Categoria: Opinião

  • A Universidade de Braga e o taberneiro Monteiro

    A Universidade de Braga e o taberneiro Monteiro


    A universidade deveria ser um espaço de saber e decantação, onde o pensamento se eleva pela dúvida e o confronto de ideias se faz com argumentos, não com insultos. Mas a academia contemporânea, minada por egos frágeis e pelo culto da visibilidade digital, transformou-se num antro de maledicência — um mercado de vaidades onde se confunde opinião com autoridade e onde a inveja se disfarça de erudição. Já não se disputa a verdade; disputa-se a atenção. E o que deveria ser diálogo científico converte-se em guerrilha tribal, em que o ódio se exibe em nome da virtude.

    Nos últimos anos, as universidades multiplicaram equipas interdisciplinares na área da comunicação, reunindo sociólogos, filósofos, jornalistas e tecnólogos. Tal diversidade, em princípio, enriqueceria o pensamento. Mas implica, por isso mesmo, uma responsabilidade acrescida. Quem trabalha no campo da comunicação deve compreender que as palavras têm peso, que a reputação é um bem público e que o rigor não se desliga à porta do campus. Não se pode ser investigador meticuloso de dia e taberneiro digital à noite. A liberdade académica não é licença para difamar.

    Eis que surge o caso paradigmático do senhor João Lourenço Monteiro, licenciado e mestre em Biologia e doutorado em História e Filosofia das Ciências — um percurso respeitável, até se conhecer o uso que faz dele. Monteiro estudou a produção e circulação do conhecimento médico no Instituto de Medicina Tropical durante o Estado Novo, recorrendo, diz-se, a ferramentas de Humanidades Digitais. Integra o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho, uma das principais unidades de investigação do país nesta área.

    E, talvez crente na sua própria infalibilidade, decidiu exercitar o insulto público, deixando no perfil da historiadora Irene Pimentel a seguinte proclamação:

    “O Página Um é uma plataforma de desinformação que surgiu há poucos anos para apoiar uma narrativa contra as medidas de contenção à COVID. Não é um jornal imparcial, portanto não leve a sério o que lá é escrito.”

    Comentário de João Monteiro que consta como investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho

    Não conheço — nem reconheço — mérito científico a João Monteiro, até porque isso nem é o mais relevante. Mas levo estas suas palavras a sério, não pelo seu conteúdo, que é miserável, mas pela sua origem: um investigador associado a uma universidade pública (Universidade de Braga) e a um centro dedicado precisamente ao estudo da comunicação (Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade) proclama publica e gratuitamente que um jornal independente é uma “plataforma de desinformação”.

    As suas afirmações não são um mero desabafo de rede social; são uma acção discursiva que fere o princípio da integridade académica, pois difundem falsidades em nome de uma autoridade institucional. Quando um académico abdica da dúvida e abraça o insulto, não apenas degrada a sua credibilidade: compromete a da instituição que o acolhe.

    Presumo — com generosidade académica — que o doutor Monteiro tenha aplicado um método, um quadro teórico, uma amostra e uma análise de conteúdo para concluir, com tão firme convicção, que o PÁGINA UM é “uma plataforma de desinformação”. Talvez, entre cafés e indignações digitais, tenha cruzado palavras-chave, medido enviesamentos ou estruturado um modelo conceptual digno da Nature Human Behaviour. Ou talvez não. Talvez — quem sabe — estas conclusões “científicas” do taberneiro Monteiro nada tenham a ver com ciência, mas antes com os ódios de estimação que o PÁGINA UM tem suscitado em certos círculos académicos.

    João Monteiro, á direita, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho ‘decretou’ que o PÁGINA UM é uma “plataforma de desinformação“. Foto: DR

    Não será certamente o caso — Deus nos livre de tal coincidência — que esta súbita vocação inquisitorial derive do incómodo que o PÁGINA UMA tem causado a alguns nomes em destaque no próprio CECS, como a doutora Helena Sousa, actual presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, instituição que, curiosamente, continua a resistir com zelo quase bíblico às ordens judiciais que a obrigam a libertar documentos públicos requeridos por este jornal.

    Seria injusto suspeitar que a animosidade se alimenta do simples facto de o PÁGINA UM não ser um órgão domesticado — e, portanto, mais difícil de controlar pela cartilha institucional. Não, deve ser tudo fruto de uma sofisticada inferência empírica, construída com os instrumentos mais rigorosos da epistemologia minhota.

    Eis o drama da academia contemporânea: nela habitam muitos doutores do conhecimento e poucos senhores do carácter. A instrução multiplica-se, mas a verticalidade definha. O título de doutor já não é penhor de honra — é apenas ornamento de vaidade. E o que vemos, demasiadas vezes, é o triste espectáculo de investigadores que dominam teorias, citam autores e publicam papers, mas não distinguem verdade de intriga, nem probidade de conveniência. São letrados na superfície e miseráveis na substância: confundem inteligência com esperteza, e confundem autoridade com soberba.

    Que valor tem, afinal, o saber, quando o seu portador é incapaz de o exercer com decência? Que utilidade possui a ciência, quando se usa o prestígio universitário para lançar lama, e não luz? A mediocridade ética tem hoje estatuto de normalidade, e o insulto académico faz carreira nas redes sociais com a mesma leveza com que se troca um “like”. É o triunfo do investigador sem gravidade moral, do estudioso que conhece todas as teorias da comunicação, menos a da sua própria responsabilidade.

    E assim, entre publicações indexadas e financiamentos competitivos, floresce um novo tipo de intelectual: o erudito da calúnia, versado em bibliografia mas desprovido de vergonha. São eles os novos inquisidores do debate público, que medem a virtude pela conformidade ideológica e confundem a crítica com blasfémia. Talvez João Monteiro se veja nesse espelho — mas temo que não reconheça o reflexo. Afinal, a vaidade académica é uma lente deformante: quanto mais se olha, menos se vê.

  • A doutora Irene Pimentel e a tirania dos rótulos

    A doutora Irene Pimentel e a tirania dos rótulos


    Há muito que as sociedades se tornaram arenas onde o combate de ideias foi substituído pelo duelo de rótulos. Já não se busca refutar um argumento, mas extirpar o seu autor com o selo conveniente — “negacionista”, “populista”, “fascista”, “extremista”, “antidemocrático”. Em tempos de redes e reacções instantâneas, a razão perdeu o passo para o reflexo condicionado.

    A vitória, hoje, mede-se em “likes”, “retweets” e palmas digitais; o raciocínio cedeu o lugar à claque. É o triunfo da retórica preguiçosa sobre o debate informado, da vaidade performativa sobre a reflexão demorada. E este dogmatismo, que se disfarça de virtude moral, revela afinal uma patologia intelectual: o medo de pensar.

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    A erosão do diálogo não resulta de mera incivilidade: é o sintoma de um tempo em que a autoridade substituiu a razão. Vence não quem demonstra, mas quem ostenta — um título académico, um prémio intelectual, uma tribuna televisiva. Já não se trata de argumentar, mas de invocar estatuto. Ora, a autoridade sem razão é apenas arrogância legitimada; e o prestígio sem humildade converte-se em censura.

    Confesso que, vindo da esquerda — hoje órfão partidário, mas não de princípios —, aprendi mais pela leitura e pela experiência do que pelos catecismos de ocasião. De Marx a Orwell, de Chomsky a Popper, sempre me ficou a ideia de que a liberdade é o primeiro e o último baluarte da dignidade humana. E foi precisamente durante a pandemia — esse laboratório da servidão consentida — que percebi como é frágil a promessa constitucional de direitos invioláveis.

    Quando mais era necessário pensar, proibiu-se questionar; quando mais urgia duvidar, exigiu-se fé. Vi a Constituição convertida em papel decorativo e a liberdade de expressão reduzida à liberdade de concordar.

    Aprendi então que compreender o outro não é aderir às suas ideias, mas reconhecer-lhe o direito de as ter. E esse exercício de empatia é a antítese do cancelamento moral que hoje domina uma certa esquerda — a mesma que se julga detentora do monopólio da virtude, mas que pratica o linchamento simbólico com zelo inquisitorial.

    À medida que a direita populista cresce, em parte alimentada pelos erros da própria esquerda, esta responde com mais intolerância e menos autocrítica. O resultado é previsível: o eleitorado afasta-se, não por se ter tornado bárbaro, mas por se ter cansado da hipocrisia.

    A polémica recente envolvendo Irene Flunser Pimentel, historiadora premiada e respeitada, é um exemplo paradigmático. No auge da comoção pela morte de Charlie Kirk — um jovem conservador americano, católico e combativo no debate público —, Pimentel não resistiu ao impulso digital de o rotular como “simpatizante nazi”, “anti-democrático” e outros mimos. Não discutiu as suas ideias; decretou-lhe a infâmia. Fê-lo sem rigor, sem contexto, sem compaixão.

    Debate original e integral onde Charlie Kirk defende de os ‘Founding Fathers’ não defendiam a democracia pura e, nessa linha, a palavra Democracia não surge na Constituição dos Estados Unidos.

    E quando a jornalista Elisabete Tavares, no PÁGINA UM, ousou questionar-lhe a leviandade, a historiadora reagiu não com argumentos, mas com indignação. Acusou o nosso jornal de extrema-direita, reivindicou-se vítima e, claro, invocou a autoridade do The Guardian — porque o dogmático nunca erra: é o mundo que o desrespeita.

    E claro, na incandescência das redes sociais, lançou ela as suas Fúrias contra um projecto de jornalismo independente que não confunde isenção com ideologia, nem lucidez com dogmatismo. Fúrias dignas das tragédias áticas, desatadas contra quem ousa existir fora do seu templo moral. E com tantas palmas, a doutora Pimentel, na sua bolha, persistirá, persistirá nos rótulos até não precisar sequer de raciocinar e rebater.

    No universo maniqueísta da doutora Irene Pimentel, ela habita, por direito divino, o lado da luz — e todos os demais, por simples acto de desacato à sua opinião de ‘trazer por casa’, são empurrados para as trevas. Assim, num salto lógico digno de um delirium ad reductum — que já não convoca o inevitável Hitler, mas o omnipresente Trump —, quem ousa apontar-lhe a falta de objectividade ou beliscar-lhe a virtuosa infalibilidade é, ipso facto, lançado ao inferno dos proscritos: cúmplice do Estado Novo, sequaz da PIDE e, por extensão metafísica, aliado de todos os demónios disponíveis para o conveniente contorcionismo ideológico.

    Irene Flunser Pimentel. Foto: DR

    Ora, o problema não é apenas moral: é epistemológico. Um historiador que manipula uma citação trai o próprio ofício, que assenta na crítica das fontes e na integridade da narrativa. Se um académico, habituado a lidar com documentos, não distingue um facto de uma opinião, o que garante que a sua obra — sobre o Estado Novo ou sobre qualquer outro tema — não reproduz o mesmo viés? Que valor tem a autoridade quando a verdade é sacrificada à convicção?

    Já agora, convém salientar que duvidar dos métodos da doutora Pimentel não equivale a negar a existência do Estado Novo ou da sinistra PIDE. Mal estaríamos se a prova da malignidade do regime salazarista dependesse da sua exegese, como se a História só tivesse desvendado os seus horrores porque a doutora Pimentel, num rasgo iluminado, se dignou a investigá-los e a revelar ao mundo o que nenhum outro mortal teria ousado vislumbrar sem a sua intercessão académica.

    Até porque a questão que eu levanto (e a Elisabete já o fizera) transcende a pessoa: é o sintoma de um meio cultural que confunde virtude com militância. O historiador transforma-se em activista, o jornalista em cruzado, o académico em pregador. E, nesse processo, a verdade torna-se refém da ideologia. O resultado é uma sociedade que já não debate — apenas denuncia e confronta o outro com rótulos. Onde a dúvida é crime e o contraditório, heresia.

    Poder-se-á pensar que esta estratégia é eficaz: cala-se o adversário, preserva-se a bolha. Mas, a prazo, o custo reputacional é devastador. Quem vive de anátemas acaba por ser vítima deles. A falácia pode funcionar uma vez, duas talvez; mas a repetição expõe o artifício. Ninguém acredita eternamente em quem grita “lobo!” a cada sombra. O tempo, esse juiz silencioso, revela sempre a impostura.

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    A acrimónia da doutora Pimentel é um aviso exemplar aos que confundem a ligeireza da rede social com a gravidade de uma cátedra, a vaidade opinativa com o exercício do magistério e a mera opinião com sentença definitiva. Não é o PÁGINA UM que está em causa, nem sequer Charlie Kirk; são as Irenes Pimenteis desta vida: é o princípio elementar de que a dignidade do debate depende da honestidade intelectual. A crítica é legítima; a difamação, nunca. A História não se escreve com insultos.

    Por isso, e com a serenidade que a idade deveria inspirar, apelo à Dra. Pimentel: não desça ao rés-do-chão digital. Não comprometa a obra que construiu com o azedume daqueles quem confundem discordância com ataque. O historiador que semeia ódio colherá descrédito. E o académico que troca a fonte pela raiva acabará ele próprio a ser objecto de estudo — exemplo de como a vaidade e o dogma corrompem a ciência.

    O dogmatismo é o ópio dos intelectuais. E quando a inteligência se converte em fé, a liberdade morre sem ruído.

  • As outras vias judaicas esquecidas

    As outras vias judaicas esquecidas


    No final do século XIX, a Palestina fazia parte do Império Otomano. O quadro era simples: uma terra rural, com aldeias agrícolas espalhadas, onde viviam camponeses árabes que cultivavam a terra geração após geração. Nessas aldeias coexistiam comunidades muçulmanas, cristãs e também pequenas comunidades judaicas locais, com tradições próprias, enraizadas no mesmo espaço há séculos.

    Não havia “nação” no sentido moderno europeu. A ideia de Estado-nação, com bandeira, hino e fronteiras rígidas, era alheia àquela realidade. A identidade era outra: tribal, religiosa, comunitária.

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    As pessoas reconheciam-se pela aldeia, pela família alargada, pela pertença a uma comunidade de fé. O campesinato árabe, em particular, via-se antes de mais como parte de uma aldeia e de uma família, e não de um projecto político chamado “Palestina”. Era esse o mundo que existia antes da chegada das ideologias nacionalistas modernas – tanto o nacionalismo árabe como o sionismo europeu.

    Na Europa, o mundo judaico encontrava-se em convulsão. O anti-semitismo institucional, as perseguições violentas contra judeus no Império Russo e a exclusão social em praticamente toda a Europa central e oriental empurraram milhares de judeus para a mesma questão vital: como sobreviver colectivamente, como garantir a segurança, a dignidade e o futuro.

    Deste dilema nasceram várias respostas. O sionismo, hoje dominante na memória popular, foi apenas uma delas. A sua força esteve em oferecer uma ideia simples, quase redentora: a solução era criar um lar nacional na Palestina, a antiga Terra de Israel; no entanto, esta não foi a única proposta, nem sequer a mais evidente para muitos judeus da época. Havia alternativas concretas, mobilizando milhares de pessoas, que o discurso oficial tratou de apagar.

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    Um desses caminhos foi o Bund. Fundado em 1897 no Império Russo, no mesmo ano em que Theodor Herzl convocava o primeiro congresso sionista em Basileia, Suíça, o Bund partia de uma lógica totalmente distinta. Para os seus membros, não fazia qualquer sentido emigrar para a Palestina nem fundar um Estado separado. O essencial era lutar onde os judeus já estavam, como parte da classe trabalhadora.

    Reivindicava-se uma identidade judaica secular, cultural, enraizada na língua iídiche, e exigia-se autonomia cultural e direitos políticos nos países de residência. A estratégia não passava por fugir do anti-semitismo, mas enfrentá-lo com sindicatos, mobilização social e luta política. Aliás, o movimento Bund era profundamente anti-sionista: considerava o sionismo um projecto burguês, ilusório e até perigoso, porque desviava energias da verdadeira batalha no terreno.

    Outra corrente foi o Territorialismo. O raciocínio era pragmático: se o problema era a insegurança física, o que importava era encontrar um território suficiente para assentar judeus, fosse na Palestina ou noutro ponto do globo. Por essa razão, apareceram propostas como o Plano Uganda, em 1903, quando Theodor Herzl ainda aceitou a oferta britânica de uma área no Quénia, antes de ser rejeitado pelos seus próprios seguidores.

    Theodor Herzl (1860-1904), fundador do moderno sionismo político.

    Outros territorialistas exploraram hipóteses em África, na América Latina e até na Austrália. A ideia central era clara: a sobrevivência colectiva estava acima da geografia bíblica. Esta corrente perdeu espaço com o avanço do sionismo, mas, no início, teve um peso significativo e não era marginal.

    O sionismo, tal como Theodor Herzl o concebeu, era basicamente uma adaptação judaica do nacionalismo europeu moderno – promessa de um Estado com um governo institucionalizado, bandeira, sistema de leis, exército – tudo isso ancorado numa geografia que conferia legitimidade histórica e religiosa.

    Era um projecto secular e moderno, mais ligado à lógica de Estado-nação europeu do que ao modelo tradicional das comunidades religiosas judaicas. Faz parte da essência do Estado moderno deter o monopólio da força (polícia e exército) e o controlo exclusivo dos tribunais – é isso que Herzl antecipou quando propôs que o futuro Estado judaico tivesse instituições como tribunais, sistema legal próprio e instrumentos de poder político.

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    Importa realçar o carácter colonizador da visão sionista: não se tratava de regressar a uma terra ancestral em comunhão com os seus habitantes, mas de fazê-lo como um povo europeu, com capital europeu, instituições europeias e, inevitavelmente, em confronto com as populações árabes que já ali viviam há séculos.

