Categoria: Opinião

  • Ronaldo, Diogo Jota e a moral dos abutres

    Ronaldo, Diogo Jota e a moral dos abutres


    Há uma velha tendência humana – que a imprensa-abutre sensacionalista e as redes sociais elevaram à condição de vício pandémico – de querer vigiar os gestos dos outros, medir-lhes o coração, e acusá-los quando não cumprem aquilo que se julga, não uma regra, mas uma expectativa narcísica da comunidade observadora.

    E é este o ponto fulcral do circo moralista que se formou, como se fosse vigília digital de almas, à volta da ausência de Cristiano Ronaldo no funeral de Diogo Jota. Não tardaram os inquisidores do costume a vociferar contra o egoísmo, a frieza, o desrespeito. Não por amor ao morto, note-se, mas por desejo de escândalo. Por necessidade de recriminar. Por impulso mimético de pertença ao grupo dos bons.

    Foto: D.R.

    Mas que espécie de ética é essa que mede o luto com cronómetro e o amor com a geografia do GPS? Que tipo de moral pedante e vazia exige a presença física num ritual fúnebre como critério de compaixão verdadeira? Só uma moral feita de pose e aparência, só uma ética moldada à selfie e ao post. O mundo moderno, saturado de imagens e sedento de comoção pública, já não aceita a dor íntima, silenciosa, invisível. Precisa de encenações. E se o actor principal – neste caso, Cristiano Ronaldo – não entra em cena, o público reclama reembolso emocional e ensaia vaias morais.

    É preciso recordar aos zeladores do sofrimento alheio que o luto não é um teatro. O luto é muitas vezes um retiro, uma sombra, um recolhimento. É exactamente o contrário de tudo aquilo que os acusadores de Ronaldo parecem exigir. E se ele tivesse comparecido? Muito provavelmente, as mesmas vozes que hoje lhe apontam o dedo diriam que era exibicionismo, que era vaidade, que era marketing. Porque o problema, afinal, nunca é o acto em si, mas quem o comete. E quando se trata de Ronaldo, o público quer vê-lo, não importa a circunstância, para depois poder julgá-lo.

    Foto: D.R.

    Cristiano Ronaldo não é um santo, nem quer ser. E também não é um político, nem deve fingir sentimentos para a câmara. É um homem, um desportista de excelência, e – por mais que custe a quem o odeia – é talvez o português mais admirado e respeitado fora de portas. E será porventura também o mais odiado cá dentro, justamente por isso.

    A mediocridade nacional, sempre tão caseira, sempre tão dada ao despeito, não perdoa que alguém do nosso sangue ouse voar mais alto que o campanário da aldeia. Assim, tudo o que Ronaldo faz – ou deixa de fazer – é analisado com microscópio moral por uma turba que só encontra sentido na existência quando descobre um deslize, uma ausência, um gesto imperfeito.

    A crítica à ausência de Ronaldo no funeral de Diogo Jota não é movida pelo amor ao falecido, nem sequer pelo culto da memória. É apenas o reflexo de um espírito do tempo doente, em que os mortos são usados como pretexto para julgar os vivos. A dor tornou-se espectáculo e o respeito, obrigação teatral. Quem não chora em público é cínico. Quem não publica homenagem é frio. Quem não se curva diante do caixão é insensível. E, paradoxalmente, os que gritam essa moral são os que não toleram o silêncio, que não aceitam que o tributo mais digno possa ser justamente a recusa da encenação.

    Foto: D.R.

    Há algo de profundamente ignóbil nesta ética da comoção obrigatória. É uma espécie de necrofilia moral, onde a morte de alguém só serve para se devassar a vida dos outros. Ninguém sabe o que Ronaldo fez em privado, o que sentiu, se telefonou à família, se rezou em silêncio. E não tem de saber. Porque o luto não se presta a boletins nem a selfies. E, se ainda há alguma dignidade possível neste mundo em que a morte virou argumento de cliques, talvez seja essa: a de respeitar quem escolhe viver o pesar sem o partilhar com a turba.

    Confesso, de resto, que não me agrada que o herói popular português por excelência seja um homem do entretenimento desportivo. Preferiria, por vocação e convicção, que esse papel estivesse reservado à ciência ou à literatura. Talvez alguém das Ciências, ou da História, ou um grande romancista, pudesse ocupar esse lugar simbólico.

    Mas a realidade é o que é. E é inegável que Cristiano Ronaldo, com a sua personalidade determinada, a sua persistência de ferro e uma disciplina que muitos doutores invejariam, construiu um percurso admirável. Consolidou-se como um verdadeiro self made man, saído de um dos estratos mais humildes da sociedade para se afirmar, à escala global, como um dos homens mais reconhecidos e celebrados do nosso tempo. Subiu social e financeiramente, por mérito próprio, até ao topo de uma montanha onde poucos chegam. E por isso, perante o que conquistou e o que também perdeu – e não falo apenas de tempo e energia, mas de anonimato, de liberdade e da possibilidade de ser apenas um homem comum – talvez mereça, até, que se lhe perdoe algumas falhas.

    a statue of an angel surrounded by greenery

    Mas se falhas comete – como qualquer humano – não ir a um funeral não será, de forma alguma, uma delas. O funeral é, para quem vai, um acto de despedida, um rito pessoal. Para quem não vai, pode ser, igualmente, um gesto de recato, um respeito que prefere manter-se em silêncio. O que se vê aqui não é falta de compaixão. É a recusa de alimentar a máquina de voyeurismo que exige que tudo se torne espectáculo, até a dor.

    Quem exige de Ronaldo um luto visível fá-lo não por respeito ao falecido, mas por gula emocional, por instinto de tribunal moral, por frustração mal disfarçada. Ronaldo, quer se goste ou não, continuará a viver como símbolo e projecção de uma ideia de sucesso que incomoda. E os seus críticos, esses, continuarão a usar cadáveres para julgar os vivos – o que, convenhamos, é infinitamente mais vil do que não aparecer num funeral.

  • Diogo Jota e o jornalismo abutre e sensacionalista

    Diogo Jota e o jornalismo abutre e sensacionalista


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo.

    No 22º episódio, analisa-se o caso do jornalismo abutre que se está a aproveitar das trágicas mortes de Diogo Jota e André Silva. Também se analisa o sensacionalismo atroz que ‘pintou’ de vermelho e negro o mapa de Portugal nas previsões meteorológicas.

    Ainda se analisam dois fenómenos estranhos que afectaram a BBC e um estudo (mais um) divulgado pela Lusa, desta vez da autoria de uma investigadora do ISCTE.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

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  • Como sair da pobreza?

    Como sair da pobreza?


    A pobreza extrema foi, durante milénios, a condição natural da humanidade. Não era um acaso, nem uma injustiça histórica, nem o resultado de alguma trama dos ricos contra os pobres.

    Era simplesmente a realidade bruta: escassez de comida, abrigos rudimentares, mortalidade infantil, vidas curtas e sofrimento permanente. A verdadeira pergunta é outra: como é que se saiu dessa pobreza? Por que motivo essa saída ocorreu na Europa, mais precisamente em regiões como a Inglaterra, Bélgica, Alemanha, os países escandinavos, o império Austro-húngaro e os EUA, e só mais tarde no sul da Europa?

    (Imagem 1) Média global do PIB per capita mundial entre o ano 1 e 2023
    (Unidade: Dólares internacionais a preços de 2021) / Fonte: OurWorldinData.org; Dados compilados a partir de várias fontes pelo Banco Mundial (2025); Bolt e van Zanden – Base de Dados do Projecto Maddison 2023; Base de Dados Maddison 2010

    A resposta não está na geografia nem em dádivas naturais. Está na cultura. Mais concretamente, está na adopção de valores que promovem o aforro, o capitalismo, o acesso a energia barata e uma ética de trabalho enraizada.

    Começamos pelo aforro. Poupar é, essencialmente, abdicar de um consumo imediato em favor de um futuro melhor. Imagine-se um homem numa ilha com coqueiros. Se quer aumentar a produção de cocos, terá de construir uma vara. Para isso, precisa de tempo e energia. Para sobreviver durante essa produção, precisa de ter poupado cocos. A vara não o alimenta, mas permite-lhe colher mais no futuro. Isso é um bem de capital. Essa é a essência do desenvolvimento: produzir bens de capital através da poupança.

    Ora, sociedades que não poupam vivem como crianças. Perante a escolha entre um caramelo hoje ou cinco amanhã, preferem o de hoje. Não há planeamento, não há responsabilidade, não há futuro. A sociedade moderna, embriagada de consumismo e subsídios, tornou-se infantil.

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    Mas para que exista poupança é necessário um certo tipo de cultura. O cristianismo e a Igreja Católica desempenharam aqui um papel fundamental. Desde cedo, a moral cristã valorizou a frugalidade, o trabalho, o sacrifício e a preparação para um bem maior. As ordens monásticas, com a sua disciplina, tornaram-se verdadeiras fábricas de capital humano e de bens de capital.

    A Igreja instituiu uma cultura de compromisso, estabilidade familiar e confiança interpessoal: valores essenciais para que o futuro seja previsível e, por isso, digno de ser planeado. O casamento monogâmico e duradouro, a condenação da usura e da fraude, e a sacralização do futuro funcionaram como pilar civilizacional.

    Em Portugal, durante o Estado Novo, essa cultura estava enraizada. A poupança era regra. A família era o centro da vida económica. A comunidade impunha vergonha a quem falhava com as suas obrigações. Havia confiança. O Estado não prometia paraísos. Obrigava cada um a ser responsável.

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    A estabilidade monetária e orçamental favoreceu um crescimento sólido. Havia uma estrutura etária jovem, famílias fortes, e um sentimento de dever intergeracional. E, acima de tudo, ausência de um Estado social parasitário que anestesia a responsabilidade pessoal.

    Outro ponto essencial: sem respeito pela propriedade privada não há incentivos para poupar ou investir. Se o homem da ilha sabe que, ao terminar a vara, virá outro roubá-la, por que motivo haveria de a produzir? Ora, o que o Estado faz hoje é isso mesmo. Através de impostos, inflação e dívida, confisca os frutos do trabalho e da poupança, matando os incentivos à responsabilidade.

    A dívida pública é o equivalente a armar um grupo de bandidos para saquear vizinhos, com a promessa de repartir o saque. Os recursos não vão para investimentos produtivos, como fábricas ou computadores, mas sim para consumo imediato e votos comprados. Este mecanismo destrói a poupança, distorce a economia e cria uma população viciada em esmolas.

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    O segundo pilar: o capitalismo. Sem propriedade, sem lucros, sem preços livres, não há como afectar capital de forma eficiente. O socialismo é apenas viável em tribos, onde não há mercados. Na ex-URSS, os dirigentes recorriam aos preços dos mercados ocidentais para tomar decisões, pois sem preços não havia cálculo económico possível.

    Se um empresário tem de somar ovos, calças e laranjas nas receitas e subtrair carne, fiambre e couves nos custos, como sabe se obteve lucro? Precisa de uma moeda. Precisa de preços livres. Precisa de contabilidade. A partida dobrada, inventada nas cidades-estado católicas italianas, foi um marco civilizacional nesse sentido. Hoje, a contabilidade foi capturada pelo Estado, e os contabilistas servem para denunciar os que tentam escapar ao confisco.

