Categoria: Opinião

  • Garcia Pereira: Mandela ficaria feliz

    Garcia Pereira: Mandela ficaria feliz


    Não sou pessoa de ter ídolos, mas se me pedissem para indicar as três pessoas que mais respeitei, ao longo da minha vida, em todo o mundo, não hesitaria em indicar, de imediato, duas: o Papa Francisco e Nelson Mandela.

    Não sendo católico praticante não me custa dizer do meu respeito pelo actual Papa.

    Idoso, mas tentando acompanhar os tempos, modernizando uma Igreja que estava, há muito, parada no tempo e dando exemplos, por vezes com atitudes polémicas como a “Cerimónia de Lavar os Pés”, nas Quintas Feiras Santas, que era habitualmente feita pelos Papas “aos discípulos”, sendo que Francisco substituiu estes por reclusos e reclusas, de diversas idades, de diversas cores, de diversas religiões.

    Melhor exemplo de humildade e de crença na reabilitação não conheço.

    Por sua vez, Nelson Mandela é o Homem que todos os democratas têm como referência.

    Metal Sculpture at the Nelson Mandela Capture Site in Howick, Kwazulu Natal, South Africa

    Jovem advogado em Joanesburgo foi, como todos os seus, vítima do mais hediondo dos crimes, o “apartheid”, o racismo no seu expoente máximo, passando 27 anos na prisão, condenado num julgamento ignóbil, por “traição”, por não aceitar trair os seus valores.

    Libertado, numa altura de pré-guerra civil, saiu da cadeia com o estatuto, pela sua luta conquistado, de político com mais influência na África do Sul.

    Quando se pensava que chegara a hora da “vingança”, Mandela assumiu o poder, num país completamente dividido, e conseguiu a unificação, em que poucos acreditavam, graças ao seu humanismo, à capacidade de perdoar em nome de bens maiores, desde logo a Paz e a Democracia, sem aceitar que houvesse qualquer discriminação entre os seus conterrâneos.   

    Ficou justamente reconhecido, universalmente, como a grande Figura do Século XX.

    Mais tarde, explicou como o conseguiu:

    “Quando eu saí em direção ao portão que me levaria à liberdade, eu sabia que, se eu não deixasse minha amargura e meu ódio para trás, eu ainda estaria na prisão”.

    Mandela é uma inspiração.

    Pelas razões acima, o nome escolhido pela ParPública para um Prémio “a atribuir anualmente a um advogado ou jurista, nacional ou internacional, que se tenha destacado na promoção ou representação do bem comum e da cidadania” não podia ser melhor que “Prémio Mandela”.

    Restava saber o nome da personalidade que o iria receber.

    Em 2024 a escolha não podia ser melhor: António Garcia Pereira.

    Voltando ao início desta crónica, não sou pessoa de ter ídolos, mas se me pedissem para indicar as três pessoas que mais respeitei, ao longo da minha vida, em Portugal, não hesitaria em indicar, de imediato, duas: António Ramalho Eanes e António Garcia Pereira.

    O primeiro pelo papel importante no glorioso 25 de Abril de 1974 e, mais tarde, como o Presidente da República que, até hoje, a imensa maioria dos portugueses, onde obviamente me incluo, considera como aquele que mais dignificou o cargo.

    De uma verticalidade, honestidade e coragem sem paralelo, deixou saudades e, ainda hoje, é lembrado com saudade , principalmente quando se chega ao momento das comparações.

    Quanto a António Garcia Pereira, são tantas as razões que tornam justíssima a distinção que só se pode pecar por defeito por muitos qualificativos elogiosos que utilizemos.

    Lutador incansável pelos principais objectivos exigidos a uma pessoa de bem: pela democracia, pela igualdade, pela fraternidade, pela Lei igual para todos.

    Homem de Bem, sempre ao lado dos desprotegidos, dos que não têm voz, dos injustamente perseguidos.

    Advogado de Causas que dá a cara e enfrenta quem quer que seja que não siga os valores que devem reger um País livre e democrático.

    Também partilha outra das convicções de Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem, ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar” e, por isso, luta diariamente contra o racismo e a xenofobia.

    Luta, há décadas, contra os malefícios de um Sistema Prisional que se limita a punir, e da maneira mais abjecta (com os reclusos a passar fome, sem cuidados médicos, sem a possibilidade de estudar ou trabalhar, muitas vezes vítimas de agressões, constantemente alvos de todo o tipo de abusos) e não de reabilitar, como a nossa Lei obriga.

    Daí que seja um dos fundadores da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso e seu Presidente Honorário.

    No dia de aniversário de Nelson Mandela, António Garcia Pereira recebeu o Prémio com o seu nome numa Cerimónia memorável que contou com a participação de outro dos meus “heróis”, António Ramalho Eanes que fez questão de afirmar (com a sua coragem e verticalidade habituais) que considerava uma Honra estar naquela cerimónia apesar das diferenças “filosóficas” com o premiado.

    Dois Homens superiores.

    De uma coisa estou certo: Nelson Mandela ficaria muito feliz com a escolha do premiado.

    Vítor Ilharco é assessor


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  • Senhor presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, nós somos adultos. Faça o favor de ser adulto

    Senhor presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, nós somos adultos. Faça o favor de ser adulto


    Há pelo menos 950 dias que ando às turras com Rui Santos Ivo. Esta expressão “às turras”, jamais seria dita pelo distinto Presidente do Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamentos e Produtos de Saúde, também excelso professor associado convidado da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa e insigne membro do Conselho Geral da Universidade de Coimbra. Aliás, olhando para o seu ilustre currículo nacional e internacional – enunciado, por exemplo, à laia de justificativa para o Prémio Pegadas, atribuído este ano pelo Conselho do Colégio de Especialidade de Farmácia Hospitalar da Ordem dos Farmacêuticos –, nunca em tempo algum poderemos imaginar o Doutor Rui Santos Ivo a usar tão coloquiais termos de povo.

    O Doutor Rui Santos Ivo é uma pessoa adulta – não usa, certamente, essa linguagem.

    O Doutor Rui Santos Ivo é, na verdade, a autoridade máxima de um organismo que fiscaliza os medicamentos e os produtos de saúde.

    Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed, desde 2019.

    Imaginamos, nessas funções, uma pessoa que elege como máxima preocupação a garantia de que um determinado medicamento ou produto de saúde não apresente, custe o que custar, uma relação risco-benefício desfavorável aos cidadãos. Imaginamos, nessas funções, uma pessoa te, por isso, como máxima preocupação uma cultura de transparência, de informação séria assente numa formação e sensibilização contínua, em parceria com uma acção rápida e eficaz, independente dos negócios em causa, dos interesses políticos e das ideologias em jogo. Transparência e confiança – são os atributos que esperamos de uma pessoa deste quilate, que esteja ao serviço dos cidadãos – não ao serviço de um Governo nem ao servço das empresas farmacêuticas.

    Contudo, onde se esperaria uma individualidade transparente, encontramos o obscurantismo e a manipulação. A postura passiva do Infarmed – seguindo a linha do que hoje se transformou a vigilância farmacológica na União Europeia – em esconder informação, em enviesar uma realidade através de uns ‘relatórios’ enganadores convenientemente passados a jornalistas acríticos, não é estar ao serviço dos cidadãos, como aqui escrevi em Agosto de 2022.

    Durante a pandemia, e sobretudo ao longo do extenuante processo com vista ao legítimo e democrático acesso à base de dados do Portal RAM, aquilo que mais me chocou foi assistir a um processo de ‘infantilização das massas’, mesmo que essas massas fossem, ou pudessem ser, pessoas inteligentes ou com formação. No processo de intimação, que nos levou a um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, o Infarmed defendeu o indefensável (que os dados de uma base desta natureza não estão anonimizados), enganou a própria juíza da primeira instância (com declarações claramente falsas sobre o funcionamento da base de dados) e procurou sempre inferiorizar-me intelectualmente, dizendo mesmo que poderia deturpar informação. Rui Santos Ivo foi e continua a ser a pessoa que impôs esta filosofia: fez o que o Governo e a União Europeia lhe impôs, e não se mostrou inquietado com a função.

    a diamond sitting on top of a pile of rocks

    Ou seja, o Infarmed intencionalmente quis manter informação escondida, alegando que assim protegia o povo de um maldoso que iria deturpar a verdade para assim contar uma mentira.

    O Infarmed e o seu presidente Rui Santos Ivo trata os cidadãos deste país como crianças, como se nem sequer tivêsse,os capacidade para compreender o que andam os adultos, aqueles que não dizem “às turras”, a fazer.

    Por tudo isso, andei com ele às turras durante quase mil dias. E se ele continuar a não agir como adulto, passando a tratar-nos como adultos, cedendo finalmente a base de dados do Portal RAM – seguindo o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, em vez de gastar mais dinheiro dos contribuintes com um recurso ao Supremo Tribunal Administrativo –, só posso prometer-lhe uma coisa: continuar às turras.

    E continuarei às turras (contra Rui Santos Ivo ou outro qualquer) até que, em tribunal ou através de acções políticas, se conclua que, num país democrático, a maturidade em funções públicas atinge-se somente quando se defende o interesse público, e não outros interesses.

    P.S. Como sempre foi minha intenção, o acesso ao Portal RAM não tem como objectivo uma mera quantificação absoluta dos efeitos adversos, mas sim uma análise cruzada com outros indicadores epidemiológicos. O PÁGINA UM, e eu, em particular, nunca se recusou em analisar os dados em colaboração independente com entidades públicas – exige sim ter conhecimento dos dados em bruto e da metodologia usada para a chegada a conclusões, que aliás oficialmente se anunciam sempre sem estudos de suporte válidos [aliás, basta recordar o célebre “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório“, aguardando-se ainda uma decisão de recurso no tribunal para se ter acesso a todos os números e não apenas ao último]. E não pode o PÁGINA UM aceitar, por isso, que continue tudo como dantes. Que sejam ignorados dados preocupantes, como os divulgados recentemente pela Direcção-Geral da Saúde que permitiam concluir que a eficácia vacinal do último reforço contra a covid-19 é negativa. E não pode aceitar que passem impunes as atitudes do antigo bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, que escondeu intencionalmente pareceres do Colégio de Especialidade de Pediatria. Nem pode aceitar, de igual modo, que ‘marketeers de bata branca’, como Filipe Froes, sempre com sinuosos e escorregadios argumentários, pavoneiem os benefícios de fármacos (que não apenas as vacinas contra a covid-19) sem que estes sejam avalizados com seriedade por um regulador que tem mesmo de estar (só) ao serviço dos cidadãos.


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  • A política e a velhice

    A política e a velhice


    Seria curioso um trabalho sobre o modo como a velhice é encarada, pelos políticos, nos diversos cantos do mundo.

    São diferentes, mesmo antagónicas, as condutas nos diversos Países muito dependendo das ideologias de quem governa, em primeiro lugar, mas também da riqueza material de cada Estado.

    Curiosamente, nem sempre os Estados mais ricos são, simultaneamente, as Nações mais evoluídas no que concerne à atenção, e respeito, para com a velhice.

    Na maioria dos países africanos, por exemplo, a velhice é credora de toda a reverência, quase veneração.

    a man with a beard

    Uma das maiores homenagens que se pode fazer a alguém é tratá-lo por “mais velho”.

    Em muitos locais, o chefe, o encarregado, o director, é assim denominado ainda que a sua idade cronológica seja, muitas das vezes, inferior à daqueles que assim o apelidam.

    Nos países onde a pirâmide social tem no seu vértice a riqueza, é óbvio que a velhice é encarada por outro prisma.

    Os velhos, diz-se, não rendem e há que os colocar no seu lugar.

    No caso da pirâmide social, na base.

    Para alguns, “a peste grisalha” deveria desaparecer enterrando-a, presume-se, sob aquele sólido geométrico.

    Os velhos são, para muitos, empecilhos desnecessários e dispendiosos.

    Para mais, a velhice pode ter início em etapas diferentes da vida dependendo, unicamente, do resultado que cada ser humano pode conseguir, na sua profissão.

    Um escritor pode estar no auge das suas capacidades aos sessenta anos e tornar-se velho aos setenta.

    Um atleta, por mais respeitado que seja, por mais êxitos que consiga ao longo da sua juventude, será velho aos quarenta.

    E, como velho, alvo de todas as críticas mesmo vindas de quem, ao longo de toda a sua vida, não tenha conseguido, na sua profissão ou na sua vida, nada, mas rigorosamente nada, digno de realce.

    Os políticos, muitos dos quais são os grandes críticos em relação às verbas gastas com a terceira idade, consideram-se intemporais e, por isso, acima de qualquer avaliação ao seu desempenho.

    woman in blue jacket and blue denim jeans standing on gray concrete floor during daytime

    Os exemplos de Biden, nos Estado Unidos, ou das Múmias no nosso País, são exemplos já que, apesar de se perceber que estão na altura de uma reforma digna, por vezes merecida, continuam a receber, de muitos dos seus seguidores, palavras de incentivo à sua continuação ou no cargo de “pessoa mais poderosa do mundo” ou a escrever disparates em jornais.

    O meu país, porque é uma manta feita de imensos retalhos, analisa a velhice de formas muito díspares.

    Portugal, tenho repetido, é o único país africano ao norte do Mediterrâneo.

    Somos iguais na inveja, na preguiça, no maldizer, mas também na solidariedade e no sentido de entreajuda.

    Pode haver um ou outro imbecil, ainda que político, que ponha em causa o direito a uma vida digna dos mais idosos.

    Da “peste grisalha” como muitos idiotas os classificam.

    Apesar de tudo, temos de reconhecer, os diversos Governos, nomeadamente os últimos, têm melhorado grandemente, a vida dos mais velhos.

    Aumento nas reformas, nos subsídios complementares, na oferta de medicamentos, etc..

    Há, todavia, muito a fazer até que se consiga um verdadeiro reconhecimento pelo trabalho desenvolvido, por estes, ao longo de toda uma vida de trabalho.

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    Os velhos, reconhecendo embora que praticamente todas as profissões do nosso país são mal remuneradas, dificilmente compreenderão que haja uma polícia cujos inspectores recebem um aumento mensal de valor correspondente a dois ou três meses da sua reforma.   

    Um aumento superior ao ordenado mínimo nacional.

    Os políticos, que costumam estar atentos a estes pormenores (com excepção de alguns crápulas que deixam os avós viver no meio de lixo), sabiam que esta medida levaria às reivindicações de outras classes que teriam de ser contempladas.

    Estão a esquecer o número de velhos que votam.

    Talvez lhes saia caro!

    Vítor Ilharco é assessor


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  • Estado: esse distúrbio psiquiátrico que afecta a Humanidade

    Estado: esse distúrbio psiquiátrico que afecta a Humanidade


    Num dia ensolarado, numa aldeia remota da Lusitânia, o líder da comunidade convocou uma reunião extraordinária para anunciar uma decisão de grande importância. Quarenta almas perplexas e ligeiramente apreensivas reuniram-se, pois tal convocatória era um evento raro que indicava mudanças iminentes nas suas rotinas tranquilas.

    Ao alvorecer, todos estavam reunidos, aguardando o pronunciamento. Do alto de um palanque rudimentar, o líder Angelino iniciou o seu discurso com pompa e circunstância: — Estimados companheiros, venho a ponderar sobre uma ideia há muito tempo, reflectindo profundamente, e acredito firmemente que esta é a solução ideal para todos nós. Precisamos de um Estado para nos governar. Perguntam vocês, o que é isso? Será uma instituição sob a minha liderança que deterá o monopólio da justiça. Por outras palavras, todos os conflitos entre nós serão resolvidos exclusivamente nos tribunais estatais, com juízes designados pelo próprio Estado. Inclusive, os conflitos que possam surgir entre vocês e o Estado serão julgados por este mesmo corpo judicial. Para financiar este serviço imprescindível à comunidade, será imposto um tributo a todos, sem excepção, que também servirá para pagar a segurança de todos nós. Para o bem de todos!

    green-leafed trees

    — A reacção foi instantânea. Um burburinho crescente rapidamente se transformou em convulsão, reflectindo a revolta e a incredulidade diante de tal proposta despótica. Um ancião, de nome João, pediu a palavra, a qual lhe foi concedida com certa relutância.

    — Esta ideia parece-me um completo absurdo — declarou João, com a voz carregada de indignação. — Não só é uma proposta autoritária, impondo-nos um monopólio judiciário, como também nos obrigará a pagar coercivamente pelos tribunais e pela nossa segurança, na verdade um confisco. Por que razão não nos é possível contratar justiça e segurança de forma individual, a quem deseje prestar tais serviços?

    — A audiência, ainda em tumulto, murmurou em concordância, enquanto João continuava a expor as falácias e injustiças da proposta apresentada. — Além disso — prosseguiu João —, nós que sempre obedecemos às leis não escritas, à tradição, onde os juízes por nós seleccionados se debruçavam apenas no apuramento dos factos e na aplicação das leis de sempre, a que lei passará a obedecer?

    — Angelino tomou a palavra para responder a João. — Repare, o Estado passará também a fazer leis, de forma a adaptá-las às circunstâncias do tempo. A lei, a tradição pela qual nos regemos há séculos, necessita de se adaptar. Podemos precisar de dar direitos especiais a minorias, o que só é possível com legislação específica; podemos necessitar de combater monopólios, o que só é viável com regulação particular. Para melhorar a minha proposta, para que agrade a todos, temos de estabelecer um “contrato social” que institua uma democracia. Todos vão poder eleger os vossos representantes do Estado, e, desta forma, esta instituição tornar-se-á legítima aos olhos de todos.

    waterfalls near trees during day

    — A audiência, envolta em murmúrios e olhares desconfiados, ponderava sobre as promessas de Angelino, questionando-se sobre a verdadeira natureza da “democracia” que lhes era oferecida e a justiça de um “contrato social” imposto sob o pretexto da modernização das leis! Em resposta a Angelino, tomou a palavra o Francisco.

    — Várias das suas propostas deixam-me na mais completa perplexidade! As pessoas que forem eleitas para governar o Estado, entendo que por um curto período de tempo, não terão uma visão de longo prazo, pois estarão apenas interessadas em beneficiar-se dos impostos cobrados coercivamente — na verdade, um assalto aos nossos bolsos — durante esse período.

    Além disso, a lei, a tradição, não se lhes aplica. O que estão a fazer, cobrar impostos, é, na verdade, um assalto, consequentemente um crime; ou seja, existirá uma lei para os não eleitos e outra para os eleitos. Para os primeiros, roubar é ilegal; para os segundos, roubar é legal. Em lugar de produzirem bens e serviços úteis à comunidade, poderão viver durante o tempo que estiverem à frente do Estado do produto do saque que nos fazem!

    — A audiência, atónita, pensava com detenção sobre as palavras incisivas de Francisco, ponderando as implicações de um sistema onde a justiça e a moralidade pareciam estar subvertidas em nome de um suposto progresso! Angelino, tomou uma vez mais a palavra para defender as suas ideias.

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    — Estimados companheiros e amigos, creio que não haveis reflectido devidamente em todas as vantagens da minha proposta. Para a melhorar, vamos criar um Banco Central que poderá introduzir uma gigantesca inovação: o papel-moeda e as reservas fraccionadas. A partir desse dia, o dinheiro passará a ser elástico, aumentando em quantidade quando estamos em crise e diminuindo em tempos de prosperidade. Para ter tal poder, necessita que exista um Estado que lhe conceda tal monopólio. Por exemplo, Francisco, se necessitares de uma ajuda num tempo difícil, hoje isso não é possível. Nessa situação, imprimimos dinheiro para te conceder um empréstimo e poder-te ajudar. Isto não é possível sem o Estado e um Banco Central.

    — A audiência, ainda perplexa, ponderava as implicações desta proposta revolucionária. O conceito de um Banco Central com o poder de manipular a oferta de dinheiro era tão inovador quanto inquietante, especialmente considerando a confiança tradicional que sempre depositaram nas suas práticas ancestrais, onde tudo era liquidado no dinheiro que sempre conheceram: ouro e prata!

    Furioso, um ancião sentado nas últimas filas, chamado Pedro, tomou a palavra para retorquir o que Angelina acabara de anunciar.

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    — Esta ideia de criar um Banco Central e manipular a oferta de dinheiro é nada menos que uma loucura! — Exclamou Pedro. — Abandonar o ouro e a prata, que sempre nos deram segurança e estabilidade, em favor de um papel-moeda sem valor intrínseco, é um convite ao desastre. Estais a propor que coloquemos a nossa confiança num sistema que pode ser facilmente corrompido e manipulado. Tudo isso, supostamente, para nosso benefício?! Ou seja, estás a propor que para além de nos roubares através de impostos, também nos queres roubar via inflação?

