Luís Montenegro continua a esforçar-se, com notável insistência, por alimentar os piores tiques do trumpismo — mas sem o folclore nem o carisma. A cada nova revelação de dúvidas sobre questões essenciais das suas finanças e das finanças do PSD, atira-se à imprensa como quem cospe no espelho, acusando jornalistas de espalharem falsidades e exigindo-lhes “rigor”, ao mesmo tempo que tropeça em contradições e se esquece de que a verdade factual é sempre a primeira vítima da arrogância política. E usa a própria imprensa para lançar essas acusações — que as divulga, caindo no engodo.
Desde que o caso Spinumviva — nome digno de um thriller político, mas enraizado nas práticas rotineiras do compadrio à portuguesa — fez cair o Governo, e Montenegro (e o PSD) se manteve disponível para ir novamente a eleições, torna-se evidente o que está em causa: deslegitimar a crítica e normalizar a impunidade.
Quando Montenegro acusa jornais como o Expresso e o Correio da Manhã de difundirem “manipulações” e “mentiras”, não está apenas a defender-se. Está a lançar as bases para um novo modelo de governação em Portugal: aquele em que um governante se transformará em vítima perpétua, em mártir da verdade, em paladino de uma integridade assente na ocultação de relações, interesses e amizades bem posicionadas. Montenegro não é ingénuo — pelo contrário, é hábil. E aquilo que se tem visto nesta campanha é a preparação subtil de um escudo contra o escrutínio, onde qualquer denúncia de favorecimento, qualquer ligação embaraçosa, qualquer conta bancária mal esclarecida será imediatamente rotulada de “fake news”, ao estilo de Donald Trump, mas com sotaque de Vila Real e residência em Espinho.
Estes episódios não podem ser vistos como um fait-divers de campanha. É um aviso, e dos fortes. Se Montenegro conseguir transformar a sua condição de suspeito recorrente em trunfo eleitoral, se for recompensado nas urnas não apesar das suspeitas, mas precisamente por se apresentar como o homem que enfrenta “a comunicação social”, então teremos dado um passo decisivo na erosão do jornalismo como instância de vigilância do poder. O primeiro-ministro que se queixa de perseguição não é novo, mas aquilo que é novo — e inquietante — é o grau de naturalidade com que o faz, ao mesmo tempo que se mostra incapaz de responder objectivamente às questões que lhe são colocadas.
Na democracia, o escrutínio não é perseguição. A imprensa livre não é inimiga do povo. E uma democracia adulta não aceita que o chefe do Governo insinue que só ele é alvo, que só ele é injustiçado, que tudo à sua volta é “simplesmente falso”. Essa pose de santidade laica é, na verdade, a máscara da opacidade.
É também revelador — e grave — que Montenegro tenha desvalorizado o pedido de esclarecimentos sobre as suas contas bancárias, afirmando tratar-se de “uma prestação de esclarecimentos banal”. Banal? Quando um candidato a primeiro-ministro é instado a explicar-se sobre movimentos bancários e possíveis conflitos de interesse, isso nunca pode ser banal. Só num país habituado à opacidade, onde os favores e as avenças se confundem com “relações familiares”, é que um político pode declarar, com impunidade, que essas ligações nada têm que ver consigo. E ainda ter a audácia de inverter os papéis: transformar-se de arguido mediático em acusador dos media.
O padrão é claro: descredibilizar o mensageiro para desviar do conteúdo. A fórmula resulta — e Montenegro sabe-o. É por isso que insiste em falar de uma “pressão especial” sobre si. Ora, essa pressão não é mais do que o funcionamento normal de uma imprensa que ainda não perdeu por completo a vergonha.
Mas, se Montenegro conseguir traduzir o seu vitimismo em votos, se vier a chefiar um novo Governo, então essa “pressão” passará a ser um incómodo a eliminar. E não tenhamos ilusões: será com uma sucessão de pequenas mudanças, com nomeações cirúrgicas, orçamentos cortados, pressões discretas sobre directores de redacção e legislação com nomes pomposos como “transparência da informação” que a liberdade de imprensa será laminada.
Estamos perante uma verdadeira ameaça: não será a gritaria pontual contra um jornalista ou uma reportagem, mas a construção de um ecossistema de governação onde só há uma verdade — a do primeiro-ministro — e tudo o resto é ruído. O caso Spinumviva foi o primeiro sinal. O ataque aos jornais foi o segundo. O terceiro será o silêncio, se os eleitores não perceberem o que está em causa.
Neste Portugal cada vez mais habituado à amnésia e ao medo de desagradar, Montenegro, o ainda primeiro-ministro português, aparece como o rosto sereno de um futuro inquietante. O seu sorriso é educado, o seu tom é moderado, mas o seu projecto é claro: fazer da impunidade um direito adquirido pelo voto. E isso, se acontecer, será a maior derrota da democracia portuguesa desde que temos memória.
Em todos os tempos e impérios, o Estado teve uma capacidade extraordinária de inventar inimigos que, por singular coincidência, não se podiam identificar, localizar ou sequer apalpar. Inimigos invisíveis, convenientes, versáteis. Os judeus, os ciganos, os especuladores, os estrangeiros — a galeria é vasta, rica e colorida.
Quando a turba se cansava do colectivo, punha-se a cabeça a prémio de um só: um Hitler, um Estaline, um Lenine — curiosamente, nunca um Churchill, esse santo padroeiro dos bombardeamentos humanitários e das colónias civilizadoras. A história, como se sabe, é escrita pelos vencedores — e muitas vezes pela impressora do Banco Central.
Convém recordar que a aliança entre banqueiros e o Estado não é um namoro recente. É um matrimónio antigo, consumado sob os auspícios daquilo que se convencionou chamar “reserva fraccionada”, essa mágica técnica de multiplicar dinheiro como Jesus multiplicava os pães — só que sem qualquer milagre, apenas fraude legalizada.
O banco recebe 100, empresta 900, e quando alguém estranha a matemática, eis que surge o seu Deus protector: o Banco Central, criatura de aparência austera, mas de hábitos perdulários. Sem ele, os bancos comerciais cairiam como dominós mal empilhados, vítimas da sua própria insensatez. Mas com ele, tornam-se deuses do Olimpo monetário, infalíveis e eternos.
Desde finais do século XIX que o Banco Central passou de ajudante de cozinha a chefe de Estado. Os governos obedecem-lhe, os parlamentos dobram-se diante dele e os eleitores…bem, esses já há muito deixaram de importar, excepto enquanto números em sondagens ou estatísticas de desemprego. Este monstro criado pelos bancos, este Frankenstein monetário, terá, como na obra de Mary Shelley, de matar os seus criadores — mas só depois de muita devastação, claro. Há que cumprir o ritual.
É também este mesmo Banco Central que aparece, com ares de cavaleiro branco, cada vez que o mercado — essa criatura malvada e cruel — tenta corrigir os desmandos da orgia de crédito. As taxas de juro foram manipuladas até ao absurdo e, quando os maus investimentos se acumulam como lixo nas traseiras da civilização, vem resgatar os amigos banqueiros com o dinheiro de ninguém: do nada, ex nihilo, como um demiurgo sem rosto. Por isso se lhe chama “emprestador de último recurso”, embora o nome mais correcto fosse “emprestador de dinheiro que ninguém poupou para sustentar quem não sabe gerir”.
Recordemos o ano de 2019. Em Setembro, o mercado Repo norte-americano entrou em convulsão. Uma crise silenciosa, ignorada pelos jornais, como convém. Só faltava uma desculpa para accionar a gráfica sagrada. Em Março de 2020, a Providência — sempre ela — enviou um vírus. Invisível, claro está. Não fosse o caso de alguém querer medir a veracidade do desastre.
Assim, os Bancos Centrais mundiais, liderados pelo Banco Central norte-americano, a Reserva Federal, e pelo seu aprendiz europeu, o BCE, dedicaram-se cada um a imprimir mais de 4 biliões (12 zeros!) de dólares e euros. A moral? Se não consegues resolver o problema, deita-lhe dinheiro. De preferência, muito. De preferência, inventado.
Neste milagre moderno, o pequeno comércio morreu à míngua — as padarias, as mercearias, os cafés de bairro. Em compensação, floresceram empresas que entregavam comida ao domicílio por escravos importados do terceiro mundo ou séries sobre “pandemias”. E não esqueçamos as novas indústrias estatais: produção de fraldas faciais, inoculações experimentais e testes que testavam tudo, excepto a suposta doença. A recessão foi decretada, não pelo mercado, mas pelo decreto. E o povo, obediente como sempre, aplaudiu a catástrofe higienizada com álcool-gel.
Mas o espectáculo não termina aqui. Agora, temos um novo vilão — ou, melhor dizendo, um substituto de Hitler. A personagem? Um senhor de tez laranja, dono de um cabelo indecifrável e de uma retórica que provoca urticária nos salões de Bruxelas.
