mesmo Vaticano em cujo solo não quis receber Bolsonaro. Quatro dias antes do segundo turno da eleição de 2022, naquele que talvez tenha sido seu movimento mais ousado no tabuleiro político brasileiro, Francisco pediu em oração que “Nossa Senhora Aparecida proteja e cuide do povo brasileiro, livrando-o do ódio, da intolerância e da violência”.

    É possível que Francisco não fosse propriamente um fã de Lula. É possível até intuir que o Papa não enxergasse no atual presidente um modelo de cristão. Mesmo assim, como bom jesuíta, Francisco sabia reconhecer que, se Lula não era enviado de Deus, Bolsonaro provavelmente era mandatário da outra figura. O recado, portanto, estava dado. O Papa não queria Bolsonaro – o ódio, a intolerância e a violência encarnadas – como presidente do Brasil.

    Prevost não é Bergoglio e não há a menor garantia de que Leão será Francisco. Todavia, o simples facto de o Sacro Colégio Cardinalício ter escolhido um Papa norte-americano que criticou publicamente em redes sociais Donald Trump e seu vice, J.D. Vance, é sinal de que Jair Bolsonaro e sua trupe não encontrarão na Santa Sé um aliado contra o “comunismo”, vocábulo no qual se enquadra qualquer um que não reze pela cartilha da extrema-direita.

    aerial photography of city

    O calendário de hoje marca 2025 e, se é cedo para virar a folha para 2026, mais prematuro ainda é tentar profetizar o que se passará nas eleições de outubro do ano que vem. Entretanto, a julgar pelo cenário que se desenha, uma coisa é certa: teremos uma eleição acirrada e a religião terá novamente papel preponderante nela.

    Resta, agora, saber que tipo de papel o Papa Leão vai querer desempenhar nela. Vai marcar posição, como fez seu antecessor? Ou preferirá manter a Igreja longe da hélice?

    Só Deus – literalmente – sabe.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

  • O mistério da Lusa e a ‘protecção’ de Luís Delgado

    O mistério da Lusa e a ‘protecção’ de Luís Delgado


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo.

    Regressa o Alterações Mediáticas. E no 20º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que tem levado a agência Lusa a esconder repetidamente uma informação relativa aos gerentes da Trust in News.

    Também se analisa um artigo distorcido da revista The New Yorker sobre Jacinda Arden e o fenómeno que levou alguns media britânicos a mentir no caso do acórdão do Supremo Tribunal sobre direitos das mulheres.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

    Subscreva gratuitamente o canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.

  • Nininho & Maria João Avillez: jornalismo e humor em época de ofendidos

    Nininho & Maria João Avillez: jornalismo e humor em época de ofendidos

    A forma como os leitores apreendem os conteúdos de um jornal pode ser analisado e avaliado pelas reacções nas caixas de comentários ou nas redes sociais. Não tendo o PÁGINA UM, por razões editoriais, uma caixa de comentários (que exigiria ‘moderação’, algo impraticável para os nossos meios), resta-nos as reacções nas redes sociais. E, na semana passada, sucedeu algo curioso com dois textos no PÁGINA UM: uma notícia e uma crónica satírica.

    A notícia destacava o facto de Nininho Vaz Maia continuar popular junto de autarcas e não ter sido cancelado, como anteviam algumas pessoas das artes e espectáculos.

    A crónica é um texto satírico do ‘nosso’ Brás Cubas, um pseudónimo que bebe da personagem do romance oitocentista do escritor brasileiro Machado de Assis, que incide sobre um programa onde Maria João Avillez entrevista ‘malta com muitos apelidos’ ou que herdou ‘genes conhecidos’.

    Ora, no Facebook, surgiram soldados da tropa dos bons costumes e, de repente, senti que estávamos no Portugal da década de 60.

    Percebi que há quem pense que não podemos escrever sobre Nininho Vaz Maia, mesmo que seja para noticiar que o artista continua popular entre autarcas e é muito requisitado, após a polémica.

    E percebi também que há quem defenda que não podemos fazer humor tendo como alvo ‘famílias de bem’.

    Se escrevermos textos satíricos sobre ‘famílias de bem’, lançam-nos uma fatwa aristocrática, banindo toda a redacção do PÁGINA UM, e descendentes, de poderem integrar confrarias, lojas do avental ou ser sócios do Sporting (valem-nos as cooperativas).

