Categoria: Opinião

  • Um irresponsável populista chamado Gouveia e Melo

    Um irresponsável populista chamado Gouveia e Melo


    Gouveia e Melo andou em ‘conspirações de maledicência nos corredores militares‘ – irrelevantes e inúteis para a sociedade nacional e internacional – até lhe cair no colo a tarefa logística de vacinar contra a covid-19 até o periquito, incluindo, claro, crianças e jovens que jamais integravam grupos de risco.

    A ‘medalha’ foi a sua ascensão, primeiro ao posto mais elevado do Almirantado da Marinha e depois ao cargo, para nosso encargo, de Chefe do Estado-Maior da Armada. E à boleia veio a peregrina ideia de ser ele um putativo candidato a Presidente da República, sustentada e promovida por jornais como o Diário de Notícias, que se transformou no seu órgão oficial, tanto é o palco que lhe concedem.

    Desde aí, Gouveia e Melo, um especialista em submarinos, aproveita qualquer oportunidade para vir à tona mostrar a sua existência – e, hélas, tentar-nos convencer da suposta necessidade de o termos por perto, mesmo se ele tem vontade de mandar alguns de nós – presumo, os mais novos – morrer longe.

    Em mais uma entrevista publicada hoje no Diário de Notícias, em parceria com a TSF (do mesmo grupo de media) somos confrontados com tiradas populistas e irresponsáveis, o que não admira porque vem de um irresponsável populista. Gouveia e Melo nada mais faz do que instigar um conflito grave. Fala das habituais passagens de navios russos na nossa gigantesca Zona Económica e Exclusiva (a quinta maior da Europa) – que deve ser fiscalizada com naturalidade – como se estivessem associadas a preparativos de uma invasão ou de um iminente conflito mundial. E, perante um conflito localizado geograficamente nos confins da Europa, face à nossa posição, e que deve ser tratado sobretudo pela via diplomática, e não por militares sedentos de bacoco protagonismo, destapa a sua veia – ou variz – bélica, prometendo insensatamente ‘carne lusa para canhão’.

    Não é minimamente aceitável que em Portugal, em modelo democrático e em pleno século XXI, venha uma alta patente militar, como Gouveia e Melo, dizer estas duas simples frases a pretexto de um conflito armado grave, humanamente lastimável, mas que se circuscreve à mesma região há mais de dois anos: “E podem ter certeza absoluta de que se a Europa for atacada e a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para defender a Europa, que é a nossa casa comum. Afinal, estamos a defender o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia“.

    “Defender o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia” não se faz, primeiro, através de uma organização militar a EXIGIR o que quer que seja a um povo, ainda mais ao povo de um país soberano com quase 900 anos de existência. A ideia de ‘carne para canhão’ não se conjuga bem como o ‘nosso modo de vida’ no século XXI.

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    Não se defende “o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia” PROMETENDO que “vamos morrer onde tivermos de morrer”, sobretudo quando o senhor que assim promete não é o Mel Gibson a armar-se em romântico William Wallace – que, na realidade, foi enforcado e esquartejado por alta traição aos 35 anos – mas sim um homem de 63 anos, almirante e Chefe do Estado-Maior da Armada de um país da NATO, antevendo-se assim que, ficando tudo torto, ficará ele no recato do lar ou no conforto do seu gabinete a esquadrinhar estratégias e tácticas militares enquanto a gente (jovem) que ele enviou está a morrer onde tiver de morrer – e a matar. Tudo para supostamente se defender a Europa, como se fosse uma angélica pomba da paz.

    Aliás, a ideia de “defender a Europa, que é a nossa casa comum”, colocando a Europa como um modelo, constitui uma pérola do populismo, ainda mais por meter a Rússia como pária. E nem é por a Rússia e a Ucrânia serem nações consideradas europeias, e nem é por ambos os países lamentavelmente não saberem o que é uma democracia, mas sim por o almirante Gouveia e Melo querer fazer-nos de parvos.

    Se há um Continente do Mundo que é belicista, esse é a Europa, com conflitos seculares, mais ou menos duradouros, mais ou menos grotescos nas causas. Antes das chamadas Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), já houvera muitos mais conflitos armados à escala planetária, e se as duas do século XX foram marcantes deve-se sobretudo à capacidade tecnológica de letalidade e de afectar mais vidas de civis. E em todos esses conflitos de grande dimensão, não me parece ter sido a Rússia a má da fita.

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    Se erro histórico houve para que a Europa não tenha evoluído nas últimas décadas em conjunto com os mesmo valores – aproveitando a Queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética – foi o ostracismo a que se botou a Rússia – para agradar aos Estados Unidos –, não promovendo, por outro lado, através de vias diplomáticas, a resolução de evidentes disputas territoriais, como as da Crimeia e do Donbass.

    A forma como se permite que militares se interponham em querelas que devem antes ser diplomáticas é um erro crasso. Ouvir um chefe militar anunciar alegremente que “vamos morrer onde tivermos de morrer para defender a Europa, que é a nossa casa comum” é um ultraje, porque uma guerra é a pior das formas de se atingir a paz.

    Acham que foi melhor, por exemplo, a compra da Louisana aos franceses em 1803 ou seria preferível uma guerra franco-americana?

    Acham que foi melhor, por exemplo, o Tratado de Montevideu em 1828 que consagrou a independência do Uruguai ou seria preferível antes dirimir uma anexação oportunista de Portugal aos territórios da Cisplatina antes ocupados por Espanha através de uma guerra entre o então recém-independente Brasil e os independentistas uruguaios?

    Acham que foi melhor, por exemplo, os milhares de acordos e tratados para se resolverem os milhares de disputas territoriais a nível mundial ou seria preferível que milhares de Gouveias e Melos por este Mundo fora enviassem milhares de inocentes para morrerem (e matarem) em nome de uma suposta “casa comum”?

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    Uma das coisas mais absurdas destes tempos modernos é a desmesurada vontade de muitos responsáveis políticos e militares em levarem toda a Europa para uma guerra fratricida, que é regional, e que assim deve continuar até que surja uma paz moderada pela diplomacia e bom senso.

    E o bom senso inclui permitir que o almirante Gouveia e Melo falar opine sobre o envio de ‘carne para canhão’ contra a Rússia, mas não que o faça como Chefe do Estado-Maior da Armada. Sem funções militares, pode ele mandar as postas de pescadas que assim quiser como comentador de assuntos militares. Ser-me-á indiferente. Mas tê-lo assim, nesta postura, como alta patente militar, assusta-me mais do que os mísseis russos.


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  • Uma Esfinge da União Europeia

    Uma Esfinge da União Europeia


    Os últimos meses e dias, mais ainda do que a iminência das eleições para o Parlamento Europeu, obrigaram-nos a lembrar uma criatura quimérica concebida há um quarto de século, numa cimeira do Conselho Europeu: a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Proclamada solenemente logo em 2000, em Nice, veio, depois de adaptada, a ser tornada vinculativa, saberá Deus porquê, junto ao Atlântico, com as assinaturas de José Manuel Durão Barroso, então Presidente da Comissão Europeia, e José Sócrates, então Presidente do Conselho da União Europeia, no Tratado de Lisboa, em 12 de Dezembro de 2007.

    Como tive ocasião de dizer pouco tempo depois, em Bragança, «de costas voltadas para as realidades e para os povos europeus, na última década, a Europa andou a brincar às Convenções, às Cartas dos Direitos Fundamentais e às Constituições»[1].

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    A verdade é que, passados 25 anos daquele dia 4 de Junho de 1999 em Colónia, a Europa dos 27 continuou a descurar o essencial, a começar pelo reforço do seu processo de democratização (prosseguindo como uma estrutura de poder político sem verdadeiros partidos políticos, sem um fórum público de formação da opinião, sem aperfeiçoamento dos mecanismos de prestação de contas ou da aproximação dos cidadãos aos decisores), a participar (através de alguns dos seus principais membros) em dois dos seis ou sete episódios mais trágicos do milénio até agora (a Guerra do Iraque e a destruição da Líbia) e a terminar no descaso relativamente às necessidades vitais em matéria de segurança e de defesa dos europeus, a ponto de se revelar incapaz de cumprir os compromissos assumidos com a Ucrânia em matéria de fornecimento de munições, após a invasão russa de Fevereiro de 2022.