    Outro instrumento essencial: as bolsas de valores. Criadas na Holanda protestante e depois replicadas em Inglaterra, Alemanha, países escandinavos e Império Austro-húngaro, foram instituições fundamentais para a descoberta de preços, mobilização da poupança e afectação eficiente de capital. Chegaram tarde ao Sul da Europa. Onde existiam, prosperava-se.

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    As bolsas permitem liquidez, permitem que pequenos investidores sejam integrados no sistema capitalista, na correcta afectação de capital, e impõem disciplina às empresas. A selecção é natural: os melhores prosperam, os piores desaparecem. É a destruição criadora. É o que o Estado tenta impedir, ao resgatar empresas falidas ou impor regras ESG ridículas que obrigam a contratar segundo quotas e não segundo a competência.

    Terceiro pilar: energia barata. O crescimento vertiginoso do PIB per capita desde o século XIX coincide com o início da exploração de combustíveis fósseis e da energia a vapor. Foi isso que substituiu a escravatura. Deixámos de depender do braço humano. A produtividade explodiu. Mas hoje, diaboliza-se essa energia barata com a mentira climática. Os impostos ecológicos servem para roubar e redistribuir aos amigos com empresas de energia verde subsidiada. O critério não é económico. É político.

    Por fim, a ética de trabalho. Trabalhar é produzir. Quem trabalha não está a consumir, está a gerar riqueza; mais: está a adquirir experiência, relações, mérito. Cada dia de trabalho é um dia de capital humano acumulado. Mas hoje venera-se o ócio. Feriados. Pontes. Subsídios. Rendimento mínimo garantido. Como se a riqueza surgisse do ar. Quem é que vai sustentar essa gente? O Estado? O Estado só pode tirar a quem produz. É um intermediário de saque.

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    Por isso, a riqueza não se explica por magia, sorte ou planificação central. Explica-se por cultura, por responsabilidade, por liberdade e por propriedade. A riqueza é a excepção. A miséria é o estado natural. Tudo o que hoje vemos ser destruído — a poupança, a propriedade, a confiança, a liberdade de investimento — são os alicerces da civilização. Quando forem totalmente arrasados, não restará senão a pobreza. Como antes. Como sempre.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa

    Tribeca & Moedas: o problema não foi o jantar; foi tudo o que se gastou e escondeu depois da sobremesa


    Durante meses, o único rasto visível nos contratos públicos sobre os gastos do município de Lisboa com o festival Tribeca Lisboa — uma franquia luso-adocicada do evento nova-iorquino apadrinhado por Robert De Niro — era um modesto registo no Portal Base: a aquisição de um jantar por 6.230 euros, adjudicado à empresa As Patrícias, ao abrigo de um ajuste directo.

    Nada mais. Nenhum contrato com a Impresa, a entidade organizadora, nenhuma nota explicativa sobre os reais encargos públicos, nenhuma referência aos montantes transferidos. O silêncio era ensurdecedor. E, não fosse o esforço persistente e meticuloso de um jornalista da revista Sábado, este caso permaneceria submerso no pântano burocrático onde se enterram, diariamente, os vestígios do despesismo estatal.

    Agora soube-se, por via de uma investigação persistente — e é uma pena haver tão poucas — publicada na revista Sábado, que afinal o jantar foi apenas o amuse-bouche. O verdadeiro banquete foi servido à Impresa, grupo privado de comunicação social que detém, entre outros, a SIC e o Expresso.

    Só daqui foram 500 mil euros retirados directamente dos cofres da Câmara Municipal de Lisboa, por empenhos operados a alta velocidade após instruções vindas do gabinete do presidente Carlos Moedas. Acrescem ainda mais 250 mil euros do Turismo de Portugal, que decidiu também financiar o festival — tudo para que a Impresa pudesse pagar os “direitos” do evento norte-americano e assegurar a presença simbólica de De Niro, mesmo que o actor tenha passado despercebido à maioria dos lisboetas.

    Em rigor, o que está em causa não é apenas a saloiice institucional de importar um festival nova-iorquino, ainda por cima mal organizado, para se tirar umas fotografias ao lado de um actor famoso. Nem tampouco o habitual enlevo provinciano de políticos que confundem política cultural com festas mediáticas. O que se passou com o Tribeca Lisboa é mais grave: é um exemplo cristalino de como se instrumentalizam recursos públicos para fins privados, com intermediação política e total opacidade.

    Note-se o padrão: o festival não foi uma organização municipal, nem promovido por qualquer entidade pública. Foi uma operação integral da Impresa, cujo objectivo era — como sempre — reforçar a marca e a influência do grupo. Mas, ao invés de procurar investidores ou assumir o risco financeiro do evento, recorreu-se à “via Moedas”: um atalho de poder que, em apenas três semanas, desbloqueou meio milhão de euros da autarquia. Sem concurso, sem critérios públicos conhecidos, sem transparência.

    Pior: com silêncios reiterados e recusa de entrega de documentos a jornalistas que, desde Novembro de 2024, tentam obter explicações junto da Câmara e da EGEAC.

    Este caso só não é escândalo maior porque o país político já se habituou à promiscuidade entre comunicação social e poder. Entrevistas “fofinhas” — como a de Daniel Oliveira a Carlos Moedas no Alta Definição — tornaram-se moeda de troca num sistema onde os favores circulam, os elogios se compram, e os interesses se protegem. A fotografia ao lado de De Niro — paga com o dinheiro dos lisboetas — resume bem o espírito da coisa: um marketing político montado para alimentar egos, seduzir audiências e garantir reverência jornalística.

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    Tribeca é um conhecido bairro de Nova Iorque e o nome de um festival de cinema norte-americano.

    Se isto fosse apenas vaidade, poder-se-ia sorrir e passar adiante. Mas não é. Trata-se de um modelo de governo assente em peculato de uso: recursos públicos canalizados para eventos que promovem, em primeiro lugar, os próprios decisores. Um sistema que, por falta de escrutínio institucional, se normaliza e perpetua, onde cada euro gasto parece menos um investimento cultural e mais uma operação de auto-publicidade. Não há aqui qualquer racionalidade económica ou cultural, apenas um cálculo político e mediático.

    Pior: estes gastos são deliberadamente escondidos dos cidadãos. São dispersos por diferentes fontes (autarquias, empresas municipais, organismos do Turismo), canalizados por ajustes directos, ocultos sob rubricas vagas e não publicitados em tempo útil. É preciso escavar muito — como agora se viu — para expor o que deveria estar à vista de todos. E isso é, talvez, o sinal mais preocupante do estado a que chegou o exercício do poder local e central: a transparência converteu-se em slogan, não em prática. Carlos Moedas até criou um Departamento de Transparência — mas, ironicamente, nunca respondeu às perguntas sobre os apoios ao Tribeca Lisboa.

    O caso do Tribeca Lisboa mostra como o país político continua a comportar-se como se vivêssemos sobre um poço de petróleo. Gasta-se com ligeireza, distribui-se dinheiro como se nada fosse, sempre com a convicção de que o contribuinte pagará — e, no fim, ainda agradecerá, hipnotizado por uma selfie ao lado de um actor de Hollywood.

    Mas Portugal não é um poço de petróleo. É um país endividado, com escolas por requalificar, hospitais a colapsar e transportes públicos obsoletos, que pouco aposta verdadeiramente na Cultura. Cada euro entregue à Impresa — um grupo privado de comunicação que deveria viver dos seus leitores e espectadores — é um euro que falta noutro lado. Setecentos e cinquenta mil euros daria quase para uma longa metragem em Portugal. E o que Moedas fez não foi apoiar a Cultura. Foi financiar, com o dinheiro dos lisboetas, a vaidade de um festival e a máquina mediática que o serve.

    Em suma, o problema não foi o jantar. Foi tudo o que se gastou e foi escondido depois da sobremesa.

  • Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário

    Carta aberta ao jornalista Luís Ribeiro, um serventuário


    Luís Ribeiro,

    agradeço a deferência — embora algo envergonhada — com que me dedicas umas linhas no X, em resposta à coima que a ERC aplicou à tua empresa, a Trust in News, por difundir conteúdos de publicidade encapotada, usando jornalistas — entre os quais tu próprio és nomeado. A tua tentativa de desvalorizar o assunto, como se estivesses acima das suspeitas, é uma vã manobra para te descolar de uma realidade que, a cada passo, te envolve mais: a de ser jornalista ao serviço de uma empresa com mais dívidas do que escrúpulos.

    E agradeço, porque assim me deste incentivo para esta carta aberta, que para ti não terá préstimo — porque manifestamente não prestas como jornalista nem como pessoa —, mas poderá ter para outros, talvez os mais jovens jornalistas. Como aviso. Até porque, salvo erro, te conheço desde 2001.

    Trabalhas(te) para a Trust in News, um grupo editorial com um capital social de uns meros 10 mil euros — igual ao do PÁGINA UM, por isso nada contra. Mas olhas para o PÁGINA UM com um indisfarçável desdém. Compreendo: há uma grande diferença: PÁGINA UM não deve nada a ninguém, não faz fretes e exerce um jornalismo independente, enquanto o teu estimado empregador carrega um passivo superior a 30 milhões de euros, incluindo calotes ao Estado que ultrapassam os 15 milhões.

    Como se não bastasse, tem o dono e um dos gerentes (Luís Delgado) já uma condenação por abuso de confiança fiscal. É esta a entidade de referência do teu jornalismo — e não, não fui eu quem a classificou como tal, foi a própria Justiça.

    Foi nesse ambiente que, a pedido da tua directora e amiga, Mafalda Anjos, resolveste então deixar a dignidade profissional à porta da redacção e prestar serviço à causa do Ministério do Ambiente e da empresa pública Águas de Portugal, para lhe cuidares do marketing. A pretexto de uns Prémios Verdes, fizeste um fretes multicoloridos. Produziste então meia dúzia de artigos fofinhos, pintados de verde esperança e inocência editorial. E agora vens jurar que foste livre, que não recebeste nada além do salário, como se a ausência de suborno directo fosse um atestado de honra. Ora, Luís, isso não abona sequer da tua inteligência. Se mercadejas a tua pena, ao menos exige as trinta moedas de prata… Fica-te mal prostituíres a profissão e ainda por cima de forma gratuita.

    Tweet de Luís Ribeiro no X

    Não fui só eu que te chamei à pedra. A própria ERC — esse Conselho que dizes “estapafúrdio”, só porque, por uma vez, resolveu ver para além da espuma — referiu o teu nome cinco vezes na deliberação, onde conclui que a Trust in News difundiu conteúdos publicitários disfarçados de jornalismo. Isso tem um nome: publicidade encapotada. E o teu nome lá está, Luís, gravado com tinta que nem o teu desdém consegue apagar.

