Categoria: Opinião

  • Omeprazol

    Omeprazol

    Algumas pessoas conseguem ver a chuva. Todas as outras apenas se molham.

    Bon Marley


    Aqui no Largo há poucas pessoas tão simpáticas, tão dedicadas ao seu trabalho, e tão inteiramente dignas da nossa confiança como o Samuel Ameixoal. Por trás da portinha modesta que lhe serve de recepção e secretaria, a sua mulher chamada Celina, em homenagem à Céline Dion, vigia ao mesmo tempo todo o Largo e o comportamento dos três Yorkshires sempre muito bem lavados e primorosamente escovados que se aninham sobre o balcão[1], recebe os pedidos dos condutores, regista os seus desejos até ao mais ínfimo pormenor, consulta o calendário e tudo o que lá tem marcado, estabelece imediatamente uma data de entrega que nunca falha, o cliente entrega-lhe a chave do carro, ela guia-o cuidadosamente pela rua estreitinha até estar de frente diante do portão enorme de trás[2], carrega no comando, o portão desliza, ela arruma o veiculo no lugar mais indicado por data de chegada e promessa de entrega, deixa lá dentro preso ao espelho do lado do condutor uma folha de apontamentos num código que mais ninguém consegue decifrar a não ser o marido, e volta a saltar para o seu lugar atrás do balcão onde deixou a meio a contabilidade desse mês. Os automóveis, os camiões, as motos – todos conhecem o mesmo destino. Entram para ali num autêntico nojo, e saem tão brilhantes e escovados que parecem figurantes de uma série sobre a dinastia Windsor.

    O Samuel tem a chave do meu carro: sempre que se apercebe da abertura de um lugar verdadeiramente legal, vai tirá-lo do lugar para onde o despejei à balda e proporciona-lhe um estacionamento verdadeiramente digno desse nome. Foi a Celina quem cortou as guias ao Jeremias[3] para ele poder passear-se em paz e sossego pelo terraço, e é ela quem rega as plantas na minha ausência.

    Não podiam ser melhores pessoas, nem vizinhos mais convenientes.

    Ontem cheguei de Lisboa depois de uma grande maratona na Feira do Livro, e bem podia carregar no botão da televisão que ela não acendia nem por nada. Não era a box, que estava perfeitamente nos conformes. Eram a porcaria da imagem e a gaita do som, mesmo – e eu cansadíssima, acabada de sair do Expresso e ainda sem o meu Sebastiãozinho. Não estando a ver outra solução, fui à janela e chamei pelo Samuel. De um lado da rua para o outro, expus-lhe o problema da televisão que não acendia. Ele subiu a minha escada com várias chaves de fendas na mão, já a dizer que disso de televisões é que não percebia grande coisa – mas a verdade é que encontrou logo o fiozinho amarelo que estava solto, voltou a ligá-lo, o botão recomeçou a piscar, e num segundo o monitor já estava todo iluminado, num enredo devidamente falado.

    Eu nem sabia como é que havia de agradecer-lhe.

    Deixe lá isso, Clarinha,” disse-me ele, com os seus olhos azuis enormes iluminados num sorriso franco. “A gente precisamos da televisão, ora é ou não é? Ó Clarinha, a gente sem a televisão não samos nada. Não samos nada mesmo. Então já vê. Eu ia agora deixar a Clarinha aqui sozinha, sem o Sebastião e sem televisão.


    Há anos que eu ando a protestar que a televisão tem vindo a tornar-se, mais e mais e mais à medida que o tempo passa, numa máquina infernal de estupidificar as pessoas – e de conseguir ir-se transformando num vício que lhes degrada de tal maneira os neurónios que, a partir de um certo ponto, “a gente sem a televisão não samos nada.” Quanto mais estúpidas as pessoas ficam, mais fácil é mandar nelas, menos provável é que ainda lhes reste alguma espécie de curiosidade, e, em consequência, nestas alturas ouvem-se cada mais vez mais argumentos a favor do voto em partidos vestigiais de verdadeiras intenções absolutamente opacas, como por exemplo a Nova Direita baseados em vácuos totais como o já estafadérrimo “foda-se, pá, mas é que aquela preta é mesmo, mesmo bonita.[4]

    É evidente que, quanto mais televisão as pessoas veem, menos interesse sentem em votar.

    Se não fosse porque, infelizmente, é mesmo verdade que “a gente sem televisão não samos nada”, a taxa de abstenção teria – obviamente – sido muitíssimo inferior a 60%.

    Segue uma história exemplarmente ilustrativa do nível de analfabetismo funcional que se abateu sobre as pessoas da minha geração – e, como toda a gente sabe, os idosos são uma das maiores fatias da população portuguesa. Acontece num dia em que se conclui um feriado com tolerância de ponte que, nestas circunstâncias, pega com um fim de semana. Ou seja, quatro dias de férias. O pessoal devia andar feliz, bem-disposto, carregado de energia e, por que não, cheio de gratidão também.

    Por um grande carrocel de acontecimentos que levam a outros e a seguir é inevitável virem de lá outros, daqueles que sobem e descem e que tornam a minha vida tão emocionante, eu estava – pessoal, eu juro que estava mesmo, pela alma dos meus filhos, OK? – eu estava a passar uns dias num T1 minúsculo situado na Amadora. Não estou a gozar. Foi mesmo assim que tudo isto aconteceu, e, ao terceiro dia, com uma necessidade terrível de sair sozinha de casa para ir à rua tomar café, fechei a porta do 12º D[5] com muito jeitinho para ver se não acordava ninguém e chamei o elevador.

    Quando o elevador chegou já vinha a descer desde o 16º, e estavam três velhas lá dentro.

    Estou-me bem nas tintas para os meus 64 anos. EU tenho 64 anos. Aquelas senhoras eram umas VELHAS. É muito diferente.

    Eu fiz-lhes um grande sorriso e dei-lhes os bons dias, mas elas não me ligaram nenhuma. Vinham entretidas numa espécie de competição de suspiros, uns mais tristes, outros mais sentidos, outros mais demorados, e assim. E, para cada suspiro, havia uma conclusão: “Bem, não é, tem que ser.” – “Pois, pois é, lá temos nós que ir trabalhar outra vez” – “Enfim, parece que ao menos não vai estar tanto calor” – “Ai, deixe-me cá, o que eles dizem é que vai chover” – “Ai, credo, a chover em Junho.”

    Então e já decidiram em quem vão votar?

    Olharam para mim como se eu fosse de Marte.

    woman in black long sleeve shirt hugging white and black siberian husky

    Eu não acredito em político absolutamente nenhum.”

    Eu também não. Votar para quê? Para vir mais um novo vigarista apropinquar-se com o nosso dinheiro?”

    Tínhamos chegado ao rés-do-chão. O elevador range e dá um saltinho, anunciando o fim da viagem. A terceira velha põe de imediato a mão sobre o lugar onde é possível que se situe a boca do estômago. E solta um suspiro tão grande, tão grande, tão grande, que faz abrir algumas portas e ganha logo o concurso.

    Ai, Santo Deus. Não vejo a hora de o meu Omeprazol começar a fazer efeito, para eu ao menos me ver livre de todo este fogo que vem até cá acima!”

    Foi por um triz que não a puxei pelo braço e não lhe gritei, numa grande aflição clínica,

    Ó minha rica senhora, por favor não faça isso! Olhe que o Omeprazol não é assim que se toma!”

    Depois imaginei-me cercada de velhas que me retinham na entrada com uma torrente inesgotável de perguntas sobre a toma de todos os seus imensos comprimidos e calei-me mas foi muito caladinha, corri para o café onde não tomei um, nem dois, tomei três com um pastel de nata, e tratei de deixar para trás a Amadora no Expresso das 15 horas.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pode ser uma imagem extremamente desagradável para quem, como eu, detesta cãezinhos; mas que lá estão sempre limpinhos e escovadinhos, isso é indiscutível que estão.

    [2] Note-se que este “veiculo” tanto pode ser um pequeníssimo Smart como um colossal camião de caixa aberta todo pingado das obras. Não há volante que a Celina não maneje.

    [3] O meu galo de briga da Malásia, e melhor amigo do Sebastião.

    [4] Quando as pessoas se preparam para votar num Partido ao qual desconhecem o nome da Cabeça de Cartaz, digam-me se as coisas podiam estar piores.

    [5] Liberdades poéticas, claro.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Agressões nas cadeias portuguesas

    Agressões nas cadeias portuguesas


    O jornal Diário de Notícias, de 13 de Junho de 2024, publicou um trabalho da jornalista Fernanda Câncio sobre um Relatório do “Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura”, da Provedoria de Justiça, que denunciava ter encontrado “evidências de agressões a reclusos”, por guardas prisionais, sendo que seis desses casos estavam “suportadas por imagens de videovigilância” das próprias prisões.

    Comecemos por duas notas de extrema importância para se analisar a situação:

    Primeiro: o número peca por escasso, por muito escasso, e não há nenhum recluso, guarda prisional ou funcionários que trabalhem dentro das nossas prisões que não saiba isso. As agressões são “o dia-a-dia das cadeias”.