    1. Ora, na presente situação, embora esse pequeno pormenor seja geralmente omitido, tudo começou mais uma vez nos Estados Unidos (um pouco ao modo das Revoluções de há 250, 235 e 204 anos, respectivamente, nos Estados Unidos, na França e em Portugal, embora agora com inusitada aceleração do tempo de reacção): no dia 24 de Junho de 2022, uma sexta-feira, o Supremo Tribunal (no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization) decidiu reverter a jurisprudência que ele próprio firmara 50 anos antes, no célebre caso Roe v. Wade, que reconhecia à mulher (desde logo, contra o poder dos estados) o direito à interrupção voluntária da gravidez, com os três Juízes dissidentes a escreverem agora: «[d]iscordamos, com pesar – por este Tribunal, mas mais ainda, pelos muitos milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma protecção constitucional fundamental»[2]. Havia efectivamente uma protecção constitucional da interrupção voluntária da gravidez desde 1973, mas ela não era dada por uma norma da Constituição, mas por uma sentença, que pretextava, no caso “mais difícil de todos”, interpretar a Constituição num sentido que nunca deixou de ser contestado e que não reunia as condições para ser considerada “fonte” de normatividade constitucional[3], estando por conseguinte sujeita ao inerente risco da reversibilidade, por uma decisão equivalente de sentido contrário, como veio a suceder[4].

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    2. Tendo sido este o detonador, foi com a habitual pompa que no Palácio de Versalhes, por proposta do Presidente da República, em 4 de Março deste ano, o Congresso francês fez inscrever no artigo 34.º da Constituição a seguinte disposição: La loi détermine les conditions dans lesquelles s’exerce la liberté garantie à la femme d’avoir recours à une interruption volontaire de grossesse. Deve, em justiça, dizer-se que a fórmula se adapta perfeitamente ao modelo francês das “liberdades administradas por lei” e que a nova garantia está sistematicamente bem colocada no Título V da Constituição de 1958, que se ocupa das Relações entre o Parlamento e o Governo. Tudo porque a Constituição francesa não dispõe de um catálogo, nem conhece sequer o conceito, de direitos fundamentais. E tudo isso numa Constituição que o actual Presidente francês se comprometeu a reformar logo no seu primeiro mandato, mas onde, tal como na generalidade das demais reformas, o insucesso foi total.

    3. De Versalhes a Estrasburgo é um passo, pelo que o Parlamento Europeu fez questão de marcar igualmente a sua posição sobre o tema: no dia 11 de Abril, adoptou uma resolução (sem força vinculativa, pois tal decisão está nas mãos, não do Conselho, como foi noticiado, mas dos Povos europeus) propondo uma alteração ao artigo 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que deveria explicitar: todas as pessoas têm o direito à autonomia sobre o seu corpo, o acesso gratuito, informado, pleno e universal à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, e a todos os serviços de saúde conexos, sem discriminação, incluindo no acesso ao aborto seguro e legal.

    4. Ora, como da França a Lisboa o caminho sempre foi curto, sobretudo em matéria de importações, também a Assembleia da República se quis associar ao assunto, com um voto de saudação à decisão do Parlamento Europeu, apresentado pelo Bloco de Esquerda, logo no dia 15 de Abril[5].

    Todavia, no caso português, quando menos (e de onde menos) se esperava, a esfinge voltou a dar um ar da sua graça, através do cabeça-de-lista da AD às eleições para o Parlamento Europeu, quando, na apresentação do respectivo programa, o candidato revelou o seguinte: «Simbolicamente, mas com vista a colocar em prática soluções que venham resolver esta crise, quero anunciar aqui que defenderemos a elevação do Direito à Habitação na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nós vamos mesmo universalizar este direito».

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    Sem pretender exagerar na apreciação jurídico-política da ideia, salvo no uso do advérbio inicial – que nestes contextos podemos perdoar –, vejo assomarem aí variadas dificuldades:

    • A primeira é a de que o direito à habitação já está consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia;
    • A segunda é a de que a formulação presente no artigo 34.º, n.º 3, da Carta  (segundo o qual a União reconhece e respeita o direito a uma ajuda à habitação destinada a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes, de acordo com o direito comunitário e as legislações e práticas nacionais) não só é contrária à ideia (do candidato) de universalização do direito, como é a mais condizente com a natureza do “princípio” nela enunciado, designadamente à luz das próprias “Anotações” anexas à Carta, mas também à luz da doutrina e da jurisprudência (constitucional, comunitária e internacional) mais consistentes;
    • A terceira é a de que a realização do direito à habitação é uma competência dos Estados – como teve de ser lembrado ao anterior Governo português, há escassos meses, pela Comissão Europeia –, pouco sentido fazendo apostar, mesmo que simbolicamente, numa medida que não reentra nas atribuições da União Europeia;
    • Como “princípio” que é, a referida garantia está sujeita a um regime muito distinto do regime aplicável aos “direitos e liberdades” previstos na Carta dos Direitos Fundamentais (artigo 52.º), não se podendo, no caso de um direito cujo conteúdo principal se traduz em prestações positivas, transformar a água em vinho; melhor seria o empenho no revigoramento da Carta Social Europeia, cujos direitos, quando comparados com os da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não passam de balões vazios, no conteúdo e na (ausência de) tutela;
    • Por último, que o candidato não me leve a mal, mas é no mínimo ridículo que um país que, há 48 anos, inscreveu o direito à habitação como direito fundamental na sua Constituição e que (salvo quanto ao programa de erradicação das barracas) se esqueceu desse direito durante mais de 40 anos (bastando para o efeito consultar os sucessivos Orçamentos do Estado), sinta que tem alguma autoridade para reclamar o que não conseguiu realizar na Constituição da sua terra, com o seu “direito fundamental de papel”.

    Em resumo: embora quanto à Grécia tenham sido povos, tradições, deuses e poetas a decidi-lo e uma vez que ela já nos legou Édipo, a Europa precisa menos da esfinge às suas portas do que Tebas dela precisava[6].

    José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


    [1] José Melo Alexandrino, Contexto e sentido da reforma do poder local, 2011 (disponível aqui, p. 6), agora in Uma década de reformas do Poder Local?, Lisboa, 2018, p. 21.

    [2] Não é este o lugar para analisar ou discutir o caso. Certo é que as coisas não ficaram por aqui e, nestes dois anos, tudo já se passou nos Estados Unidos: a repristinação de leis do século XIX, que proibiam totalmente o aborto; a revogação dessa repristinação; a aprovação de leis restritivas da prática do aborto numa série de estados (para um conspecto, um ano depois, ver aqui), com e sem subsequentes referendos constitucionais a favor da introdução do direito ao aborto nas Constituições desses estados mais conservadores (assim tendo sido decidido, em pelo menos cinco deles); o efeito boomerang que a decisão do Supremo Tribunal veio a ter junto da campanha de Donald Trump (obrigando-o à moderação do discurso relativamente aos direitos da autodeterminação da mulher); além de toda a série de referendos, de discussões e de deliberações que prosseguem a sua marcha.

    Por outro lado, ao contrário de uma ideia, por vezes, difundida em Portugal, segundo a qual “os direitos fundamentais não se referendam”, estes dois anos norte-americanos provam justamente o contrário, como já tinham de resto provado, entre muitos outros, os referendos ao aborto realizados em Portugal ou o referendo à eutanásia realizado na Nova Zelândia em 2020. Mais. Se, num regime democrático, a Constituição deve por regra ser referendada (o que ainda não sucedeu na Constituição de 1976) e se é na Constituição que estão consagrados os direitos fundamentais, a lógica só pode ser a inversa: tal como a Constituição, “os direitos fundamentais são e devem ser igualmente referendáveis”.

    [3] Sobre estas condições, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, pp. 246-247.

    [4] Curioso é igualmente que decisões semelhantes do mesmo Supremo Tribunal, entretanto tomadas, por motivos da mesma ordem, não tenham sido apreendidas (como demonstrativas da autonomia do jurídico sobre o político) deste lado do Atlântico, como sucedeu com a decisão unânime Trump v Anderson, que não reconheceu aos estados o poder de excluir um candidato à eleição presidencial, com base no disposto na secção 3.ª do 14.º Aditamento à Constituição.

    [5] Um voto que acabaria rejeitado pelo PSD, Chega e CDS, já em Maio de 2024.