    Depois, num gesto pueril, resolves atirar contra mim — atacas o mensageiro —, aludindo aos meus “conflitos” com a ERC, como se isso te conferisse superioridade. Mas até aqui falhas o tiro. Sim, tenho conflitos com a ERC. Porque exijo melhor regulação, mais transparência e menos conivência com aldrabices editoriais e poderes instituídos.

    Mas sabes o que mais? Dois dos processos em tribunal foram sim interpostos por mim contra a ERC no Tribunal Administrativo de Lisboa por me negarem acesso a documentos administrativos. Ganhei ambos — vê lá isto! Um jornalista que não cede a um não institucional e até mete a entidade que o regula num tribunal. Perdeu-se o respeitinho, não é, Luisinho? Temos de ser bem comportadinhos, não é? Isso mesmo!

    Além disso, em quase quatro anos de PÁGINA UM, não fui alvo de uma única contra-ordenação, nem de qualquer processo judicial activo. Nem um. Apesar de toda a espuma e névoa que se tem colar contra o projecto editorial do PÁGINA UM inexiste uma qualquer falha, uma qualquer condenação.

    Portanto, falemos de fretes? Eu não faço. Prefiro perder leitores a perder a espinha. Tu, Luís Ribeiro, escolheste o caminho contrário: achaste normalíssimo ajoelhar diante das Águas de Portugal e do Ministério do Ambiente e servir de megafone a patrocinadores públicos, como se o jornalismo fosse uma extensão do gabinete de comunicação do regime. Depois bateste no peito, meteste um cravo à lapela, abriste o X para o mundo e, com solenidade revolucionária de funcionário público em hora extraordinária, proclamaste-te impoluto, livre e independente.

    Pois bem: e a tua consciência, essa, meteste-a no contentor azul — junto dos folhetos recicláveis que andas a assinar.

    O Luís Ribeiro fez artigos noticiosos para cumprir contratos de patrocínio, e ainda defende no X que “TODOS o fazem. A ERC não vive no mundo real”. São os jornalistas que matam o jornalismo.

    E agora ainda tentas, num chilique de vitimização, fingir que estás acima da polémica quando, na verdade, estás mergulhado até à raiz do teclado na lama de um jornalismo serventuário.

    E fica-te bem uma lição final: se não queres ser confundido com um mercador de notícias, então pára de te comportar como um.

    Pedro Almeida Vieira

  • Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública

    Negligência, crime & sangue nas políticas de Saúde Pública


    Desde 2022 que o PÁGINA UM trava uma batalha judicial aparentemente absurda – mas, na verdade, profundamente reveladora – contra a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Lutamos pelo acesso à base de dados dos internamentos hospitalares, que é gerida por essa entidade pública. E lutamos não por um capricho jornalístico ou por qualquer fetiche com estatísticas, mas porque acreditamos, com convicção inabalável, que a informação é o primeiro antídoto contra a negligência e o primeiro instrumento da responsabilidade política.

    A base de dados existe – ponto final. O Tribunal Administrativo de Lisboa reconheceu, com clareza, o nosso direito de acesso. A ACSS recorreu, e perdeu. Voltou a recorrer, e voltou a perder. O Supremo Tribunal Administrativo, no Verão de 2023, encerrou o assunto com um acórdão cristalino. Mas em vez de cumprir, a ACSS decidiu trilhar o caminho do absurdo burocrático e da resistência kafkiana. Mais um processo arrasta-se agora para forçar os seus dirigentes a libertarem a informação, numa dança cínica de poder institucional contra o interesse público.

    black stethoscope with brown leather case

    E que informação é essa? Informação que poderia permitir avaliar a real incidência das doenças por região, identificar padrões de falhas no sistema hospitalar, detectar atrasos nos diagnósticos, comparar o desempenho entre hospitais, e até compreender melhor se os investimentos em saúde produzem resultados efectivos. Em suma, dados que, tratados com inteligência e independência, poderiam salvar vidas e corrigir injustiças. Mas, em vez disso, são mantidos num cofre institucional selado a sete chaves pela cultura opaca da nossa Administração Pública.

    A verdade, porém, é ainda mais perturbadora: Portugal não sofre de falta de dados. Sofre, isso sim, de falta de vontade – e de coragem – para os usar. Veja-se o exemplo do SICO – o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito. Trata-se de uma ferramenta raríssima no panorama internacional: permite acompanhar, em tempo real, onde e porquê morrem os portugueses. Com esse sistema, poderíamos detectar rapidamente surtos epidémicos, falhas nos serviços de saúde, doenças com comportamentos anómalos. Poderíamos antecipar. Poderíamos agir. Mas não: usamos o SICO como se fosse apenas um notário da morte, e não como um radar da vida.

    Mais grave: quando os dados são usados, é muitas vezes para branquear políticas ou sustentar retóricas. A Escola Nacional de Saúde Pública tem-se especializado, com notável zelo, em cumprir este tipo de fretes institucionais. Em vez de ser um centro de pensamento crítico e estratégico, converteu-se numa agência de legitimação das decisões do poder. É uma traição silenciosa, mas perigosa, ao ideal de saúde pública.

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    De quando em vez, na solidão da investigação, detenho-me nos dados estatísticos de Saúde divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). Nem sempre trazem revelações imediatas, mas às vezes surgem indícios alarmantes. Como os dados ontem divulgados, entre informação sobre operações de caixas automáticas multibanco, sobre a taxa de mortalidade por tumores malignos em 2023, com base nos registos do SICO.

    A nível nacional, a taxa é de 2,7 por mil habitantes – um valor que parece aceitável, se olharmos apenas para a média. Mas as médias escondem tragédias, sobretudo quando se diluem em regiões vastas. É nos pormenores, nos concelhos pequenos, que a realidade grita mais alto.De facto, analisando os dados com maior detalhe, constata-se que, em 45 concelhos portugueses, a taxa de mortalidade por cancro em 2023 foi mais de 50% superior à média nacional, que se situa nos 2,7 óbitos por mil habitantes.

    Casos como Mora (7,4 por mil), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2) ou Vidigueira (5,4) revelam dramas locais quase invisíveis à escala nacional. Corrijo: para não relativizar nem suavizar esta realidade, importa aqui identificar todos esses 45 concelhos, onde a taxa de mortalidade por tumores malignos ultrapassa os 4,05 por mil habitantes – valor 50% acima da média nacional.

    Dados do INE revelados ontem. Ninguém os vai analisar. Ninguém analisa os dados do SICO?

    Eis a lista integral: Mora (7,4), Gavião (7,2), Lajes das Flores (6,9), Alcoutim (6,2), Vidigueira (5,4), Santa Cruz das Flores (5,3), Oleiros (5,3), Pinhel (5,3), Sabugal (5,1), Fronteira (5,1), Serpa (5,0), Belmonte (5,0), Crato (4,9), Manteigas (4,8), Alijó (4,8), Góis (4,7), Boticas (4,7), Corvo (4,6), Mêda (4,6), Melgaço (4,6), Almeida (4,6), Chamusca (4,4), Portel (4,4), Valpaços (4,4), Alfândega da Fé (4,3), Vinhais (4,3), Castro Verde (4,3), Santa Marta de Penaguião (4,3), Ferreira do Zêzere (4,3), Sardoal (4,2), Vila Nova de Paiva (4,2), Aguiar da Beira (4,2), Barrancos (4,2), Mértola (4,2), Torre de Moncorvo (4,2), Mação (4,2), Pedrógão Grande (4,2), Alcanena (4,1), Mortágua (4,1), Torres Novas (4,1), Estremoz (4,1), Seia (4,1), Sousel (4,1), Proença-a-Nova (4,1), e Fornos de Algodres (4,1).

    Como explicar estes valores? É certo que o envelhecimento populacional é uma variável relevante – e, em regra, onde há mais idosos, há mais incidência de doenças oncológicas. Mas esta explicação, só por si, é insuficiente. Há concelhos igualmente envelhecidos que registam taxas de mortalidade por cancro bem abaixo da média. A diferença não se resume à idade.

    Importa, por isso, levantar outras hipóteses. Poderão estar em causa factores ambientais, como a existência de antigas explorações mineiras abandonadas e mal descontaminadas, solos ou lençóis freáticos com presença de metais pesados ou substâncias cancerígenas, ou mesmo contaminação da água potável. Também a qualidade da alimentação – fortemente dependente de padrões económicos e culturais locais – pode influenciar o risco de doença oncológica, sobretudo quando associada ao consumo excessivo de carnes processadas, deficiente ingestão de vegetais frescos, ou exposição a pesticidas.

    man in white and black jacket and pants sitting on black surface

    Outros factores, de natureza sistémica, poderão igualmente estar a contribuir. A escassez de rastreios organizados em tempo útil, como os do cancro da mama, do colo do útero ou do cólon e recto, impede diagnósticos precoces. E quando o diagnóstico chega tarde, o prognóstico agrava-se. Acresce, em muitos destes concelhos, a distância significativa até unidades hospitalares com oncologia, radioterapia ou cirurgia especializada, criando barreiras de acesso que nem sempre se vencem com ambulâncias. O tempo e o custo das deslocações – muitas vezes em transportes públicos escassos ou inexistentes – funcionam como obstáculos reais ao tratamento.

    Mesmo os circuitos de referenciação médica podem falhar, ou ser excessivamente lentos, sobretudo quando os centros de saúde locais operam com falta de clínicos experientes, ou quando os doentes são deixados meses à espera por uma consulta hospitalar. E não é difícil imaginar que, nos meios mais isolados e envelhecidos, o desânimo ou a resignação perante a doença também contribuam para o diagnóstico tardio e para a morte precoce.

    Mas a pergunta essencial mantém-se: se os dados estão disponíveis, se os números denunciam estes focos de mortalidade excessiva, porque não se actua?

    Ana Paula Martins, ministra da Saúde.

    Porque não há, no seio da Direcção-Geral da Saúde ou das administrações regionais, uma estratégia específica de vigilância e intervenção dirigida a estes territórios vulneráveis? Quantas destas mortes seriam evitáveis com uma política pública de saúde baseada em evidência, em vez de assente numa gestão inercial de silêncios e rotinas?

    A resposta é dolorosamente simples: porque ninguém quer saber. Porque a saúde pública em Portugal continua refém de um paradigma burocrático, preguiçoso e ineficaz. Porque temos dados – dados extraordinários, únicos até – e não os usamos. E porque, acima de tudo, nos habituámos à ideia de que as mortes por doença são inevitáveis e, portanto, inquestionáveis.

    A verdade, porém, é que há mortes que podiam ser evitadas. Há vidas que podiam ter sido salvas. Se houvesse uma política de rastreios adequada em zonas de risco. Se houvesse vigilância epidemiológica baseada em dados reais. Se houvesse uma rede de saúde que respondesse proporcionalmente aos riscos de cada território. Se houvesse coragem para enfrentar a evidência e para corrigir erros.

    Em Portugal, acredita-se que se ninguém ouvir uma árvore a cair, então ela nunca caiu. É uma filosofia confortável, que iliba os responsáveis e embala as consciências. Mas a árvore caiu. E com ela, muitas vidas.

    person holding amber glass bottle

    A questão que importa agora colocar é esta: quantas dessas mortes foram provocadas, não por um tumor implacável, mas por um Estado indiferente? Quantos diagnósticos falhados? Quantas oportunidades perdidas de prevenir? Quantas mortes, afinal, foram produzidas pela inacção?