    Pelas notícias sobre a popularidade de Nininho nas autarquias, arriscamos uma valente praga e eterna condenação.

    Caramba! Se quiséssemos fazer fretes, lamber botas ou fazer ‘jornalismo positivo’ para viver confortavelmente com financiamento autárquico ou europeu, então o PÁGINA UM não teria sido criado.

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    Foto: D.R.

    Por outro lado, não existem ‘vacas sagradas’, nem para o jornalismo nem para a sátira. Por muitas fatwas e ofendidos que surjam, isso faz parte da arte do Jornalismo. E da arte do Humor.

    No dia em que nos cancelarmos, como jornalistas ou humoristas, escritores, para acalmar ofendidos, é o dia em que o melhor é arrumar as botas.

    Elisabete Tavares é jornalista

  • O dermatologista ‘ladrão’ e a vaca sagrada SNS

    O dermatologista ‘ladrão’ e a vaca sagrada SNS


    Num país onde o Estado se arvora em zelador da moral, da saúde e da dignidade pública, um médico dermatologista embolsa mais de quatrocentos mil euros em apenas dez sábados, como quem colhe, sem lavrar, os frutos da horta alheia.

    Miguel Alpalhão, médico do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, consagrou-se, não pela excelência da ciência, mas pela astúcia de facturar, em regime de ‘produção adicional’, valores de uma obscenidade que fariam corar qualquer boticário de uma qualquer aldeia remota.

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    Foto: D.R.

    Dizia-se que removia quistos e sinais benignos, mas cobrava como quem executa cirurgias de alta complexidade. Fê-lo sob o manto da legalidade, apadrinhado pelo labirinto regulamentar que permite, em nome do combate às listas de espera, instituir verdadeiros coutos privados dentro do ‘património público’. Não foi um erro. Foi um modelo. Todos sabiam.

    A ministra, com aquele semblante de virtude ultrajada que só a classe política domina, prometeu auditorias, sindicâncias, relatórios. Mas a encenação repete-se. O drama é sempre o mesmo: um escândalo, um discurso, um manto de silêncio. O país volta a dormir. O que ninguém ousa perguntar é o essencial: como é possível que isto não aconteça com regularidade, quando o modelo inteiro é concebido para o abuso?

    Todos os partidos, das franjas da extrema-esquerda ao centro plastificado da direita urbana, passando pela nova direita de timbre autoritário e pela liberalóide ilusão meritocrática, rezam o mesmo credo: o problema é de gestão, não é de modelo. Juram, com fervor quase religioso, que se forem eles a nomear os directores, a escolher os chefes de serviço, a contratar os cozinheiros de hospital, tudo será maravilha, eficiência e ética. Nenhum assume que o planeamento central é, por definição, um convite à corrupção, ao compadrio e ao desperdício.

    A ministra da Saúde, Ana Paula Martins. / Foto: D.R.

    A classe política portuguesa assemelha-se a uma irmandade de prestidigitadores: com um golpe de retórica, fazem desaparecer as causas e projectam as culpas para os rostos mais fáceis. O problema nunca é estrutural, nunca reside no sistema, mas sempre em algum actor que “abusou” ou “exagerou”. Contudo, um sistema concebido para funcionar sem preços, sem propriedade privada, sem responsabilidade directa, não é passível de reforma: é passível de abolição. Os vícios do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não são acidentes. São a expressão natural da sua arquitectura moral e económica.

    O equívoco não é apenas económico: é civilizacional. A Constituição da República Portuguesa, esse alfarrábio de pretensões pias e contradições colossais, mistura direitos negativos com pretensos direitos positivos, confundindo liberdade com benesse, propriedade com concessão, dignidade com dependência.

    Os verdadeiros direitos, os únicos compatíveis com uma ordem justa, são negativos: não ser morto, não ser roubado, não ser preso arbitrariamente. Para esses, não se exige nada a ninguém, apenas que se abstenham da violência. Já os chamados direitos sociais, como a saúde, a educação ou a habitação, exigem espólio, administração, coerção. Alguém tem de pagar, à força se preciso for. É aqui que a liberdade se esvai.