    [6] Quanto à justificação desta tese, como já tive oportunidade de afirmar, nem os direitos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia são direitos fundamentais, nem eles perturbam os direitos fundamentais da Constituição e que, além disso, «se deveria ter atentado melhor na experiência de verdadeiras federações (como os Estados Unidos ou a Austrália), para verificar como uma vinculação prematura dos Estados membros a um catálogo uniforme de direitos fundamentais não faça sentido» (cfr. Elementos de Direito Público Lusófono, 2.ª ed., Lisboa, 2024, p. 121); para a demonstração da ideia à luz da comparação referida, José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…,  cit., vol. I, pp. 213 ss.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Vamos ver

    Vamos ver


    A notícia do dia é que o Sporting é campeão europeu de hóquei em patins, a mais portuguesa das modalidades desportivas.

    Tenho uma ‘cacha’ para os leitores do PÁGINA UM: o seu ilustre Director assistiu a tudo sem pregar olho nem tirar os óculos, como aconteceu em dois outros gloriosos momentos desta época. Confortavelmente aterrado no mesmo sofá com formato de nenúfar, vi-o sobreviver corajosamente aos dois golos do Génio Catamo. E jamais poderei esquecer o impávido espanto com que tentou travar, de braços retraídos e pernas no ar, a arrancada dos dois cometas nórdicos que acabou com as incompreensíveis dúvidas sobre o desfecho da meia-final da Taça.

    (O estádio grita “Rafa, Rafa” para bater um penalty. Foi lá antes aquele craque argentino que nunca pode ser substituído e é campeão do Mundo sem alguma vez ter marcado um golo ao Sporting. A harmonia continua na família do querido rival.)

    Ocasiões como as do Catamo, do Hjulmand e do Gyökeres são como sacramentos entre amigos verdadeiros de clubes rivais.

    – Pedro Almeida Vieira, estás convidado para a final da Taça! Nesse dia nem fazes mais nada, acordas e vens logo aqui ter a casa.

    Aqui no estádio, ao meu lado, o Pedro já escreveu umas 12 laudas de texto. Parece o Trincão a fintar os laterais, com ligeiras diferenças de tonalidade na barba, compensadas pelo corte de cabelo fiel ao modelo. Dribla o teclado e ao mesmo tempo consome gurosans de estatísticas ao telemóvel, para depois debitar gigas de resultados mais velhos do que nós ao meu ouvido, com a alegre efervescência dos comprimidos a alaranjar as águas. Manifestamente, o jogo interessa-lhe ainda menos do que a mim.

    (O estádio acorda o Senhor Director do torpor analítico e da sanha historiográfica-futeboleira aos gritos de Rafa, Rafa. Outra vez penalty. A julgar pela rasteira escandalosa que pregou às pernas do adversário, o guarda-redes do Arouca deve ser fan do Rafa. Cá de cima, parece-me um sueco da terra do Gyökeres, imagino que traumatizado desde o recreio da escola primária. E o árbitro apitou mesmo com vontade de alegrar a bancada. Rafa, Rafa? Desta vez marcou o turco que vai ficar com o lugar dele para o ano. O Roger Smith é tão exímio a mostrar quem manda como a culpar os outros pelas derrotas. Como foi golo, isto hoje já não descamba, nem vai dar grande notícia.)

    Notícia digna de registo foi a iniciação do Senhor Director do PÁGINA UM no glorioso Núcleo do Sporting Clube de Portugal da Garagem do Estádio de Alvalade. Aconteceu ontem, dia 11 de Maio de 2024, numa reunião extraordinária realizada no bairro da Graça, para assistir ao jogo no Estoril em comunhão de duas espécies.

    O Núcleo da Garagem tem sementes na abençoada terra de Alpalhão. Zé Sequeira, Major João Presumido, Fernando Cardoso, Cotrim, Severino Cunha, Tó Luís Joeirinha e Ti José Joaquim, este já no prado mais verde dos céus, foram os sete violinos fundadores. Antes e depois de cada jogo, no piso menos um do estádio, montam mesa farta de azeitonas, queijos de cabra e ovelha, cacholeiras, ovos com espargos, toda a sorte de petiscos, muitos vinhos e alguns doces.

    Quem ousa aproximar-se é sempre bem recebido. Eu fui um deles, um dia, e fiquei para sempre. Dantes, o Núcleo da Garagem reunia-se no Alvaláxia, para desespero dos restaurantes de comida rápida do recinto. Para o ano, já comemora 15 anos. Saborosas bodas de cristal, com vinho alentejano a transbordar dos copos.

    (O Rafa marcou um golo de bola corrida. Deve ter posto beicinho de desforra. É mais um benfiquista no estádio com vontade de contrariar o treinador. A orquestra da Luz continua afinada e, desportivamente reconheço, ele sempre foi um solista talentoso…)

    Pedro Almeida Vieira foi recebido pelo Núcleo da Garagem como se fosse o João Pinto. E eu juro que o vi aos saltos, bem embalado. E quem não salta? O Pedro estava muito, mas muito, muito mais divertido ontem do que hoje, que o Benfica ganhou cinco a zero.  

    Eu cumpri a minha parte do nosso trato, com visita ao Estádio da Luz, credencial de imprensa e esta crónica preguiçosa. Foi pena o Arouca ter ido de férias antes do jogo. Daqui de cima, confirma-se que o Benfica tem alguns grandes jogadores. Dou graças a Deus por não ser cego e me ter libertado do fanatismo clubista. Até gostava de ver o João Neves no Sporting mas felizmente isso é impossível. Hoje houve algumas jogadas bonitas, nenhuma como o vôo da águia.   Sonho com o dia em que haverá leões à solta no fosso do nosso estádio. Para já, só no relvado.

    Para o ano, disse-me o Pedro, se o Sporting for bicampeão aumenta exponencialmente a probabilidade de voltar a ser penta. É que nunca fomos só bicampeões. Vamos ver!


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  • Arouca 5.0 (com um sportinguista ao lado)

    Arouca 5.0 (com um sportinguista ao lado)


    Vamos esquecer a história das vindimas que só terminam com o lavar dos cestos, mote da minha última estapafúrdia crónica – ou penúltima, se esta for considerada a derradeira (desta época, convém acrescer) – , que na semana passada em Famalicão o “perdigão perdeu a pena”, e vamos a factos: o Sporting foi um justo campeão, e isso já é passado, pelo que, em sinal de reconhecimento, ou mesmo de homenagem, trouxe hoje comigo um empedernido sportinguista, o jornalista Carlos Enes, para colaborar nesta crónica, não sabemos ainda bem como. Decidimos, agora, que será em crónica autónoma. Uma vez para nunca mais… esta época, claro.

    Está ele, confessou-me, feliz da vida, ainda mais porque o Sporting acaba de vencer esta tarde a Oliveirense na final da Liga dos Campeões de Hóquei em Patins – que tem tanto prestígio internacional como o Mundial do Berlinde –, mas, mesmo sendo um dos excelentes jornalistas de investigação cá do burgo, está convencido que a Estatística é uma ciência esotérica, pelo que não imagina sequer que, ao ganhar este ano o campeonato, o Sporting hipotecou a chance de ser campeão no próximo ano. Passo a explicar…

    (interrompo apenas para assinalar que o jogo começou; com meia casa; algum entusiasmo; sem ninguém brindar, ainda, o Schmidt com nefastos destinos; o João Maria em campo a garantir bolas passadas para trás em número suficiente para não ser possível uma goleada; e dois jogadores no banco que eu nem sabia que existiam: Gianluca Prestianni e Diogo Spencer)

    … portanto, ia dizer, se considerarmos a contemporaneidade – isto é, basicamente, aquilo que não é História para mim, ou seja, o Mundo a partir de Novembro de 1969, e até deveria ser Dezembro de 1969, porquanto deu-me em nascer antes do tempo –, a probabilidade de o Sporting ser campeão na época de 2024/2005, portanto, de ser de novo campeão é… ZERO. Um redondo zero por cento.