    Tudo isto prova que não havia consenso judaico em torno do sionismo. Muitos viam a ideia de um Estado nacional como uma aberração moderna ou até como uma heresia religiosa – só o Messias poderia restaurar Israel, diziam correntes ortodoxas.

    Outros acreditavam que o sionismo seria um desvio perigoso, uma aventura colonial condenada ao conflito. O que a história oficial simplificou como inevitável – a marcha linear até 1948 – foi, na verdade, um processo disputado, cheio de alternativas que foram derrotadas, abafadas ou esquecidas.

    Com o início da Grande Guerra, a Palestina ainda era otomana, mas o seu destino ia mudar radicalmente com este desastre. Para derrotar os turcos, Londres multiplicou promessas contraditórias.

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    Aos árabes, prometeu independência e unidade em troca da revolta contra os turcos. À França, prometeu dividir o Médio Oriente sob o Acordo Sykes–Picot. Em 1917, com a Declaração de Balfour, prometeu aos sionistas um “lar nacional” judeu na Palestina. Três compromissos incompatíveis, assumidos pela mesma potência, com a mesma ligeireza colonial de quem via povos inteiros como peças num tabuleiro imperial.

    Com a vitória dos aliados em 1918, com Londres do lado dos vencedores, o jogo fez–se sentir no terreno. A Palestina foi entregue à Grã–Bretanha como Mandato pela Liga das Nações. Não se tratava de governar temporariamente em benefício dos locais, como proclamava a retórica do presidente norte–americano Woodrow Wilson; tratava-se de legalizar a colonização judaica e manter controlo estratégico sobre a região.

    No Mandato Britânico, a administração não era neutra: criou as condições legais para que organizações sionistas comprassem grandes extensões de terra, frequentemente a proprietários ausentes – residiam em Istambul, Beirute, Damasco – ou latifundiários, usando títulos passados do domínio otomano.

    Tumultos palestinos em Jerusalém em 1929 causaram a fuga de judeus. Foto: DR

    Esses títulos muitas vezes não registavam os camponeses árabes que cultivavam aquela terra há séculosgente que nunca tivera um título formal, mas que vivia nela de geração em geração. Quando as organizações compradoras assumiam o título, muitos desses camponeses eram expulsos – não pelos antigos donos, mas pelo novo regime legal, com ordens oficiais ou com o apoio de polícias do Mandato.

    Em casos como o da família Sursock, dezenas de aldeias inteiras foram desapropriadas e despejos foram aplicados contra agricultores árabes, que em muitos casos receberam pouca ou nenhuma compensação.

    O resultado foi previsível: revoltas árabes, primeiro em 1920 e 1921, depois em 1929, e finalmente a grande insurreição de 1936–1939. Todas esmagadas com brutalidade pelo exército britânico, frequentemente em coordenação com as milícias judaicas como a Haganah.

    Os árabes, a quem fora prometida independência, viam-se agora governados por uma potência estrangeira que abria as portas à colonização europeia e reprimia violentamente qualquer contestação.

    Mulher judia e o filho chegam ao porto de Haifa, Palestina, 1947 — um dos muitos desembarques de refugiados após a Segunda Guerra Mundial, sob o bloqueio britânico à imigração judaica. Foto: National Army Museum (Londres).

    Enquanto isso, dentro do sionismo, surgiam correntes cada vez mais radicais. Vladimir Jabotinsky defendia um Estado judeu em ambos os lados do Jordão e apelava ao uso da força militar sem subterfúgios. O “revisionismo sionista” plantava as sementes do Irgun e do Lehi, grupos que recorreriam a terrorismo aberto, não só contra árabes mas também contra os próprios britânicos. Ao mesmo tempo, vozes judaicas que defendiam uma convivência binacional – como Martin Buber ou Judah Magnes, no movimento Ihud – eram marginalizadas, acusadas de traição, apagadas da narrativa dominante.

    Este era o cenário à beira da Segunda Guerra Mundial: uma Palestina já em ebulição, uma colonização em ritmo acelerado, uma potência imperial a usar o território como moeda de troca, e uma liderança sionista cada vez mais preparada para a via militar.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O que acontece se uma historiadora espalha ódio e informações falsas?

    O que acontece se uma historiadora espalha ódio e informações falsas?


    Tenho abordado aqui, no PÁGINA UM, a temática das notícias falsas ou enviesadas divulgadas pelas agências noticiosas e pelos media ditos de referência, não só portugueses mas também internacionais.

    Se jornalistas difundem notícias falsas ou distorcidas, obviamente que tem impacto e as consequências são devastadoras, sobretudo para os próprios jornalistas e para os meios onde divulgaram essa desinformação. A sua credibilidade fica posta em causa. E e confiança e credibilidade são a “moeda”, o valor do negócio da comunicação social. Mas também tem impacto na opinião pública.

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    Foto: D.R.

    Mas qual o impacto e as consequências que surgem quando um historiador decide partilhar informação falsa ou distorcida?

    Vem este artigo a propósito de uma publicação que a historiadora portuguesa Irene Pimentel fez na rede social Facebook, na sequência do homicídio, nos Estados Unidos, do jovem conservador e cristão Charlie Kirk.

    Na sua publicação [cujo link opto intencionalmente por não colocar aqui, para não espalhar informação falsa], a prestigiada historiadora faz acusações falsas e cita afirmações truncadas e fora de contexto.

    A sua publicação chegou-me às mãos na sequência de uma notícia que publicámos no PÁGINA UM com o título “Onda de desinformação diaboliza Charlie Kirk e glorifica o homicida como um ‘jovem anti-fascista’“.

    Publicação da historiadora Irene Pimentel no Facebook.

    Pimentel escreveu que Kirk era um “simpatizante nazi”, o que é obviamente falso. Kirk jamais apoiou a causa nazi ou o que defendia. Ademais, Kirk era um cristão devoto e os valores cristãos estavam presentes no seu discurso e no seu pensamento. Defendia a igualdade e a tolerância e promovia o diálogo com todos.

    Mas o que mais chocou foi ver a historiadora a atribuir a Kirk uma ideia falsa e uma frase truncada. Pimentel afirmou que Kirk era contra a democracia. Escreveu isso por má-fé ou porque nem sequer foi à fonte, como deve fazer qualquer historiador mediano. Na realidade, num interessante debate de ideias (que pode ser visto em baixo), aquilo que Kirk afirmou foi que a palavra “democracia” não consta na Constituição dos Estados Unidos.

    Esse diálogo é, aliás, um exemplo fascinante daquilo que Kirk promovia: o confronto entre concepções distintas, neste caso do governo nos Estados Unidos: uma baseada no republicanismo clássico e outra no ideal democrático moderno. E Kirk está, neste debate, a ser factual: do ponto de vista técnico, a Constituição dos Estados Unidos nunca utiliza a palavra democracia. De facto, “Founding Fathers“, sobretudo James Madison e Alexander Hamilton, alertaram repetidamente contra a democracia pura, que associavam ao domínio das massas, à instabilidade e à tirania da maioria.

    No Federalista n.º 10, ensaio dedicado à salvaguarda de facções e insurreições domésticas, Madison distingue claramente entre “democracia pura” (em que os cidadãos decidem directamente) e república, que define como um sistema de representação e deliberação destinado a proteger as minorias e promover decisões ponderadas.

    Assim, o modelo preferido pelos fundadores dos Estados Unidos era o de uma república constitucional, estruturada com freios e contrapesos, federalismo e separação de poderes, de forma a conter os impulsos majoritários. Foi isso que Charlie Kirk disse e manifestou que era “a favor de um governo representativo”, ou uma democracia representativa, como a que existe nos Estados Unidos e em Portugal. Irene Pimentel preferiu ignorar tudo isto, transformando alguém que trocava ideias, mesmo que de forma assertiva, num radical anti-democrata. Um absurdo.

    Pimentel também chamou Kirk de “misógino, racista e criminoso”, o que é falso, e acusou-o de ser um organizador da invasão do Capitólio. Mas Kirk era um pacifista. Defendia a igualdade e a tolerância. Era cristão e conservador.

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    Pergunto-me: de onde vem o ódio expressado por esta historiadora por um jovem de 31 anos que deixa um legado em prol do diálogo e da paz entre pessoas com diferentes visões do mundo?

    Quando li a publicação de Irene Pimentel surgiu-me, de imediato, a seguinte questão: como é que um historiador ignora os factos, trunca frases, faz acusações falsas?

    Pensei na gravidade do caso e também questionei o seguinte: será que a reputada historiadora cometeu os mesmos pecados no desempenho do seu trabalho?

    Porque Irene Pimentel não é uma historiadora qualquer. Foi galardoada com o Prémio Pessoa em 2007. É investigadora do Instituto de História Contemporânea, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. É doutorada em História Institucional e Política Contemporânea e mestre em História Contemporânea (século XX). O seu trabalho centrou-se, sobretudo, sobre a ditadura e o Estado Novo. É também autora de vários livros, incluindo um sobre “Informadores da PIDE”.

    Charlie Kirk, à esquerda na foto, promovia o debate com estudantes e co-fundou a organização Turning Point USA, em 2012. Cristão devoto e conservador, Kirk era pai casado e pai de dois filhos pequenos. Foi alegadamente assassinado por um jovem radicalizado e que tinha uma relação com um homem transgénero quando participava em mais um debate numa universidade. / Foto: D.R.

    Então, como é que uma historiadora tão experiente e prestigiada confunde um cristão devoto e conservador com um “simpatizante nazi”. Ou será que, hoje, um cristão e conservador é “um simpatizante nazi” na visão de alguns?

    Kirk não era da extrema radical. Nem da extrema-direita. Não era racista, nem misógino. Todas as frases que vi nos media, incluindo no The Guardian, e que eram citadas como “prova” de que ele era racista, homofóbico ou misógino, estavam truncadas ou foram retiradas do seu contexto. Qualquer jornalista verifica facilmente as frases de Kirk. Há muitos vídeos dos seus debates disponíveis na Internet e também estão disponíveis os vídeos do seu programa.

    Se para um cidadão comum é fácil verificar isso, para um jornalista também é. E também para um historiador.

    A pergunta sobre se Irene Pimentel também reflectiu no seu trabalho passado as mesmas falhas que a levaram a difamar Kirk, ficou a ressoar na minha mente. E outras perguntas surgiram, como esta: e no caso de outros historiadores, será que sucede o mesmo; será que a sua ideologia ou religião os “desvia” na sua busca e análise de factos históricos?

    Irene Flunser Pimentel. / Foto: D.R.

    Um jornalista espalhar informação falsa é grave. Mas pode ser um erro ocasional ou falta de tempo na investigação jornalística. Mas se um historiador faz o mesmo, tem toda uma outra dimensão e implicações. Faz-nos questionar a metodologia do seu trabalho. Afinal, não sabe aplicar a metodologia rigorosa exigida a um cientista? Não sabe que deve apenas usar fontes credíveis e, de preferência, primárias, caso seja possível?

    Será que os cientistas, estudiosos e “guardiões” do nosso passado colectivo contaminaram o seu trabalho — e a nossa visão de acontecimentos históricos — com falhas na análise de fontes?

    Ou será que, hoje, ser cristão e ser conservador é ser um “ditador, simpatizante nazi”? Será que existe uma febre anti-cristã e anti-conservadora? Uma espécie de nova histeria colectiva de caça às bruxas, em que conservadores e cristãos são “os maus nazis a abater”?

    Os valores cristãos estavam presentes no pensamento e no discurso de Charlie Kirk. / Foto: D.R.

    Não concordo com muitas das ideias de Kirk, mas tendo assistido a muitos dos vídeos dos seus debates, compreendo que o seu pensamento se enquadrava numa visão cristã e conservadora do mundo.

    Acontece que a democracia vive da diversidade de pensamento, do diálogo e da fundamental liberdade de expressão. Se historiadores querem tornar “ilegal” e começar a atribuir o carimbo de extremista a cada cristão e conservador do mundo ocidental, então temos um sério problema. Um problema de radicalismo, pensamento anti-democrata que incentiva uma nova caça às bruxas ao desumanizar uma significativa parte da população. Se a historiadores, juntarmos jornalistas tornados activistas, políticos e comentadores, então enquanto sociedade democrática e plural, temos mesmo um sério problema.

  • O julgamento de Jair Bolsonaro, ou Brasil, 6 de Outubro de 1988

    O julgamento de Jair Bolsonaro, ou Brasil, 6 de Outubro de 1988


    A redemocratização

    O ano é 1985.

    Consumada a débâcle da ditadura militar, expressa principalmente com a moratória da dívida externa em 1984, o Colégio Eleitoral elegera de maneira indireta o primeiro presidente civil desde a vitória de Jânio Quadros, em 1960. Um dia antes de tomar posse, Tancredo Neves foi internado no Hospital de Base, em Brasília. Em seu lugar, assumiria o cargo máximo da Nação José Ribamar Ferreira Araújo da Costa (mais conhecido pela alcunha “José Sarney”).

    A posse do vice no lugar do cabeça da chapa era completamente inconstitucional, pois o substituto só adquiriria essa condição depois de o próprio presidente prestar o juramento de posse, coisa que Tancredo, por imperativo médico, estava impossibilitado de fazer. Após uma longa agonia de quarenta dias, Tancredo faleceria no dia 21 de Abril, feriado nacional em homenagem a Tiradentes, o mártir da Independência do Brasil.

    José Sarney. Foto: Jane de Araújo / Agência Senado.

    Lugar-tenente da ditadura que saíra pela porta dos fundos do Palácio do Planalto junto com seu último general-ditador, João Figueiredo, Sarney pelo menos cumpriu o guião desenhado por Tancredo. Completou a transição democrática ao nomear o ministério indicado pelo falecido presidente, tentou promover a estabilização económica através de dois planos malogrados (Cruzado I e Cruzado II) e, o que é mais importante, convocou para o ano seguinte uma Assembleia Nacional Constituinte, destinada a entregar ao país uma carta democrática, em oposição ao entulho autoritário herdado dos militares.

    ***

    A Constituinte

    Assim como a Assembleia de 1945, a Constituinte de 1987/1988 não seria exclusiva. Ela funcionaria simultaneamente ao Congresso regular, com Câmara e Senado. Deputados e senadores deixariam seus afazeres ordinários de lado para, de acordo com o trabalho paralelo, escreverem uma nova Constituição para o país.

    Instalada a 1 de Fevereiro de 1987, a Assembleia Constituinte teria como presidente o então presidente da Câmara dos Deputados: o “Sr. Diretas” – em alusão à sua liderança na campanha pelas Diretas, já! – Ulysses Guimarães. No discurso de instalação da Assembleia, Ulysses decretou: “A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar”.

    Um ano e meio depois, estavam finalizados os trabalhos da nova Carta. Restava, contudo, a promulgação do documento. Marcou-se, então, a data para o dia era 5 de Outubro de 1988. Em um discurso que entraria para a História, o Sr. Diretas lamentaria os ainda “30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população”. A nova Constituição não era perfeita, afirmava Ulysses, ao lembrar que “ela própria o confessa, ao admitir a reforma”. Se era possível divergir dela, “descumprir, jamais”. Numa sentença lapidar, ele decretou: “traidor da Constituição é traidor da Pátria!”. E terminava uma frase que resumia o sentimento do país diante de seu passado autoritário: “Temos ódio à ditadura; ódio e nojo!

    O dia seguinte

    No dia seguinte, nada mudara. Para além dos “afrontosos 25% da população” ainda analfabetos, o Brasil convivia com uma inflação pornográfica – herança do descalabro económico legado pelos militares. Naquele mês, o índice de preços ao consumidor subira 25,62% e terminaria aquele ano em inacreditáveis 933%. Na capital de França, os membros do chamado “Clube de Paris” e bancos comerciais tratavam com negociadores brasileiros a renegociação da dívida externa do país, em moratória desde 1984. Sem acordo, o Brasil continuou sem acesso ao mercado internacional de crédito.

    Como desgraça pouca é bobagem, o baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas e a falta de investimentos em distribuição de energia generalizaram os “apagões” pelo país. No campo, trabalhadores rurais foram assassinados em um conflito fundiário no Pará. Na Saúde, uma (nova) epidemia de dengue assolava as capitais. E, last but not least, uma greve de petroleiros ameaçava desabastecimento e causava longas filas de automóveis nos postos de combustível. Para onde quer que se olhasse, não havia uma só razão para otimismo.

    Nas rádios, entretanto, uma nova canção tocava. Tratava-se de mais um hit de Lulu Santos. Nos versos de A Cura, o cantor carioca dizia:

    Existirá

    Em todo porto tremulará

    A velha bandeira da vida

    Acenderá

    Todo farol iluminará

    Uma ponta de esperança…

    O julgamento de Bolsonaro

    Fast forward. O ano, agora, é 2025.

    Christ Redeemer statue, Brazil

    Derrotado nas eleições de 2022, Jair Bolsonaro tornou-se exemplar único da espécie. De todos os presidentes eleitos no Brasil desde que o instituto da reeleição foi implementado, apenas ele deixou de conseguir novo sucesso nas urnas. Mesmo a impopular Dilma Rousseff, deposta por impeachment em 2016, alcançara a reeleição em 2014.

    Trancado em seus rancores no Palácio da Alvorada, Bolsonaro não deixou de conspirar sequer por um segundo. Como se veio a descobrir depois, o planejamento do golpe em caso de derrota vinha desde Setembro de 2021, quando, numa Avenida Paulista apinhada de gente, Bolsonaro xingou Alexandre de Moraes de “canalha” e ameaçou não cumprir mais suas decisões. Depois de consumada a derrota, a conspiração golpista apenas se acelerou.