    Segundo: ao falarmos de guardas prisionais agressores há que acentuar que sabemos serem uma minoria, ainda assim a poderem contar-se por dezenas, muitos deles perfeitamente identificados por serem “useiros e vezeiros” nesta prática, sendo que a imensa maioria da Corporação é constituída por profissionais empenhados, esforçados e dedicados. E que, muitos destes números, não se reveem nestas atitudes.

    a black and white photo of a barbed wire fence

    Também por isso, nos custa compreender a impunidade destes agressores, a cumplicidade (ainda que por inércia) de tantos desses profissionais que acabei de elogiar. Desde logo alguns dirigentes sindicais que optam por tentar negar uma evidência.

    Obviamente que me refiro àqueles que agridem para mostrar que têm o “poder” de fazer o que entendem sobre quem consideram inferior, por incompetência para se fazerem respeitar e optando pelo terror ou, simplesmente, pelo prazer de agredir.  

    Se um agente de autoridade qualquer se vê forçado a agredir em legítima defesa, com toda a certeza não poderá ser criticado.

    As agressões nas nossas prisões, na sua grande maioria, contudo, nada têm a ver com essa legítima defesa.

    São agressões cobardes de quem se sente com poder para usar a força sobre aqueles que, sabem, não se podem defender, feitas fora de situações de conflito, preparadas cuidadosamente, em zonas sem câmaras de vigilância nem testemunhas e muitas delas depois do encerramento dos presos com vários guardas a entrar em celas, com o rosto tapado e sem a placa de identificação na camisa.

    man holding chain-link fence

    Também há inúmeras queixas contra elementos do GISP (uma força da guarda prisional conhecida pela excessiva agressividade) quer no transporte de presos quer quando chamada para situações de distúrbio em cadeias. Alguns dos relatos dessas agressões deviam fazer corar de vergonha os responsáveis antes de os levarem a responder em tribunais.

    O que se segue às agressões é todo um processo de branqueamento de modo a evitar qualquer punição. É o corporativismo no seu apogeu.

    Não há um elemento da Corporação que queira testemunhar contra colegas e os reclusos que tenham assistido são chamados e “aconselhados” a não falar sob pena de terem indeferidas todas as saídas jurisdicionais ou liberdades condicionais.

    A maior parte deles cala-se de imediato. Os que teimam em depor são transferidos, prontamente, para cadeias a centenas de quilómetros da família o que, para além do castigo, dificulta as audições pelos inquiridores.

    Estes, por sua vez, pertencem a um organismo de nome SAI (Serviço de Auditoria e Inspecção) que é definido como “o serviço de inspeção, fiscalização e auditoria às unidades orgânicas desconcentradas e aos serviços centrais da DGRSP, cuja atividade constitui instrumento essencial à verificação da legalidade e à manutenção da ordem e disciplina no Sistema de Execução de Penas e Medidas e Tutelar Educativo”.

    A Person's Hands on the Table Wearing Handcuffs

    Podia (e devia) ser um organismo independente, mas ficando sob a tutela da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, a sua total inércia, o seu desdém pelas queixas e os generalizados arquivamentos fizeram com que caísse num descrédito absoluto.

    Os reclusos e os seus familiares há muito que desistiram de se queixar, até por medo das represálias.

    As Associações vão fazendo o seu papel apresentando as queixas directamente na Procuradoria-Geral da República que, honra lhe seja feita, de imediato nomeia um Procurador para as confirmar, mas os obstáculos criados, com ameaças às testemunhas e falta de provas impede a punição dos agressores quer a nível criminal quer a nível disciplinar.

    Os médicos e enfermeiros dos Estabelecimentos Prisionais teriam um papel importante se fotografassem os reclusos com as marcas das agressões e denunciando-as ao Ministério Público.

    Ao optarem pelo cruzar de braços tornam-se, também eles, cúmplices das agressões.

    Estas continuam e não será uma intervenção, a cada dez anos, da Provedoria de Justiça que acabará com estas atitudes ignóbeis e ilegais.

    woman holding sword statue during daytime

    O recluso é um cidadão a cumprir uma pena ditada pelo Tribunal e ali não consta que deva ser sovado unicamente para gáudio de gentinha menor e doente.

    A única maneira de alterar esta situação é com a intervenção de entidades como a Comissão dos Direitos Humanos da Ordem dos Advogados ou a Subcomissão para a Reinserção Social e Serviços Prisionais.

    A ida às diversas cadeias, sem aviso prévio, chamando reclusos ao acaso, ouvindo-os sem vigilância e garantindo a confidencialidade, permitiria que percebessem a realidade das nossas prisões.

    Ficariam envergonhados de serem portugueses, estou seguro, mas poderiam lutar pela legalização daqueles espaços.

    Leon Tolstói garantia: “Quem nunca esteve na prisão não sabe o que é o Estado”.

    Os Deputados, os Juízes, os Advogados, os Jornalistas, deviam poder visitá-las, sem limitações para ficarem a saber como o nosso País é tão atrasado.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR-Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte I

    Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte I

    (PRIMEIRA PARTE)

    Nos tempos que correm, não é fácil falar de pessoas muito menos para dizer bem. As redes sociais deturparam as relações que já não eram famosas antes do planeta Google. 

    Nada parece credível, soa sempre a ressabiamento. “Se ele está a escrever aquilo é porque deve ter alguma coisa contra” pensarão alguns. “Se está a dizer bem, está a engraxar”.

    Não!!!

    A crispação ganhou o campeonato e qualquer opinião irá sempre parecer uma arma de guerrilha ou uma vingança. A desconfiança é o novo mapa-mundo num contexto em que os socialistas e comunistas acham que vivemos num sistema neoliberal, e os neoliberais acham que vivemos num mundo comunista ou socialista.

    É culpa das pessoas também.

    Mas vou tentar escrever sobre o Ricardo Araújo Pereira sem entrar nesse campeonato desolador.

    Às vezes pergunto-me, o que não pensaria o provocador e magnífico Thomas Bernhard acerca destes tempos extremados em que o norte anda a sul!

    Sabemos que, para invocar aquilo que de melhor os humanos têm pressupõe haver valores e, ainda para mais aqui tratando-se do cómico mais proeminente e com mais (aparente) piada do país, não se vislumbra tarefa fácil criticá-lo estando num mundo em que todas as pessoas já devem ter uma opinião generalizada, (na maior parte das vezes, aferindo-se basicamente pelo gosto, o que é normal, não se tratando de especialistas), e também porque não sou especialista em esventrar cómicos.

    A minha única especialidade são as amêijoas à Bulhão Pato (confirmado pela TripAdvisor de Chelas).

    E, tendo em conta também o difícil que é pôr as pessoas a pensar numa opinião divergente ou simplesmente diferente da sua, já formulada e reforçada pelo algoritmo humano, ainda se torna mais tramado, porque a fronteira é ténue entre a opinião e a piadola, e talvez seja essa a genialidade dos bons cómicos: fazer uma envolver-se na outra da forma mais natural possível.

    Apesar de todos os ventos contrários, sinto-me preparado para a batalha interna que aí vem ao ter de olhar para o herói. 

    Comecemos com uma nota didática.

    Os portugueses dizem comediante que vem do inglês comedian, mas eu gosto da escola francesa em que comédien não é necessariamente ser cómico. É mais vasto, é ser actor.

    É representar, e essa velha escola ainda tem glamour mesmo que a França esteja a perder o perfume. Por isso nunca me referirei a RAP como comediante. No entanto, entre a cultura estadunidense e francesa, ganha obviamente a primeira no poder de influência. No Ocidente já não se fala francês.

    Indo ao assunto:

    O entertainer tem características favoráveis: a capacidade de trabalho é um exemplo; tratar do olho cuidadosamente para, em terra de egos, continuar a ser rei será outro; não misturar a vida pública com a privada ou a capacidade de dizer os textos sem se enganar, mostrando uma boa coordenação motora e rítmica; estar no Governo Sombra (que tem outro nome) há bastante tempo e continuar a fazer rir os colegas de painel com análises sobre a actualidade, sobretudo a de manter alegre o risonho e deslumbrado moderador do programa que continua, ao fim de tantos anos, embevecido com as capacidades intelectuais do matulão, será também de sublinhar.

    Contrariamente é facto não tão abonatório, não conseguir arrasar o Presidente da República que bem merece, ainda que se perceba.

    Quem andar atento sabe que está sentado ao lado de um dos seus guardiões, o homem transparente, impoliticamente correcto: o assessor Pedro Mexia.

    O cómico, às vezes parece que chateia não chateando (técnica tradicional da sociedade do espectáculo e que vem em todos os manuais), com a cumplicidade do próprio presidente que é insuportável e que já só se contenta em testemunhar os afectos e os sentidos torpes que ainda representa. Há quem diga que está maluco. Politicamente maluco, se é que não o foi sempre, mas com a simpatia dos media em geral para quem era uma raridade em inteligência e intuição.

    Absurdo.

    RAP habita também esse programa para fazer o contraponto ao direitolas de esquerda, João Miguel, que parece apreciar a vida em todo o seu esplendor e bem na minha opinião, ainda que ligeirinho demais. Mas não resulta muito bem. Aquilo parece um coro gregoriano de meia-idade.

    Enfim, globalismo à la carte, mas disfarçado de não-sei-quê, é-nos oferecido semanalmente por estes governantes-sombra.

    Mas esta é só a minha verdade possível de um mundo onde nada é estável, no qual tudo é fluxo.