    Vejamos então. A última – e tenho a sensação que será mesmo a última até ao bíblico ‘fim dos tempos’…

    (interrupção, por mor de uma ‘interrupção’ à margem das regras de um cruzamento, que dá origem a penalty… Vá lá, Di Maria: não falhes mais um… Golooooooooo!!!! Sem espinhas)

    Continuemos… Como dizia…

    (bolas, assim não dá: estava a aqui a consultar o histórico dos campeonatos desde os tempos da Outra Senhora, passam uns minutos, entoam as bancadas ao minuto 27 um cântico em honra do Rafa, e mais um penalty… a favor do Benfica. Este vai para o turco Kökçü que… goloooooooo!!!! É hoje que vai ser o 15 a zero, para fechar)

    Vamos lá aproveitar alguns segundos – ou, vá lá, minutos – antes de o Benfica espetar o terceiro para continuar a narrativa sobre as chances nulas de o Sporting ser bicampeão, para concretizar a minha tese (de esperança para as águias na próxima época), sem antes notar que, aqui ao meu lado, o Carlos Enes disfarça o seu êxtase pela honra de estar aqui na Varanda da Luz… O deslumbre é tão grande que, olhando-o de soslaio, e para o seu computador, apenas ele me escrevinhou meia dúzia de linhas, e nem sei bem o que dali sairá.

    (e grande fuzil do Rafa a carimbar o terceiro… acho que se reservaram para o último jogo)

    Camandro!, assim não consigo avançar… Vamos lá. Reza a História da Ludopédio Lusitano que, em 90 campeonatos (vamos começar na época de 1934/1935), o Sporting foi tricampeão nas épocas de 1946/1947 a 1948/1949, foi tetra nas épocas de 1950/1951 a 1953 a 1954. Significa isto várias coisas, segundo diversas perspectivas. Do ponto de vista ideológico, o Sporting nunca foi bicampeão em tempos de democracia, porquanto nos pouquíssimos anos em que o campeonato que, vá lá saber-se como (e em dois casos com um treinador que ‘aprendeu’ na Luz), lhe saiu na rifa desde a Revolução dos Cravos – sete, para ser preciso –, depois do sol na eira, seguiu-se a chuva no nabal.

    Carlos Enes em momento de 0-0…

    Sigamos. Do ponto de vista ‘cronológico’, convenhamos que, valendo as estatísticas o que valem, ter de recuar ao tempo dos ‘Cinco Violinos’ para encontrar uma série de mais de uma vitória em dois anos é ‘coisa’ ainda mais longínqua do que a famigerada Maldição de Béla Guttnann, que como é sabido constitui a única e infelizmente inquebrantável razão pela qual o Benfica nunca mais se fez campeão europeu.

    Tenhamos, portanto, benfiquistas, um sinal de desportiva empatia com os sportinguistas, que agora festejam, embora, estatisticamente falando, devam estar desesperançados de se tornarem bicampeões na próxima época. Aqui ao meu lado, o Carlos Enes, nascido nos idos de 73, não apenas jamais viu o Sporting bicampeão como só festejou quatro campeonatos desde que é maior e vacinado, andando a pedinchar por um título entre 2003 e 2020. Já eu, benfiquista de gema, festejei 11 campeonatos desde que sou maior, e ‘colecciono’ um tetra. Isto sem falar nos 10 campeonatos que ganhei enquanto menor de idade, incluindo dois tricampeonatos.

    (intervalo, vamos descansar, que para a segunda parte cheira-me haver mais uns quantos golos, para alívio do Schmidt que devo querer passar o jogo sem ninguém se aperceber que está no banco…)

    Enfim, mas estando resolvida esta questão – o que permite quantificar a esfuziante alegria dos lagartos, pouco atreitos a campeonatos em tempos democráticos –, convenhamos que há mais diferenças entre benfiquistas e sportinguistas, personificados em mim e aqui no meu ‘camarada de carteira’.

    Assim, convidou-me ele – ou desafiou-me – para assistir ao jogo do Sporting de ontem, como contrapartida ao meu convite para vir comigo à Varanda da Luz. Mas em vez de ser num estádio, levou-me para a sua casa. Está bem que o ecrã da televisão dele não é mau de todo, mas, enfim, nisto que se vê porque há uns tipos são benfiquistas e outros que acabam sportinguistas…

    (goloooooooo…. mais um do Rafa… está a despedir-se em grande)

    Ainda por cima, vindo o Carlos Enes ao estádio do Glorioso, ainda recebeu, como eu, o extraordinário repasto constituído por uma baguete de queijo flamengo + carne fumada + espinafres, uma barrita de chocolate, uma maçã e uma garrafinha de água de PH básico. Tudo de borla! Já eu, enfim…

    (golooooooooo…. entrou o Tengstedt, de má memória dos sportinguistas, e marcou… já vamos em cinco, não é?)

    Dizia eu que, enfim, em troca de honrosa estada na Varanda da Luz a assistir a excelente espectáculo desportivo e degustando opíparo farnel, o Carlos Enes somente me disponibilizou ontem – e, confesso, novamente hoje, pelo almoço – um singelo leitão assado, uma despretensiosa cachupa, um primitivo frango de churrasco, umas banalíssimas gambas, tudo antecedido por coxinha de alheira, queijos diversos, batatas doces e normais e outros modestos acepipes, tudo regado por tinto do Alentejo, que houve quem viesse de propósito de Alpalhão para, em Lisboa, assistir ali para os lados da Graça, a um jogo na televisão transmitido a partir do Estoril. Enfim, também aqui se destaca a diferença entre o Benfica e o Sporting…

    (ali em baixo, o jogo caminha para o fim, nada muito relevante, excepto as substituições onde se incluíram as saídas de Di Maria e do Rafa para as palmas)

    Carlos Enes em momento de 5-0, claramente ‘rendido’.

    E, pronto, haveria ainda mais umas quantas coisas a dizer, e a contar, sobre o Benfica – e sobre o Sporting –, mas fica, certamente, para a crónica ‘subsidiária’ do Carlos Enes, que agora me parece estar afanosamente a escrevinhar. Por mim, encerro a época; talvez para o ano tenhamos mais uma edição do Varanda da Luz, neste ou noutros moldes, que parece que ainda não irritei demasiadas pessoas, que nunca conseguem convencer-se que um jogo de futebol é apenas isso: onze gajos (neste caso são gajos) as pontapés e cabeçadas na bola, e caneladas às vezes, com o fito de a meterem nas balizas adversárias, ao qual se seguem sempre momentos onde apenas apetece brincar um pouco com os derrotados. E depois segue-se para a vida a sério… Até para a próxima época!

    (e acaba o jogo e as crónicas desta primeira época Da Varanda da Luz)

    Ah, um post scriptum: reparem que na Varanda da Luz nunca se relatou uma derrota do Benfica, e somente dois empates… Que se registe e se venha a conceder, no futuro, mais do que uma baguete de queijo flamengo + carne fumada + espinafres, que hoje até se leva para casa, porque vim cheio do almoço em casa do Carlos Enes…


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  • Medina, sinónimo de aldrabice

    Medina, sinónimo de aldrabice


    Em Abril do ano passado, escrevi um editorial no PÁGINA UM intitulado “Medina: o pináculo de um governo de aldrabões”.

    Confesso que sempre me senti estupefacto como uma nulidade do ponto de vista do pensamento político e de acção tinha tanta boa imagem nos media, sustentado à sombra de António Costa. Foi o pior presidente da autarquia de Lisboa nem sequer aproveitando o boom financeiro derivado da actualização do valor patrimonial das casas e do crescente fluxo de turismo e das receitas daí advindas.

    Como ministro das Finanças, sem qualquer política pensada, antes aproveitando-se dos milhões do PRR e de uma inflação galopante que encheu os cofres do Estado com as receitas do IVA. E por fim, inventou os maiores malabarismos financeiros para inventar um superávit, como se tem confirmado agora com uma distribuição de dividendos à má fila de empresas públicas ou com o empurrar de compromissos financeiros para o futuro, de sorte a fazer um brilharete pessoal.

    E neste interim, deixou a máquina administrativa fazer as maiores tropelias na gestão dos dinheiros públicos.

    Pior do que isto tudo, que ele nos fez, é a possibilidade de, hélas, o vermos regressar a um cargo político de relevo.


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  • Os justiceiros da Baixa do Porto

    Os justiceiros da Baixa do Porto


    É comum dizer-se que um “mas” utilizado no meio de uma frase, invalida a primeira parte do que foi dito. Querem ver? “A Maria passou numa rua escura à noite e foi violada…mas estava de saia curta”. O que queremos dizer aqui é o clássico da grunhice: “a Maria meteu-se a jeito”.