Donald Trump tornou-se o novo símbolo do Mal Absoluto. Porque ousou — vejam só a audácia! — Impor tarifas a países que o fazem há décadas. Porque falou em recuperar a indústria nacional. Porque tentou, com o seu estilo de elefante em loja de porcelana, questionar os dogmas do comércio global que serve, exclusivamente, às multinacionais, aos bancos e aos estados.
Claro está, o objectivo não é devolver empregos à classe operária norte-americana, nem reduzir défices. Isso seria ingenuidade. O plano — maquiavélico e genial — será provocar mais uma crise artificial. Uma desculpa nova, moderna, vibrante. Desta vez, não será um vírus invisível.
Será o o proteccionismo, o nacionalismo económico, ou qualquer outra heresia do século XXI. Assim, quando as empresas norte-americanas, dependentes de componentes chineses e tailandeses, forem esmagadas pela engrenagem fiscal e tarifária, então voltaremos à estaca zero. Aí, o Banco Central norte-americano, mais uma vez, imprimirá, e muito! Desta forma, salvará, como sempre, os seus criadores.
E os idiotas úteis — os eternos manifestantes bem-intencionados, os jornalistas indignados, os “liberais de pacotilha”, os peritos em mercados financeiros e os académicos do regime — gritarão: “Trump é o novo Hitler!”
Afinal, sempre se pode contar com os velhos truques: um inimigo invisível, um bode expiatório humano e uma impressora sem limites. O ciclo repete-se. A peça é a mesma, apenas se troca o figurino e o vilão.
Mas, caro leitor, console-se. Quando tudo desabar e a moeda for mais fina que o papel em que está impressa, haverá sempre um banqueiro sorridente, um político paternalista e um jornalista de confiança a garantir-lhe que a culpa foi do outro. De um vírus. De um laranja. De um qualquer que não seja o sistema.
E o povo? Ah, o povo…continuará feliz, a aplaudir e a “pagar” IRS!
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Sou benfiquista, como se sabe — e no momento, no calor do momento, posso até ficar satisfeito com um erro de arbitragem que benefica o meu clube, mas a sensação de injustiça não me agrada depois da espuma dos dias.
Porém, já me irrita deveras, e logo no momento, que, para se eliminar ou reduzir os erros dos árbitros de futebol. se tenha introduzido o VAR [Video Assistant Referee] para decidir foras-de-jogos de poucos centímetros.
Pela segunda vez em poucos meses, o Sporting esteve envolvido em dois foras-dejogo por três centímetros, detectado com o rigor de um cirurgião oftalmologista a operar num sismo. Primeiro, em finais de Fevereiro, saiu beneficiado por um golo invalidado ao Gil Vicente ao minuto 88, que daria o empate numa elimimnatória da Taça de Portugal. Na passada segunda feira, saiu-lhe a fava contra o Braga, com um golo invalidado ao avançado Gyokeres por um milímetro fora de-jogo de três centímetros.
Aquilo que um incrédulo como eu pensa, sem pestanejar — e, já agora, informa-se que o acto de pestanejar dura 100 a 400 milissegundos, ou seja, 0,1 a 0,4 segundos —, é que o universo VAR rege-se por uma física muito própria, onde a justiça se mede à régua de costureira e a verdade desportiva é desenhada a lápis óptico.
Não sendo a arbitragem de futebol o meu forte — fui um sofrível árbitro de basquetebol algures nos finais dos anos 80 e princípios de 90, não passando da terceira divisão —, uma pergunta física se impõe: com os meios actuais, pode o VAR detectar um fora-de-jogo real de três centímetros? A resposta, para desgosto dos crentes na santidade da tecnologia, é não — a menos que se confunda precisão com ilusão. E é aqui que a ironia entra em campo.
O sistema VAR trabalha com imagens captadas a 50 ou 60 fotogramas por segundo — o que significa que a cada 16 a 20 milissegundos temos uma nova imagem. Agora façamos um pequeno exercício de física primária (sim, aquela que não cabe na ficha técnica da Liga): um jogador a correr a 30 km/h percorre cerca de 17 centímetros entre dois frames. O Cristiano Ronaldo, no seu auge, sprintava a 34 lm/h. Ou seja, a incerteza temporal, só por si, pode ser bem superior a 15 cm. Mas eis que o VAR — como se fosse um oráculo digital com vista de falcão e paciência de relojoeiro — afirma com convicção que o jogador estava três centímetros adiantado. Exactamente três. Não dois, nem quatro. Três. Uma precisão que faz corar os fabricantes de microscópios.
Mas o problema não é só o tempo. É também o espaço. Para desenhar a linha de fora-de-jogo, é preciso saber exactamente em que milésimo de segundo a bola foi tocada (com um frame que pode ter variância de 20 ms), identificar a parte mais avançada do corpo do jogador atacante que pode legalmente jogar a bola (ombro? joelho? cotovelo com intenção?) e alinhar isso com o penúltimo defensor, que por acaso também está a correr, a saltar, ou a escorregar. É uma coreografia de erros sistemáticos mascarada de infalibilidade digital.
No fundo, o VAR tornou-se uma espécie de engenheiro cartógrafo em cima de um touro mecânico. Traça linhas rectas sobre jogadores curvos, determina momentos exactos em acções fluidas, e depois oferece-nos o resultado como se fosse uma epifania científica. O futebol, esse, vai aceitando. Com fé. Porque, como se sabe, três centímetros é um escândalo quando se trata de um dedo do Goykeres, mas uma irrelevância estatística quando se trata do orçamento do Benfica.
Ironia das ironias: se a Liga (e os senhores da FIFA e UEFA) tivesse vergonha, já teria assumido que um fora-de-jogo inferior a 10 ou 15 centímetros é, na prática, uma ficção óptica com pretensões de exactidão matemática. E introduzia uma margem de erro, validando as jogadas em que essa distância (10 a 15 centímetros) se aplicasse. Mas não. Prefere-se manter o teatro da infalibilidade, como se o VAR fosse um algoritmo sacrossanto e não um operário de consola a clicar num ombro mal ampliado.
No fim, sobra uma certeza: o VAR está para o futebol como a fita métrica está para a poesia. Não resolve, não encanta, e raramente acerta no espírito do jogo. Mas continua lá, à espera de outro golo de três centímetros para anular — e outro clube para “prejudicar” hoje e “beneficiar” amanhã. Com milimétrica imparcialidade. E eu só queria ver o Benfica campeão sem ser por causa do VAR… ou à custa de empurrar dívida, que um dia pode estoirar, com a barriga, através de sucessivas emissões de obrigações de milhões e milhões.
O colapso das Bolsas mundiais nos últimos dias ficará na História, junto a outros como o da crise financeira de 2008 e o pânico causado pelas medidas da pandemia de covid-19. Começou no dia 2 de Abril, com a imposição de novas tarifas aduaneiras pelos Estados Unidos, o receio de uma guerra comercial e de uma recessão económica.
Os jornais e TVs dedicam espaço e tempo a este tema com a fome de um tubarão que sente o ‘cheiro’ o sangue a pairar na água. Nas redes sociais somam-se os gráficos e publicações que tentam adivinhar o que vem a seguir, conquistando ‘likes‘ e partilhas.
Afinal, é uma hecatombe digna de ter o seu próprio nome: ‘crise das tarifas’ ou ‘Trump crash‘, talvez. É só observar os gráficos (disponíveis no final deste texto) e percebe-se que a onda de vendas que atinge sobretudo activos de alto risco, como as acções, é forte e muito real. Isto apesar de, no médio e longo prazo, os principais índices bolsistas acumularem ganhos gigantescos.
Os ‘pobres’ dos grandes fundos e bancos de investimento vendem activos de maior risco, desfazem posições e, ‘coitados’, somam mais-valias chorudas. Os que vivem da aposta na queda de títulos, enriquecem e celebram com os lucros obscenos. Os ‘desgraçados’ detentores de Bitcoin choram o tombo da rainha das criptomoedas, que ‘apenas’ valorizou 1000% nos últimos cinco anos.
Começa a falar-se na eventual descida de taxas de juro pela Reserva Federal nos Estados Unidos e põe-se alguma água na fervura. A ver se o ‘sell-off‘ acalma. É provável que surjam acordos nas tarifas, incluindo com a União Europeia. E que se evite a guerra comercial.
Olho com pasmo para as notícias e análises sobre este ‘crash‘. Olho com o mesmo pasmo para o ‘choque’ que muitos dizem ter sentido após assistirem a uma série televisiva que está na moda, sobre um adolescente assassino.
Vivemos na era em que partes do nosso mundo se tornaram num grande jogo desumanizado. A vida de muitos adolescentes e jovens apenas espelha esse fenómeno. (Veja-se o caso da violação de uma menor em Loures, por três jovens ‘influencers’ que publicaram vídeos do crime na Internet e ninguém os denunciou, apesar de terem milhares de visualizações).
Afinal, vivemos num mundo em que a pornografia está disseminada e é aceite como normal, mesmo a que brutaliza e subjuga, reforçando o conceito da mulher-objecto. Vivemos num mundo em que o jogo online é publicitado em larga escala, viciando milhões. O lucro vale tudo.