    Destaco ainda a capacidade que mostrou por ter conquistado estatuto inabalável, viajando anos a fio pelo centro mediático a ofender quem quiser, (desde que sejam os de baixo), não ficando sujeito ao ricochete, mantendo até o status sem qualquer efeito boomerang, mesmo que nada tenha a acrescentar intelectualmente digno de nota, como o próprio afirma repetidamente com muita leveza no género auto-depreciativo como mandam as regras do humor inteligente.

    Acha-se palhaço. Percebe-se a esperteza.

    Faz o trabalho sujo ao fim de semana e lava daí as suas mãos no Expresso e nos livros.

    Sujo porque foge a confrontos e bate no senhor do acordeão vezes demais.

    Puxa a corda para os dois lados e o status vai legitimando a corda.

    Parece o sobe-e-desce dos jardins infantis que estão sempre no mesmo lugar ainda que em movimento quando humanizados. 

    E não será difícil a IA inventar um clone do herói deste texto, porque o Ricardo é sempre o Ricardo. Não há um Ricardinho fora do sítio, não há um copo a mais, um texto que rasgue, nunca se viu publicamente pôr o pé fora da argola.

    Nunca não pôs a máscara. Nunca foi ofuscado pela “realidade”.

    Nunca fez humor sem querer… que eu saiba.

    O sistema gosta. É previsível.

    O sistema do humor quando pensa a sério, não gosta tanto. Os pares quando analisam são sempre fodidos, assim como o amor.

    A técnica é o azeite dos humoristas, vem sempre ao de cima, quando já não são engraçados. Em televisão há que estar sempre bem oleado… E bronzeado. A televisão tem sempre a garantia da técnica. É uma máquina desumana.

    Nisso o Herman é sábio, mas como cresceu sobretudo nos anos 80 com a CEE, perdoa-se mais. A ironia, o sarcasmo, o absurdo e a sátira penetravam melhor na realidade, não havia Internet.

    Não era humorista qualquer um. Mas também havia Badarós que inevitavelmente só podiam acabar mal.

    Os anos 80 eram o próprio ácido. As televisões alcalinavam, fazendo o contraponto.

    A MTV cresceu com o Herman. Vídeo killed The Radio Star e por isso perdoa-se o Herman e a sua lavagem de políticas cavaquistas com o Parabéns.

    Hoje o Herman pode ser impoliticamente incorrecto.

    Tiro a isso o chapéu (que não uso).

    Ele é VHS, o Gato Fedorento DVD. O Herman não precisa de menus, e como todo o bom retro resiste ao tempo. Esperemos que o Gato Fedorento também. Mas os DVDs afinal não duram assim tanto como se anunciava, estragam-se e desaparece o código sem deixar rasto, enquanto os VHS deteriorando-se, ainda têm o fantasma lá bem arrumado, aparecendo com uns saltos, chuva e umas linhas esverdeadas que até ficam bem no mundo digital. Dá excelentes remixes.

    A parte chata, é que por todas estas razões este género de pessoas como o matulão, podem representar perigo. São eles, que em sistemas mais musculados e apertados podem dar cabo dos dissidentes… Ou não.

    A História não é muda.

    Escrevem bem como se costuma dizer, e trazem credibilidade por se instalar no inconsciente colectivo a ideia de que são muito inteligentes, mas não me parece que tragam um pensamento gangster na possibilidade do pensável e risível.

    Mas neste sobe-e-desce o Ricardo, como é também esperto, sabe bem que os parques infantis são feitos por adultos. E Portugal muitas vezes parece um parque infantil cheio de carrosséis.

    Quanto às suas crónicas, não as leio assiduamente, mas do que conheço, é menino para desancar os do costume com umas piadas sempre originais e a desafiar o cliché das más políticas, coisa que poucos sabem fazer como ele.

    Imaginemos que só escrevia crónicas e artigos, certamente este texto não faria sentido.

    Mas tudo é um todo.

    Sem dúvida que agrada em geral, e para o comprovar, um dia no Frutalmeidas na Avenida de Roma, lugar de muita betalhada, ouvi uma rapariga dizer à sua mãe enquanto o lia no Expresso, que o Ricardo era muito engraçado e que era bom em tudo o que fazia, vendia bem electrodomésticos, fazia rir, gozava com os políticos e era sobretudo muito sério nas análises do quotidiano,  mas sempre com a sua graça e muita acutilância no humor de observação. A mãe enquanto lia outra parte do Expresso, confirmava a opinião e ainda acrescentava que gostava muito dos Gato Fedorento e que revolucionaram o humor em Portugal, rematando que escrevia muito bem. Acrescentou ainda que todas as mães do Frutalmeidas gostavam de ter um genro assim. Enfim, acordar e ter logo, uma manhã cheia de superlativos, só naquele lugar. Ali o mundo funciona regado a fruta, mas funciona, ainda se vislumbrando tenuemente o charme discreto da burguesia.

    No Frutalmeidas é muito comum dividir-se o Expresso ao sábado de manhã enquanto se bebe um delicioso sumo e se come um pastel de massa tenra.

    Concluí então que o Araújo era aquilo, um sumo fresquinho com fruta misturada e um pastel de massa tenra divinal, mas que deixa as suas inevitáveis consequências no estômago.

    Ele tem a cara da Avenida de Roma. Ele é o beto perfeito. É como o antigo cinema Londres que também estava localizado nessa avenida, onde os filmes que lá passavam não eram os melhores, entretinham, ganhavam o seu Oscar de vez em quando, mas não chateavam ninguém. Eram sempre para toda a família. Vinham etiquetados muitas vezes de comédias dramáticas e tanto podiam ser americanas como francesas.

    De quando em vez, lá aparecia um filme exótico para desenjoar.

    Será a vida do RAP assim?

    Hoje o Cinema Londres é uma loja do chinês.

    Um amigo reforça que ele é como o Monte Velho, faça sol ou faça chuva é sempre vinho da mesma uva.

    Neste tempo desolador e delirante, a desobediência quer dizer obediência, desde que disfarçada com humor.

    Quem sabe, sabe.

    E o rapaz, observa muito bem como realçou a rapariga do sumo de ananás com pitaia à mãe. O que o RAP observa os outros alcançam. É certo, mas o humor é muito mais que isso. O Seinfeld, por exemplo tem alma e podemos ver, sentir, cheirar, abominar Nova Iorque num simples diálogo, para além de fazer rir, mesmo que o estúdio da série Seinfeld seja em L.A.

    Assim como em Larry David que com o humor negro nos faz apreciar a vida.

    Julgo que às vezes os humoristas são mais poetas que cómicos.

    Mas no Ricardo, instalou-se uma vulgar loja do chinês e podemos sentir a falsa porcelana, aquela que o Herman destruía com tiros.

    O Herman deve andar desejoso de partir o RAP. 

    Mas apesar disto tudo não estamos a falar aqui das ordinarices do Fernando Rocha que já nem é ser cancelado, é ter-se tornado na própria cancela e esperar que os automóveis eléctricos que vêm da esquerda o abalroem sem dó.

    Para quem é branco, hétero e do PCP (ou foi), o cómico de Alfragide tem-se safado bem. Teve de encontrar certamente muitos artefactos retóricos e linguísticos para passar pelos pingos da chuva que vai escasseando por aqui pela Península. Mas nunca choveu tanto como neste ano.

    Por falar em sol, o RAP sabe o que é um solário, pelo menos parece sempre bronzeado de Inverno.

    Um solário, vistas bem as coisas, é uma boa imagem do actual humor mainstream. Queima, mas não torra, aquece, mas não consola, pinta, mas não borra.

    Non sense.

    É certo que o clima tem direito ao seu non sense, que também sofre de alterações.

    skeches absurdos dos Monty Phyton que hoje parecem realismo, por exemplo.

    Este humorista embora seja um profissional da opinião, parece não a ter quando é preciso. Não basta ser Charlie de vez em quando.

     

    Queriam comédia para falar de comédia?

    Para quem não sabe, oitenta por cento tem a ver com a técnica. Há livros no mercado e pdfs na Net a ensinar a ser-se um cómico. Há quem diga que é noventa por cento. Por isso o GPT pode hoje substituir uma parte dos cómicos na boa. O raio do algoritmo também já sabe dizer piadas.

    Quero lá saber. Para mim ou tem piada ou não tem. Não sou especialista. A minha única especialidade é editar casamentos no Premiére.

    O cérebro pode ser um órgão sempre aberto a correntes de ar, mas o RAP  vai ficando preso ao tempo, e depois não há vacina que o salve. Nem o fantástico Herman, o actor do big-bang televisivo português, com a sua terapia germânica lhe valeria na luta de voltar a apanhar o transporte.

    Mas não sei se o rapaz dos Gato Fedorento alguma vez quis apanhar o comboio, não deixando, porém, de ser verdade que em tempos velozes, o TGV passa a grande velocidade. E depois com o passar dos anos vem o comboio do esquecimento. Como o Herman sabia ser ácido e alcalino e nos seus piores momentos, os dois ao mesmo tempo, nunca deixou de ter o bilhete em dia.

    O Humor é uma arte para alguns, porque pode dar-nos a radiografia do Tempo, mas a cores e invertida.

    As Tragédias nos gregos e na sua origem, tornavam as personagens melhores que aquilo que eram na verdade. 

    A Comédia, tornava-as piores.

    Imagino que o Ricardo tenha lido os gregos e deve ser essa a sua tragédia interior.

    O humor pode simplesmente ser um trabalho sobre a Linguagem.

