Joana Amaral Dias, que se apresenta como psicóloga e comentadora televisiva, decidiu, aos 51 anos, regressar à política depois de, garante, ter “recebido vários convites de partidos para concorrer às eleições europeias”.
Uma verdade um tanto exagerada, mas… verdade.
Na realidade, tinha sido convidada pelo ex-Partido dos Reformados, que acabou por mudar de nome, por “exigência” dela, sendo que depois optou por se candidatar pelo ADN.
Desde logo anunciou, numa entrevista ao Sapo, uma série de explicações para a sua decisão. Disse que por não poder ir a solo escolheu o partido com cujas ideias mais se identifica, para concorrer às eleições mais importantes, não apenas porque é em Bruxelas que se tomam as decisões, mas porque serão estes os anos que vão definir a Agenda 2030, que tem sido imposta aos cidadãos.
(Fotografia: Júlia Oliveira)
E apontou medidas originais para a campanha:
“Eu sempre fui pela acção direta, por mostrar como as coisas se passam – e vou continuar esta campanha com momentos muito surpreendentes para os portugueses, nesta linha de estar na rua a mostrar como é que, de facto, as coisas se passam. Vamos fazer a campanha mais criativa alguma vez vista. Temos acções preparadas espectaculares, mas todas elas respeitando totalmente aquilo que são os bens materiais e a integridade física de toda a gente“.
E prometeu ainda, se as televisões não voltarem atrás, como não voltaram, na decisão de a chamarem para debates, que então será ela a comvidar os adversários. “E só não virão os medricas”, garantiu já.
Quanto à primeira dessas medidas começou a surpreender logo na primeira frase da sua apresentação ao negar que o ADN fosse “um partido de extrema-direita” e salientando que “eu sou exactamente a mesma, não houve nenhuma mudança brutal no meu caminho. Há quem diga que eu quero um tacho, mas eu estou é a arriscar muito“.
Fui ouvir, de novo, algumas declarações de Bruno Fialho, o presidente deste partido, para perceber porque estava eu convencido do contrário e se deveria corrigir a minha opinião.
Revi uma entrevista televisiva onde o líder mostrava o seu próprio ADN em relação à imigração.
Explicava ele:
“Só deviam deixar entrar em Portugal imigrantes que:
1º – Tivessem um seguro de saúde, porque não poderiam utilizar, nos primeiros seis meses, o SNS.”
2º – Tivessem capacidade financeira para estarem cá.
3º – Fossem portadores de contratos de trabalho.”
Tudo medidas que ele considera que qualquer imigrante só não consegue por má vontade e gente complicada, pensa(?), deve ser proibida de entrar neste País de gente simples.
Depois apresentava uma única solução para acabar com o que considera serem os principais problemas do País:
“Os imigrantes, os deputados que escrevem leis a apoiá-los, os militantes da extrema-esquerda, os amigos do Lula em Portugal, deveriam ser, todos, enviados para o Tarrafal.”
Nem o facto de Tarrafal ficar num outro País, soberano e amigo, onde provavelmente não o deixariam entrar a ele, por medidas de higiene, o impediu de considerar esta sua “ideia” como excelente e democrática.
Acabou mesmo por esclarecer que as suas palavras não correspondem a “xenofobia, nem discriminação”, mas bem pelo contrário, eram sinais de “bom senso”.
Fiquei esclarecido e passei à fase dos debates.
Tal como Joana Amaral Dias, eu e dez milhões de portugueses pensavam, as televisões só a convidaram para os debates com os pequenos partidos.
Só que a Candidata é uma mulher de armas e uma “desfeita” nunca ficará sem resposta.
Daí que tenha decidido, levando Bruno a tiracolo, invadir a RTP para se dirigir ao estúdio onde estavam os representantes dos quatro maiores partidos, para falar em nome do seu.
É esta a diferença entre as mulheres portuguesas: Joana Amaral Dias a forçar a entrada numa sala de onde Marta Themido queria fugir a sete pés, atendendo a que teria de debater com Sebastião Bugalho (PSD), António Tânger Corrêa (Chega) e João Oliveira (CDU).
O debate, apesar de tudo, segundo me disseram, correu com a habitual normalidade.
A verdade é que estou de acordo com Joana Amal Dias quando esta diz que a RTP deveria ser punida.
Ter transmitido, em directo, um debate que fez os portugueses, que não adormeceram frente ao écran, mudar de canal, em vez de optar pelas imagens da peixeirada entre a Candidata invasora e os funcionários da casa, é imperdoável.
Se a candidata prometesse que, durante todo o período do mandato, ficaria por Bruxelas, era menino para votar nela.
Vítor Ilharco é assessor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Sei o que é uma notícia. E sobretudo uma ‘cacha’, em gíria jornalística. E uma ‘cacha’ é uma ‘cacha’ independentemente do ‘nível’ do jornal ou do jornalista que a produz, sendo certo que é mais difícil sacar uma se se for bom jornalista de um jornal de pequena dimensão, e é mais fácil sacar uma para um jornal de grande dimensão, mesmo que se seja um jornalista medíocre. Mas um bom jornalista consegue sempre sacar ‘cachas’, sendo essa a essência do bom jornalismo, que costumava ser elogiada e reconhecida inter pares.
Manda assim a ética – cada vez mais escassa nos meios de comunicação social – que os camaradas (jargão jornalístico que nada tem de ideológico) ao se aperceberem de uma ‘cacha’ da concorrência, mesmo se de um pequeno jornal digital independente, a possam difundir – ou, pelo menos, não a devem ignorar para ‘memória futura’ para eventuais enquadramentos.
Sei bem a irritação que eu, e particularmente o PÁGINA UM, tem causado no sector dos media nos últimos dois anos e meio. Temos revelado muitas promiscuidades, desvelado os negócios escabrosos e a aflita situação financeira dos principais grupos. Somos, bem sei, uma espécie de ‘lembrete’ de consciência daquilo que deve ser o jornalismo. E isso mostra-se, tem-se mostrado fatal, na hora de repercutir algumas evidentes ‘cachas’ do PÁGINA UM.
Não tenho, assumidamente, uma qualquer mania das grandezas, mas só nos últimos dois meses conto, sem qualquer dúvida, uma dezena de notícias exclusivas do PÁGINA UM que seriam ‘cachas’ se fossem feitas por qualquer jornalista num qualquer órgão de comunicação social.
Uma dessas ‘cachas’ do PÁGINA UM foi publicada no passado dia 13, revelando que, através da sua empresa Leitek, um antigo capitão de fragata, condenado em 2008 por corrupção passiva, recebeu uma autorização do Ministério da Defesa em Setembro passado para exercer actividades de comércio e tecnologias militares, apesar de uma lei de 2009 proibir expressamente, por razões de idoneidade, a obtenção de uma licença a quem tenha sido condenado, em Portugal ou no estrangeiro, por diversos crimes graves.
Notícia do PÁGINA UM de 13 de Maio sobre uma licença concedida a uma empresa cujo único sócio fora condenado por corrupção passiva.
Este caso, nada tinha a ver com uma notícia do Correio da Manhã de 5 de Março, que revelara que uma empresa da Zona Franca da Madeira recebera similar licença. No entanto, nesse caso, estava apenas em causa a ‘singularidade’ de uma licença após as eleições legislativas a uma empresa que tinha, no seu objecto social, a venda de imóveis. Contudo, nesse aspecto, a menos que houvesse cadastro do francês detentor da Softbox, nada existe de grande admiração, porquanto o gerente francês possui a patente de uma mira de arma, convenientemente registada desde 2020.
O caso da Leitek era, assim, um caso completamente à parte. Muito grave. Muitíssimo grave, tanto mais as ligações do seu único sócio, um ex-militar condenado por corrupção, com a China. Tudo estava na notícia.
Porém, a notícia do PÁGINA UM foi ignorada pela generalidade da comunicação social. E dos diversos partidos políticos. Silêncio absoluto.
Algo que, assim permitiu, ao Ministério da Defesa fazer uma ‘brincadeira’ aproveitando a inefável agência noticiosa Lusa, que difundiu anunciando uma auditoria após uma “averiguação preliminar” ter detectado numa alegada “amostragem restrita de processos considerados” o licenciamento “de uma empresa cujo sócio foi condenado em pena de prisão por crime” considerado incompatível com uma lei de 2009.
Nuno Melo, ministro da Defesa Nacional: alegou uma “averiguação preliminar” que, com base numa suposta “amostragem restrita de processos considerados” detectou um caso, sem o identificar, que encaixa na perfeição na Leitek, uma empresa denunciada pelo PÁGINA UM há 12 dias.
Por indesculpável ignorância ou má-fé, tanto a Lusa (a primeira a divulgar a auditoria) como a generalidade da imprensa não se incomodaram sequer a questionar o Ministério da Defesa Nacional sobre qual o caso concreto detectado, tanto mais que os despachos são públicos. Mas nem valeria a pena: a “averiguação preliminar” que levou a uma “averiguação preliminar” que, por sua vez, apura o caso da “empresa cujo sócio foi condenado em pena de prisão” encaixa-se, na perfeição, na ‘cacha’ do PÁGINA UM de 13 de Maio passado.
Na generalidade dos casos, a imprensa mainstream ignorou olimpicamente a ‘cacha’ do PÁGINA UM, e fez pior. Como sucede com as notícias do Público, do Jornal de Notícias, da SIC Notícias, do Diário de Notícias, do Observador ou da própria CMTV, ainda sugerem que esta “averiguação preliminar” está relacionada com a notícia do Correio da Manhã (que nada diz sobre um sócio condenado por corrupção) relacionada com a Softbox.
Um caso destes é pouco dignificante para os envolvidos. Para o Ministério da Defesa, que não quis assumir a ligação da auditoria à notícia do PÁGINA UM, e para os órgãos de comunicação social que ‘ostracizam’ o PÁGINA UM, transmitindo informação manipulada, errónea e deturpada para o seu público.
Concedo que este ‘modus operandi’ pode continuar a colher bons resultados a prazo. Por mais uma semana, um mês, um ano, ou até para sempre.