    — Os murmúrios de concordância cresceram na audiência. A turba começou a ficar inquieta; as últimas palavras do ancião Pedro tinham tocado fundo. De repente, começaram todos a gritar: “Morte ao ladrão! Morte ao tirano!” Angelino, com os olhos vermelhos e perplexo face à reacção às suas propostas, que julgara serem fantásticas e facilmente aceites, começou a correr, fugindo da ira dos habitantes da aldeia. Mas foi sol de pouca dura: foi apanhado e defenestrado pela turba em fúria, que o matou numa questão de minutos.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • Da capital de Portugal às cores da Bandeira: nos 500 anos do nascimento de Camões

    Da capital de Portugal às cores da Bandeira: nos 500 anos do nascimento de Camões


    “[Estavas, linda Inês]

    Pera o céu cristalino alevantando,

    Com lágrimas, os olhos piedosos

    Camões, Os Lusíadas, Canto III


    Como já uma vez aqui referi, através de Fernando Pessoa, os portugueses, como Povo, apesar de darem a impressão inversa, no final do dia[1], são extraordinariamente lentos. Com efeito: levaram três séculos a libertar-se da Santa Inquisição[2]; levaram mais de dois séculos a aclimatar-se à ideia de introduzir um módico de liberalismo nos seus velhos costumes (diante da falta de espírito capitalista[3] e da arreigada dependência do Estado)[4]; levaram idêntico tempo a escrever porventura “a mesma” Constituição[5] – numa obra que de resto ainda não completaram[6]; levaram mais de século e meio a perceber que não garantiam os direitos dos cidadãos nem a lisura do sufrágio; levaram 60 anos para se libertar de diversas ditaduras durante o século XX; não fora a irritação dos Capitães, e ainda andariam com as colónias às costas mais uns tempos, quando as demais potências, melhor ou pior, já se tinham livrado de tais encargos nas décadas precedentes; levam 50 anos sem conseguir garantir verdadeira autonomia e autoridade à escola pública; e ainda não tomaram consciência de que contam com três décadas de estagnação e de crise do regime político em que vivem, de que também dá prova o problema aqui versado.

    Vem isto a propósito dos anos que os portugueses ainda precisam para se aperceberem[7] de que são “representados” pelas cores de uma bandeira que não os representa, nem como Povo, nem, antes disso, como lugar único no Planeta – num momento onde, tal como sucede em diversos outros países da Europa, ela é agora vestida, calçada e hasteada por milhões de mãos, por força de um inocente e poderoso fenómeno social em que, para felicidade geral[8], nos tornámos especialistas.

    E quem assim escreve jurou e serviu a Bandeira Nacional, mas infelizmente não teve oportunidade de tratar, ao contrário do que pensara ainda vir a fazer, o problema da bandeira, como questão de fundo a analisar durante todo um semestre de Direito Constitucional, num dos anos em que leccionou essa disciplina. Ainda assim, sempre teve o cuidado de explicar, na primeira aula, aos seus alunos a razão pela qual a capa do livro de apontamentos (que para eles especialmente preparara) era branca e azul[9], e não vermelha[10] ou verde[11] – tal como, num plano distinto, sempre contestou a previsão do crime de ultraje aos símbolos nacionais, por entender que não há justificação com peso[12] suficiente nem circunstâncias, seja de que natureza forem, que possam afastar o primado da liberdade de expressão nesse domínio[13].

    Eis, muito resumidamente, as razões para este texto, que agora naturalmente transcenderá as apertadas fronteiras do Direito Constitucional.


    1. PONTO DE PARTIDA

    Logo no início deste Verão, com temperaturas a provocarem aluviões e inundações na Suíça ou apagões de energia nos Balcãs, Miguel Esteves Cardoso, glosando o tema “por contraste”, deleitava-nos com os seguintes panoramas:

    «Às vezes imagino que o rectângulo português está ao contrário – projectando-se horizontalmente para dentro da Espanha – e acordo todo suado.

    Mas que boa ideia situar Portugal onde Portugal foi situado. Que boa ideia estar de pé e não deitado. Que boa ideia estar de pé para um oceano enorme, cheio de água fria e de bom peixe»[14].

    Na verdade, que boa ideia – já nem pergunto de quem terá partido, mas atrevo-me a pensar que, segundo Camões, terá muito provavelmente sido de Luso.

    Certo é que não terá sido Miguel Esteves Cardoso o primeiro a dar por ela: Sintra não existiria há tantos séculos – na verdade, há milénios[15] – sem que alguém tivesse primeiro dado por ela. E quem diz Sintra, diz o resto do país.

    Carta do Atlântico Norte (ca. 1550), mapa náutico em pergaminho, Biblioteca Nacional

    Abreviemos.


    2. A CAPITAL DE PORTUGAL

    Como escreve José Mattoso, no âmbito da história nacional, o espaço não pode ser tomado como «um mero quadro vazio ou abstracto, mas como um lugar concreto, dotado de características físicas, climáticas e pedológicas»[16].

    Cacela Velha

    Ora, foi nesse idêntico sentido que Mariana Santos Martins, recorrendo também aí ao romeno Mircea Eliade, lembrou, não há muitos anos[17], a relevância da fixação prolongada do Homem junto à água, factor que levou o famoso antropólogo Jorge Dias a explicar «como o Atlântico é a verdadeira capital de Portugal, pela sua força simbólica. E, se nas populações do interior resiste o sentimento “serrano”, ainda assim todo o povo deste país [se] agarra ao mar, resistindo séculos à força de Espanha»[18]. Além disso, como o mesmo autor também explicara noutra obra, é também ao mar que se devem a unificação e a permanência da Nação portuguesa[19]. Como se explicaria de outro modo a anual corrida dos portugueses para o mar ou a mítica amizade com um peixe?[20]

    Mas, para lá da sua força simbólica e atractiva (como verdadeira “alma da Nação”)[21], se a grande capital deste pequeno recanto reside no mar (agregador, benfeitor, desafiador e temeroso, ao mesmo tempo)[22], não é só o Oceano a indicar-nos como as nossas cores nunca poderiam ser semelhantes às da Espanha[23].

    Basta sair à rua ou abrir a janela! Basta ver como mesmo as nossas trovoadas nada tenham a ver com as tempestades americanas, africanas e asiáticas ou com as trovoadas dos Alpes, da Europa central ou da Riviera italiana[24]: além de menos frequentes, violentas e sonoras, há quase sempre no meio delas aqueles farrapos de azul e branco que nos retratam – como, de resto, também à pátria de Sófocles (e dos mitos que ele para sempre consolidou).

    Pártenon (século V a.C.)

    3. RELANCE HISTÓRICO

    Deixando deliberadamente de lado a perspectiva da Heráldica[25], enquanto tal – ainda que no momento próprio, quando o Povo português venha a ser chamado a decidir sobre o assunto, esses conhecimentos não possam deixar de ser devidamente ponderados[26] –, impõe-se um breve percurso histórico.

    A heráldica afonsina original, que se cingia a uma cruz azul sobre campo branco[27], «à maneira dos cruzados»[28], sofreu uma dupla mudança com a aclamação de D. Afonso Henriques como Rei dos portugueses (Rex Portugalorum), no seguimento da Batalha de Ourique: (i) pela incorporação nas suas Armas dos cinco escudos ou quinas azuis (com os respectivos besantes); e (ii) pela transformação do escudo em bandeira do novo corpo político autónomo (de que D. Afonso I passou a ser o Rei).

    Escudo de D. Afonso Henriques (1139)

    O momento foi assim cantado por Camões, no Canto III d’Os Lusíadas[29]:

    Aqui pinta no branco escudo ufano,

    Que agora esta vitória certifica,

    Cinco escudos azuis esclarecidos,

    Em sinal destes cinco Reis vencidos

    Basílica Real de Castro Verde – Painel de azulejos relativo ao termo da Batalha de Ourique.

    Começando pois pela (lenda da) Batalha de Ourique (sobre a qual quase tudo ainda se discute)[30], se a mesma teve o significado militar e político agora referido, no entender de alguns especialistas, é sobretudo no campo da heráldica que se situa a relevância do episódio[31]: «Um escudo deveras rico do ponto de vista do armorial nacional europeu, e ainda em uso na bandeira nacional da República Portuguesa, num caso sem precedentes do ponto de vista simbólico, ainda para mais associado à esfera armilar manuelina, resultando daqui, na opinião do heraldista e historiador Michel Pastoureau, a mais rica bandeira em simbolismo, de entre todas as adoptadas modernamente»[32].

    Armas de Portugal em 1185 (D. Sancho I)

    Mas se os escudos (e o seu azul) se mantiveram até hoje, a bandeira foi-se modificando ao longo dos séculos, aliás logo com o segundo Rei de Portugal (D. Sancho I), através de diferentes arranjos dos escudos e besantes, através do acrescento (ou retirada) de elementos (como sucedeu com a já referida esfera armilar) ou através do acrescento, em 1646, da coroa e de uma orla azul (quando D. João IV declarou Nossa Senhora da Conceição Padroeira do Reino de Portugal).

    Bandeira do Reino de Portugal adoptada por D. João IV.

    Ora, não obstante a ruptura radical inerente à Revolução de 1820[33], por decreto das Cortes Geraes, Extraordinárias, e Constituintes da Nação Portugueza, de 22 de Agosto de 1821, o branco e o azul continuaram a ser acolhidas como as cores nacionais, por serem aquelas que formaram a divisa da Nação Portugueza desde o princípio da monarquia em mui gloriosas épocas da sua História, decreto que foi mandado executar por D. João VI no dia imediato.

    Última bandeira do Reino de Portugal (1830-1910)

    4. IDEM: A VIRAGEM REPUBLICANA

    Chegada a Revolução de 5 de Outubro, o Governo Provisório (chefiado no papel pelo politicamente inepto Teófilo Braga[34], mas na realidade comandado pelo todo-poderoso Ministro da Justiça, Afonso Costa[35]), embora estando inicialmente inclinado para o azul e branco, foi forçado, pela Carbonária[36], a nomear uma comissão encarregada de projectar uma nova bandeira (comissão de que faziam parte, entre outros, Columbano Bordalo Pinheiro e João Chagas), tendo a mesma enviado o seu projecto ao Conselho de Ministros logo a 6 de Novembro de 1910, projecto esse que, por pressão dos radicais[37], viria a ser aprovado pelo Governo (pela maioria de um voto) a 29 de Novembro, o qual se aprestou a fixar o dia 1 de Dezembro como o dia da Festa da Bandeira.

    Ainda que pudesse haver algumas razões históricas a considerar na adopção do padrão rubro-verde[38], o projecto foi nessa parte um fruto relativamente maduro do “período da propaganda” (1891-1910), dado que na revolta de 31 de Janeiro de 1891 fora pela primeira vez desfraldada uma bandeira verde e encarnada[39] (tal como o fora também no dia 5 de Outubro, na rotunda e no Castelo de São Jorge)[40]; ou seja, numa opção modernista[41], as cores da bandeira que vieram a ser acolhidas, não obstante o contexto de grande polémica (política, intelectual e social) então gerada – com os partidários do azul e branco a reclamar no final um plebiscito e muitos militares a recusarem-se a reconhecer o novo símbolo –, são na verdade as cores identificadoras do Partido Republicano Português (dos seus centros), tendo o relatório da comissão justificado a novidade da seguinte forma: (i) o vermelho, por ser uma cor combativa e quente, é a cor da conquista e do riso. Uma cor cantante, alegre. Lembra o sangue e incita à vitória; (ii) o verde, por ser uma cor de esperança e do relâmpago, significa uma mudança representativa na vida do país.

    Embora tal seja relativamente claro aos olhos de um comum mortal, deste simples resumo decorrem dois sérios problemas tanto na opção, quanto na justificação apresentada, um tópico a reter para depois.

    Quanto ao mais, a bandeira mantém o escudo das Armas Nacionais, assente sobre a esfera armilar, em amarelo e avivado de negro (segundo o artigo 1.º do respectivo decreto).

    Ora, como tudo o que era efectivamente relevante, a começar pela famosa e “intangível” Lei da Separação, foi decidido pelo Governo Provisório[42], com algumas dessas decisões a serem mais tarde levadas a “ratificação” (expressa ou ardilosa) da Assembleia Nacional Constituinte, foi este o modo como, por decreto de 19 de Junho de 1911 (publicado no Diário do Governo em 8 de Julho seguinte) foram aprovados os dois símbolos nacionais (a bandeira e o hino) que ainda hoje formalmente nos “representam” (artigo 11.º da Constituição de 1976).


    5. IDEM: APRECIAÇÃO CRÍTICA

    Até pelo facto de outros já terem procedido a tais exercícios, não é este o lugar para enumerar as muitas vozes que, ao longo destes 113 anos, se pronunciaram criticamente sobre a viragem republicana a respeito das cores da bandeira, bastando para o efeito citar, logo no início (além do duro juízo, já evocado noutro momento, de Fernando Pessoa), o nome de Guerra Junqueiro: por um lado, por ter apresentado um projecto próprio de bandeira que, mantendo o azul e branco, colocava cinco estrelas sobre a esfera armilar e esta sobre o Escudo[43]; por outro, por ter apresentado à opinião pública da época as críticas que achou devidas à opção autoritariamente decretada pelos radicais, referindo-se às cores tradicionais (presentes no seu projecto) nestes termos: “O campo azul e branco permanece indelével. E’ o firmamento, o mar, o luar, o sonho dos nossos olhos, o extase eterno das nossas almas[44].

    Por sua vez, no final, bastemo-nos com as derradeiras palavras de Vasco Pulido Valente: «Já reparou na bandeira portuguesa? Aonde fomos buscar o encarnado e o verde, cores que não estão na tradição portuguesa? O encarnado era a cor dos miguelistas, o verde nunca foi a cor de ninguém».[45]

    Todavia, para nós, mais importante do que recensear opiniões será: (i) regressar por um instante ao contexto e aos processos utilizados em 1910; (ii) apreciar a relevância das razões então invocadas; e (iii) proceder ao confronto do resultado final com o peso das razões acumuladas ao longo de sete séculos (desde logo, pela voz dos nossos dois maiores poetas)[46] e, como tal, formalmente resumida pelo decreto de 22 de Agosto de 1821 das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, à entrada da “era constitucional”[47].

    four hardbound books

    a) Assim, quanto ao contexto e aos processos, regressemos às palavras aqui deixadas, no dia em que se celebrava o cinquentenário do 25 de Abril de 1974:

    • [Na fase do Governo Provisório, a I República foi] um regime com partido único (e o único período da nossa História em que o poder político esteve concentrado nas mãos de um único órgão do Estado), sem que se tenha realizado sufrágio efectivo em mais de 40% dos círculos nas eleições para a Assembleia Constituinte e com esta a desdobrar-se abusivamente, no final, em Câmara dos Deputados e Senado;
    • Um regime sem legitimidade nem legitimação popular, com as primeiras eleições gerais (com sufrágio mais restrito do que na Monarquia) realizadas apenas em 1914;
    • Um regime que hostilizou desde a primeira hora, como nunca, a liberdade religiosa (com medidas que seriam tidas por intoleráveis no século XIX);
    • Um regime que recorreu tanto à mentira (desde logo, relativamente às promessas em matéria de sufrágio universal e de direito à greve) como à violência organizada, e onde, por tudo isso, se regressou às intervenções militares, a rupturas constitucionais (como a de Sidónio), aos assassinatos políticos, mas sobretudo à desinstitucionalização de um sistema desequilibrado desde o início[48] e que, poucos anos volvidos, quase todos os Portugueses aspiravam por derrubar.

    b) Passando então agora à apreciação crítica das razões invocadas pela comissão encarregada de apresentar o projecto de bandeira, começando pelo vermelho, as razões então apresentadas oscilam entre o subterfúgio e o delírio: subterfúgio, porque o significado profundo que se pretendia representar com essa cor, como reconhece Severiano Teixeira, não era aquele, mas sim o das revoluções populares de 1848 (dita “Primavera dos Povos”) e da Comuna de Paris, em 1870; o delírio, por querer associar, sem critério algum que se perceba:conquista, riso, sangue e incitamento à vitória (quando bem se poderiam ter encontrado fundamentos relevantes, como até Guerra Junqueiro concedeu).

    Relativamente ao verde, que também segundo Severiano Teixeira remete para Augusto Comte e para o Positivismo (por oposição à teologia e à metafísica), apesar de tudo, tem alguma correspondência na lógica do momento, por se pretender associar a nova cor à importante mudança política (aliás, com um único precedente na Europa: a III República francesa), bem como à correspondente legitimação da forma republicana de governo, como signo de esperança a ela inerente; sucede, no entanto, que o Anjo da História (Walter Benjamin) depressa viu essa esperança a converter-se em violência, caos e basto sangue derramado – tal foi o que veio realmente depois da “clara e meiga melodia do azul e branco” (Guerra Junqueiro)[49].

    a large wave crashes against a rocky cliff

    c) Chegados assim ao exercício final de confrontação dos dois planos antecedentes, é possível traçar a partir de tudo o que foi dito as seguintes ilações:

    • Numa das Nações mais antigas da Europa, tudo parece depor no sentido de que a ligação simbólica e identitária das cores azul e branca da respectiva bandeira tem fundadas ligações físicas, fundacionais, espirituais e psicológicas: a fixação milenar dos habitantes deste espaço junto ao mar começou por fazer do Atlântico a força atractiva e agregadora (primordial e permanente) da Nação, a que o céu se veio juntar; por sua vez, além da sua impressão na paisagem, o branco era a cor eleita pelo Fundador (tal como fora a do seu pai); no instante da fundação, a cruz azul (sobre o fundo branco) vem a ser substituída pelos cinco castelos, também azuis, cuja permanência até hoje dá eloquente testemunho da respectiva força simbólica e carga espiritual; por fim, resulta serem essas as cores as que melhor se ajustam à feição cordial e sonhadora dos portugueses;
    • Os sete séculos de permanência dessas duas cores, não obstante as muitas mudanças sofridas pela Bandeira do Reino ao longo do tempo, são, como se reconheceu em 1821, uma prova para lá de qualquer dúvida de que há nelas uma “constante nacional” digna de consideração;
    • Mesmo quando chegados à I República, a permanência do azul nos cinco escudos aí está a demonstrar a sua vitória quase milenar, mesmo contra a violência da Carbonária e as maquinações de Afonso Costa;
    • Por fim, além do (severo) juízo que a História finalmente se encarregou de fazer sobre o que foi realmente a I República, fracassam por completo as razões apresentadas na altura para a ruptura com as cores tradicionais da bandeira de Portugal;
    • A tal acresce uma razão póstuma: uma vez que a bandeira foi aprovada em ditadura, por um governo sem legitimação popular e que, por isso mesmo, se manteve no poder nessa fase como partido único, com recurso à violência e ao arbítrio, não é aceitável que, num regime democrático e em Estado constitucional, se possa legitimar, ratificar ou reconhecer a manutenção da produção de efeitos a um acto tão ostensivamente ofensivo da “alma da Nação” (acto que Salazar, em ditadura e na sua profunda hipocrisia, nunca teve coragem de rever).

    6. EPÍLOGO

    Depois de ter dedicado quinze anos à análise comparada dos sistemas de língua portuguesa, a respeito do tema em análise, talvez o exemplo mais ilustrativo, para a nossa estranha “situação”, seja o que resulta do confronto entre a observação de dois países que nos são especialmente próximos: Cabo Verde e Angola.

    Ambos se tornaram Estados independentes em 1975, então com regimes de partido único e com bandeira nacional imposta por cada um desses partidos (PAIGC e MPLA), à “imagem e semelhança” de cada um deles. Porém, Cabo Verde resolveu o problema da bandeira em 1992, uma vez chegado à democracia, ou seja, em 17 anos; já Angola ainda não resolveu nenhum dos dois problemas, mas tem sobre Portugal a vantagem de levar apenas ainda 49 anos, tanto num processo como no outro.

    Para quem teve o privilégio de visitar várias vezes essas ilhas (aparentemente) perdidas no meio do “Atlântico tesouro” (Camões), o privilégio de ser convidado a celebrar aí, em 2010, a chegada à maioridade da sua jovem Constituição democrática[50], bem como a repetida ocasião de poder sentir, a cada noite, o calor das estrelas e o rumor do mar, que objecções poderia levantar às opções feitas pelo sábio Povo cabo-verdiano?

    Pelo contrário!

    Bandeira Nacional de Cabo Verde.

    É ao Povo português que continuo a ter contas a pedir.

    É ao Povo Português que cabe reflectir maduramente sobre diversas coisas (como a funcionalidade do sistema de justiça ou o excesso de Poder Executivo) na sua Constituição, lei fundamental sobre a qual nunca foi chamado a pronunciar-se, designadamente a respeito da matéria dos símbolos nacionais, que lhe foram autoritariamente impostos.

    Quanto à forma de o fazer, há muito foi proposta e reproposta.

    Cumprindo-se em 2026 cinquenta anos da aprovação da Constituição de 1976, não seria a ocasião propícia para iniciar um tal processo?

    José Melo Alexandrino é professor universitário


    [1] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais da cultura portuguesa (1950), Lisboa, reimp., 1995, p. 44.

    [2] Para consulta do decreto de extinção do Santo Ofício, em 31 de Março de 1821, ver aqui.