    O Gato Fedorento fazia-o bastantes vezes, uma vez que consumiu Monty Phyton ao pequeno almoço e gostou do que não viu.

    Fazer rir dá trabalho.

    Fazer rir de quem trabalha, não dá assim tanto porque uma pessoa que trabalha expõe-se muito. O trabalho não liberta como escreviam os nazis à porta de Auschwitz. O trabalho dá trabalho.

    Contudo há excepções.

    E o Araújo Pereira também dá trabalho aos argumentistas por exemplo, aos técnicos, aos políticos, mantendo a máquina em ebulição,  que assim vai lavando mais branco como um bom detergente.

    Ter um humorista do seu lado é ouro para a política.

    Aos humoristas e aos jornalistas mainstream paga-se para que não escrevam. É uma indústria, um enlatado com as próprias gargalhadas já incluídas. Apanha-se as canas e faz-se a festa e como se vê, os políticos andam sempre por lá. O guião é sempre o mesmo.

    Na indústria do humor nem sempre há trabalho porque às vezes a realidade já tem humor que chegue.

    Na pandemia não houve muito, nem realidade, nem humor, nem trabalho e poucos se queixaram.

    O raio do morcego não devia ter comido o pangolim. 

    Há assuntos interditos, por isso talvez não o vemos crescer. Mas crescer para onde?

    Perguntaria João César Monteiro.

    Nos jornais há um vazio critico ao qual já nos habituámos. Os jornais mataram os jornais.

    Um haraquíri pouco simpático com consequências avassaladoras. Um tiro na própria equipa, uma dentada no próprio cão.

    Mas entre Joanas Marques e Araújos Pereiras, a diferença ainda assim é grande. Os Araújos têm cultura. As Joanas têm receitas.

    Haters há muitos, assim como os chapéus que hoje os humoristas têm de usar para se protegerem do sol que quando nasce afinal já não é para todes.

    Mas há solários em que só se queima quem quer.

    O Ricky Gervais é muito mais branco, muito mais hétero e muito mais cómico e quando se queima, queima-se nos Golden Globe. 

    O Ricardo queima-se na SIC do Balsemão.

    Isto não é dizer mal. 

    Tragam o Halibute.   

    (CONTINUA)

    Este texto é inspirado por este aqui da magnífica jornalista Elisabete Tavares.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • PÁGINA UM: um jornalismo com ‘delírios de grandeza’ sem sequer ter ‘meia dúzia de gatos pingados’

    PÁGINA UM: um jornalismo com ‘delírios de grandeza’ sem sequer ter ‘meia dúzia de gatos pingados’


    Há uns dias, um jornalista da revista Visão – que, por sinal, foi identificado no ano passado pela ERC como um dos ‘jornalistas comerciais’ que faziam notícias patrocinadas – zurzia no X, onde tem uma legião de seguidores, contra o PÁGINA UM a pretexto de uma opinião de que não gostara: “Não passa de um bloque para vomitar todos os ódios, mas com delírios de grandeza” e “eles são muito ruidosos, mas não passam de meia dúzia de gatos pingados”, foram alguns dos mimos.

    Comecemos por descontar o elucidativo facto do Luís Ribeiro, o dito jornalista, trabalhar para uma empresa que não tem “delírios de grandeza”: tanto assim que a dita, a Trust in News, achou que bastaria um capital social de 10 mil euros (igual ao do PÁGINA UM) para gerir 17 títulos, entre os quais a revista Visão, e conseguiu isso durante meia dúzia de anos, apenas com o singelo pormenor de não encerrar falida, mesmo se se encontra com um passivo a rondar os 30 milhões de euros e dívidas ao Estado e à Segurança Social superiores a 11 milhões de euros. Está em processo especial de revitalização (PER) para saber se o Estado lhe concede perdão pelas manigâncias.

    Mas, de facto, Luís Ribeiro tem, involuntariamente, razão, mesmo se exagerando. Nos últimos dois anos e meio, o PÁGINA UM fez um jornal não com “meia dúzia de gatos pingados”, mas com metade disso. Actualmente, somos apenas dois jornalistas seniores (eu e a Elisabete Tavares). Coordenamos (e editamos e paginamos), para além disso, uma dezena de colunistas que nos honram com a sua opinião – e julgamos que essa honra é recíproca.

    E temos tido, de facto, “delírios de grandeza”. Ao longo destes dois anos e meio, temos investigado e denunciado muitos assuntos, tornando-as evidentes ‘cachas’, que só não têm mais eco na imprensa mainstream (fora aquelas notícias que nos plagiam sem dar cavaco), muito pelo incómodo das revelações que temos feito sobre as promiscuidades entre grupo de media e grupos económicos.

    Entre notícias, entrevistas, opinião e recensões de livros, publicámos 2.537 artigos, num jornal digital de acesso aberto, sem publicidade e sem parcerias comerciais – e apenas com os donativos dos leitores.

    Apesar de sermos agora nem metade de “meia dúzia de gatos pingados”, fomos o único órgão de comunicação social a propor, em duas eleições deste ano, entrevistar todos os partidos (nas legislativas) e todos os cabeças-de-lista (nas europeias). No total, fizemos 33 entrevistas – e honrámos o Jornalismo com esta iniciativa, apesar dos quatro partidos e três cabeças-de-lista que recusaram a entrevistas (talvez por terem a mesma opinião do Luís Ribeiro sobre o PÁGINA UM).

    Talvez por “delírios de grandeza”, e mesmo com menos do que “meia dúzia de gatos pingados”, o PÁGINA UM tem sido um bastião da luta para o acesso à informação em tempos cada vez mais obscuros numa democracia que, embora longe de uma ditadura, já parece mais de lapela, exactamente por a imprensa mainstream, decadente e falida, se presta a servir de ‘regulador da opinião pública’. Ao longo de dois anos e meio intentámos 22 intimações junto dos tribunais administrativos, não poupando ninguém que nos recuse ilegitimamente documentos por razões de obscurantismo, a começar por entidades do Ministério da Saúde, mas também incluindo até o Conselho Superior da Magistratura e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Já agora, com estas duas entidades, ganhámos em duas instâncias. Tudo, porventura, por causa dos nosso “delírios de grandeza”, e também por causa dos nossos leitores que insistem em apoiar esta contínua campanha através do FUNDO JURÍDICO.

    Vista da nova redacção do PÁGINA UM para as inspiradoras ‘ruínas’ do antigo Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa.

    Porém, é de facto verdade: o PÁGINA UM, ao fim de dois anos e meio, é um jornal cheio de “delírios de grandeza”, mas não aqueles que o ‘jornalista comercial’ da Visão sugere, mas sim porque consideramos que aquilo que hoje parece uma quimera – um jornalismo dos três Is: isento, independente e incómodo –, afinal é possível.

    Parece-me cada vez mais evidente que, por agora, não é. Se hoje o PÁGINA UM consegue fazer um jornalismo isento, independente e incómodo, com acesso aberto, sem publicidade nem parcerias comerciais (e muito menos partidárias ou estatais), tal permite fazer apenas um jornal de pequeníssima dimensão, e facilmente ignorado.

    Desde o seu início, o PÁGINA UM tem vivido – como foi planeado – apenas com o apoio dos seus leitores, e no sentido desse apoio servir para pagar esse serviço de jornalismo independente e também o acesso aos leitores menos favorecidos. Actualmente, com variações, temos cerca de cinco centenas de apoiantes regulares e pontuais, com montante de donativos muito distintos, sobre os quais sempre estaremos gratos.

    Tem sido esse apoio – e o entusiasmo dessa comunidade – que tem permitido o ‘milagre’ do PÁGINA UM, ao mesmo tempo que temos contas limpas: não temos dívidas nem atrasos de pagamentos.

    Mas ter esse meio milhar de apoios – que resulta numa receita mensal de pouco mais de quatro mil euros – mostra-se completamente insuficiente para dar o salto qualitativo e quantitativo que ambicionávamos nos nossos “delírios de grandeza”, tendo em conta também os custos de gestão e do arrendamento da nova redacção do PÁGINA UM. E, infelizmente, há cada vez mais notícias e investigações que acabam manifestamente ‘encalhadas’ por essa incapacidade de contratar (a pagar a) mais jornalistas. Isto sem prejuízo do enorme esforço pessoal que me tenho imposto. Estamos presos por estar a fazer um jornal que, para não ter dívidas nem dependências externas, acaba feito por menos de “meia dúzia de gatos pingados”.

    Vista parcial da nova redacção do PÁGINA UM.

    O PÁGINA UM não vai desistir, fiquem descansados (ou, no caso, dos nossos ‘inimigos’, não descansem): embora não estando a crescer em termos de receitas (pelo contrário), não temos dívidas e estamos (ainda) muito longe de atirar a toalha ao chão, tanto mais que mudámos recentemente de redacção. Na verdade, este editorial, simbolicamente escrito do Dia de Portugal, constitui sim um apelo (e não aos que já nos apoiam financeiramente): ajudem-nos a criar condições para recuperar o conceito do jornalismo de serviço público, independente, isento e incómodo. Estamos mesmo a estender-vos a (nossa) mão, para que possamos retribuir, para retribuir jornalismo no estado puro. Sempre nos parece mais nobre do que aquilo que a imprensa mainstream, com jornalistas engravatados e com ares de muito respeitáveis, tem procurado fazer: mendigar apoios ao próprio Estado ou ‘vender a alma’ com as constantes parcerias empresariais envolvendo jornalistas da casa, porque se endividaram e deram calotes fiscais como se não houvesse amanhã. Na verdade, querem viver ‘à conta’ dos contribuintes; enquanto o PÁGINA UM quer viver à conta dos seus leitores. Parecendo igual, não é.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt.