Na verdade, a falta de ética profissional pode ser bem-sucedida, porque, na vida real, o mal pode vencer o bem. Mas também na vida real, às vezes os maus procedimentos da imprensa são castigados pelos leitores – e a crise do jornalismo nos grandes grupos de media mostra uma tendência de perda de credibilidade.
Por isso, camaradas jornalistas: vamos acabar com esta palhaçada? Vamos passar, pelo menos, a assumir que, quando o PÁGINA UM fizer uma ‘cacha’, esta é uma notícia que, se tiver consequências políticas, não é ignorada?
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Na HORA POLÍTICA, o PÁGINA UM inicia hoje, e pela segunda vez este ano, um périplo democrático, propondo-se entrevistar todas os cabeças-de-lista às eleições para o Parlamento Europeu marcadas para o dia 9 de Junho. Começamos hoje, com a entrevista com Ossanda Liber, primeira candidata da Nova Direita, e seguimos diariamente m função da antiguidade, do mais ‘jovem’ partido até ao mais antigo (PCP, como representante principal da CDU).
Neste momento, além de Ossanda Liber, temos já gravadas as entrevistas a Duarte Costa (Volt Portugal), Márcia Henriques (RIR), António Tânger Corrêa (Chega), João Cotrim de Figueiredo (Iniciativa Liberal), Pedro Ladeira (Nós, Cidadãos), Joana Amaral Dias (ADN), Francisco Paupério (Livre), Gil Garcia (MAS) e José Manuel Coelho (PTP), estando agendadas já as de Rui Fonseca e Castro (Ergue-te) e Manuel Carreira (MPT).
Esperando agendamento, estão ainda preparadas entrevistas a Pedro Marques (PAN), Catarina Martins (Bloco de Esquerda), Marta Temido (PS), Sebastião Bugalho (AD) e João Oliveira (CDU).
Seremos, mais uma vez, o único órgão de comunicação a defender princípios democráticos básicos. Tal como hoje não se questiona o princípio “um adulto, um voto”, independentemente do estatuto e condição da pessoa, também se deve pugnar pelo princípio da igualdade de oportunidade, em que qualquer candidato detenha oportunidades similares aos demais para transmitir as suas ideias e propostas.
Seremos o único órgão de comunicação social a não achar aceitável que a imprensa – que tem uma dívida de agradecimento à democracia, pela liberdade de expressão que nos concede – promova activamente a discriminação de forças partidárias. E isso faz-se também, ou sobretudo, “eliminando” intencionalmente, do combate político e do conhecimento público, as ideias de alguns partidos reconhecidos pelo Tribunal Constitucional, por mais estapafúrdias que algumas sejam, apenas com base num falacioso e inconstitucional critério derepresentatividade social. Uma democracia assim não se rejuvenesce.
Pelo contrário, cabe à comunicação social (e aos jornalistas) lutar contra quaisquer actos ou medidas que cerceiem – ou censurem –, à priori, a igualdade de oportunidades. Em campanhas eleitorais, a imprensa tem responsabilidades acrescidas. Não deve olhar apenas para as audiências, para a comodidade ou para as preferências, ou para os interesses em manter o status quo. Durante uma campanha eleitoral, não ficaria mal que a comunicação social fosse sobretudo um “prestador de serviços” isento e independente sem olhar a credos nem grandezas – seria uma prestação de serviços ao público, mas esta legítima e necessária, por ser um penhor à democracia.
Lamentavelmente, na presente campanha eleitoral para o Parlamento Europeu, em confronto com as recentes eleições legislativas, a hipocrisia da imprensa mainstream – e o péssimo serviço que assim concedem à democracia – ainda mais se evidenciou.
Nas legislativas de 10 de Março, o critério da representatividade parlamentar foi usado genericamente pela comunicação social generalista para “eliminar” as oportunidades de uma dezena de partidos. Por serem pequenos, pequenos serão – parece ser essa a ‘lógica’ democrática. Ao não lhes dar sequer voz, a imprensa manipula desde logo a opinião pública, transmitindo que não têm qualquer credibilidade.
O mais caricato é que se o critério da representatividade para as legislativas fosse seguido para o Parlamento Europeu, então ter-se-ia de “eliminar” a candidatura do Chega, da Iniciativa Liberal e do Livre. E se o critério fosse as expectactivas de eleições para o Parlamento Europeu – onde é necessário um mínimo de 4,7%) face aos resultados eleitorais das recentes legislativas, então só se deveria ‘ouvir’ a AD, o PS, o Chega, a Iniciativa Liberal e, no limite, o Bloco de Esquerda.
Quebrar as amarras de uma democracia já coxa num dos seus fundamentos – a igualdade de oportunidades numa eleição – mostra-se assim fundamental, sobretudo porque está enraizado nas direcções editorais, a começar por aquelas que são de serviço público, como as do universo da RTP. E está enraizado sobretudo numa hipócrita Lei da Assembleia da República de 2015 sobre a cobertura jornalística em período eleitoral que até tem um lindo artigo intitulado “Igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas”, mas que funciona mais como justificação para manter fora do jogo democrático todos aqueles que não estejam no ‘sistema’.
Por esse motivo, a HORA POLÍTICA do PÁGINA UM não serve apenas para revelar o pensamento político e as propostas de todos os cabeças-de-lista ao Parlamento Europeu, tem também a clara intenção de ‘mostrar’ à outra comunicação social – dirigida por mui ciosos e escrúpulos jornalistas, muitos julgando-se paladinos da democracia – que, em período eleitoral, há mais do que notícias a dar; há princípios democráticos a defender e a transmitir. Mesmo quando existem mil e uma justificações a preceito para não defender nem transmitir esses princípios democráticos.
Se no PÁGINA UM, com um orçamento anual de poucas dezenas de milhares de euros, consegue destacar uma jornalista – a Elisabete Tavares – para fazer e publicar 17 entrevistas a 17 cabeças-de-lista, será que órgãos de comunicação social com milhões de euros de orçamento não conseguem também cumprir uma condição básica em democracia (igualdade de oportunidades)?
Claro que conseguem – a questão é não quererem.
Estão no seu direito, porque a liberdade editorial é sagrada, mas tornam-se jornalistas menores numa democracia que eles ‘empurram’ a ser menor.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Tal como por vezes acontece com alguns outros homens, aquele só ia precisar da passagem dos anos para conseguir converter-se num terrível desapontamento.
V.S. Naipaul
THE MYSTERY OF ARRIVAL
O meu novo romance, ANTARES, vai ser lançado na Feira do Livro no dia 10 de Junho. À histeria editorial própria destas ocasiões, com voltas e reviravoltas de datas e horas e pedidos constantes de material novo, junta-se o número peculiar de revisores que tenho que confrontar. É que, além das duas revisoras da EXCLAMAÇÃO[1], uma das quais acaba aliás de demitir-se e desaparecer sem deixar rasto num volte-face de telenovela bastante trágico dadas as circunstâncias[2], o Nuno Gomes[3] também reviu o texto todo à medida que o ia lendo, e o senhor a quem eu pedi que fizesse a apresentação do livro[4], que foi revisor literário em pequenino, não resistiu a revê-lo todo também mas à mão, e depois passou as suas notas ao Nuno. Perante tudo isto eu deveria estar tão concentrada no ANTARES que sonhava com ele à noite, como acontecia no Verão passado quando o par amoroso tripava em ácido montado na história que galopava para o fim. Nada que não pudesse acontecer mesmo a qualquer um de nós, porque, como toda a gente sabe, são impensáveis os sobressaltos da realidade tal como são imprevisíveis os caminhos que levam a Deus. Aliás, toda a organização do ANTARES gira em torno do famoso aforisma do Mark Twain
“a única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível,”
porque o romance é uma ficção absolutamente incrível, tão incrível que só pode ser realidade. E é aqui que sou engolida pelo meu próprio jogo[5], e coisas destas deviam ser proibidas, mas se fossem isso quereria dizer que quem controla a nossa vida somos nós mesmos, o que toda a gente sabe que é a maior falácia deste mundo, porque a nossa vida nos faz tropeçar nela própria sempre que muito bem lhe apetece. Enfim, o predador tornou-se a presa. E a concentração que consigo dedicar ao ANTARES é agora anedótica, depois de todo o amor com que fui alimentando o romance ao longo dos anos até, por fim, ter feito dele o que é.
Já vivo em Estremoz há mais de três anos. Já há mais de um ano e meio que o Sebastião vive comigo. Já ganhei um grande amor à chegada das andorinhas anunciando a chegada da Primavera, a todas as flores de todas as cores que então rebentam aqui a toda a volta do largo e no meu terraço também, do perfume inebriante das muitas ruas bordejadas por laranjeiras que ficam logo todas em botão, à cantoria feliz e leviana que toda a passarada faz do lado de fora das minhas janelas logo às seis da manhã, agora já dia claro e ainda fresco, quando me levanto para ir abrir a porta ao Sebastião que tem dias em que agora, com a cidade ainda desentupida da afluência de emigrantes e de famílias expatriadas que regressam de visita, é muito menino para só voltar a aparecer lá para as onze.
Já ganhei o gosto de aproveitar a manhãzinha para ir ao pão caseiro fatiado, ir ao café e trocar umas marradas com o Bruno pelo meio das semi-frases dos velhotes[6], ficar a ouvir sotaques e coloquialismos sem incomodar ninguém, voltar para casa e ver as notícias e sentir cada vez mais que não vivo naquele país de que aqueles senhores estão para ali a falar naquelas vozes todas iguais[7]. A América está suficientemente longe, com todos os meus problemas de saúde é pouco provável que ainda lá volte – mas, e até talvez por isso, lembro-me muito bem de todos os anos em que lá vivi, e continuo a ter um prazer muito grande em passar horas à conversa com as pessoas do meu antigo mundo americano. Mas Lisboa é diferente. Os meus últimos anos na capital foram tão maus que já mal me lembro de Lisboa. Aliás, vou a Lisboa o menos que posso. Se não estivesse a viver aqui, nunca teria conseguido escrever realmente o ANTARES a partir das primeiras vinte páginas desenhadas já há dez anos. Foi esta grande paz, e toda esta beleza à minha volta, que me permitiram levar até ao fim, com todas as suas implicações e desmultiplicações, a história da longa noite de amor muito explícito[8] entre a catedrática de sociologia que acaba de fazer setenta anos e a criatura misteriosa com a beleza de uma estátua renascentista do David que enfrentou Golias, esculpida em mármore e exposta num qualquer museu de luxo, que de súbito entra inopinadamente pela sua janela – tudo isto debruado a vermelho pelo brilho invulgarmente intenso de Antares. Uma história verdadeira, evidentemente. Estas noites só acontecem dentro do foro da realidade, uma vez que a ficção tem que ser credível. Como disse lapidarmente no século II o Padre da Igreja Tertuliano, a propósito dos mistérios da fé,
“Acredito porque é impossível.”