    [3] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais…, cit., p. 31.

    [4] Escusando de insistir no facto de sermos o único país da Europa onde o Governo é o principal órgão legislativo (com uma competência legislativa normal, concorrente com a do Parlamento, desde 1945).

    [5] José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, 2 volumes, Coimbra, 2006; Id., Lições de Direito Constitucional, vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2024, pp. 59-60.

    [6] José Melo Alexandrino, Nos quarenta anos da Assembleia Constituinte, Lisboa, 2015, pp. 9-10 (texto disponível aqui).

    [7] Com efeito, na recente discussão sobre o logótipo do Governo da República, não se discutiu o essencial (se a Bandeira, desde logo nas suas cores, é aquela em que o Povo e Portugal se revêem), mas apenas o acessório: o design, a inclusividade, a comodidade digital.

    [8] Com raras excepções – de vozes que pouco entendem do pulsar da cultura, dos homens e das Nações (valorizando, pelo contrário, a função de representação do jogador português no estrangeiro, Miguel Esteves Cardoso, «A selecção natural», in Público, de 24 de Junho de 2024, p. 5, disponível aqui, para assinantes).

    [9] Com o título Lições de Direito Constitucional, em 2 volumes.

    [10] Como sempre fora até aí, mas não depois disso, a tradição do Professor Jorge Miranda, nos sete tomos do seu Manual de Direito Constitucional, ou de Paulo Otero, nos dois volumes do seu manual de Direito Constitucional Português.

    [11] Como foi e continua a ser a opção nos dois volumes do curso de Jorge Bacelar Gouveia.

    [12] Ou leveza (entendida justamente como subtracção de peso), se empregarmos o critério de Italo Calvino [cfr. Seis propostas para o próximo milénio (lições americanas),trad. de João Colaço Barreiros, 5.ª ed., Lisboa, 2006, p. 17], valor em homenagem do qual chegou mesmo a pensar dedicar a primeira dessas famosas conferências à Lua (ibidem, p. 39).

    [13] Por último, no texto de 2014, ainda inédito, «Deus é bem e Justiça» (incluído em obra no prelo).

    [14] Miguel Esteves Cardoso, «Bendita banheira», in Público, de 23 de Junho de 2024, p. 5 (disponível aqui, para assinantes).

    [15] Com as indicações necessárias, sem ignorar Varrão, que se referiu à Serra de Sintra como Monte Sagrado (Mons Sacer), cfr. Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal – Montes Sagrados, Altos lugares e Santuários, Lisboa, 2010, pp. 127 ss.

    [16] José Mattoso, «Apresentação», in Id. (dir.), História de Portugal , vol. 1 – Antes de Portugal, Lisboa, 1992, p. 13.

    [17] Na sua distinta dissertação Arquitectura do Silêncio: a (in)temporalidade do objecto [inédita], Universidade Lusíada, Porto, 2012 (em texto disponível aqui).

    [18] Mariana Santos Martins, Arquitectura do Silêncio…, cit., p. 121.

    [19] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais…, cit., p. 9.

    [20] José Manuel Sobral/Patrícia Rodrigues, «O “fiel amigo”: o bacalhau e a identidade portuguesa», in Etnográfica, vol. 17, n.º 3 (2013), pp. 619-649; Álvaro Garrido, «O bacalhau. Nexos globais de um mito nacional», in Carlos Fiolhais/José Eduardo Franco/José Pedro Paiva (dir.), História Global de Portugal, Lisboa, 2020, pp. 585-591; por último, neste jornal, Paulo Moreiras, O fiel amigo lascado em1001 curiosidades [Recensão], texto inserido a 28 de Junho de 2024 (disponível aqui).

    [21] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais…, cit., p. 16.

    [22] O “Atlântico tesouro” – como, no Canto X d’Os Lusíadas, lhe chamou Luís de Camões.

    [23] Cuja Bandeira Nacional, faça-se justiça, “reflecte” bem os imponentes e sobreaquecidos espaços calcorreados pelo Quixote.

    [24] Isto, para citar apenas espaços que frequentei ou conheci directamente.

    [25] Para uma introdução à matéria, executada há um século, Olímpio de Melo, A Bandeira Nacional – Sua evolução histórica desde a fundação da monarquia portuguesa até à actualidade, Lisboa, 1924 (disponível on-line a partir daqui); para uma súmula, Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», in A Lucta, n.º 1772, de 21 de Novembro de 1910, p. 1 (disponível aqui); para uma revisitação da história política da passagem do azul e branco ao verde e rubro, Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar – História dos Símbolos Nacionais, Lisboa, 2015, pp. 19 ss.

    [26] Sobre a relevância neste aspecto, por exemplo, do projecto apresentado há 114 anos pelo poeta Delfim Guimarães e pelo pintor Roque Gameiro, merecem leitura as considerações de Nuno Severiano Teixeira, na obra já citada.

    [27] Cfr. Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», cit., p. 1.

    [28] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal: Paraísos Perdidos e Terras Prometidas, Lisboa, 2009, p. 22.

    [29]Por sua vez, A Crónica Geral de Espanha, adaptada por D. Pedro, conde de Barcelos, em 1344 (para cuja revisitação crítica, cfr. Maria do Rosário Ferreira/Maria Joana Gomes/Filipe Alves Moreira, «A Crónica de 1344 e a historiografia pós-alfonsina», in e-Spania [on-line], n.º 25, Outubro de 2016, disponível aqui), narra assim o episódio: «E depois da lide, mudou os sinais das suas bandeiras. Porque antes da lide, trazia as armas brancas como seu padre e, depois da lide, pôs no seu pendão cinco escudos azuis por memória dos cinco reis que vencera, e pô-los em cruz, por lembrança da cruz em que Nosso Senhor Jesus Cristo teve as espáduas».

    [30] E parte de cujo sentido fundamental é desmentido pelas alianças que os Reis portugueses por vezes fizeram com os principados muçulmanos (José Mattoso), como sucedeu em 1151 com o tratado estabelecido entre D. Afonso Henriques e Ibn Qasî (então governador de Silves) e em razão do qual este veio a ser morto no mesmo ano, às mãos dos iminentes novos conquistadores do Al-Andaluz (os Almóadas), injuriado então como “o mahdi dos Cristãos”.

    [31] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal Paraísos Perdidos…, cit., p. 24.

    [32] Ibidem, p. 24.

    [33] José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema…, cit., vol. I, pp. 299-300.

    [34] Apesar dos longos e penosos discursos que fez na Assembleia Constituinte (para as demonstrações correspondentes, José Relvas, Memórias Políticas, vol. I, Lisboa, 1977, pp. 64-65;José Melo Alexandrino, «A presença de Afonso Costa na Assembleia Nacional Constituinte»,agora em José Melo Alexandrino, Elementos de Direito Público Lusófono, vol. II, Lisboa, 2024, pp. 18-20, 26, 40 [no prelo]).

    [35] José Melo Alexandrino, «A presença de Afonso Costa…», cit., pp. 19 ss., com amplas indicações.

    [36] Como dá nota Raúl Brandão (cfr. Memórias – Obras Completas, vol. I, tomo II, Lisboa, 2000, p. 89), diante da enorme polémica então surgida (cfr. J. Plácido Jr., «Quando a nossa bandeira deu uma polémica incendiária», in Visão, de 30 de Abril de 2023, texto disponível aqui).

    [37] Jaime Nogueira Pinto, Nobre Povo: Os Anos da República, Lisboa, 2010, pp. 118-119.

    [38] Especialmente a efémera bandeira da dinastia de Avis (cfr. Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 22).

    [39] Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 26.

    [40] Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 11.

    [41] No sentido de traduzirem uma opção oposta à das correntes perenalistas (cfr. Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 12).

    [42] Em acelerada “motorização normativa”, com mais de dois mil actos normativos aprovados.

    [43] Para uma reprodução do projecto do poeta, ver aqui.

    [44] Cfr. Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», cit., p. 1 (artigo republicado dias depois, no n.º 285 da revista Brasil – Portugal, de 1 de dezembro de 1910, pp. 331-334).

    [45] Cfr. João Céu e Silva, Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente, Lisboa, 2021, p. 99.

    [46] Para um novo olhar a respeito do primeiro deles, por último, Frederico Lourenço, Camões – Uma Antologia, Lisboa, 2024.

    [47] Sobre este conceito, José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., pp. 22 ss.

    [48] Na fórmula de Rolão Preto (que nunca desconsiderou o 5 de Outubro e que acabou a colaborar activamente com os republicanos, a partir de meados do século XX), a I República foi um regime que teimou em marchar «só com uma perna» [cfr. «Carta a um Republicano» (1972), in José Melo Alexandrino (org.), Rolão Preto, Obras Completas, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2023, p. 410].

    [49] Cfr. Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», cit., p. 1.

    [50] Para o texto da intervenção então proferida, na Cidade da Praia, ver aqui.


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  • ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    O título é retirado do romance A educação sentimental dos pássaros, de José Eduardo Agualusa.


    Como não podia deixar de ser, a reprodução do ornitorrinco é do mais taxonomicamente pecaminoso que imaginar se possa[1]. Foi muito importante que a notícia geral da sua descoberta e o fim do debate em torno do seu entendimento só datassem de finais do século XIX e início do século XX. É que, se datassem do século XVIII, não deixaria de ser possível que Lineu desistisse de toda a sua nomenclatura binária[2] e dos critérios que a norteiam[3].


    A História Natural da Revolução Científica não trazia minimamente incorporado o conceito de que todas as regras têm desvios, e de que alguns desses desvios podem de início parecer-nos absolutamente blasfemos. Foi preciso chegar ao final do século XVIII para começarem a aceitar-se extravagâncias que hoje nos parecem tão naturais como a partenogénese nas pulgas de água ou a regeneração de partes cortadas na hidra[4]. Ah. Ambas criaturinhas de água doce, note-se. Vem de lá um ornitorrinco, apanha-as, e chama-lhes um figo.

    Os ornitorrincos vivem em comunidades, embora durante a maior parte do ano os membros de uma mesma comunidade não liguem assim muito uns aos outros. Mas a reprodução, que é sazonal, modifica este comportamento: cada população separada tem uma época diferente para se reproduzir, e respeita-a com um rigor quase cronométrico. O que também nunca varia é um outro desvio à norma, este relacionado com o facto de a cópula se passar forçosamente dentro de água, muito embora o ornitorrinco ainda não tenha chegado a merecer a chaveta de Mamífero Marinho, que mais depressa chegará ao Ártico do que à Austrália[5]. É que, se fosse um verdadeiro Mamímero Marinho, daqueles bem antigos e devidamente merecedores desse nome, tal poderá vir a acontecer ao Urso Polar[6], copular dentro de água faria parte da sua natureza. Agora, sendo o bicho apenas semi-aquático…

    rien n’est simple

    et tout se complique[7].

    É que viver em terra mas copular na água é a grande característica distintiva das rãs, dos sapos, dos tritões, das salamandras – ou seja, dos Anfíbios. Foram os primeiros Vertebrados a sair com sucesso da Sopa Primitiva para conquistar a Terra Firme. Conseguiram mesmo explorar o seu novo ambiente em cima das suas novas quatro patas, uns ainda com cauda, outros já sem ela. Estes animais podem ter-se dado tão bem em terra que nunca mais voltaram à água.

    Excepto para a reprodução, porque os embriões precisam de estar suspensos à superfície de tanques e charcos, dentro das suas fiadas protectoras de geleia, para se tornarem larvas, e depois girinos, e depois sairem dali o mais depressa possível. Isto é de loucos, porque há vários anfíbios já tão afastados da água que morrem afogados quando voltam para de onde vieram para lá deixarem as suas posturas. O regresso anual à água, para eles, é o preço a pagar à evolução. Mas para os ornitorrincos, que são mamíferos e devem ter começado a explorar a Terra Firme muito depois de qualquer salamandra ou qualquer sapo, copular na água é apenas respeitar a sua lógica quotidiana. Passamos metade do dia na água, não passamos? E aqui há menos predadores, não há? Então vão dar uma curva. Nunca vos pedimos para nos entenderem.

    Talvez pudéssemos ficar por aqui.

    Mas há mais.

    E isto é mesmo caso raro e nunca visto, quase inaceitável, a bem dizer imperdoável entre os mamíferos.

    A fêmea do ornitorrinco não sabe o que é parir filhos. Muito pelo contrário. Estamos a falar de um mamífero em que a fêmeas…

    … é, as fêmeas põem ovos[8].

    E depois…

    Depois…

    “…A REALIDADE TENDE A PERDER CONSISTÊNCIA. EM TRÊS DIAS CRIA DELÍRIOS E MUSGO. AO FIM DE UM MÊS JÁ É PURA FANTASIA.[9]

    Estes ovos são nunca menos do que um e nunca mais do que três[10]. Muito haveria o Pitágoras de gostar desta sequência de números primos logo à nascença.

    Mas não, claro que não: como toda a gente sabe, não é o fenómeno anómalo de um animal muito parecido com um mamífero aquático pôr ovos que aproxima o ornitorrinco do urso polar. É verdade que o urso polar tem geralmente duas crias de três em três anos, mais raramente tem só uma, e, mais raramente ainda, tem três. E claro, é verdade que este dois-um-três em cada três anos seria também do agrado de Pitágoras, e fica misteriosamente perto da performance do ornitorrinco. Mas todas as semelhanças param aqui.

    Este parto silencioso nas neves do Ártico é muito longo, com a mãe deitada de lado na neve, cheia de paciência porque os bichos que lá vêm são enormes, pelo que demoram eternidades a sair. Depois de cá estarem fora, as crias mamam de quatro em quatro horas e a mãe senta-se de propósito para lhes facilitar a vida. Crescem depressa, mas têm muito que aprender. São chatinhas, chatinhas, chatinhas – mas a mãe, uma autêntica santa durante este período, nunca as perde de vista nem as deixa sozinhas. À excepção do número de crias, nada disto tem nada a ver com a reprodução fria e impessoal do ornitorrinco.

    Senão, vejamos.

    Para manter os seus ovos protegidos, o ornitorrinco desenvolve uma prega de pele entre os membros anteriores e a cauda, e é que aqui que os guarda, com um arzinho todo marsupial. Para melhor protecção do conjunto, a mãe abandona o menos possível o túnel com cerca de vinte metros de profundidade que escavou previamente dentro da lama das margens. As novas crias hão de vir a nascer cerca de duas semanas depois da cópula, mas são pouco maiores do que um feijão-manteiga e totalmente dependentes da guarda materna, pelo que continuam guardadas e protegidas dentro da tal prega de pele que imita mesmo muito bem a tal bolsa marsupial.

    Estes bebés demoram cerca de três a quatro meses até perderem os dentes[11], o que simboliza a sua entrada no estado juvenil de uma nova vida livre. Durante todo o período de crescimento, sabem muito bem que são mamíferos porque aquela prega de pele que parece uma bolsa marsupial a eles não os engana. Por conseguinte, atiram-se logo à tarefa de se alimentarem do leite da mãe. Mas, como se trata de um ornitorrinco e nesta criatura danada nenhuma manifestação da vida é normal, desta vez o leite não vem de nenhuns mamilos situados na extremidade de nenhumas mamas. É mais que escorre directamente da glândula mamária para os póros da pele do peito da fêmea, onde as crias o vão chupando sempre que não estão a dormir.

    Assim que estão crescidinhos que chegue, e que as placas trituradoras nos maxilares estão formadas, deixam de ser bebés, vão à sua vida, e eram capazes de nem reconhecer a mãe se passassem por ela no dia seguinte. E ela, entretanto, assim que já não precisa de amamentar ninguém, retrai logo a prega de pele da barriga para estar livre de nadar melhor e correr melhor.

    Ah-ah.

    Apanhei-vos.

    Não não, seus exploradores dos antípodas – eu não sou nenhum marsupial.

    Posso parecer um pássaro misturado com um réptil misturado com um mamífero, mas um marsupial é que eu não sou. Não me chamem nomes. O que há mais aqui na Austrália é marsupiais, e eu, ao contrário deles, não sou nenhuma criatura banal.

    Nem quero que ninguém me entenda.

    E que diremos nós a Sua Majestade?

    O bicho bizarro podia não querer saber dos sentimentos dos sábios ingleses e dos primeiros europeus a vê-lo com vida, mas as sociedades científicas britânicas sofreram bastante sem saber o que pensar da sua alegada descoberta.

    Os ornitorrincos foram descobertos pelos europeus no Ano da Graça de 1798, quando o segundo governador de New South Wales, John Hunter, organizou a a primeira expedição inglesa que fez o levantamento da fauna australiana. Perante aquela criatura por demais inacreditável, Hunter achou por bem enviar desenhos de dois ornitorrincos feitos pelos seus melhores desenhadores, juntamente com um exemplar embalsamado e uma pele perfeita, ambos produzidos pelos seus melhores taxidermistas de novas faunas e floras, para a Royal Society of Science do seu país.

     Como já acontecera em vários outros casos anteriores[12], os cientistas ingleses mais respeitados de toda a hierarquia da Filosofia Natural[13] Britânica acharam que aqueles exploradores desatinados só podiam estar a gozar com Sua Majestade. Foi um grupo inteiro dos zoólogos com mais mérito ter com os exploradores, para observar ornitorrincos in locco e decidir se existiam mesmo ou não. E foi assim, contra ventos e marés, que nasceu o mamífero com a família Ornithorhynchidae inteira por sua conta. Hoje em dia é muito famoso[14], muito utilizado em selos e moedas australianos, muito recorrente como mascote de equipas desportivas, e muito postado na internet em video atrás de video Ornithorhynchus anatinus.

    Anatinus vem do latim para Patos.

    Um bicho tão pouco banal merecia um latim bastante melhor, não era? Ainda por cima nos tempos que correm, em que a destruição crescente do seu habitat, sobretudo por causa das tormentas que nos traz o aquecimento global, está a começar a condenar-nos cada vez mais a uma extinção de que nunca se ouve falar.

    Esta questão das espécies interessantíssimas que sobrevivem com dificuldades cada vez maiores mas de cujo perigo de extermínio nunca se fala porque os seus habitats nem sequer estão à vista constitui hoje em dia um drama tão disseminado, e desgraçadamente tão pouco ensinado, que já tem nome próprio e tudo. Foi cunhado apenas agora, atestando bem, só por si, a desgraça que se estende sobre todo o Terceiro Milénio.

    O Ornitorrinco começa a ter sérias dificuldades de sobrevivência.

    É impressão minha[15] ou é exactamente o mesmo que se passa com o Urso Polar?

    “POIS PODE PENSAR-SE QUE EXISTA ALGO DE TAL MODO QUE NÃO POSSA PENSAR-SE QUE NÃO EXISTA.[16]

    Meninos.

    Conhecem a canção do Urso Polar?

    Não?

    Mas olhem, é muito fácil. É só assim,

    Se o Urso Polar

    Quisesse pular

    Caía na neve

    De patas para o ar[17].

    Sempre que vou a uma escola e começo a contar a parte do mamífero marinho aos meninos, e eles abrem-me uns olhos tão redondos que parecem mesmo os olhos de uma foca debaixo de água. E, ao princípio, nem sequer acreditam em mim.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    O Urso Polar está perfeitamente adaptado ao seu ambiente do Ártico. Vive das focas que caça em cima dos blocos de gelo, num salto todo feito de borracha que parece impossível num gigante com três metros de corpanzil musculado. Como esta proeza espatifa bastante gelo, depois tem que nadar para outro bloco, maior e mais resistente por forma a suportar-lhe bem o peso, para poder comer calmamente a presa, descansar, e a seguir ir caçar outra foca. E pronto, quem dá o que tem a mais não é obrigado. O Urso Polar é carnívoro, enorme, solitário, e voraz, claro que é um bicho que ninguém quer ver levantar-se de repente à sua frentre no meio de toda aquela neve que esteve até então a camuflá-lo, mas, e para todos os efeitos, trata-se de facto de um urso[18]. Em consequência, não deixa de ser também um animal pacato, com aquela rotina descontraída própria dos ursos. Portanto caça e descansa, passa a vida nisto, e está-se bem.

    Onde podemos medir bem o espectáculo da adaptação do Urso Polar à sua vida calma no Ártico é exactamente no detalhe onde os meninos quase que ficam assustados. Já se percebeu que, entre caçar focas em cima de blocos de gelo e descansar em cima de outros blocos de gelo ainda maiores, o Urso Polar pode de facto sair-nos ao caminho depois de nunca o termos visto no meio da neve. Mas, feitas bem as contas, acaba por passar mais tempo no mar do que em terra. E o conjunto das adaptações que foi desenvolvendo para melhorar a qualidade desta sua vida semi-aquática já é impressionante.