  • O modelo de governo europeu, ou a indigência sob a forma de jornalista

    O modelo de governo europeu, ou a indigência sob a forma de jornalista


    Chateia-me a ignorância. A directora-adjunta do Público Marta Moitinho Oliveira não estará no lote dos ignorantes – acredito, ou tenho fé, pelos seus ininterruptos 25 anos de jornalismo, com passagens pelo Euronotícias, Diário Económico, Jornal de Negócios, Diário Económico, Sol, Lusa, novamente Diário Económico, Jornal de negócios, ECO e Público, onde está desde 2020, tendo cargos de chefia desde 2021.

    Deduzo que tenha aprendido, ao longo destes tempos, alguma coisa sobre o funcionamento da União Europeia e sobretudo para o esvaziamento das funções do Parlamento Europeu. E, se assim foi, o seu editorial de hoje é uma lamentável indigência e uma grosseira manipulação, ainda mais dando um péssimo exemplo que, ao invés de conceder confiança institucional na União Europeia, nos demonstra estarmos reféns de uma elite anti-democrática, na fronteira da oligarquia.  

    Hoje, todos devemos saber, o Parlamento Europeu – perante a Comissão Europeia, o Conselho Europeu e o Conselho da União Europeia – é uma espécie de ‘Rainha da Inglaterra’. Adopta legislação, mas juntamente com o Conselho da União Europeia, com base em propostas da Comissão Europeia, decide sobre os acordos internacionais, alargamentos, analisa o programa de trabalho da Comissão, fazendo propostas, e tem poderes (limitados) de supervisão, elege (e pode destituir) o presidente da Comissão (serão agora 720 eurodeputados, portanto o peso de um país é quase nulo) e aprova a sua equipa, concede a quitação ao orçamento e aprova o quadro financeiro plurianual. É o único órgão eleito, mas o poder efectivo é quase nulo – e mais ainda para um país pequeno como Portugal, que elege apenas 21 dos 720 eurodeputados (2,9% do total), ainda mais de forças políticas que agendas acopladas às suas ‘famílias’ políticas europeias. Não surpreende que, somente por esse motivo, a abstenção esteja elevada – e devia ser visto sobretudo um ‘recado’ dos cidadãos europeus sobre um sufrágio que anda a brincar com a democracia.

    Hoje, todos devemos saber, quem verdadeiramente determina a política europeia é a Comissão Europeia e o Conselho Europeu, onde a Alemanha (sobretudo) e a França mais do que pretenderem alimentar um espírito de coesão de um continente em contínuas convulsões e conflitos em séculos precedentes, desejam criar artificialmente um modelo federal ao arrepio da História e rumo das distintas nações e culturas. Esquecem que sempre que houve tentativas de criação de impérios ou federações, os resultados foram nefastos.

    Ora, mas Marta Moitinho Oliveira – que, na verdade, representa uma ‘linha’ instruída no jornalismo – para tentar demonstrar, no seu editorial de hoje no Público, as vantagens de se votar nas eleições para o Parlamento Europeu dá, como exemplo, “a compra conjunta de vacinas para a covid-19, conseguindo assim pôr em prática uma das mais importantes recomendações médicas dadas durante a pandemia”.

    blue and yellow flag on pole

    Podiam as vacinas contra a covid-19 ser a mais importante recomendação médica durante a pandemia – concedo até, como hipótese académica, a ser ‘testada’, a começar pela imprensa –, mas já é absurdo e de uma atroz manipulação (ou ignorância, mas eu tenho fé de não ser essa a causa) associar a eleição para o Parlamento Europeu com o modus operandi das vacinas (e também de outros fármacos, como o remdesivir, da AstraZeneca, e o Paxlovid, da Pfizer), que é porventura um dos eventos mais obscuros e antidemocráticos que temos assistidos nos últimos anos na União Europeia.

    Eu acredito que Marta Moitinho Oliveira estejam ‘amestrados’, e perdido a capacidade crítica durante a pandemia, e tenham alguma dificuldade de ‘acordar’. Mas, caramba! Não leu o The New York Times sobre o affair entre Ursula von der Leyen e Albert Bourla, CEO da Pfizer, que andaram a negociar por WhatsApp, sendo as mensagens entretanto escondidas? Não sabe Marta Moitinho Oliveira que o The New York Times processou a Comissão Europeia como parte de um pedido de liberdade de informação – e é triste que isso seja feito por um jornal não europeu –, estando o processo judicial pendente no Tribunal Europeu?

    Não sabe também Marta Moitinho Oliveira que não só os contratos conjuntos negociados pela comissão von der Leyen (que desoneraram as farmacêuticas de responsabilidades) como também os contratos nacionais – no caso português, assinados pela Direcção-Geral da Saúde e as farmacêuticas – estão a ser escondidos, estando em curso, no segundo caso, um penoso e vagaroso processo intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa intentado pelo PÁGINA UM desde Dezembro de 2022? E que existe o risco de ser considerado que os tribunais nacionais sejam incompetentes para decidir sobre contratos secretos assumidos pela Comissão Europeia?

    a bunch of flags that are in front of a building

    Isto é uma democracia? Isto é um modelo de transparência sadia?

    É esta a União Europeia que Marta Moitinho Oliveira – e outros que comungam deste modelo – quer para si como cidadã portuguesa? Se sim, que tome essa posição clara, não usando a ‘pele de jornalista’ que nos quer evangelizar, dizendo, de modo manipulatório, que temos de votar no Parlamento Europeu porque o secretismo de uma elite não-democrática é bom para a saúde.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt.

  • A Guerra da Ucrânia: uma perspectiva libertária

    A Guerra da Ucrânia: uma perspectiva libertária


    A contenda que assola o cenário mundial actualmente é entre a Rússia, de um lado, e o líder da NATO, os Estados Unidos, do outro, acompanhado dos seus estados suseranos: as nações europeias, incluindo a Ucrânia.

    Pela negativa, dois Estados vassalos em destaque: a Alemanha, que arca com a maior parcela dos auxílios financeiros e provê uma parte substancial dos recursos bélicos, enquanto é sujeita a terrorismo económico, como foi o caso da destruição do gasoduto Nordstream, cujo autor da façanha permanece envolto em mistério até os dias de hoje.

    O segundo, e sem dúvida o mais lamentável, é reservado ao Estado ucraniano, que se ergue como uma testa-de-ferro dos interesses norte-americanos perante a Rússia, detendo como único activo os seus cidadãos a desempenhar o papel de peões sacrificiais.

    É importante ressaltar que os Estados se constituem como entidades parasitárias, destituídas de qualquer produção benéfica à sociedade; são, de facto, organizações criminosas cuja estrutura se assemelha à Máfia. Nos seus domínios, extorquem os cidadãos produtivos, não tolerando qualquer concorrência, privando-os, na maioria das vezes, de quaisquer meios de defesa, como armas. Além disso, os Estados detêm o monopólio da arbitragem de conflitos entre os membros da sociedade, inclusive quando estão envolvidos, seja como acusadores ou réus. Os seus tribunais e juízes têm sempre a palavra final. Nas guerras, podem fazer recair todos os custos sobre a população: recursos financeiros e jovens para a matança.

    Assim, temos uma quadrilha comandada por Putin e outra por Zelensky, sendo esta última respaldada pela quadrilha mais poderosa do mundo, os Estados Unidos da América; estes encaram a Rússia e a China como as únicas quadrilhas rivais à sua altura, representando verdadeiros obstáculos à sua ambição de hegemonia global: a liderança de um governo mundial, com o Dólar norte-americano a desempenhar o papel incontestável de moeda reserva do mundo.

    Em 2014, a máfia norte-americana instalou um bando de criminosos da sua confiança na Ucrânia, concedendo-lhes carta-branca para bombardear, intimidar e subjugar a população de cultura russa, relegando-a ao estatuto de cidadãos de segunda. Posteriormente, abriram-se as portas da NATO, apesar das promessas feitas há décadas de que tal expansão jamais aconteceria. Até tentaram encenar uma farsa de paz com os acordos de Minsk, os quais, na verdade, serviram apenas para armar a quadrilha ucraniana para a guerra que se previa, tal como posteriormente confirmado por Angela Merkel.

    Em circunstâncias normais, seria expectável que a sinistra quadrilha liderada por Putin eliminasse a bandidagem de Zelensky, instalando no poder uma quadrilha fantoche e aliada em Kiev. No entanto, tal desfecho não se concretizou, uma vez que a quadrilha de Zelensky desfruta de vastos recursos materiais e financeiros – a impressora é infinita –, provenientes da quadrilha dos EUA e dos seus subjugados estados europeus.

    Além disso, a quadrilha de Zelensky tem por trás a máquina global de propaganda controlada pelos EUA: os eventos na Ucrânia não são retratados como uma disputa regional entre grupos mafiosos em busca de poder e território, mas sim como um confronto épico entre o bem e o mal: uma Ucrânia virtuosa, onde todos os ucranianos são vítimas dos vilões russos, e, portanto, qualquer apoio oferecido à Ucrânia é visto como um acto do bem!