O que isto tem a ver com o actual ‘crash‘ dos mercados?
Quer se queira quer não, este colapso é uma profunda correcção num sistema inflaccionado artificialmente e depois de anos de máximos históricos em grandes índices bolsistas. Máximos alcançados graças a políticas que criaram uma economia artificial e sem substância, assente em dinheiro impresso por bancos centrais. E assente num mundo de zeros e uns. Em que os bens alimentares e a dívida de países inteiros são meros ‘activos’ num jogo a ser jogado por grandes ‘players‘ (e, cada vez mais, por máquinas, computadores, em busca de lucro).
Vivemos num mundo em que é aceite que homens e mulheres, adultos, que grandes grupos e fundos financeiros apostem e lucrem com a queda de activos, incluindo acções de empresas em bolsa. Vivemos num mundo em que é considerado normal haver nos mercados de capitais produtos derivados, derivados de derivados. Tudo autorizado e regulado por governos, supervisores e reguladores.
Vivemos num mundo em que a habitação é sobretudo um ‘activo’ para trazer lucro a carteiras de grandes fundos de investimento. Vivemos num mundo em que governos, incluindo em Portugal, criaram políticas que transformam casas onde deviam viver famílias em objectos valiosos a ser jogados em ‘jogos de imobiliário’. Tudo legal.
Vivemos num mundo em que se normalizou a ideia de que tudo isto é normal. Que é legal. E pelo meio criam-se ‘selos’ como o de ‘sustentável’ e ‘ético’ que são publicitados no LinkedIn e usados pelos fundos e bancos para vender produtos de investimento a aforradores e especuladores.
A economia e os mercados de capitais formam hoje uma tapeçaria que inclui reguladores e governos, que legalizam as práticas e impõem esta forma de vida obscena e desumana. E inclui investidores que se prestam a trocar a alma por dinheiro, mesmo sem saberem em que estão a colocar as suas poupanças.
Onde colocamos o nosso dinheiro, a nossa atenção, o nosso amor, diz muito de cada um de nós e dos nossos valores e prioridades.
Dir-me-ão que esta é uma visão puritana e utópica do mundo, da Economia e das finanças. Mas que sentido faz um mundo, em que a Economia e as finanças são desumanas e cujo principal objectivo é o lucro puro, a ganância? Um mundo em que a notícia é o ‘crash‘ após anos de recordes e lucros sucessivos e não a ausência de políticas para regrar o que já não serve a Humanidade.
O que é, para mim, mais curioso, por estes dias de ‘crash‘ das Bolsas, é ver liberais, libertários, pessoas de esquerda e de direita, todos muito irritados com as quedas nos mercados. Uns porque aproveitam para partilhar o ódio por Trump e outros porque perdem dinheiro, incluindo nas criptomoedas (perdem, se venderem; até venderem não perdem nem ganham nada, na realidade).
Por estes dias, penso no empresário que decidiu, um dia, há muito tempo, abrir o capital da sua empresa a investidores porque precisava de capital para investir. Penso nesses investidores que decidiram tornar-se accionistas de uma empresa a passar a ser um bocadinho donos de um negócio que poderia criar mais postos de trabalho e trazer sustento às famílias dos trabalhadores.
E compreendo porque empresários retiraram as suas empresas de Bolsa.
As notícias hoje serão sobre o colapso dos mercados nos últimos dias. E sobre a culpa de Trump e das tarifas que impõe a importações, à sua política proteccionista. Os posts nas redes sociais serão sobre o ódio a Trump e a culpa de Trump.
Não haverá notícias sobre a ganância. Nem sobre como os índices bolsistas conseguiram chegar aos níveis a que estão. Nem como pouco de humano já têm muitas das práticas financeiras e de investimento consideradas legais em muitos países ocidentais.
Não haverá nas notícias nada sobre como vivemos na era dos vampiros modernos. Vivem e prosperam, não na sombra, mas debaixo das luzes da ribalta, respaldados por leis, governantes e reguladores que um dia trabalharão nos seus bancos e holdings como ‘chairman‘ ou apenas como ‘consultores’.
De crise financeira, em crise financeira. De ‘crash‘ em ‘crash‘. De série em série na Netflix. Assim a Humanidade vai caminhando. Com os pés a pisar o tapete manchado de fome e do sangue das vítimas da desumanização do Mundo, de guerras e da pobreza.
As tarifas de Trump, este ‘crash‘ bolsista, são apenas os sintomas da doença que atinge o mundo. E a cura todos sabemos qual é. E está em cada um de nós, que também somos consumidores, investidores, eleitores, pais.
Pode começar por se perceber que este ‘crash‘ não foi o primeiro e não será o último. E que as notícias do dia, fugazes, que cobrem os assuntos pela rama, pelo seu mediatismo, escondem a origem do mal. Dos males do mundo. E enquanto se fingir que não se vê a crescente desumanização do mundo — seja nos mercados, nas finanças, na Economia, na política que persegue o migrante, na indústria da pornografia, no vício do jogo — a cura não chegará.
Porque não vivemos num mundo virtual. Nem somos feitos de bits e bytes e pixels. De zeros e uns. Não somos um número. Um código de barras. Um avatar. As empresas também não. Nem as casas onde moram pessoas. Por muito que se normalize isso, há um mundo real onde vivemos e existimos.
Que este mundo seja dominado por agentes e políticas assentes na ganância, no lucro, na vaidade e no sofrimento de muitos é algo que não podemos continuar a permitir. Que os preços dos alimentos e das casas seja influenciado por especuladores, é algo que não podemos permitir. Porque pode ter-se normalizado isso. Mas não é normal. É desumano. E inaceitável.
Elisabete Tavares é jornalista
Gráficos com a evolução dos principais índices bolsistas norte-americanos, europeu e português:
Nos últimos cinco dias, o Dow Jones, o Nasdaq 100 e o europeu Stoxx 600 desceram mais de 10% e o português PSI-20 recuou quase 10%. Apesar do actual colapso, os principais índices bolsistas acumulam fortes ganhos no médio e no longo prazo. / Fonte: Google/Morningstar
Gráfico com a cotação do ouro (em libras/onça):
Fonte: Gold.co.uk
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
As revistas científicas têm tido um enorme impacto positivo no desenvolvimento da Ciência, mas, de certa forma, estão agora a dificultar, em vez de melhorar, o discurso científico aberto. Depois de analisar a História e os problemas actuais das revistas, propõe-se um novo modelo de publicação académica. Este modelo abraça o acesso livre e a revisão rigorosa pelos pares, recompensa os revisores pelo seu importante trabalho com honorários e reconhecimento público e permite que os cientistas publiquem a sua investigação de forma atempada e eficiente, sem desperdiçar o valioso tempo e recursos dos cientistas.
O Nascimento das Revistas Científicas
A imprensa revolucionou a comunicação científica no século XVI. Após alguns anos de reflexão e ponderação, ou talvez uma década ou duas, os cientistas publicaram um livro com os seus novos pensamentos, ideias e descobertas. Assim, surgiram os clássicos que lançaram as bases da Ciência moderna, como De Nova Stella de Tycho Brahe (1573),[1] Astronomia Nova de Johannes Kepler (1609),[2] Discours de la Méthode de René Decartes (1637),[3] Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica de Isaac Newton (1686)[4] e Systema Naturæ de Carl Linnaeus (1735).[5] Para uma comunicação mais rápida, os cientistas recorriam a cartas escritas à mão entre si.
Até publicarem um livro, o que exigia um esforço e recursos consideráveis, os cientistas só podiam comunicar com alguns amigos e colegas próximos. Isso não era eficiente. Foi assim que surgiu o jornal científico, uma invenção com profundo impacto no desenvolvimento da Ciência. O primeiro, Journal des Sҫavans (Jornal dos Eruditos), apareceu em França em 1665. Uma década mais tarde, este jornal publicou o cálculo da velocidade da luz efectuado por Ole Rømer.[6] A coisa mais rápida da natureza foi comunicada a uma velocidade anteriormente indisponível para os cientistas.
Ao longo das centenas de anos seguintes, as revistas científicas tornaram-se cada vez mais importantes, ultrapassando os livros como principal meio de comunicação científica. À medida que os cientistas se especializavam, o mesmo acontecia com as revistas, com periódicos temáticos como Medical Essays and Observations (1733), Chemisches Journal (1778), Annalen der Physik (1799) e Public Health Reports (1878). As revistas impressas eram enviadas para cientistas e bibliotecas universitárias de todo o mundo e foi criada uma verdadeira comunidade científica internacional. Sem as revistas, a Ciência não se teria desenvolvido como se desenvolveu, e os primeiros editores e impressores de revistas são heróis desconhecidos do progresso científico.