    “COM CERTEZA QUE O MESTRE QUER ENSINAR ALGO À MINHA ALMA, POIS É A ELA QUE SE DIRIGE A PALAVRA SEM VOZ.[19]

    Quantas vezes é que já se disse aqui que o Urso Polar está em vias de se tornar um mamífero marinho? Hm? E como é que pode alguém, por sábio e galardoado que seja, considerar-se no direito de enunciar profecias destas? Hm-hm. Calma na grande área. O regresso ao mar dos ursos polares não é, propriamente, uma profecia. É um fenómeno bem estudado, cheio de sinais que indicam isso mesmo e de preliminares que indicam que esta tendência existe. Vale a pena fazermos todo este caminho a andar. Não há muitos que sejam assim tão comoventes e bonitos.

    Toda a gente sabe como é que esta história começa.

    Um dia, os peixes, atrevidos, iniciaram a exploração da margem, deram origem aos anfíbios, e, depois deles, veio a vaga de fundo de colonização da terra firme pelos milhares de faces dos vertebrados[20]. Do mar saiu tudo o que existiu a seguir, e que se expandiu nuns leques enormes à procura dos mais acrobáticos de todos os recursos, até chegar a grande loucura do sangue quente, capaz de rir na cara dos humores do clima, e mais tarde até da geração interna, capaz de urdir filhos complexos ao abrigo das maldades do mundo. Quando os mamíferos inventaram a barriga da mãe, inventaram a glória de um triunfo indisputável.

    Isto foi há 150 milhões de anos, e tudo parecia correr pelo melhor.

    Mas qualquer saudade ficara no fundo de algumas memórias, o apelo de um útero muito mais primevo, o útero antes do útero, doce mar, és tu que nos chamas: há cinquenta milhões de anos, um grupo de mamíferos semelhantes a cavalos enormes mergulhou nas ondas e nunca mais de lá voltou. Os seus descendentes deram origem às baleias e aos cachalotes, aos golfinhos e aos rorquais, as manadas oceânicas que ainda hoje galopam como nos prados, batendo a cauda para cima e para baixo, em vez de a agitarem para a esquerda e para a direita, como fazem os peixes. E vejam o esqueleto que está dentro desta barbatana: raquíticos, patéticos, lá estão ainda os dedos vestigiais de um pé atrofiado, a guardar a memória de um tempo vivido a céu aberto, entre pastagens e florestas.

    landscape photo of statue infront of brown building

    A viagem de regresso tinha começado.

    Milhões de anos mais tarde, outro grupo de mamíferos, talvez aparentado com as lontras, ou com os ursos, ousou por seu turno o mergulho profundo. Dele vieram a nascer as morsas, as focas, e as otárias, que ainda não chegaram ao grau de adaptação à vida submersa dos seus parentes pioneiros: todos os anos, se não for noutras alturas, têm que voltar a terra para se reproduzirem. As baleias até o parto já consumam debaixo de água. Os novatos, pelo contrário, ainda mantêm os membros posteriores. As otárias, que chegaram por último à grande aventura marinha, até mantêm ainda uns pavilhões auriculares muito redondinhos, que já foram apagados pelo tempo e pelo sal da cabeça lisa e luzidia das focas.

    A viagem de regresso começou, continuou, e ainda está em curso. O Urso Polar apresenta todos os sinais de ser o próximo mamífero marinho na calha. Já retira toda a sua subsistência da água, pelo que mantém com ela uma relação cada vez mais fiel. Muitos deles já nem chegam a pisar a terra firme, numa vida toda ela passada entre o mar e os blocos de gelo. A camada de gordura que tem por baixo da pelagem comprida e oleosa protege-o dos excessos árticos. As garras em forma de gancho ajudam-no a não escorregar. A sua capacidade de mergulho já se estende até aos dois minutos de imersão sem qualquer esforço. Uma membrana liga-lhes entre si os dedos dos pés, impulsionando o corpo na caçada e prenunciando a barbatana. Os olhos mantêm-se abertos debaixo de água com a maior naturalidade, protegidos por uma grande pálpebra membranosa. E as narinas já se fecham automaticamente no mergulho. A viagem de regresso está obviamente em curso.

    Isto dizíamos nós, numa grande comoção – antes de, no início dos anos 90, começarmos a dizer que ou se reduziam as emissões de Carbono ou viria aí um flagelo terrível chamado aquecimento global[21].

    Bem, seus meninos, mas vamos lá com calma. Antes de mais nada, vocês já sabem muito bem que estes bichos todos existem mesmo, não sabem?

    Por exemplo, sabem o que é uma fofoca?

    É muito fácil, então.

    Uma fo-foca é

    um mamífero ma-marinho.

    Adoro meninos.

    Mas que porcaria de mundo é que eles vão deixar àqueles meninos[22]?

    Não é um déja-vu. Não é um lugar-comum. É uma pista importantíssima no meio de um labirinto enorme. Se quiserem, é uma forma muito retorcida de avisar toda a gente[23]. O drama que vem a seguir já começou, e nunca se fala nele. E é precisamente esse drama que forma o grande elo de ligação entre o Urso Polar e o Ornitorrinco[24].

    O Ornitorrinco já é um mamífero aquático.

    O Urso Polar tem a fasquia ainda mais alta na escala dos prodígios.

    closeup photo of green dragonfly

    A transformação de um mamífero terrestre em mamífero marinho, como a que já está em curso com o Urso Polar, é como a dos outros mamíferos marinhos todos, das baleias às otárias. São fenómenos absolutamente espantosos, mas que só podem medir-se em centenas de milhares de anos. Decorrem de forma muito lenta,  muito gradual, sujeita a toda a espécie de acasos, e de outros tantos becos sem saída.

    Será que o Urso Polar vai conseguir transformar-se a tempo?

    Ultimamente os blocos de gelo estão a ficar cada vez mais finos por causa do aquecimento global, pelo que há cada vez menos focas disponíveis, e o Urso Polar anda pior alimentado. Ainda por cima, tem mais dificuldade em encontrar blocos de gelo  suficientemente espessos para suportarem o peso esgotante do maior urso de todos os ursos, de onde decorre que, embora seja um animal extremamente bem adaptado à vida na água, começa a ser algo frequente aparecer um urso afogado aqui e outro ali[25]. Acresce que, se a água do mar começar a ficar demasiado quente, e ainda por cima demasiado doce e alcalina por causa do derretimento do gelo, o urso dificilmente conseguirá viver dentro dela[26].

    E as fêmes grávidas, que precisam de acumular um excesso de duzentos quilos de gordura para sustentar o embrião? E quando a fêmea quase a dar à luz decide construir o seu ninho na camada de gelo que cobre o mar? O gelo costumava sustentar tudo isto sem qualquer problema. Agora o instinto subsiste, mas todo este sustento é cada vez mais problemático.

    Por tudo isto, e por favor, tomem boa nota de um pormenor muito importante:

    É verdade que, perante a situação actual dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares, estamos a olhar para dois bichos muito diferentes, que exploram habitats igualmente diferentes, mas que têm como traço de união estarem ambos já declaradamente em  processos de extinção. Ambos esses processos são derivados de mudanças cada vez mais acentuadas nos ecossistemas onde tanto um animal como o outro estavam habituados a viver.

    Como a de muitos outros animais que podem no entanto considerar-se absolutamente icónicos da criatividade do Planeta, quase nunca se fala da extinção de nenhum destes dois monumentos naturais. Regra geral, é um processo de extinção tão lento, a decorrer em animais tão especialmente difíceis de estudar em condições naturais, que é pouco falado e dá pouco nas vistas.

    Chama-se a isto uma extinção silenciosa.

    a close up of an animal skull on a black background

    E a verdade é que, além de sabermos isto, não sabemos muito mais. Mesmo com todos os dados que possuímos, não há ninguém que possa prever hoje, e de ciência segura, qual será o verdadeiro destino dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares.

    E quando é que eles se encontrarão com esse destino, se ainda alguém estiver vivo para fazer o registo.

    A história das extinções remete-nos com grande frequência para a nossa devida insignificância.

    A verdade é que a gente ainda nem sequer sabe por que é que, ainda antes dos dinossauros, aquela espécie cde caranguejos grandes e elegantes que deixaram fósseis em grande abundância nas rochas marinhas, e a quem os zoopaleontólogos deram o nome genérico de trilobites, sobreviveram sem uma beliscadura a um grande número de extinções em massa, e depois se extinguiram todas de uma vez, em todas as partes do mundo, sem deixar o mínimo rasto.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A reprodução é sempre um dos fenómenos mais marcantes que resultam da selecção natural. Deos Sive Natura, como diria o outro*, não deixa uma única experiência por fazer. Experimenta-se tudo e mais alguma coisa, na corrida sem fim à sobrevivência de cada espécie.

    *A Autora refere-se aqui ao filósofo seiscentista Baruch Spinoza, um dos primeiros grandes deistas da nossa civilização: a sua fórmula DEUS OU A NATUREZA lançou a ideia de que não era necessário dar um nome e um culto específicos à divindade, uma vez que a sua existência ficava claramente demonstrada nos trabalhos da Natureza. A mesma fórmula acabou por levar à expulsão de Spinoza da comunidade judaica de Amsterdão e à sua posterior errância apátrida pelo mundo.

    [2] Género espécie: no nosso caso, somos o Homo sapiens. Foi o naturalista sueco Carl Lineu que dedicou toda a sua longa vida, durante o século XVIII, a criar este sistema de classificar o mundo vivo conforme as suas características mais raras, e (no caso do último factor de definição, a espécie) a sua incapacidade de terem filhos se tentarem cruzar-se com outra espécie, ou, pelo menos, de terem filhos férteis (do cruzamento entre o burro e o cavalo nasce a mula; mas a mula é estéril). Depois de muito debate, estudo, experimentação, e reflexão, Lineu conseguiu por fim criar a chamada NOMENCLATURA BINÁRIA, que ainda utilizamos hoje. No entanto, muitos animais e plantas que, como o Ornitorrinco, desafiam completamente a simplicidade linear do conhecimento conforme Lineu o criou, só foram descobertos bastante mais tarde e precisaram de ser imensamente discutidos até fazerem sentido em termos de nomenclatura binária. Imagine-se Lineu a braços com o Ornitorrinco. Este grande cientista era também um grande vaidoso. Só isso nos salvaria de o ouvirmos deitar por terra o seu próprio sistema de organização do mundo vivo.

    [4] Esta da regeneração das partes cobertas, descoberta pelo suíço André Trembley em plena Revolução Científica do século XVII, dá uma história tão boa como a do voto no castor para Rei dos Animais. Se algum dia lá chegarmos, eu conto.

    [5] Ou seja: como havemos de ver mais à frente, vai acontecer ao URSO POLAR muito antes de chegar ao ORNITORRINCO.

    [6] ATENÇÃO. URSO POLAR, outra vez. Será esta a última referência?

    [7] Parafraseando o cartoonista francês Sempé: “Nada é simples e tudo se complica.”

    [8] Característica geral dos Monotrématos.

    [9] José Eduardo Agualusa. in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS.

    [10] Não é erro, não.

    [11] É, é. Isto aqui vale tudo. Mesmo.

    [12] O Dodó da Ilha Maurícia, descoberto no século XV por uma expedição portuguesa e depois desenhado e descrito à saciedade por marinheiros e especialistas holandesas, é um bom exemplo de criaturas inacreditáveis destas. Para uma descrição detalhada do seu destino, e do que se passou com vários outros animais exóticos quando observados pela primeira vez pelos europeus, consultar DODOLOGIA: UM VOO PLANADO SOBRE A MODERNIDADE, de Clara Pinto-Correia.

    Tem uma grande admiração por si própria, esta gaja.

    Também tem uma colecção impressionante de péssimos subtítulos nos seus livros de investigação. Isso é indiscutível.

    [13] Durante milénios foi este o nome oficial da Biologia, uma disciplina que só aparece no século XX tal  como a conhecemos agora.

    [14] Passe a redundância, claro. É por demais evidente que outra coisa não seria de esperar.

    [15] O pronome possessivo refere-se, aqui, à autora destas charadas, e não propriamente ao ornitorrinco, que CPC fez a gracinha de pôr a falar na primeira pessoa durante toda a parte anterior do texto.

    [16] Venerável Beda, PROSLOGION, Século VIII.

    [17] Quadrinha de Mádrio Castrim, memorizada a partir de um dos meus livros infantis preferidos. Eu própria criei a música, para poder cantá-la com os meus filhos durante as viagens de carro.

                    PS – Viagens de carro, estão a ver? As Mães cantam com os filhos, felizes da vida. E os pais deles vão sempre de trombas. Voz doce, feminina: “Ó amor, mas que cara é essa?” – Voz furibunda, masculina: “É A MINHA!

    [18] Claro que eu não digo isto aos meninos. Digo aos meus alunos universitários, quando introduzo o Urso Polar nas minhas analogias para a insustentabilidade da chamada SOBREVIVÊNCIA DO MAIS APTO como força motriz da selecção natural.

    [19] Jorge Luis Borges, in HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA

    [20] Simplificação grosseira. Houve inúmeras tentativas de colonização da terra firme muito anteriores à existência dos Vertebrados. Devido à ausência de componentes duras, estas espécies são extremamente difíceis de estudar. Sabemos, no entanto, que existiram sucessivas vagas de invasão da terra firme, mais ou menos demoradas, mas nunca bem-sucedidas a termo.

    [21] E qual é o urso polar que sobrevive a um ártico morno, com um oceano cheio de água doce dos glaciares derretidos, sem blocos de gelo para caçar e digerir as suas focas, e tudo o mais que consta do seu estado pré-marinho?

    [22] Nada como um bom lugar-comum para acalmar o alvoroço das escolas e das universidades. Esta é legitimamente minha.

    [23] Se não fosse para ser retorcida, também não era para ser em forma de charada.

    [24] Além de todos os elos de ligação menos assombrosos, de que fomos falando aos longo desta charada.

    [25] Não são tão poucos como isso, e cada ano são mais.


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  • Comissão de inquérito ou interrogatório policial?

    Comissão de inquérito ou interrogatório policial?


    Assistir às sessões das Comissões de Inquérito da Assembleia da República faz perder a paciência ao mais sossegado dos Santos.

    O comportamento da maioria dos deputados é desastroso, confrangedor e abusivo.

    Sustentados num Poder que lhe foi entregue pelo Povo Português, no sentido de o representarem nas suas ambições, nas suas queixas, nas suas propostas, usam aquele para auto-promoção transformando a Casa da Democracia numa Feira de Vaidades.

    É sabido que não há nada pior do que dar algum Poder a quem nunca teve responsabilidades profissionais.

    A tendência é mostrar que o têm, mesmo que acabem por o usar da pior forma, num misto de sobranceria e exibicionismo.

    Depois, porque na política há diversas ideologias (demasiadas, diria mesmo) sentem-se no direito de dizerem o que querem, e da maneira que entendem, sem correrem o risco de ser criticados.

    Para se distinguirem uns dos outros, de maneira que os seus nomes passem a ser conhecidos, carregam nos adjectivos e, por vezes, no intuito de serem irreverentes, acabam por roçar a boçalidade.

    Acreditam que há que ser, sempre, mais ríspido, mais agressivo, mais violento que o orador anterior de modo que não fiquem dúvidas sobre o poder que julgam ter em relação aqueles que estão a inquirir.

    A esta falta de educação e respeito, mais habitual nos militantes de partidos extremistas, eles costumam chamar uma “tentativa de chegar à verdade”.

    Na realidade não passa de uma perda de tempo e, pior, de uma falácia, já que todos sabem que os resultados destas Comissões de Inquérito são absolutamente inúteis, para além da publicidade que alguns conseguem.

    Acredito que, para parte da população, o seu desempenho mostre empenho e coragem.

    A maioria, todavia, encara aqueles interrogatórios como uma triste evidência de abuso de poder.

    O interrogatório ao Dr. Nuno Rebelo de Sousa foi mais uma demonstração de arrogância, petulância, desplante e prepotência.

    Quero deixar claro que não concordo com a actuação que este teve até ao momento.

    A ser verdade que tentou uma “cunha”, para ajudar uma mãe cujas filhas estavam em risco de vida, e se esse gesto não lhe trouxe qualquer dividendo, deveria, desde logo, assumir isso.

    Poucos portugueses não ficariam do seu lado.

    Caso ele tenha usado os seus conhecimentos recebendo algo em troca, e atendendo aos valores de que se fala, então deverá ser levado à Justiça e esperar que esta faça o seu trabalho.

    Os deputados sabem que é assim e devem respeitar a Justiça cumprindo as leis, incluindo no que concerne aos direitos dos arguidos.

    Tentarem agir como polícias de investigação, acusadores e, mesmo, juízes é inconcebível.

    Todas as pessoas que são chamadas a depor nestas Comissões de Inquérito, desde que tenham sido constituídas arguidas, têm a prerrogativa de não responderem às questões dos deputados.

    E eles sabem (ou deviam saber) disso.

    O problema é que tal os impediria de, perante o país, exibir o que pensam ser a sua superioridade em termos éticos, de integridade e de inteligência.

    Daí que, por vezes, e apesar dos avisos prévios de que os inquiridos não responderiam a qualquer pergunta, estes são metralhados com imensas questões e sempre num tom inquisitório que chega a roçar o insulto.

    Frases como “não responde por cobardia” ou “não responde porque é cúmplice”, para além de indiciarem uma inadmissível má-educação, são uma inexplicável prova de ignorância.

    Não respondem porque têm esse Direito, por vezes estão mesmo proibidos de o fazer pelos Tribunais, e optam por essa via.

    Qualquer miúdo da terceira classe compreenderá isso.

    A real importância de um deputado pode ter o tamanho que cada cabeça entender, mas como os seus poderes estão escritos, porque todos eles sabem ler e, acredito, a maioria conseguirá perceber os textos, não consigo compreender o tom ameaçador utilizado nas perguntas, menos ainda alguns dos seus gestos e expressões faciais.

    Pergunto a mim mesmo se alguns destes (e destas) inquiridores tivessem seguido a carreira policial, não iriam integrar o grupo daqueles que conseguem as confissões à força de pancada.

    Cada vez mais questiono a frase de António Costa quando confessou, numa fase de revolta contra aquele que considerava o seu maior amigo, que “o Primeiro-Ministro não pode ter amigos”

    Acredito que ele queria generalizar e dizer “os políticos não podem ter amigos”.

    Na verdade, eu penso que o contrário não é menos verdadeiro.

    Ou seja, “um cidadão normal não deve ter amigos políticos”.

    Por vezes, nem Pai que seja político.

    Mas isso já seria outra crónica e escrita com uma revolta bem maior!

    Vítor Ilharco é assessor


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  • Moeda (fiduciária): a maior fraude criada pelo Homem

    Moeda (fiduciária): a maior fraude criada pelo Homem


    Actualmente, o dinheiro que utilizamos provém exclusivamente do Estado, através do seu Banco Central e do sistema bancário sob a sua supervisão. O Banco Central possui a capacidade de emitir notas e moedas, embora estas representem uma pequena parcela do total de dinheiro em circulação. Para ilustrar, recorramos ao último relatório do Banco Central Europeu (BCE): no final de 2023, o valor das notas e moedas em circulação na Zona Euro era de 1,57 biliões de euros (12 zeros).

    Contudo, a maior parte do dinheiro origina-se dos computadores do BCE e do sistema bancário, que criam dinheiro digital mediante a emissão de dívida. Quando solicitamos um empréstimo para a compra de uma casa, o banco cria dinheiro digital do nada, que posteriormente deve ser pago com juros.

    close-up photo of assorted coins

    Por outras palavras, quanto mais dívida é criada, maior é a quantidade de dinheiro em circulação. Este facto contrasta significativamente com a situação do cidadão comum que, para aumentar o seu saldo em euros, necessita produzir bens e serviços para a sociedade, enquanto o sistema bancário pode criar dinheiro com um simples apertar de um botão num computador.

    A quantidade de dinheiro que os bancos podem criar do nada é limitada apenas pelas reservas que possuem; ou seja, para cada 100 euros de dívida emitida e dinheiro criado, devem possuir, por exemplo, 10% em reservas.

    O que são essas reservas? Nada mais do que notas e moedas emitidas pelo Banco Central, mantidas nos cofres do banco, e depósitos à ordem junto ao Banco Central. Para os bancos adquirirem mais reservas, necessitam vender dívida pública ao Banco Central, que a adquire criando reservas do nada e creditando o saldo do banco.

    Para termos uma ideia clara, o dinheiro em circulação, considerando tanto o dinheiro digital – que existe apenas nos computadores dos bancos – quanto o dinheiro físico, pode ser medido pelos agregados monetários, como o M2. Este agregado inclui (i) notas e moedas em circulação; (ii) depósitos à ordem; (iii) depósitos a prazo; e (iv) fundos do mercado monetário. No final de 2023, na Zona Euro, este valor totalizava 15,2 biliões de euros. Ou seja, as reservas dos bancos junto do Banco Central são ridículas face a este valor, pelo que a conversão dos depósitos bancários em notas e moedas far-nos-ia verificar a fraude que constitui o actual sistema monetário.