    A quadrilha liderada por Zelensky desempenha um único papel: enviar a juventude do território sob o seu controlo a servir de carne para canhão, nada mais. É digno de nota que a quadrilha Zelensky tentou desesperadamente restringir a saída de homens ucranianos entre 18 e 60 anos do país, resultando em milhões de desertores.

    Os custos derivados da fuga da população não são suportados pela quadrilha Zelensky; recaem sobre os cidadãos produtivos dos estados vassalos europeus, mediante o seu confisco tributário; arcam com todas as despesas: alimentação, assistência financeira, alojamento e demais despesas. Ao contrário da quadrilha Zelensky, a quadrilha Putin foi obrigada a impor à população do seu território o ónus de custear três milhões de refugiados.

    Qual é a razão por trás do uso dos peões sacrificiais ucranianos? A quadrilha dos Estados Unidos compreende que a quadrilha Putin não é um Iraque ou Afeganistão qualquer. Pelo contrário, encontra-se fortemente armada, possuindo, inclusive, tantas ou mais ogivas nucleares que a quadrilha dos Estados Unidos. Por esta razão, recorreu às sanções económicas, numa tentativa de arruinar economicamente o território sob o domínio da quadrilha Putin e entregou os jovens ucranianos ao sacrifício no altar da guerra.

    Para a população ucraniana, a situação é profundamente angustiante: testemunhar uma guerra entre duas facções rivais, enfrentando a possibilidade iminente de perder toda a sua propriedade privada e ter as suas vidas devastadas. De um lado, a facção liderada por Zelensky tem o poder de recrutar à força, e até mesmo de perpetrar assassinatos, confiscar propriedades e congelar contas em nome da defesa nacional. Por outro lado, a facção liderada por Putin tem a capacidade de capturar, assassinar e apossar-se de propriedades, ou até mesmo destruí-las, sob o pretexto da libertação nacional. É uma realidade verdadeiramente aterradora.

    Os Estados Unidos não demonstram o mínimo interesse pelo país denominado Ucrânia, apenas a utilizam como um verdadeiro “idiota útil” na sua estratégia de dominação global. A Ucrânia tornou-se um peão nas mãos dos norte-americanos, sendo manipulada e explorada para servir os interesses geopolíticos dos norte-americanos, enquanto estes permanecem indiferentes às consequências devastadoras das suas políticas. Com tudo pago pela impressora do Banco Central norte-americano, o complexo militar-industrial norte-americano está a lucrar exorbitantemente com as ajudas enviadas à Ucrânia, pelo que tem todo o interesse em prolongar este conflito.

    A tragédia que se desenrola na Ucrânia expõe de forma contundente a cruel realidade de uma população, tanto ucraniana como russa, a ser usada como peões num jogo de xadrez geopolítico, à mercê dos caprichos de facções rivais que buscam apenas os seus próprios interesses egoístas, sem se importar com as vidas humanas que destroem. Na verdade, não são mais que guerras entre grupos criminosos a que chamamos estados.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Que Camões nos proteja!

    Que Camões nos proteja!

    Informa-me um amigo português que um jornal daquela terra de navegadores [o Diário de Notícias] vai publicar semanalmente uma edição em “português brasileiro” e que manterá um sítio no qual colocará, todos os dias, notícias de interesse da vasta parcela de brasileiros que por aí vivem.

    Num primeiro momento, leva-se um susto porque se trata de algo que soa estranho. Ou seja, uma empresa noticiosa se propõe a traduzir informações escritas, em tese, na mesma língua.

    Pouco depois, mais calmos, temos que admitir que são grandes as diferenças entre o português europeu e o linguajar brasílico.

    Christ Redeemer statue, Brazil

    A tradução em si já é um baita pepino. Ao se referirem à quase impossibilidade de verter um texto de uma língua a outra sem que se perca parte do sentido original, sentenciam os inventores da pizza: traduttore, traditore.

    Como seria a coisa entre “dois” idiomas que têm o mesmo nome?

    Vamos por partes, como diria o esquartejador no matadouro.

    Imagino que os dirigentes do jornal certamente fizeram estudos sobre a viabilidade dessa empreitada. Torço para que sejam bem-sucedidos!

    Ocorre-me, de início, que duas das nossas maiores diferenças linguísticas vêm do futebol: a divisão entre “adeptos” e “torcedores” e entre “times” e “equipas”.

    Aliás, por falar no esporte bretão, dele vem grande parte do nosso atual intercâmbio: há incontáveis jogadores brasileiros por aí, enquanto por cá pululam os treinadores lusos.

    Nas vezes em que fui a Portugal costumava frequentar as bancas de revistas porque aqui, em Brasília, sumiram. Melhor dizendo: transformaram-se em lanchonetes.

    Por que ia às bancas? Porque gosto de ler jornais e, em Lisboa, podia comprar vários.

    Aqui os impressos estão virando raridade.

    Recentemente, num voo para o Rio de Janeiro, desfraldei um exemplar de O Globo. Na fila dos que entravam no avião, todas as pessoas com menos de trinta anos me olhavam intrigadas, perguntando-se: para que serve essa imensa bandeira (tabloides aqui são raros) de papel borrado?

    Voltando. Nas minhas passagens por Portugal, sempre pensei que deveria haver um sítio jornalístico para os nossos exilados em Lusitânia, que são multidão. Uns 5 por cento da população local, dizem. É muita gente!

    Na base do puro palpite, acho que esses nativos de Pindorama querem, antes de tudo, notícias da sua “terrinha”.

    Mas não será “terrinha” uma expressão privativa dos filhos do país do bacalhau?

    Os brasileiros também precisam muito de notícias sobre o país no qual vivem, em especial dos órgãos públicos aos quais precisam recorrer no seu dia-a-dia.

    Mas quem é o brasileiro que vive em Portugal?

    Quando por aí passei, pareceu-me que o grupo mais numeroso dos brazucas (assim são chamados aqui os que moram nos Estados Unidos) seria o daqueles que, com menor escolaridade, exercem funções mais modestas.

    Percebi que há também muitas pessoas com mais estudo, saídas da classe média, na maioria jovens, que se lançam como empreendedores ou profissionais liberais.

    Há, ainda, uma ala de pessoas de mais idade, quase sempre aposentadas aqui (seriam reformadas aí), que escolhem viver seus anos outonais sem os muitos sobressaltos das nossas maiores cidades.

    Posso imaginar, por fim, que há ricos também, embora as más línguas digam, por aqui, que esses, na maioria, preferem Miami, a Meca Mundial da Cafonice.

    Traduzo: cafonice é mau gosto extremo.

    Os conterrâneos que encontrei por aí elogiavam, antes de mais nada, o sentimento de segurança. Podiam, em Portugal, flanar pelas ruas, mesmo à noite, sem grandes preocupações.

    Eu também pensava o mesmo. Nos anos de 2016 e 2017, quando fui a Lisboa, sentia-me como se estivesse caminhando na minha cidade (Pelotas, 300 mil habitantes, muitíssimos luso-descendentes) no começo dos anos 1970.

    Retornando à edição brasílica do periódico lusitano: 600 mil pessoas formam um belo público-alvo, como diriam publicitários ou marqueteiros tupiniquins.

    Mas quem serão os tradutores? Tudo nos leva a crer que serão brasileiros conhecedores do idioma de Graciliano Ramos. Não sei se lusos, mesmo tendo residido por muitos anos no Brasil, conseguirão trocar o infinitivo pelo gerúndio.

    a large ornate ceiling with a stained glass window

    É missão dificílima.

    Ouvi alguém (um brasileiro, claro) dizer certa vez:

    – Sempre que leio um texto acadêmico rabiscado em português de Portugal tenho a impressão de estar enfrentando um trabalho escrito originalmente em finlandês e traduzido, depois, por um húngaro.

    Não chego a tanto, mas penso, sem ser íntimo de gramáticas e dicionários, que os imensos Machado de Assis e Eça de Queiroz escreviam em uma língua que parecia a mesma. Hoje, sinto que é considerável a diferença entre as duas escritas (no jornalismo, na literatura).

    Publicar, em Portugal, um jornal para os que nasceram na nação dos sambistas, além de ser uma árdua tarefa, certamente será uma grande diversão.

    Que Camões nos proteja!

    Lourenço Cazarré é um escritor brasileiro


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Os imigrantes e o discurso de ódio

    Os imigrantes e o discurso de ódio


    No fim da década de sessenta do século vinte iniciei a minha actividade profissional como jornalista do “Jornal do Fundão”.

    Um Jornal “de província” que era um marco no jornalismo nacional.

    Numa época de censura feroz era a voz dos resistentes enfrentando um Poder todo-poderoso e antidemocrático.

    Nomes como José Saramago, Alçada Batista, Artur Portela Filho, Carlos Porto, José Carlos Vasconcelos, José Rabaça, Fernando Luso Soares, Armindo Mendes de Carvalho, Alexandre Babo, Isabel da Nóbrega, Luís Sttau Monteiro e tantos outros, com as suas Crónicas, faziam tremer o Regime Fascista que nos governava.

    Acima de todos, António Paulouro como líder incontestado pela sua extraordinária coragem, verticalidade, cultura enciclopédica e respeito total pela democracia.

    Com Sede num concelho de casas vazias e aldeias desertas, pelo fenómeno da emigração, uma elevada percentagem da edição do “Jornal do Fundão” seguia para os milhares de assinantes, emigrantes espalhados por todo o mundo.