    Outro exemplo que tem estado muito em voga nos últimos 7 meses: “Israel já matou 34000 palestinianos mas o Hamas é que começou”.

    man in white long sleeve shirt
    (Foto: Dan Burton)

    Foi algo deste género que aconteceu, na sempre dividida sociedade portuguesa, no caso das agressões a imigrantes argelinos e marroquinos, no Porto. Algumas pessoas, a maior parte quero crer, condenaram. Com um ponto final. Outras, condenaram e acrescentaram um “mas”. 

    Há momentos na vida em que não podemos ter dúvidas e muito menos procurar atenuantes. Este é um deles. Um ataque planeado e pensado contra imigrantes, alegadamente por membros de gangues com ligações a movimentos nazis, não pode ser usado como desculpa para libertar o racismo e a xenofobia escondidos.

    Maria João Marques, autora de várias pérolas em tempo de pandemia, escreveu assim no Público:

    “A extrema-direita, já vimos, relativiza o ataque aos imigrantes no Porto. Mas não notei qualquer reação, ou sequer comentário, vindo da esquerda às notícias televisivas dando conta dos assaltos e agressões por imigrantes (aparentemente ilegais) às lojas e às pessoas no Campo 24 de Agosto. Crimes cometidos por imigrantes são tema tabu, finge-se que não existem, porque vai contra a linha política ‘temos de receber todos os imigrantes que cá quiserem residir, sem colocar quaisquer condições, e quem contestar é fascista e racista’”.

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    (Foto: Markus Spiske)

     

    Não está só, entenda-se. A direita mais extremista acompanhou este pensamento. André Ventura discursou durante 25 minutos a propósito dos assaltos na baixa portuense. Um pouco por toda a direita mais conservadora, usou-se o argumento encapotado de “ainda levaram poucas”.

    Repito o que já disse antes: gosto que as pessoas assumas as suas ideias, por mais aberrantes que sejam. Constato, no entanto, que a vergonha de partilhar sentimentos primários, como racismo ou a total falta de empatia, está cada vez mais distante. Há uma espécie de ‘carta branca’ para se ser um orgulhoso xenófobo, nesta Europa que implora por mais muros.

    Este foi um dos tema em debate no podcast “Estrago da Nação”, do PÁGINA UM. O meu companheiro de microfone (Luís Gomes) alinhou pelo diapasão da Maria João Marques, acrescentando ainda que os cidadãos estavam a cumprir o papel do Estado já que este se demitia das suas obrigações. Ou seja, para justiçar a mais rudimentar antipatia por imigrantes em Portugal, já se acha razoável instituir um sistema de vigilantes onde marginais “limpam as ruas”.

    brown and black jigsaw puzzle
    (Foto: D.R.)

    Confesso que este assunto, bem como qualquer animosidade em relação à imigração, é algo que me incomoda bastante. Fui imigrante quase duas décadas e sei o que é a busca por uma vida melhor, deixando para trás o conforto do conhecido. Não suporto racismo primário e nem percebo, no caso português onde a imigração é absolutamente essencial, esta luta da direita contra quem vem para cá pegar em empregos que português algum quer.

    Deve ser por ter o tema colado na pele que, assumo, tenho alguma dificuldade em manter a calma perante correntes de xenofobia. Para quem ouviu o podcast, imagino que tenha percebido. Aproveito para pedir desculpa aos nossos ouvintes.

    Alguns meios de comunicação relataram que entre os agressores estavam membros do grupo neo-nazi liderado por Mário Machado. Não sei se é verdade, mas não me custa a acreditar que um ataque a imigrantes não tenha sido, em princípio, planeado por membros do coro Santo Amaro de Oeiras.

    Agora que Mário Machado foi preso, depois de ter incitado ao ódio e violência contra mulheres de esquerda (com destaque para Renata Cambra, antiga porta-voz do Movimento Alternativa Socialista), fico um pouco preocupado com a segurança da baixa portuense. Quem é que vai manter a ordem agora se os nazis ficarem sem liderança durante dois anos? É que, só para piorar, nem o Dr. Macaco está disponível para ajudar na limpeza por dificuldades de agenda.

    fist, cut, violence
    (Foto: Annabel_P)

    O que pode esperar a bela cidade do Porto e os seus comerciantes quando os justiceiros estão, ironicamente, a braços com a justiça? 

    Um nazi é um nazi e achar que, a bem da xenofobia, os interesses destes com a população se alinham, é um erro crasso que a nossa extrema-direita faz conscientemente.

    Não há “mas” numa agressão a imigrantes. Há apenas ódio e racismo.

    Misturar isto com roubos, seja onde for, é criar campo fértil para extremistas e nacionalistas. Não ajudem (ainda mais) ao crescimento de pequenos ditadores e aprendam a ler os sinais da História. Se há problemas com a lei, sigam os ensinamentos dos Trabalhadores do Comércio e “chamem a polícia”. Não deem borlas à xenofobia.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Ruas, vielas e caminhos

    Ruas, vielas e caminhos

    O primeiro Deus atravessou o limiar daquele bar escuro e hesitou frente à Viela da Fonte da Caganita. Sabe Deus que caminhos com nomes de eventos, e não de pessoas, aportam uma carga demoníaca pesada. Ainda mais em entroncamentos. É sabido.

    O escuro do bar espalhou-se, de dentro para fora, pelos céus e, sobre as nossas cabeças, trovejou implacavelmente. Encolhi-me e encostei-me à perna dele, não por medo, mas frio e desconforto. Aí viria a cheia para engolir bocados, quatro cavaleiros a cavalgar em cada nuvem, o dilúvio a limpar as serpentinas de percursos palmilhados, as paredes de farelo a esboroar, gritos histéricos de incautos, os chalupas de galochas no alto da Rua do Rixixi a ver as ondas apoiados em cajados, aguardando a ascenção, crentes que a sua consciência os salvaria antes de serem sorvidos.

    Coitados.

    silhouette photography of street

    Negacionistas a rebolar na lama, adolescentes dopados com ansiolíticos numa canoa a bater com os remos em afogados “A culpa é tua, a culpa é tua! Como te atreves?!”

    Enfim, o caos. E o primeiro Deus manteve-se observador e não me enxotou. Havia uma serenidade no seu comprido casaco negro de fazenda que era boa de colher. O país de Viriato julgava-se por ele escolhido para escapar às águas, sabíeis vós, lusitanos, que não serviriam para mais do que bancada sobranceira ao apocalipse? É sabido que nada escapa, sabe Deus que limpar sem levantar o tapete é batota. Seus batoteiros.

    Também nada há de agradável na margem dos rápidos, sabemos que a água pode galgar num ápice, o que me restava naquele cantinho era decidir-me por galochas, canoas ou lama, pouco mais, na verdade. Desta vez ninguém fez a arca, meteram-se todos os espertalhões debaixo de terra.

    Energúmenos.

    Por alguma razão os dilúvios são a melhor escolha para limpeza, escusam de se enfiar em tocas que só se vão escapar as bactérias na orla da exosfera, a enxurada infiltra-se em tudo.

    man in black crew neck t-shirt sitting on black couch

    E já que estamos no país das ruas, vielas e caminhos que falam dos momentos, olhei o primeiro Deus, sem lhe largar a perna, e perguntei “Afinal onde está a Irmã Lúcia? Aquela que dizia para uns senhores consagrarem a Rússia? É que os chalupas disseram que a senhora foi trocada! E, de facto, que a carinha laroca dela mudou muito, mudou! Não sei se será hábito cirurgia plástica em mosteiros, não me parece!

    O primeiro Deus sorriu, pareceu até conter uma gargalhada, ignorando-me e mantendo a vigília. Amuei, carreguei o sobrolho como garota e bufei. Se fosse sensata largaria a fazenda negra e tinha antes montado refúgio, em tempos idos, na Rua Quebra Cus. Mas aquilo dos três meses de inferno e nove meses de inverno não me apaziguou, certo é que as pessoas fogem de quebrar as costas, ou os cus, ou as almas em rochas e ferro, e dentes também, além Douro, por uma razão, a salto até, pois num salto largo de lá fugiram todas as gentes.

    O que não tem remédio, remediado está.