    Após o fatídico 8 de Janeiro, a destruição das sedes dos três poderes em Brasília extinguiu qualquer margem para uma composição política. Contrariando a tradição brasileira de apaziguamento – no pior sentido chamberlainiano do termo –, a Polícia Federal investigou e o novo Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, teve a coragem de fazer o que seu passivo e inoperante antecessor Augusto Aras foi incapaz em quatro anos de mandato: denunciar Jair Bolsonaro.

    Palácio da Alvorada, em Brasília.

    As provas da tentativa de golpe

    A certeza dos golpistas na vitória era tamanha que eles aparentemente não se preocuparam sequer em esconder as provas dos seus ilícitos. Poucas vezes um processo judicial revelou-se tão repleto de evidências das atividades criminosas. Como o ministro Flávio Dino fez questão de citar ironicamente durante o julgamento da trama golpista, só faltou aos bandidos registar atas das reuniões da conspiração. Todo o resto já estava nos autos.

    Vejamos, apenas a título de exemplo, as principais provas a demonstrar a existência de uma organização criminosa que visava a instalar uma nova ditadura no país:

    1 – Reunião de julho de 2022:

    Numa reunião presidencial ocorrida em 5 de Julho de 2022, Bolsonaro e seus ministros já falavam abertamente em como atuar em caso de derrota nas urnas. Com as pesquisas a indicar vantagem do seu oponente, Lula da Silva, o ex-presidente perguntou a seus ministros o que seria possível fazer. Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional e general da reserva, falou abertamente que, “se tiver que virar a mesa, tem que ser antes das eleições”. Para bom entendedor…

    Imagens da invasão em Brasília.

    2 – Minuta do golpe:

    Há um ditado popular no país segundo o qual “papel aguenta tudo”. Tal é a conclusão a que se chega para quem perpassa os olhos pela famosa “minuta do golpe”. Elaborada por supostos juristas a serviço da conspirata, essa minuta previa a decretação de Estado de Defesa, a anulação das eleições, a deposição dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e sua substituição por uma “Comissão de Regularidade Eleitoral”. Não por acaso, essa comissão seria inteiramente escolhida pelo Presidente.

    Embora travestido de roupagem jurídica, nada havia de legal ou constitucional nesse ato. Não só não havia as condições materiais para a decretação do Estado de Defesa – aplicável somente a casos de calamidade ou instabilidade institucional –, como também, ainda que decretada, tal medida jamais autorizaria anular as eleições, cassar as prerrogativas do TSE e substituí-lo por uma comissão ad hoc, composta em sua maioria por militares escolhidos a dedo.

    Essa minuta foi encontrada na casa do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, e no escritório de Jair Bolsonaro, na sede do Partido Liberal. Ao lado dela, havia o “discurso do golpe”, preparado para ser utilizado como um daqueles típicos pronunciamientos latinoamericanos após a consumação do golpe de Estado. Tratava-se, portanto, de uma tragédia com começo, meio e fim.

    3 – O plano “Punhal Verde-Amarelo”:

    Os bolsonaristas passaram quatro anos a vociferar contra as inexpugnáveis urnas electrónicas do país. Seu pedido era por voto “impresso e auditável”. Curiosamente, o episódio mais grotesco do planejamento do golpe foi impresso e era perfeitamente auditável: o plano “Punhal Verde-Amarelo”.

    Concebido pelo general Mário Fernandes, número 2 da Secretaria-Geral da Presidência, o plano previa a prisão e o assassinato do presidente eleito (Lula), do seu vice (Alckmin) e do presidente do TSE (Alexandre de Moraes). O plano foi escrito dentro do Palácio do Planalto e, graças aos mecanismos de rastreabilidade dos sistemas de informática, foi possível verificar que fora impresso pelo próprio Mário Fernandes.

    Em seu interrogatório, Mário Fernandes disse que o plano não passava de “ideias digitalizadas”. Por que a impressão, então? “Porque gosto de revisar em papel”, respondeu o general. Ninguém perguntou ao general por qual razão ele precisaria de três vias para revisar suas “ideias digitalizadas”, mas o rastreamento de seu telemóvel e os registos de entrada na residência presidencial podem explicar o porquê.

    silhouette of two birds on top of building during sunset

    Quarenta minutos depois de imprimi-lo, Mário Fernandes levou o plano ao Palácio da Alvorada. E quem estava lá? Jair Bolsonaro. Uma hora depois, Mário Fernandes enviou um áudio por WhatsApp a Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente, a informar que Bolsonaro aquiescera com o plano. Parte dele chegou até a ser colocada em marcha, mas o sequestro de Alexandre de Moraes acabou frustrado por uma mudança de última hora na agenda de sessões do STF.

    4 – A reuniões com os chefes militares:

    De todas as provas contra os golpistas, nenhuma é mais eloquente do que as reuniões com os comandantes da Marinha, do Exército e da Força Aérea. Nos dias 7 e 14 de Dezembro, Bolsonaro mandou seu ministro da defesa, Paulo Sérgio Oliveira, convocar os chefes das Forças Armadas ao Alvorada. Segundo os depoimentos de todos os presentes, inclusive do próprio Jair Bolsonaro, a minuta golpista foi apresentada aos militares. A ideia era saber quais deles estavam dispostos a levar a cabo um golpe à la 1964, com tanques nas ruas e tutti quanti. De acordo com os depoimentos do comandante do Exército, General Freire Gomes, e da Força Aérea, Brigadeiro Baptista Jr., apenas o comandante da Marinha, Almir Garnier, colocou suas tropas “à disposição” de Bolsonaro. Exército e Força Aérea ficariam de fora da quartelada. Sem o apoio unânime das três Armas, qualquer golpe estaria à partida fadado ao fracasso.

    Se havia alguma dúvida sobre a materialização da tentativa de golpe, com esses depoimentos não há mais. O tipo penal previsto no art. 359-M do Código Penal estabelece ser crime “tentar depor o governo legitimamente constituído”. Embora à primeira vista o tipo penal possa parecer estranho, não é necessário grande tirocínio para entender a razão do legislador. Afinal, consumado o golpe, estará instalada uma nova ordem. E, por conseguinte, a punição dos envolvidos será impossível. Por isso mesmo, pune-se a mera tentativa como se golpe consumado fosse.

    Imagens da invasão em Brasília.

    No caso da intentona bolsonarista, encontram-se reunidas todas as elementares do tipo. Como os depoimentos das testemunhas mostram, o Brasil esteve a um monossílabo de um golpe de Estado completamente materializado. Se os comandantes do Exército e da Força Aérea tivessem dito “sim”, o golpe estaria consumado. Não haveria força capaz de sobrepujar os militares das três Armas. Se o golpe não aconteceu, foi unicamente por circunstâncias alheia à vontade do agente (Bolsonaro). E essa, aliás, é a própria definição legal de tentativa (art. 14 do Código Penal).

    O voto de Luiz Fux

    Como em toda grande orquestra, sempre há algum músico que destoa dos demais. No caso do STF, quem desafinou foi o ministro Luiz Fux. Em um voto que entrará nos anais do Supremo Tribunal Federal como talvez o mais vergonhoso da história da Corte, Fux resolveu não só ignorar as provas colhidas durante as investigações e as próprias confissões dos envolvidos. Para Fux, não houve sequer crime.

    De acordo com o seu raciocínio, digamos, “peculiar”, Bolsonaro não poderia ser acusado de golpe de Estado porque ele ainda era o presidente quando a conspirata fora posta em curso. Para Fux, portanto, “autogolpes” não podem ser enquadrados como golpes de Estado. Resta saber se Fux também deixaria impunes, por exemplo, Getúlio Vargas em 1937 (golpe do Estado Novo) e Alberto Fujimori (autogolpe de 1992).

    Quanto à tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, o entendimento parece ainda mais bizarro. De acordo com Fux, o crime só se perfaz quando os criminosos pretendem uma abolição completa de “TODAS” – a ênfase é do próprio Fux – as instituições do Estado. Como Bolsonaro e sua trupe golpista queriam derrubar “apenas” o TSE e o STF, não poderia haver a caracterização do delito. Levando-se o voto do ministro a cabo, o golpe de 1964 também não poderia ser punido, pois Congresso e Supremo continuaram existindo depois de 31 de Março. A menos que os golpistas organizassem uma falange do tipo Talibã, quase nenhum dos golpes registados na historiografia mundial caracterizaria abolição violenta do Estado Democrático de Direito, segundo o pensamento de Luiz Fux.

    Luiz Fux.

    E isso não foi sequer o pior. Numa espécie de salto triplo carpado hermenêutico, Fux – depois de absolver quase toda a camarilha golpista – resolveu condenar Mauro Cid e Braga Netto pelo crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Tal posição coloca o ministro numa posição completamente esquizofrénica. Ou bem ele acredita que não houve o crime e absolve todos os acusados; ou bem ele entende que o crime ocorreu e condena no mesmo rol Jair Bolsonaro. A menos que se conceba o crime do “golpe sem cabeça”, é difícil admitir é que toda a conspirata teve como líderes Mauro Cid (ajudante de ordens) e Braga Netto (vice da chapa), mas o beneficiário direto do golpe, Jair Bolsonaro, nada teve a ver com a história.

    Felizmente, o voto de Fux foi apenas um acorde desafinado numa turma que, a tocar de ouvido, condenou por 4×1 todos os integrantes do núcleo duro da conspiração golpista. O 11 de Setembro – data da proclamação do resultado – entra para a história do país. Não com o aspeto trágico do seu par norte-americano, mas, sim, com um carácter alegre, alvissareiro, de vida nova que renasce a cada manhã.

    A dimensão histórica do julgamento

    “Histórico” é um adjetivo que, por batido, já foi completamente banalizado na análise política brasileira. Nesse caso, porém, a qualificação é mais do que merecida. O Brasil passou por quarteladas e tentativas de golpe desde quando a República foi instaurada, em 1889. Foram pelo menos quatorze oportunidades em que os militares saíram às ruas para, pela força das baionetas, depor o poder civil. Quando conseguiam, tornavam-se vitoriosos e davam início a uma nova ordem. Quando perdiam, eram anistiados e não sofriam mal algum. Não por acaso, a cada tentativa anistiada se seguia outra, na qual os golpistas perdoados tinham sucesso. Foi assim em 1922 e 1924 (venceram em 1930). Foi assim em 1955, 1956, 1959 e 1961 (venceram em 1964). E quase foi assim agora, pois a anistia de 1979 foi o convite perfeito para que as viúvas da ditadura militar voltassem a conspirar contra um governo legitimamente eleito.

    Pela primeira vez na história do Brasil, dentro de um regime democrático, militares e civis envolvidos na deposição da ordem constitucional foram levados às barras da Justiça. Processados, foram condenados em um julgamento limpo, com todas as garantias que uma democracia pode oferecer. Mesmo diante da pressão alucinada de Donald Trump – que chegou ao cúmulo de sancionar o país com tarifas comerciais e aplicar a Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes para travar o julgamento do seu avatar brasileiro –, a corrente de impunidade enfim foi quebrada. A carta do apaziguamento foi tirada do baralho. Doravante, golpistas terão de pensar duas vezes se pretendem arriscar tudo numa mão de cartas. Caso a tentativa de golpe malogre, o risco de ir para a cadeia tornou-se concreto. Em um país que sempre mostrou dificuldade em punir poderosos – e, dentro desse conjunto, também militares de alto coturno – é impossível negar a dimensão histórica do julgamento.

    a crowd of people walking down a street

    Brasil, 6 de Outubro de 1988

    Com o julgamento da tentativa de golpe de Estado arquitetada por Jair Bolsonaro e seus acólitos, o Brasil finalmente termina a sua transição democrática. Se o preceito básico de qualquer democracia é a noção de que todos devem ser iguais perante a lei, a condenação de políticos e militares graduados por atentarem contra o Estado Democrático de Direito representa o desabrochar tardio de uma semente plantada há exatos quarenta anos. Deixamos oficialmente de ser uma República de Bananas para afirmar, em alto e bom som, numa quadra histórica na qual a democracia sofre um processo contínuo de erosão mundo afora, que aqui, sob o sol inclemente do Equador, golpista não se cria.

    Para quem acorda de madrugada, toma dois autocarros até o trabalho, nele fica doze horas por dia e, no final do mês, recebe por salário apenas o mínimo legal, pode parecer pouco. Afinal, a taxa básica de juros está em 15% ao ano. A dívida pública alcançará no ano que vem 90% do PIB. Miséria e violência ainda são cores tristes de uma paisagem que consterna o país e envergonha-nos perante o mundo. Há razões, contudo, para estar otimista.

    Da mesma forma que o cidadão brasileiro que caminhava pelas ruas no dia seguinte à promulgação da Constituição de 1988, o sujeito de agora tampouco consegue compreender a dimensão histórica do que aconteceu. No dia 6 de Outubro de 1988, nada mudara. O sentimento de liberdade oferecido pela democracia ainda era algo abstrato. Agora, no dia 12 de Setembro de 2025, quase nada mudou.

    people walking on park near white concrete building under gray clouds during daytime

    Há qualquer coisa no ar além dos aviões de carreira

    Algo no ar, porém, parece diferente. Não é nada concreto. Talvez não seja possível sequer ouvi-lo, senão como sussurro tímido em meio à brisa tropical. Com o tempo, porém, esse mesmo cidadão distraído começará a perceber a mudança. E, caso seja um pouco mais velho, ele irá se lembrar do grande humorista mexicano Cantinflas: “Antes estávamos bem, mas era mentira”; agora, “estamos mal, mas é verdade”.

    Com esse pensamento na cabeça, o cidadão vai distrair-se a ouvir música. Na rádio, toca um som familiar. Trata-se de um antigo sucesso dos anos 1980:

    Não nos custa insistir na questão do desejo,

    Não deixar se extinguir.

    Desafiando de vez a noção

    Na qual se crê que o inferno é aqui.

    Subitamente, o sujeito sorri. É quando ele escuta a última estrofe:

    Existirá

    E toda raça, então, experimentará

    Para todo o mal, há cura

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

  • A liberdade como valor inegociável

    A liberdade como valor inegociável


    1. A tradição da liberdade: herança, desfiguração e perda

    A liberdade é hoje, mesmo em sistemas ditos democráticos, um conceito gasto de tanto ser invocado por aqueles que mais a temem — e, por vezes, perseguem. Políticos de todos os quadrantes discursam com fervor sobre ela; burocratas invocam-na como se fossem seus curadores; académicos dissecam-na em conferências enquanto silenciam colegas dissidentes; jornalistas celebram-na nos editoriais para melhor a subtrair nas redacções.

    Em tempos mais honestos, falava-se em censura, em controlo, em disciplina — hoje, fala-se em “proteger a liberdade” para justificar todas as formas de tutela, todas as formas de medo. A liberdade tornou-se, por isso, um vocábulo de cerimónia e um instrumento de gestão, não um valor fundacional da vida cívica.

    Talvez valha a pena recuar. A tradição liberal clássica não nasceu da indulgência dos governos, mas da sua contenção moral e jurídica. Locke, Mill, Tocqueville, Constant — todos partiram do princípio de que a liberdade do indivíduo não era uma liberalidade, um favor que o Estado concedia, mas sim algo que o poder político tinha obrigação de respeitar e limitar-se diante dela. Era essa a natureza do contrato: o indivíduo aceita a autoridade em nome de uma liberdade maior — não para ser vigiado, educado, corrigido ou validado.

    Como escreveu Benjamin Constant em 1819, no célebre discurso Da Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos, a liberdade moderna reside no direito de cada cidadão em “exprimir a sua opinião, a escolher a sua profissão, a dispor da sua propriedade, a ir e vir sem permissão, sem ter que dar contas do seu modo de viver ou das suas opiniões religiosas”. Hoje, qualquer um destes direitos está, de forma surpreendente, sob avaliação ou pré-aprovação, invocando-se o bem comum ou um bem superior intangível.

    O que sucedeu, então, com esta herança? Quando foi que a liberdade passou de ser a base moral da democracia para se tornar uma variável operacional da governação?

    O fenómeno não foi súbito. O século XX, com as suas guerras, os seus fascismos, os seus totalitarismos de sinal contrário, ensinou aos Estados que a linguagem da liberdade pode ser instrumentalizada para efeitos de controlo. O medo, a incerteza, a emergência permanente, tornaram-se os dispositivos preferenciais de contenção das liberdades, não por confronto directo, mas por domesticação discursiva. Assim, o cidadão tornou-se o principal inimigo do seu próprio estatuto: um consumidor de seguranças, um pedinte de protecções, um voluntário da obediência. Liberdade, sim — mas “com responsabilidade”, com “certificado”, com “moderação”, com fact-checking. Liberdade, mas só se não incomodar.

    Este deslizamento conceptual é tanto mais eficaz quanto mais invisível. Já não é preciso proibir: basta moldar o comportamento pelo pavor da exclusão social ou digital. Já não é necessário calar uma opinião: basta retirá-la do algoritmo, adiar a publicação, suprimir o seu alcance. A liberdade, nesse sentido, tornou-se o ornamento retórico da obediência higienizada.

    É aqui que entra o novo léxico do conformismo: “ambiente seguro”, “discurso responsável”, “ciência consensual”, “facto verificado” — tudo termos e palavras que vestem a censura com verniz civilizacional. Já não se combate o pensamento livre — desactiva-se o seu alcance. Já não se queimam livros — impedem-se de circular por ausência de “credibilidade”. Já não se prendem e queimam hereges — simplesmente deixa-se de os mencionar, de os citar, de os convidar.