    O “Jornal do Fundão” dividia as suas páginas pela análise da política local, nacional e internacional com as informações da pequena notícia das pequenas aldeias do concelho.

    Era por ele que os emigrantes recebiam as notícias dos seus familiares e conterrâneos e todos os portugueses sabiam muitas das notícias que a imprensa nacional calava, fosse por conveniência, fosse por medo.

    Toda a Redacção tinha a missão de receber e rever as informações dos inúmeros “correspondentes” do Jornal que, a partir da sua terra, nos faziam chegar as notícias e, por vezes, dar-lhes um “cunho jornalístico”.

    Sabíamos que era um trabalho importante porque eram essas as páginas que os leitores, no estrangeiro, liam em primeiro lugar.

    As centenas de cartas que chegavam ao jornal, muitas publicadas na rubrica “Cartas ao Director”, eram a demonstração da sintonia entre a Redacção e estes leitores especiais.

    Daí que eu tenha um apreço único, de mais de cinquenta anos, por esses homens (e mulheres) que deixaram as suas terras para irem “a salto” (sem documentos e passando ilegalmente as fronteiras) para países longínquos, sem dinheiro no bolso, sem trabalho garantido, sem conhecerem a língua falada nesses locais.

    Maior prova de heroicidade (ou loucura) não conheço.

    A alternativa era a fome na sua terra ou a obrigação de irem lutar numa guerra com a qual não concordavam.

    Oriundo de família de “fracos rendimentos”, mas com refeições garantidas, e tendo optado por fazer a tropa, não emigrei, mas quando falo com um emigrante, e muitíssimos deles tornaram-se gente de sucesso, de muito sucesso, sinto sempre uma enorme admiração e respeito por eles.

    Daí que uma raiva me cresça no peito quando ouço compatriotas meus, alguns deles descendentes desses emigrantes de que venho falando, a manifestarem-se contra os imigrantes que, hoje, nos batem à porta.

    E a quererem pôr regras que, na prática, os impediriam de entrar no país.

    As mesmas regras que criticávamos a franceses, alemães e ingleses.

    green plants

    Exigem Contratos de Trabalho, sabendo que, nos países de onde são oriundos, os Consulados Portugueses nem visto lhes dão para poderem entrar no nosso.

    Querem saber se têm dinheiro para alguns meses de estadia em Portugal quando a realidade, de todos conhecida, é que a maioria não tem o suficiente para o dia-a-dia no seu país.

    Numa palavra, têm como objectivo impedir a entrada de gente a quem tanto devemos.

    Sentados nas cadeiras dos gabinetes de Lisboa não têm a possibilidade de visitar, por exemplo, a zona Oeste do nosso Portugal.

    Caso contrário abririam a boca de espanto com as muitas centenas de hectares de terrenos que, há meia dúzia de anos, eram terrenos incultos e cheios de silvas e que, hoje, produzem toneladas de morango, batata-doce, alface, etc. graças ao esforço de milhares de imigrantes.

    É passar por esses campos e ver centenas de homens (principalmente) num trabalho duro, a tornar rica uma terra improdutiva durante décadas.

    Sem haver, ali, um único português!

    À noite, estes trabalhadores ficam às dúzias em casas planeadas para quatro ou cinco pessoas.

    angry face illustration

    Não são os “bidonville” habitados pelos portugueses em meados do século passado, mas deveriam ser proibidos pelos mesmos políticos que condenam a sua entrada no nosso país.

    Esta gente, com os seus descontos para a Segurança Social, acaba, ainda, por ajudar na garantia da reforma dos nossos idosos nas próximas décadas.

    Tudo isso é sabido.

    Mas, todos os dias, ouvimos os mesmos discursos, os mesmos insultos, as mesmas ameaças por parte de alguns políticos que têm como única regra o incentivo ao ódio, o racismo e a xenofobia.

    Um nojo de gente!

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Sermão da Senhora Ursula aos portuenses

    Sermão da Senhora Ursula aos portuenses


    No dia 13 de junho de 1654, em São Luís do Maranhão, o padre António Vieira proferiu o Sermão de Santo António aos Peixes aos brasilienses. Era dia de Santo António, santo propiciador na busca de objetos perdidos, padroeiros pobres e dos oprimidos, dos casais e das grávidas. 

    Trezentos e setenta anos depois, no Porto, a Senhora Ursula van der Leyen proferiu um discurso aos portuenses. Era Dia de São Norberto, que foi bispo de Magdeburgo, germânico como a Senhora Ursula e padroeiro da Boémia. 

    Durante o seu discurso no Porto, a Senhora Ursula foi confrontada com um grupo de jovens manifestantes que protestavam contra o alegado financiamento, feito pela Comissão Europeia, do “genocídio em Gaza”. Recordemos que a Senhora Ursula é presidente da Comissão Europeia, pelo que aquele protesto, concorde-se ou não com o motivo e com a forma, não parece ser totalmente deslocado. Os jovens foram, obviamente, detidos pela polícia, assim se provando a lendária hospitalidade portuguesa.

    Claro que a Senhora Ursula não deixou o protesto passar incólume. E de pronto, dirigindo-se aos jovens que nesse momento estavam a ser arrastados pela Polícia, afirmou, num tom onde alguma pedagogia se mesclava com algum desdém, que, afinal, aqueles jovens tinham muita sorte, pois se estivessem na Rússia acabariam na prisão em dois minutos. E, sob os aplausos gerais das pessoas presentes no comício, bem como sob o perfume geral de incenso que a rodeava, a Senhora Ursula passou a sua mensagem contra a Rússia e contra os manifestantes.

    Há 370 anos, o padre Vieira disse em São Luís do Maranhão:

    «O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, outra corrupção?»

    Há dois dias, a Senhora Ursula disse no Porto:

    «Se vocês estivessem em Moscovo, estavam na prisão em dois minutos»

    Duas mensagens fortes, dois estilos. Qual delas permanecerá para a posteridade? É ousado fazer previsões.

    Todavia, ainda no contexto de uma -quiçá abusiva- comparação entre os dois discursos, persiste uma dúvida. O padre António Vieira fez o sermão num momento em que o Brasil-colónia se debatia com o problema da escravidão dos povos indígenas e os litígios daí decorrentes entre os colonos e alguns missionários.

    A Senhora Ursula fez o seu sermão sobre a Rússia aos portuenses, a propósito de quê? Por outras palavras, o que tem a Rússia a ver com aqueles jovens que protestavam contra a política da Comissão Europeia em relação à Palestina? Que se saiba, a Palestina não é a Rússia, são coisas e causas diferentes, pelo que o sermão da Senhora Ursula aos portuenses me parece tão a deslocado (ao contrário da manifestação) como se o padre António Vieira, no sermão em São Luís do Maranhão, reclamasse contra a expulsão dos parlamentares ingleses adversários por parte de Oliver Cromwell, ocorrida no mesmo ano.

    Talvez eu esteja a exagerar. Afinal, entre São Luís do Maranhão e Londres são 7.306 quilómetros, entre o Porto e Moscovo é cerca de metade. Por outro lado, a dita expulsão levada a cabo por Cromwell dos parlamentares desafetos, só ocorreu meses depois do sermão de Vieira, pelo que o bom padre nunca o poderia citar. Eis porque acho que, se calhar, estou mesmo a exagerar.

    Mas a minha dúvida persiste.

    Porquê referir tão enfaticamente a Rússia contra jovens que se manifestavam em relação à Palestina? Dizer que a questão da Rússia é uma das mais marcantes questões atuais, não me convence. Há outras questões atuais tão marcantes como essa. Imagine-se como nos soaria deslocado se a Senhora Ursula se virasse para os manifestantes e exclamasse:

    «Se vocês estivessem na Amazónia, estariam a arder em dois minutos»

    Ou:

    «Se vocês estivessem num icebergue do Pólo Norte estariam a derreter em dois minutos»

    Pois, de facto parece-me deslocado. Mas isso sou eu, pronto…

    Talvez haja outras explicações.

    Será que a Senhora Ursula, como muitos dos seus conterrâneos norte-europeus, persiste na ideia de que os povos do sul da Europa (os PIGS, como solidariamente lhes chamam) precisam de pedagogia político-financeira como de pão para a boca? É possível. Afinal, a tradição já vem de longe. Há uns aninhos, o Senhor ministro holandês Dijsselbloem afirmou que os povos do Sul gastam tudo em copos e mulheres. Note-se que não estou a criticar o Senhor ministro Dijsselbloem. Afinal, basta olhar para ele para perceber que aquilo é homem que nunca gastaria um euro numa coisa ou noutra.

    Apenas trago à colação esta frase do Senhor holandês (agora neerlandês) para que se compreenda essa recorrente preocupação norte-europeia em instruir-nos, o que até será louvável. Por isso, aqueles jovens que, no Porto, protestavam contra o que se passa em Gaza, precisavam de ouvir a Senhora Ursula, alemã, a educar-nos com o exemplo da Rússia.

    Se se pensar bem, até que o sermão da Senhora Ursula terá sido bem escolhido. A Rússia é tema presente, omnipresente, aliás, e está mesmo ali à mão de semear. Se a Senhora Ursula fosse buscar outras comparações históricas, talvez os jovens manifestantes não percebessem a alegoria e a atualidade. Imaginem que a germânica Senhora Ursula lhes bramava:

    «Se vocês estivessem no meu país no tempo em que os alemães seguiam cegamente Hitler, estariam num campo de concentração em dois minutos».