Editoras Comerciais
Em meados do século XX, a edição académica sofreu uma viragem para pior. Começando com Robert Maxwell e a sua Pergamon Press, os editores comerciais compreenderam que a situação de monopólio na publicação científica podia ser muito lucrativa. Quando um artigo só é publicado numa revista, as grandes bibliotecas universitárias têm de assinar essa revista, por mais cara que seja, para garantir que os seus cientistas possam aceder a toda a literatura científica. Como Stephen Buranyi afirmou eloquentemente, “os bibliotecários estavam presos a uma série de milhares de pequenos monopólios (…) e tinham de os comprar a todos ao preço que os editores quisessem”.[7] Enquanto a maioria das revistas da sociedade tinha preços razoáveis, os editores comerciais tinham uma bonança. Um inquérito de 1992 sobre revistas na área da estatística mostrou que a maioria das revistas da sociedade cobrava às bibliotecas menos de 2 dólares por artigo de investigação científica, enquanto a revista comercial mais cara cobrava 44 dólares por artigo.[8] Na altura, isto era mais do que o preço médio de um livro académico por um único artigo de revista.
Desde então, a situação tem-se agravado cada vez mais. Sendo simultaneamente produtoras e consumidoras de artigos científicos, as universidades pagam uma enorme quantia de dinheiro por revistas que contêm artigos escritos e revistos por pares pelos seus próprios cientistas, que fornecem gratuitamente às revistas. Como resultado, as editoras de revistas científicas têm margens de lucro enormes, que chegam a quase 40%.[9][10] Não é por acaso que George Monbiot chamou às editoras académicas “os capitalistas mais implacáveis do mundo ocidental”, que “fazem o Walmart parecer uma loja de esquina e Rupert Murdoch um socialista”.[11]
Revistas Online e o Acesso Aberto
A revolução seguinte na publicação académica começou em 1990, com a publicação da primeira revista exclusivamente online, Postmodern Culture. Com a Internet, deixou de haver necessidade de imprimir e distribuir cópias em papel.
Um desenvolvimento muito positivo desta situação é o número crescente de revistas de acesso livre que qualquer pessoa pode ler gratuitamente, incluindo o público que paga a maior parte da investigação médica através dos seus impostos. Através de revistas de acesso livre e de serviços de arquivo académicos, como o arXiv e o medRxiv, e graças ao trabalho árduo de pioneiros do acesso livre como Ajit Varki, Paul Ginsparg, Peter Suber e Michael Eisen, cerca de metade de todos os artigos biomédicos são agora publicados sob alguma forma de modelo de acesso livre.[12] Desde 2008, os Institutos Nacionais de Saúde exigem que toda a investigação que financiam seja de acesso livre no prazo de um ano após a publicação e, em 2024, a diretora dos Institutos Nacionais de Saúde, Monica Bertagnolli, reforçou esta política exigindo que toda a investigação financiada por estes institutos seja de acesso livre imediatamente após a sua publicação.[13]
Os Periódicos Como Substitutos Da Qualidade Dos Artigos
O problema da publicação académica não se prende apenas com o custo e o acesso. Durante a maior parte da História, o que interessava era a importância e a qualidade do artigo científico e não a revista em que era publicado. Os cientistas não se preocupavam muito com o prestígio da revista, mas queriam chegar ao maior número possível de colegas cientistas, o que era melhor conseguido através de revistas com muitos subscritores. Este facto criou uma hierarquia entre as revistas. Um grande fluxo de submissões para revistas de grande circulação conduzia a elevadas taxas de rejeição, o que, por sua vez, as tornava mais prestigiadas para publicação.
Ao contratar e promover cientistas, a leitura e avaliação de todos os documentos de todos os candidatos pode ser entediante e demorada. Para poupar tempo, o prestígio da revista em que os autores publicaram é por vezes utilizado como substituto da qualidade do artigo. Isto pode parecer estranho para quem não é cientista, mas, dependendo da área, todos os jovens cientistas sabem que a aceitação ou rejeição de um artigo de investigação pela Science, The Lancet, Econometrica ou Annals of Mathematics pode fazer ou destruir uma carreira. Isto “incentiva o carreirismo em detrimento da criatividade”.[14]
Como expressaram eloquentemente o antigo diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, Harold Varmus, e colegas: “O valor inflacionado atribuído à publicação num pequeno número das chamadas revistas de ‘grande impacto’ pressionou os autores a apressarem-se a publicar, a cortar nos pormenores, a exagerar as suas descobertas e a exagerar a importância do seu trabalho. Estas práticas de publicação … estão a mudar a atmosfera em muitos laboratórios de forma perturbadora. Os recentes relatórios preocupantes sobre um número substancial de publicações de investigação cujos resultados não podem ser reproduzidos são provavelmente sintomas do actual ambiente de grande pressão para a investigação. Se, por desleixo, erro ou exagero, a comunidade científica perder a confiança do público na integridade do seu trabalho, não pode esperar manter o apoio do público à Ciência”.[15]
Estas são palavras fortes mas importantes. Sem a confiança do público, a comunidade científica perderá o generoso apoio que recebe dos contribuintes e, se isso acontecer, a Ciência definhará e esmorecerá.
O prestígio de uma revista nem sequer é um bom testemunho da qualidade dos artigos. Vejamos, por exemplo, a revista The Lancet. Publicada pela Elsevier, é considerada uma das cinco “revistas médicas de topo”. Sob a direção do seu actual editor, Richard Horton, a revista publicou um estudo que sugere falsamente que a vacina MMR pode causar autismo[16], levando a menos vacinações e a mais sarampo;[17] um artigo de “consenso” sobre a Covid que questiona a imunidade adquirida por infecção,[18] algo que conhecemos desde a Peste Ateniense em 430 AC;[19] e o agora infame artigo que afirma que a hipótese da fuga de informação do laboratório da Covid era uma teoria da conspiração racista.[20]
Utilizando a terminologia estatística dos modelos de efeitos aleatórios, a variação dentro do jornal na qualidade dos artigos é maior do que a variação entre os jornais, o que torna o prestígio do jornal um mau substituto para a qualidade dos artigos.
Revisão Pelos Pares e Avaliação Da Ciência
A revisão por pares tem uma longa e rica história e é uma parte indispensável do discurso científico, como é evidente em muitas controvérsias e discussões científicas. A revisão científica pelos pares assume muitas formas, incluindo comentários publicados, citações positivas ou negativas e discussões em reuniões científicas. No século XX, as revistas iniciaram um sistema de revisão anónima e não publicada por pares. Imprimir e enviar revistas em papel era dispendioso, pelo que nem tudo podia ser publicado, e os editores começaram a utilizar revisores anónimos para ajudar a determinar o que aceitar ou rejeitar. Isto levou à estranha ideia, entre alguns cientistas, de que “investigação revista por pares” se tornou sinónimo de investigação publicada numa revista que utiliza um sistema anónimo de revisão por pares para determinar que Ciência deve ser publicada, ignorando as muitas formas tradicionais de revisão por pares aberta e não anónima.
As universidades e outros institutos de investigação, bem como os financiadores da investigação, têm uma necessidade intrínseca de avaliar a Ciência e os cientistas que empregam e apoiam. Ao confiarem no prestígio das revistas em vez da qualidade dos artigos, subcontrataram partes da sua avaliação a pessoas desconhecidas, sem verem as revisões efectivas. Este sistema é propício a erros e utilizações incorrectas.
Publicação Lenta e Pouco Eficiente
O actual sistema de publicação académica é lento e desperdiça tempo valioso dos cientistas, que é mais bem empregue na investigação. A investigação de qualidade deve ser publicada o mais rapidamente possível para fazer avançar a Ciência. Mesmo artigos excelentes e importantes, como o ensaio aleatório DANMASK-19,[21] podem ser rejeitados três vezes enquanto os autores tentam publicá-los numa revista com o maior prestígio possível.[22] Isto não só atrasa a divulgação da Ciência. Além disso, exige o trabalho moroso de muitos cientistas que avaliam e revêem o mesmo artigo para diferentes revistas.
Em comparação com a boa investigação, os manuscritos questionáveis requerem o esforço e o tempo de mais revisores, uma vez que têm mais probabilidades de serem rejeitados e submetidos de novo. Mesmo os manuscritos com falhas fatais acabam por ser aceites por alguma revista. Isto dá à investigação o selo de aprovação de ser publicada numa “revista com revisão por pares”, mas sem que os leitores tenham acesso a essas revisões críticas anteriores. Teria sido melhor se esses trabalhos de investigação com falhas tivessem sido publicados pela primeira revista juntamente com as revisões críticas, para que os leitores pudessem ter conhecimento dos problemas com os estudos?
Embora não possamos impedir a publicação de má Ciência, o que é necessário é um discurso científico aberto, robusto e vivo. Essa é a única forma de procurar a verdade científica.
Quatro Pilares Para Um Caminho a Seguir
O que é que se pode fazer em relação a esta situação? A via a seguir pode assentar em quatro pilares:
1. Acesso livre, para que os artigos científicos possam ser lidos por todos os cientistas e por qualquer pessoa do público.