    E mais: quantas mais ainda virão? Porque, enquanto se esconderem os dados, enquanto se impedirem jornalistas, investigadores e cidadãos de saber o que se passa realmente, continuaremos a viver numa república em que o sangue escorre em silêncio pelas estatísticas. E a sua morte – sim, a sua – pode ser apenas mais uma célula neste organismo doente que se convencionou chamar sistema nacional de saúde.

  • Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM

    Da ‘notícia’ do Correio da Manhã sobre um colaborador do PÁGINA UM


    Hoje, o Correio da Manhã, com difusão posterior pela CMTV, dirigido pelo jornalista Carlos Rodrigues, decidiu noticiar que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista passou “cartão a ex-PJ cadastrado”, fazendo referência ao facto de essa pessoa se tratar de João Pedro de Sousa, que efectivamente obteve o título de Colaborador – título distinto do de Jornalista – a pedido do PÁGINA UM, e particularmente de mim.

    O passado de João de Sousa não é segredo nem ele o esconde – e disso mesmo temos falado no podcast ‘A Corja Maldita‘, em que, com a minha moderação, ele participa com o advogado Miguel Santos Pereira. A sua experiência, como consultor forense, será de enorme utilidade para o PÁGINA UM, sobretudo em temas de Justiça, e particularmente no acompanhamento de julgamentos relevantes, como o dos Anjos vs. Joana Marques (a sua crónica inaugural teve mais de 140 mil leituras) ou o de José Sócrates. Nesta fase, João de Sousa recolherá informação e escreverá crónicas ou artigos de opinião.

    Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, durante uma conferência em que a Medialivre prestou serviços à autarquia de Lisboa, usando jornalistas, a troco de quase 150 mi euros.

    Tenho perfeita noção dos bastidores da imprensa (e dos incómodos causados pelas nossas notícias nos grupos de media) e da Justiça, e por isso das intenções deste tipo de notícias. Mas não deixa de me suscitar cinco perplexidades ter a notícia sido publicada no Correio da Manhã (CM), e difundida na CMTV, órgãos de comunicação social aos quais hoje se remeteu um pedido de direito de resposta, ao abrigo da Lei da Imprensa.

    Primeira perplexidade: o CM foi o primeiro órgão de comunicação social a contar com João de Sousa como colaborador – justamente bem pago – ainda enquanto cumpria pena em 2015. Presumo que lhe reconhecia valor.

    Segunda perplexidade: o título e texto assinado por Miguel Azevedo (que saberá, presume-se, a diferença entre “jornalista” e “colaborador”) denotam um tom claramente depreciativo, sugerindo indisfarçada oposição à reabilitação e reinserção social. Ao invés, até prova em contrário, não discrimino profissionalmente quem procura recomeçar com dignidade. João de Sousa foi libertado em 2018 e não teve qualquer condenação a partir dessa data, sendo reconhecido como consultor forense.

    Terceira perplexidade: numa breve pesquisa encontra-se, entre os quadros da Medialivre, jornalistas com cadastro: Tânia Laranjo, Sónia Trigueirão, Ana Isabel Fonseca, Eduardo Dâmaso. A primeira destas jornalistas até já foi condenada ao pagamento de uma coima pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial (CICDR) por práticas discriminatórias. A nenhum destes jornalistas foi retirada a legitimidade de deter o título de jornalista — mesmo se o crime foi cometido como jornalista.

    Quarta perplexidade: fui eu, enquanto director do PÁGINA UM, quem decidiu solicitar à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista a acreditação de João de Sousa como colaborador – e não como jornalista –, precisamente por uma questão de transparência, responsabilidade e acesso legítimo a fontes de informação. Ao contrário de outros, não temos ‘toupeiras’ nem ‘telhados de vidro’. A CCPJ limitou-se a aplicar a lei: negar-lhe a acreditação seria incorrer numa injustificada discriminação que seria legalmente inadmissível.

    Quinta perplexidade: o CM, que recorre com frequência aos seus jornalistas para executar contratos de prestação de serviços, pagos por entidades externas — situação manifestamente incompatível com o Estatuto do Jornalista —, não parece indignar-se com esse seu modus operandi. Mais surpreende, pois, que seja precisamente este jornal a criticar a emissão pela CCPJ de um simples cartão de colaborador do PÁGINA UM, usando uma página inteira.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM

  • É o caráter, estúpido

    É o caráter, estúpido


    Em 29 de maio, Gouveia e Melo (GM) anunciou que é candidato a Presidente da República (PR). A apresentação da candidatura teve o modelo de “alocução às tropas em parada”: o tom e o semblante severos, o conteúdo do discurso, a aprovação dos aplausos, a audiência sob a direção do mestre de cerimónias, tudo sustentou a imagem de (mais) um D. Sebastião. E as “tropas”, “em parada” ou através dos media, arrebatadas, aclamaram o “Messias”. No fim, a encenação com jovens não dissipou o tom grisalho, e varonil, da audiência, nem a vanguarda de despeitados dos partidos e perdedores militantes (confirmada no dia seguinte).

    Ninguém se surpreendeu com o anúncio. A ideia foi lançada em 2021 numa TV, e os media, sobretudo o Diário de Notícias e as TVs (com muitas “sondagens”), alimentaram-na, dando-lhe palco mediático semanalmente ou mais. Os media garantiram-lhe a notoriedade nestes 4 anos, sem a qual o seu protagonismo na crise pandémica se teria diluído nas mentes das massas.

    A Procura

    A observação e a análise dos apoiantes de GM, nas redes sociais e por aí, tem valor sociológico e político: diz-me com quem andas e digo-te quem és, diz o povo com razão. Há procura pelo “diferente” (de quê?) e há uma elite de apoiantes, os elogiantes, que a corporiza. GM disse na alocução que foram os apoiantes que o convenceram – então não foi a vitória de Trump? Logo, não é independente deles, é a sua figura de proa, o que merece escrutínio. Disse que não depende de partidos; mas isso só é um trunfo se GM não se endividar face a particulares – quem paga os €2 milhões? As dívidas a partidos são mais transparentes.

    Pouco une os apoiantes de GM, mesmo entre os elogiantes. Há até quem diga votará em Pedro Passos Coelho (PPC), se este for candidato – ninguém explicou o que aproxima GM de PPC, exceto na vaga perceção que os coloca à direita… De resto, pouco mais dizem do que “Força Almirante!” ou “O Almirante vai ganhar!”. Mas destaco 3 pontos observados nos apoiantes:

    • cidadãs menos jovens que dizem que o acham bonito, e que dizem que votam nele;
    • “pôs em ordem” a vacinação contra o SARS-COV-2, logo vai ser um bom PR, porque só ele pode “pôr o país na ordem”, obrigando os partidos a fazer o que ele manda;
    • e, por ser militar, vai ser como Ramalho Eanes, uma referência de sisudez, de integridade e de autoridade, para ser diferente do atual PR.

    Registo, sem mais, a superficialidade da avaliação de algumas cidadãs.

    A ideia de que “pôs em ordem” a vacinação cai ante os factos. Primeiro, foi o próprio GM que, quando tomou posse (2021), afirmou que “Neste momento, em cada mil vacinas que foram administradas, há uma vacina que ainda não foi clarificado como é que decorreu”; isto é, a alegada “rebaldaria” seria inferior a 0,1%; e só terá atrasado por poucos dias o momento da injeção, pois havia doses para todos, e várias vezes (Portugal encomendou mais de 60 milhões de doses). Mas a taxa de desperdício até 2022 foi superior a 11% (Auditoria 13/2023 do Tribunal de Contas). Afinal, o desperdício ocorreu depois de Francisco Ramos deixar o cargo.

    Poucos sabem destes factos, porque a maioria dos editores e dos jornalistas escolheu não os escrutinar e noticiar e, muito menos, “martelar”. E muitos apoiantes de GM nem querem saber.

    Além disso, “fogem como o diabo foge da cruz” a explicar como é que GM, notado por uma função executiva e sem bagagem política, vai ser bom numa função não-executiva e na função mais política do regime. Só emitem juízos conclusivos à volta da “ordem”; e ataques ad hominem ao mensageiro, como se fosse este o candidato. (Devo notar que não sou candidato; não vou ser; e decido em quem votar quando estiver formado o boletim de voto.)

    Poucos elogiantes caem no ridículo de dizer que GM pode ser o “novo” Eanes. Os que imaginam que todos os militares são iguais acham que, por ser militar, GM tem as virtudes e a sisudez de Eanes. Ignoram a diversidade dos militares, que incluem António de Spínola, Vasco Lourenço, Santos Costa, Rosa Coutinho, Américo Tomás, Costa Gomes, Pereira Crespo, Vasco Gonçalves, Alpoim Calvão, Otelo Saraiva de Carvalho, Galvão de Melo, Mário Tomé, Kaúlza de Arriaga, Melo Antunes, e tantos outros.

    A fé em que GM imporá “a ordem” será abordada abaixo; parece ser decisiva para os apoiantes e aponta para o essencial: o caráter de GM.

    Realço a superficialidade – sim, a superficialidade – com que tantos cidadãos parecem escolher os políticos em que votam. E é inquietante: até pessoas diferenciadas, por vezes académicos respeitados, expressam posições superficiais, mesmo que não as publiquem.

    A ordem, o belicismo e o autoritarismo

    A imagem que as pessoas em geral têm de GM é consistente: autoritário. GM e os elogiantes tentam disfarçar, só por propaganda; mas sabem que esse é o maior trunfo para as massas de apoiantes, que têm fé de que GM vai “pôr o país na ordem”. GM alimenta essa imagem, às claras quando é espontâneo, e subtilmente quando está comprometido com o teleponto.

    Mas se GM assumir sem equívocos a narrativa da “ordem”, que os seus apoiantes desejam e na qual apostam, aliena os eleitores moderados do centrão e fica só com alguns “chateados” à direita. Por isso, dizem-lhe para “vestir pele de cordeiro”, e dizer coisas bem-sonantes como “serei um presidente que respeitará os partidos políticos […] assim como a separação de poderes, tendo sempre em mente que o PR não governa.” A sério? Como acreditar nisto?

    Para não alienar a sua base natural, tem de invocar a “ordem”. Este trecho (muito aplaudido) serve esse fim: “um presidente estável, confiável e atento, acima de disputas partidárias, longe das pressões e fiel ao povo que o elegeu”. São de realçar a palavra “acima” e a expressão “o povo que o elegeu”.

    Todos os PR estiveram acima de disputas partidárias; mas as palavras “acima” e, mais adiante, “árbitro” inspiram e animam quem busca a “ordem”. É nesta ideia de “ordem”, de mandar e dar ordens aos demais atores sociais e políticos (sobretudo, aos partidos), que a larga maioria de apoiantes se revê, e que se revela a personalidade autoritária de GM neste domínio.