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    O actual sistema fiduciário, onde o Estado e os bancos emitem moeda sem restrições ou controlo, mantendo um monopólio absoluto sem qualquer lastro em metais preciosos como o ouro, não desaparecerá tão cedo. Qualquer expectativa ou esperança contrária deve ser moderada. Embora o sistema fiduciário possa eventualmente colapsar, é bastante provável que persista mais tempo do que muitos prevêem, possivelmente à custa de uma intrusão estatal de carácter autoritário nas liberdades individuais e empresariais.

    Muito se tem escrito sobre o iminente colapso do sistema internacional de dinheiro fiduciário. Este debate naturalmente ganha força em tempos de crise, como observado após a crise financeira de 2008/09 ou durante os confinamentos ilegais de 2020/21, decorrentes de uma putativa pandemia.

    Qual é a essência do dinheiro fiduciário? Os Bancos Centrais detêm o monopólio sobre a emissão do dinheiro fiduciário, já explicado pelo conceito de reservas. Com essas reservas, os bancos comerciais podem criar a sua própria forma de dinheiro, inteiramente digital. Este dinheiro é criado através de empréstimos sem respaldo em poupanças reais, essencialmente criado do nada, existindo de forma desmaterializada.

    Seja o Dólar norte-americano, o Dólar australiano, o Euro, o Iene japonês ou a Libra Esterlina, todas são formas de dinheiro fiduciário. Ao contrário do dinheiro que emerge do livre mercado, fruto de acordos voluntários – como aconteceu com o Ouro –, o dinheiro fiduciário foi introduzido através da intervenção estatal, envolvendo coerção e imposição. Esta imposição teve vários episódios ao longo da história, que os modernos “economistas” sistematicamente ignoram.

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    O dinheiro fiduciário é, por natureza, inflacionário, perdendo gradualmente o seu poder aquisitivo ao longo do tempo. Este fenómeno beneficia desproporcionalmente uma minoria privilegiada, próxima do poder estatal, em detrimento da população em geral. Além disso, causa instabilidade económica, perpetuando ciclos de expansão e recessão que perturbam os equilíbrios de mercado e criam desigualdades sociais. Promove o endividamento excessivo nas economias e alimenta a expansão desenfreada do Estado, frequentemente às custas das liberdades dos cidadãos e das empresas.

    Por último, mas não menos importante, o dinheiro fiduciário é desonesto, e lidar com ele diariamente corrói os valores e a moral das pessoas envolvidas na sua circulação. No entanto, apesar desses consideráveis contratempos, uma vez que o dinheiro fiduciário tenha sido posto em circulação, veio para ficar; não desaparecerá simplesmente. Por quê? O dinheiro fiduciário fomenta a “corrupção colectiva”, onde muitas pessoas são capturadas pelas estruturas que este estabelece, promovendo a dependência e enraizando a sua influência. Actua como um catalisador para a expansão do Estado, tornando-o maior e mais poderoso. As empresas recebem novos pedidos do Estado, ajustando a produção e o emprego para atender a uma procura inteiramente artificial – como se viu com as inoculações experimentais Covid-19.

    As pessoas mantêm as suas poupanças em dinheiro fiduciário. Investem, directa ou indirectamente, em certificados de aforro e mantêm as suas poupanças em depósitos a prazo num sistema bancário que pratica a contrafacção de moeda de forma legalizada. Gradualmente, as pessoas tornam-se profundamente dependentes da perpetuação do sistema de dinheiro fiduciário, consentindo com quase qualquer medida proposta pelo Estado (e pelos grupos de interesse especial que dele se beneficiam) para manter o sistema de dinheiro fiduciário em funcionamento.

    Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu.

    O calcanhar de Aquiles do sistema de dinheiro fiduciário reside na procura por dinheiro. No entanto, o que significa a procura por dinheiro? Essencialmente, reflecte o desejo das pessoas de manterem saldos em dinheiro, influenciado por uma multitude de factores.

    Por exemplo, as pessoas tendem a manter saldos de dinheiro relativos ao seu rendimento. À medida que o rendimento aumenta, também aumenta o desejo de manter o dinheiro. A procura por dinheiro geralmente diminui quando as taxas de juro aumentam, incentivando a sua aplicação. Isso ocorre porque manter dinheiro implica custos de oportunidade quando retornos mais altos poderiam ser obtidos por meio de, por exemplo, depósitos bancários, valores mobiliários, imobiliário e instrumentos de dívida.

    A história demonstra que a procura por dinheiro permanece relativamente estável quando há um alto nível de confiança na moeda, isto é, as pessoas não estão preocupadas que o poder de compra do seu dinheiro diminuirá ou será destruído – como na Venezuela ou Zimbabué. Dada essa percepção, os Estados e os seus Bancos Centrais procuram manipular o sistema de dinheiro fiduciário a seu favor. A sua estratégia principal envolve a criação de ilusões e a manipulação da população para manter controlo e influência.

    Por exemplo, suponhamos que uma dada economia produzia apenas 100 unidades do bem A e que existiam apenas 100 unidades monetárias. Se no ano seguinte, fruto da acumulação de capital, a economia produz 110 unidades do bem A, ou seja, ocorreu um aumento de 10% na produção de bens, algo normal numa economia capitalista, em lugar de 100 unidades monetárias para 100 unidades do bem A, temos agora 100 unidades monetárias e 110 unidades do bem A, o que significa uma relação de 1:0,91, resultando em deflação, pois o preço do bem A desceu.

    Vamos agora supor que o Banco Central dessa economia imprimiu 10 novas unidades monetárias, mantendo a relação 1:1. Assim, afirmariam que a inflação foi 0%, não tendo ocorrido qualquer inflação monetária, quando na verdade o dinheiro em circulação subiu 10%! Este é um exemplo de como as autoridades podem manipular a percepção económica, criando ilusões sobre a estabilidade do dinheiro fiduciário.

    Assim, as pessoas são frequentemente alimentadas com a narrativa de que uma inflação de 2% equivale a “dinheiro estável” — uma afirmação que é, obviamente, inerentemente falsa. Na realidade, uma taxa de inflação de 2% destrói o poder de compra do dinheiro em mais de 2% a cada ano, pois os benefícios de maior produção de bens e serviços deveriam estar reflectidos numa queda de preços – somos ratos a correr por dinheiro fiduciário! Além disso, os índices estatísticos de preços de bens são frequentemente manipulados para apresentar uma taxa de inflação mais baixa do que a realmente experimentada no mercado. Esta manipulação serve para minimizar a verdadeira extensão da desvalorização monetária.

    A propaganda não se fica por aqui: os funcionários do Banco Central e os “economistas” chamados a opinar nos órgãos de propaganda estatais atribuem a inflação a vários factores externos, como a suposta ganância das empresas ou interrupções no fornecimento por nações produtoras, seja de petróleo ou cereais, ou à guerra na Ucrânia!, enquanto rejeitam veementemente a noção de que a inflação é um fenómeno monetário resultante da impressão de dinheiro fiduciário pelos Bancos Centrais e bancos sob a sua supervisão.

    Jerome Powell, presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos.

    Na verdade, os Bancos Centrais estão determinados a evitar uma queda permanente na procura por dinheiro a todo custo, defendendo sempre o aumento de impostos sobre as populações, visto que estes apenas podem ser liquidados em moeda fiduciária. Quando a procura por dinheiro cai, as pessoas tendem a trocar o seu dinheiro por activos alternativos, como acções, imóveis, metais preciosos, criptomoedas, relógios suíços, entre outros.

    Consequentemente, os preços desses bens disparam — exacerbando ainda mais a queda na procura por dinheiro. Em cenários extremos, isso pode desencadear uma fuga generalizada do dinheiro, prenunciando um colapso do sistema financeiro e económico. Para manter o sistema de dinheiro fiduciário, os Bancos Centrais ajustam o nível de inflação para, em primeiro lugar, garantir uma erosão gradual e contínua do valor do dinheiro, subtil o suficiente para passar despercebida ou ser relutantemente aceite pelo gado submisso.

    Em segundo lugar, essa pressão inflacionária controlada actua como uma defesa contra episódios de deflação de preços de bens, que têm o potencial de fazer o sistema de dinheiro fiduciário desmoronar.

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    Por fim, os Bancos Centrais visam evitar situações em que a inflação saia do controlo, onde a hiperinflação destrua completamente a procura por dinheiro fiduciário. O objectivo é manter uma inflação suficientemente baixa para ser subtil, mas constante o bastante para evitar uma deflação desestabilizadora e a consequente perda de confiança na moeda fiduciária.

    Esse acto de equilíbrio delicado é sustentável? As últimas décadas parecem sugerir que sim. Apesar de inúmeras crises e da erosão crónica do poder de compra, a procura por dinheiro em muitas economias desenvolvidas tem permanecido relativamente estável – o gado confia muito no Estado, fruto do controlo estatal da educação. No entanto, o acto de equilíbrio pode ter sucesso a longo prazo? Provavelmente não. A principal preocupação é a enorme acumulação de dívida pública dentro do sistema de dinheiro fiduciário, eventualmente atingindo um ponto de inflexão de insustentabilidade.

    Nesse ponto, as pessoas serão confrontadas com a questão: o sistema de dinheiro fiduciário deve colapsar sob o peso das pressões deflacionárias, ou a dívida pendente deve ser financiada criando novo dinheiro? Infelizmente, a história sugere que em tempos de “crises existenciais”, as pessoas consideram a expansão da oferta de dinheiro como o menor dos dois males. Uma vez iniciada, uma política deliberada de inflação torna-se incrivelmente desafiadora de conter, quanto mais reverter. Tem a propensão a sair do controlo, potencialmente culminando em alta inflação ou até mesmo hiperinflação, precipitando um colapso na procura por dinheiro e corroendo as próprias fundações do sistema de dinheiro fiduciário.

    Mário Centeno, governador do Banco de Portugal.

    Num possível cenário tão terrível, deve-se contar com a determinação do Estado em evitar a morte do seu regime de dinheiro fiduciário a todo custo. O Estado, como hoje o conhecemos, é expectável que esgote todas as medidas disponíveis para salvaguardar a continuidade do seu sistema monetário fraudulento. Em resposta a uma crise, o Estado irá certamente recorrer a medidas drásticas, como impor controlos de preços e de capital e até mesmo nacionalizar bancos e empresas “estratégicas”, sovietizando a economia – algo que hoje vemos crescentemente a acontecer.

    Sob tais circunstâncias, o Estado assume um controlo sem precedentes sobre a produção, ditando quais bens e serviços serão produzidos, quanto, quando e por quem, até mesmo regulando quem será permitido consumir quanto e quando – esse é o objectivo do Euro Digital. Por outras palavras, as economias terminam numa forma de fascismo. Cabe a nós evitá-lo!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • 23 páginas em defesa do jornalismo credível de investigação: o caso da segurança das vacinas

    23 páginas em defesa do jornalismo credível de investigação: o caso da segurança das vacinas


    Exma. Senhora Presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social,

    Prof. Helena Sousa:

    No seguimento da anulação da Deliberação ERC/2024/80 (CONTJOR-NET), após terem sido detectadas falsidades na dita Deliberação quanto à minha notificação (e alegada não resposta da minha parte), venho apresentar a minha defesa.

    Ao contrário daquilo que seria sensato, por estarmos perante uma mera análise do regulador que emite uma mera opinião sem qualquer consequência punitiva, gastei vários dias a elaborar esta defesa, porque assumi que, pela ligeireza e preconceito de casos passados, está aqui em causa, na verdade, a liberdade de imprensa, e sobretudo a liberdade da investigação jornalística feita de forma independente, o que costuma causar incómodos a determinados interesses e lobbies.

    Não quero assim contribuir para que a ERC, como já o fez em outras situações (demasiadas), tenha margem de manobra para continuar a alimentar, com deliberações enviesadas, uma campanha de difamação sobre o rigor e credibilidade do meu trabalho de jornalista, afectando também o PÁGINA UM como órgão de comunicação independente que está a trilhar o seu caminho.

    A minha defesa, que aqui se expõe, será apresentada por tópicos, devendo ser aplicada às duas queixas formuladas pelo Dr. Filipe Froes, médico do Serviço Nacional de Saúde e sócio da empresa Terras & Froes, Lda., que tem fortes relações comerciais com empresas do sector farmacêutico. Esta defesa deve servir também de reflexão para o Conselho Regulador da ERC sobre análises pré-concebidas e sobre o papel que deve caber à imprensa na necessária pesquisa mesmo em matérias onde se quer aparentar existir um consenso. Os 5o documentos que se anexam, grande parte dos quais artigos em revistas científicas (todas com peer review), devem ser consideradas como prova ou complemento do que se expõe – e, portanto, consideradas na análise.

    person holding white plastic bottle

    Primeiro ponto

    A deliberação anulada denota que o(a) funcionário(a)anão identificado(a) da ERC que elaborou a proposta dessa deliberação não analisou sequer o registo de vídeo que enderecei, onde se mostrava como se procedeu à análise da base de dados da EudraVigilance, gerida pela Agência Europeia do Medicamento (EMA). Denota-se também que a ERC não tem a mínima noção sobre a gestão dos processos de notificação das reacções adversas feitas individualmente a cada fármaco, sendo que são inseridos para cada fármaco apenas as reacções adversas de que haja suspeita fundada de terem causado as referidas reacções, definidas em função da gravidade. Não pode a ERC analisar o rigor de uma análise se nem sequer segue os passos da investigação que pretende avaliar quanto ao rigor.

    Segundo ponto

    Reitero que as participações feitas por pessoas externas sobre matérias noticiosas de um órgão de comunicação social devem sempre ser comunicadas com a identificação do queixoso, até para que se contextualize as suas intenções. Na matéria em apreço, que exige conhecimentos científicos (que não médicos; trata-se mais de matérias de segurança de medicamentos, e não de questões clínicas e de administração terapêutica), convém salientar que o queixoso (Dr. Filipe Froes, que só foi identificado após insistente pedido meu) não pode, per si, e perante a ERC, e apenas com a base na sua profissão e currículo, usufruir de uma valia diferenciada.

    Terceiro ponto

    Aliás, bem exemplificativo disso é o facto de o Dr. Filipe Froes mentir – ou, em alternativa, no caso de mera ignorância, faltará à verdade –, quando disserta sobre as mortes súbitas no Reino Unido. Escreve ele na queixa, depois de apresentar supostos dados, que “só os casos de morte súbita que ocorreram naturalmente num único país, neste caso o Reino Unido, e sem relação com a vacina podem justificar a maioria dos casos referidos na peça jornalística”. Ora, conforme se pode constatar no Office for National Statistics na rubrica Deaths “involving” or “due to” Sudden Infant Death Syndrome and Sudden Adult Death Syndrome, existe um ficheiro onde consta a evolução entre 2015 e 2022 “envolvendo” (involving) e “devido a” (due to) síndrome da morte súbita (FICHEIRO 1).

    Registo de óbitos envolvendo ou devido a síndrome de morte súbita em maiores de 16 anos no Reino Unido entre 2015 e 2022. Fonte: Office for National Statistics.

    Considerando as mortes envolvendo morte súbita no triénio da pandemia (2020-2022) e o triénio anterior (2017-2019), constata-se um aumento para 1.512 casos (3.932 para 5.44 óbitos), significando um incremento de 38,5%. Em todo o caso, em nenhum lado dos meus artigos refiro que há uma relação directa entre a vacina contra a covid-19 e as mortes súbitas: apenas contabilizo os registos da EMA que colocam a morte súbita associada à vacinação, sugerindo a necessidade de estudos. Em todo o caso, só este exemplo comprova á saciedade, podendo (e devendo) a ERC confirmar a veracidade daquilo que apresento; e não através de falsas declarações do Dr. Filipe Froes.

    Ponto terceiro

    Desconheço também – e isso significa que, em princípio, não deterá – os conhecimentos na área científica em análise por parte de funcionários da ERC e membros do seu Conselho Regulador para analisarem o rigor de um artigo de elevada complexidade como a apresentada. Aliás, é absurdo que um regulador dos media se atreva a fazer análises científicas numa área ainda em constante debate científico, felizmente agora mais aberto e sem censura evidente. Atendendo ao ponto 45 da deliberação anulada, fica bem patente que quem elaborou a Deliberação, e quem a aprovou, nem sequer entende o modelo de funcionamento da base de dados EudraVigilance, gerida EMA.

    Quando se escreveu na Deliberação anulada “Além disso, na análise do Página Um à totalidade dos dados sobre ‘mortes súbitas’ não há uma frase conclusiva sobre o resultado da pesquisa, antes vão sendo apresentadas lacunas que impossibilitam extrair um desfecho unívoco. A razão é imputada ao procedimento institucional para a recolha dos dados: ‘Até porque a maioria dos reportes de efeitos adversos foram enviados pelas próprias farmacêuticas à EMA’”, só poderei concluir que o(a) funcionário(a) da ERC que escreveu e os membros do Conselho Regulador que concordaram não percebem sequer do que se está a falar – e daquilo que eu escrevi. Na verdade, é exactamente pelo facto de a maioria dos eventos, uma parte dos quais fatais, e que são associados directamente a um fármaco (considerado suspeito), serem enviados por farmacêuticas que se mostram relevantes para as questões de segurança.

    As farmacêuticas jamais enviariam registos de casos suspeitos sem que houvesse uma suspeita relevantes de estar associada ao seu fármaco – até porque estes podem ser determinantes para uma eventual retirada do mercado. Por outro lado, as farmacêuticas sabem que se tentarem esconder informação, como por vezes sucedeu, estão a sujeitar-se, mais tarde, a serem fortemente punidas por esse acto. Daí que seja habitual que as farmacêuticas sejam agora uma das principais comunicadoras de suspeitas de reacções adversas.

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    Ponto quarto

    Sejamos claros – e a ERC não pode nem deve colocar qualquer tipo de oposição ou censura à livre investigação dos jornalistas em matéria de segurança dos medicamentos, ainda mais numa fase tão precoce da introdução das vacinas contra a covid-19 no mercado, ainda mais em larguíssima escala.

    Apesar de a indústria farmacêutica ter promovido muitos medicamentos que contribuem para salvar vidas e melhorar a qualidade de vida das pessoas, não são entes imaculados nem as suas práticas são isentas de pecados ou mesmo crimes. Existe profusa documentação e casos sobre estas matérias, dos quais sugiro a análise dos seguintes artigos científicos, todos antes da pandemia:

    1 – Light DW, Lexchin J, Darrow JJ. Institutional corruption of pharmaceuticals and the myth of safe and effective drugs. J Law Med Ethics. 2013 Fall;41(3):590-600. doi: 10.1111/jlme.12068. PMID: 24088149.  (FICHEIRO 2)

    Este artigo foi publicado em 2013 pela revista The Journal of Law, Medicine & Ethics, pertencente à American Society of Law, Medicine & Ethics, e tem o seguinte sumário (tradução livre):

    Nos últimos 35 anos, os pacientes sofreram com uma epidemia amplamente oculta de efeitos colaterais de medicamentos que geralmente apresentam poucos benefícios compensatórios. A indústria farmacêutica corrompeu a prática da medicina através da sua influência sobre quais os medicamentos que são desenvolvidos, como são testados e como o conhecimento médico é criado. Desde 1906, a forte influência comercial comprometeu a legislação do Congresso para proteger o público de drogas perigosas. A autorização de taxas de utilização em 1992 transformou as empresas farmacêuticas nos principais clientes da FDA, aprofundando a captura regulamentar e cultural da agência. A indústria exigiu tempos médios de revisão mais curtos e, com menos tempo para analisar minuciosamente as evidências, resultou num aumento de hospitalizações e mortes. Atender às necessidades das empresas farmacêuticas tem prioridade sobre atender às necessidades dos pacientes. A menos que esta corrupção da intenção regulamentar seja revertida, a situação continuará a deteriorar-se. Oferecemos sugestões práticas, incluindo: separar o financiamento de ensaios clínicos da sua condução, análise e publicação; liderança independente da FDA; financiamento público total para todas as atividades da FDA; medidas para desencorajar a I&D de medicamentos com poucos ou nenhuns novos benefícios clínicos; e a criação de um Conselho Nacional de Segurança de Medicamentos.

    2 – Rodwin MA. Introduction: Institutional corruption and the pharmaceutical policy. J Law Med Ethics. 2013 Fall;41(3):544-52. doi: 10.1111/jlme.12062. PMID: 24088143.  (FICHEIRO 3)

    Também publicado na mesma revista em 2013, este texto constitui uma longa introdução a um simpósio, sendo que o sumário é o seguinte (tradução livre):

    Neste simpósio do The Journal of Law, Medicine & Ethics , 16 autores investigam a corrupção da política farmacêutica, cada um dando uma olhada diferente nas fontes de corrupção, como ela ocorre e o que é corrompido. Este ensaio introdutório resume cada artigo, discute o tema principal que percorre os artigos e fornece links da web do SSRN para acessar cada um dos 16 artigos. Os artigos são organizados em cinco tópicos: (1) problemas sistêmicos, (2) pesquisa médica, (3) conhecimento e prática médica, (4) marketing e (5) organizações de defesa do paciente.