Agora imaginem outra história verdadeira que brutalmente se cruza com esta e parece rasgá-la ao meio como um raio de Zeus.
Estou eu a sentar-me na sala diante da mesa de apoio, no lugar onde as costas se sentem mais confortáveis e estou ao lado de uma das três janelas da casa com vista para a torre de menagem do castelo de Estremoz, que se recorta orgulhosamente contra océu durante o dia e brilha toda iluminada durante a noite exactamente por baixo do domínio de Antares no céu de Verão. Toca o telefone. Por essa altura, estava eu a recomeçar a rever as provas, já o telefone tocava muito, por causa de mudanças nas provas, alterações nas capas, escolhas de fotos, acertos de datas, e por aí em diante. Atendi logo. Ouvi uma voz masculina.
E caiu-me a alma aos pés.
Mesmo vinda de uns anos da minha vida que eu tinha esquecido por completo assim que comecei a viver em Estremoz, aquela voz da vida deixada propositadamente para trás, aquela voz de Lisboa – Santo Deus, aquela voz era uma voz que se reconhecia logo, e era a voz do Jorge.
“A Clara acredita que eu tenho muitas saudades suas?”
E não, nem sequer era por causa do assunto sem importância, alguma coisa esquecida, algum artefacto trazido por engano, não era o assunto inconsequente que a pessoa ainda podia rezar para que fosse. Era mesmo aquele Jorge da GNR, o senhor das cavalariças e não propriamente da cavalaria, a declarar, três anos e meio mais tarde, que tinha muitas saudades minhas. E, acto contínuo, a perguntar se não podíamos encontar-nos para tomar café.
“Ah, a Clara nem imagina a falta que me fazem as nossas conversas, a Clara era sempre uma pessoa tão inteligente, tão calma, tão sábia…”
Como foram as conversas entre o Jorge e o Senhorio depois da minha partida não sei, mas sei que o Senhorio nutria sérios sentimentos carnais[9] a meu respeito. Aliás, uma vez chegou ao ponto de atirar-me para cima da cama e aproveitar-se da minha surpresa para começar a dar-me um linguado, até que eu me levantei e lhe disse com um ar muito tranquilo que não se podia fazer aquilo[10]. Em consequência, ou pelo menos de acordo com os homens das obras que estavam lá sempre a entrar e a sair do prédio, nessa altura o Senhorio tinha uns valentes ciúmes do Jorge, que, ao contrário dele, partilhava a casa comigo. Não sei se o Senhorio alguma vez soube que o Jorge tinha uma tendência exasperante em repetir que eu e ele devíamos era juntar os trapinhos e ficar ali a ser muito felizes um com o outro naquele primeiro andar do Bairro dos Actores: dávamo-nos tão bem, éramos tão complementares, podíamos poupar tanto dinheiro, nunca mais nenhum de nós estaria sozinho, ficávamos com um quarto extra que podia ser o meu escritório, eu era tão bonita, ele não era nada de se deitar fora na cama…
… e eu nem queria acreditar.
O Jorge tinha aí uns quarenta anos, eu estava quase a fazer sessenta, pelo que fazia de conta de que não tinha percebido o inuendo, ria, e respondia
“oh Jorge, então mas o que é isso, não vê que eu tinha idade para eu ser sua mãe?”
A verdade é que, ainda não estava a viver em Estremoz nem há dois meses, e de repente me telefona o Senhorio num tom colérico, inicialmente sem eu perceber nada daquela cólera. Finalmente, depois de vários protestos de indignação, saiu-se com o que verdadeiramente lhe fazia doer:
“A Maria Clara não vê a extensão dos seus abusos, ou apenas, pura e simplesmente, não tem escrúpulos? Eu deixei-a estar à vontade, não vigiei as suas acções, e a Maria Clara aproveitou-se, aproximou-se, e fez do Jorge seu criado! Fez do Jorge seu criado! A Maria Clara fez do Jorge seu criado!”
Lembrei-me das horas perdidas a ouvir o Jorge, confortar o Jorge, aconselhar o Jorge, e desliguei o telefone.
O Jorge frequentava vários sites de engate mas corria-lhe sempre tudo mal. Depois ele sentia-se – sempre – muito só. E a seguir sobrava – sempre – tudo para mim. Ao fim destes anos todos, continuo a ter imensa dificuldade em dizer às pessoas que vão dar uma curva.
O Jorge saía às oito da manhã para estar no quartel da GNR às nove, e passava o dia a tratar dos cavalos e das cavalariças. Voltava às cinco, chegava às seis, tomava o seu duche, e depois dependia da altura do ano. No Inverno enfiava-se dentro de um babygro amarelo muito quentinho. No Verão envergava apenas umas bermudas verdes e pretas – e, como era muito barrigudo e muito peludo, o espectáculo não era nada gratificante. Foi no babygro amarelo, sobretudo, que nem as minhas irmãs nem os meus amigos acreditaram. Foi preciso irem lá a casa e verem-no naqueles preparos para lhes cair o queixo e me darem razão. O Jorge vinha-me sempre dizer que as minhas irmãs eram lindas, e que as minhas amigas eram encantadoras. Se fossem antes amigos, preferia fechar-se no quarto, bater a porta com força, e nunca dizer nada.
Isto sim, isto é a realidade. Tudo de tal forma tortuoso que em ficção nunca seria credível.
E continua.
Apesar de tudo, o Jorge foi a pessoa menos má com quem partilhei casas depois de voltar para Lisboa em 2018 e encontrar o mercado de aluguer de tal forma caro que só se aguentava alugar uma casa dividindo a renda com outras pessoas. Essas pessoas eram todas completas desconhecidas, e, não sei porquê, regra geral eram gente mal formada. O Jorge não batia bem. Antes da casa onde só vivia ele, passei por outras duas casas, uma cheia de ordinários do Porto e outra cheias de selvagens de Angola. Dizia-se que já havia emprego, e eu vim para Lisboa com essa ilusão[11], mas também isto era mentira. Não havia qualquer espécie de emprego: o que havia era imenso trabalho escravo.
Aquilo era tudo tão sufocante, e eu ficava doente tantas vezes sempre com o Jorge a entrar-me no quarto onde a chave não dava a volta na fechadura para indagar se eu estava bem ou se precisava de alguma coisa da rua, que agarrei em mim e vim viver sozinha para Estremoz, numa casa mágica cheia de espaço e de luz, apenas na companhia do meu Sebastião, que não me faz perguntas nem me exige respostas.
Agora, quando começo a rever o ANTARES, telefona-me o Jorge que tem saudades minhas e quer ir tomar um café.
Para ver se ele desiste, eu digo-lhe logo que já não vivo em Lisboa, que nunca mais fui a Lisboa. Estou a viver em Estremoz desde que saí do Bairro dos Actores.
“Estremoz? Ah, espantoso, foi onde eu fiz a tropa! É um sinal, Clara, é um sinal. Vou aí visitá-la em breve. Se calhar vou já esta noite. Sim, não hei de ir porquê? Vou já esta noite.”
Lisboa está a procurar-me às escuras com as suas longas garras.
“Jorge, por favor, agora não. Estou a rever as provas do meu novo romance e isto dá imenso trabalho. Ligue mais tarde.”
Desliguei logo.
O Jorge voltou a ligar na manhã seguinte.
Pânico.
“Jorge, por favor, não esteja a ligar-me agora. Eu tenho que rever as provas do romance. Falamos mais tarde.”
O Jorge tem telefonado todos os dias, frequentemente três ou quatro vezes por dia. Eu já nem atendo, claro. Mas claro: ele não se enxerga. Quando eu mais precisava de estar cencentrada e de estar feliz, de repente cada dia que passa é um rosário de telefonemas do Jorge.
Isto sim, meus amigos. Isto é a realidade.
Não tem que ser credível.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Uma micro-editora do Porto, radicalmente independente, cheia de pessoas que podiam ser minhas filhas ou netas, e com um excelente catálogo. Sinto-me lá muito bem. Detesto as camisas de forças das grandes multinacionais. E o director da EXCLAMAÇÃO é… biólogo!
[2] O meu romance não é o umbigo do mundo. A EXCLAMAÇÃO tem vários outros livros programados para lançamento na feira, e que estavam a ser revistos pela jovem que se demitiu sem mais conversas.
[3] Biólogo e director da EXCLAMAÇÃO. De tal forma empreendedor, como é próprio das pessoas do Porto, que não pára de fazer planos para salvar o planeta.
[4] Um dos homens mais inteligentes e irónicos que conheço. Parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, Estremoz fica longe de tudo.
[5] Estava-se mesmo a ver, não é? Tantos anos, tantos netos, e nunca mais aprendo a ter cuidado com as minhas próprias ideias.
[6] Também parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, o outro lado do balcão fica longe de tudo.
[7] Eu sei que já falei nisto, o que não quer dizer que o fenómeno tenha deixado de me incomodar. Pior ainda, cada vez oiço mais os meus vizinhos dizerem exactamente o mesmo que eu, mas por outras palavras. Ou então oiço os meus vizinhos exaltarem-se em defesa do CHEGA, o que continua a ser dizer exactamente o mesmo do que eu por outras – e mais assustadoras – palavras.