    Em tempos, a liberdade era uma ideia política; hoje, tornou-se uma franquia institucional. Existem organismos para a liberdade de imprensa, observatórios para a liberdade académica, planos estratégicos para a liberdade digital. Todos eles zelam, com sobriedade burocrática, pela liberdade dos outros — nunca pela sua própria. O resultado é um labirinto de simulacros, onde os direitos são garantidos nas brochuras, mas suspensos nas práticas. O cidadão não é hoje mais livre por existirem supostas Cartas dos Direitos Digitais ou quejandos — é menos livre por saber que, caso os exerça pelo seu próprio ânimo, arrisca a ser banido, silenciado ou processado.

    A desfiguração da liberdade tem ainda uma componente mais subtil: a da culpabilização do uso da liberdade. Quem fala fora do consenso é acusado de “disseminar desinformação”, de “minar a confiança pública”, de “dar armas aos extremismos”. A liberdade passou assim a ser vista não como um direito, mas como uma ameaça latente, tolerável apenas se exercida segundo os códigos da virtude dominante. Quem se exprime contra o poder deve justificar-se. Quem o apoia é apenas “cidadão responsável e informado”.

    Neste quadro, a perda da liberdade já não se dá por decreto, mas por habituação. Perde-se a liberdade como se perde o paladar: aos poucos, sem alarme, sem luto. O sabor do dissenso desvanece-se. O impulso da recusa converte-se em prudência. A coragem transforma-se em risco desnecessário. E a sociedade adapta-se, como o prisioneiro que já não estranha as grades — apenas se satisfaz se as vir pintadas de branco.

    E que resta assim daquela liberdade, nesse mundo de dispositivos e deferências? Talvez apenas isto: o exercício irredutível da palavra, a recusa sistemática da domesticação da linguagem, a vigilância sobre as palavras que nos impõem. Porventura, assumir que a liberdade, afinal, não é um dado do regime — é uma forma de estar no mundo. Não cabe no decreto, nem no programa de Governo, nem nos estatutos do Parlamento. Cabe, isso sim, na consciência de quem não se deixa calar, nem seduzir.

    2. O laboratório do medo: a pandemia como ensaio de servidão

    Durante décadas, foi-nos dito que a democracia liberal ocidental se distinguia dos regimes autoritários por uma razão essencial: não governava pelo medo, mas pela razão e pela confiança. As ditaduras, explicavam-nos os manuais de ciências políticas, baseavam-se na repressão; as democracias, no consentimento informado.

    A emergência da pandemia da covid-19, a partir de 2020, veio demonstrar o contrário: a democracia pode afinal suspender-se com extraordinária facilidade e eficácia quando o medo é suficiente para justificar o silêncio e a obediência. A pandemia não criou uma nova ordem, mas revelou o grau de maleabilidade da velha.

    Nunca, em tempo de paz, tantos direitos foram suspensos em tão pouco tempo. Liberdade de circulação, liberdade de reunião, liberdade de culto, direito à educação, direito ao trabalho, direito à privacidade, liberdade de expressão — todos sofreram amputações “provisórias”, que se revelaram estruturalmente úteis ao poder. As medidas foram apresentadas como temporárias, técnicas, baseadas na ciência. Mas o que se revelou foi uma nova gramática da servidão voluntária, onde a saúde se tornou o argumento absoluto, incontestável, inquestionável — o novo dogma sanitário como legitimador do autoritarismo de Estado.

    O confinamento foi o primeiro grande teste: impôs-se sem debate, sem contraditório, sem ponderação de proporcionalidade. Quem ousava questioná-lo era de imediato classificado como “negacionista”, novo anátema para eliminar a dúvida. O uso da linguagem médica permitiu a neutralização da linguagem política: não era censura, era “contenção de desinformação”; não era prisão domiciliária, era “isolamento profiláctico”; não era segregação, era “certificação sanitária”. Aplicando o pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben, antes mesmo da pandemia, “o estado de excepção passou de conceito jurídico a prática administrativa quotidiana.”

    Mas foi com o passaporte sanitário que a arquitectura do medo atingiu o seu auge moralista. Pela primeira vez desde os regimes raciais do século XX, foi introduzido um sistema legal de discriminação de acesso a espaços públicos e direitos fundamentais com base num critério biológico. O corpo do cidadão passou a ser um objecto de validação estatal. Quem recusava a denominada vacina — ou, mais exactamente, quem recusava consentir sem reservas, independentemente da imunidade adquirida por doença — era excluído, culpabilizado, desumanizado. O discurso era simples e eficaz: “se não tens nada a esconder, não tens nada a temer”. A fórmula preferida de todo o regime de vigilância.

    Portugal, sempre zeloso em obedecer antes mesmo de ser mandado, destacou-se pelo excesso. A Presidência da República maravilhou-se com o poder de suspensão de direitos, liberdades e garantias; o Governo legislou por decreto e resoluções de Conselho de Ministros; o Parlamento abdicou da sua função; os tribunais optaram por hibernar, incluindo o Tribunal Constitucional. A comunicação social transformou-se em transmissora diária do boletim do medo, reduzindo o jornalismo a uma forma de liturgia estatística. Os opinadores foram alinhados como soldados do discurso único, e os poucos dissidentes foram classificados como perigos públicos — ou ignorados, o que é, muitas vezes, pior. A pluralidade científica foi abolida por decreto de opinião.

    Ainda hoje se ignora o rasto de danos colaterais. Crianças que perderam dois anos de socialização escolar; doentes crónicos sem acompanhamento; negócios arruinados; famílias separadas por cercas sanitárias absurdas. Tudo isso foi aceite com resignação e até entusiasmo — porque “era para o bem de todos”. A moral da obediência substituiu a ética do juízo individual. O bom cidadão passou a ser aquele que acata, denuncia, patrulha. Foi a institucionalização pacífica do velho sonho do totalitarismo: transformar o vizinho em fiscal.

    O medo, recordemo-lo, é sempre racionalizado a posteriori. Nunca há censura: há “protecção contra o discurso perigoso”. Nunca há autoritarismo: há “resposta proporcional à ameaça”. Nunca há abuso: há “precaução excessiva justificada pelo princípio da prudência”. E, claro, nunca há responsabilização política — porque, afinal, foi tudo feito “com base na ciência”, essa entidade agora indistinta de decreto governamental.

    Talvez o mais notável neste ensaio de servidão tenha sido a capacidade de transformar uma questão eminentemente política (a gestão do risco) numa afirmação moral (o bem contra o mal, sendo que o inimigo era tanto a doença como o dissidente). Assim, o debate foi abolido porque não havia lados — apenas o lado certo. O dissenso foi convertido em heresia. A dúvida, em crime de saúde pública. O debate científico, em conspiração.
    As universidades calaram-se ou pactuaram. Os tribunais adormeceram. Os jornalistas, convertidos em comentadores do pânico. E os cidadãos — aqueles que deveriam ser o primeiro baluarte contra os abusos — adaptaram-se. Alguns celebraram as restrições. Outros aceitaram-nas em nome do bom senso. Quase todos interiorizaram que, perante uma emergência, a liberdade era um luxo perigoso.

    Foi isso que a pandemia revelou: não construímos democracias resilientes, mas sociedades condicionadas — condicionadas a obedecer se o argumento for o medo; a ceder se o pretexto for a saúde; a calar se a linguagem for a da salvação colectiva. O medo foi o ensaio, e funcionou.

    E quando vier a próxima emergência — climática, digital, económica, bélica —, a máquina já está oleada: bastará mudar o rótulo do pânico. E o cidadão, sempre tão moderno, tão informado, tão progressista, dirá: “É só por uns dias. É pelo bem de todos. É só até passar.”

    Mas não passa. Porque o medo nunca passa — apenas se adapta. E o poder, que o sabe, agradece.

    3. A censura moderna: como silenciar sem parecer ditadura

    A censura, dizia-se outrora, era um acto grosseiro, evidente, burocrático. Consistia em riscar palavras de jornais, interditar livros, proibir emissões, prender escritores. Era fácil de detectar e, por isso mesmo, de denunciar. O censor clássico era uma personagem de gabinete, com carimbo, lápis azul e uma pilha de relatórios. Hoje, nada disso é necessário. A censura moderna já não proíbe: faz desaparecer. Já não cala: desclassifica. Já não interdita: altera os circuitos de circulação da palavra. Não há carimbos, nem ordens escritas — apenas o silêncio e a irrelevância como sentença.

    Vivemos na era da censura higiénica, uma operação cultural e tecnológica cujo objectivo já não é impedir que uma ideia exista, mas sim garantir que não chegue a público com força, alcance ou prestígio. A censura clássica era uma luta contra a existência de uma ideia; a censura moderna é uma luta contra a sua eficácia.
    O primeiro dispositivo é o algoritmo. Nas redes sociais — que hoje substituíram os cafés, os jornais e os parlamentos —, o que não é promovido é praticamente invisível. Os conteúdos não são apagados, mas são enterrados sob toneladas de irrelevância fabricada. Os temas inconvenientes desaparecem por selecção negativa. A viralização é reservada para o emocional, o superficial, o inócuo. A crítica política profunda é relegada para as catacumbas da internet — ou marcada com etiquetas dissuasoras: “potencialmente enganoso”, “facto controverso”, “fora de contexto”. O leitor comum, educado na confiança algorítmica, afasta-se por instinto. A dúvida foi tornada patológica.

    Depois, vem o sistema de validação institucional. Um texto só é respeitável se vier de uma “fonte autorizada”. Um investigador só é legítimo se tiver a chancela de uma universidade prestigiada, mesmo que elabore “esboços embrionários que consubstanciam um mero ensaio para um eventual relatório”. Um jornalista só é confiável se tiver um microfone com logótipo aprovado pelo consenso. A censura moderna, neste ponto, funciona por escassez de prestígio. Não se cala o que é dito: desvaloriza-se quem o diz. A credibilidade tornou-se uma forma de aristocracia mediática, e quem ousa pensar sem licença é um herege, um “não-especialista”, um “radical”, um “desinformador”.

    O terceiro mecanismo é o controlo do discurso permitido. Já não é necessário dizer que algo está proibido. Basta criar uma atmosfera moral de condenação antecipada. Quem escreve contra o consenso arrisca o escárnio, a acusação de insensibilidade, o ostracismo social, o desemprego. Este é o mundo da “cultura do cancelamento”, que de cultura nada tem: é apenas a actualização emocional da antiga censura moral. E o mais triste é que muitos aceitam essa lógica com resignação: dizem que não é censura, que é “consequência”. Como se a liberdade de expressão implicasse a obrigação de ser bem-visto.

    Nas redacções, nas universidades, nas editoras, o mecanismo tornou-se previsível: autocensura como forma de sobrevivência institucional. Os jornalistas omitem temas incómodos para manter o lugar. Os académicos escolhem linhas de investigação seguras para não perder financiamento. Os editores recusam autores polémicos para não ofender patrocinadores. A censura moderna não se impõe de fora: interioriza-se como prudência profissional.

    E, no entanto, continuamos a ouvir que vivemos em liberdade plena. Afinal, no mundo ocidental, ninguém é preso por escrever um artigo, ninguém é chicoteado por uma opinião, ninguém é oficialmente silenciado. Mas o medo social cumpre a mesma função: domesticar o pensamento. Ninguém precisa de ser silenciado se todos aprenderem a calar-se antes de tempo.

    A imprensa, esse baluarte tantas vezes invocado, converteu-se em agente da contenção. Muitos dos seus profissionais, em vez de questionar o poder, passaram a funcionar como curadores do discurso aceitável. A agenda é partilhada, os alinhamentos são rotativos, as indignações são coreografadas. Quando surge alguém fora do guião, a reacção é sempre a mesma: ignorar, ridicularizar, ou associar à extrema-direita — mesmo quando o discurso é, ironicamente, de esquerda crítica. A censura moderna é políglota e transversal: tanto cala o conservador como o anarquista.

    Há quem diga que isto não é censura, mas civilidade; que os tempos exigem responsabilidade; que o debate livre cria perigos. Mas essa é sempre a desculpa do censor: a protecção da ordem, do bem-estar, da verdade. E, contudo, sem confronto, sem dissenso, sem incómodo, a verdade não é possível. É apenas doutrina.

    A verdadeira censura, hoje, é a conversão da liberdade em concessão condicional. Podes falar, mas apenas se fores autorizado. Podes criticar, mas apenas se estiveres dentro do enquadramento aprovado. Podes publicar, mas apenas se não for incómodo demais. Podes pensar, desde que não penses alto e demasiado diferente.

    E é assim que se chega à tirania simpática: sem censores com farda, sem departamentos do Ministério da Verdade — apenas com protocolos, plataformas e pedagogos mediáticos. O silêncio é voluntário, a obediência é desejada, a uniformidade é celebrada como consenso.

    Mas o silêncio imposto é sempre traiçoeiro. Um dia, quando o vento mudar — porque muda sempre —, perguntar-se-á por que razão ninguém falou. E a resposta será a de sempre: houve quem falasse, sim. Mas já ninguém nos ouvia.

    4. Liberdade e responsabilidade: o duplo eixo da cidadania adulta

    Em todo o caso, quando se fala muito de liberdade, acaba por se falar pouco de responsabilidade — e quando se fala, geralmente é para a impor aos outros. O cidadão moderno, por paradoxal que pareça, exige liberdade como direito, mas recusa a responsabilidade como dever. Quer ser livre para escolher, mas não para responder pelo que escolhe; quer poder, mas não consequência; quer voz, mas não custo. Esta disjunção — entre a liberdade celebrada e a responsabilidade desprezada — está no cerne da crise cívica contemporânea. A liberdade, isolada da responsabilidade, converte-se em capricho. E a responsabilidade, sem liberdade, converte-se em servidão.

    A tradição liberal clássica nunca separou os dois conceitos. John Stuart Mill, no seu ensaio On Liberty, defendeu a liberdade de pensamento e acção, mas apenas enquanto essa liberdade não fosse usada para anular a liberdade dos outros. A liberdade não era um passaporte para a indiferença, mas uma exigência ética: só é livre quem tem consciência da dimensão pública dos seus actos. A autonomia implicava, por isso, maturidade. A liberdade era um exercício e não um privilégio. Exigia carácter, juízo e coragem.

    O Estado moderno, porém, embarcou na tarefa de emancipar o cidadão da responsabilidade, embora em troca lhe tirou também os fundamentos da liberdade. Fê-lo primeiro por razões sociais, depois por razões económicas, e mais tarde por razões morais. O cidadão foi transformado em sujeito protegido: alguém que tem direitos a ser assistido, a ser defendido, a ser salvo de si próprio — mas não a ser responsabilizado pelas suas escolhas. O paternalismo estatal, antes justificado pela pobreza ou pela ignorância, é agora justificado pelo medo, pelo trauma ou pela susceptibilidade.

    Esta lógica fez brotar a nova figura do cidadão infantilizado, que exige protecção contra tudo o que possa causar-lhe desconforto: ideias, palavras, opiniões, riscos. Estamos perante o cidadão que quer ser livre sem ser vulnerável, que exige imunidade contra o dissenso, e que interpreta qualquer oposição como ataque pessoal. Esta regressão emocional tem reflexos directos na cultura política: já não se debate — reclama-se; já não se argumenta — denuncia-se; já não se vive em comunidade — exige-se reconhecimento.

    A responsabilidade, nesse contexto, tornou-se uma palavra maldita. Falar de responsabilidade cívica é logo confundido com moralismo ou elitismo. A cultura dominante prefere a retórica da vítima à ética do agente. O cidadão não é responsável: foi levado, foi enganado, foi manipulado. O poder político, cúmplice desse jogo, aceita a narrativa — e propõe mais tutela. Quanto mais irresponsável o cidadão, mais necessário se torna o governo. O círculo fecha-se.

    Mas uma sociedade livre só é possível com cidadãos responsáveis. A liberdade não é uma dádiva institucional: é uma prática quotidiana de decisão e consequência. Exige informação, exige ponderação, exige, sobretudo, a capacidade de suportar os efeitos da própria autonomia. Um povo que recusa essa exigência cedo se torna massa. E a massa, como lembrava o filósofo britânico Elias Canetti, no século passado, é sempre moldável por quem a grite mais alto.

    A pandemia da covid-19 mostrou isso com clareza clínica. O discurso oficial dispensou o juízo individual: bastava obedecer. O confinamento, a máscara, a vacina — tudo era imposto como prescrição universal, sem margem para discernimento contextual. Questionar era irresponsável. Recusar era criminoso. O bom cidadão era o obediente, não o prudente. A responsabilidade dissolveu-se no slogan colectivo. Pensar por si passou a ser um acto de arrogância.

    Este modelo cívico — do cidadão tutelado, monitorizado, guiado por especialistas e algoritmos — está hoje a consolidar-se como norma. A responsabilidade é transferida para o sistema, para o Estado, para a comunidade, para a História — mas nunca para o sujeito. Os erros são sempre dos outros: da desinformação, da bolha digital, da educação deficiente. O indivíduo é, no fundo, uma folha ao vento da conjuntura.

    Contra isto, é preciso recuperar o ideal da cidadania adulta: o cidadão como ser autónomo, mas não solipsista, não egoísta, não egocêntrico. Livre, mas não caprichoso. Capaz de exercer os seus direitos, mas também de reconhecer os seus deveres. Capaz de dizer: “eu escolhi, eu sustento, eu assumo”. Só essa atitude permite resistir à tentação do totalitarismo sorridente, que oferece segurança em troca de obediência. Só essa atitude permite uma democracia viva — e não apenas um regime formalmente livre.

    A liberdade sem responsabilidade gera caos. A responsabilidade sem liberdade gera opressão. Apenas a tensão entre ambas gera civismo. Como numa ponte suspensa, o equilíbrio está nos dois pilares: se se retirar um, o colapso é inevitável.