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    Foto: D.R.

    Não há nobreza na espolça fiscal, nem dignidade na dependência estatal. Quando um cidadão é obrigado a entregar parte do fruto do seu labor para sustentar um sistema que não escolheu, não está a contribuir: está a ser saqueado. Quando o serviço oferecido é de baixa qualidade, lento, burocrático e opaco, não está a ser ajudado: está a ser ludibriado. Quando lhe dizem que tudo isto é um direito, não está a ser informado: está a ser enganado.

    O que todos se esquecem de dizer: o cálculo económico é impossível num contexto socialista; ou seja, quando os meios de produção pertencem ao Estado. Sem propriedade privada, não há preços genuínos. Sem preços, não há como saber se um acto de produção é eficaz ou ruinoso. A informação económica é dispersa, contextual, intransmissível centralmente. Nenhum ministério da saúde, por mais computadores que tenha, pode substituir o juízo descentralizado de milhões de indivíduos a tomar decisões diárias no mercado. Não se trata apenas de ineficiência, mas de imoralidade institucionalizada. Um sistema como o SNS é construído sobre roubo, sobre coerção, sobre arrogância tecnocrática. O utente não é cliente. O médico não serve. Obedece. O gestor não inova. Cumpre directivas.

    Querem exemplo mais claro? Imaginem que o Estado decidia assegurar comida gratuita para todos, em nome do ‘direito à alimentação’. Criava uma rede de cantinas públicas, com cozinheiros contratados por concurso, ementas definidas por nutricionistas da DGS, fornecimentos atribuídos a empresas amigas.

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    Foto: D.R.

    À entrada, filas. No prato, arroz sem sal e peixe congelado. Os alimentos frescos sumiam-se nos desvios logísticos. Os directores de cantina enchiam os bolsos com subornos e favores. Os empregados de mesa tinham, obviamente, cartão partidário. Os utentes, esfomeados, procuravam alternativas no mercado negro. O Estado, incapaz de admitir a falência, dizia que faltava “mais investimento”. É exactamente isso que sucede com o SNS.

    Até um mendigo, que vive da caridade e do excesso alheio, consegue comer e vestir-se numa sociedade capitalista. Porque o mercado, quando livre, produz abundância tal que o excedente serve até os que não produzem. Um par de calças, uma refeição quente, um cobertor – tudo isto se consegue pela livre acção humana, sem coerção, sem regulamento. Mas o mesmo Estado que diz querer ‘garantir’ direitos é o primeiro a impor barreiras, a destruir incentivos, a punir a excelência. Na saúde, como na comida, como na educação, o planeamento central gera escassez, degradação, corrupção.

    É tempo de dizê-lo sem meias palavras: a saúde não é um direito, é um bem económico. Não é moral que um cidadão seja coagido a pagar pelos serviços de outro, sob pretexto da solidariedade. Não é justo que sejamos espoliados para sustentar um sistema que nos trata como utentes, não como senhores da nossa vontade. É justo, sim, que cada um possa escolher o seu médico, o seu hospital, o seu seguro. Que possa contratar, pagar, reclamar. Que possa, em liberdade, decidir como cuidar da sua própria saúde.

    doctor holding red stethoscope
    Foto: D.R.

    Mas para isso, é preciso coragem. Coragem para dizer que o rei vai nu. Coragem para enfrentar a turba que venera o SNS como se fosse um altar. Coragem para admitir que somos enganados há décadas. E, sobretudo, coragem para mudar. Até quando iremos insistir nesta fraude?

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dinheiro, morte e silêncio: como a Saúde Pública se tornou um mero negócio de interesses

    Dinheiro, morte e silêncio: como a Saúde Pública se tornou um mero negócio de interesses


    Vem nos manuais, como ensinamento quase sagrado: a agenda setting — esse processo pelo qual determinados temas ganham centralidade no debate público — não é neutra. Depende, antes de mais, de quem fala, de como fala, e sobretudo de quem tem acesso privilegiado aos meios de comunicação.