2. Revisões abertas pelos pares, que qualquer pessoa possa ler ao mesmo tempo que lê os artigos, assinadas pelo revisor.
3. Recompensar os revisores com um honorário e reconhecimento público pelo seu trabalho criticamente importante.
4. Eliminação do controlo dos artigos, permitindo que os cientistas de uma organização publiquem livremente todos os seus resultados de investigação de forma atempada e eficiente.
Já existe movimento nestas direcções. O acesso livre é muito popular entre os cientistas e apreciado pelo público.
Algumas revistas, como o British Medical Journal, a PLoS Medicine e a eLife, estão a utilizar a revisão por pares aberta para os artigos aceites, em alguns casos mantendo-a anónima ou tornando-a opcional.[23][24][25] Embora pouco utilizada, algumas revistas têm uma longa tradição de acompanhar alguns dos seus artigos de investigação com comentários e uma réplica do autor.
Tem-se defendido que os revisores deveriam ser pagos,[26] mas esta ideia ainda não vingou.
Os Procedimentos da Academia Nacional de Ciência(Proceedings of the National Academy of Science) costumavam ter um sistema em que os membros da academia eram incumbidos de publicar a sua investigação sem revisão por pares ou controlo de artigos, mas esse sistema foi abandonado a favor da revisão universal por pares.[27]
Se as revistas científicas mudassem para um modelo de publicação baseado nos quatro pilares acima referidos, que impacto e vantagens teria isso para os leitores, cientistas que publicam, revisores, universidades e agências de financiamento?
Vantagens Para os Leitores
A vantagem do acesso livre para os leitores é óbvia, especialmente para o público, médicos e cientistas que não têm acesso a uma grande biblioteca universitária.
Igualmente importante, os leitores beneficiarão muito com a revisão aberta pelos pares, para que possam ler o que outros cientistas pensam sobre a investigação que estão a ler. Na década de 1990, a minha revista preferida era a Statistical Science do Instituto de Estatística Matemática. Juntamente com os artigos de investigação publicados, esta revista publica frequentemente comentários de outros cientistas e uma réplica do autor. Como jovem cientista, isso deu-me uma visão inestimável do processo de pensamento científico de cientistas mais seniores e experientes, incluindo muitos dos melhores estatísticos do mundo. A revisão aberta por pares poderia ter um efeito semelhante num conjunto muito mais vasto de artigos de investigação.
A eliminação do “controlo de acesso” aos artigos pode também beneficiar os leitores, especialmente os não cientistas. Agora lêem um artigo revisto por pares sem saberem que foi rejeitado várias vezes por outras revistas e sem poderem ler as revisões que causaram a rejeição do artigo. Para os leitores, teria sido melhor se a primeira revista tivesse publicado o artigo com as críticas negativas originais. Ou seja, embora pareça contra-intuitivo, a eliminação do “gatekeeping” de artigos é especialmente importante para investigação fraca ou questionável, desde que seja acompanhada de uma revisão aberta por pares.
O actual processo de revisão moroso é, obviamente, também prejudicial para os leitores. Isto é especialmente verdade numa área como a saúde pública, onde os surtos de doenças e outros problemas de saúde agudos necessitam de uma rápida compreensão e acção.
Vantagens Para os Cientistas Que Publicam
A publicação é muitas vezes um processo moroso e complicado para os cientistas, que gastam um tempo valioso que poderia ser utilizado para a investigação propriamente dita. Quando um manuscrito é rejeitado, tem de ser adaptado, formatado e enviado para a revista seguinte. Quando é aceite, podem ser necessárias várias revisões.
Embora muitos comentários dos revisores conduzam a versões revistas melhoradas dos manuscritos, outros comentários são melhor e mais eficientemente tratados através de uma troca aberta de ideias com o revisor, utilizando a revisão por pares aberta. Além disso, quando há desacordos, os cientistas devem ter liberdade académica para expor os seus próprios pontos de vista sobre a sua investigação, enquanto os revisores devem ter liberdade académica para publicar a sua perspetiva divergente.
Infelizmente, as revisões de alta qualidade não são universais e todos os cientistas já sentiram alguma frustração ao lidar com revisões. Com as revisões por pares assinadas e publicadas, são encorajadas as revisões ponderadas, honestas e de elevada qualidade, enquanto as revisões irreflectidas, apressadas, concisas e indelicadas são desencorajadas.
Vantagens Para os Revisores
Os discretos heróis da Ciência são os muitos cientistas anónimos que escrevem diligentemente revisões cuidadosas e perspicazes para um vasto número de artigos e revistas. Isto é feito por um sentido de dever e pelo seu amor à Ciência. Por este facto, os revisores merecem ser recompensados e reconhecidos. Embora possa não os compensar totalmente pelo tempo que levam a escrever uma excelente revisão por pares, os revisores de revistas merecem pelo menos um honorário nominal pelo seu importante trabalho, tal como os revisores de bolsas. Mais importante ainda, devem receber reconhecimento público pelas valiosas ideias e comentários que fornecem, através de revisões por pares abertas e assinadas que qualquer cientista pode ler e que podem acrescentar ao seu curriculum vitae.
Vantagens Para as Universidades e Institutos de Investigação
Com excelentes cientistas, a Academia de Saúde Pública quer que todos os seus membros publiquem toda a investigação que produzem. O mesmo deve acontecer com as universidades, os institutos de investigação e as agências governamentais de investigação. Caso contrário, não os deveriam ter contratado. Do ponto de vista do trabalhador, qual é então o objectivo do “gatekeeping” de artigos, quando este apenas atrasa o momento em que a investigação é divulgada?
O único objectivo concebível é se o nome da revista for utilizado como um substituto para a qualidade do artigo. No entanto, deixar que a revista, ou o seu factor de impacto, determine a qualidade de um artigo de investigação individual não é muito científico. Para os empregadores, é mais sensato que os seus comités de promoção e contratação de professores determinem a qualidade através da avaliação de artigos de investigação reais. É claro que isto é feito frequentemente, utilizando alguma forma de revisão interna, mas poderia ser melhorado através de uma revisão externa aberta por pares. A prazo, as universidades poderão mesmo exigir que os seus docentes publiquem não só em revistas com revisão por pares, mas também em revistas abertas com revisão por pares.
As bibliotecas universitárias gastam uma quantia excessiva em assinaturas de revistas científicas. Para além disso, pagam generosamente taxas de publicação a revistas de acesso livre para garantir que a investigação produzida possa ser lida por qualquer pessoa. Uma utilização mais sensata destes fundos seria pagar revisões externas de alta qualidade da investigação que a universidade produz, e uma forma de o fazer é através de revistas de revisão por pares abertas.
Vantagens Para as Agências de Financiamento
As agências de financiamento devem querer que toda a investigação que financiam seja publicada, incluindo os chamados estudos negativos. Não importa qual das suas investigações financiadas é publicada em que revistas. O que importa é que seja publicada atempadamente, sem atrasos desnecessários, para que outros cientistas possam continuar a basear-se nela. Nesta perspectiva, é uma perda de tempo quando os manuscritos são rejeitados pelas chamadas revistas de topo antes de serem publicados.
A maioria das agências de financiamento permite que os cientistas utilizem o dinheiro das subvenções para pagar as taxas de publicação às revistas. Em comparação com os serviços de pré-impressão, como o medRxiv, o único valor acrescentado que estas revistas oferecem é a revisão por pares. Mas as agências de financiamento não podem ver as revisões pelas quais pagaram. A investigação foi um sucesso ou um fracasso? O que é que poderia ter sido feito melhor? Deverão os cientistas financiados receber mais dinheiro para fazer mais investigação? Devem continuar a financiar este tipo de trabalho ou concentrar-se noutras áreas de investigação? Com a revisão aberta por pares, as agências de financiamento terão uma avaliação externa da investigação que financiam.
Prova de Conceito: Jornal da Academia de Saúde Pública
Juntamente com um conselho editorial de renome de todo o mundo, a RealClear Foundation, uma organização sem fins lucrativos, está a liderar o desenvolvimento deste novo modelo de publicação. Está agora a lançar o Journal of the Academy of Public Health, de acesso livre e revisão aberta feita por pares, em que os revisores são pagos e reconhecidos pelo seu importante trabalho, e em que qualquer membro da Academia pode publicar rapidamente qualquer investigação na área da saúde pública sem controlo de artigos.
Uma revista é apenas uma gota no oceano da publicação científica e não pode servir todos os cientistas de todas as áreas académicas. A esperança é que esta nova revista inspire o aparecimento de outras revistas semelhantes em toda a Ciência. As sociedades científicas, as universidades, os institutos de investigação e as agências de financiamento podem lançar novas revistas ou reestruturar as existentes para os seus membros, professores ou bolseiros. A esperança final é que todos os cientistas tenham pelo menos uma revista deste género à qual submeter os seus manuscritos, quer seja publicada pela sua universidade, instituto de investigação, agência de financiamento ou sociedade científica.
Se está intrigado com esta exploração da publicação científica, por favor examine-a, reveja-a, replique-a, personalize-a e talvez até a desenvolva mais.
Referências
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Este artigo foi publicado originalmente, em inglês, no Journal of the Academy of Public Health, no dia 30 de Janeiro de 2025.