[8] Na manhã seguinte, quando ela começa a dizer “então mas agora é que tu me explicas que eu passei a noite inteira a curtir com…”, ele interrompe-a, com ternura e ironia, “Curtir? Mas o que é isso, curtir? Pareces uma adolescente a falar, o que desmerece em muito a grandeza do que nós fizemos. Eu diria antes que estiveste a foder com…” – “Ai, cala-te!” – “O que é que tem?”. O que é que se terá passado ao certo naquela noite dominada por Antares?
[9] Termo dele, no dia em que decidiu convidar-me para um whisky em sua casa e pôr as cartas na mesa.
[10] Sim, já disse que aqueles últimos anos da minha vida em Lisboa foram totalmente para esquecer.
[11] Tenho imensas qualificações. Com um bom emprego, talvez pudesse alugar uma casinha decente só para mim, como costumava fazer antes da visita trágica da Troika.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Tenho-me por pessoa empática – outros não o dirão – imbuído de cultura judaico-cristã, que nos incute (nem sei bem se para mal dos pecados nossos e demais pecadilhos) o conceito do bem e do mal (nem sempre fáceis de destrinçar). Mas não sou de ferro. Há momentos da vida em que temos, diria, a obrigação de cometer uma maldade – e certamente o Criador me perdoará no Juízo Final, sobretudo se for por consequência, ou necessidade, de justa retaliação sobre uma ‘tribo’ cujo representante pretendeu, enfim, oferecer-me convite envenenado para gozar com um benfiquista.
Vinguei-me, portanto, num sportinguista. Lamentavelmente, não sei quem era. E nem o consigo sequer descrever, nem sequer indicar o género nem idade. Sei apenas que, por certo, vestia – ou vestiria – de verde, com cachecol a preceito, talvez indicando o estatuto de campeão 2023/2024. E deveria estar, mas não esteve, no lugar 23, da fila 23 do sector A5. Estive eu: um benfiquista. Na impossibilidade de conseguir que nenhum sportinguista comemorasse ontem o campeonato no minúsculo Estádio José Alvalade, em comparação ao do Glorioso, pelo menos evitei que um festejasse ali a ‘coisa’: ocupei-lhe o lugar!
Quero, contudo, imaginar – se é para se ser mau, que se seja com intenção, na plenitude da racionalidade – que seria um miúdo que ficaria naquele lugar, se eu não o tivesse roubado. Um miúdo como um que, atrás de mim, entoou em pulmões escancarados o nome de cada jogador chamado pelo speaker. Compreendo esta irritante criança: deve ter uns oito anos; será o seu primeiro campeonato em idade de raciocínio.
Com o passar dos anos há-de-se-lhe alargar a laringe sem apetite para gritar nomes de lagartos e crescer-lhe-á a mação-de-adão sem mais festejos – pelo menos deglutirá melhor os sapos, lamentando a inconsciência da infância, enquanto assiste, choroso, às gloriosas vitórias das águias nos tempos vindouros. Presumo ainda que a criança que me azucrinou os tímpanos venha, daqui a umas décadas, contar aos seus netos as ancestrais façanhas do Gyökeres, que parecerão a todos tão quiméricas quantas as do Peyroteo por estes dias.
Em todo o caso, encarei a festa sportinguista com abnegado espírito científico. Sociologicamente falando, esta é uma tribo que nos merece respeito. Ou compaixão – confundo emoções. Estiveram ali, a gritar cantorias – e têm muitas – como se estivessem para o futebol como os turcos para o trabalho, que, como se sabe, são os melhores do Mundo … E dizer o contrário é ser-se racista, preconceituoso, desrespeitoso do Império Otomamo, mesmo que o ex-agente desportivo Aguiar Branco nos permitisse dizer que, enfim, os turcos se encontram na 49ª posição mundial (países e territórios) em termos de produtividade do trabalho em função da hora trabalhada e tendo em conta a paridade do poder de compra.
Mas, enfim, eles pensam que são “a maior potência desportiva nacional desde 1906”, segundo uma tarja ainda não vistoriada pela decência e o Polígrafo. Serão tanto como a Turquia é uma potência no mundo do trabalho.
Chiu!
Bom, estou aqui a botar postas de pescada, mas ali estive calado que nem um fuso. Ou uma pedra. Não esperassem que eu, mesmo julgando-me corajoso, fosse ali gritar que se estava perante uma reles desinformação. Apesar do meu companheiro de lides profissionais tudo ter tentado para me denunciar naquela bancada como um intrépido benfiquista, eu mantive-me discreto e sereno, disfarçando com um inusitado interesse em tudo fotografar para não ser demasiado suspeitoso a minha falta de entusiamo, sem um bater palmas sem uns gritinhos a cada jogada de perigo, sem um orgasmo das vezes que se marcaram golos a uma equipa já condenada a descer de divisão, e que ainda teve de jogar com 1o por uma expulsão instigada por um sportinguista.
Na verdade, durante o jogo, apenas acedi, ou cedi, a tirar umas fotos, que espero não serem demasiado comprometedoras, com um cartaz que serviu optimamente para limpar as solas das botas, e fazer outras poses sorridentes… Dizem que eles, por vezes, são perigosos, se não lhes fizermos as vontades…
Estoicamente assim aguentei um belíssimo jogo de futebol, em final de época, com tudo decidido, que explica bem a razão pela qual os lagartos limparam o campeonato sem espinhas. Por uma vez para não se repetir, aviso já!
A tarde, enfim, até estava a ser agradável para o meu desenvolvimento empírico – é sempre frutuoso observar sentidas e genuínas alegrias de gentes que tão poucas alegrias tiveram nas suas amarguradas e tristonhas vidas desportivas, mesmo os já septuagenários. Pensava eu que seriam apenas cerca de duas horas de sacrifício para recolher um punhado de fotos para guardar e mostrar daqui a 20 anos aos netos, para que eles vissem como fora o último jogo do último campeonato que teve o Sporting por campeão…
Mas… o quê?
Vão entregar ainda a taça?!
Chiça penico!
Por esta é que não esperava: ainda tive de aguentar os discursos de despedida do Antonio Adán e do Luís Neto, mais o tempo de entrevistas para as televisões, mais a banhoca dos jogadores, até que entregaram o caneco aos jogadores, chamados um a um, até ao uruguaio Coates. Seguiu-se um pífio fogo de artifício que só me entusiasmou por uns lampejos de vermelho. A coisa demorou, sei lá, qualquer segundo pareceu a etenidade.
E a seguir: liberdade! E fui para casa. Alívio…
P.S. E durante o meu intranquilo sono desta noite tive um pavoroso pesadelo: estava num tétrico silo do Alvaláxia, no piso -1 do parque de estacionamento, onde avultava uma mão-cheia de Mercedes. Uns tempos depois, surgiu um grupo de sportinguistas, homens e mulheres, felizes da vida, a cantar e a dançar, e viram-me e me sequestraram. Diziam ser o famigerado ‘Núcleo da Garagem’. E abriram a bagageira de um Jaguar, e daí retiraram uma mesa, que abriram ali mesmo, e puxaram de pão, e de azeitonas, e de queijo de Nisa e outros fermentados, e de mais cacholeiras de Alpalhão, e de alheiras de Chaves, e de chouriços, que assaram ali em álcool, e de vinhos vários, e de omeletes, e de pastéis de bacalhau e de outros acepipes. E me obrigaram a com eles confraternizar. E a comer. E a beber. E a conversar, como se eu não fosse um glorioso benfiquista e eles uns lagartos da pior espécie. E tirámos fotografias juntos. E rimos. E nos despedimos com abraços. E… depois acordei. Foi apenas um pesadelo. Alívio…
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Uma juba ciclópica incandescente atravessou o céu e pintou de branco e verde a foz do rio Douro, campanários, talhas e pomares do Minho ao Algarve, peixes, dunas e amantes nas praias de Portugal. Cigarras, humanos e ovelhas entoaram em coro:
– Tão resplandecente, não foi pássaro, super-homem ou avião. Assim brilhante, claro que foi o Sporting campeão!
Antes do jogo começar, ao meu lado na bancada central, o telemóvel mais frenético do estádio é o do senhor director do PÁGINA UM. Ele aponta para todo o lado, compondo vídeos e fotografias aos ziguezagues, imolando as fintas rápidas e súbitas paragens do Trincão. Ao ver Pedro Almeida Vieira neste torpor místico e alucinado, compreendo como se sentiram Eduardo Gageiro, na manhã do 25 de Abril, e o astronauta Neil Armstrong de câmara na mão e pés na lua.
Durante a semana, deu ao Inácio para ocupar o tempo a desafiar o Pote:
– Aposto um jantar no Solar dos Presuntos em como não és capaz de um centro de jeito de fora da área para eu marcar de cabeça.
E o orgulhoso transmontano, ainda antes de se fintar a si próprio tão bem fintado que não pôde guardar-se de pé e se esparramou no relvado a festejar ao comprido, respondeu crente e arrogante uma torga venenosa:
– Não só te acerto na testa com tanta força que até te ponho a risca ao meio, como ainda te pago umas férias nas termas de Vidago se desta vez imitares o Senhor Capitão Coates para golo, em lugar de cabeceares para o ar com esse bestunto de vento, esbanjando a minha arte para a bancada.
Aos quatro minutos, os dois armaram a maravilhosa e profética jogada, mas a bola depois de fazer a risca no Gonçalo estremeceu o poste com a força insuportável de um aerólito. O homónimo guarda-redes do Chaves agradeceu o ansiolítico receitado pelo médico da equipa para ele se aguentar à estreia, na última jornada, contra o melhor ataque do campeonato. Os dois atletas leoninos, que não estavam medicados para tão insólito desfecho, amuaram para o resto do jogo. Já o falso defesa e superlativo extremo Nuno Santos ficou a gozar como um perdido do outro lado do campo, sem nunca se aproximar demais para não cair em fora de jogo.
– Nem todos nasceram para ser lindos e loiros, nem para assombrar guarda-redes com jogadas à Puskás por dá lá aquela palha.