    Ninguém quer na verdade falar sobre os retornados, insistem em amuos bufados em esquinas enquanto um dos reis que vai nu fala em reparações históricas. Como se a história fosse reparável. Como se fosse assim nau de mastro quebrado, que com os lacinhos das inaugurações bem atado até se põe de pé de novo, como se as nações de hoje devessem algo pelas nações de ontem. Porque se formos a secar o dilúvio de tristezas com as dívidas, sabe Deus onde é que isso vai parar. Qual o limite. Qual a nação (e o que é isso?)

    desk globe on table

    Existem nações refúgio? Em 2020 quase achamos que sim, na Suécia não venderam novos normais com a mesma ganância. “Isto é como uma guerra” disse o rei nu.

    Guerra, é o que estes reis de realejo inventam, na pausa da casa de banho, com as calças nos tornozelos. Patético.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • No PÁGINA UM, “todos” não são oito em 17

    No PÁGINA UM, “todos” não são oito em 17


    Hoje, o Correio da Manhã – pertencente à Medialivre, o grupo de media mais sólido e ambicioso de uma imprensa nacional em estado comatoso – anunciou, em parangonas: “CMTV entrevista todos os cabeças de lista” às eleições europeias do próximo dia 9 de Junho.

    Pensei, por momentos, que a Hora Política do PÁGINA UM – que nas últimas legislativas propõe entrevistar todos os líderes dos 24 partidos inscritos no Tribunal Constitucional, falhando apenas cinco – tinha dado frutos. E que, assim, órgãos de comunicação mainstream corrigiriam uma linha editorial claramente discriminatória. Afinal, o jornalismo tem uma obrigação especial na consolidação da democracia, que não passa apenas por garantir o princípio de “uma pessoa, um voto”. A imprensa deve também garantir a liberdade de expressão e a liberdade de oportunidades, pelo menos numa base de equidade.

    view of stadium interior

    Mas, afinal, desenganei-me rapidamente. A CMTV – e presumo os outros órgãos de comunicação social quer da Medialivre quer dos outros grupos de media – considera que “todos os cabeças de lista” são afinal apenas oito dos 17 que lideram as listas dos partidos e coligações que constam no boletim de voto para o Parlamento Europeu, a saber: Sebastião Bugalho (Aliança Democrática), Marta Temido (PS), Jião Cotrim de Figueiredo (IL), Fidalgo Marques (PAN), Francisco Paupério (Livre), Catarina Martins (BE), João Oliveira (CDU) e António Tânger Corrêa (Chega). São os ‘oito magníficos’; os outros nove não interessam para os media mainstream.

    Sou o primeiro a compreender que não se mostra muito apelativo entrevistar determinados candidatos: o próprio PÁGINA UM constatou isso em muitas das entrevistas da HORA POLÍTICA nas legislativas de Março. Os pequenos partidos não ‘dão’ muitos cliques – mas essa não é a condição principal para se definir uma linha editorial. No jornalismo, há obrigações que devem ser assumidas até para agradecer ao tal “25 de Abril Sempre”. A democracia vale sobretudo por aquilo que se transmite, pelas acções concretas – e a comunicação social não deveria transmitir atitudes de discriminação; não é digno para quem herdou a liberdade de expressão e de informação de um punhado de heróis no longínquo 1974. Ou só conta evocá-los, para descansar consciências, quando, uma vez por ano, se desce a Avenida da Liberdade de cravo na mão, sendo-se hipócrita nos restantes 364 dias do ano? Ou 365, em anos bissesxtos.

    Não ouvir todos, ainda mais em eleições europeias, é mesmo discriminação – e, ainda por cima, por falarmos de comunicação social, significa também manipulação da opinião pública com influência eleitoral, porque condiciona a divulgação de ideias distintas dos partidos tradicionais, daqueles que andam a fazer crescer ideologias populistas.

    Com efeito, nestas eleições europeias já nem se pode aplicar os ‘argumentos’ aduzidos pela imprensa mainstream para as eleições legislativas: beneficiar apenas os partidos com representatividade parlamentar, e meter os restantes tudo ao molho com uma cobertura de campanha minimalista. Afinal, actualmente, no Parlamento Europeu tanto a Iniciativa Liberal como o Chega não possuem representantes – e mesmo o Pessoas-Animais-Natureza (PAN) deixou de ter o seu com desvinculação de em Junho de 2020. Aliás, nas eleições europeias de 2019, o Livre teve apenas 1,83%, ficando mesmo atrás da Aliança (1,86%), e a Iniciativa Liberal teve somente 0,88%, atrás ainda do PPM.PPV/CDC (1,49%) e do Nós, Cidadãos (1,05%).

    Se considerarmos os resultados das últimas eleições legislativas, e sabendo-se que a eleição de um eurodeputado exige em redor de 4,7% dos votos nacionais, apenas parece certo que sejam eleitos representantes no Parlamento Europeu da Aliança Democrática, do Partido Socialista, do Chega, da Iniciativa Liberal e do Bloco de Esquerda, como o PÁGINA UM mostrou em Março passado. Para conseguirem eurodeputados, a CDU, o Livre e o PAN terão de conseguir muito melhor do que nas legislativas. Ou seja, há muitos partidos que, do ponto de vista de uma potencial representatividade no Parlamento Europeu, estão ao mesmo nível da generalidade dos chamados pequenos partidos, onde até se destaca o ADN que se apresenta com a mediática Joana Amaral Dias.

     Ora, numa situação destas, e mesmo que essa tarefa seja hercúlea para o PÁGINA UM – com uma estrutura financeira e de recursos humanos reduzidíssima, com apenas dois jornalistas seniores –, não podemos deixar de encetar a segunda edição da HORA POLÍTICA, propondo apresentar entrevistas a todos – e este “todos” não é a versão do Correio da Manhã – os cabeças de listra dos 17 partidos e coligações a votos em 10 de Março.

    white red and green map

    Os convites estão a ser já endereçados – e contamos divulgar a primeira no dia 21 deste mês, com a derradeira a ser publicada no dia 6 de Junho.

    Este é, confessamos, um esforço em prol da democracia que poderá afectar a nossa produção habitual, mas há coisa que têm de ser feitas pelo PÁGINA UM, quando outros, com mais recursos, as poderiam e deveriam fazer, mas não fazem. Foi essa também uma das razões fundamentais para o nascimento deste projecto jornalístico independente, que depende dos leitores.


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  • Estado: uma instituição governada por psicopatas

    Estado: uma instituição governada por psicopatas


    Quando ousas expôr crimes, deves concluir que estás sob o jugo de déspotas. Quando honras a tua voz interior, erguendo-a contra as estruturas do Estado, revelando as suas falhas e corrupções, transformas-te, aos olhos desses déspotas, num adversário perigoso a ser neutralizado.

    Quando aqueles ao leme do Estado, desejando apenas a tua subjugação e servilismo, recorrem à distorção da verdade, à manipulação subtil e à propaganda insidiosa, então não apenas governam sobre ti como tiranos, mas também como psicopatas insaciáveis.

    Quando manifestas que imposto é roubo, que equivale a um acto vil de subtracção, fundamentado na força coerciva exercida sobre a tua pessoa, mediante ameaças de severas sanções ou até mesmo a privação da tua liberdade, e és prontamente rotulado como insensato, como alguém que, de forma egoísta, põe em risco o suposto bem colectivo, significa que és um inimigo do Estado.

    Quando enaltecem o destino nobre dos recursos que te são subtraídos, justificando tal confisco com a promessa de erguer hospitais, escolas, estradas e jardins, ou até mesmo de te prover amparo em momentos de adversidade, como o desemprego ou a velhice, revelam que zombam da tua credulidade e te consideram um mero néscio, um tolo carente de discernimento.

    Quando ousas questionar a moralidade do assalto ao teu bolso, assumindo directamente tais louváveis despesas, és prontamente desacreditado; insistem, com desfaçatez, que somente uma instituição “benevolente” e “justa” como o Estado seria capaz de tal proeza.

    Quando te asseguram que a expropriação coerciva dos frutos do teu trabalho é para o teu próprio bem, deves reconhecer a presença de uma máfia profundamente desonesta; afinal, até um monarca medieval, ao praticar semelhante usurpação, ia além, tomando para si não apenas a tua riqueza, mas também a tua honra, secundado por milhares de soldados, demonstrando, assim, uma honestidade brutal, mas muito mais cristalina que o presente estado de coisas.

    man in black jacket standing near green wall

    Quando te sugerem que se todos os cidadãos cumprissem com a sua “quota-parte”, talvez fosse viável reduzir a voracidade do confisco sobre a tua pessoa; deves simplesmente compreender que estão claramente a menosprezar a tua inteligência, tratando-te como um tolo incauto. Afinal, ao longo de décadas, a voracidade do braço estatal tem sido insaciável, mergulhando cada vez mais fundo nos teus bolsos, numa escalada incessante de expropriação.