    Num cenário ideal, a imprensa funciona como guardiã da relevância: um watchdog vigilante que impede que o ruído da propaganda se sobreponha às necessidades reais dos cidadãos. A imprensa, nesse modelo, não apenas filtra os temas da agenda política, mas molda-os segundo critérios de interesse público — e não segundo interesses comerciais ou corporativos.

    a stethoscope on top of a pile of money

    Hoje o ‘cão de guarda’ dorme ao colo de quem deveria vigiar, ronrona quando lhe estendem uma ração publicitária e ladra apenas quando a farmacêutica estala os dedos. E sobretudo no sector da Saúde, onde as emoções são tão inflamáveis quanto os milhões em jogo. Nos últimos anos — e muito em especial durante a pandemia da covid-19 — assistimos a uma inversão perversa do papel da comunicação social. Longe de agir como mediadora independente, a imprensa tornou-se co-agente de um conluio entre interesses privados (sobretudo da indústria farmacêutica), entidades reguladoras capturadas e ministérios complacentes. Ao invés de fiscalizar, participou. Ao invés de questionar, amplificou. Ao invés de desconfiar, vendeu.

    Os media têm vindo a abdicar, cada vez mais, do seu papel fiscalizador para assumirem o de arautos e correias de transmissão de campanhas comerciais. Durante a pandemia, esse fenómeno atingiu o paroxismo: testes vendidos como salvação, vacinas endeusadas como tótem da civilização, fármacos experimentais glorificados antes mesmo de qualquer avaliação crítica.

    O Ministério da Saúde, os reguladores e uma parte significativa da comunidade médica — transformada em figurino de publicidade institucional — pactuaram, em aliança obscena, com este novo regime sanitário-mediático. Aquilo que se seguiu foi previsível: venderam-se vacinas e testes como quem vende electrodomésticos num canal de telecompra, com médicos mercenários a apresentarem o produto e jornalistas a assegurarem que não haveria espaço para dúvidas nem para alternativas.

    Alternativas essas que, ironicamente, foram diabolizadas não por falta de provas científicas, mas por excesso de interesses. Veja-se a ivermectina, cujo debate foi abafado com histeria moralista, enquanto se publicavam estudos que, mesmo sem conclusões definitivas, mereciam consideração científica, como se pode observar nesta meta-análise publicada já este ano no Annals of Medicine and Surgery.

    Em 2020, a jornalista Filipa Traqueia, actualmente no jornal Expresso, achou por bem dissertar no Polígrafo sobre a (in)utilidade da vitamina D, usando como fonte de informação o pneumologista Filipe Froes, um dos médicos com maiores ligações mercantilistas à indústria farmacêutica, conselheiro da DGS e da Ordem dos Médicos e ‘guru’ para a comunicação social durante a pandemia.

    E sobretudo veja-se o caso da vitamina D, com provas acumuladas sobre o seu papel imunológico, transformada em suplemento menor por não trazer dividendos a multinacionais. Afinal, há mais lucro em administrar fármacos novos a milhões do que em distribuir sol e bom senso. Logo no início da pandemia, esse arauto do Jornalismo e da Ciência — estou a ironizar — chamado Polígrafo (e seguido por outros) tratou logo de menorizar a utilidade da vitamina D na prevenção e tratamento da covid-19. Isto, claro, com a imprescindível ajuda de um dos maiores mercenários da indústria farmacêutica, Filipe Froes.

    Hoje, sobre a covid-19, sabe-se que “níveis baixos de vitamina D aumentaram o risco de infecção entre 1,26 e 2,18 vezes, o risco de doença grave entre 1,50 e 5,57 vezes, o risco de admissão em unidades de cuidados intensivos (UCI) em mais do dobro, e o risco de morte entre 1,22 e 4,15 vezes”, citando ipsis verbis as conclusões de uma meta-análise publicada este ano na Nutrition Reviews, da prestigiada Oxford Academic.

    Mas se a pandemia foi um campo fértil para este jornalismo de parceria — entre aspas e sem ironia possível —, os anos que se seguiram não mostraram arrependimento. Pelo contrário, refinaram-se os métodos, disfarçaram-se melhor os conluios, construíram-se narrativas com roupagens de ciência e compaixão.