Vaidoso por trajar de azul celeste numa procissão de craques, excitado pela romaria de cachecóis, foguetes e marchas de “Viva o Sporting!”, o árbitro Manuel Oliveira agarrou-se ao microfone e deixou dito e luzido quem era o Tony Carreira da festa.
– O jogador número 13 não comete qualquer falta, por isso o penalty fica para daqui a bocado. Peço aos atletas do Desportivo de Chaves para entrarem na festa alçando braços em pose não natural. Prometo visionar tais gestos em conformidade com as leis da FIFA e da gravidade, e apitar resignado.
Estes enervantes acontecimentos agravaram o torpor alucinado e místico que se apoderou do Pedro quando saiu do metro do Campo Grande e deu de caras com o estádio a cintilar de alegria. Sem sequer disfarçar um sorriso de retaliação e felicidade, desatou a apagar os ficheiros laboriosamente amealhados nas 17 jornadas desperdiçadas na Varanda da Luz, abrindo espaço para cada segundo, bandeira e foguete da festa do Sporting Clube de Portugal.
Levou tão a peito a comparação com a barba, o penteado e as fintas do Trincão da minha primeira crónica no seu jornal, que hoje se vestiu de preto tal e qual o seu modelo apareceu na entrevista ao jornal A Bola, periódico centenário que neste campeonato descobriu, à custa de muitas piadas e memes, quem é o rei agora, da selva, dos céus e dos relvados.
–O jogador número 4 cometeu falta no início da jogada.
O Tony dos árbitros persiste em desafinar aos nossos ouvidos, sem se atrever a pronunciar o nome do Senhor Capitão Coates.Que desfeita! Antes fechar os olhos e suspender as regras do que anular um golo limpinho e pleno de força, bola corrida e tão bem rematada.
Felizmente, ao intervalo, o dr. Varandas mandou entregar ao artista uma camisola do Gyökeres autografada por Inês, a bela dele namorada. Esse precioso brinde regulamentar, simbólico da luminar união nórdico-lusitana, ofereceu a adeptos e jogadores uma segunda parte sem cantigas de Oliveira da Serra, ou Monte da Arrábida, e ao Pedro Almeida Vieira ocasião para expressar um inesperado desejo estatístico.
– Já só faltam cinco golos para o Sporting chegar aos 100 no campeonato.
Em plena bancada, o meu fiel amigo e ainda sócio do Benfica, descobre maravilhado que o Sporting é o detentor, desde 1947, do recorde de golos marcados num só campeonato: um, dois, três, 123, cento-e-vinte-e-três, 43 dos quais da autoria de Fernando Baptista de Seixas de Vasconcelos Peyroteo, provavelmente o maior avançado português de todos os tempos.
Tanto invocámos Peyroteo e os outros violinos, Yazalde, Manuel Fernandes, Jordão e Beto Acosta, que se materializou mesmo à nossa frente uma jogada que só se descreve com o movimento das estrelas. O melhor jogador em campo, Luís Carlos Novo Neto, arrancou um passe de parábola supersónica, a abrir caminho ao cometa nocturno, Nuno Santos entrou em órbita sobre a linha de fundo, e Paulinho respondeu com a precisão e a simetria de um satélite. De pé esquerdo para pé esquerdo se faz golo à velocidade da luz.
– Se o Paulinho mostra os dentes, eles até caem, até caem…
O director do PÁGINA UM, confesso benfiquista, claramente ‘sequestrado’ pelo famigerado ‘Núcleo da Garagem’ no final do jogo entre Sporting e Desportivo de Chaves.
Não caiu nenhum defesa, nem teve tempo para isso, mas caiu o estádio todo a celebrar o mais admirável resultado da época. Contra todas as previsões parvas e catastrofistas, Midas Gyökeres fez explodir o talento imenso do antes solitário e sacrificado ponta-de-lança da equipa.
Manuel Oliveira acabou o jogo mais cedo para ir com a camisola autografada meter inveja aos amigos da Cervejaria Europa, de Gondomar. A taça atraiu ao relvado bandos de crianças e retratistas. E nós fomos comemorar para a garagem do estádio, onde assámos uma cacholeira de Alpalhão e duas alheiras de Chaves com fogo de pirotecnia.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
“[Esta estranha gente] move-se tão rapidamente que deixa tudo por fazer, incluindo ir depressa. Não há nada menos ocioso do que um português. A única parte ociosa do país é a que trabalha. Daí a sua falta de evidente progresso.”
Fernando Pessoa, Textos de Intervenção Social e Cultural – A ficção dos heterónimos, Mem-Martins, 1985, p. 84.
“O Português, dentro de determinadas condições, se a vida lhe fosse inteiramente favorável, ele gostaria muito mais de contemplar e poetar do que trabalhar. Mas quando é levado a uma função em que tem de trabalhar, ele trabalha.”
Agostinho da Silva, Citações e Pensamentos, 2.ª ed., Alfragide, 2009, pp. 94-95.
O passado dia 17 de Maio, em virtude da posição assumida pelo novo Presidente da Assembleia da República, ao declarar expressamente que se recusava a ser o censor da liberdade de expressão dos Deputados (remetendo o ónus para o Plenário), deu origem a uma acalorada discussão, dentro e fora da Assembleia da República, com dois campos extremados a digladiarem-se em partes relativamente iguais, com a curiosidade de no lado da comunicação social escrita e televisiva se pressentir maior hostilidade, nas 24 horas seguintes, à posição de José Pedro Aguiar-Branco.
A circunstância de ter podido avaliar a prestação do seu antecessor no cargo, Augusto Santos Silva, num escrito divulgado no dia que que se iniciou a presente legislatura[1], permite-me, além de apreciar a questão central do âmbito e limites da liberdade de expressão dos Deputados quando no exercício de funções (ou actuem nessa qualidade – ainda referível ao mandato parlamentar), fazer uma comparação entre o desempenho do cargo por esses dois titulares, não obstante a diferença temporal de um ano e onze meses, num caso, e de menos de dois meses, no outro, comparação pela qual começarei.
1. Perfil de dois Presidentes da Assembleia da República
a) Relativamente ao anterior titular do cargo de Presidente da Assembleia da República, começo então por recuperar alguns dos tópicos do que escrevi anteriormente (cingindo-me aos aspectos que deram o mote ao presente texto):
Logo no discurso de tomada de posse, a propósito da língua portuguesa, o então Presidente procurou estabelecer uma diferença política e moralmente marcante entre o “patriota” e o “nacionalista”, vendo neste último aquele que “odeia a pátria dos outros”[2]; como escrevi, independentemente do arriscado da comparação, o problema de fundo reside no facto de germinarem nessa passagem as “sementes de um discurso de exclusão” de uma determinada força política, força política essa que não está “excluída” da Constituição[3] e que, de modo algum, deveria ter sido hostilizada, na hora em que se davam as boas-vindas aos Deputados[4];
Arrogou-se poderes que não lhe cabiam, designadamente o poder de interpretação do Regimento, matéria que, segundo o (actual) artigo 264.º, n.º 1, do Regimento, está cometida à Mesa, com recurso para o Plenário;
Uma vez invadidos esses poderes, aplicou aos Deputados do Chega a disposição do (actual) artigo 16.º, n.º 1, alínea p), do Regimento (que dispõe que compete ao Presidente manter a ordem e a disciplina, bem como a segurança da Assembleia, podendo para isso requisitar e usar os meios necessários e tomar as medidas que entender convenientes), quando esse preceito não é manifestamente aplicável aos Deputados, como na altura recordaram diversos juristas;
No dia 25 de Abril de 2023, sentiu-se autorizado não só a interromper o discurso de um Chefe de Estado Estrangeiro, o Presidente da República Federativa do Brasil, como a censurar e admoestar duramente os Deputados do Chega;
Dias depois, sem que até hoje se conheça a norma aplicável, o procedimento havido (e sequer a existência de audição prévia do grupo parlamentar interessado), segundo a imprensa, tomou a decisão de suspensão de acompanhamento de comitivas parlamentares por parte de Deputados do Chega[5];
Depois de tais episódios, foi solicitada e analisada a legislação de Direito Comparado sobre ética parlamentar, sucedendo que, no final, por sugestão do próprio, a Conferência de Líderes veio a concordar em nada fazer, quando o que se impunha era, evidentemente, o inverso.
b) Confrontemos agora esses registos com os do actual Presidente da Assembleia da República:
Superada a confrangedora situação do dia anterior, em que a sua eleição fora rejeitada por duas vezes, o novo Presidente, antes de subir ao seu lugar na tribuna, fez questão de cumprimentar todos os líderes políticos e dos grupos parlamentares sentados na primeira fila da sala de sessões;
No seu discurso de tomada de posse, depois do imediato (e, quanto a mim) premente desafio lançado a todos os grupos parlamentares de repensar o Regimento[6], começou por referir que o voto de cada português “deve merecer igual respeito por parte de todos os cidadãos” e que é “fundamental a liderança pelo exemplo”, acrescentando: “sei e aceito a exigência de imparcialidade, equidistância e rigor que todos esperam de mim” e que “a lealdade do Presidente da Assembleia da República aplica-se para com todos os 229 Deputados. Por uma razão simples, se não somos capazes de nos entender na casa da democracia, que exemplo estamos a dar para fora? Que esta mesa que vai ser hoje eleita seja capaz de unir o que as ideologias separam”[7];
Ciente do peso para as instituições da iniciativa desencadeada contra o Presidente da República, sem fundamento material ou jurídico algum, o Presidente da Assembleia da República fez tudo o que era possível não para obstacularizar ou adiar o procedimento em causa mas para o acelerar e promover no tempo mais expedito possível;
Chegados assim à manhã de 17 de Maio de 2024, tudo decorreu tão normalmente que não foi esse procedimento a desencadear a polémica, mas sim uma outra declaração acerca do prazo de conclusão das obras do futuro aeroporto Luís de Camões, comparando os 10 anos previstos pelo Governo com os 5 anos que teria levado a construção do aeroporto de Istambul.
c) Ainda sem termos descido ao problema da liberdade de expressão, podemos desde já facilmente concluir haver aqui dois padrões muito distintos do exercício da função de Presidente do Parlamento (Speaker):
Num caso, temos um Presidente que toma partido, no outro, um Presidente neutral;
Num caso, um Presidente que prefere a polarização, no outro, um Presidente que prefere a diluição da polarização;
Num caso, um Presidente que abusa dos seus poderes, no outro, um Presidente que prefere a autocontenção;
Num caso, um Presidente que decide (mesmo sem olhar às exigências do Estado de Direito), no outro, um Presidente que prefere remeter a resolução dos problemas para as regras e para os instrumentos ao dispor dos principais actores parlamentares.