    5. Quando o Direito se divorcia da Liberdade

    Durante séculos, o Direito foi o escudo dos frágeis contra os fortes. A sua função primacial era limitar o poder, impedir o abuso, garantir que nenhum príncipe, nenhum magistrado, nenhum déspota pudesse sobrepor a sua vontade à liberdade dos homens. Era a ordem contra a tirania. A forma contra a força. A regra contra a excepção. Porém, nas últimas décadas, algo de insidioso se produziu: o Direito deixou de ser barreira e passou a ser ferramenta. Em vez de proteger o cidadão do poder, passou a justificar o poder perante o cidadão.

    Vivemos hoje num tempo em que a legalidade é invocada não para garantir liberdade, mas para a restringir com aparência de legitimidade. A frase mais temida já não é “isto é ilegal” — é “isto é legal”. A legalidade converteu-se no álibi dos autoritarismos subtis. Tudo se pode fazer, desde que haja um diploma, uma portaria, um acórdão. A forma legal cobre o conteúdo arbitrário, por vezes de forma retroactiva, como o verniz cobre o caixão. E o cidadão, já domesticado pela linguagem normativa, resigna-se: “Se está na lei, é porque tem de ser.”

    O problema não é novo. Mas ganhou sofisticação. Em vez de leis tirânicas, temos legislação ambígua, de leitura elástica, aplicável conforme o humor das autoridades. Em vez de proibições, temos regulamentos técnicos, orientações, despachos, manuais operacionais. A norma já não precisa de reprimir: basta que desorganize o sentido de justiça. O Direito deixa de ser norma geral e abstracta e transforma-se em carta branca para a excepção discreta.

    Foi isso que vimos durante a pandemia — mas não só. Medidas restritivas de direitos foram aprovadas sem debate parlamentar, com base em conceitos jurídicos gaseificados: “interesse público”, “protecção da saúde”, “circunstância extraordinária”. O Supremo Tribunal Administrativo português teve a coragem de escrever, sem ironia, que o direito à liberdade não era afectado por confinamento domiciliário, porque os cidadãos podiam circular nos corredores do prédio. O Direito, neste ponto, já não protegia o cidadão — apenas justificava a medida. E o absurdo tornava-se norma.

    Mais grave ainda foi a abdicação do princípio da proporcionalidade. Medidas extremas foram tomadas com base em riscos teóricos, estatísticas inverificáveis e uma noção infantil de segurança total. O Tribunal Constitucional, que deveria funcionar como último reduto da liberdade, lavou as mãos com declarações de voto pálidas ou equívocas — só mais tarde acordou para demonstrar a sua inutilidade. Aceitou, por acção ou omissão, que direitos fundamentais pudessem ser regulados por decretos administrativos sem qualquer base científica e constitucional. A separação de poderes converteu-se em colaboração entre departamentos.

    E, no entanto, na aparência, tudo foi feito com legalidade. Havia pareceres. Havia decretos. Havia resoluções. Havia acórdãos. Tudo “conforme à lei”. Mas não conforme à justiça. Nem à liberdade. A dissociação entre legalidade e legitimidade tornou-se estrutural. A letra da lei já não exprime o espírito do Direito — exprime apenas a vontade dos que legislam, ou dos que interpretam em nome da conveniência.

    Este divórcio tem consequências profundas. O cidadão deixa de confiar no Direito como espaço de segurança. Aprende a temê-lo. Aprende que as garantias constitucionais valem menos do que uma declaração de emergência ou uma norma da Direcção-Geral da Saúde. Aprende que o recurso ao tribunal pode demorar anos, e que a sentença — mesmo favorável — já não desfaz os danos. O Direito deixa de ser escudo: passa a ser labirinto.

    E aqui chegamos à falácia contemporânea do “Estado de Direito”. Muitos acreditam que basta a existência de leis e tribunais para que a liberdade esteja assegurada, mas a História mostra o contrário: algumas das maiores atrocidades foram cometidas com respaldo legal. A escravatura foi legal. A segregação foi legal. A censura foi legal. O internamento compulsivo de doentes mentais foi legal. O nazismo foi meticulosamente legal.

    Aquilo que distingue uma democracia não é apenas a existência de leis — é a qualidade da sua legalidade. Se as leis servem para proteger o poder e não para o limitar, não há Estado de Direito: há Estado de obediência jurídica. Se os tribunais aplicam a norma sem ponderar os princípios, não há justiça: há formalismo. E se os juristas se calam para manter a carreira, não há cultura jurídica: há servilismo togado.

    Neste novo regime, o cidadão já não é sujeito de direitos, mas objecto de gestão normativa. A sua liberdade é concedida por calendários legislativos, por pareceres de comissão, por boletins ministeriais. A liberdade já não é presumida — é autorizada. E, por isso mesmo, é sempre frágil.

    Contra isto, é preciso recuperar a ideia de Direito como espaço de resistência. O juiz não é um aplicador mecânico da norma, mas um intérprete com consciência. O advogado não é um técnico, mas um defensor da liberdade. O legislador não é um gestor de equilíbrios partidários, mas um garante do contrato social. E o cidadão não é um destinatário passivo: é parte activa da normatividade democrática.

    Quando o Direito se divorcia da Liberdade, o que resta é o ritual jurídico sem alma. Um Estado formalmente legal, mas materialmente servil. Um país onde tudo é permitido ao poder — desde que com carimbo. E o carimbo, como sabemos, é algo barato.

    6. A liberdade é indivisível: da extrema-direita ao pensamento radical

    A verdadeira prova de uma sociedade livre não está na liberdade concedida aos que dizem o que todos querem ouvir, mas sim na liberdade reconhecida àqueles que nos causam repulsa, inquietação ou desconforto intelectual. A liberdade é fácil de tolerar quando serve para reproduzir o consenso; torna-se insuportável quando serve para o desafiar. É aí, precisamente aí, que se mede o seu valor — não como ornamento institucional, mas como princípio moral e político.

    Nos tempos hodiernos, esta prova tem sido sistematicamente falhada. A liberdade de expressão transformou-se num privilégio condicional, amiúde reservado apenas àqueles que sabem modular o tom, que frequentam os salões certos, que mantêm o equilíbrio entre o politicamente aceitável e o socialmente bem-visto. Quem ousa falar fora desse perímetro — seja à direita, à esquerda ou em órbitas não cartografadas — é empurrado para a zona do indizível. Não por ilegalidade, mas por indignidade. A censura moderna, como vimos, é higiénica — e essa higienização passou a aplicar-se também à legitimidade do interlocutor.

    É assim que se chega à contradição contemporânea: defende-se a liberdade como valor universal, mas só se aplica a quem fala dentro das fronteiras morais desenhadas pelos comissários do discurso aceitável. Quem escapa a essa cartografia — mesmo que por crítica legítima, mesmo que por denúncia documentada — é logo rotulado de “extremista”, “radical”, “populista”, “desinformador”. E a conversa morre ali, com e pelos rótulos.

    Mas a liberdade não é divisível. Não se pode defender a liberdade apenas para os que estão do “nosso lado”. Um liberal que apenas tolera liberais é apenas um sectário cortês. Um democrata que apenas defende a democracia para os seus é apenas um autoritário disfarçado. A liberdade exige coerência — e essa coerência inclui o direito à palavra dos que nos ofendem.

    Peguemos, por exemplo, num caso extremo: Tommy Robinson, figura incómoda e indigesta da extrema-direita britânica, foi detido, censurado, impedido de divulgar documentários, silenciado nas redes sociais. Discordo profundamente das suas posições, que estão nas antípodas das minhas. Porém, quando o Estado britânico lhe exige o código PIN do telemóvel sob ameaça de pena de prisão — como sucedeu —, aquilo que está em causa já não é uma ideologia reprovável: é um modelo de sociedade que se está a construir, onde o inimigo é pretexto para o alargamento do controlo estatal sobre todos.

    O mesmo se aplica aos tratamentos que foram dados a Julian Assange, a Edward Snowden, a Glenn Greenwald, a Craig Murray — e, nestes casos, nenhum pode sequer ser rotulado como de extrema-direita. Pelo contrário: são, em muitos casos, herdeiros da melhor tradição da esquerda crítica e dos direitos civis. Mas o sistema não distingue entre radicalismos ideológicos: o que incomoda já é a fractura no discurso dominante, seja ela feita com megafone ou com documentos classificados.

    A liberdade é indivisível porque não há liberdade se não houver espaço para o erro, para a provocação, para o excesso. Se não houver margem para o discurso que nos tira o sono. Se não houver lugar para o confronto real — não o debate domesticado dos talk-shows, mas a dissonância verdadeira, o choque de mundividências, o pensamento incivilizado que força a pensar.
    E é precisamente esse tipo de liberdade que se está a extinguir. Invoca-se o combate à desinformação, ao ódio, à radicalização. Mas raramente se define com rigor o que esses conceitos significam. O resultado é a elasticidade punitiva do vocabulário institucional. Hoje é um extremista de direita que é silenciado. Amanhã será um comunista nostálgico. Depois um jornalista incómodo. Por fim, um cidadão comum que ousou dizer o que não devia num jantar com amigos.

    Veja-se o que acontece agora no espaço europeu com a proposta do chamado Chat Control. Sob o pretexto irrepreensível de combater a pedofilia, pretende-se instituir a vigilância sistemática de comunicações privadas — até das mensagens encriptadas. O objectivo declarado é proteger crianças, mas o efeito real é criar a ferramenta que faltava para legitimar a devassa universal. Hoje a senha é “abuso infantil”, amanhã será “terrorismo”, depois “desinformação”. E a cada nova etiqueta moral, abrir-se-á um pouco mais a caixa negra da vida privada de milhões de cidadãos. Quem aplaude este primeiro passo fá-lo em nome da virtude, mas está a aplaudir, na verdade, a construção lenta de um regime onde todos passam a ser suspeitos até prova em contrário.
    A História ensina — a quem quiser aprender — que as liberdades não se perdem todas de uma vez. Perdem-se aos poucos, com aplauso. A repressão não começa com censura geral, mas com silêncios selectivos. Primeiro os extremos. Depois os arredores. Depois o centro — que já não tem forças para resistir.

    Por isso, a única posição coerente é esta: defender a liberdade mesmo de quem a despreza. Defender o direito à palavra de quem a usa para atacar-nos — porque ao defender esse direito, defendemo-nos a nós próprios. O liberal que se cala perante a censura ao conservador é cúmplice do silêncio futuro do progressista. O democrata que aplaude a repressão ao populista está a saudar a sua própria sentença adiada. A liberdade não pode ser partida em fatias morais. Ou se defende para todos — ou já não é liberdade: é apenas privilégio rotativo.

    7. Conclusão: Liberdade para viver, não apenas para obedecer

    Não há liberdade estática. Ou esta é um acto permanente — e, portanto, um risco —, ou é uma palavra decorativa, ritualizada, acomodada. Os regimes modernos tendem a preferi-la como símbolo: cabe no preâmbulo constitucional, no discurso de Ano Novo, na campanha institucional. Mas a liberdade verdadeira não se presta a cartazes: perturba, compromete, exige, resiste.

    A liberdade só vive onde existe memória de resistência. Não há liberdade sem os seus mortos, os seus exilados, os seus queimados, os seus silenciados. Cada direito conquistado foi, antes, um crime. Cada liberdade reconhecida foi, antes, um sacrilégio. É essa genealogia que a nossa época parece querer apagar, como se a liberdade fosse um produto da prosperidade e não da luta. Como se bastasse pagar impostos, votar de quatro em quatro anos e estar actualizado sobre os termos de uso.

    Mas não há liberdade sem herança de conflito — e sem disposição para o repetir, se necessário. A liberdade de expressão, por exemplo, não foi criada para proteger consensos, mas dissensos. O seu valor está no desconforto que provoca, não na unanimidade que facilita. Quando se começa a moldar a liberdade à medida da sensibilidade do outro, o que sobra já não é liberdade: é civilidade tutelada.

    E, contudo, o discurso dominante parece hoje preferir uma liberdade sem vértebra — uma liberdade protocolada, validada, certificada; uma liberdade que não escapa ao algoritmo nem ao moralismo; uma liberdade “segura”, como se isso não fosse já um oxímoro, uma contradição.

    Mas a liberdade é, por definição, incerta. Carrega o risco de nos confrontarmos com o erro, com o disparate, até com a ofensa. E é nesse risco que ela encontra sentido. Se tudo está regulado, moderado, contextualizado, desinfectado, então já não é liberdade — é comportamento autorizado.

    Mais grave ainda: perdeu-se a ideia de que a liberdade não é apenas um direito presente, mas uma responsabilidade futura. Aquilo que toleramos hoje — por comodismo, por medo ou por pragmatismo — será o que os nossos filhos aprenderão como natural. E se a liberdade não lhes for entregue como valor central, não saberão como a reconhecer, quanto mais como a defender. Não serão servos revoltados, mas súbditos gratos.

    É por isso que a liberdade exige transmissão. Não apenas por manuais escolares ou discursos parlamentares, mas como exemplo: pela recusa em aceitar o silêncio como custo social; pela coragem de não pactuar com o absurdo; pela escolha de ser livre mesmo quando a liberdade é incómoda, solitária ou improvável.
    Chegados ao fim deste capítulo, importa dizer sem ornamentos: a liberdade não é uma condição natural, nem um direito adquirido. É um exercício contínuo e uma luta renovável. Não precisa de nos ser retirada à força para desaparecer — basta que nos habituemos a viver sem ela.

    Por isso, viver livremente não é o mesmo que viver à vontade. Não é fazer tudo: é recusar que o essencial seja decidido por outros — é não obedecer por reflexo; é perguntar sempre: “Quem decide o que posso dizer? Quem define o que posso saber? Quem determina até onde posso ir?”

    Quando já não houver quem pergunte isso — mesmo em voz baixa, mesmo a sós —, a liberdade terá deixado de existir. Não com um golpe, mas com um consentimento.

    E, por isso, viver em liberdade é recusar a vida mansa da obediência. É preferir o desconforto da autonomia à anestesia da tutela. E isto nada tem de ideológico.

  • O ‘jornalismo de manada’ como arma política

    O ‘jornalismo de manada’ como arma política


    Numa era de profuso acesso a muitas fontes de informação e conteúdos, o papel do jornalista torna-se ainda mais crucial. Afinal, como profissional de informação, conhece as técnicas para saber quais as fontes seguras credíveis e também para verificar se informações que circulam estão correctas.

    Assim, numa era em que os leitores se podem perder no meio de tanta informação e conteúdos, o Jornalismo pode e deve ser, ainda mais, uma bússola. Pode e deve ser um farol que evita que os consumidores de informação fiquem atolados em informações falsas.

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    Foto: D.R.

    E, hoje, os próprios jornalistas têm mais ferramentas para poder confirmar dados e informações quase de modo instantâneo. Existem excepções, claro. Como quando entidades oficiais escondem bases de dados e informações de relevo, como tem acontecido em Portugal, o que tem levado o PÁGINA UM a accionar, por diversas vezes, mecanismos legais para forçar a divulgação dessa informação e a disponibilização do acesso a dados.

    Neste contexto, se é hoje muito mais fácil para os jornalistas confirmarem informações, quando todos os grandes meios de comunicação social fazem notícias similares sobre o mesmo tema, conclui-se que deve ser mesmo verdade.

    Mas esse não tem sido o caso na cobertura de muitos temas. E isso levanta um problema aos jornalistas que detectam as mentiras desses órgãos de comunicação social ditos de referência.

    man sitting on bench reading newspaper
    Foto: D.R.

    Os jornalistas que ainda seguem as boas práticas jornalísticas de verificação de fontes e factos são colocados, em algumas ocasiões, numa posição muito estranha: o que relatam não coincide com as “notícias” de outros jornalistas de outros media.

    Assim, a maioria dos jornalistas tende simplesmente a repetir o que os media de referência “noticiam”. Se o The Guardian ou, em Portugal, o Expresso, escrevem que “é assim” então não pode “ser assado”. Deste modo, dá-se um fenómeno de “manada” em que todos os media de referência dão notícias similares sobre os mesmos temas.

    Não me refiro, aqui, a situações de churnalism – quando jornalistas fazem copy-paste de comunicados de imprensa ou de notícias de agências, como a Lusa. Esse é um outro fenómeno que se tornou num cancro para o Jornalismo, ao longo das últimas décadas. Veja-se o caso recente em que a Lusa noticiou falsamente que os Estados Unidos deixaram de recomendar a vacina contra o sarampo. O título da notícia é falso. Mas os media em Portugal reciclaram o take da Lusa e replicaram-no, espalhando-o por toda a Internet e gerando uma onda de desinformação impossível de travar.

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    Foto: D.R.

    O que falo não é nestes casos. Falo de outro fenómeno, em que os jornalistas não querem ser a “ovelha negra” que escreve uma notícia “diferente” das dos colegas. Assim, mesmo sendo mentira, se um colega do The Guardian escreve uma mentira e o pivot da SIC diz exactamente a mesma mentira, qual vai ser o jornalista a ter coragem de verificar os factos e dizer algo diferente?

    Por exemplo, quando, recentemente, pesquisei informação sobre Charlie Kirk, deparei-me com um artigo no The Guardian que continha afirmações chocantes alegadamente proferidas pelo jovem cristão conservador, fundador da organização Turning Point USA, que foi assassinado quando participava em mais um debate numa universidade.

    Lendo o artigo do The Guardian, qualquer um fica zangado e revoltado com Kirk. O racismo, a misoginia, a xenofobia, a homofobia são conceitos hediondos. Em outras notícias de outros grandes meios, sucedem-se as citações atribuídas a Kirk que chocam qualquer um.

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    Foto: D.R.