    A nova fronteira de conquista são as doenças raras, sobretudo em idade pediátrica: um terreno fértil para comover corações, amolecer decisões orçamentais e justificar tratamentos a preços pornográficos. O objectivo é simples: quanto mais rara for a doença e mais jovem o doente, mais fácil será colocar o fármaco na agenda pública. Basta um caso mediático, uma associação de pais com boas relações, uma imprensa dócil e, claro, um ex-director de farmacêutica agora estrategicamente colocado numa comissão do Infarmed ou em cargo político com acesso ao Orçamento.

    O caso ontem revelado pelo PÁGINA UM, sobre a entrada na Secretaria de Estado da Gestão da Saúde de um quadro da farmacêutica Sanofi, que negociou a compra de anticorpos monoclonais contra o Vírus Sincicial Respiratório (VSR), é paradigmático. A doença, cuja mortalidade é inexistente em Portugal, foi promovida à categoria de emergência sanitária. Resultado? Vinte milhões de euros em compras públicas para imunizar todos os recém-nascidos, incluindo os que nunca estariam em risco. O produto é caro, a doença tornou-se mediaticamente “fofa” — por força das conferências e notícias sobre o tema, mercadejadas pela imprensa — e o argumento parece inatacável: salvar alguns bebés do sofrimento e trauma de um eventual internamento. O agenda setting resulta nisto.

    Quem ousará pôr travão, redefinindo prioridades? A imprensa — cúmplice, dependente e indiferente — não. As sociedades médicas, muitas delas sustentadas por apoios da indústria, também não. E os decisores políticos, alimentados pelo vaivém das portas giratórias entre Estado e farmacêuticas, muito menos.

    Francisco Gonçalves, ex-Sanofi, e Ana Paula Martins, ex-Gilead: as ‘portas giratórias’ entre as farmacêuticas e o Ministério da Saúde.

    Enquanto isso, o que sobra da saúde pública degrada-se em silêncio. Urgências encerradas. Hospitais saturados e mal equipados. Jovens médicos desmotivados e explorados, ao passo que as elites clínicas fazem fortuna acumulando salários públicos e avenças privadas. Listas de espera que se arrastam até ao absurdo. E, cereja pútrida no cimo do bolo, até mesmo doenças associadas à água potável e ao saneamento — ou à falta deles — a matarem 525 pessoas no ano de 2023 em Portugal.

    Este número degradante foi publicado ontem discretamente pelo INE, sob a forma de “taxa de mortalidade devida a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes por 100.000 habitantes” (vd.aqui). Destas 525 mortes em 2023, três terão sido crianças com menos de 5 anos — portanto, mais do que mata o VSR. Em 2010, estes problemas sanitários tinham sido a causa de 116 óbitos, nenhum dos quais de crianças. Ninguém, na imprensa mainstream, que tem dezenas e dezenas de jornalistas, pegou no assunto. Tal como ninguém fez eco da notícia do PÁGINA UM em Setembro do ano passado onde já se revelava essa vergonhosa tendência de crescimento.

    Sobre isto não há reportagens de abertura de telejornal? Onde está a indignação? Onde estão os editoriais de fundo?

    Evolução da mortalidade por grupos etários entre 2010 e 2023 para doenças associadas a fontes de água insalubre ou a condições de saneamento e higiene deficientes ou inexistentes. Fonte: INE. Cálculos: PÁGINA UM com base na taxa de mortalidade e estimativas anuais da população por grupos etários.

    Não estão. Porque essas mortes, por insalubridade e desleixo, não geram publicidade, nem contratos de venda de fármacos, nem parcerias. São mortes pobres de interesse, sujas de realidade. E dessas, a Senhora Ministra da Saúde, ex-Gilead, e o Senhor Secretário de Estado da Gestão da Saúde, ex-Sanofi, não estão para aí virados, porque a imprensa também não os faz virar para aí. Aquilo que interessa mesmo é vender fármacos, porque basta um contrato, enviar um camião com os medicamentos salvíficos (ou não tanto) e fazer a transferência bancária com o dinheiro dos contribuintes para os cofres dos accionistas das farmacêuticas.

    Sem os chatos dos jornalistas watchdogs, agora amestrados em petdogs, o mundo tornou-se distópico: sobrevivemos sem noção de que a Saúde Pública serve quase só para, com contínuos negócios, alimentar uma contínua dependência dos fármacos do sector farmacêutico, que nos salvarão sempre, excepto prova em contrário, que nunca se procurará.