    Pois… Talvez os jovens não percebessem. Afinal, os portugueses são incultos, desorganizados, improdutivos e gastam tudo em copos e mulheres. Não somos organizados e poupados como a nação do Senhor Dijsselbloem, que, solidária, foi a nação estrangeira que mais voluntários deu às SS no tempo em que os alemães seguiam cegamente o senhor Hitler.

    Bem, talvez eu esteja a ver mal as coisas. Não seria a primeira vez, não será a última. E talvez esteja a fazer uma comparação tola entre o discurso da Senhora Ursula aos portuenses e o sermão do padre António Vieira aos maranhenses. E daí, talvez não. A presidência da Comissão Europeia tem alguma tradição piscícola. Afinal, o antecessor da Senhora Ursula não era também conhecido pelo cognome de “o cherne”? Mas, lá está, se calhar estou de novo a exagerar…

    Sérgio Luís de Carvalho é escritor e historiador


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Chalupa? Blogue? Ai, Luís, Luís…

    Chalupa? Blogue? Ai, Luís, Luís…


    No último texto que escrevi aqui no PÁGINA UM, usei o Luís Ribeiro (jornalista que escreve na Visão) como exemplo de uma tribo que defende a narrativa das “Bombas pela Paz”. Ou seja, que gritam pela continuação da Guerra na Ucrânia a todo o custo, com os argumentos já conhecidos do invasor imperialista e da moralidade sobre a justiça na discussão da integridade territorial. É bom de notar que, por norma, as mesmas pessoas que defendem isto já acham exactamente o contrário no conflito de Gaza onde, como se sabe, não há invasor e apenas um “direito de defesa”.

    Ao que parece, o meu texto chegou ao amigo Luís que, em consequência, me dedicou um mimo no X (ex-Twitter), e de boleia zurziu ainda no PÁGINA UM e no seu director. Como expliquei, nesse texto, raramente passo por aquela plataforma e tudo aquilo me parece uma constante descarga de bílis. No Twitter, agora X, parece que espalhar ódio e embirrar de manhã à noite é uma modalidade desportiva com direito a Olimpíadas. Contudo, fizeram-me o favor de enviar as palavras do revolucionário (com sangue alheio, claro) Luís, e lá fui eu ver o que se passava.

    Chalupa

    Primeiro, o Luís diz que não me conhece, e eu devo confirmar e avisar ser isso normal num planeta com já mais de oito mil milhões de pessoas. Não conhecemos a maior parte daqueles que respiram no nosso quilómetro quadrado. E, no meu caso, o não conhecer significa que nem sequer sabia o que ele fazia até um amigo, poucas semanas antes, me ter dito: “tu já viste as coisas que este gajo escreve?”. Aí passei a conhecer o Luís, pela sua prosa twitteira, pelo menos até ao limite da minha paciência, ou seja, dois ou três “scroll down“.

    Na sua elaborada prosa na rede do Musk, o Luís passa os dias a insultar tudo o que mexe, bastando que não pensem como ele. Não importa o tema – isso é secundário. Também faz parte daquele clube que adjectiva de “chalupa” qualquer pessoa que não vote no Centrão, no CDS ou na IL. Obviamente, ainda mais por isso, fui contemplado com esse magnífico adjectivo que, se a memória não me atraiçoa, surgiu durante a pandemia. Nessa altura, pessoas que não sabiam nada de Saúde Pública chamavam chalupas a outras pessoas que também não sabiam nada de Saúde Pública. E chamavam também “chalupas” a quem sabia de Saúde Pública, desde que não pensassem como eles. Foram tempos bonitos.

    De facto, durante esses anos, eu, que percebo nada de Saúde Pública, segui as recomendações do Epidemologista-Chefe que coordenava a Saúde Pública do país onde eu vivia, a Suécia. Portanto, mantive o distanciamento, não usei máscara, não fiz qualquer confinamento e vacinei-me. Foram essas as recomendações das instituições médicas do país e, portanto, foram essas que segui.

    Portanto, há que perceber isto, Luís: no país onde eu vivia durante a pandemia, havia um especialista de créditos firmados a coordenar a coisa. Não eram vendedores da Pfizer que andavam a recomendar mais doses, e muito menos professores de Geologia a fazer estudos que anunciavam o fim do Mundo e a necessidade de máscaras e confinamentos. Não sei se isto entra na tua definição clássica de “chalupa”, mas, adiante, que ainda temos alguma lenha para serrar.

    Convenhamos assim que chamar alguém de “chalupa” como único argumento, e acrescentar zero sobre o assunto em discussão é ligeiramente pobre. Se me permites, é até uma entrada no “reino da chalupice” que, na verdade, parece ser o teu ganha-pão diário. Parece-me até um pouco conversa de “chegano”, que cancela todo e qualquer debate alinhando de imediato no insulto.

    Mas eu não quero ir tão longe. Vamos ao teu modus operandi apenas de “chalupice ribeirinha”. Para já. Ou por agora.

    Avancemos. Quando em 2022 a Guerra da Ucrânia entrou na segunda parte – leia-se, invasão russa –, eu fiz o que costumo fazer em momentos novos e inesperados: ouço quem parece entender do assunto.

    Assim, passei mais de um ano a ouvir falar em game changers, em armas que tudo iriam mudar o curso do conflito, em russos que iam para a frente de batalha descalços, que roubavam máquinas de lavar e caíam que nem tordos. A cada semana, mais uma épica vitória dos ucranianos, mas, curiosamente, os russos consolidavam posições e a não mais largaram o território.

    Ao mesmo tempo, nós, os europeus, fomos empobrecendo, rebentando com a inflação e pagando taxas de juros exorbitantes. A solidariedade é muito bonita quando o banco não nos leva a casa em nome de uma guerra que não escolhemos e, honestamente, não nos diz sequer respeito.

    Comentários do jornalista da Visão, Luís Ribeiro, sobre o jornal PÁGINA UM, publicados na rede social X na sequência do seu tweet sobre o artigo de opinião de Tiago Franco.

    Passaram mais de dois anos, e já poucos, muito poucos, repetem a conversa dos game changers ou do “exército com pés de barro”. Aqueles que o fazem são, se me permites, os idiotas úteis.

    Chegamos ao dia de hoje onde é mais ou menos do senso comum que a Ucrânia não tem a mínima hipótese de ganhar esta guerra, por mais dinheiro ou armas que lá se despejem. Assim sendo, de que lado está a chalupice? Em quem defende que tudo continue como está, ou em quem insiste na diplomacia? Já fiz esta pergunta N vezes e nunca vi uma resposta. Tento agora contigo, Luís, até porque sei que vais ler isto porque, sei, segues secretamente o PÁGINA UM.

    Mas diz lá se, no íntimo, pensas mesmo que há hipótese de a Ucrânia ganhar a guerra se continuarmos a enviar armas, dinheiro e casas para os bancos.

    Se sim, então não tenho mais pergunta alguma, e percebo melhor as coisas que escreves. Fica o encontro marcado para essa Nárnia onde me pagarás um copo.

    Se não, então qual é o passo seguinte para quem defende o envio de mais armas? Continuar até que os russos larguem o território com a NATO a entrar no conflito? Alinhas numa III Guerra Mundial? É essa a questão.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Por fim, uma nota sobre deselegância que não mete casas de strip (mas dou-te nota 10 por esse raciocínio, que foi apenas teu, mas que tentaste chutar para mim).

    O PÁGINA UM não é um blogue, como tu bem sabes. É um órgão de comunicação oficial – modesto, é um facto, porque subsiste e cresce enquanto os leitores assim o entenderem, sem acumular dívidas. Não terá o peso e reconhecimento da revista Visão – e esta dou-te de borla. Mas o reconhecimento da Visão vem de tempos já longínquos, naquela época em que eu, fiel seguidor, a comprava regularmente, quando vivia em Portugal. Mas eram também tempos em que a proprietária da Visão não tinha problemas com dívidas ao Estado, sob o beneplácito dos Governos.

    Não há mundos perfeitos, camarada. Foi exactamente por isso que, no meu texto anterior, o título era “o Ribeiro da Visão”. Primeiro, para não se confundir com o outro, que tem piada – o da Rádio Comercial –; e, depois, para ter um ponto de referência (a Visão), pois imaginei, talvez erradamente, que, tal como eu, a maior parte dos leitores não soubessem quem eras. E tal como tu não saberes quem eu sou, isso não tem nada de mal. É apenas a consequência de um mundo cheio de gente. Não há tempo para nos conhecermos a todos, mesmo se cortares os chineses. Fica difícil e é uma pena.

    Por fim, tirando-se do X, estou até convencido de que, quando não estás a escrever atrocidades e insultos no Twitter, deves ser um encanto. Assim, se me vires um destes dias na roulotte do Estádio da Luz (aquela ao lado do túnel), promete que me contas como é que se ganha esta guerra pela escalada militar. E prometo que podes desenvolver as teorias mais alucinantes sem eu te chamar chalupa. E como é óbvio, a imperial fica por minha conta, até porque, pelo que vou lendo nas notícias, os descontos para a Segurança Social não estão em dia aí na casa.

    Um abraço.

    P.S. – Aos leitores do PÁGINA UM, deixo aqui o compromisso de honra em voltar a temas importantes no próximo texto.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.