    Neste contexto, é de destacar a sua afirmação belicista sobre distribuir injeções contra o SARS-COV-2: “Para mim isto é uma guerra.” GM concretizou esta ideia com o uso de uniforme militar camuflado durante aqueles 8 meses de 2021. (Que os órgãos de soberania tivessem aceite essa prática de um funcionário público numa função civil, é uma das bizarrias então vividas.)

    A ideia de “ordem”, tão apreciada pelos seus apoiantes, já tinha sido expressa numa entrevista em 2021, quando afirmou: “Este país eram anos para endireitar”.

    O colapso do processo disciplinar sobre militares do NRP Mondego, por decisão do Supremo Tribunal Administrativo, por violações graves da Constituição e da lei (2025), é mais uma prova de que GM se acha acima, também, das normas do Estado de Direito.

    Acresce a acusação pelo Tribunal de Contas de excesso de ajustes diretos (2024, referida a factos de 2017) a qual prova que se acha, e há muito, acima da lei.

    A sua ideia de o PR ser um árbitro – uma autoridade para mandar em todos os demais – não é compatível com a Constituição, que o PR jura e que está vinculado a cumprir e a defender.

    Estas posições negam a afirmação de GM na sua alocução, “Defendi a liberdade, a Constituição e os interesses de todos os portugueses.” Se defendesse a Constituição, não teria sido anulado aquele processo, justamente por violar a Constituição e a lei; nem acusado pelo Tribunal de Contas, por violar a lei; nem acusado por crime praticado em serviço em 2018 (GM retratou-se para evitar o julgamento, tão convencido estava de ser inocente…).

    Numa cerimónia do Dia de Portugal (2025), GM disse a um cidadão “Cale-se!”. Contra o autor, e para o “calar”, já promoveu três processos judiciais – com a ineficácia que se vê, e que deixa os apoiantes desconsolados. Se foi assim até agora, será mais suave com os poderes de PR?

    A vaidade e o narcisismo

    Curiosamente, nunca vi um/a apoiante de GM negar a sua vaidade e o seu narcisismo. O que é bizarro, já que estes apoiantes apontam esses defeitos a Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), e é um dos motivos que invocam para quererem um PR “diferente”.

    Ainda em 2021, GM disse que “Nós somos silence service, porque gostamos de prestar serviço de forma silenciosa. Não é pôr-mo-nos em bicos de pés que vai ajudar os portugueses”. Depois andou esse ano, e os seguintes, a exibir-se nas TVs, que o esperavam onde ele ia.

    Apostando na fraca memória das massas, GM disse em 2024 sobre a distribuição das injeções que “não era qualquer militar que fazia aquilo”. E em 2025 disse: “coordenei… quando Portugal mais precisava de organização, confiança e liderança”. Em 2021, GM sugeriu humildade; mas a sua vaidade prevaleceu. Objetivamente, é falso que tenha colocado ordem numa “rebaldaria”; pelo menos, o desperdício superou 11% em dois anos.

    Já algo parecido tinha ocorrido com a tragédia de Pedrógão/Castanheira/Figueiró (2017), em que no Relatório da Comissão Técnica Independente se diz sobre GM: “O aparecimento do Comandante Naval na área de operações, por exemplo, pode ter dado algum tipo de dividendos à Marinha Portuguesa do ponto de vista político mas é negativo para as Forças Armadas e para o CEMGFA.” Os elogios que António Costa fez a GM, e os cargos que ele e MRS lhe deram revelam bem quem usufruiu dos tais dividendos.

    A vaidade de GM vence sempre que não há teleponto, como estes dois exemplos confirmam:

    – “Os chefes militares eram mais do tipo Português Suave” (2024): reflete o desprezo que nutre pelo papel e pela discrição dos chefes militares no Estado de Direito Democrático;

    – e, numa clara alusão a MRS na sua alocução, “precisamos de um presidente diferente. Um presidente capaz de unir-nos, de motivar, de dar sentido à esperança, capaz de ser consciência e exemplo […] um presidente estável, confiável e atento,”. A deselegância só surpreende quem ignora como “atropelou” o seu antecessor no comando da Armada. Mas diferente é: nenhum PR chegou ao cargo acusado por vários tribunais.

    Unir os portugueses

    Nada no seu passado, nada mesmo, fundamenta a ideia de que vai unir os portugueses. Até no seu curso de oficiais da Escola Naval, por se meter em questões pessoais a que era alheio, GM criou divisões entre camaradas, com consequências muito nefastas.

    Sem qualquer legitimidade, ou saber para tal, GM demonizou quem levantava dúvidas legítimas durante a crise pandémica, por exemplo, com esta afirmação: “Todos os malucos que acham que o vírus não faz mal” são também “inimigos””. E noutra ocasião afirmou, “Faço o que tiver de fazer e sou impiedoso com os malandros” – e é ele que decide quem são os “malandros”…

    Pior: em 2021, pressionou a imposição da inoculação das crianças contra o SARS-COV-2, sem que tivesse qualquer competência técnica na matéria que o habilitasse a opinar, e menos a pressionar, quando já se sabia que as crianças pouco ou nada eram afetadas pelo vírus.

    A expressão “um presidente […] fiel ao povo que o elegeu” merece ser analisada: nem sequer ambiciona ser o PR de todos os portugueses, mas só de quem votar nele. Quiçá não queriam que tivesse dito isto; mas foi isto que disse.

    Claro que “o povo” tinha de vir na alocução, pois é uma enzima emocional crucial nas narrativas populistas – de quem exige aos partidos que apresentem “propostas, sem demagogias”…

    O caráter de GM

    Um traço de personalidade que muitos apreciamos, pelo valor moral que tem, é a consistência, e mais quando os custos superam os benefícios. Neste âmbito, importa rever algumas posições e declarações de GM ao longo de 3 anos:

    – “Não sinto necessidade de dar [o meu contributo] enquanto político, primeiro porque não estou preparado para isso, acho que daria um péssimo político e também acho que devemos separar o que é militar do que é político, porque são campos de actuação completamente diferentes”;

    – “Os militares devem fazer o que sabem fazer, que é ser militar e os políticos fazem o que sabem fazer, que é ser políticos (…) nós vivemos numa democracia estável, não devemos confundir as coisas”;

    – “Não gosto que me imiscuam na área política. Sou militar e não tenho intenção no futuro de me candidatar a nada. Isto é um não. Quando eu digo não é não“;

    “Se isso acontecer, dêem-me uma corda para me enforcar”;

    “Quando eu digo não é não.”

    Há mais: em 2024, num dia defendeu a conscrição; na semana seguinte, recuou.

    GM também disse na alocução que o PR não governa. Mas há 3 meses indicou um programa de Governo, vago e bem-sonante, do estilo “Miss Universo”; e na alocução repetiu sons no mesmo estilo, embora com as palavras “acima” e “árbitro” pelo meio: “Precisamos de uma economia centrada nas pessoas, mais forte, mais competitiva, mais produtiva”; “Também precisamos de reformar a Administração Pública e a Justiça. […]  De olhar para as ilhas, para o interior e para a diáspora. Importa garantir saúde a todos, em tempo e qualidade”; e “Encontrar soluções para a habitação”. Nunca disse que ia ajudar o Governo a conduzir a política geral do país, nem a concretizar as políticas públicas – mas é isso que cabe nas competências do PR.

    Muito notadas foram ainda as declarações contraditórias, com intervalo de dias:

    – em 12 de Março, uma fonte próxima e não desmentida por GM afirmou que o “almirante Gouveia e Melo apresentará a candidatura logo após as legislativas”, e que “não quer interferir nem perturbar as eleições legislativas”;

    – em 14 de Maio, 4 dias antes das eleições, afirmou que “A minha decisão é avançar”;

    – em 15 de Maio, foi noticiado: “Gouveia e Melo arrependido de anúncio de candidatura”.

    Muitos apoiantes de GM criticam os políticos, por estes dizerem uma coisa e fazerem outra. Por isso, também, querem um PR “diferente”. Todavia, os mesmos toleram, justificam e alguns até aplaudem as contradições de GM. Talvez saibam que para chegar ao poder tem de dizer coisas para agradar ao centrão; já no poder pode fazer outra, como mandar nos partidos e agradar ao “povo que o elegeu”. Vale tudo para alcançar o poder? Em que atos e factos mostrou GM ser diferente dos maus políticos?

    Com estes factos da sua conduta no passado, como saber se GM vai cumprir amanhã o que diz hoje? Como confiar em GM, se ele muda de posição ao sabor do “vento”? Como pode GM unir algum grupo, sem ser pela imposição, senão mesmo pela coação?

    Usualmente, o caráter é um critério de avaliação para qualquer cargo. E é crucial para avaliar um candidato a um órgão unipessoal, político e não-executivo, com uma apreciável margem de apreciação dos factos, a qual depende diretamente do caráter e da experiência de vida.

    Por isso, é preocupante o receio evidente de editores e jornalistas em escrutinarem o passado de GM, e em analisarem a sua conduta e o seu caráter. Só querem saber do que GM diz agora; quiçá para apagar a vaidade e a espontaneidade que prevalecem sem teleponto, e que diferem da versão oficial.

    De facto, a imagem generalizada entre os portugueses, de pessoa autoritária e vaidosa, assenta justamente em avaliações de caráter, baseadas na observação da conduta de GM. Os apoiantes desejam o autoritarismo de GM. Até por isso, o caráter de GM é um elemento nuclear da sua candidatura, e é bizarro que jornalistas e editores, sempre tão ágeis a esmiuçar o passado de tantos outros, fujam a observar e a escrutinar todo o passado e o caráter de GM.

    Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Portugal punitivo: um dos países mais pacíficos do mundo… mas com um sistema penal hiperactivo?

    Portugal punitivo: um dos países mais pacíficos do mundo… mas com um sistema penal hiperactivo?


    Uma pequena nota introdutória, no sentido de informar que a presente crónica deve ser lida em conjunto com a anterior “Punir (e ver punir) sabe bem!”, e que ambas são parte de um ensaio contínuo que se pretende levar a efeito sobre algumas questões no âmbito da Justiça.

    Como explicar que um dos países mais pacíficos do mundo apresente níveis tão elevados de encarceramento e prisão preventiva?

    1. O Paradoxo da Paz Punitiva

    Em 2025, Portugal voltou a figurar entre os países mais pacíficos do mundo, alcançando o 7.º lugar entre 163 países avaliados, no Global Peace Index do Institute for Economics & Peace, ficando apenas atrás de nações como a Suíça, Singapura, Nova Zelândia, Áustria, Irlanda e Islândia, e à frente de países como a Dinamarca, a Eslovênia, o Canadá e a Finlândia, para citar alguns.

    A criminalidade violenta a nível nacional, por comparação com a realidade internacional, é diminuta, tendo inclusive, alguma dela, vindo a baixar, por exemplo, o número de homicídios voluntários consumados participados tem vindo em queda (em contraciclo com a realidade europeia), registando em 2024 um dos números mais baixos dos últimos tempos (89), as tensões sociais são moderadas, e a população expressa níveis de sentimentos de segurança adequados, mesmo com uma comunicação social muito activa e a poder contribuir para o aumento de uma percepção de insegurança.