    Hoje, os objectivos da política farmacêutica e da prática médica são frequentemente prejudicados devido à corrupção institucional – isto é, práticas generalizadas ou sistémicas, geralmente legais, que prejudicam os objectivos ou a integridade de uma instituição. Veremos que os próprios objectivos da indústria farmacêutica são frequentemente prejudicados. Além disso, o financiamento de campanhas eleitorais e de lobbying pela indústria farmacêutica distorce o processo legislativo que define a política farmacêutica. Além disso, certas práticas corromperam a investigação médica, a produção de conhecimento médico, a prática da medicina, a segurança dos medicamentos e a supervisão do marketing farmacêutico pela Food and Drug Administration. Como resultado, os profissionais podem pensar que estão a utilizar informações fiáveis ​​para se envolverem numa prática médica sólida, ao mesmo tempo que, na verdade, confiam em informações enganosas e, portanto, prescrevem medicamentos que são desnecessários ou prejudiciais aos pacientes, ou mais dispendiosos do que medicamentos equivalentes. Ao mesmo tempo, os pacientes e o público podem acreditar que as organizações de defesa dos pacientes representam efectivamente os seus interesses, enquanto estas organizações na verdade negligenciam os seus interesses.

    3 – Rickard E, Ozieranski P. A hidden web of policy influence: The pharmaceutical industry’s engagement with UK’s All-Party Parliamentary Groups. PLoS One. 2021 Jun 24;16(6):e0252551. doi: 10.1371/journal.pone.0252551. PMID: 34166396; PMCID: PMC8224875. (FICHEIRO 4)

    Publicado em 2021 na revista científica PLOS ONE, pode ler-se o seguinte:

    O nosso objectivo era examinar conflitos de interesse entre os Grupos Parlamentares All-Party (APPGs) focados em saúde do Reino Unido e a indústria farmacêutica entre 2012 e 2018. Os APPGs são grupos informais multipartidários que giram em torno de um tópico específico administrado por e para membros das Câmaras dos Comuns e Lordes do Reino Unido. Eles facilitam o engajamento entre parlamentares e organizações externas, disseminam conhecimento e geram debates por meio de reuniões, publicações e eventos. Identificamos APPGs com foco em saúde física ou mental, bem-estar, assistência médica ou tratamento e extraímos detalhes de seus pagamentos de doadores externos divulgados no Registro de Grupos Parlamentares All-Party. Identificamos todos os doadores que eram empresas farmacêuticas e organizações de pacientes financiadas pela indústria farmacêutica. Estabelecemos que dezasseis de 146 (11%) APPGs relacionados à saúde tinham conflitos de interesse indicados por relatórios de pagamentos de trinta e cinco empresas farmacêuticas no valor de £ 1.211.345,81 (16,6% dos £ 7.283.414,90 recebidos por todos os APPGs relacionados à saúde). Dois APPGs (Saúde e Câncer) receberam mais da metade do valor total fornecido pelas empresas farmacêuticas. Cinquenta APPGs também receberam pagamentos de organizações de pacientes com conflitos de interesse, indicados por relatórios de 304 pagamentos no valor de £ 986.054,94 de 57 (de 84) organizações de pacientes que receberam £ 27.883.556,3 de empresas farmacêuticas no mesmo período. No total, as empresas farmacêuticas e as organizações de pacientes financiadas pela indústria farmacêutica forneceram um total combinado de £ 2.197.400,75 (30,2% de todo o financiamento recebido por APPGs relacionados à saúde) e 468 (de 1.177–39,7%) pagamentos para 58 (de 146–39,7%) APPGs relacionados à saúde, com o APPG para Câncer recebendo a maior parte do financiamento. Concluindo, encontramos evidências de conflitos de interesses por meio de APPGs que recebem renda substancial de empresas farmacêuticas. A influência política exercida pela indústria farmacêutica precisa ser examinada holisticamente, com ênfase nas relações entre atores que potencialmente desempenham parte em suas campanhas de lobby. Também sugerimos maneiras de melhorar a transparência dos relatórios de pagamento por APPGs e empresas farmacêuticas.

    Neste aspecto, convém recordar mais uma vez que o Dr. Filipe Froes tem uma elevadíssima ligação à indústria farmacêutica, não apenas amplamente comprovada pelo PÁGINA UM, mas também por outros órgãos de comunicação social como o Expresso (FICHEIRO 5).

    E também notar, e como o Dr. Filipe Froes é particularmente activo nas redes sociais, que a existência de conflitos de interesse escondidos no âmbito das farmacêuticas não é exclusivo de Portugal, como se pode observar na leitura do seguinte artigo na revista científica BMJ Open, intitulado “Conflict of interest and funding in health communication on social media: a systematic review” (FICHEIRO 6).

    Ponto quinto

    Mais: não é sequer aceitável que a ERC, como entidade reguladora dos media, mas também protectora da liberdade de informação (e, em consequência, da protecção dos jornalistas), queira contribuir para o silenciamento do jornalismo de investigação, que alerta e que questiona, e que participe no “jogo” dos lobistas das farmacêuticas, como tem sido bem patente o “trabalho” do Dr. Filipe Froes.

    Aliás, sabendo-se que os meus artigos usam sempre fontes oficiais, sem erros nem deturpação, e que as “únicas provas” das supostas falhas são as queixas e opiniões do Dr. Filipe Froes e uma enviesada análise de um(a) funcionário(a) da ERC que não deterá conhecimentos científicos sobre a matéria, convém relembrar alguns recentes artigos também (e sempre) em revistas científicas sobre o comportamento das farmacêuticas no recente período pandémico.

    1 – Deruelle F. The pharmaceutical industry is dangerous to health. Further proof with COVID-19. Surg Neurol Int. 2022 Oct 21;13:475. doi: 10.25259/SNI_377_2022. PMID: 36324959; PMCID: PMC9610448. (FICHEIRO 7)

    Publicado em 2022 na revista científica Surgical Neurology International, convém, sem prejuízo de ser analisado o conteúdo original integral para efeitos da minha defesa, colocar a tradução do sumário completo:

    Contexto: O período da COVID-19 destaca um enorme problema que vem se desenvolvendo há décadas, o controle da ciência pela indústria. Na década de 1950, a indústria do tabaco deu o exemplo, que a indústria farmacêutica seguiu. Desde então, esta última tem sido regularmente condenada por marketing ilegal, deturpação de resultados experimentais, dissimulação de informações sobre os perigos das drogas e considerada criminosa. Portanto, este estudo foi conduzido para mostrar que o conhecimento é poderosamente manipulado por corporações prejudiciais, cujos objetivos são: 1/financeiros; 2/suprimir nossa capacidade de fazer escolhas para adquirir o controle global da saúde pública.

    Métodos: Técnicas da indústria farmacêutica para manipular a ciência e os relatórios sobre a COVID-19 foram revisadas. Várias fontes de documentos oficiais foram usadas: PubMed; recursos do National Institutes of Health; empresas farmacêuticas; documentos de políticas; jornais e agências de notícias nacionais; e livros de profissionais proeminentes (científicos e jurídicos). Alguns estudos não foram publicados em periódicos revisados ​​por pares; no entanto, eles foram conduzidos por cientistas respeitáveis ​​em seus respectivos campos.

    Resultados: Desde o início da COVID-19, podemos elencar os seguintes métodos de manipulação de informação que têm sido utilizados: ensaios clínicos falsificados e dados inacessíveis; estudos falsos ou com conflito de interesses; ocultação dos efeitos secundários a curto prazo das vacinas e total falta de conhecimento dos efeitos a longo prazo da vacinação contra a COVID-19; composição duvidosa das vacinas; métodos de teste inadequados; governos e organizações internacionais sob conflitos de interesse; médicos subornados; a difamação de cientistas renomados; a proibição de todos os tratamentos alternativos eficazes; métodos sociais não científicos e liberticidas; uso governamental de modificação de comportamento e técnicas de engenharia social para impor confinamentos, máscaras e aceitação de vacinas; censura científica por parte dos media.

    Conclusão: Ao apoiar e selecionar apenas um lado da informação científica, ao mesmo tempo em que suprime pontos de vista alternativos, e com conflitos de interesse óbvios revelados por este estudo, governos e os media constantemente desinformam o público. Consequentemente, as leis de vacinação não cientificamente validadas, originárias da ciência médica controlada pela indústria, levaram à adoção de medidas sociais para a suposta proteção do público, mas que se tornaram sérias ameaças à saúde e às liberdades da população.

    Convém, aliás, destacar a nota do editor-chefe emérito desta revista científica, o médico doutorado James I. Ausman (com um h-index de 50 no Scopus), que, estando no corpo do artigo acima referido, se apresenta também em tradução livre, e com o qual se concorda:

    A SNI [Surgical Neuroloy International] se dedica a publicar a verdade. O SNI não possui características pelas quais julga os artigos, excepto por informações baseadas em factos. A pandemia da COVID-19 é marcada por informações conflituantes e confusas para o público. A única solução científica para este problema é ouvir todos os lados da questão, para que uma decisão razoável possa ser tomada. Em vez disso, descobrimos e aprendemos que a prática não foi e não está sendo feita. O vírus é letal como é descrito com altas taxas de mortalidade? Todos deveriam ser vacinados e receber reforço, incluindo crianças pequenas e bebês? As pessoas deveriam usar máscaras e isolar-se socialmente? As vacinas são seguras para uso ou apresentam complicações, entre as quais se destacam os efeitos respiratórios, de coagulação sanguínea e neurológicos? Por que o público não está sendo informado sobre eles? Será que os seus interesses egoístas mais profundos entre as empresas farmacêuticas, os meios de comunicação social e os governos estão a limitar o que o público sabe? O que é a verdade? Fabien Deruelle, um cientista francês, que é um pensador independente, viu alguns factores perturbadores envolvidos nos relatórios sobre a COVID-19. Depois de passar oito meses pesquisando e escrevendo por conta própria para saber das controvérsias em torno do COVID-19, ele concluiu que havia uma enorme quantidade de desinformação sendo contada e espalhada intencionalmente. A ciência estava a ser corrompida por forças burocráticas, governamentais, farmacêuticas, mediáticas e políticas, para que a verdade não fosse dita. A seguir está a sua revisão da literatura sobre as controvérsias do COVID-19. Consequentemente, este cientista independente descobriu factos conhecidos que foram suprimidos e estão surgindo nas páginas do SNI e agora em outras partes do Mundo. As suas observações independentes são o que torna o seu relatório especial. Se você quiser ver minha entrevista com ele sobre sua experiência com a polémica do COVID-19, clique aqui: https://vimeo.com/755630905. Você decide.

    Ponto sexto

    Recuando à fonte de informação básica – e que são factos – dos meus artigos, convém repetir que os registos que constam na EudraVigilance são apenas uma síntese da informação recebida pela EMA e por si validada. É falso que os registos contenham casos sem qualquer relação mínima com o fármaco. Por exemplo, e para ser absurdo, se um doente de 80 anos que tomava 10 medicamentos, acaba por morrer de morte natural, não vão ser registadas na EudraVigilance 10 suspeitas aos tais fármacos. Se um doente com problemas cardíacos que tomava um medicamento para a sua condição cardiovascular acabar por morrer de enfarte, o medicamento que lhe prolongava a vida não vai ficar imediatamente sob suspeita. Excepto, claro, se um médico, e posteriormente o regulador, validarem a suspeita.

    Ponto sétimo

    Convém também referir que os dois artigos em causa se enquadram num conjunto de abordagens estruturantes com vista ao conhecimento da realidade sobre a pandemia e os seus diversos efeitos. A ERC não pode desconhecer que o PÁGINA UM tem sido o único órgão de comunicação social a requerer informação oficiais, recorrendo tanto à Comissão do Acessos aos Documentos Administrativos (CADA) quer aos Tribunais Administrativos, neste caso para apresentação de intimações. Tem sido claramente as autoridades oficiais que têm mostrado uma constante oposição ao fornecimento de informação, manipulando também dados. É, por isso, absurdo que a ERC queira agora fazer censura e crítica ao rigor (sem sequer ter bases científicas para tal) ao único órgão de comunicação social que pretende aceder a informação oficial detalhada e em bruto.

    Ponto oitavo

    Não menos importante é referir que os dois artigos em causa foram precedidos, por exemplo, de um em particular, que surge citado com a ligação respectiva, intitulado “Sabe quantas mortes na Europa são atribuídas às vacinas contra a covid-19?”, publicado em 13 de Janeiro de 2023 (FICHEIRO 8), onde, de forma didáctica, e apresentando já a quantificação de casos suspeitos de efeitos adversos das vacinas contra a covid-19, se explica como funciona o processo de autorização e de avaliação da segurança dos medicamentos. Não se pode exigir que, em artigos posteriores, se repita sistematicamente esse tipo de análise mais pedagógica.

    Ponto nono

    Não podendo ignorar, nesta fase da defesa, a existência da Deliberação anulada – e lamentando o modus operandi da ERC em não apresentar uma acusação concreta (optando por somente solicitar uma defesa sobre uma acusação abstracta) –, sempre direi que é absurda a acusação de “falta de contraditório” neste caso. Nem sequer se equaciona como um “contraditório” pode representar, neste caso em concreto, qualquer tipo de falta de rigor ou como pode existir um “contraditório” sobre factos, que são, neste caso, os eventos constantes de uma base de dados oficial da EMA, validados por essa entidade oficial.

    A ERC, ou um qualquer membro do Conselho Regulador, pode sempre opinar que um jornalista tem de ouvir opiniões ou comentários sobre factos de uma base de dados, mas se este decidir não o fazer, no princípio da liberdade editorial que sempre detém, não pode depois ser acusado de falta de rigor. A falta de rigor quando se analisa registos oficiais não existe se foram expostos com clareza – e não por não se ter ouvido fulano, por não se ter ouvido sicrano, ou por não se ter ouvido beltrano. A escolha é editorial, pode ser questionável, mas jamais pode uma entidade externa à editoria, ainda mais a ERC, imiscuir-se dessa tarefa ‘tachando’ um artigo com falta de rigor.

    Ponto décimo

    Aliás, é absurdo – e demonstrativo, sim, de preconceito da ERC sobre o meu trabalho e a isenção do PÁGINA UM nas matérias em discussão – o ponto 46 da Deliberação anulada. Com efeito, começa por dizer que a alegada “falta de contraditório tem ainda efeitos ao nível da manutenção de uma conduta de isenção inerente aos deveres da atividade jornalística”. Primeiro, o conceito de isenção em jornalismo é complexo – e mal estará o jornalismo se é um regulador com membros nomeados por partidos políticos a determinar se um jornalista é ou não isento. Um jornalista deve, observando uma realidade, considerá-la ou não com interesse público, atendível a sua isenção, ou seja, a opção em escrever ou não sobre essa matéria deve ser basear-se numa decisão isenta. Ora, se numa base de dados oficial constam registos de milhares de casos fatais associados a um fármaco, seria sim falta de isenção não escrever sobre o assunto. Porém, a ERC decidiu na sua Deliberação um conjunto de disparates ao pior estilo do preconceito, talvez pelo ouvir falar, talvez pela opinião de um médico inundado de conflitos de interesse por estar empresarialmente ligado à indústria farmacêutica, e particularmente das produtoras de vacinas contra a covid-19.

    white and green syringe on white surface

    Ponto décimo primeiro

    Depois, acrescenta a ERC, no mesmo ponto 46, que “desde logo [referindo-se, presume-se, à suposta falta de isenção] porque é percetível para o leitor a posição do órgão de comunicação social acerca do impacto das vacinas contra a COVID-19 no número de ‘mortes súbitas’. Acrescentando ainda que, “por outro lado, porque, mesmo assumindo que há falta de dados, incerteza na sua interpretação, que os números sobre mortes súbitas e muitas opiniões a circular radicam em teorias não fundamentadas cientificamente, o artigo mantém insinuações de inação perante o que seria o efeito das vacinas nas ‘mortes súbitas’ pelos Governos e ‘autoridades de saúde’”.

    Que a ERC se faça entender sobre esta matéria.

    O órgão de comunicação PÁGINA UM apenas toma posições em editoriais, e sempre de forma ponderada e com argumentos. Sobre as vacinas contra a covid-19 publiquei um editorial intitulado “Vacinar idosos e não vacinar jovens: a (mesma) opção lógica com base numa análise comparativa”, onde após apresentar uma análise, concluo: “a vacina pode até ser eficaz e justificar-se em idades mais avançadas, mas um programa vacinal massivo nas populações mais jovens constitui um desperdício de recursos. E também introduz uma incerteza desnecessária” (FICHEIRO 9). Outra posição que tomei, em nome do PÁGINA UM, através de editorial de 15 de Agosto de 2023 (FICHEIRO 10) foi a explicar a razão pela qual não me tinha vacinado, uma vez que, através de confirmações científicas e testes serológicos, se assumir que a imunidade proveniente de uma infecção anterior (e sobretudo grave, que me atingiu em 2021) ser suficientemente protectora. Estes editoriais são apenas dois exemplos.

    Além destas posições, todas as vezes que o PÁGINA UM se debruçou em notícias sobre a covid-19 e particularmente sobre as vacinas, fez com base em informação oficial, incluindo base de dados, ou artigos científicos. Sempre. Sobre os casos fatais descritos nas notícias, é absurdo que a ERC diga que o PÁGINA UM até assume que há falta de dados, incerteza na interpretação e até a circulação de opiniões não fundamentadas, mas depois, porque nos artigos se considera a necessidade de maior transparência e investigação sobre as causas da morte, a ERC faz a obtusa conclusão de que se está a “insinuar”.

    Não se está a insinuar: era (e é) a pura verdade: existe uma falta de empenho e falta de transparência dos Governos quanto aos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19. Aliás, já em Janeiro de 2022, os editores do The BMJ – um dos grupos editoriais de revistas científicas – relatavam, a falta de dados em bruto sobre as vacinas contra a covid-19 (FICHEIRO 11).

    Este não é um problema recente: já em 2011, por exemplo, se criticava a ausência de dados em bruto disponíveis para análise independente, e que só uma minoria dos investigadores compartilhava essa informação (FICHEIRO 12). Aliás, repita-se: o PÁGINA UM é o único órgão de comunicação social – e, talvez por isso, o único que tem preocupado o Dr. Filipe Froes e a tentação censória da ERC – a procurar a abertura das autoridades nacionais no sentido de conhecer as reacções adversas, não para as considerar negativas, mas para que haja (houvesse) informação fidedigna para um consentimento informado. Achar que isto é falta de isenção é perfeitamente inqualificável.

    Ponto décimo segundo

    Mas antes de se analisar se o PÁGINA UM – ou eu – é a única entidade (ou pessoa) que tem manifestado apreensão sobre os efeitos adversos das vacinas, vejamos primeiro se é censurável, como defendeu a ERC na deliberação anulada, que não se faça sempre uma espécie de disclaimer favorável quando se fala em vacinas – repetimos, vacinas, cujo conceito se encontra enraizado.

    Ora, convenhamos que é absurdo (e mesmo anti-científico) aplicar-se uma espécie de obrigatoriedade em destacar os benefícios das vacinas, quaisquer que sejam, como ‘sintoma’ de isenção, quando se quer falar de efeitos adversos. Uma vacina – tal como sucede a qualquer outro fármaco – pressupõe a existência de uma autorização formal perante benefícios evidentes, mas não é uma sacrossanta garantia de segurança imposta de forma dogmática para todo o sempre.

    Aliás, somente no caso de vacinas, existem diversos casos mais ou menos recentes de retirada total ou parcial na Europa e/ ou em outras partes do Mundo por razões de segurança. Exemplos são conhecidos, e reportados tantos nos media como em artigos científicos, como os da vacina Pandemrix fabricada pela GlaxoSmithKline durante a pandemia de gripe suína de 2009-2010 (FICHEIRO 13), a da vacina LYMERrix, fabricada contra a doença de Lyme pela actual GSK (FICHEIRO 14). E podia continuar com mais, mas talvez seja mais interessante remeter a ERC para o relatório de 2020 da Organização Mundial da Saúde relativo ao período 2010-2018 intitulado “Restrictions in use and availability of pharmaceuticals”, onde surgem referidas nove vacinas (FICHEIRO 15).