2. Âmbito e limites da liberdade de expressão dos Deputados
a) Quanto ao âmbito e limites da liberdadede expressão em geral, é matéria sobre a qual já me pronunciei de forma abundante[8], em termos que vão sendo muito lentamente acolhidos, numa sociedade que, por muitas e complexas razões, como tentei revelar num outro texto publicado neste jornal, por ocasião dos 50 Anos do 25 de Abril, tem ainda muitas aprendizagens por fazer.
Não havendo por isso razões para reincidir num discurso já feito pela quarta ou quinta vez, posso começar pela revelação de um primeiro “critério de aferição”: quando alguém (incluindo aqui uma instituição, um tribunal, um advogado, um jornalista ou uma entidade reguladora) disser “a liberdade de expressão não é absoluta”, isso é o primeiro sinal de que essa pessoa não faz ideia do que é a liberdade de expressão – ora porque recebeu o essencial da tradição francesa, ora porque o legado do Estado Novo ainda está presente, ora por razões de outra índole.
Facto é que nas dezenas de processos em que Portugal foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por violação da liberdade de expressão, os tribunais portugueses visados utilizaram sempre essa triste gramática, que pode servir à generalidade dos demais direitos fundamentais, mas não serve à liberdade de expressão.
E por que razão não serve à liberdade de expressão?
Porque, ao contrário do que sucede com a generalidade dos demais direitos fundamentais (que protegem bens, valores ou interesses unilaterais, como a vida, a integridade física, o segredo das comunicações, o poder de decretar a greve ou de a ela aderir, etc.), a liberdade de expressão é um princípio que já envolve múltiplas dimensões do conjunto, havendo por isso nela «uma implícita presunção de correspondência com a ordem do todo, por não serem facilmente concebíveis bens ou circunstâncias com força suficiente para [a] neutralizarem, mesmo quando o respectivo exercício se situe já na orla crítica do ordenamento (como acontece na generalidade dos genuínos movimentos radicais de protesto político ou nas situações a que os norte‑americanos apelidaram de clear and present danger)»[9].
Identificado e justificado o “critério de aferição”, na Constituição Portuguesa de 1976, a liberdade de expressão em geral, só conhece um limite: o limite de que o pensamento seja o da pessoa que se está a exprimir (artigo 37.º, n.º 1, da Constituição), não protegendo por isso a mentira objectiva (dolosa) ou o plágio.
Os demais princípios constitucionais ou direitos fundamentais, ao contrário do que muitas vezes se diz, não são, nem podem ser considerados, limites da liberdade de expressão, nem têm de ser com ela compatibilizados (veja-se como as Constituições alemã ou angolana, ao contrário da nossa, expressaram quais desses direitos eram limites). Quando muito, na nossa Constituição, esses princípios ou direitos fundamentais podem servir de fundamento para restrições legislativas, mas estas têm de obedecer a apertados critérios, porque se defrontam com a liberdade matricial do sistema. E, na verdade, não faltam no Código Penal tipos de crimes que não passam as barreiras dos “guardas de flanco” da liberdade de expressão (como é o caso, só para dar dois exemplos, do de ultraje a Chefe de Estado estrangeiro ou de ultraje aos símbolos nacionais).
Imaginemos que um cidadão diz o seguinte de um governante: que é um perfeito salteador político; que é as fezes da República; que é um escroque nato; que andou abrindo as pernas do espírito prostituidamente; que é um Carimbiborrão de quem o pariu; que é um intrujão, de tipo patibular a quem não vale a pena de morte estar abolida; que é falho mesmo como malandro; que é um pulha, um bandalho.
Pode esse cidadão dizê-lo ao abrigo da sua liberdade de expressão?
Pode! E disse-o, em meia página, Fernando Pessoa do Dr. Afonso Costa[10].
Imaginemos agora um cidadão que sobre a bandeira nacional e o regime que a criou diz o seguinte (apesar da norma do Código Penal): “o regime está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos serve de bandeira nacional – trapo contrário à heráldica e à estética porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português – o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que por direito mental, devem alimentar-se”.
Pode esse cidadão dizê-lo ao abrigo da sua liberdade de expressão?
Pode![11] E disse-o igualmente, em poucas linhas e sem que estivesse em democracia, Fernando Pessoa[12].
Em suma, fora das restrições ditadas pelo artigo 270.º da Constituição para as pessoas que se encontrem nessas situações (militares, agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, forças de segurança) e de casos conhecidos como de “estatuto especial” (como é, entre outros, o de diplomatas ou juízes), um cidadão pode dizer essas e muitas outras coisas.
b) Se é assim tão amplo e assim deve ser entendido o âmbito da liberdade de expressão do comum das pessoas (não têm de ser cidadãos, na medida em que os estrangeiros e os apátridas também dela beneficiam, por decorrência imediata da dignidade da pessoa humana), que dizer dos Deputados?
A primeira coisa a dizer é, obviamente, que os Deputados também beneficiam, como pessoas, deste âmbito alargado da liberdade de expressão.
A segunda coisa a dizer é que, fruto da Revolução Inglesa dos finais do século XVII, os Deputados gozam de um reforço da liberdade de expressão, quando se encontrem no exercício de funções, através de um instituto entre nós conhecido como “imunidades parlamentares”: segundo a regra mais relevante para este efeito (o artigo 157.º, n.º 1, da Constituição), «os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções».
Ora, além das imunidades, a Constituição estabelece igualmente poderes dos Deputados (artigo 156.º), direitos e regalias (artigo 158.º) e também deveres (artigo 159.º). Entre estes deveres não há porém nenhum que contenda com a liberdade de expressão ou que imponha ao Deputado a moderação no uso da linguagem.
Devemos, no entanto, ter especialmente em conta o facto de a Constituição não ser uma ordem completa, mas apenas uma “ordem-quadro”[13], deixando muitos aspectos por regular, remetendo o que falta para o legislador (e outros aspectos ainda para a ponderação dos órgãos políticos)[14], competindo por isso à Assembleia da República definir e completar (no Estatuto dos Deputados, no Regimento da Assembleia da República e em outros instrumentos que definam padrões normativos aplicáveis ao trabalho parlamentar) o que não está, nem podia estar, integralmente previsto no texto da Constituição.
Sucede que entre os vícios do parlamentarismo democrático português se contam a dificuldade de reformar (datando o último esforço de 2006, por mérito de António José Seguro), a fixação no Regimento (quando muitas outras regulações e estruturas complementares são necessárias) e a prática das sucessivas pequenas alterações ao Estatuto dos Deputados, sem mudar o essencial – típica característica lusitana. A aprendizagem aqui tem de fazer-se a olhar para outros lados[15], designadamente para os países que foram o berço ou continuam a ser os bastiões da democracia, e onde há muito existem e são sistematicamente afinados os padrões aplicáveis ao comportamento dos Deputados, dentro e fora do Parlamento[16].
Importa, no entanto, também aqui, ponderar alguns exemplos.
Pode um Deputado, no exercício de funções, fazer um discurso discriminatório ou xenófobo?
À luz da nossa Constituição, pode.
Pode um Deputado, no exercício de funções, fazer um discurso racista ou fascista?
Neste caso, a resposta é matizada: em princípio, pode, mas o registo do acto fica para um eventual processo para efeitos do artigo 46.º, n.º 4, da Constituição (preceito que indicia que esse tipo de discurso, sendo à partida individualmente permitido, não é apreciado pela Constituição).
Pode um Deputado mentir, no exercício de funções?
A resposta, também aqui, é variável: tratando-se de mentira subjectiva (ou seja, estando o próprio convencido de que aquilo que diz é verdade), pode; tratando-se de mentira objectiva e caso não haja regra expressa em contrário[17], à luz da Constituição, também pode[18], a menos que se encontre numa situação em que esteja obrigado a dizer a verdade (como, por exemplo, no âmbito de uma Comissão de Inquérito), devendo nesse caso o acto ilícito ser participado ao Ministério Público.
Se tudo isto é assim no que respeita ao âmbitojurídico da liberdade de expressão do Deputado, tal não significa que esses discursos não devam ser combatidos e contestados na esfera política e social, pelos meios que os demais cidadãos, grupos e partidos considerem convenientes, no uso dos respectivos direitos. Mas esse é um plano totalmente distinto do que é visado neste texto.
3. Conclusão
Não parece que tenha justificação o alarido que se ouviu no dia 17 de Maio nas bancadas do Bloco de Esquerda, do Livre e do Partido Socialista sobre a opção do Presidente da Assembleia da República de remeter para o Plenário o ónus da censura de um potencial discurso xenófobo ou discriminatório.
Tal não significa que o Parlamento não deva meditar numa profunda reforma da Casa, a começar pela aprovação de um adequado Código de Conduta dos Deputados e respectivas estruturas de supervisão (que não devem ser compostas apenas por Deputados), pela reforma do Estatuto dos Deputados e da Lei orgânica da Assembleia da República (onde não são poucas as ambiguidades e as normas flagrantemente inconstitucionais), e a terminar na reforma do Regimento, que espera há 18 anos por grandes obras de reparação (e não remendos).
José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
[1] José Melo Alexandrino, Manchas sobre o Speaker, texto inserido em 26 de Março de 2024, disponível aqui.
[2]Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 1, de 30 de Março de 2022, p. 11.
[3] Artigo 46.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
[4] José M. Alexandrino, Manchas sobre o Speaker, cit., p. 3.
[5] Decisão que, no Verão desse mesmo ano, declarou estar disposto a reconsiderar.
[6] Discurso de 27 de Março de 2024, disponível aqui.