    O problema é que uma breve pesquisa — com recurso à fonte de origem das afirmações atribuídas a Kirk — revela uma verdade escondida pelo The Guardian e pelos restantes media de referência. É que as frases são totalmente retiradas do seu contexto.

    Por exemplo, numa das frases chocantes citadas pelo The Guardian, Kirk afirmou: “If I see a black pilot, I’m going to be like, boy, I hope he’s qualified (se vir um piloto negro, vou pensar, espero que tenha qualificações)”. Lida assim, é obviamente uma frase chocante e concluímos que Kirk era efectivamente racista. Só que há um senão: foi dita num diálogo em que o objectivo de Kirk era alertar para o perigo de haver racismo causado pelas políticas discriminatórias de contratação nos Estados Unidos.

    No diálogo, ocorrido em 2024 no The Charlie Kirk Show, Kirk concluía que as políticas discriminatórias levavam pessoas a questionar se algumas minorias estavam nos seus empregos por serem boas no que fazem ou se por terem sido favorecidas por políticas de “inclusão”. Ou seja, Kirk sugeria que essas políticas tinham o potencial de retirar mérito e levar outros a pensar que a pessoa que pilotava um avião podia estar lá apenas porque a sua contratação dava jeito para a empresa preencher “quotas” de certos grupos de pessoas. E considerava que isso era negativo.

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    Foto: D.R.

    Este é um exemplo. Mas há muitos mais. Mas o leitor não tem de acreditar no que escrevo aqui. Vá ouvir Kirk e tire as suas conclusões. Porque é verdade que Kirk pode ser visto como provocatório, dado que não alinhava com a forma de falar politicamente correcta — venerada hoje pelos media, em geral.

    Mas há outro factor de relevo escondido pelos media: Kirk era um cristão devoto. E isso é relevante, por exemplo, no tema do aborto. Ou seja, o seu pensamento assenta nos princípios cristãos e “na Palavra”.

    Se fosse um muçulmano devoto (ou até fundamentalista), os media teriam tratado Kirk como sendo um “racista, misógino, homofóbico, nazi e fascista”? Sabemos que não. Apenas o fizeram porque Kirk era cristão. Apenas não assumem isso. E ao fazê-lo legitimaram o seu assassinato.

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    Foto: D.R.

    O certo é que as mentiras e as citações sem contexto propagadas pelo The Guardian e outros media de dimensão espalharam-se. Ao ponto de gerarem uma onda de protestos na Internet devido à cobertura maliciosa que os media estavam a fazer sobre Kirk, manchando o seu nome.

    Várias personalidades saíram em defesa de Kirk, como o comediante Terrence K. Williams, que condenou os que acusaram o jovem de ser racista. “Charlie Kirk não era racista e eu não vou ficar de braços cruzados a permitir que as pessoas espalhem essa mentira. Dei os meus parabéns ao Charlie Kirk no ano passado e agradeci-lhe por ter ajudado centenas de jovens negros a receber um convite para a Casa Branca em 2019. Ele ajudou a pagar a maioria dos voos e hotéis deles porque viajar custava muito [dinheiro] e ele não queria que eles perdessem essa oportunidade. Ele proporcionou-lhes uma experiência e uma oportunidade única na vida e, sim, ele também me ajudou a receber um convite. Vou sentir tanto a sua falta!”

    O mesmo se repete em relação a outras mentiras dos media sobre Kirk. Em Portugal, além das notícias falsas que acusam Kirk de racista, misógino e de pertencer à extrema-direita, há ainda as mentiras espalhadas por comentadores, como Filipe Santos Costa. Este ex-jornalista tem repetido na CNN, impunemente, a mentira de que Kirk defendia o apedrejamento até à morte de homossexuais. Kirk jamais defendeu tal atrocidade. Aliás, qualquer jornalista verifica, numa breve pesquisa, que Kirk, era tolerante e defendia o diálogo e a tolerância. Num dos debates numa universidade, Kirk afirmou que, não concordava com “esse estilo de vida” (homossexualidade) mas frisou isto: o mais importante na identidade de uma pessoa não deve ser o que faz na intimidade, no quarto.

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    Foto: D.R.

    Além de jornalistas e comentadores, académicos também fogem aos factos. A historiadora portuguesa Irene Pimentel escreveu na rede social Facebook, da Meta, que Kirk era “um simpatizante nazi”, o que é obviamente falso.

    Na mesma publicação [cujo link não coloco aqui para não promover discurso de ódio e desinformação], a historiadora também atribuiu a Kirk afirmações descontextualizadas. Por exemplo, Pimentel afirmou que Kirk era contra a democracia. Na realidade, o que ele afirmou foi que a palavra “democracia” não consta na Constituição dos Estados Unidos, mas que ele era “a favor de um governo representativo”, ou uma democracia representativa, como a que existe nos Estados Unidos e em Portugal. Pimentel também chamou Kirk de “misógino, racista e criminoso”, o que é falso. Kirk defendia a igualdade e a tolerância. Era cristão, conservador e um pacifista.

    Mais uma vez, este tipo de acusações difamatórias acabam por desumanizar o alvo e facilitar e até legitimar os ataques e as agressões contra personalidades que não sendo “racistas”, “nazis” nem “fascistas” sofrem campanhas de desumanização.

    Na realidade, Kirk não falava a linguagem woke tão amada por académicos seguidores de ideologias de esquerda, da extrema-esquerda. E, acresce, que era cristão, portanto era crítico de alguns temas e odiado por aqueles que hoje vêem no Cristianismo uma ameaça.

    Perante tantos jornalistas e personalidades a atirar pedras ao nome e reputação de Kirk, quantos jornalistas arriscam hoje escrever a verdade sobre ele? Poucos.

    Red game pieces grouped with one isolated piece symbolizing social distancing on a reflective surface.
    Foto: D.R.

    A onda de desinformação criou uma imagem falsa de Kirk. É fácil desmontar as mentiras? É. Qualquer pessoa faz isso em segundos. Qualquer jornalista. Mas falta a vontade. Falta vontade de fazer Jornalismo isento. Sem ideologias. Sem preconceitos. Falta a vontade de seguir o método que obriga a ir à fonte e verificar qual é a verdade. Sem os óculos do wokismo, sem os óculos dos ateus e das correntes em voga que ostracizam o Cristianismo.

    É preferível pensar que é uma questão de “falta de vontade” ou de “preguiça”. Porque a alternativa é impensável: foi por maldade e má-fé.

    Como jornalista, observam-se os factos. Pode não se concordar com as posições cristãs e conservadoras de Kirk. Pode não se apreciar a linguagem directa e assertiva, nada politicamente correcta. Pessoalmente, partilho uma visão diferente da dele em muitos temas. Mas isso não é relevante quando estou a exercer a minha profissão de jornalista e a cumprir o meu dever de informar com isenção e profissionalismo.

    Um jornalista pode ser ideologicamente de extrema-esquerda e ser ateu ou agnóstico, e mesmo assim ser um bom jornalista, que faz uma cobertura noticiosa dos eventos de forma isenta e rigorosa. Ou um jornalista pode ser ideologicamente da ala conservadora e muçulmano e ser um excelente profissional.

    black Corona typewriter on brown wood planks
    Foto: D.R.

    O preço a pagar sempre que jornalistas mentem é que toda a classe perde credibilidade. Isso voltou a acontecer, agora, com o homicídio de Kirk. Já tinha acontecido em muitas outras situações. O preço a pagar pelas mentiras é o desaparecimento do Jornalismo enquanto bússola e farol no mar sem fim de informação que temos hoje. E o mar está revolto, há ondas brutais e rochas afiadas que ameaçam a navegação.

    A esperança está nos jornalistas, nos profissionais que recusarem seguir as “manadas” e as mentiras em direcção ao naufrágio. A esperança está nos jornalistas que seguirem as boas práticas de verificarem as fontes e as informações, que são as velas e o leme que podem levar a bom porto qualquer trabalho jornalístico. E aí, é lançada a âncora — a verdade.

    Tendo começado a carreira de jornalista no tempo pré-Internet e smartphones — em que verificar dados e fontes dava mais trabalho e levava mais tempo — digo isto: nada mudou, no que toca ao básico em Jornalismo. Há mais ferramentas e meios, mas o básico mantém-se e há que procurar as fontes primárias, as fontes seguras e fiáveis para conseguir responder às questões simples que uma boa cobertura noticiosa exige. Quem? O quê? Onde? Quando? Como? Porquê?

    Não basta serem fontes oficiais. Há que verificar se as fontes, mesmo as oficiais, têm interesses conhecidos ou escondidos, sejam económicos ou políticos, e deve ter-se isso em conta.

    Hoje não é fácil um jornalista seguir estes princípios. Um jornalista que “se atreva” a “sair da linha” e a escrever “algo diferente” do que está a ser dito pelo The Guardian e similares, arrisca ser insultado, envergonhado publicamente. Arrisca ser catalogado de “nazi” e “fascista”.

    tea light on brown surface
    Foto: D.R.

    Porque acredito que os tempos são de desafio moral e espiritual, e não apenas sobre os factos ou as boas práticas, concluo este texto com uma sugestão a todos os jornalistas: não tenham medo. Nunca tenham medo. Porque o que conta é estarmos em paz com a nossa consciência, enquanto profissionais e seres humanos.

    Se um jornalista tem medo de escrever com base nos factos e se receia investigar, é porque vive num regime de ditadura. E isso sente-se hoje, esse peso da censura e dos “linchamentos” na praça pública perpetrados por aqueles que chamam outros de … “fascistas” e “nazis”. São esses os verdadeiros antidemocratas do nosso tempo.

    O Jornalismo é um eterno aliado da democracia. O “jornalismo de manada”, usado para desumanizar e difamar, é uma arma poderosa que ameaça destruir a democracia e favorecer os que querem censura, pensamento único e opressão. Cabe aos leitores ver a diferença.

    Nota: Texto actualizado no dia 28 de Setembro, às 17H50, para acrescentar outras acusações difamatórias que a historiadora portuguesa Irene Pimentel fez a Kirk e também para clarificar que Pimentel não afirmou que o jovem cristão e conservador era “nazi”, mas sim “um simpatizante nazi”. Esta e as restantes acusações difamatórias feitas por Pimentel numa publicação na rede Facebook são obviamente falsas.

  • O caso da vacina contra o sarampo nos Estados Unidos: a vergonhosa cobertura noticiosa

    O caso da vacina contra o sarampo nos Estados Unidos: a vergonhosa cobertura noticiosa


    Há notícias que, pela sua forma e conteúdo, se transformam em peças de estudo sobre a degradação do jornalismo. A notícia elaborada pela Lusa sobre a vacinação de crianças nos Estados Unidos – transmitida de imediato, acefalamente, pelo Público, pelo Observador, pelo Correio da Manhã, pelo Expresso e pela SIC Notícias – é um desses exemplos. Na generalidade, os títulos são similares ao do Público: “Governo dos Estados Unidos deixa de recomendar vacina contra sarampo”.

    A frase não deixa margem para segundas leituras – e não se trata de uma mera falha técnica ou de uma distração inocente; é antes uma amostra vergonhosa de desinformação, de enviesamento ideológico e de promoção de erros científicos intencionais, que envergonham a profissão e corroem a confiança pública no jornalismo.

    Comecemos pelo óbvio: o título é falso. Os Estados Unidos não deixaram de recomendar a vacina contra o sarampo. Aquilo que o Comité Consultivo sobre Práticas de Imunização (ACIP), ligado ao CDC, aprovou foi somente a substituição da vacina combinada MMRV – que reunia sarampo, papeira, rubéola e varicela numa só injeção – por duas formulações distintas: MMR (sarampo, papeira e rubéola) e uma vacina separada para a varicela.

    Ou seja, não houve qualquer recomendação para deixar de vacinar crianças contra o sarampo – e nem por via subtil, porque até foi a varicela que saiu da combinação, e não o sarampo. A proteção contra sarampo, rubéola e papeira continuará exactamente igual, administrada em conjunto. E em vez de uma injeção serão dadas duas – não houve qualquer orientação contrária.

    Porém, a Lusa, o Público, o Observador, o Correio da Manhã, a SIC e o Expresso preferiram transformar um detalhe técnico numa manchete explosiva, insinuando que as crianças norte-americanas ficariam subitamente desprotegidas. Isto não é apenas desleixo informativo: é pura manipulação.

    A gravidade aumenta porque todas as notícias – similares, ao péssimo estilo churnalism – omitiram o contexto científico. Desde 2008, passando por democratas e republicanos, estudos do Vaccine Safety Datalink e do próprio CDC demonstraram que a vacina MMRV em crianças pequenas aumentava o risco de convulsões febris. Em crianças dos 12 aos 23 meses, a taxa observada foi de cerca de oito casos em cada 10.000 vacinados com MMRV, contra quatro casos em cada 10.000 vacinados com MMR + varicela separadas. Estamos a falar de um risco real, mas raro, que, embora não deixe sequelas a longo prazo, assusta pais e faz sofrer crianças.

    Foi esse fundamento técnico – a duplicação estatística do risco, embora baixo – que justificou esta alteração técnica que em nada modificou a administração das quatro vacinas. Nada disto aparece explicado no artigo da Lusa e dos seus sucedâneos. O leitor foi intencionalmente deixado na ignorância, como se a mudança tivesse brotado da cabeça iluminada de Robert F. Kennedy Jr., atual secretário da Saúde dos Estados Unidos.

    E aqui está um ponto decisivo que a Lusa e seus “seguidores” intencionalmente distorcem ou omitem. Kennedy Jr. é sistematicamente rotulado como “anti-vacinas”, quando a realidade é mais complexa. O seu discurso, por mais polémico que seja, não se resume a rejeitar todas as vacinas. Ele critica há anos a segurança de certas formulações, questiona a toxicidade de aditivos como o timerosal ou os sais de alumínio, e denuncia alegadas falhas de transparência na farmacovigilância, como foi o caso das ditas “vacinas” contra a covid-19.

    a baby being examined by a doctor and nurse

    Pode-se discordar do tom ou do enquadramento político, mas confundir esta crítica – legítima ou não – com uma campanha para “banir vacinas” é um erro jornalístico grosseiro. Mas Lusa, Público, Observador, SIC Notícias e Expresso – pelo menos estes – escolheram a caricatura fácil, anulando nuances fundamentais e, desse modo, enganaram os leitores.

    A consequência é dupla. Por um lado, apagou-se o facto de a decisão do CDC ter base científica consolidada há mais de uma década: minimizou-se um risco raro mas documentado de convulsões febris. Por outro lado, transformou-se a medida numa “vitória pessoal” de Kennedy Jr., sugerindo que o novo secretário da Saúde teria inventado riscos. Este enviesamento reforçou uma lamentável narrativa política, ao mesmo tempo que obscurece a realidade – e, no entanto, o sarampo continua a ser alvo de vacinação e a única mudança concreta foi a separação da varicela.

    Do ponto de vista dos princípios jornalísticos, o resultado é devastador: um título falso – que até pode incutir (falsos) argumentos aos movimentos anti-vacinas radicais –, uma omissão deliberada do enquadramento científico, uma simplificação caricatural da figura política em jogo e uma redação preguiçosa, dependente de agências noticiosas, sem esforço mínimo de confrontar fontes primárias, documentos do CDC ou associações médicas. Este é o jornalismo de secretária ideológico e manipulador com consequências reais para a saúde pública.

    the word true is spray painted on a white wall

    Num país onde a confiança nas vacinas ainda é elevada, mas onde circulam já rumores e receios amplificados pelas redes sociais, uma manchete destas é gasolina atirada sobre brasas. Os órgãos de comunicação social, a começar pela Lusa, contribuíram activamente para semear a dúvida e a confusão. E quando se trata de vacinas contra o sarampo, não falamos de abstrações: falamos de uma doença altamente contagiosa, que exige mais de 95% de cobertura vacinal para garantir imunidade de grupo.

    Não, não é aceitável reduzir tudo isto a uma mera falha. Estes erros começam a ser sistemáticos, mostrando um triste padrão: um jornalismo cada vez mais desleixado, mais rendido à facilidade do copy-paste de agências, mais disposto a sacrificar a verdade factual em troca de títulos apelativos que gerem cliques. Mas aqui ultrapassa-se o limite: a saúde pública não pode ser tratada como carnada mediática.

    Jornalistas sérios teriam feito o oposto: explicariam ao leitor que a vacina contra o sarampo continua a ser considerada (ainda mais) segura e recomendável, mostrariam os números sobre convulsões febris, explicariam a diferença entre MMR e MMRV, e enquadrariam politicamente a decisão sob a tutela de um secretário da Saúde que, concorde-se ou não, levanta dúvidas sobre segurança e aditivos.

    Foto: PÁGINA UM

    Se o jornalismo serve para informar, esta peça serviu para desinformar. Se o jornalismo serve para esclarecer, aqui serviu para confundir. Se o jornalismo serve para proteger a cidadania, aqui serviu para fragilizá-la. É um caso de estudo sobre como não se deve fazer jornalismo científico e de saúde pública. E, mais grave ainda, é um exemplo de como o enviesamento ideológico e a preguiça redacional podem transformar um órgão de comunicação social respeitado num veículo de erro.

    E sobre a situação do sarampo este ano nos Estados Unidos, voltarei muito em breve para abordar este assunto – e demonstrar como o jornalismo português (e europeu), cego pela paixão ideológica (e comercial), recusa olhar para dentro da sua casa.

  • Mas afinal, quem é que vota no Chega?

    Mas afinal, quem é que vota no Chega?


    Os portugueses que votam no Chega serão fascistas? Serão xenófobos e racistas? Serão broncos de extrema-direita?

    Garantidamente, os portugueses que votam no Chega têm problemas; problemas gravíssimos.