    Ou, em alternativa, pode a ERC consultar um artigo científico, por sinal de quatro investigadores portugueses, intitulado “Drug Withdrawal Due to Safety: A Review of the Data Supporting Withdrawal Decision”, publicado em 2020 na revista Current Drug Safety (FICHEIRO 16), onde se faz um levantamento generalizado das centenas de fármacos retirados do mercado por diversas razões. Nas conclusões, os autores destacam o seguinte [tradução livre]:

    Muitas reacções adversas a medicamentos são conhecidas apenas após o medicamento entrar no mercado. Quanto maior o número de indivíduos expostos a um determinado medicamento e quanto mais tempo ele estiver no mercado, maior será a informação sobre a segurança desse medicamento. Os resultados obtidos, além de fornecerem uma lista abrangente de medicamentos retirados do mercado por razões de segurança, permitem-nos tirar quatro conclusões importantes. A primeira, referente ao tempo médio até a retirada, é que o tempo médio até a retirada variou de país para país e de região para região. O tempo médio até a retirada que encontramos globalmente foi de 20,3 anos para todos os medicamentos retirados do mercado por razões de segurança. Considerando os medicamentos introduzidos de 1990 a 2000 e de 2000 a 2010 (n = 40, tabela 5), o tempo médio de retirada foi muito menor (4,6 ± 3,6 e 3,3 ± 2,8, respectivamente). Diferentes políticas de medicamentos podem ter resultados diferentes no acesso aos medicamentos. Este artigo também mostra que, mesmo nos países mais desenvolvidos, nomeadamente aqueles na Europa e nos Estados Unidos da América, há alguma variação nas decisões sobre manter ou retirar um medicamento do mercado por razões de segurança. No entanto, esses dados apresentam como viés o curto período para documentar efeitos colaterais importantes e infrequentes, e o tempo de mercado é um risco cumulativo para a retirada do mercado. O tempo médio até a retirada também foi menor na década de 2000-2010 quando comparado com a década de 1990-2000, resultados que são consistentes com as descobertas de Onakpoya et al.. Este tempo médio é diferente dos achados anteriores de Fung et al. e Lasser et al., mas essas diferenças são principalmente metodológicas. A segunda descoberta importante está relacionada ao tempo médio até a retirada considerando a fonte de informação. Os ensaios clínicos foram a fonte de informação com o menor tempo médio até a retirada do medicamento (14 anos em comparação com 19 anos para relatórios espontâneos ou relatórios clínicos; isso foi verdade para 16% dos medicamentos retirados). A terceira descoberta refere-se ao tipo de reacções adversas medicamentosas (RAM). As três principais RAM que levaram à retirada do medicamento do mercado foram hepatotoxicidade (em primeiro lugar), seguidas por distúrbios cardiovasculares e distúrbios de hipersensibilidade. Esses resultados são consistentes com achados anteriores encontrados na literatura. Finalmente, uma quarta conclusão importante está relacionada à fonte de informação na qual a retirada é sustentada. A principal fonte de informação que leva à retirada do medicamento do mercado ainda são relatórios espontâneos ou relatórios clínicos (individuais ou em série)”.

    Muitos outros estudos seguem esta linha, mas existe um que merece reflexão (e deve ser considerado pela ERC na deliberação) – e que justifica o papel activo e atento da imprensa. Trata-se do artigo científico, publicado na revista BMC Medicine em 2016, intitulado “Post-marketing withdrawal of 462 medicinal products because of adverse drug reactions: a systematic review of the world literature” (FICHEIRO 17). Analisando todos os produtos medicinais retirados devidos a reacções adversas, os autores referem o seguinte:

    A subnotificação de reações adversas a medicamentos pode causar atrasos na tomada de decisões para a retirada de medicamentos. Há evidências de que os clínicos relatam reações adversas a medicamentos selectivamente, e os autores de uma revisão de admissões hospitalares devido a reações adversas a medicamentos concluíram que os médicos raramente relatam tais eventos quando ocorrem. A baixa taxa de notificação entre os profissionais de saúde pode ser devido ao desconhecimento de como usar os sistemas de notificação espontânea, conflitos de interesse, esquecimento, falta de tempo e incerteza sobre as relações causais entre medicamentos e eventos adversos. Medidas proactivas para incentivar os médicos a relatar suspeitas de reações adversas a medicamentos têm sido sugeridas. De facto, a provisão de incentivos económicos e/ou atividades educacionais melhora a notificação de reacções adversas a medicamentos entre clínicos hospitalares. Os pacientes também tendem a subnotificar suspeitas de reações adversas a medicamentos, e o empoderamento dos pacientes tem sido defendido”.

    Sugere-se ainda a análise dos seguintes artigos científicos sobre esta matéria da segurança dos medicamentos, como meros exemplos:

    1 – McNaughton R, Huet G, Shakir S. An investigation into drug products withdrawn from the EU market between 2002 and 2011 for safety reasons and the evidence used to support the decision-making. BMJ Open. 2014 Jan 15;4(1):e004221. doi: 10.1136/bmjopen-2013-004221. PMID: 24435895; PMCID: PMC3902466. (FICHEIRO 18)

    2 – Onakpoya IJ, Heneghan CJ, Aronson JK. Delays in the post-marketing withdrawal of drugs to which deaths have been attributed: a systematic investigation and analysis. BMC Med. 2015 Feb 5;13:26. doi: 10.1186/s12916-014-0262-7. PMID: 25651859; PMCID: PMC4318389. (FICHEIRO 19)

    Ponto décimo terceiro

    Sobre as sacrossantas garantias das vacinas contra a covid-19 aditadas pelo queixoso, Dr. Filipe Froes, apresentando um único artigo científico – e, na verdade, existem largas dezenas que seguem a mesma linha, começando a haver outros que apontam reacções adversas de relevância –, talvez fosse adequado a ERC ter em consideração como se processam as autorizações e consequentes avaliações dos fármacos, lendo o artigo científico publicado em 2023 na revista científica Pharmaceutical Chemistry Journal intitulado “Post-Marketing Drug Withdrawals: A Review” (FICHEIRO 20).

    Neste artigo científico destacam-se os aspectos críticos da eficácia e seguranças dos fármacos, também do ponto de vista do impacte financeiros das farmacêuticas. E salienta-se que “relatos de casos individuais ou séries de casos, estudos observacionais, comparações aleatórias ou revisões sistemáticas podem levar à retirada pós-comercialização de um produto farmacêutico devido a mortes relacionadas ao medicamento. A retirada de produtos do mercado devido a mortes pode ser controversa, especialmente quando não existe uma ligação directa entre o consumo de fármacos e a morte”. Acrescenta-se ainda que “o desenvolvimento de medicamentos é um processo que leva de 12 a 15 anos, com muitas falhas e muita incerteza. Pode custar mais de US$ 1 mil milhão desde o conceito inicial até o lançamento de um produto acabado”, salientando-se que “como apenas cerca de 1.500 pessoas são expostas a um produto farmacêutico antes de ele ser comercializado, nada se sabe sobre a sua segurança no uso clínico. Como às vezes é necessário julgamento clínico para detecção e diagnóstico, uma avaliação de segurança de medicamentos deve ser considerada parte integrante da prática clínica diária”.

    Ora, tendo em consideração as características das vacinas contra a covid-19, a celeridade da sua aprovação e a sua massiva administração, estranho é a fraca apetência da generalidade da imprensa em indagar e investigar as questões da segurança a curto, médio e longo prazos, ainda mais quando existem a nível internacional diversas bases de dados sobre reacções adversas, como a EudraVigilance, gerida pela EMA.

    Ponto décimo quarto

    Por outro lado, tal como eu – para os artigos do PÁGINA UM –, também investigadores científicos usam geralmente os dados da EudraVigilance para artigos científicos, uma vez que é considerada uma base de dados com informação fiável. Somente especificamente para as vacinas contra a covid-19 – será bom recordar que a EudraVigilance regista as reacções adversas de algumas centenas de fármacos –, apresento os seguintes exemplos:

    1 – Romantowski J, Nazar W, Bojahr K, Popiołek I, Niedoszytko M. Analysis of Allergy and Hypersensitivity Reactions to COVID-19 Vaccines According to the EudraVigilance Database. Life. 2024; 14(6):715. https://doi.org/10.3390/life14060715 (FICHEIRO 21)

    2 – Gordillo-Marañón, M., Szmigiel, A., Yalmanová, V. et al. COVID-19 Vaccines and Heavy Menstrual Bleeding: The Impact of Media Attention on Reporting to EudraVigilance. Drug Saf (2024). https://doi.org/10.1007/s40264-024-01426-4 (FICHEIRO 22)

    3 – Pinto Oliveira C, Ferreira Azevedo S, Vilafanha C, Prata AR, Barcelos A. Polymyalgia Rheumatica After COVID-19 Vaccination: Data from the EudraVigilance Database. Acta Med Port [Internet]. 2024 Apr. 12 [cited 2024 Jul. 1];37(5):396-7. (FICHEIRO 23)

    4 – Rodríguez-Ferreras A, Maray I, Coya-Fernández C, et al. Kikuchi-Fujimoto Disease and COVID-19 vaccination: pharmacovigilance approach. European Annals of Allergy and Clinical Immunology. 2023 Nov;55(6):278-282. DOI: 10.23822/eurannaci.1764-1489.273. PMID: 36458479. (FICHEIRO 24)

    5 – Juan-Manuel Morón-Ocaña, Ana-Isabel Lorente-Lavirgen, Isabel-María Coronel-Pérez, María-Luisa Martínez-Barranca. Lipschutz’s vulvar ulcer in an adolescent after Pifzer COVID-19 vaccine. Anais Brasileiros de Dermatologia, Volume 99, Issue 1, 2024, Pages 125-126, ISSN 0365-0596, https://doi.org/10.1016/j.abd.2023.03.003. (FICHEIRO 25)

    Estes são apenas um curto número de exemplos de artigos científicos seleccionados em publicações do presente ano. E, já agora, destacam efeitos adversos das vacinas contra a covid-19, o que nega, desde já, a propalada (pelo queixoso) segurança das vacinas.

    Se a Ciência relata (e cada vez mais) casos anedóticos (espero que a ERC saiba o significado deste termo) e estudos sobre diversos efeitos adversos das vacinas, o que acha a ERC que um jornalista deve fazer? Silenciar-se? Permitir que um queixoso ligado à indústria farmacêutica o possa mandar calar? Permitir, mesmo que por hipótese, que o regulador dos media, como é a ERC, coloque em causa o seu rigor para, destarte, difamar a sua credibilidade perante terceiros?

    Ponto décimo quinto

    Admite-se, até pelas razões apontadas no artigo científico apresentado no Ficheiro 7, que colocar dúvidas sobre a segurança das vacinas contra a covid-19 foi um tabu durante a pandemia, politica e mediaticamente falando. Mas isso é passado – e convém que a ERC acorde para a realidade.

    Hoje, na comunidade científica, investiga-se abertamente, sem tabus e sem constrangimentos, os efeitos adversos das vacinas contra a covid-19, tal como se faz (ou deve fazer) com todos os outros fármacos. E sem necessidade de os investigadores fazerem um disclaimer de que as vacinas terão salvado milhões de vida para pedir a seguir permissão para abordar reacções adversas.

    Por exemplo, neste artigo científico intitulado “Cardiovascular complications of COVID-19 vaccines: A review of case-report and case-series studies”, publicado em Maio-Junho de 2023 na revista científica Heart & Lung, vai-se logo ‘ao osso’, ou seja, ao tema em causa: as complicações cardiovasculares das vacinas contra a covid-19. Sem complexos, apenas com Ciência. (FICHEIRO 26)

    No passado mês de Maio, na revista científica BMJ Public Health, intitulado “Excess mortality across countries in the Western World since the COVID-19 pandemic:’Our World in Data’estimates of January 2020 to December 2022” (FICHEIRO 27) mostra-se também à saciedade a urgência de se estudar sem complexos as causas para o excesso de mortalidade no triénio 2020-2023, colocando ao mesmo nível de factores relevantes (a determinar o peso) a infecção pelo SARS-CoV-2, os impactes das restrições e o programa vacinal. Bem sei que estes artigos científicos são muito recentes, e as notícias alvo das queixas são de 2023, mas sob mim pende uma acusação de falta de rigor apenas por, sem ‘endeusar’ as vacinas, ter apelado a mais investigação e transparência e por ter usado dados oficiais das reacções adversas (o EudraVigilance), que é commumente usado em investigações científicas, e usado também pela EMA em decisões de eventual suspensão total ou parcial de fármacos.

    Para se ter em consideração aquilo que este último estudo aborda, cito uma parte da introdução, em tradução livre:

    Embora as vacinas contra a COVID-19 tenham sido fornecidas para proteger os civis do sofrimento causado pela morbidade e mortalidade pelo vírus COVID-19, eventos adversos suspeitos também foram documentados. A análise secundária dos ensaios clínicos randomizados de fase III, controlados por placebo, das vacinas de mRNA contra a COVID-19 mostrou que o ensaio da Pfizer teve um risco 36% maior de eventos adversos graves no grupo vacinado. A diferença de risco foi de 18,0 por 10.000 vacinados (IC 95% 1,2 a 34,9) e a razão de risco foi de 1,36 (IC 95% 1,02 a 1,83). O ensaio da Moderna teve um risco 6% maior de eventos adversos graves entre os receptores da vacina. A diferença de risco foi de 7,1 por 10.000 vacinados (IC 95% −23,2 a 37,4) e a razão de risco foi de 1,06 (IC 95% 0,84 a 1,33). Por definição, esses eventos adversos graves levam a morte, são ameaçadores à vida, requerem hospitalização (ou prolongamento dela), causam incapacidade/persistente/significativa, preocupam uma anomalia congênita/defeito de nascença ou incluem um evento medicamente importante de acordo com o julgamento médico. Os autores da análise secundária apontam que a maioria desses eventos adversos graves dizem respeito a condições clínicas comuns, por exemplo, acidente vascular cerebral isquémico, síndrome coronariana aguda e hemorragia cerebral. Essas condições clínicas comuns dificultam a suspeita clínica e, consequentemente, sua detecção como reações adversas à vacina. Tanto profissionais de saúde quanto cidadãos relataram lesões graves e mortes após a vacinação a vários bancos de dados oficiais no mundo ocidental, como o VAERS nos EUA, o EudraVigilance na União Europeia e o Yellow Card Scheme no Reino Unido. Um estudo comparando os relatos de eventos adversos ao VAERS e EudraVigilance após vacinas de mRNA contra a COVID-19 versus vacinas contra a gripe observou um maior risco de reações adversas graves para as vacinas contra a COVID-19. Essas reações incluíam doenças cardiovasculares, coagulação, hemorragias, eventos gastrointestinais e tromboses. Numerosos estudos relataram que a vacinação contra a COVID-19 pode induzir miocardite, pericardite e doenças autoimunes. Exames post mortem também atribuíram miocardite, encefalite, trombocitopenia trombótica imune, hemorragia intracraniana e trombose disseminada às vacinações contra a COVID-19. A Food and Drug Administration observou em Julho de 2021 que os seguintes eventos adversos potencialmente graves das vacinas da Pfizer merecem monitoramento e investigação adicionais: embolia pulmonar, infarto agudo do miocárdio, trombocitopenia imune e coagulação intravascular disseminada. A compreensão das taxas de mortalidade excessiva nos anos seguintes à declaração da pandemia pela OMS é crucial para os líderes governamentais e formuladores de políticas avaliarem suas políticas de crise sanitária. Este estudo, portanto, explora a mortalidade excessiva no mundo ocidental de 1 de Janeiro de 2020 até 31 de Dezembro de 2022.

    Ponto décimo sexto

    Sobre a opinião de ser fundamental, como uma espécie de contraditório, que um jornalista revele sempre os benefícios da vacina contra a covid-19 quando aborda as reacções adversas, se assim tivesse de ser, então:

    1. quando um jornal abordar o alcoolismo, terá de destacar previamente os benefícios de um consumo moderado e também da produção agrícola e as vantagens para a economia do país.
    2. se escrever sobre alterações climáticas, não pode esquecer de relevar a importância económica e de comodidade no uso de combustíveis fósseis.
    3. se falar de um político corrupto, tem de assinalar que a generalidade dos políticos são idóneos e desempenham funções de elevado relevo para a sociedade.
    4. se falar sobre desastres rodoviários, tem de salientar as grandes vantagens na mobilidade e no conforto das pessoas.
    5. Etc.

    Imaginemos o mundo do jornalismo com este tipo de disclaimers que a ERC parece exigir só para as vacinas contra a covid-19.

    woman riding on vehicle putting her head and right arm outside the window while travelling the road

    Ponto décimo sétimo

    Embora a questão central – visto que a ERC aparenta não negar que os dados que usei da EudraVigilance estão correctos –, acabo por listar, para minha defesa, um vasto conjunto de artigos científicos, para além dos já atrás referidos – que mostram, em alguns casos, que as vacinas contra a covid-19 apresentam alguns problemas de segurança, e que em outros se sugere a contínua investigação. Se apesar disso, a ERC insistir em concordar com o Dr. Filipe Froes, tem de o assumir por cima de todas as referências a estudos científicos que aqui exponho e envio em anexo. São 20, mas poderiam ser muitos mais. Pede-se a compreensão por não se apresentarem estas referências bibliográficas de forma uniforme.

    1 – Bilotta, C.; Perrone, G.; Adelfio, V.; Spatola, G.F.; Uzzo, M.L.; Argo, A.; Zerbo, S. COVID-19 Vaccine-Related Thrombosis: A Systematic Review and Exploratory Analysis. Front Immunol 2021, 12, 729251. (FICHEIRO 28)

    2 – Garg, R.K.; Paliwal, V.K. Spectrum of neurological complications following COVID-19 vaccination. Neurological Sciences 2021, 43, 3–40. (FICHEIRO 29)

    3 – Oldenburg, J.; Klamroth, R.; Langer, F.; Albisetti, M.; von Auer, C.; Ay, C.; Korte, W.; Scharf, R.E.; Pötzsch, B.; Greinacher, A. Diagnosis and Management of Vaccine-Related Thrombosis following AstraZeneca COVID-19 Vaccination: Guidance Statement from the GTH. Hämostaseologie 2021, 41, 184–189. (FICHEIRO 30)

    4 – Sharifian-Dorche M, Bahmanyar M, Sharifian-Dorche A, Mohammadi P, Nomovi M, Mowla A. Vaccine-induced immune thrombotic thrombocytopenia and cerebral venous sinus thrombosis post COVID-19 vaccination; a systematic review. J Neurol Sci. 2021 Sep 15;428:117607. doi: 10.1016/j.jns.2021.117607. Epub 2021 Aug 3. PMID: 34365148; PMCID: PMC8330139. (FICHEIRO 31)

    5 – Lane S, Yeomans A, Shakir S. Reports of myocarditis and pericarditis following mRNA COVID-19 vaccination: a systematic review of spontaneously reported data from the UK, Europe and the USA and of the scientific literature. BMJ Open 2022;12:e059223. doi: 10.1136/bmjopen-2021-059223 (FICHEIRO 32)

    6 – Alami A, Villeneuve PJ, Farrell PJ, Mattison D, Farhat N, Haddad N, Wilson K, Gravel CA, Crispo JAG, Perez-Lloret S, Krewski D. Myocarditis and Pericarditis Post-mRNA COVID-19 Vaccination: Insights from a Pharmacovigilance Perspective. J Clin Med. 2023 Jul 28;12(15):4971. doi: 10.3390/jcm12154971. PMID: 37568373; PMCID: PMC10419493. (FICHEIRO 33)

    7 – Yasmin F, Najeeb H, Naeem U, Moeed A, Atif AR, Asghar MS, Nimri N, Saleem M, Bandyopadhyay D, Krittanawong C, Fadelallah Eljack MM, Tahir MJ, Waqar F. Adverse events following COVID-19 mRNA vaccines: A systematic review of cardiovascular complication, thrombosis, and thrombocytopenia. Immun Inflamm Dis. 2023 Mar;11(3):e807. doi: 10.1002/iid3.807. PMID: 36988252; PMCID: PMC10022421. (FICHEIRO 34)

    8 – Konishi, N.; Hirai, Y.; Hikota, H.; Miyahara, S.; Fujisawa, A.; Motohashi, H.; Ueda, J.; Inoue, M.; Fukushima, M. Quantifying side effects of COVID-19 vaccines: A PubMed survey of papers on diseases as side effects presented at academic conferences in Japan. Rinsho Hyoka (Clinical Evaluation) 2024, 51. (FICHEIRO 35)

    9 – Parry PI, Lefringhausen A, Turni C, Neil CJ, Cosford R, Hudson NJ, Gillespie J. ‘Spikeopathy’: COVID-19 Spike Protein Is Pathogenic, from Both Virus and Vaccine mRNA. Biomedicines. 2023 Aug 17;11(8):2287. doi: 10.3390/biomedicines11082287. PMID: 37626783; PMCID: PMC10452662. (FICHEIRO 36)

    10 – Polykretis, P., Donzelli, A., Lindsay, J. C., Wiseman, D., Kyriakopoulos, A. M., Mörz, M., … McCullough, P. A. (2023). Autoimmune inflammatory reactions triggered by the COVID-19 genetic vaccines in terminally differentiated tissues. Autoimmunity, 56(1). https://doi.org/10.1080/08916934.2023.2259123 (FICHEIRO 37)

    11 – Brogna C, Cristoni S, Marino G, Montano L, Viduto V, Fabrowski M, Lettieri G, Piscopo M. Detection of recombinant Spike protein in the blood of individuals vaccinated against SARS-CoV-2: Possible molecular mechanisms. Proteomics Clin Appl. 2023 Nov;17(6):e2300048. doi: 10.1002/prca.202300048. Epub 2023 Aug 31. PMID: 37650258. (FICHEIRO 38)