Não raras vezes, o Chega tem sido acusado de ser um partido de um homem só. É uma teoria com a qual concordo, e sobre ela já me debrucei algumas vezes. A azáfama do André para concorrer a tudo, desde Presidente da República a Primeiro-Ministro, passando por vogal do condomínio e secretário na junta de freguesia, é meritória, mas deixa a descoberto a dificuldade de arranjar quadros para o partido.
Não é um problema exclusivo do Chega, entenda-se. É pouquíssimo apelativo enveredar pela carreira política em Portugal neste momento. Os salários são baixos, a exposição à comunicação social é enorme, o risco de devassa na vida privada é uma constante.
(Foto: D.R./Chega)
Quem é que, no seu perfeito juízo, quer sair do sector privado, de carreiras bem remuneradas, para entrar no circo em que se tornou o trabalho parlamentar? Dois tipos de pessoas: aqueles a quem seduz a projecção mediática ou, pior, os que não encontram melhor alternativa de trabalho. O salário de deputado pode não ser muito alto, mas, convenhamos, para um incompetente é uma fortuna.
Quase todos os partidos passam por estas dificuldades. No caso do Chega, um partido que gira em torno de uma pessoa e sem grandes teorias ou ideologias, a busca por quadros minimamente apresentáveis é ainda mais difícil. Não é qualquer pessoa que se sujeita aos gritos racistas e xenófobos a troco de um salário.
Não é, por isso, de estranhar que André Ventura ande sempre aos caixotes entre os desiludidos dos outros partidos. Imagino que o Sérgio Sousa Pinto seja o próximo convidado para jantar.
Rita Matias, deputada do Chega.
Quando o grupo parlamentar aumentou para os actuais cinquenta membros, foi preciso abrir a porta sem grande controlo e rezar pelo silêncio dos novos recrutas. Os meses passaram, e os escândalos foram-se sucedendo. Casos e mais casos com os deputados, crimes menores e maiores, 20% da bancada debaixo de investigação.
André tentou conter os primeiros casos e, sempre que possível, apontar aos alegados crimes do PS e do PSD. Mas chegou a um ponto em que as notícias eram tão catastróficas, com escândalos semanais, que o líder do Chega mudou de estratégia. Era altura de começar a atirar gente para debaixo do comboio.
Entre pedófilos, agressores, corruptos e ladrões de malas, Ventura optou por se antecipar à crítica e tratou de afirmar que o Chega era um partido diferente. Não daria cobertura aos crimes dos seus, embora, recentemente, Ventura se tenha referido a “crimes menores” para marcar as diferenças face ao PS e ao PSD. O que diria o André de 2023, que gritava por castração química para pedófilos, deste de 2025, que vê a coisa de uma forma mais leve?
(Foto: D.R./Chega)
O Chega escolheu duas linhas perfeitamente definidas: a imigração e a corrupção. Se, no primeiro tema, o trabalho de populismo está a ser feito com algum sucesso, já no tema da corrupção os quadros do partido não estão a ajudar. Ana Caldeira, a mais recente descoberta nas virtuosidades da extrema-direita, está acusada de burla qualificada e, de imediato, posta a andar por Ventura. Nem Marine Le Pen, condenada por roubar fundos europeus, foi poupada por Ventura, nestes dias difíceis para a extrema-direita europeia.
Chegámos a um ponto de habituação tal que, a verdadeira notícia, é termos uma semana sem mais um membro do Chega ser apanhado com a boca na botija. De tantas cabeças a cortar, o pobre André está rapidamente a tornar o partido de um homem só, algo mais literal. Aguardo, com alguma ansiedade, por conhecer as listas do Chega para as próximas legislativas. Devem estar recheadas de futuros criminosos de baixo quilate.
Esta também é uma parte importante. O Chega trouxe para a política o incompetente desqualificado que, até a roubar, é razoavelmente burro. Miguel Arruda, à falta de melhor, é um bom exemplo do que é o Chega para lá de Ventura. Um incapaz que não consegue articular duas ideias. Um racista primário que apoia movimentos de nazis. Um idiota encartado que rouba na sala do país com mais câmaras por metro quadrado e que, para complemento, ainda envia o produto do saque pela agência dos correios do Parlamento, para poupar uns cobres em selos. Agora imaginem um intelecto destes a votar em leis.
(Foto: D.R./Chega)
O que estes sucessivos casos do Chega nos dizem é, no fundo, aquilo que já todos sabíamos. O Chega não é anti-sistema, não é anti-corrupção e, muito menos, tem uma ideia para o país. Limita-se a cavalgar os temas que dividem e que, mais depressa, os poderão levar a cargos de poder. E, se há coisa que o crescimento da extrema-direita na Europa nos ensinou, é que o ódio a emigrantes e o populismo moralista são as formas mais rápidas de converter frustração popular em votos.
O projecto de poder pessoal de André Ventura não é gritar porque outros, em lugares de decisão, roubam. O que o incomoda verdadeiramente, desde o dia em que saiu do PSD, é não lhe darem um lugar onde ele, e alguns dos seus fiéis, possam também meter a mão na coisa pública.
Parece que ainda não será desta. O Rocha foi mais esperto.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
É corrente ver em assuntos diferentes um fio condutor que decorre de determinada atitude meio oculta ou não-confessada. Geralmente, quem se atreve a enunciar esses “desvarios” é imediatamente acusado de estimular a “teoria da grande conspiração” e assim cada um fica no seu canto. Nada se demonstra, nada se nega e as convicções individuais mantêm-se mais ou menos as mesmas. Já todos o vimos muitas vezes!
Nestes dias, em que nos aproximamos da necessidade de voltar a manifestar em quem confiamos para gerir os vários domínios da administração pública, vale a pena reflectir na experiência acumulada no passado recente.
O governo que agora termina funções foi eleito com maioria muito escassa e instável, e a possibilidade de tudo acabar rapidamente esteve sempre presente. Assim, era imperioso e urgente “mostrar serviço” e atacar com enorme urgência todas as frentes onde a gestão pública mostrava dificuldades. Choveram aumentos (ainda que alguns limitados a meras promessas que o tempo confirmará ou não…) e promessas gongóricas de resolução de problemas continuados.
Fosse diferente e mais robusta a maioria parlamentar governamental e tudo seria diferente, com outro ritmo, deixando as benesses para mais tarde, em fim de mandato, como é tradicional. Assim, houve que mostrar serviço rapidamente e agradar a todos os grupos profissionais que aguardavam negociações, necessariamente difíceis. Claro que o saldo orçamental positivo facilitou essa distribuição de satisfações.
Assim, avaliar a eficiência/competência/justeza da acção governativa que durou cerca de um ano, sempre a fazer “equilíbrio no arame” e risco iminente de crise política e eleições, como aconteceu, deve ter em conta essa tentação forte de querer agradar a todos depressa. Nada garante que uma situação mais estável trouxesse igual ímpeto e generosidade. A “conta” dos constrangimentos e legislação impopular seria apresentada antes de poder oferecer mais “bombons”, com a habitual desculpa do governo anterior!
Na Saúde, tudo foi diferente. Uma equipa ministerial pouco competente, mas com agenda ideológica tentou nomear todos os amigos possíveis em cargos directivos a todos os níveis, frequentemente com fundamentação duvidosa e conflitos de interesse, como o tempo mostrou, ao mesmo tempo que se manietou e “domesticou” a Ordem dos Médicos com várias nomeações de dirigentes para funções no Ministério.
Ana Paula Martins, ministra da Saúde do governo de Luís Montenegro. / Foto: D.R.
Fizeram-se promessas sem sinais de as poderem cumprir, com os métodos que usaram. Ordenaram um “plano de emergência” com coisas boas (mas pouco originais) e com coisas originais (pouco boas, como a criação/modificação administrativa de especialidades médicas, indicação de que as urgências de pediatria seriam até aos 12 anos, planos cirúrgicos oncológicos sem ter em atenção que uma enorme parte da oncologia é não cirúrgica, sem aumento da capacidade assistencial em consultas, etc).
As urgências que “não iriam fechar”, têm evoluído como se viu. Continuaram a despejar dinheiro na contratação avulsa de médicos tarefeiros, mantendo os serviços clínicos razoavelmente despovoados.
Quando era já certo que o governo iria terminar funções, e na sua última reunião, anunciou-se a decisão magna de evoluir os cuidados do SNS para parcerias público-privadas. Esse é um modo possível de gestão, mas a recente criação de ULS por todo o país, que incluem os cuidados médicos primários e a saúde pública, traz questões novas que o bom senso recomendaria discutir publicamente para se obter um consenso nacional que não leve a reversão, logo que o “barco mudar de direção”.
Foto: D.R.
Fica por explicar por que motivo o governo acha que a administração privada é mais ágil e eficiente, mas não toma medidas para conferir essas qualidades à gestão pública. Estava na sua mão fazê-lo, mas evitam esse caminho, sabe-se lá porquê.