    Ganham salários inferiores a 1.000€ (mais de metade dos jovens adultos, entre os 18 e os 35 anos); ganham reformas inferiores a 500€ (cerca de metade dos pensionistas); não conseguem comprar casa; não conseguem arrendar casa; trabalham em situação de precariedade (uma percentagem assustadora dos jovens adultos a trabalhar com contratos a prazo e, portanto, sujeitos à ‘montanha russa’ do ‘emprego-desemprego-emprego-desemprego’).

    Continuando: os portugueses que votam no Chega não conseguem encontrar em Portugal condições de vida que lhes proporcionem estabilidade profissional, autonomia residencial, capacidade financeira para sustentar filhos, e então… emigram.

    Os portugueses que votam no Chega têm filhos, jovens adultos, que não conseguem arranjar trabalho nem conseguem comprar casa; ou têm filhos, jovens adultos, que compraram uma casa com muita dificuldade (o valor da entrada, as despesas no dia da escritura, a prestação ao Banco) e que trabalham contratados a prazo, com um salário baixo; mas ao mesmo tempo sabem que há uns felizardos, membros da comunidade de etnia cigana, que não trabalham porque não querem trabalhar, que recebem subsídios e que, de vez em quando, fazem cursos profissionais para continuarem a não trabalhar, e que têm direito a uma casa, sem nada pagarem, apenas porque são uns coitadinhos.

    Coitadinhos? Curiosamente, quem se cruza com eles aqui e acolá, porque os tem como vizinhos, vota no Chega. Talvez porque os que votam no Chega são uns sociopatas sem um pingo de amor pelo próximo?

    people gathered on street

    Por falar em sociopatas, e por muito que nos custe acreditar, há portugueses que fazem licenciaturas e mestrados em Serviço Social, que, com dificuldade, conseguem arranjar trabalho, lidando no dia-a-dia com ‘famílias carenciadas’ em termos de ‘inclusão social’, e que, a dada altura, constatam que têm um rendimento, proveniente do trabalho, inferior ao rendimento dessas famílias que são apoiadas pelos nossos impostos. Ora, estes portugueses, que estudaram, que trabalham e que ganham menos que os ‘carenciados’, votam em quem?

    Os portugueses que votam no Chega, na sua maioria, pertencem a uma classe média empobrecida e a uma classe média-baixa revoltada.

    Não são fascistas, não são racistas, não são broncos, nem são sociopatas.

    E depois há os portugueses que têm medo de passear à noite e que dizem às filhas que estão proibidas de chamar um UBER. E estes também votam no Chega.

    E há ainda aqueles portugueses, que também votam no Chega, que, em certas regiões do país e em certos setores de atividade, não conseguem arranjar trabalho com um salário digno porque há imigrantes que aceitam trabalhar, sem recibo, auferindo salários de miséria.

    Há finalmente portugueses que levam muito a sério a problemática da ética e da moralidade na vida política. Estes portugueses acham que os políticos deveriam cuidar dos cidadãos e do país, em vez de cuidarem de si próprios e dos interesses que, às escondidas, representam. E ficam irritadíssimos com os casos eticamente vergonhosos e com os escândalos moralmente deprimentes que se vão sucedendo, impunemente alimentados por uma classe política que não tem vergonha.

    Querem que vos diga como é que estes portugueses votam?

    Há entretanto uns partidos políticos que andam com um lenço palestino ao pescoço, que falam de multiculturalidade e inclusão, que pugnam, em abstrato, pelos direitos das mulheres (o que é altamente contraditório com o lenço palestino), dos mais vulneráveis (confundindo vulnerabilidade com recusa de integração) e dos LGBT+, que desculpam os bandidos e achincalham os polícias, que se propõem combater, sempre em abstrato, as desigualdades sociais… em suma, que defendem os palestinianos, os imigrantes, os transsexuais, os criminosos, mais a diversidade cultural e a integração a todo o custo.

    people walking on grey concrete floor during daytime

    E há portugueses que ficam de boca aberta; que perguntam a si próprios em que país é que estes partidos políticos vivem; que se interrogam acerca do conhecimento que estes partidos políticos têm da realidade em que, em Portugal, estamos todos mergulhados.

    E estes portugueses votam no Chega.

    Há também uns partidos políticos que governam Portugal há várias décadas e que, objetivamente, são responsáveis por aquilo que antes se retratou.

    E há portugueses que dizem… basta!

    E estes portugueses votam no Chega.

    Os intelectuais da esquerda e os espertalhões do poder instalado vão algum dia conseguir perceber porque é que há portugueses a votar no Chega?

    Claro que não!

    question mark, important, sign

    Vão continuar a dizer que quem escreveu estas linhas mete no mesmo saco transsexuais e criminosos, inclusão e recusa de integração, e assim por diante, quando a verdade é que o autor destas linhas, longe de meter tudo isto no mesmo saco, está simplesmente a afirmar que estas não são as causas relevantes para muitos e muitos portugueses – o sofrimento do povo palestiniano, o respeito pelos LGBT+ e o bem-estar dos imigrantes, não são as questões que mais atormentam uma parte não despicienda da população portuguesa.

    Os intelectuais da esquerda e os espertalhões do poder instalado vão continuar a dizer que é preciso proteger as minorias, uns, e que é preciso fazer reformas, os outros, quando a verdade é que há muitos e muitos portugueses convencidos de que é preciso cuidar da maioria e que não acreditam na conversa estafada das reformas.

    Mais confrangedor ainda: vão continuar a dizer que os jovens adultos votam no Chega por causa das redes sociais; e que os pais dos jovens adultos votam no Chega porque têm fracas habilitações literárias; e que os reformados votam no Chega porque estão esclerosados; e que aqueles que conhecem os ciganos de ginjeira votam no Chega porque são racistas e porque querem incitar ao ódio; e que os emigrantes votam no Chega sabe-se lá porquê, quando a verdade é que…

    man in gray hoodie and black pants holding brown cardboard box

    Enfim, já chega!

    Adenda: Como nota final, à luz do que ficou escrito neste artigo, serei seguramente considerado, por uns quantos, um protofascista e um bronco iletrado, que não consegue ler um parágrafo com mais de duas linhas, nem consegue articular uma ideia que seja compatível com o politicamente correto, e neste ponto, pasme-se, estão carregados de razão.

    Francisco Abreu é gestor, consultor e editor, doutorado em Filosofia das Ciências pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo sido docente do ensino superior.

    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Introdução: A suave tirania dos nossos tempos

    Introdução: A suave tirania dos nossos tempos


    Há momentos na História em que o discurso político, o pensamento público e até a consciência individual parecem mergulhados num torpor feito de palavras repetidas, de ideias ocas, de rituais sem alma. Vivemos um desses tempos. Um tempo em que as ideologias, outrora projectos estruturantes de mundo, caíram no descrédito ou na irrelevância, sendo substituídas por etiquetas vagas, por alinhamentos circunstanciais e por automatismos discursivos que já não mobilizam consciências nem iluminam caminhos.

    A política deixou, em larga medida, de ser a arte da escolha entre visões de sociedade para se converter num mercado de slogans, numa arena de reacções instintivas, numa sequência de performances ajustadas ao algoritmo ou ao inquérito de opinião. Por isso, mostra-se cada vez mais urgente recentrar o debate nos valores — não nos rótulos, não nos programas, não nos partidos, mas nos valores perenes que dão sentido à liberdade, à verdade, à responsabilidade e à soberania do indivíduo e da comunidade.


    1. O colapso das ideologias tradicionais e a ascensão do dogmatismo funcional

    Durante grande parte do século XX, os confrontos ideológicos não eram apenas jogos de poder: eram confrontos de visões do mundo. O liberalismo clássico, o socialismo democrático, o conservadorismo nacional — com todas as suas variantes e degenerescências — disputavam entre si não apenas votos, mas sentidos, princípios e horizontes. Discutia-se o papel do Estado, o valor da propriedade, a relação entre liberdade e igualdade, o lugar da tradição e da inovação.

    Discutia-se, de facto, política — com paixão, com erro, com demagogia por vezes, mas com substância. Havia, para o bem e para o mal, uma batalha de ideias. A própria luta contra as formas totalitárias — o nazismo, o comunismo, o fascismo — exigia posicionamento e coragem intelectual. Ser de direita ou de esquerda implicava, até certo ponto, uma coerência moral, um conjunto de referências, um mapa do mundo.

    Essa arquitectura ruiu. Não de forma repentina, mas por erosão lenta. O liberalismo económico divorciou-se do liberalismo político, convertendo-se numa técnica de gestão de mercados. O socialismo sucumbiu entre a burocracia estatal e a sedução do consumo. O conservadorismo deixou de conservar seja o que for — perdeu o sentido de pertença e rendeu-se ao marketing político. Aquilo que sobra das ideologias do século XX são versões anémicas de si mesmas: a esquerda que defende bancos e vacinações compulsórias; a direita que aceita défices, censura e dissolução da soberania nacional; os centristas que vegetam entre um simulacro de consenso e a rendição à tecnocracia.

    As ideologias perderam conteúdo porque foram cooptadas pelos aparelhos institucionais, pelos interesses económicos, pela lógica da comunicação instantânea. Como defendeu o recém-falecido filósofo britânico Alasdair MacIntyre, vivemos um tempo de “fragmentação moral”: já não há um quadro partilhado de sentido, mas apenas segmentos dispersos de valores instrumentais, sem hierarquia nem finalidade comum.

    O resultado não tem sido a emancipação do cidadão, mas a sua reprogramação funcional. O vazio deixado pelas ideologias não foi ocupado por um renascimento do pensamento, mas por um novo dogmatismo: mais discreto, mais eficaz, mais domesticador. Não se apresenta como ideologia, mas como inevitabilidade. Não propõe um projecto político, mas uma engenharia social. Este novo dogmatismo é funcional, não doutrinário: não tem como missão formar convicções, mas produzir comportamentos. Apresenta-se sobretudo como tecnocracia apostada na neutralidade, na moral institucionalizada que se confunde com virtude, no higienismo que se impõe como salvação, na burocracia da igualdade que desumaniza em nome da inclusão — é o poder sem rosto, sem narrativa, sem contestação visível; é um poder que normaliza o anormal e rotula como extremista quem apenas ousa pensar fora da grelha predefinida.

    Estamos perante uma nova forma de tirania da maioria, como já antecipava Alexis de Tocqueville no século XIX: uma maioria não necessariamente numérica, mas mediática, algorítmica, institucional — uma maioria fabricada e legitimada não pelo debate, mas pela repetição. Este novo consenso moral-operativo não precisa de censura formal: basta-lhe a difamação mediática, o cancelamento digital, o controlo subtil da linguagem, o medo socialmente inculcado. O triunfo da tirania da maioria surge com a instalação da uniformidade do pensamento, da obediência voluntária, da infantilização do juízo. Embora numa outra perspectiva, Hannah Arendt alertou para a banalidade do mal — e esse mal implanta-se agora não pelo fanatismo ideológico, mas pela normalização da passividade, pela rotinização da mentira, pela aceitação preguiçosa da ordem estabelecida.

    Esse novo dogmatismo apresentou-se, sobretudo na última década, e particularmente desde 2020, com múltiplas máscaras: sanitária, climática (não ambiental), identitária, digital. Mas por trás de todas essas máscaras está o mesmo impulso: manter o indivíduo sob vigilância e a sociedade sob tutela, convencer-nos de que a liberdade é perigosa, a dúvida é ofensiva, a responsabilidade é opressiva, a verdade é relativa. Tudo é reconfigurado ao serviço da funcionalidade: a Ciência como validação de políticas, a Educação como engenharia comportamental, a Cultura como entretenimento subvencionado, o Jornalismo como extensão do poder. E o mais grave é esse processo muitas vezes ser aceite pelos próprios agentes sociais — médicos, professores, jornalistas, juristas — que, em vez de resistirem, adaptam-se, integram-se, reproduzem as lógicas institucionais sob o pretexto de servirem o bem comum.

    Estamos, pois, num tempo em que os partidos e os políticos já não pensam, apenas reagem; em que os parlamentos já não deliberam, apenas carimbam; em que os cidadãos já não escolhem, apenas consentem. A democracia formal mantém-se — com eleições livres, debates condicionados, liberdades reguladas —, mas a substância do regime democrático esvaziou-se: sem ideologias com conteúdo e sem valores em disputa, a política degenerou numa luta de máquinas, de narrativas e de ressentimentos. Restam alguns focos de lucidez, por vezes na periferia, por vezes fora do sistema político, mas são tratados como excentricidades ou ameaças, nunca como interlocutores legítimos.

    É neste cenário que este conjunto de crónicas se inscreve — não como manifesto partidário, nem como catecismo ideológico, mas como exercício de resgate do essencial. Não proponho substituir uma ortodoxia por outra, mas recentrar o debate no que verdadeiramente importa: os valores que permitem pensar e agir com liberdade, integridade e responsabilidade. Contra a lógica das etiquetas e das fidelidades tribais, sugiro aqui uma grelha de princípios que, sendo antigos, se tornam hoje revolucionários. Por exemplo, o simples acto de afirmar que a liberdade é um valor superior à segurança, que a soberania é um direito democrático e não uma relíquia nacionalista, que a verdade importa mesmo quando é incómoda, que o Jornalismo deve vigiar o poder e não servi-lo — tudo isso, que há poucas décadas seria senso comum liberal ou republicano, tornou-se subversivo.

    Estas crónicas, por isso, não servem para crentes, mas para pensantes. Não ofereço soluções mágicas nem convido à adesão automática. Convido, sim, ao exame crítico, à recusa do automatismo, à recuperação do juízo moral. Inicio a partir de um diagnóstico duro — o colapso das ideologias e a ascensão de um dogmatismo funcional e anónimo — para propor um caminho exigente: o da reconstrução do espaço público com base em valores sólidos, não em alinhamentos convenientes. Um caminho que não se faz com indignações epidérmicas nem com palavras de ordem, mas com coragem intelectual, memória histórica e sentido de responsabilidade.

    Aquilo que proponho, portanto, não é o regresso a um passado idealizado, mas a recuperação daquilo que foi abandonado por preguiça, por medo ou por conveniência. A liberdade, a verdade, a responsabilidade, a soberania, a integridade, a crítica, a expressão livre — não como bandeiras identitárias, mas como fundamentos de uma vida cívica digna. Dizer isto é, hoje, um acto político — e, talvez, um acto de resistência.


    2. A necessidade de um novo referencial baseado em valores perenes

    A erosão das grandes ideologias não deu lugar ao pensamento, mas ao vazio. E esse vazio, incapaz de suportar a exigência do juízo crítico, foi rapidamente preenchido por sucedâneos discursivos que prometem tudo e significam quase nada.

    O mais insidioso destes sucedâneos é o centrismo, essa palavra cómoda que disfarça a abdicação do pensamento sob a aparência de equilíbrio. O centro político, que poderia ser um espaço de síntese ou de ponderação, converteu-se num refúgio para os que recusam escolher, os que temem afirmar, os que preferem a gestão à visão. O mesmo se aplica à chamada moderação, termo que nos tempos actuais deixou de significar prudência ou contenção para se tornar sinónimo de capitulação moral. Já não é o radicalismo que assusta: é a possibilidade de ter convicções claras, de afirmar valores como inegociáveis, de recusar as zonas cinzentas que anestesiam o juízo.

    A consciência social, por sua vez, tornou-se uma fórmula piedosa para justificar políticas contraditórias, assistencialismos estruturais e moralismos públicos. Com ela, legitima-se tudo: da restrição de liberdades à imposição de comportamentos, desde que embrulhado numa linguagem de inclusão e compaixão institucionalizada. Trata-se, no fundo, de uma operação de ocultação: esvaziar o conteúdo político do debate, neutralizar os conflitos de valor e transformar a deliberação democrática num ritual de consenso forçado, onde discordar é ser extremista e questionar é ser perigoso.

    Estas soluções fáceis não são apenas intelectualmente pobres: são mecanismos activos de erosão da cidadania, pois promovem a obediência revestida de virtude e a conformidade disfarçada de ponderação.

    Neste cenário, torna-se fulcral um novo referencial, mas não um referencial ideológico — já vimos como as ideologias se tornaram cascas vazias, instrumentos de marketing ou de sobrevivência partidária. Aquilo que se impõe é a substituição das etiquetas por uma arquitectura de valores, que sirvam de critério normativo e de fundamento ético para a acção pública e individual. Esta arquitectura não é um sistema fechado, mas uma grelha de referência; não impõe conclusões, mas fornece critérios de orientação, que permitem distinguir entre o essencial e o acessório, entre aquilo que pode ser negociado e o que deve ser preservado, entre o que é opinião e aquilo que é princípio.

    A proposta destas crónicas assenta precisamente nesse resgate dos valores estruturantes, que não dependem de programas eleitorais, de conveniências partidárias ou de consensos fugazes. Falo de valores que não mudam com o ciclo noticioso nem oscilam ao sabor das redes sociais. Falo da liberdade, da verdade, da responsabilidade, da soberania, da expressão crítica, da integridade — valores que moldam o carácter de uma sociedade e a dignidade de um cidadão. Não são fórmulas — são fundamentos. Não são sentimentos — são compromissos. E é essa distinção que urge recuperar, pois a confusão também se mostra quando se acredita que “valores” são apenas slogans ou posturas públicas.

    Mas, afinal, o que são valores perenes? A resposta deveria ser simples: são aqueles princípios que resistem ao tempo, à moda e à manipulação, que exigem constância, coragem e clareza — precisamente por não serem adaptáveis ao gosto do dia. São aqueles que, como dizia Simone Weil, nos enraízam: não nos prendem ao passado, mas impedem que sejamos levados pela corrente de cada presente. A liberdade, por exemplo, não é uma política — é um princípio. A verdade não é um ponto de vista — é uma exigência. A responsabilidade não é uma função — é uma escolha pessoal. A soberania não é um capricho nacionalista ou patriótico — é o direito a decidir o próprio destino. Estes valores não são acessórios: são a gramática da dignidade.