    12 – Chen, Y.; Xu, Z.; Wang, P.; Li, X.M.; Shuai, Z.W.; Ye, D.Q.; Pan, H.F. New-onset autoimmune phenomena post-COVID-19 vaccination. Immunology 2022, 165, 386–401. (FICHEIRO 39)

    13 – Nicolas Hulscher, Paul E. Alexander, Richard Amerling, Heather Gessling, Roger Hodkinson, William Makis, Harvey A. Risch, Mark Trozzi, Peter A. McCullough. A Systematic REVIEW of Autopsy findings in deaths after covid-19 vaccination. Forensic Science International, 2024, 112115, ISSN 0379-0738, https://doi.org/10.1016/j.forsciint.2024.112115. (FICHEIRO 40)

    14 – Joseph Fraiman, Juan Erviti, Mark Jones, Sander Greenland, Patrick Whelan, Robert M. Kaplan, Peter Doshi. Serious adverse events of special interest following mRNA COVID-19 vaccination in randomized trials in adults. Vaccine, Volume 40, Issue 40, 2022, Pages 5798-5805, ISSN 0264-410X, https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2022.08.036. (FICHEIRO 41)

    15 – Hulscher N., Hodkinson R., Makis W., and McCullough P. A. (2024). Autopsy findings in cases of fatal COVID-19 vaccine-induced myocarditis, ESC Heart Failure, doi: https://doi.org/10.1002/ehf2.14680 (FICHEIRO 42)

    16 – Bardosh K, Krug A, Jamrozik E, et al. COVID-19 vaccine boosters for young adults: a risk benefit assessment and ethical analysis of mandate policies at universities. Journal of Medical Ethics 2024;50:126-138. (FICHEIRO 43)

    17 – Pala, Erdal, Mustafa Bayraktar, and Rümeysa Calp. The potential association between herpes zoster and COVID-19 vaccination. Heliyon 10.4 (2024). (FICHEIRO 44)

    18 – Jee Hoon Roh, Inha Jung, Yunsun Suh, Min-Ho Kim. A potential association between COVID-19 vaccination and development of Alzheimer’s disease, QJM: An International Journal of Medicine, 2024;, hcae103, https://doi.org/10.1093/qjmed/hcae103 (FICHEIRO 45)

    19 – Kumar, Ishan, et al. COVID-19 Vaccines: A Radiological Review of the Good, the Bad, and the Ugly. Indian Journal of Radiology and Imaging (2024). (FICHEIRO 46)

    20 – Perez, J., Moret-Chalmin, C., & Montagnier, L. (2023). Emergence of a New Creutzfeldt-Jakob Disease: 26 Cases of the Human Version of Mad-Cow Disease, Days After a COVID-19 Injection. International Journal of Vaccine Theory, Practice, and Research. (FICHEIRO 47)

    Por fim, não deixa de ser relevante referir que nem a própria Agência Europeia do Medicamento, nos seus diversos relatórios anuais, admite a completa segurança das vacinas contra a covid-19, destacando mesmo um aumento inusitado de registos nos anos de 2021 (FICHEIRO 48), 2022 (FICHEIRO 49) e 2023 (FICHEIRO 50). O Pharmacovigilance Risk Assessment Committee tem vindo a abalizar diversos sinais de reacções adversas, embora este seja um processo bastante lento e que, por vezes, e sobretudo nos primeiros anos da entrada de um fármaco no mercado, não incide em afecções consideradas mais graves.

    Os relatórios da EMA devem também ser analisados pela ERC para apurar se, efectivamente, estamos com as vacinas contra a covid-19 perante fármaco completamente seguros, como o queixoso pretende. Na verdade, a queixa do Dr. Filipe Froes tem como desiderato que a ERC – como reguladora dos órgãos de comunicação social e com a capacidade de emitir uma opinião de rigor sobre matérias científicas que claramente não domina – coloque um ‘ferrete’ contra um dos poucos jornalistas portugueses que domina estas matérias, tem capacidade analítica para essa função e, além do mais, não está dependente de financiamentos de empresas farmacêuticas como a esmagadora maioria dos media, como a própria ERC bem sabe – e se não souber terei o prazer de apresentar uma lista de casos.

    Posto isto, requeiro que a ERC se considere incompetente, face à matéria em apreço, a analisar o rigor dos meus artigos, ou se assim se considerar capaz, então que analise, à luz da vasta colecção de artigos científicos que anexo, a pertinência e oportunidade das minhas análises no PÁGINA UM.

    Os membros do Conselho Regulador da ERC têm aqui uma excelente oportunidade de mostrar de que lado da História querem estar quando, com o aumento da transparência e do estudo, se apurar efectivamente a segurança e as vantagens do programa massificado de vacinação sem se ter em consideração os vários princípios da Medicina e a correcta gestão de uma pandemia.

    Informo que, considerando ser esta uma matéria de grande relevância e face também ao esforço de compilação de informação, este documento será facultado aos leitores do PÁGINA UM.

    Pedro Almeida Vieira

    Jornalista (CP 1786)

    Director do PÁGINA UM


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  • Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte II

    Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte II

    (SEGUNDA PARTE)

    [Pode, ou se calhar deve, ler a primeira parte desta crónica AQUI]

    O mundo dos humoristas não anda lá muito católico – isto já para não falar do mundo dos católicos, que anda para poucas brincadeiras. Isso é missa para outra igreja, como se costuma dizer nos Himalaias.

    Nem de propósito, ou a despropósito, o nosso RAP (Ricardo Araújo Pereira) foi ver o Papa, e tentei pesquisar alguma coisa de interesse na Net sobre esta epopeia a Roma.  Nada encontrei de relevante, mas tropecei no óbvio, reparei que qualquer pessoa no planeta virtual tem os seus detractores, e como se trata ainda para mais de alguém famoso, sobretudo através dos típicos comentários, é natural que traga à tona o pecado da inveja, que dizem ser pecado mui português.

    Eu acho que é pecado universal, mas, propositadamente, acho que o humor do RAP nem é pecaminoso nem universal.

    É coiso… Só.

    Mas agora até tem a benção… do Papa.

    Temos então um humorista nada crente, que vai ver o Papa quando o Papa manda, e quase agrada a gregos e a “não sei quem que há-de vir”, como vociferava o José Mário Branco aos “cabrões de vindouros“. Quando disse gregos deveria dizer esquerda (donde ele vem), e direita (donde o Papa deveria vir) era “não sei quem que há-de vir”, mas, e porque os pontos cardeais andam tortos e como duvido que o cómico saiba hoje definir geografias políticas actualizadas e demarcadas, (o que não quer dizer acertadas), já nem se percebe para onde vai o seu humor.

    Estará ele a ficar jesuíta?… como o Papa.

    Continuemos. Em política, a fantasia continua a ser a norma. E nada melhor que o comunismo e os seus ideais de igualdade para nos permitirem pensar diferente. Todos diferentes, todos iguais foi uma frase instalada no território de uma certa juventude nos anos 90, tendo a Benetton sido a marca (verde) associada. Foi um capitalismo até dizer chega, disfarçado de comunismo até dizer basta. Daí não ser difícil agradar a gregos e a “não sei quem que há-de vir”, quando se disputa o jogo da democracia abstracta, do humanismo à-la-carte. Mas o papel do Bobo da Corte já era. O Tempo não anda para brincadeiras.

    Na verdade, é ser bobo da corte estar sempre a dizer que se é Bobo da Corte. Mas como os reis alteraram a morada do palácio, talvez os bobos já nem com GPS se safem. Não faz rir – e já não é uma boa desculpa, uma vez que o RAP se assumiu muitas vezes como tal.

    Caramba: se houvesse Comunismo a sério e já agora, Liberalismo, é que era.

    Ao menos podia-se discutir política nos moldes clássicos, em que dizer barbaridades até podia cair bem, consoante os contextos, como ainda foi possível nos anos 90, e mesmo nos 00 deste século, que pesam muito num tipo de “artistas” nascidos profissionalmente numa época onde se permitia quase tudo no humor. Sinal dos tempos, alguns habituaram-se mal (bem).

    Mas faça-se justiça e traga-se, já agora, também o Herman para as contas desse rosário num Portugal que andava a tentar acertar o passo europeu com Euros e Expos.

    Houve liberdade quando o Ricardo começou a escrever para o Herman. Aprendeu alguma coisa.

    Ao Herman, estranhamente, perdoa-se tudo.

    Gosta-se. Faz parte, não sei explicar. Falava dos seus relógios e dos seus iates, mas não dizia que era comunista. Mesmo não cantando assim tão bem, e tendo o hábito de interromper vezes demais os seus convidados, ainda que muitos nada tivessem para dizer. Hoje não o imaginamos sem o seu piano algures num Music Hall a encarnar o Feiticeiro de Oz.

    Mas outros, não vá o trabalho faltar, ainda têm de andar a pedir desculpa pelo que fizeram e disseram nesses anos loucos de liberdade, coisa que o RAP julgo nunca o fez. Ganha pontos aí.

    O estatuto é realmente uma conquista. Como o fez para sobreviver já não sei, uma vez que a minha especialidade é analisar crustáceos do Curdistão para o Porto Canal.

    A cultura woke que prolifera na atmosfera do poder mediático, fechou certamente os olhos a certos sketches dos Gato Fedorento, até porque, num ou noutro, chegou a fazer de africano. E a parodiar.

    Ainda bem.

    A cultura do cancelamento quase sempre é exagerada, senão mesmo estúpida, e aí percebemos que o Ricardo é ainda Charlie Hebdo.

    Recuemos. Assisti com interesse ao aparecimento do fenómeno Gato Fedorento, momento de explosão de vários humoristas em Portugal, e que se deveu a dois factores: à influência das Produções Fictícias, que praticamente dominavam o mercado de humor com o chefe e dúbio Nuno Artur Silva à frente de um grande elenco, e também ao Levanta-te e Ri da SIC, onde cabia todo o tipo de humoristas, desde os péssimos e brejeiros, até aos mais sofisticados que viam o Seinfeld e sabiam quem era o John Cleese, incluindo o próprio RAP e até o Bruno Nogueira, que era muito jovem dando nesse programa os primeiros passos.

    Ficou conhecido com a piada do senhor do bolo que era o Balsemão, o nosso intocável chairman dos Bilderberg.

    Para quem não souber o que é isso com nome de hotel, pode comprar o livro de Frederico Duarte Carvalho que anda por aí à venda, e talvez se surpreenda e até aprenda alguma coisa sobre o mundo, mesmo que sendo a Wikileaks dos pobres (porque ninguém pode lá entrar) conspira o suficiente para acreditarmos na literatura. Já não é pouco. E o Frederico é bastante bem humorado e faz bem à vida. Aqui no PÁGINA UM é um herói para mim. 

    A boa comédia é uma conspiração, se virmos bem.

    A boa vida é uma conspiração contra ela própria, se ainda virmos melhor.

    Duvido que o RAP tenha lido esse livro. E se o leu não diz a ninguém.

    O Poder existe, e o Poder tem poder e talvez ele conheça a redundância toda-poderosa.

    O Bruno saberá, porque também teve de comer a fatia do bolo que a SIC amassou, mas sempre arriscou muito mais do que o rapaz do kickboxing. Há, apesar de tudo, mais sofisticação no Bruno, mesmo que tenha sido um radical covidiano atentando contra as liberdades individuais, princípio que o humor não deverá abdicar nunca. Tiramos o chapéu ao Rui Sinel de Cordes e à sua incompreendida coragem.

    O morcego não devia ter chamado um figo ao pangolim e os humoristas deviam ficar às vezes sossegadinhos nos seus escritórios a inventar piadas masé. 

    Ainda assim nunca esqueceremos O Último a Sair.

    Avancemos. O RAP é o cómico dos pobres, mesmo se os menos pobres junto com os betos também se riam, mas estamos peranta uma evidência: Portugal dança uma permanente valsa com a pobreza. Ainda assim, sejamos justos, bate aos pontos o Markl: esse é mesmo insosso, ou sonso, e faz parte da maralha tipo Unas, que riem das próprias piadas e pedem desculpa por serem irreverentes, quando ainda por cima nunca o foram.

    Vão ver o Cabaret da Coxa e o enxovalho generalizados aos homossexuais, por exemplo. Outros tenpos.

    Nem ele, nem quase ninguém se mete com o obscuro. E aí reside a pobreza. Lembro-me logo de Lenny Bruce e da sua luta.

    O Poder é tramado e criticar os alvos certos não é para todos, não rende como a Worten. Dá  trabalho e depois ainda gozam connosco.

    E isso percebo e aceito bem; pode até custar caro. A História tem sido pródiga em criar vítimas. É mesmo a doer.

    Também encontro valor em manter o status quo, o problema é que o humor devia ser um desporto diferente num mundo mais sustentado.

    Em humor devíamos jogar hóquei patins sem os patins, e usar o stick para dar outras stickadas.

    Dá trabalho e perde-se trabalho. É tramado. É que o humor tem poder e é estranho tanto desperdício, sobretudo quando há talento.

    Mas Worten sempre.

    O Ricardo luta pelo comunismo na SIC e fez do Chega o seu Vietname.

    Mas, por outro lado, parece evidente que nos canais actuais, com as dividas e agendas do nosso zeitgeist, não seja lógico (ou prudente) gozar com quem controla. Assim, opta-se claramente por gozar com quem baralha. Ou trabalha – já estou baralhado.

    Só em países mais sofisticados se pode exercer essa arte dentro do mainstream. Mas é paradoxal.

    É assim a vida, mas terá sempre a sua poética, esteja o vento para sul ou norte. Ou mesmo a norte de nenhum sul.

    Intróito. Aconselho a ler o Fernando Pessoa e o seu Banqueiro Anarquista para perceber a contradição.  Segundo um grande amigo, Ricardo Escarduça, que já foi e ainda é engenheiro do tempo perdido, o humor é uma pulsão que convida à relação, que lança no descobrimento e faz luzir o cuidado afectuoso do ser humano com o outro, com as coisas e consigo. Une – ou deverá.

    Portanto, RAP está demasiado ocupado a olhar o espelho encontrado no lixo, gosta de gozar com quem fala dos Illuminati por exemplo. É fácil gozar com aquilo que não se vê. E há por aí muitos tarados (chalupas como se banalizou) a precisar de psicotrópicos. Sabemo-lo bem. É fácil demais.

    O elo mais fraco, é mesmo mais fraco. E nas redes, através dos comentários, as marés estão sempre a voltar-se contra os marinheiros.

    E o RAP não é maré. Mas também não é bem marinheiro, nem de água doce. Haverá algum mistério, dê-se ainda o benefício da dúvida ao matulão. A vida tem coisas…

    O Herman gosta demasiado de humor para navegar nas águas turvas cujo fundo não se vê, e  quando vende o peixe, percebemos sempre que é da lota errada. É estranho, mas é assim. O Mr. Watch tem um dom.

    Mas nas redes existem inúmeros canais que fazem outro desenho, até o próprio ex-Gato Fedorento Tiago Dores é um exemplo – e parece bem mais honesto, intelectualmente, do que o kickboxer. E é mesmo cómico nos seus esquiços (sketches).

    Bom, mas mesmo assim, tem de vender a Prozis, mas, enfim, isso na área mais liberal é normal, não se tendo ainda arranjado outra fórmula de subsistência, já que em Portugal é difícil viver dos consumidores quando o produto cultural a consumir é de qualidade acima da média.

    Eu compro Prozis.

    Não compro nada: estava a brincar!

    Continuemos. Ao nosso Ricardo Araújo não lhe falta mais liberalismo – sendo esta uma palavra mal conotada hoje, estupidamente. Na verdade, falta-lhe é liberdade, porque somos capazes de reconhecer no cómico bastante potencial evolutivo. Noutro contexto, se o medo não fosse um dos actores principais, acho que estávamos a falar de alguém mais aberto à linguagem. 

    O medo devora a alma disse o Fassbinder. Para mim, esconde.

    O problema em Portugal éque ninguém puxa por ninguém. É um país pobre de espírito, e o humorista sofre as consequências disso.

    Quando muito, iria parar ao Porta dos Fundos, mas ainda assim, ele é melhor que o franchise brasileiro.

    Não percamos o fio à meada. RAP pouco deve ao HIP-HOP, foi comunista, e talvez ainda o seja, mas gosta de fazer publicidade ao “Capitalismo”. Comprem um telemóvel da Worten, mas dividam-no pelos cinco que vivem aí em casa. Tem é de ser na Worten, certo? Mas se todos puderem comprar um cada um, ainda melhor.

    Mesmo aos imigrantes que o Portugal do Ricardo não sabe acolher, deixando-os na rua, ele vende sem compaixão. No negócio, não há pudor ainda que as marcas vistam bandeiras coloridas.

    Para eles, tudo o que vier à rede é peixe. Mesmo que os filetes, ou os douradito do Capitão Iglo, não tenham sal. É essa a regra instalada. Comprem lá mas é uma máquina de café.

    Portugal, afinal de contas, é a sua propriedade privada. Estranho para quem gosta de dividir. O RAP e alguma esquerda indefinida que todos conhecemos gostam é de dividir o Expresso no Frutalmeidas. Talvez a única coisa que sejam capazes de dividir num mundo que já tresanda a partilha.

    Dividir para reinar – é isso!

    O comunismo afinal é um chalé. O verdadeiro comunismo, uma dádiva.

    Mas não aquele comunismo que matou Eisenstein, ou Meyerhold, passando por Maiakovski. Outro qualquer que um dia apareça, que una em vez de dividir, mas que tenha lido e assimilado Shakespeare.

    O RAP vende tudo o que puder menos a extrema-direita, isso já se percebeu.

    Um dia que tenha de entrevistar por obrigação o líder dos  “feios, porcos e maus”, terá de levar colete à prova de bala. Mas não devia ter medo de reavivar os western spaghetti, dando-lhe cor, crítica e humor. O humor devia existir para lá da política também.

    Podia aproveitar e mostrar-se culto, se o for, claro. Hoje os padrões estão muito baixos.

    Basta dizer Hemingway, e o Jornal de Letras quer logo fazer uma entrevista. Se disseres Simone de Beauvoir ficas logo lá a trabalhar… Sem salário, claro.

    Mas se tiver de acontecer por obrigação alguma entrevista à força, o RAP sairá por cima, certamente, porque jogará mais uma vez em casa.

    Aliás o RAP nunca jogou fora. Nunca esteve para levar goleadas e tanto ele como o líder tipo western spaghetti do twitter jogam no mesmo campeonato, mas em campos diferentes. Visto de um drone a voar alto, são ambos pequenos.

    E são um bocado doidos pelo Benfica. Gritam golo em uníssono.

    Visto de um drone… Da Worten, claro.

    O actor é sem dúvida inteligente para não se dar à humilhação, mas não percebeu que o futuro não está privado de história, e tanto paradoxo à flor da pele um dia rebentará. Os estilhaços cairão provavelmente em cima da festa do Avante. 

    Tal como o Benfica, o cómico é forte com os fracos e fraco com os fortes, disse-me um amigo meu que não brinca em serviço, mas é do Sporting, que há pouco tempo era fraco com os fracos.

    Como actor, RAP não é fantástico, mas usa os clichés certos – de facto, alguns foram inventados por ele e tem alguns trejeitos, mas que são quase sempre os mesmos. Não evoluem.

    Nisto, o Herman é muito mais versátil, soando a verdadeiro na sua artificialidade, no seu exagero. Mas, como a vida, ficou exagerada… Hoje, quase achamos o Herman um artista plástico. Numa época de curadores, talvez lhe saia a sorte grande.

    É inevitável a comparação com o alemão. O pai e tio deles todos.

    E para concluir, ainda que eu não seja especialista (aliás a minha única especialidades são os cannellonis à Lagareiro, confirmada pela TripAdvisor da Brandoa), aceita-se o jogo mediático do humorista, aceita-se os trejeitos em que os gozados são sempre do norte e fazem ‘ch’.

    Aceita-se o pouco ecletismo facial, os tiques na voz e as subidas de volume acompanhadas pelas caretas do costume, o bater na mesa antes de o programa começar tal qual o Jon Stewart faz, a forma como passa de um tema para o outro é pouco menos que catastrófica, e adivinhamos sempre o tom apalhaçado com uma vozinha reconhecível, sendo nestes pormenores que devia aparecer a arte. Também não é fixe o dress code, que colou como imagem de marca. Na verdadem pesa-lhe, não é humoristicamente ergonométrico. Enfim, de uma forma geral, não se devia colar tanto ao Jon Stewart, o papa da maralha do humor, que voltou, entretanto, às lides do infotainment, talvez para chatear o Trump.

    Não fica bem.

    Conclusão: Ricardo, não me conheces, mas por aqui não passa nada. Eu escrevi isto antes do jogo da Eslovénia, mas hoje, dia da publicação, até o Diogo Costa concorda comigo. Eu já te vi: eu é que sou o gajo de Alfama.  

    Ruy Otero é artista media

    Este texto foi inspirado por este aqui da magnífica jornalista Elisabete Tavares.

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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