Esta pressa e ligeireza, já sem falar na inclusão de unidades académicas que a ministra achava que deveriam ter regime especial, mostra de forma robusta que afinal tudo parecia obedecer a um plano para mostrar que a gestão pública é desastrosa e a gestão privada “só virtuosa”! Um amigo imaginário dir-me-ia “lá estás tu com a mania da conspiração!” ao que eu responderia, “E tu, se quisesses levar o barco para esse lado, como agirias?”. Resposta imaginária, “sim, dessa maneira…”. Pois!
Portanto, depois de ver tudo isto, podemos dizer que “o primeiro milho foi dos pardais”, e o que se seguiria teria um paladar e consequências bastante diferentes se pudessem seguir o seu rumo. Haverá oportunidade para todos decidirem que caminho desejam para o SNS. E prepararem-se para assumir as respectivas consequências.
Jorge Amil Dias é médico pediatra
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Quando se afirma que uma sondagem foi feita com “rigor científico”, geralmente associada a uma reduzida margem de erro, espera-se, no mínimo, que esse rigor não se dissolva ao primeiro olhar sobre a ficha técnica. Mas o que o Público, a RTP e a Antena 1 aceitaram publicar por estes dias — com chancela ‘científica’ da Universidade Católica, via CESOP — não é uma sondagem: é uma palermice mascarada de estatística.
E pior: é uma palermice perigosa, porque serve para manipular a opinião pública sob o verniz da respeitabilidade académica. Com a bênção silenciosa da ERC, essa entidade reguladora que há muito perdeu a utilidade e hoje apenas funciona como um armazém de pareceres burocráticos, incapaz de defender os cidadãos contra a intoxicação informativa.
Comecemos pelo número mais escandaloso: a taxa de resposta desta suposta sondagem (que, como todas as outras nunca são validadas externamente) foi de 29%. Isto significa, de forma crua, que sete em cada dez pessoas recusaram participar na sondagem. Foram contactadas 4.177 pessoas, mas só 1.206 aceitaram responder. E, ainda assim, esses 1.206 são tratados como se representassem fielmente os mais de nove milhões de eleitores portugueses. Há aqui dois problemas gravíssimos que deviam invalidar qualquer pretensão de fiabilidade desta sondagem:
1. Auto-selecção dos inquiridos: quem responde não é uma amostra aleatória pura, mas sim quem quis responder. Esse grupo tende a ser mais politizado, mais disponível e, muitas vezes, mais alinhado com os meios de comunicação que encomendam a sondagem. Há uma diferença enorme entre uma amostra aleatória de 1.206 pessoas com alta taxa de resposta e uma amostra de 1.206 extraída de um universo onde 71% recusaram participar. A Universidade Católica sabe isso; os directores dos órgãos de comunicação social talvez -mas todos participam na farsa que alimentará notícias, comentários e entrevistas até à próxima fraude.
2. Distância entre método e realidade eleitoral: por mais que os ‘produtores’ destas ‘sondagens’ se defendam com “ponderações estatísticas”, o facto é que não se pode corrigir um viés de auto-selecção se não se conhece sequer o perfil dos que não responderam. A ilusão de representatividade criada pelas chamadas ponderações é apenas isso: uma ilusão. Ou, se quisermos ser mais justos, um embuste.
Que uma universidade alimente este tipo de práticas já seria, por si só, um motivo de vergonha académica. Que meios de comunicação social com responsabilidades públicas, como a RTP, aceitem difundir os resultados como se fossem uma fotografia fiável do país — isso, sim, é escandaloso. E que a ERC assista e abençoe esta prática de manipulação de massas num regime democrático é uma prova da sua absoluta inutilidade e de uma indigência que mina a democracia. A ERC, que devia zelar pela integridade da informação difundida, transforma-se, com a sua cumplicidade, numa aliada objectiva da pura desinformação.
Aliás, esta não é uma falha isolada. Há muito que os chamados estudos de opinião servem mais para formar percepções do que para retratar realidades. O objectivo não é saber em quem os portugueses tencionam votar, mas sim condicionar o voto dos indecisos com o argumento da viabilidade e da “preferência nacional”, construídas em cima de amostras frágeis e enviesadas.
Não basta publicar a margem de erro (aqui 2,8%, como se isso tivesse algum valor real com 71% de não respondentes). A verdadeira margem de erro é outra: a do bom senso que se perdeu.
Estamos perante um caso claro de abuso da credibilidade académica e jornalística para alimentar um ritual estatístico vazio. E, assim, quando o ritual substitui o rigor, a ciência cede o lugar à propaganda.
Se ainda há quem leve estas ‘sondagens’ a sério, só pode ser porque prefere viver numa realidade fabricada a aceitar a verdade nua: a maioria dos portugueses recusa participar nestes exercícios porque já percebe, por instinto, que são uma fraude. E essa é, por ironia, a única sondagem verdadeiramente representativa: a cada vez menor taxa de respostas em sondagens.
Há-de surgir o dia em que ninguém atenderá um telefone de uma empresa de sondagens – mas, lamentavelmente, serão sempre apresentados ‘resultados’ com rigor. Nem que se invente. Há gente para tudo, sobretudo quando a numeracia em Portugal ainda é pior do que a literacia.
A Operação Pactum, conduzida pela Polícia Judiciária e que envolve suspeitas de conluio e cartelização na aquisição de material informático por várias entidades públicas, revela — mais uma vez — que a bandalheira na contratação pública em Portugal não é um acidente, é um sistema. Em causa estarão, neste processo, vícios procedimentais com um valor acumulado “não inferior a 17 milhões de euros”, mas o que realmente interessa vai muito além de uma cifra avultada: está em causa o próprio sentido da legalidade e do interesse público.
Ao longo dos últimos anos, o PÁGINA UM tem destacado, com persistência jornalística e rigor documental, largas dezenas de contratos públicos em que o abuso, a opacidade, a promiscuidade e, por vezes, a ilegalidade são práticas aparentemente correntes, dir-se-ia corriqueiras. Não se trata de meros erros administrativos ou de desatenções burocráticas.
Estamos a falar de estratégias recorrentes para contornar a lei e favorecer determinadas empresas, das pequenas aos grupos económicos — muitas vezes os mesmos, sobretudo em sectores sensíveis e de negócios apetecíveis como as tecnologias de informação, a alimentação (escolar e hospitalar), a segurança privada, a limpeza ou os transportes escolares e de doentes. E sempre com o mesmo pano de fundo: o assalto ao erário público com a conivência dos decisores políticos e administrativos, e a passividade de reguladores e fiscalizadores, com o Tribunal de Contas à cabeça.
Vejamos alguns dos esquemas que se tornaram rotineiros e que o PÁGINA UM tem vindo a denunciar:
a) Ajustes directos por “urgência imperiosa”, invocada a pretexto de atrasos provocados pelas próprias entidades adjudicantes, ou em prazos que de urgentes nada têm. A “urgência” é frequentemente fabricada para contornar os concursos públicos.
b) Concursos públicos vazios ou com exclusão total dos concorrentes, seguidos de ajustes directos previamente combinados. Um clássico da concertação: quem ganha o ajuste directo raramente concorre — sabe de antemão que a concorrência será anulada.
c) Adjudicações sucessivas à mesma empresa, por ajuste directo, sem que haja qualquer reacção da concorrência ou do mercado. Uma evidência de cartelização consentida. Em muitos casos, os ajustes directos ocorrem após terminar a vigência de um contrato após concurso público, não sendo sequer sensato que não se tenha lançado novo concurso público para evitar ajustes directos.
d) Empresas que impugnam concursos que não venceram, mas que, enquanto aguardam decisão judicial, continuam a prestar o serviço por ajuste directo, mantendo de facto o monopólio. e) Consultoras e sociedades de advogados contratadas por ajuste directo, com a desculpa de que é “impossível definir critérios objectivos” para concurso, quando os serviços são perfeitamente quantificáveis. Escolhas pessoais travestidas de necessidade técnica.
f) Contratações durante pandemia, muitas feitas sem cadernos de encargos, sem contratos escritos e muitas vezes com registo tardio no Portal Base — como no caso do Hospital de Braga, que demorou mais de dois anos a registar contratos de centenas de milhares de euros. Estou ainda aguardar que o Ministério Público fala buscas ao Hospital de Braga, cuja gestão durante a pandemia foi um verdadeiro ‘caso de polícia’, mas longe de ser o único.
Perante este panorama, a única coisa verdadeiramente surpreendente é a escassez de buscas policiais, detenções e condenações. Os sinais de prevaricação e conluio são tantos e, por vezes, tão descarados que se justificaria, aqui sim, uma task-force permanente da Justiça só para a contratação pública. Há cerca de ano e meio, encaminhei uma participação com mais de duas dezenas de casos suspeitos para o Tribunal de Contas. Foi um teste. Não houve qualquer consequência visível. Não é só o sistema que está capturado: é também a fiscalização que parece paralisada.