    Já os valores acessórios — como a eficiência, a inovação, a sustentabilidade ou a competitividade —, embora possam ser desejáveis, não fundam nada por si mesmos. São instrumentais, não estruturantes. Podem servir a liberdade ou a tirania, a responsabilidade ou o servilismo, consoante o fim que os enquadra. A confusão entre uns e outros é, aliás, um dos grandes perigos do tempo presente: tomam-se meios por fins, virtudes técnicas por virtudes morais, consensos operacionais por princípios políticos. E assim, pouco a pouco, perde-se o sentido do essencial — como quem, em nome de conduzir mais depressa, se esquece do destino.

    Proponho, assim, um acto de ordenação — não no sentido autoritário, mas no sentido aristotélico: recolocar cada coisa no seu lugar, distinguir os planos, hierarquizar os critérios. Vivemos agora, como advertiu no século passado Isaiah Berlin, num mundo de conflitos trágicos entre valores; mas o pluralismo de valores não é relativismo. Saber que há valores em tensão não significa que todos valham o mesmo. A liberdade pode entrar em tensão com a segurança, mas não é por isso que se pode abolir uma em nome da outra. A verdade pode colidir com a conveniência, mas não é por isso que se pode renunciar à sua busca como se fosse um luxo. A responsabilidade pode ser dura, mas não é por isso que se deve infantilizar o cidadão sob o pretexto da protecção.

    Neste contexto, os valores perenes funcionam como âncoras num tempo líquido, para usar a célebre metáfora do sociólogo polaco Zygmunt Bauman. São antídotos contra a manipulação emocional, contra a oscilação retórica, contra a volatilidade programática. Permitem, sobretudo, resgatar a autonomia do juízo, que é o verdadeiro fundamento de uma democracia viva. Quando tudo é opinião e tudo é sensibilidade, os valores fornecem uma base para o discernimento. Quando tudo é ruído e reacção, os valores permitem distinguir o necessário do acessório, o essencial do conjuntural.

    Talvez seja esse, afinal, o maior desafio contemporâneo: reaprender a distinguir. Distinguir entre liberdade e permissividade, entre verdade e narrativa, entre responsabilidade e delegação, entre soberania e isolamento, entre expressão e propaganda. Só essa capacidade de discriminar, de julgar, de hierarquizar — e de agir em conformidade — permite que o indivíduo se afirme como sujeito cívico, e não como peça funcional de uma engrenagem social ou económica. E é essa distinção, esse juízo, essa coragem que os valores perenes exigem e oferecem.

    Estas crónicas serão, pois, um convite para essa reconstrução. Não com arrogância moral, nem com nostalgia restauradora, mas com a serenidade crítica de quem acredita que há coisas que não passam — e que, por isso, nos podem orientar quando tudo parece disperso. Valores em vez de ideologias; critérios em vez de slogans; consciência em vez de reflexo. Essa é a proposta. E também a provocação.


    3. Uma crítica à infantilização da cidadania e à política performativa

    Entre os efeitos mais perversos do esvaziamento ideológico e do colapso valorativo está a lenta, mas eficaz, infantilização da cidadania. O cidadão emancipado, consciente dos seus direitos, mas também dos seus deveres, informado e capaz de deliberar, deu lugar a uma figura tutelada — um menor cívico perpétuo, que não pensa, mas consome; que não questiona, mas subscreve; que não age, mas espera que alguém o represente, o proteja, o salve.

    O Estado, outrora pensado como expressão da vontade política do povo soberano, converteu-se numa entidade paternalista, uma espécie de tutor universal que administra riscos, distribui subsídios e regula comportamentos, sempre em nome do bem, da segurança, da inclusão ou da saúde pública. E o cidadão, por sua vez, já não é um sujeito político, mas um cliente de direitos, sempre pronto a reclamar, mas pouco disposto a participar; sempre ávido de garantias, mas alérgico à responsabilidade.

    Esta cultura da tutela, alimentada por décadas de pedagogia estatal, de retórica protectora e de engenharia social, produziu um modelo de cidadania que já não é autónomo, mas dependente por design — dependente do Estado, das instituições, dos especialistas, das plataformas. A autonomia tornou-se suspeita; a dúvida, subversiva; a exigência de coerência, um luxo burguês. Promoveu-se a ideia de que o cidadão precisa de ser guiado, esclarecido, conduzido — como se a maturidade política fosse uma meta inalcançável e a liberdade, uma ameaça à ordem. Esta concepção tutelaresca do poder reduziu o espaço público a uma espécie de sala de aula infantilizada, onde os “bons alunos” recebem prémios e os “mal-comportados” são punidos com censura, marginalização ou rotulagem.

    Paralelamente, a política tornou-se espectáculo. Não no sentido clássico de representação — que pressupunha uma ligação simbólica com a vontade colectiva —, mas no sentido contemporâneo de simulação. O Parlamento deixou de ser um fórum de debate para ser um palco de encenação. As redes sociais converteram-se no verdadeiro hemiciclo do presente: é ali que se ganha ou perde o dia, que se define a agenda, que se forjam reputações.

    O político performativo não tem ideias, mas frases; não tem visão, mas pose; não tem projecto, mas indignações rotativas. A acção política resume-se a hashtags, a vídeos de 15 segundos, a indignações de serviço, a gestos simbólicos que nada mudam, mas servem para manter a coreografia do envolvimento cívico. Estamos perante o império da estética sobre a ética, da forma sobre o conteúdo, da visibilidade sobre a substância.

    No século passado, Guy Debord já proclamara a “sociedade do espectáculo” — mas hoje o espectáculo político ainda é mais perverso do que aquele que este teórico francês descreveu nos anos 1960: é interactivo, personalizado, algorítmico. Sobretudo por via das redes sociais, o cidadão já não é apenas espectador: é convidado a participar — desde que dentro dos limites do guião. Pode reagir, pode comentar, pode partilhar, mas não pode mudar nada. A ilusão da participação substituiu a prática da cidadania. A emoção substituiu o juízo. A reacção substituiu a deliberação. O debate real desapareceu — e com ele a possibilidade de conflito produtivo, de divergência estruturada, de construção comum. Finge-se que há debate onde só há marketing. Finge-se que há diversidade onde só há variações sobre o mesmo tom. Finge-se que há democracia onde só há gestão da percepção pública.

    Este ambiente favorece, naturalmente, a docilidade política. Um cidadão infantilizado é mais fácil de mobilizar — ou de desmobilizar. Basta-lhe um susto, um escândalo, um escudo fiscal. Não exige princípios, apenas resultados. Não quer verdade, apenas conforto. E, acima de tudo, não quer responsabilidades. O preço da autonomia torna-se demasiado alto para quem foi educado na lógica da tutela e da promessa: é mais cómodo seguir o fluxo, alinhar com o “lado certo da História”, repetir as palavras permitidas, partilhar os slogans da moda. A liberdade, neste contexto, é não ter de decidir; a cidadania, não ter de pensar. Por isso, os poderes instalados — sejam políticos, mediáticos ou económicos — fomentam esta infantilização: não por malícia, mas por conveniência. Um cidadão que pensa, questiona. Um cidadão que duvida, atrasa. Um cidadão que exige, complica. Melhor, então, mantê-lo entretido, indignado, emocionado — mas nunca desperto.

    Este processo de adormecimento da cidadania seria, porventura, reversível se existissem instâncias de formação crítica capazes de operar uma contra-narrativa. Mas aquilo a que outrora chamávamos Escola, Imprensa e Cultura deixou, em larga medida, de cumprir essa função. A Escola, rendida ao utilitarismo e ao relativismo, já não forma para o juízo, mas para a adaptação — ensina competências, não pensamento. A Imprensa, em vez de questionar o poder, tornou-se seu apêndice — ora laudatório, ora servil, ora simplesmente ausente. O Jornalismo transformou-se numa extensão do marketing institucional ou numa tradução apressada de agências noticiosas. E a Cultura, cada vez mais reduzida ao entretenimento, deixou de ser um espaço de elevação para ser um palco de identidades ou um produto de consumo rápido.

    O norte-americano Neil Postman advertia, com lucidez profética, que nos poderíamos “divertir até à morte” — não pela censura explícita, mas pelo colapso da relevância. Quando tudo é espectáculo, nada importa. Quando tudo é indignação, nada permanece. Quando tudo é emoção, nada se transforma. E é precisamente esta lógica de ruído, de dispersão e de excitação permanente que impede a emergência de um espaço público maduro, onde a política seja mais do que um teatro e a cidadania mais do que um contrato de prestação de serviços.

    Muito a propósito, o filósofo grego Cornelius Castoriadis falava, no século passado, da “cidadania autónoma” como a capacidade de auto-instituição colectiva: não apenas participar nas regras, mas pensar as regras, questioná-las, recriá-las. Ora, essa cidadania autónoma é hoje o maior desafio — e o maior tabu.

    A proposta destas crónicas é, também aqui, clara: recusar a tutela e o espectáculo, e reivindicar o juízo e a responsabilidade. Não se trata de idealizar um cidadão perfeito ou um modelo abstracto de participação. Trata-se, antes, de defender a ideia de que a cidadania é uma exigência, não uma concessão; que a liberdade não se delega, a verdade não se terceiriza, a responsabilidade não se subcontrata. Trata-se de recordar que viver em democracia não é apenas votar ou opinar, mas agir com consciência, com risco, com consequência. E que sem essa atitude, sem essa disposição, sem essa vigilância, a democracia degenera em administração, e a cidadania em obediência decorada.


    4. O papel da integridade e do Jornalismo vigilante como balizas da democracia

    Nenhuma democracia sobrevive sem vigilância. E nenhuma vigilância é eficaz sem Jornalismo independente, corajoso, íntegro — um Jornalismo que não se limite a relatar o que convém, mas que ouse investigar o que incomoda, que não se deixe enredar em protocolos de obediência, mas que conserve a capacidade de perturbar, de revelar, de acusar.

    O Jornalismo, quando é digno do nome, não é neutral — é leal à verdade, à liberdade e ao interesse público, mesmo quando esses colidem com o poder instituído. O problema é que, na prática, nas décadas mais recentes, a imprensa transformou-se no contrário do que proclama: deixou de ser um contra-poder para se tornar um reprodutor de discursos oficiais, um braço comunicacional de instituições públicas ou privadas, um gestor de narrativas em vez de um escrutinador de factos.

    Esta mutação tem causas múltiplas: económicas, políticas, culturais. A progressiva dependência da publicidade institucional e empresarial, os projectos editoriais subsidiados pelo Estado ou pela União Europeia, a promiscuidade entre redacções e gabinetes ministeriais, os conselhos reguladores capturados por interesses partidários, o declínio da leitura crítica e a ascensão do infotainment digital — tudo isso corroeu a base ética do Jornalismo, substituindo a vigilância pela reverência, a interrogação pelo eco, a independência pela conveniência. O jornalista, que deveria ser incómodo, tornou-se afável; que deveria ser desconfiado, tornou-se confidente; que deveria ser livre, tornou-se alinhado. Não por censura imposta, mas por domesticação progressiva.

    A chamada neutralidade, nesse contexto, é uma das ficções mais perigosas, porque não há neutralidade possível quando se trata da verdade. Fingir imparcialidade enquanto se escolhe sistematicamente o ângulo favorável ao poder, ou se omitem vozes dissonantes, ou se reverberam comunicados como se fossem investigações, é uma forma de traição ao princípio fundacional do Jornalismo. Alguém atribuiu a George Orwell a frase: “Dizer a verdade é um acto revolucionário”, mas independentemente de ser apócrifa, representa aquilo que o Jornalismo perdeu: o sentido de missão, o compromisso com a verdade como valor e não como produto.

    Em vez disso, temos narrativas construídas por conveniência, indignações selectivas, fact-checkings de conveniência, silêncios cúmplices e uma ausência ensurdecedora de investigação real sobre temas sensíveis, incómodos ou politicamente desconfortáveis.

    É neste vazio que o poder tem prosperado. E um poder sem Jornalismo vigilante é um poder sem freios — porque a primeira fronteira da liberdade não é a urna, é a palavra livre. Quando o discurso público é condicionado, tutelado, homogeneizado, a democracia torna-se uma farsa elegante, com aparência de pluralismo, mas sem substância deliberativa. Cabe ao jornalista perguntar aquilo que não se deve perguntar, escavar onde ninguém quer que se escave, expor o que se quer esconder — é esse jornalista que mantém vivo o espaço democrático. E quando ele desaparece, desaparece com ele o oxigénio da República.

    Por isso, não me dirijo apenas ao leitor enquanto cidadão, mas também enquanto potencial jornalista — no sentido mais nobre da palavra. Porque, em tempos de silêncio coreografado, todo cidadão pensante é um jornalista em potência. Aquele que observa, que confronta, que recolhe factos e os analisa, que se recusa a repetir palavras alheias sem passar pelo crivo do juízo — esse é irmão do jornalista vigilante. Ambos são expressões de uma democracia viva, não domesticada. Ambos recusam o papel de papagaio, de técnico de comunicação, de reprodutor de slogans. Ambos sabem que a liberdade não é compatível com a preguiça intelectual nem com a cedência ao conforto institucional.

    O também jornalista franco-argelino Albert Camus defendeu que o Jornalismo, para ser digno, deve ser um combatente ético — contra a mentira, contra a injustiça, contra a indiferença. E é esse combate que importa recuperar: não como heroísmo retórico, mas como prática quotidiana de vigilância, de integridade e de independência. A integridade, aliás, é aqui palavra-chave: integridade como coerência entre aquilo que se pensa, aquilo que se diz e aquilo que se faz; como recusa da duplicidade e da omissão; como fidelidade à consciência e não ao alinhamento; como base moral de qualquer crítica que se queira legítima.

    É essa integridade que está em causa quando se permitiu — ou se legitimou — que os media fossem instrumentos de propaganda sanitária, educativa, climática ou financeira, ou se silenciaram denúncias de promiscuidade entre reguladores e regulados, entre anunciantes e redacções, entre governos e comentadores. E é essa integridade que se deve exigir, sem concessões, aos que se dizem jornalistas, mas preferem o conforto da obediência ao desconforto da exposição. Não há Jornalismo sem risco. E, sobretudo, não há democracia sem jornalistas que aceitem correr riscos — por vezes profissionais, outras vezes apenas morais, mas sempre necessários.

    Este conjunto de crónicas, ao propor uma arquitectura de valores, coloca o Jornalismo onde ele pertence: no centro da vigilância cívica, como sentinela da verdade, da liberdade e da dignidade pública. Não como profissão reservada a uma classe, mas como atitude intelectual acessível a qualquer cidadão que se recuse a ser espectador passivo da mentira ou cúmplice voluntário do silêncio. E é por isso que não se fala de imprensa, fala-se de Jornalismo. Não se fala de media, fala-se de integridade. Porque o que está em causa não é a sobrevivência de um sector, mas a possibilidade de existir ainda um espaço público onde se pense, se discuta, se resista.

    E se a resistência hoje se faz mais com palavras do que com barricadas, mais com arquivos do que com slogans, mais com investigação do que com indignação, então que seja essa a missão: resistir dizendo, pensando, denunciando. Sem concessões, sem reverências, sem receio. Até porque, como nos ensinou o jornalista norte-americano Isidor Feinstein Stone, se “todos os governos mentem”, só quem ousa desconfiar com método e publicar com coragem poderá merecer ainda o nome de jornalista.


    Fecho da Introdução — Convite ao leitor

    Esta primeira crónica é, acima de tudo, um gesto de compromisso. Compromisso com a liberdade como valor inegociável, com a verdade como dever público, com a responsabilidade como condição da cidadania, com a soberania como expressão da dignidade democrática. Não é uma convocatória à militância, nem um apelo sentimental ao reformismo bem-pensante, e muito menos um catecismo doutrinário — é sobretudo uma proposta de reencontro com fundamentos esquecidos, numa época em que pensar por conta própria se tornou acto de ousadia e em que recusar alinhar se tornou suspeita de deslealdade.

    Recusemos, pois, o niilismo de quem já não acredita em nada, mas também o partidarismo de quem tudo reduz à luta tribal entre etiquetas. Nenhum dos dois serve a democracia. Ambos servem, aliás, os poderes instalados: o niilismo, porque paralisa; o partidarismo, porque divide. Entre a apatia e o automatismo, proponho outra via: a da consciência — a consciência de quem decide pensar com clareza, agir com coerência, resistir com responsabilidade. Não se trata de propor utopias — mas de recuperar aquilo que foi abandonado: o valor da palavra, o peso do juízo, o sentido da liberdade, a nobreza da responsabilidade cívica.

    Por isso, deixo um convite exigente ao leitor: não peço adesão, mas atenção; não solicito concordância, mas presença, porque não escrevo para os que procuram pertença, mas para os que procuram critério. Escrevo para aqueles que se cansaram de slogans e desconfiam das unanimidades. Escrevo para os que suspeitam que a política não se reduz a campanhas, que o Jornalismo não se esgota em soundbites, que a cidadania não pode viver de indignações partilhadas. Escrevo para aqueles que ainda acreditam que viver livre é mais do que ter direitos — é ter deveres, critérios, memória, responsabilidade.

    Vivemos tempos em que a ambiguidade é premiada, a coragem punida, a lucidez silenciada. Por isso, não proponho consolo, mas discernimento. É esse o convite. E é também o desafio.