    De acordo com os dados do Eurostat, em termos de criminalidade participada anualmente, por cem mil habitantes, Portugal está, reiteradamente, por exemplo: nos homicídios voluntários/ intencionais, a baixo da Bélgica, da Bulgária, da Dinamarca, da Alemanha, da Grécia, da França, de Chipre, da Áustria, da Polónia, da Finlândia, da Suécia, da Islândia e da Noruega, em linha com Espanha e Países Baixos; na criminalidade sexual, a baixo da Bélgica, da Dinamarca, da Alemanha, da Estónia, da Irlanda, de Espanha, de França, do Luxemburgo, da Áustria, da Finlândia, da Suécia, da Islândia, da Noruega, e da Suíça.

    Mesmo nos chamados crimes de roubo, Portugal encontra-se, a baixo da Bélgica, da Dinamarca, da Alemanha, da Irlanda, da França, de Itália, do Luxemburgo, dos Países Baixos, da Áustria, da Eslovênia, da Finlândia, da Suécia, da Islândia, da Noruega e da Suíça.

    Contudo, estes indicadores de tranquilidade social contrastam de forma abrupta com outros dados do sistema penal português: a taxa de reclusos por 100.000 habitantes é de cerca de 116, um valor superior à média da União Europeia (103) e praticamente em linha com a média da OCDE (117), que é bastante elevada por integrar países com valores altos, como os Estados Unidos da América (614), Turquia (366), Costa Rica (343), Chile (281), Israel (217), Hungria (203), Polónia (199), Colômbia (198) e México (174), segundo a Prison Policy Initiative.

    Por comparação temos: Espanha 113, França 109, Luxemburgo 107, Croácia 106, Itália 105, Chipre 103, Grécia 101, Bulgária 101, Kosovo 99, Áustria 99, Bélgica 97, Irlanda 91, Canadá 88, Eslovénia 86, Bósnia 83, Suécia 82, Arménia 79, Suíça 73, Dinamarca 69, Alemanha 67, Países Baixos 65, Noruega 54, Finlândia 51, Japão 36.

    Para além disso, segundo os relatórios SPACE (SPACE I e SPACE II) do Conselho da Europa, Portugal é consistentemente um dos países com maior duração média das penas de prisão efectiva e com uma das mais altas taxas de recurso à prisão preventiva. Isto significa que, não apenas se prende mais do que a maioria dos parceiros europeus, como se prende por mais tempo e mais cedo, frequentemente antes do julgamento.

    No tocante à duração média das penas de prisão aplicadas em Portugal, permite suscitar dúvidas sobre a proporcionalidade das sanções aplicadas, especialmente num país onde os índices de criminalidade grave são relativamente baixos. Assim sendo, que racionalidade penal legitima a manutenção de pessoas presas durante 5, 10 ou mais anos, em contextos onde a reinserção e a reabilitação raramente são mais que fórmulas retóricas?

    Em vários anos da última década, mais de 20% da população prisional portuguesa encontrava-se privada de liberdade sem condenação transitada em julgado, ou seja, por aplicação de medidas de coação, um número que coloca o país na faixa superior da Europa Ocidental.

    Ora, esta realidade contraria o princípio basilar do direito penal democrático: a presunção de inocência. A prisão preventiva, que deveria ser excepcional e devidamente fundamentada, parece muitas vezes funcionar como instrumento antecipatório da punição, ou como meio de gestão processual perante atrasos e insuficiências do sistema judicial.

    A taxa de encarceramento de Portugal ultrapassa inclusive a de alguns países com níveis de criminalidade e instabilidade significativamente superiores.

    2. A Violação Sistemática das Garantias

    A revisão crítica do uso da prisão, tanto preventiva como efectiva, deve ser uma prioridade para qualquer Estado que se pretenda verdadeiramente de Direito. Reduzir a taxa de reclusão e encurtar a duração das penas não significa leniência, mas sim compromisso com os princípios constitucionais da proporcionalidade, da legalidade e da dignidade da pessoa humana.

    Portugal não precisa de prender mais. Precisa, sim, de julgar melhor, com mais imparcialidade, mais transparência, e menos medo de parecer brando quando estará, simplesmente, a ser justo.

    A pergunta que se impõe é tão simples quanto inquietante: para que serve um sistema de justiça criminal severo num país objectivamente pacífico? Sobretudo, quando hoje é claro em todo o mundo, que uma maior punição não gera uma menor taxa de criminalidade, tendo sim, o efeito contrário.

    A prisão, quando usada em excesso, não é apenas cara e ineficaz, é, sobretudo, injusta. A justiça criminal deve ser proporcional, cautelosa e centrada na dignidade humana. Num país como Portugal, continuar a prender tanto e por tanto tempo não é sinal de força institucional, mas de desajuste sistémico.

    Está na altura de perguntar: será que a paz social que temos conquistado se constrói, ou se destrói, atrás das grades?

    A Diretiva (UE) 2016/343 do Parlamento Europeu e do Conselho, que visa reforçar a presunção de inocência e o direito a estar presente no julgamento penal, continua por transpor devidamente em Portugal. Tanto assim que, em fevereiro de 2025, a Comissão Europeia formalmente instou Portugal a cumprir essa obrigação.

    O incumprimento desta Diretiva contribui para práticas que comprometem gravemente os direitos fundamentais dos arguidos. Basta observar os comunicados regulares de alguns órgãos de polícia criminal, que frequentemente antecipam a culpa e descrevem os factos como provados (embora não o invoquem expressamente) antes mesmo de qualquer decisão judicial.

    A Resolução do Parlamento Europeu de 28 de Fevereiro de 2024 sobre o Estado de Direito, destaca precisamente este tipo de preocupação com a efectividade das garantias processuais em vários Estados-Membros, entre eles Portugal.

    Em paralelo, o Comitê de Ministros do Conselho da Europa tem emitido sucessivas decisões criticando a sobrelotação prisional e o uso excessivo da prisão preventiva nos Estados-Membros, incluindo Portugal.

    O que explica então este paradoxo? Mais uma vez se questiona: Como pode um país pacífico encarcerar tanto? A resposta não se encontra no crime, mas provavelmente na estrutura e mentalidade dos intervenientes do próprio sistema de justiça.

    Portugal parece encarcerar mais, não porque haja mais crime, mas porque o sistema judicial opta, reiteradamente, pela privação de liberdade como a principal resposta. A prisão, inclusive a preventiva, parece ter-se tornado uma rotina institucional, e não uma excepção rigorosamente ponderada.

    A resposta não é simples, mas começa a delinear-se ao analisarmos os dados do World Justice Project (Rule of Law Index 2024). Portugal obtém uma pontuação de 0.59 (de 0 a 1) no indicador de “Justiça Criminal”, longe dos países do topo como Finlândia (0.79), Países Baixos (0.76) ou Noruega (0.78). Em particular, surgem fragilidades nos subindicadores de imparcialidade do sistema judicial criminal (situando-se em 28.º lugar em 31 países no ranking regional, ou seja, quase em último lugar!), no respeito pelas garantias dos arguidos e a ausência de discriminação institucional.

    Curiosamente, ou talvez não, este indicador/índex (que ano após ano tem avaliado de forma preocupante a justiça criminal portuguesa) não tem merecido qualquer destaque na comunicação social portuguesa, ao contrário de outros bem mais favoráveis ao populismo penal.

    3. Cultura Judicial e Pressão Mediática

    O mais recente relatório do GREVIO (2025) – Group of Experts on Action against Violence against Women and Domestic Violence  (que faz um trabalho muito meritório no âmbito da violência contra as mulheres e da violência doméstica) –, referente a Portugal, e que foi divulgado nos média portugueses, dá ênfase a algumas das fragilidades apontadas ao sistema judicial português no tratamento de casos de violência contra as mulheres, com decisões que reproduzem estereótipos, culpabilizam as vítimas ou minimizam a gravidade da violência.

    Infelizmente (no sentido de que seria menos mau para o velho Continente se fosse só um problema do sistema português), quando comparado com os outros relatórios, revela que Portugal não se encontra particularmente desalinhado face a outros países europeus monitorizados.

    Por exemplo, a Áustria, a Dinamarca e a Finlândia, ainda que com reformas legislativas significativas (como a consagração do consentimento como critério central no crime de violação), enfrentam dificuldades semelhantes no plano jurisprudencial: persistência de decisões lenientes, resistência à incorporação da dimensão de género, e aplicação desigual da lei. Mesmo Espanha, considerada uma referência no combate à violência de género, enfrenta casos pontuais de revitimização judicial.

    Uma leitura transversal dos relatórios GREVIO evidencia que o problema não reside apenas na moldura penal ou no grau de punição, mas na cultura jurídica e no perfil hermenêutico dominante entre os magistrados. Na verdade, a tendência punitiva do sistema de justiça criminal português não se traduz automaticamente num sistema mais eficaz ou justo em matéria de violência baseada no género, antes pelo contrário, pode coexistir com práticas judiciais que perpetuam desigualdades, desconfiança e ineficácia protectiva.

    Com efeito, a dissonância entre os dados de segurança objectiva e os indicadores de severidade penal pode ser interpretada como um sintoma de um sistema que não responde proporcionalmente ao nível real de criminalidade, mas sim a pressões internas – mediáticas, institucionais ou corporativas – que favorecem uma lógica de controlo social e demonstração de força.

    Em linguagem foucaultiana, poderíamos dizer que o sistema penal português funciona menos como resposta a riscos concretos e mais como mecanismo simbólico de gestão “disciplinar”, com especial incidência, como não poderia deixar de ser, sobre grupos vulneráveis.

    A situação portuguesa, de uma possível hipertrofia punitiva num contexto de baixa criminalidade real (desde logo em termos comparativos internacionais), pode ser interpretada à luz do que vários criminologistas chamam de punitivismo estrutural. Ou seja, uma cultura penal enraizada que, apesar das garantias constitucionais, favorece:

    – A detenção como ferramenta de investigação processual, e não como último recurso cautelar;

    – Um conservadorismo judicial, com preferência por medidas privativas de liberdade;

    – Pressão mediática e populismo penal, que associam a severidade à eficácia;

    – A manutenção de um sistema judicial fechado sobre si mesmo, onde a responsabilidade pelas decisões excessivas raramente é escrutinada, onde, contrariamente a outras realidades, a assunção do erro judiciário é quase inexistente, prevalecendo fortemente em termos jurisprudenciais o critério da segurança jurídica face à dignidade do indivíduo, quase ignorando a possibilidade de terem sido cometidos erros na sua condenação – existindo como que um mito da infalibilidade da justiça criminal portuguesa, sem qualquer fundamento que o justifique, acrescendo ainda, a ausência de cultura de prestação de contas pelas decisões cautelares abusivas.

    Em suma, é um modelo que persiste, não porque os factos o justifiquem, mas porque as instituições não são desafiadas a evoluir.