Torna-se assim imperioso adoptar uma política de mão-de-ferro na contratação pública, desde os ajustes directos de 19.999,99 euros (um ‘número mágico’ para entregar uns cobres aos ‘amigos do café’ sem concorrência) até aos contratos de milhões com cadernos de encargos a preceito ou a possibilidade de reajustes de preço. Isso significa, por exemplo:
• Transparência absoluta: contratos e cadernos de encargos publicados atempadamente, com prazos escrupulosamente cumpridos.
• Cumprimento rigoroso da lei: aplicação inflexível do Código dos Contratos Públicos e sanções reais para quem o violar.
• Responsabilização efectiva: penalizações monetárias a gestores públicos que façam adjudicações irregulares e demissões de responsáveis políticos sempre que se detetem práticas sistemáticas de atropelo à legalidade.
• Punição dissuasora de conluios e cartelizações: multas pesadas e, acima de tudo, exclusão temporária ou definitiva de empresas prevaricadoras da contratação pública.
Mas o combate à corrupção não se faz apenas pela punição: faz-se também pela correcção das falhas de mercado. Quando sectores inteiros se viciam em práticas de cartelização e de ajustezinhos directos combinados, cabe ao Estado intervir com soluções públicas.
Se, por exemplo, os concursos para fornecimento de alimentação escolar, de limpeza, de segurança privada ou de transportes continuam sistematicamente vazios — para depois surgir uma confortável adjudicação directa ao mesmo do costume —, talvez seja altura de o Estado ameaçar assumir directamente esses serviços, com empresas públicas dimensionadas e fiscalizadas. Não por ideologia, mas por defesa do interesse público e da concorrência verdadeira. Só o simples anúncio levaria a uma moralização de muitos sectores que vivem de esquemas em contratos públicos.
É tempo de dizer basta. A Operação Pactum está muito longe de ser um caso isolado: é apenas a prova de que há muito tempo a excepção deixou de ser a corrupção — ela é, hoje, a norma. A decência, essa, é que se tornou rara.
Parece que iremos ter novas eleições legislativas; infelizmente, vamos continuar a perpetuar o regime que nos conduziu a esta situação de total ruína. Já dura há mais de cinco décadas. Este modelo baseia-se na glorificação patética da democracia e da soberania popular, que é vista como um altar intocável.
A realidade, porém, revela que se trata de um dos sistemas mais perversos que já se inventou. Ao contrário de uma monarquia absoluta, onde o monopólio do governo estava nas mãos de um rei que legaria o trono ao filho, os incentivos para confiscar a população eram consideravelmente menores. Porquê?
Porque o rei não precisava de encher os bolsos à pressa; o seu filho herdaria o reino e a máquina de parasitagem já estava montada. Além disso, o rosto do ladrão era conhecido por todos: um senhor rechonchudo e rosado, a empanturrar-se de pernas de frango. A resistência era mais firme porque o inimigo era claro e evidente. Talvez por isso, nunca um monarca absoluto se atreveu a confiscar mais de 15% ou 20% da riqueza produzida. As modernas democracias, em contrapartida, fazem gala em sugar 50% do PIB, tudo em nome do combate às desigualdades sociais e da sustentação daquela vaca sagrada chamada Estado Social.
Enquanto no mercado queremos concorrência, que atrai os mais produtivos e inovadores para satisfazer as necessidades dos consumidores, na democracia sucede precisamente o inverso. Ao permitir que “qualquer um” possa concorrer à chefia desta organização criminosa chamada Estado — que vive do confisco e detém o monopólio da força e dos tribunais —, abrem-se as portas para que demagogos, crápulas e vigaristas assumam o controlo. Os produtivos, como é natural, afastam-se desse pântano.
Não é casualidade que a qualidade da classe política esteja em queda livre. Como a propriedade do governo é “pública” e não privada, todos se sentem com legitimidade para meter a mão na gamela. Um monarca absoluto, por exemplo, trataria de preservar a sua propriedade e geriria os seus bens com prudência, sabendo que, no longo prazo, esse património passaria para o seu filho. Havia parcimónia e cuidado na gestão dos recursos.
Na democracia, porém, a lógica é inversa: o tempo para roubar é limitado e há que ser rápido na pilhagem antes que o cargo escorregue pelas mãos. Daí que os políticos gastem boa parte do seu tempo a inventar esquemas para se perpetuarem no poder, comprando votos das massas e roubando uma minoria produtiva cada vez mais pequena – ser otário toda a vida é complicado e estúpido.
Veja-se o caso da Segurança Social, onde se faz crer que os descontos dos trabalhadores activos estão guardados num porquinho mágico, pronto para sustentar a sua velhice. Nada mais ilusório: esses 34,75% do salário bruto dos trabalhadores servem apenas para pagar as pensões dos actuais reformados — hoje, nem é suficiente, outros impostos cobrem a diferença negativa entre receitas e despesas.
A escalada no assalto aos activos tem sido incessante ao longo das últimas cinco décadas, tudo para manter a farsa de que o Estado Social é sustentável. É assim que o bloco central se perpetua no poder: prometendo saquear os que produzem para comprar os votos dos reformados, dos funcionários públicos e dos subsidio-dependentes. Eles sabem perfeitamente que este esquema piramidal há-de ruir, mas, na democracia, ponderar as consequências futuras é coisa que simplesmente não existe.
A escória sem escrúpulos que governa vendeu-nos de corpo e alma a instituições transnacionais em troca de subsídios e prebendas para amigos e companheiros — como é o caso da sinecura de deputado europeu. Venderam a nossa soberania monetária para garantir que um esquema piramidal europeu pudesse expandir-se e praticar a fraude da criação monetária em larga escala, chamada Banco Central Europeu (BCE). Foi assim que, quando Portugal faliu em 2011, o BCE ligou a impressora para nos “salvar” — empobrecendo-nos pela inflação, enquanto plutocratas bem relacionados se encheram à custa dessa manobra, comprando activos a preços irrelevantes (aeroportos, companhias de seguros, bancos…).
Depois veio o “dinheiro grátis”: sempre que há uma crise (normalmente provocada pelos próprios), aparecem milagrosamente milhares de milhões de euros em “fundos de resgate”. Esse dinheiro, que simplesmente não existe, é inventado pelo BCE e pago pela população com inflação.
A realidade é esta: Bruxelas é uma casta parasitária ainda mais cara que os nossos políticos locais. Não beneficiamos nada com a sua existência: tornaram-nos os pedintes oficiais da Europa, sempre a pedir subsídios e dívida mutualizada, enquanto se cultiva a ilusão de que nada pagaremos, tudo nos será dado sem esforço ou custo. No entanto, no fim, pagamos sempre a conta: seja por impostos, inflação ou pela destruição da actividade produtiva.
Há cinco décadas que dois partidos socialistas têm o monopólio deste saque. Para quem trabalha e produz, a vida é um inferno de impostos asfixiantes, regulação absurda vinda de Bruxelas, burocracia sufocante que só beneficia os grandes negócios capazes de suportar tais custos. Para os parasitas do regime, basta uma agenda de contactos para que milhares de euros fluam como um rio. A política transformou-se, assim, numa carreira profissional: uma actividade onde se sobe não pelo mérito, mas pela aptidão na arte do parasitismo.
Tomemos o caso da empresa de casinos Solverde, tão falada nos últimos tempos. Se houvesse liberdade de entrada no mercado de casinos, os clientes decidiriam qual prosperaria. Mas para quê contratar Luís Montenegro, se ele não detivesse o poder de conceder monopólios privados? É o controlo e o poder estatal que alimenta esta promiscuidade entre plutocratas e políticos.
O mesmo se aplica à despesa pública. Se cada um de nós contratasse o seu hospital ou a sua escola directamente ao prestador de serviços, não haveria qualquer incentivo para subornar políticos. Mas, como o Estado português controla 133 mil milhões de euros — cerca de 12,5 mil euros por português —, esse maná precisa de ser dirigido para os bolsos “certos”: contratos camarários para amigos, assessorias jurídicas para filhos de políticos e subsídios para empresas onde os parasitas têm familiares.
Este modelo, como é óbvio, é insustentável e está condenado a falir. Daí o crescendo do controlo social, pois é preciso espremer até à última gota de sangue os que ainda produzem alguma coisa. Por essa razão, a União Europeia tornou-se uma espécie de URSS moderna: se a população vota “errado”, retira-se o candidato das listas; se já não há como roubar mais, inventam-se pandemias ou ameaças externas para justificar mais impostos, mais impressão monetária e mais inflação. Todas as crises são pretexto para aumentar o controlo e esmagar os dissidentes. Necessitam, assim, de um sistema que determine onde podemos gastar o nosso dinheiro e como nos devemos comportar: daí o Euro Digital, a peça final do puzzle totalitário – já prometido para Outubro deste ano.
Chegámos, enfim, à farsa final: novas eleições para um parlamento nacional que nada decide, apenas aqueles que terão o privilégio de repartir o saque. Enquanto os portugueses acreditam que estão a escolher o seu destino, apenas seleccionam o próximo grande parasita. Nada mais.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.