    Quando te aludem que uma certa empresa é tida como “estratégica”, fundamental para os interesses nacionais, é imperativo observar através da cortina de retórica, pois tal adjectivação muitas vezes encobre uma verdade sombria: trata-se, na realidade, de um abismo financeiro, um vórtice, onde o “nosso dinheiro” é despejado directamente nos bolsos dos comparsas, correligionários e aliados dos facínoras que detêm o poder.

    Quando te “prometem” ou “dão” casas, seguros e viagens “grátis”, sem nunca reconhecerem o rebanho que foi vilipendiado, humilhado e espoliado para possibilitar tais benesses, deves perceber que estás diante de uma fauna de psicopatas narcisistas, destituídos de qualquer traço de empatia pelo próximo.

    Quando te manifestam preocupação com a “despesa fiscal”, que não é mais que um alívio do fardo sobre os teus ombros, compreende que estás diante de uma horda de malfeitores desprovidos de escrúpulos, cuja falta de pudor não tem limite.

    pink pig coin bank on brown wooden table

    Quando, na tua busca por transparência, indagas: “Como é que sei que o Estado gasta bem o dinheiro que lhe damos?”. Se te é retorquido com desdém: “Simples, basta consultares o Orçamento de Estado, onde diz todo o dinheiro que o Estado recebe e como vai ser usado para ajudar (!) todos os cidadãos, causas ou empresas. Até o podes encontrar na Internet!”; nesse caso, podes ter a absoluta convicção de que és apenas um entre a multidão, tratado com a mais profunda displicência pelos detentores do poder. Na verdade, riem-se a bandeiras despregadas da tua inocência e estupidez.

    Quando o Estado, valendo-se dos recursos que te subtrai de forma arbitrária e criminosa, utiliza-os para doutrinar os teus filhos com o intuito de perpetuar a subserviência, o desrespeito e a pilhagem que também afligem a tua condição, através de obras literárias tão indignas como a “Joaninha e os Impostos“, tens a certeza não apenas da tua própria sina como mero rato enjaulado a correr como um louco numa roda, sustentando parasitas desprovidos de escrúpulos, mas também reconheces que a tua descendência está fadada a integrar-se nesse ciclo vicioso em breve.

    Quando o Estado, sob a égide de uma suposta ameaça de um “vírus” mortal, embora não testemunhes mortes ao teu redor, insiste em prender-te no domicílio, em fechar o teu negócio, em impor-te o uso de uma humilhante fralda facial, em proibir a frequência dos teus filhos na escola, em forçar-te a abandonar os teus avós à própria sorte, em proibir-te de te deslocares ou viajares, tudo em prol da promoção de um produto milagroso e salvífico que deves aceitar coercivamente em nome do “bem comum”, que proporciona ao mesmo tempo lucros pornográficos à casta parasitária que te governa, é manifesto que perderam todo o respeito pela tua dignidade. Não és senão gado, destinado a ser pastoreado e subjugado.

    herd of sheep on green grass field during daytime

    Quando te exigem o apoio a um regime corrupto e totalitário, em nome da “democracia” e da “liberdade”, mesmo que esse regime cerceie a liberdade de imprensa, detenha oponentes políticos e legalize a lavagem do dinheiro que envias directamente para os bolsos dos cúmplices e aliados, fica claro que te consideram a ti e aos teus descendentes como meros peões sacrificáveis, prontos a serem escravizados pelo Estado no momento que lhes convier.

    Quando o Estado, por meio do seu Banco Central, decide aumentar a quantidade de moeda em circulação, impondo-te o seu uso por meio de leis de curso legal e roubo exclusivo nessa moeda, enquanto permite que os seus comparsas nos bancos por si supervisionados inflacionem desmesuradamente tal moeda, concedendo, desta forma, vantagens indevidas à casta parasitária, que adquire tudo em primeiro lugar e a preços não inflacionados com crédito do nada, e ainda tenta convencer-te de que este roubo silencioso surgiu do nada ou que foi o resultado de conflitos militares distantes e irrelevantes para a tua vida quotidiana, é um sinal claro de que almejam despojar-te de tudo. Tanto, que até possuem uma divisa para tal enxovalho: “Não terás nada e serás feliz”!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Lembram-se? Continuamos aqui as contribuições deste mês para a grande charada que vos sugeri o mês passado a título de novíssimo ensaio científico: o que é que estabelece pontes tão estreitas entre o Ornitorrinco e o Urso Polar?

    Deixámos para trás os Ornitorrincos ocultos debaixo de água, iguaizinhos a outros tantos Ursos Polares, a caçar tudo o que precisam de comer por dia e com sistemas, também remeniscientes dos que existem no Urso Polar, de  blindar olhos, ouvidos, e narinas, de cada vez que voltam a mergulhar.

    Mas então, se debaixo de água não vêem, não ouvem, nem cheiram – como é que se alimentam, por muito que andem por ali a cirandar durante  doze horas?


    A forma de caçar do Ornitorrinco foi outro ensaio ousado da Natureza que se revelou muito bem sucedido. E, como costuma acontecer nestas aventuras, o monotrémato semi-aquático não foi o único bicho onde a evolução testou o potencial de sucesso do sistema: depois do mergulho, com os orgãos dos sentidos bloqueados automaticamente, estas criaturas detectam as suas presas, tanto animais como vegetais, através de um radar semelhante… ao dos morcegos[1].

    Pois, morcegos.

    Nada a ver.

    Ora toma que ensaio é ensaio e onde corre bem já não se mexe.

    brown and black bat opening mouth

    No caso específico do Ornitorrinco, o radar vem de centenas de células altamente especializadas do seu famoso bico de pato, que detectam as ondas de energia eléctrica que qualquer ser vivo emite, sobretudo quando está em movimento, mesmo que esse movimento seja só tentar esconder-se dentro do lodo e depois ficar lá muito quietinho. O radar dos monotrématos[2] é de tal forma preciso que os entendidos lhe chamam “o sexto sentido.”

    Os animais não costumam ter sextos sentidos.

    Será porventura que os Ursos Polares…?

    Faça-lhe justiça desde já: o Urso Polar também passa vários minutos debaixo de água nas suas expedições de caça, e tem vários mecanismos específicos que lhe permitem fazer proezas submarinas que mais nenhum mamífero caçador de focas faz. Mas não, desta vez a charada não vai por aqui. O Urso Polar não caça com radar. Tem outros truques na manga. Lá iremos.

    Agora, e antes de mais nada, acalmem-se por fim os ânimos e vamos por fim à pequena lista de tudo o que combina com os patos. Se o pressuposto desta grande charada estiver correcto, mais cedo ou mais tarde o que tem a ver com os patos há de ter a ver com o Urso Polar.

    Os Ornitorrincos têm bico de pato[3]. E, nos dedos das patas da frente, possuem uma membrana interdigital destinada a facilitar a natação, que é também igual à dos patos[4]. E note-se que todo este conjunto da pata e do pé é por regra completamente preto[5], o que o torna mais igual ainda ao que os patos ostentam como maquinaria de grande classe para nadar durante horas se fôr preciso[6].

    Outra característica dos monotrématos que lembra os patos é a sua cobertura: faz-nos logo recordar a brilhante expressão portuguesa “água em pena de pato”, que usamos quando queremos referir-nos a qualquer ideia que, por maiores e mais inteligentes que sejam os nossos esforços, argumentos, e metáforas, não conseguimos nem por nada meter na cabeça dos nossos alunos, ou dos nossos filhos, ou dos nossos cães, ou mesmo dos nossos maridos[7]. É que, embora sejam mamíferos, e portanto estejam cobertos de pêlos, e não de penas, também os Ornitorrincos têm o corpo revestido de um óleo que repele a água, à semelhança dos patos.