    A razão profunda deste desajuste pode residir na herança sociocultural e institucional do autoritarismo português. Como referiu o sociólogo António Barreto no seu artigo “É difícil viver em Portugal” em 29 de Julho de 2023 no Jornal Público, os mitos da excelência nacional escondem uma realidade mais incómoda: impunidade dos poderosos, ineficácia da administração da justiça e desprezo pelo princípio da equidade.

    A transição democrática não desmantelou inteiramente o ethos punitivo do Estado Novo. Muitos dos seus mecanismos de controlo social mantiveram-se institucionalmente activos, e a práctica penal continua, em larga medida, marcada pela presunção de culpa e pelo privilégio das instituições sobre a lei (um verdadeiro primado das instituições).

    Este quadro é agravado por um contexto social em que, segundo o mais recente Inquérito às Competências dos Adultos da OCDE, os níveis de compreensão crítica e de literacia (também jurídica) da população adulta estão abaixo da média europeia. Tal contexto favorece um discurso populista punitivo e dificulta o escrutínio dos abusos institucionais.

    O punitivismo penal, em sociedades com baixos níveis de criminalidade, não é só injusto: é irracional. Não reduz a reincidência, não aumenta a segurança objectiva, e descredibiliza a ideia de justiça como bem comum. Temos um sistema que prende muito, prende cedo (preventivamente), e prende por muito tempo — não por necessidade, mas por inércia, ideologia e pressão simbólica.

    Reiteramos, a verdadeira pergunta é, pois: como se justifica tanta prisão num país tão pacífico?

    A resposta pode estar no desequilíbrio entre legalidade formal e prática institucional. É tempo de recentrar o sistema penal nos seus fundamentos constitucionais: proporcionalidade, reinserção, presunção de inocência e respeito pela dignidade humana. Até lá, continuaremos a viver o paradoxo de sermos campeões da paz… e da prisão.

    Mais grave: como é que perante este cenário, e estes dados objectivos, continuamos a ouvir por parte das forças políticas e da justiça, uma necessidade de aumento da moldura penal de alguns crimes, a possibilidade de criação de novos tipos de crime, bem como, propostas de redução de algumas garantias dos arguidos? Como é possível tamanha contradição? Por vezes esquecemos que o direito criminal é a ultima ratio de resposta de um Estado Democrático de Direito, e que não serve seguramente para resolver problemas da sociedade, que podem e devem ser resolvidos de outra forma.

    4. Punitivismo Cognitivo e Neurobiologia do Medo

    Para além do contexto histórico, provavelmente a criminologia, a sociologia, a psicologia cognitiva e a neurobiologia possam explicar um pouco desta “perturbação homeostática” das estruturas sociais ligadas à justiça. Deixemos alguns apontamentos breves, que merecerão textos autónomos oportunamente.

    Independentemente dos níveis de criminalidade existentes num determinado país, propalar aumentos de penas e redução de garantias é fórmula com sucesso garantido junto da opinião pública.

    A razão é simples, o cidadão recebe este tipo de informação colocando-se no papel de vítima, ou seja, como beneficiário deste tipo de medidas, gerando um sentimento de reforço da sua segurança, pelo que, facilmente lhes adere.

    Depois, com base nesse apoio popular criado artificialmente, bradam-se aos quatros ventos a necessidade de aumentar o limite máximo (e por vezes também o mínimo) de algumas pena de prisão, mesmo nas situações em que as penas efectivamente aplicadas não se aproximam do limite superior da moldura penal (ainda antes do cúmulo da pena), ignorando que as razões de política criminal que justificam a criminalização de comportamentos, ou a alteração das suas molduras penais, não são (não podem ser) o apoio popular nesse sentido com pré-activação para o efeito.

    Mas esta forma de manipulação e aproveitamento das “massas”, que contribui para a criação e manutenção de uma cultura punitiva, não é um fenómeno exclusivo português. A política Law and Order de Donald Trump é um exemplo disso mesmo, chegando ao ponto de prometer penas mais pesadas e construção de novas prisões, com amplo apoio popular (e obrigando os Democratas a colocar o mesmo tema na agenda, com receio de perderem base eleitoral), num dos períodos com mais baixa taxa de criminalidade violenta dos EUA nas últimas décadas.

    Muitos teóricos do estudo do populismo penal consideram que o apogeu dessa tendência (com forte contaminação no discurso de políticos de outros países onde se inclui Portugal) se dá exactamente com Trump, recuperando o slogan Law and Order fortemente utilizado por Barry Goldwater nos anos 60´s do século XX. Aliás, o próprio se autointitulou “the law and order candidate” (na campanha de 2016) e em 2020 “your presidente of law and order”.

    No entanto, a realidade tem demonstrado que existe ampla divergência entre o discurso e a práctica (sobretudo no que diz respeito à protecção de grupos a que pertencem aqueles que se encontram mais próximos, de que é disso exemplo mais recentemente  a sua ordem executiva de 9 de Maio de 2025, intitulada Fighting Overcriminalization in Federal Regulations e a perseguição a Juízes que contrariem as suas ordens executivas).

    David A. Graham, jornalista e editor sénior na revista The Atlantic, editou um livro em 2020, composto por uma coleção de artigos e ensaios que publicou durante a presidência de Trump, com um título bem sugestivo: “Trump Has Delivered Only Chaos”.

    Importa referir que existem pessoas que geram e se alimentam do caos, e que não são apenas os motivos partidários que explicam o porquê de partilharem rumores políticos hostis nas redes sociais. Existe também um impulso psicológico profundo em certos indivíduos, designado como “necessidade de caos” (Need for Chaos), que os leva a querer destruir a ordem social e política estabelecida como forma de afirmação pessoal e ganho de estatuto, sendo, aparentemente, não uma perturbação ou um traço de personalidade, mas sim uma adaptação psicossocial em contextos de exclusão e frustração.

    Pessoas com este comportamento, com especial proliferação nas redes sociais, contribuem grandemente para a desinformação e a instabilidade social, que gera insegurança e serve de terreno fértil para políticas criminais punitivas, como suposta forma de repor a ordem social.

    É exactamente este “caldo de cultura” vigente e transversal à grande maioria de países do eixo ocidental, onde se inclui o nosso, que potencia o populismo penal. Acresce o facto de existir uma crise grave de sustentabilidade dos meios de comunicação social ditos tradicionais (mas não só, veja-se que os algoritmos da redes sociais também funcionam no mesmo sentido), que os leva a optar pelo caminho mais fácil (na maioria das vezes), para obtenção de audiências e clickbaites, onde, obviamente, a punição e o gosto pela mesma tem lugar de destaque, como já tivemos a oportunidade de escrever na crónica anterior.

    Em Portugal existe ainda a circunstância de termos uma prática de violação de segredo de justiça, que alguns designam por selectiva (conforme demonstrado pelo projecto que resultou na obra “Murder In Our Midst”, melhor citada em referências), e que em muito contribui para derrubar a presunção de inocência e conduzir a uma maior taxa de punição através do juízo paralelo feito pela opinião pública, que pressiona e contamina os tribunais.

    O relatório da OCDE sobre a competência dos adultos portugueses, acima citado, é especialmente grave neste campo, porque articulado com alguns estudos científicos existentes, permite perceber que existe uma maior apetência pelo discurso punitivo de extrema direita, por ser aquele que é menos complexo, mais directo e que aparentemente parece dar respostas aos anseios populares de maior segurança.

    Importa referir que, mesmo que em minoria, as pessoas insatisfeitas e ressentidas com o estado do país, têm uma muito maior capacidade de mobilização e agitação, do que uma maioria silenciosa.

    Para compreendermos com maior profundidade os mecanismos que sustentam uma cultura punitiva em sociedades pacíficas, como é o caso de Portugal, é indispensável convocar também os contributos da neurobiologia do comportamento social e moral. O impulso para punir, sobretudo de forma ostensiva ou exemplar, não decorre apenas de opções políticas ou de falhas institucionais: ele é também resultado de disposições neuropsicológicas profundamente enraizadas, que interagem com o contexto cultural e mediático.

    Já sabemos (ver primeira crónica) que a amígdala (uma coleção de neurónios em forma de amêndoa), é uma estrutura cerebral com especial relevância na percepção do medo e da ameaça, um género de sistema de alarme neural, hiperactiva em contextos de incerteza social, ainda que a ameaça objectiva seja residual ou até inexistente. Esta hiperactividade correlaciona-se com uma maior adesão a políticas securitárias e punitivas.

    Sabemos também que a actividade do núcleo accumbens (é o principal componente do estriado ventral), ligado ao sistema de recompensa, é activado em sujeitos pela simples observação da punição de um “transgressor”, existindo um prazer neurobiológico no castigo.

    Tudo isto, ajuda a explicar por que razão, mesmo perante níveis baixos de criminalidade, parte significativa da população continua a apoiar políticas penais mais severas: o castigo funciona como válvula de escape simbólica para frustrações acumuladas e ansiedades difusas.

    Tendo presente que o cérebro humano foi moldado, em termos evolutivos, para punir violadores de normas, como forma de proteger a coesão do grupo, importa não esquecer que já não vivemos em bandos ou em tribos, e que este impulso adaptativo, poderá ser desajustado em sociedades modernas complexas, como as actuais, em que o devido processo penal deve obedecer a garantias racionais e não se deixar levar por reflexos emocionais, o que, infelizmente, ainda acontece demasiadas vezes.

    Acresce que o cérebro humano funciona por previsão, com base na informação do interior do nosso corpo, onde se incluem as experiências passadas, juntamente com os dados sensoriais que nos chegam do mundo, calculando uma série de probabilidades do que possa ter acontecido, preparando-nos para agir. Acontece que muitas vezes as previsões não estão correctas. Tudo o que vemos, ouvimos, cheiramos e saboreamos no mundo e sentimos no nosso corpo é totalmente construído na nossa cabeça.

    Um dos problemas desta forma de funcionamento do cérebro, tendo em vista a acção (rápida, se necessário for), com os parâmetros da sobrevivência e preservação do corpo em lugar de destaque, é que com pouca informação disponível, saltamos rapidamente para conclusões. Ou seja, fazemos julgamentos intuitivos, rápidos, emocionais e punitivos com demasiada facilidade, dos quais, por vezes temos não só dificuldade de sair – coerência excessiva – como potenciam os vieses de confirmação.

    Neste ponto último, António Damásio elucida-nos deste modo: “O nosso trabalho mostra que a resistência à mudança está associada à relação conflituosa entre sistemas cerebrais relacionados com a emotividade e a razão. A resistência à mudança está associada, por exemplo, à ativação de sistemas responsáveis pela produção de zanga e fúria. Criamos uma espécie de refúgio natural para nos defendermos contra a informação contraditória” (ob. citada em referências pág. 294).

    O que acabámos de descrever é exactamente o que acontece no processo penal português, com o julgador a ter acesso a todos os elementos da acusação, quando a defesa ainda não compareceu nos autos. Razão pela qual, Morris B. Hoffman (ob. citada em referências) nos alerta para o facto do processo penal ser contranatura (no caso dos EUA pelo facto de a acusação ser a primeira a apresentar a sua argumentação e prova).