[8] Especialmente: José Alberto de Melo Alexandrino, Estatuto constitucional da actividade de televisão, Coimbra, 1998, pp. 80-111; Id., «O âmbito constitucionalmente protegido da liberdade de expressão», in Carlos Blanco de Morais/Maria Luísa Duarte/Raquel Alexandra Brízida Castro (coords.), Media, Direito e Democracia – I Curso pós graduado de Direito da Comunicação, Coimbra, 2014, pp. 41-66 (agora in José Melo Alexandrino, Escritos de Direito da Comunicação Social, Lisboa, 2004, pp. 137-163 [no prelo]); Id., «Artigo 37.º», in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, 3.ª ed., Lisboa, 2017, pp. 612-623.
[9] Cfr. José Melo Alexandrino, «Deus é bem e Justiça» (2014), in Elementos de Direito Público Lusófono, vol. II, Lisboa, 2024, p. 124 (no prelo).
[10] Fernando Pessoa, Páginas de Pensamento Político – 1, 1910-1919, org. de António Quadros, Mem-Martins, 1986, p. 79.
[11] José Melo Alexandrino, «O âmbito constitucionalmente protegido…», cit., p. 54, nota 68.
[12] Fernando Pessoa, Da República, org. de Joel Serrão, Lisboa, 1979, p. 47; também acessível aqui.
[13] Sobre este conceito, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, pp. 233 ss.
[14] Como sucede, por exemplo, com a nomeação do Primeiro-Ministro ou a dissolução da Assembleia da República.
[15] Sobre o tema, com interesse, Pedro Costa Gonçalves, «A expulsão de deputados “desordeiros”», in Observador, de 8 de Maio de 2023, disponível aqui.
[16] Sobre o Código de Conduta da Câmara dos Comuns, aprovado em Dezembro de 2022, ver aqui; para outras indicações relevantes, ver aqui.
[17] Segundo a doutrina que tenho por mais consistente, é ao Parlamento (e não aos tribunais) que compete, em primeira linha, regular, investigar e sancionar estes e outros comportamentos.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Duas semanas em África, num país amigo, afastaram-me dos noticiários diários.
Ali, é fraca a internet, os jornais chegam atrasados e não há o hábito de ouvir as estações de rádio.
Conclusão, quinze dias retemperadores.
“Não há mal que sempre dure, nem bem que não acabe”, ensinavam os nossos mais velhos, e tive de regressar ao meu querido país.
Fui tentar actualizar-me.
Correu mal.
Disseram-me que o PSD tinha escolhido o seu cabeça de lista às Eleições Europeias e fui ouvir as suas intervenções.
Comecei por criticar a decisão de terem escolhido um velho para os representar.
Sou a favor de se dar lugar aos jovens e sinto-me mal quando vejo idosos a impedir o aparecimento de gente nova, com valor, unicamente para garantirem a manutenção dos seus lugarzinhos principescamente remunerados.
Quando fiz este comentário mostraram-me a fotografia do político em questão e eu perguntei se não tinham uma actual.
Depois, ouvi mais uma gravação onde ele elogiava a “bandeira das sete quinas” e percebi que o “velho” era, tão só, um ignorante.
Novo de idade, ao ponto de nem conhecer a Bandeira Nacional, mas caquético nos ideais.
Tentei recompor-me, ouvindo intervenções de políticos considerados respeitados e com provas dadas.
O novo Ministro da Defesa, e líder do CDS/PP, parecia-me ser uma razoável escolha num momento em que tanto se fala de problemas na Europa.
Como se está a preparar Portugal para estas lutas que podem mudar o mundo?
O rapaz tentou explicar que o nosso País estava alinhado com a estratégia da Organização do “Atlético” Norte.
Engoli em seco.
Tentei pensar noutras coisas mas a televisão não me dava descanso.
Ouvi o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa quando este veio, publicamente, dizer que tinha cortado as relações com o seu filho por causa de uma “cunha” em prol de duas gémeas brasileiras que precisavam de um medicamento caríssimo.
Criado numa casa onde “Deus, Pátria e Família” era o lema principal, a decisão foi incompreensível para muitos e chocou-me.
Tornar público um corte radical com um filho não é comum no nosso País, é raríssimo entre católicos e impensável num político, para mais a ocupar o mais alto cargo da Nação.
Daí que não tenha estranhado os ataques imediatos ao Presidente da República.
Enviaram-me uma gravação com um humorista a imitar Marcelo Rebelo de Sousa.
A voz era “tal e qual”.
Imitação brilhante.
A peça pecava pelo discurso.
Com a intenção de exagerar na caricatura o imitador não teve qualquer pejo em proferir afirmações, como se fossem da autoria da sua vítima, do mais ridículo que imaginar se possa.
Dizia ele, com a voz de Marcelo depois de um “Fortimel” acompanhado de moscatel quente, que considerava “lentos” tanto António Costa como Montenegro.
Aquele por ser “oriental” e este por ser “rural”.
Não contente, o artista pisou o risco quando prosseguiu a imitação garantindo que considerava “maquiavélica” a Procuradora-Geral da República!
Para meu espanto houve dezenas de amigos, e alguns que eu considero inteligentes e cultos, a garantir que não havia imitação nenhuma e que aquele “arrazoado” tinha sido, mesmo, dito por Marcelo.
Não sei o que se passa no meu País.
Isto está de loucos.
Dizem-me que Pinto da Costa perdeu as eleições conseguindo só 20% dos votos contra 80% do seu adversário.
Que o chefe da sua Guarda Pretoriana está na cadeia juntamente com mais meia dúzia de apaniguados.
Será que Portugal passou a manicómio em auto-gestão?
Da maneira que isto está ainda me vão dizer que o Sporting é campeão de futebol a três jornadas do fim!…
Vítor Ilharco é assessor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Ser revisor de textos como principal ocupação profissional é ter uma vida diferente. É ver menos pessoas do que na maior parte dos trabalhos. É estar em casa mais tempo. É não ter horários, mas prazos. (Nota: há revisores internos com horários e que revêem in loco, pese embora a crescente tendência para o teletrabalho.) É gozar do prazer de passar os dias a ler (verdade seja dita: nem sempre se lê aquilo de que se gosta, mas sempre se aprende algo) e ainda ser pago por isso. Um revisor é, por imperativo profissional, um leitor omnívoro. Um especialista das engrenagens da língua, das suas estruturas maiores às suas partículas mais ínfimas, aos seus ossinhos e parafusos.
Quem se aventura na revisão deve estar preparado para conviver com a ingratidão. Porque o revisor sabe quão diferentes são os livros antes de passarem pelas suas mãos. E, contudo, eles reservam-lhe apenas um lugar minúsculo na ficha técnica (quando o reservam). Ao contrário de um tradutor, o nome do revisor não constitui um chamativo da obra, apesar do acréscimo de valor que dá aos livros que cinzela.
O revisor é, no fundo, o escritor da sombra que dá sol às obras, o duplo do actor de cinema que entra em cena quando este não está preparado para o salto. Dependendo da margem que as editoras e os autores lhe concedem, dependendo também do seu perfil — mais ou menos intervencionista —, ele pode ser um mero reparador de erros (deve ser mais do que isso, até porque deve trabalhar a eufonia, a clareza, entre outras dimensões), ou alguém que reescreve frases, embelezando-as. Sim, o bom revisor deve amar as palavras. Não poderá ser apenas um engenheiro ou um contabilista das mesmas. Só amando as palavras, poderá lascá-las, apará-las, envernizá-las, poli-las, perfumá-las.
Seria muito útil publicar-se um livro de um grande escritor no estádio de pré-revisão, de modo que os leitores compreendessem a importância do revisor.
São necessárias três características para o ofício.
Primeira: boa cultura geral. Quanto mais assuntos se dominarem, mais erros de conteúdo se detectarão (muito poucas vezes se contrata um revisor científico, além do revisor linguístico, para obras mais especializadas). A língua é um manto que cobre todas as realidades, pelo que o revisor tem de trabalhar com a palavra certa da toponímia, da medicina, da psicologia, da filosofia, do direito, entre uma caterva de outros exemplos: «alugar» para bens imóveis é um erro da língua, porque é um erro à luz do direito.
Acresce que o revisor deve desconfiar de tudo-o-que-os-outros-tomam-por-garantido-porque-toda-a-gente-diz-assim, dado que há ziliões de situações destas, como a citação da liberdade de expressão permanentemente atribuída a Voltaire (mas que não é de Voltaire), ou o poema atribuído a Brecht que reza que «primeiro levaram os comunistas» (mas que não é de Brecht), ou o parque em Coimbra amiúde referido como Portugal dos Pequeninos (mas que se chama: Portugal dos Pequenitos).
Segunda: elevada capacidade de concentração. Ao rever, é preciso ler simultaneamente com um duplo olhar: o olhar da forma, atento à vírgula que falta ou está a mais, aos particípios passados, ao clítico, ao infinitivo, a tanta coisa, e o olhar do conteúdo, que exclama «eureca!» quando a personagem que era coxa, em dado momento da narrativa, desata a correr mais do que as outras, ou quando o vocalista e o conjunto musical não combinam, estando um dos dois por corrigir. (Em cima disso, ainda deverá ler com o ouvido. E ler com o ouvido é menos familiar do que ler com o cérebro, ou seja, mais difícil.) Um revisor assemelha-se, neste sentido, a um trabalhador numa torre de controlo — a sua concentração tem de ser total e ininterrupta, porque a mínima distracção será fatal. Terceira: conhecerem-se as leis e os processos da língua, os seus erros mais frequentes, e, ainda assim, manter-se sempre a humildade de consultar todos os livros e todas as doutas opiniões.
Há um corolário nocivo a que dificilmente qualquer revisor escapará: o seu olhar de leitor será contaminado pelo seu olhar de revisor. A fruição da leitura ressentir-se-á do seu sempre atento olho de lince, e, não raro, o revisor terá vontade de emendar o que lê. Mais do que isso: muitos revisores têm vontade de corrigir e ensinar os outros durante as conversas, a troca de mensagens, e até quando ouvem rádio ou vêem televisão ou cartazes na rua.