    Não escondendo nada neste jogo, note-se desde já que o pêlo da lontra, sobretudo o da lontra-marinha, outro mamífero que também passa a vida dentro de água, está igualmente preparado com grande engenho para afastar as águas. O caso mais interessante é sem dúvida o da lontra-marinha americana[8], destinado maioritariamente a proteger os animais das águas gélidas do Pacífico Norte junto à costa da Califórnia mergulhada nas mesmas brumas que constantemente engolem San Francisco, sobretudo durante os meses de Inverno. Esta lontra-marinha tem o pêlo mais denso de todos os mamíferos terrestres[9], mil vezes mais denso do que o cabelo humano, semeado a uma média de um milhão de pêlos por polegada. E, como não podia deixar de ser, também este pêlo formidável está revestido de óleo hidro-repelente. Aliás, é exactamente esse óleo que torna os casacos, os chapéus, ou as malinhas de pele de lontra, todos sempre tão lustrosos e macios, tão assombrosamente resistentes ao tempo. O que faz com que sejam vendidas pelo valor mínimo de cem dólares por lontra sem defeito no corte[10].

    brown and black seal in water

    Mas, lá por ser tão fino na passerelle, o óleo das lontras-marinhas não é um óleo tão potente na Natureza como o dos Ornitorrincos, que saem da água praticamente secos. Isto é porque há certas coisas que as lontras não possuem, por muito que se tenham adaptado à sua vida marinha com aquela estranha dieta estrita de ouriços do mar que elas próprias partem com dois seixos enquanto nadam de costas, absolutamente encantadoras[11]: nenhuma lontra do mundo, nem nenhum outro mamífero do mundo dado a passar grandes temporadas na água, possui as duas camadas de pêlo do ornitorrinco. Estas duas camadas cumprem duas funções diferentes. A camada externa repele a água, e a camada interna mantém uma câmara de ar sempre presente entre a pele do animal e o seu pêlo.

    Meninos, para que é que isto serve?

    Ah, isto é incrível.

    E, por incrível que pareça, não deixa de ser verdade: esta dupla face é pura qualidade de vida. Não implica nenhum esforço, está sempre ali, e serve para o Ornitorrinco estar sempre seco.

    Sequinho sequinho, sequinho sequinho. Com esta dupla face nunca molha o rabinho.

    Desculpem a leviandade mas não resisti. Eu sei que parece publicidade a fraldas para bebé. Agora olhem, façam publicidade com esta história do Ornitorrinco e vão ver se não vendem fraldas aos milhares.

    Retomando a seriedade que a charada merece.

    É o Rei, sem sombra de dúvida. Nisto de ser um mamífero semi-aquático não há que negar que o Ornitorrinco é o rei. Mas, já que veio a propósito: querem inserir aqui outra camada de explorações evolutivas?

    towels hanging on clothes line

    O pêlo imensamente denso da lontra-marinha cobre o animal para o proteger das águas gélidas do Pacífico. Sem dúvida. E, quando adaptado às pessoas, é indisputácel que esse mesmo pêlo nos cobre de casacos flexíveis, leves – e muito quentes. Mas e na Natureza como é, a manta térmica da lontra é mesmo o pêlo?

    Não é bem.

    Sabem por que é que é um pêlo muito grosso e muito rugosso, que a lontra usa o mais emaranhado possível? Porque este é o seu truque para estar sempre a capturar, mergulho após mergulho, ouriço após ouriço, mais e mais e mais bolhas de ar, que as rugosidades do pêlo, sempre em movimento quando submersas, empurram automaticamente para baixo: por baixo de toda aquela floresta, junto à raiz, a pele da lontra-marinha está quase seca. E, enquanto não estiver toda molhada, a lontra-marinha nunca estará toda arrepiada.

    Há um padrão.

    O sistema da lontra-marinha é mais rudimentar do que o do Ornitorrinco, estes dois nadadores vivem nos antípodas um do outro e nunca se cruzaram, mas é evidente que há um padrão.

    Quanto ao Urso Polar…

    O Urso Polar molha-se, mas não se molha assim tanto como isso; e a seguir, quando se instala a devorar a sua foca em cima do seu bloco de gelo, seca logo num instante. Claro que também tem o pêlo oleoso. Ainda por cima, esse pêlo por onde a água escorre depressa fica exposto à secura dos ventos do Àrtico assim que aquelas trezentas toneladas saiem da água.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    As trezentas toneladas contam. Primeiro que um mamífero desta envergadura sinta frio é preciso molestá-lo com águas muitíssimo mais frias do que as que têm por emblema umas lontras-marinhas do tamanho de um esquilo. E, para não deixar molhar um bicho acostumado a ambientes tropicais que no entanto vive dentro de água, claro de duas camadas de pele fazem todo o sentido.

    São tantas coisas tão bem feitas que as pessoas, pronto – a certa altura já não houve mesmo outro remédio senão inventar Deus.

    E esta foi a nossa grande lição de modéstia.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sistema de radar esse que, por seu turno, serviu de base à invenção do radar dos aviões, mas enfim. Isso já não são invenções da Natureza nem tirocínios pelo fogo da Selecção Natural.

    [2] Embora não capturem as suas presas na água, os únicos outros monotrématos que existem hoje, as misteriosas Equidnas, detectam as formigas e térmitas de que se alimentam através de um radar idêntico.

    [3] O tal bico onde estão alojadas as tais centenas de células do sexto sentido.

    [4] As patas de trás e a cauda são antes usadas como leme. Nos machos, há uma glândula de veneno injectável junto dos dedos de trás: embora seja raríssimo encontrarmos mamíferos venenosos, este é tão eficiente que mata cães e gatos em poucos minutos. Em terra, a membrana interdigital da frente retrai-se, para facilitar a corrida e a luta.

    [5] Claro que há excepções, e que há diferenças entre as excepções. Isto é Biologia, não é Política.

    [6] Os patos-bravos que fazem migrações mais longas podem ser obrigados pelas tempestades a pousar sobre as ondas. E, aí, em péssimas condições de navegação, podem mesmo nadar durante horas até aparecer terra à vista. Embora a história contada em A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA pela escritora sueca laureada Selma Lagerloff seja obviamente um trabalho de ficção, a migração dos patos-bravos aqui descrita não é ficcional de todo. A autora estudou-a cuidadosamente antes de escrever o livro, descobrindo ela própria fenómenos de resiliência e capacidade de corrigir rotas na água que desconhecia anteriormente.

    [7] Peloamor de Deus, não está aqui em causa nenhuma assimetria mal-intencionada. Falo daquilo que os maridos não entendem apenaas porque, como creio ser evidente e dispensar argumentos explicativos, nunca fui um marido a tentar desesperadamente explicar à minha esposa fenómenos que ela não consegue entender, já que o meu conhecimento lhe escorre pelas paredes exteriores do cérebro sem nunca conseguir lá entrar dentro, exactamente como “água em pena de pato”. Alguns exemplos: “querida, um bife do lombo e um bife de alcatra não são a mesma coisa só por ambos se chamarem bifes”; ou “querida, a tabuada dos quatro não é igual à tabuada dos oito só por ambas se chamarem tabuada”; e assim por diante.

    [8] Ou, pelo menos, sem dúvida o caso raro estudado com mais avidez. Há milhares de investigadores nos Estados Unidos, financiados por milhões de dólares. E estas lontras são umas completas malucas.

    [9] E também dos poucos semi-aquáticos que existem, pensando bem nisso.

    [10] Hoje em dia, a caça à lontra está severamente condicionada por cada estação, uma vez que o animal esteve quase extinto em 1900 por causa da febre dos casacos de peles. Os estilistas que querem construir modelos grandes preferem ter a segurança de lontras criadas em viveiro, que todos os anos lhes dão uma noção muito clara do que têm ao seu dispor. Dramas destes, ao menos, não infernizam a vida dos Ornitorrincos. Alguma vantagem haveria de ter ser-se yum bicho feio com um pêlo horrível.

    [11] Atenção, que este encanto é muitíssimo enganoso, porque as lontras-marinhas estão no topo da lista dos animais em que já se observaram rotinas mais sádicas. Por exemplo, roubar bebés-foca às mães que se distraem por um minuto para depois poderem andar a brincar com eles no meio das ondas, atirá-los ao ar, voltar a apanhá-los, deixá-los secar ao seu lado quando estão em terra – e manter estas práticas sempre com o mesmo bebé-foca durante uma semana, ou mesmo dez dias, obviamente muito depois de o brinquedo já estar morto.


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