    Não falando, pelo menos neste texto, o facto de termos as duas Magistraturas de “mãos dadas” desde o CEJ, quem acusa e quem decide… e o mais estranho é “ninguém” (sobretudo o legislador), achar nada de anormal em tal circunstância, mesmo com o princípio acusatório e da igualdade de armas com respaldo constitucional.

    Facilmente se compreende que num clima de polarização mediática, excesso de carga sensorial e baixa literacia, as decisões colectivas (em obediência aos fenómenos de massas) tendem a ser dominadas por instintos de punição e exclusão, em vez de deliberativas e justas.

    Em Portugal, onde os indicadores de literacia crítica e jurídica são baixos, e onde o discurso mediático, como vimos, tende a favorecer o sensacionalismo penal, este desvio intuitivo é ainda mais acentuado.

    Pensamos pois, que é através destas condições gerais, misturadas com o nosso contexto histórico-social, que será possível compreender o porquê de um país tão pacífico como o nosso, ter níveis de punição e de reclusão tão elevados.

    Se quisermos recentrar o sistema de justiça criminal nos seus fundamentos constitucionais e humanistas, é essencial reconhecer e conter o substrato neuroemocional que alimenta o punitivismo, bem como precisamos de mais informação objectiva, mais estudos empíricos, nomeadamente sobre os erros judiciários cometidos anualmente no sistema de justiça criminal português, de modo a finalmente (nem que seja por modo comparativo com outras latitudes), conseguirmos compreender o fenómeno (ou o mito) da infalibilidade da justiça criminal portuguesa… ou se se trata apenas de corporativismo e de modo de preservação do primado das instituições.

    Uma coisa é certa: não é razoável fazermos reformas no âmbito penal e processual penal com base em meras percepções, ou emoções, sobretudo, por iniciativa daqueles que, mesmo fazendo parte do sistema, não são capazes de fazer o seu diagnóstico, e apontar as verdadeiras falhas do mesmo. Mas para isso, reiteramos que são necessários muitos mais dados e estudos de campo, que infelizmente não existem.

    Conclusão: entre a lucidez constitucional e a ilusão punitiva

    O caso português demonstra, de forma exemplar e inquietante, como um país objectivamente pacífico pode alimentar um sistema penal hiperactivo, desproporcional e estruturalmente disfuncional. A dissonância entre os dados objetivos de criminalidade e a intensidade das respostas punitivas revela um desequilíbrio profundo entre legalidade formal e prática institucional, potenciado por factores históricos, mediáticos, emocionais e até neurobiológicos.

    A crítica aqui desenvolvida não se limita a denunciar estatísticas ou denunciar abusos. Ela pretende lançar as bases de uma transformação: uma justiça que não reaja por instinto, medo ou pressão simbólica, mas que decida com racionalidade, proporcionalidade e plena consciência constitucional.

    Num tempo de ruído, polarização e simplificação populista, urge devolver à justiça criminal o seu verdadeiro lugar: última ratio de um Estado de Direito Democrático. Para isso, precisamos de mais dados, mais pensamento crítico, mais escrutínio público, e sobretudo, mais coragem para reconhecer os nossos próprios erros, e corrigi-los.

    Até lá, continuaremos a viver o paradoxo de sermos, em simultâneo, campeões da paz… e da prisão.

    Miguel Santos Pereira é advogado, é membro: da Ordem dos Advogados Portugueses – OAP, da American Bar Association – ABA, com inscrição na divisão de Justiça Criminal, da Association Internationale De Droit Pénal – AIDP, da European Criminal Bar Association – ECBA, da Society for Judgment and Decision Making – SJDM, e do The Centre of Neurotechnology and Law.

    Referências:

    António Damásio, “A Estranha Ordem das Coisas, A vida, os sentimentos e as culturas humanas” (2017, Temas e Debates)

    David A. Sklansky, “Criminal Justice in Divided America, Police, Punishment, and the Future of our Democracy” (2025, Harvard University Press).

    Gordon Hodson and Michael A. Busseri, “Bright Minds and Dark Attitudes: Lower Cognitive Ability Predicts Greater Prejudice Through Right-Wing Ideology and Low Intergroup Contact”. Psychological Science published online 5 January 2012. DOI: 10.1177/0956797611421206.

    Lisa Feldman Barret, “7 lições e meia sobre o cérebro” (2022, Temas e Debates).

    Michael Bang Petersen, Mathias Osmundsen, Kevin Arceneaux, «The “Need for Chaos” and Motivations to Share Hostile Political Rumors», American Political Science Review (2023) 117, 4, 1486-1505, doi:10.1017/S0003055422001447

    Morris B. Hoffman, “The Punisher’s Brain: The Evolution of Judge and Jury” (2014, Cambridge University Press).

    Onraet, Emma, Van Hiel, Alain, Dhont, Kristof, Hodson, Gordon, Schittekatte, Mark and De Pauw, Sarah (2015) “The Association of Cognitive Ability with Right-wing Ideological Attitudes and Prejudice: A Meta-analytic Review”. European Journal of Personality, 29 (6). pp. 599-621. ISSN 0890-2070. DOI: 10.1002/per.2027.

    Owen D. Jones, Jeffrey D. Schall, Francis X. Shen, Morris B. Hoffman and Anthony D. Wagner, “Brain Science for Lawyers, Judges, and Policemakers” (2024, Oxford University Press).

    Robert Sapolsky, “Comportamento” (2018, Temas e Debates).

    Romayne Smith Fullerton & Maggie Jones Patterson, “Murder In Our Midst, Comparing Crime Coverage Ethics in a Age of Globalized News” (2021, Oxford University Press).

  • Demissão do Conselho Regulador da ERC: ontem já era tarde; hoje já não basta

    Demissão do Conselho Regulador da ERC: ontem já era tarde; hoje já não basta


    Há reguladores que regulam mal. Outros que não regulam. E depois há a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) — que se especializou numa nova modalidade institucional: regular às escondidas, pela calada, escamoteando deliberações, omitindo documentos, arquivando processos que nunca chegam a sê-lo formalmente.

    A recente revelação — forçada pelas perguntas do PÁGINA UM — de que o processo de contra-ordenação ao jornal Público, por alegada violação da Lei do Tabaco, foi discretamente arquivado em Agosto passado sem qualquer deliberação pública, ilustra à saciedade o que se tornou prática no actual mandato de Helena Sousa: uma cultura de opacidade e conivência institucional com os grandes grupos de comunicação social.

    Importa recordar que este processo nascera de uma deliberação formal da própria ERC, em Novembro de 2022, que considerava inequívoca a infracção cometida pelo Público, classificando-a como “muito grave”. O conteúdo em causa era um artigo promocional pago pela Tabaqueira, coincidente com o lançamento do produto de tabaco aquecido IQOS Iluma, e acompanhado de imagens típicas de publicidade camuflada, com a presença destacada do director-geral da empresa. Em termos legais, não havia dúvida para o anterior Conselho Regulador: tratava-se de publicidade ilícita, vedada expressamente pela Lei do Tabaco.

    No entanto, com a mudança de presidência — e a ascensão de Helena Sousa, académica sem experiência jurídica ou percurso em órgãos de regulação —, o que era certo passou a nebuloso. Um processo formal, com deliberação prévia unânime e indícios de contra-ordenação foi eliminado por uma suposta “análise preliminar” da sua Unidade de Contra-Ordenação. E pior: sem qualquer explicação voluntária por parte da entidade que, por dever constitucional, deve garantir a liberdade de imprensa e o acesso dos jornalistas à informação.

    Não é caso único. O PÁGINA UM tem sido forçado a recorrer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e aos tribunais para obter documentos que a ERC insiste em esconder. Mesmo após pareceres desfavoráveis, o regulador interpõe recursos, como se fosse parte interessada em proteger segredos que deveriam estar ao serviço da cidadania e da fiscalização democrática. Veja-se um caso recente em que, entre outros assuntos, o Tribunal Administrativo de Lisboa intimou a ERC a entregar ao PÁGINA UM todos os documentos associados com a negócio a venda do JN e TSF (entre outras publicações), cuja deliberação teve 78 rasuras inexplicáveis, apagando como confidencial questões relevantes.

    Exemplo flagrante da falta de transparência da ERC: na autorização do estranho negócio da transmissão / venda de títulos da Global Media à Notícias Ilimitadas aspectos essenciais são escondidos com a palavra CONFIDENCIAL. O Tribunal Administrativo de Lisboa determinou que todos esses elementos deveriam ser acedidos pelo PÁGINA UM, mas a ERC recorreu para a instância superior, mostrando ser adepta do obscurantismo em negócios de media pouco claros.

    Tenho já alguns anos disto para entender que se está perante uma estratégia deliberada da ERC de bloqueio informativo, dirigida especialmente contra jornalistas incómodos e meios não alinhados com os grandes grupos económicos que controlam a imprensa dita de referência.

    A atitude da ERC no processo do Público mostra que a indústria do tabaco, cada vez mais refinada nas suas estratégias de marketing, usa agora os jornais como veículos de promoção “sustentável”, investindo em conteúdos patrocinados, participando em podcasts, colando-se à imagem de inovação tecnológica e responsabilidade social. Com a bênção da ERC, que em vez de sancionar práticas ilegais, arquiva processos às escondidas, transforma “contra-ordenações muito graves” em nada, e cala-se perante perguntas legítimas de jornalistas que fazem o seu trabalho.

    A decisão de não penalizar práticas de publicidade sub-reptícia proibidas por lei junta-se à forma como a ERC tem vindo a aceitar, com passividade cúmplice, contratos de parcerias promíscuas entre grupos de media, empresas privadas e até entidades públicas. As coimas, quando existem, são simbólicas — um teatro jurídico que apenas confirma que, em Portugal, o crime compensa. E é por isso que temos grupos de comunicação social em crise financeira crónica, como a Trust in News, a Global Media ou mesmo a Imprensa, que sobrevivem à custa de publicidade institucional, parcerias obscuras e compadrios com o poder político e económico.

    Se a credibilidade da imprensa anda pelas ruas da amargura, a culpa primordial está precisamente na ERC e no seu Conselho Regulador. Um regulador que se mostra constituído por gente sem qualidade, sem coragem e sem noção da sua função constitucional.

    Helena Sousa, presidente da ERC está ao serviço da liberdade da imprensa ou de interesses pouco claros?

    Ontem, a demissão da presidente Helena Sousa e dos seus comparsas talvez fosse suficiente. Hoje, perante o que se sabe — arquivamentos secretos de processos de contra-ordenação e recusa deliberada de prestar contas —, já nem a demissão basta. Impõe-se, no mínimo, uma auditoria externa e independente ao funcionamento da ERC. E, quiçá, uma responsabilização jurídica dos seus membros, caso se confirme que violaram normas legais e administrativas essenciais.

    A ERC é hoje um caso paradigmático de decadência institucional. Quando o regulador adopta os tiques de prepotência, quando abdica do seu dever de fiscalização, quando protege os fortes e tenta até silenciar os que investigam, vemos que está em curso não uma regulação, mas uma rendição. E é a democracia que fica mais pobre. Porque uma imprensa livre só existe quando há reguladores livres — e não cúmplices — dos poderes que deveriam escrutinar.