Por vezes, penso que a profissão que mais se aparenta com a do revisor é a do árbitro de futebol. Estranha comparação, dir-se-á em primeira análise. A verdade é que o único aspecto visível do trabalho de ambos é o erro. Dá-se pela existência de tais ofícios apenas quando falham. Pior: ao contrário do árbitro, no caso do revisor, o público nem sequer poderá dizer que ajuizou bem, pois não poderá analisar as situações que o revisor teve de resolver. Na cabeça de quem lê, as escolhas foram do escritor ou tradutor.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Pela Europa fora, fala-se na “ascensão do populismo” e do “aumento de votos na direita” e na “extrema-direita”. As perspectivas apontam para que, nestas eleições europeias, se incline para a direita a balança dos deputados eleitos.
Da Avenida da Liberdade, no dia 25 de Abril, passando pela comunicação social, pela opinião de comentadores/influencers pagos e publicações nas redes sociais, somam-se os apelos ao “combate ao populismo e à extrema-direita”. Em resumo, “aos fascistas”.
(Foto: Tetiana Shyshkina)
Esta visão simplista, infantil e a preto e branco só não espanta porque todos temos observado a enorme bolha em que confortavelmente têm vivido os que apontam o dedo ao “perigo” do “fascismo” como a grande batalha dos nossos tempos, na Europa.
Claro que não lhes dá jeito nenhum contar a verdade e defender soluções para os problemas que levam a um certo sentido de voto. Dá-lhes muito jeito apontar o dedo a um novo “inimigo” contra o qual “todos se têm de unir”. Faz lembrar algo?
Este estratagema antigo e conhecido pode resultar com alguma franja da população (normalmente, sem acesso a informação além das TVs e dos mass media). Mas falha em conseguir já convencer a grande maioria dos cidadãos.
(Foto: Slim Emcee)
Os problemas que afectam hoje muitas famílias e empresas na Europa são sérios. As crises que se acumulam são sérias. O futuro não parece auspicioso e faltam soluções credíveis. Da subida do custo de vida, à habitação, passando pela insegurança, os rendimentos, segurança, impostos e emprego, têm faltado respostas convincentes aos mais vulneráveis e aos jovens.
Todas estas crises alimentam-se de medidas e políticas que foram tomadas sucessivamente ao longo dos anos por governos que não tiveram como absoluta prioridade o bem-estar das populações e a saúde da economia.
Uma chatice. Não se pode culpar os “populistas” e a “extrema-direita”, os “fascistas”, pelas medidas lamentavelmente adoptadas na última década, incluindo o abandono a que foram votados muitos imigrantes, que vivem sem condições e vulneráveis a redes de criminosos.
Mas existe uma solução. Em cinco passos, é possível combater os partidos “populistas” e a “extrema-direita”. Apenas é necessário que todos os partidos que têm governado, nomeadamente com o apoio da suposta esquerda e de centristas, adoptem as seguintes bandeiras:
1 – Pacifismo e “não à guerra”. Ninguém quer ver os maridos, filhos e netos em risco de ir para a guerra. NINGUÉM. Além disso, as guerras criam deslocados e podem abalar os alicerces das economias, atirar milhões para o desemprego e fazer, em simultâneo, disparar o custo de alguns bens. Assim, para atrair votos, é crucial que os partidos de esquerda e centro defendam a diplomação, a negociação e a … PAZ.
2 – Defesa dos direitos humanos, das mulheres, das crianças e da soberania sobre o próprio corpo. Este ponto é fundamental. Para retirar votos aos partidos “populistas” e de “extrema-direita” é crucial que os restantes partidos políticos defendam os direitos humanos. Isto implica mudar algumas das linhas dos seus programas eleitorais que defendem políticas internacionais limitativas aos direitos humanos e civis, nomeadamente na área da Saúde. Defender os direitos humanos é também defender os imigrantes, promover a inclusão e a diversidade. É combater a insegurança e as redes de tráfego humano que assolam a Europa. É também combater o ódio, nomeadamente contra as mulheres, que enfrentam hoje também a discriminação no desporto e outras competições por via da concorrência desleal e injusta por parte de atletas nascidos homem.
Têm sido aprovadas na União Europeia, nos anos recentes, políticas que condicionam a liberdade de imprensa e promovem limitações à liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, tem estado a ser construída e financiada uma vasta indústria de censura no mundo ocidental que envolve a eliminação de informação verdadeira e a perseguição e difamação de jornalistas, académicos, políticos e cientistas. (Foto: Mick Haupt)
3 – Defesa da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão. Não confundir com a defesa dos mass media, ou media mainstream, que estão muito alinhados com partidos que têm governado na Europa e que têm apoiado políticas que limitam a liberdade de imprensa e de expressão. Para conquistar votos ao “populismo” e à extrema-direita” é importante defender o verdadeiro Jornalismo – o oposto da propaganda – a liberdade de imprensa e o acesso a informação. Isto implica, por exemplo, condenar e rejeitar algumas leis e políticas adoptadas na União Europeia e países do Ocidente, incluindo especificamente a Irlanda e o Canadá. E é crucial exigir a liberdade de Julian Assange, jornalista detido vergonhosamente no Reino Unido e em risco de ser extraditado para os Estados Unidos. O seu “crime” inclui ter publicado provas de crimes de guerra por parte de Estados, incluindo o assassinato de jornalistas. Do mesmo modo, por exemplo, deve acentuar-se a pressão sobre a Rússia para libertar o jornalista norte-americano Evan Gershkovich ou o russo Roman Ivanov. Ou apurar as verdadeiras causa da morte do jornalista Gonzalo Lira numa prisão da Ucrânia. É também crucial compreender que tem vindo a ser criada uma indústria de censura que elimina informação verdadeira e persegue jornalistas, académicos, cientistas, políticos, activistas, médicos que divulguem factos verdadeiros “não autorizados”. Esta indústria é vasta. Envolve governos, universidades, organizações não governamentais financiadas para o efeito, empresas de comunicação social e sites de suposta “verificação de factos”. Há documentos que apontam ainda o envolvimento de agências de informação governamentais em práticas de censura de informação verdadeira e na realização de campanhas de desinformação. É importante defender o debate, o contraditório e a reflexão crítica.
4 – Defesa do ambiente e de uma sociedade verdadeiramente sustentável. Este é outro ponto fundamental. Para roubar votos ao “populismo” é preciso voltar a apostar em políticas de defesa do ambiente e da saúde e bem-estar das populações, com foco na protecção de paisagens naturais e combate aos grandes poluidores. Defender o ambiente é, também, apontar baterias a grandes indústrias poluidoras, fiscalizar e adoptar novas políticas que penalizam essas indústrias. É também desincentivar a sociedade de consumo desenfreado e a produção de bens de curto tempo de vida. É combater o abate de árvores e destruição de habitats. É defender as melhores práticas na agricultura, o bem-estar animal, eliminar de vez a autorização do uso de produtos como o glifosato, proteger bancos de sementes dos interesses de multinacionais e afastar o uso de organismos geneticamente modificados.
5 – Defesa da Democracia. Este é um dos pontos mais relevantes. O nível de democracia tem vindo a cair nos países ocidentais, incluindo Portugal. Há planos para mutilar a Constituição da República Portuguesa. Há um histórico recente preocupante de políticas a serem implementadas sem serem seguidos os devidos procedimentos legais, não só em Portugal mas em outros países. Falta transparência em negócios com dinheiros públicos. Falta combate verdadeiro a corrupção e conflitos de interesses. Na União Europeia, há problemas com opacidade e o envolvimento de lobbies e influência de indústrias. O crescente poder e influência sobre políticas públicas por parte de organizações internacionais não eleitas é uma séria ameaça às democracias ocidentais.
(Foto: Shane Rounce)
A receita para eliminar o “populismo” parece simples, mas não é. Muitos dos partidos de esquerda e centro apoiaram as políticas que têm diminuído o nível de democracia em países como Portugal e que têm ameaçado o respeito pelos direitos humanos, liberdade de expressão e liberdades fundamentais. Apoiaram políticas que afectaram gravemente a economia, o emprego e os rendimentos disponíveis no final do mês e geraram insegurança e instabilidade.
Recuperar a confiança do eleitorado vai exigir mais do que novos programas eleitorais e frases bonitas.
Porque, ao contrário do que acusam alguns partidos de esquerda e do centro, não são os partidos “populistas”, de “direita” e de “extrema-direita” que se apropriaram de temas como a defesa dos direitos humanos. Foram os partidos antigos, que têm governado, os partidos de esquerda e de centro que abandonaram temas cruciais como a defesa da Paz, dos Direitos Humanos, da Democracia, da Liberdade e do Jornalismo.
A crise dos valores europeus é real. Apontar o dedo, criar um inimigo a abater, não é a solução. Criar novas guerras, novas crises, novas emergências não é a solução. A solução é mudar e restaurar a confiança perdida. Mesmo que isso implique reconhecer que se causou dano e que se errou. Reconhecer o erro pode ser o início da reconciliação e o princípio de uma nova era na Europa, em que partidos procurarão defender os interesses e bem-estar dos europeus e os seus valores universais de democracia, paz e respeito pelos direitos humanos e individuais.
Temo que partidos à esquerda e centristas não compreendam que o que têm defendido nos útimos anos tem sido, muitas vezes, políticas fascistas, totalitárias. Censura. Cultura de cancelamento e de difamação e perseguição de jornalistas, académicos, cientistas e políticos. Protecção da especulação e das grandes multinacionais. Protecção da opacidade e da corrupção. Em Portugal e na União Europeia.
Apontar o dedo a um inimigo pode ser fácil. Mas, para muitos europeus, já não vai funcionar. O problema não está nos europeus nem no seu sentido de voto. Está, antes, naqueles que os traíram e desiludiram.
Por isso, quando vir alguém que aprovou as políticas nos últimos anos a gritar “fora com o fascista!”, recomende-lhe que tenha vergonha na cara. E que arranje um espelho.
Elisabete Tavares é jornalista
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.