Categoria: Opinião

  • Gouveia e Melo tem razão. E depois?

    Gouveia e Melo tem razão. E depois?


    Gouveia e Melo tem razão: qualquer militar fora da efectividade de serviço pode concorrer a um cargo político, e ocupá-lo, como qualquer outro cidadão. É assim em democracia. Então por que não largam os media esta questão?

    Se tantos comentadores se informassem antes de debitar, conheceriam as restrições ao exercício de direitos pelos militares estabelecidas na Constituição (art.270º) e na lei (art.25º a art.33º da Lei de Defesa Nacional). E então emitiam opiniões informadas e substantivas, em vez de só martelarem o tema. Claro que Gouveia e Melo pode ser candidato a eleições políticas, se deixar a efectividade de serviço; para quê insistir na questão? A insistência só dá palco mediático ao protocandidato; e assim se vitimiza (as massas “adoram” vítimas) e compensa o autoritarismo que o revela como aspirante a caudilho – algo tão apreciado pela direita sociológica e alguns membros da sua tribo corporativista. Os jornalistas sabem do seu ofício e não são ingénuos: martelar o tema é só um pretexto para manter a notoriedade. É a notoriedade que lhe garante números menos maus nas sondagens, e a ideia da candidatura.

    De notar que até o comandante de um exército está vinculado a um dever de isenção: “Os militares em efectividade de serviço são rigorosamente apartidários e não podem usar a sua arma, o seu posto ou a sua função para qualquer intervenção política, partidária ou sindical, nisto consistindo o seu dever de isenção.” (nº2 do art.27º da LDN, reforçado no art.20º do RDM). Gouveia e Melo violou abundantemente este dever de isenção ao emitir opiniões sobre políticas públicas, até de defesa; basta destacar o debate que lançou sobre a conscrição, ou o excesso de elogios pelos quais o PS (que o colocou nos cargos que lhe deram mediatismo) o acusou de ir longe demais. Gouveia e Melo fala várias vezes como se representasse e comandasse as Forças Armadas, menosprezando o CEMGFA, seu chefe militar, que tem essas competências legais. Além disso, não é humanamente possível estar sempre no palco mediático (e reger cadeiras universitárias) e estar “110% ocupado com a Marinha”. A sua atuação revela bem que o comando da Armada é só (mais) um meio para a sua promoção pessoal – e a par se revela a sua vaidade e o seu messianismo, típicos dos caudilhos.

    Gouveia e Melo tem desproporcionada notoriedade mediática e promove a sua imagem pelo cargo que ocupa, sempre a dizer que não faz política. É óbvio que faz. Mas, sem contenção por cima, e mostrando-se sempre simpático para quem lhe pode ser útil, o Governo tem-no protegido (porquê?), em vez de o advertir publicamente (como fez o seu anterior chefe em 2023) ou de o exonerar com justa causa. Face à passividade dos órgãos de soberania ante flagrantes violações de deveres militares e do seu cargo, Gouveia e Melo tem razões válidas para achar-se invulnerável e impune. E os observadores, em todos os setores dos media, à política à justiça, percebem que a passividade dos órgãos de soberania face aos excessos de um funcionário seu subordinado revela fragilidade e receio. Mas têm receio de quê?

    Diz-se que exonerar Gouveia e Melo, ou não o reconduzir, torna-o mártir, e que a agência de comunicação, formal ou informal, que o promove exploraria esse facto; neste cargo pode ser contido. Errado: a promoção mediática resulta mormente do cargo público, que usa para ter palco formal e permanente nos media; mantê-lo em funções só garante que é ele que decide quando sai. A exoneração extemporânea no comando da Armada não deixam dúvidas que os órgãos de soberania exercem o seu poder sem receio; mas o Governo tem de explicar com objectividade a justa causa para o afastar, para esvaziar o “martírio”.

    Regressando ao ponto inicial, há uma apreensão legítima por trás do formalismo: Gouveia e Melo fora da efectividade de serviço não é um militar num cargo político, formalmente; mas a sua conduta substantiva seria ditada por aquilo que o moldou e foi durante 40 anos, chefe militar – não é um “sinal na testa”, é uma marca indelével na personalidade e na conduta. Desde 1979, Gouveia e Melo nunca foi outra coisa senão militar, sobretudo operacional, e submarinista. Nem formação tem noutras áreas. Como disse o General Loureiro dos Santos: “O grande problema dos militares a partir de certa altura é que não sabem fazer mais nada.”

    A comparação com o General Ramalho Eanes menospreza a diferença de idades (40s-60s) com que se colocou a mudança, o percurso académico e a grande flexibilidade e curiosidade intelectuais do PR eleito em 1976. Alguém consegue imaginar Gouveia e Melo, hoje com mais de 60 anos, a fazer, sem favores, investigação e um doutoramento seja no que for?

    Com a memória das massas sobre o vice-almirante das vacinas a dissipar-se, a “agência de comunicação” vai arranjando pretextos para ele ter frequente palco mediático, nos jornais e nas TVs, como já assinalei. Ele cumpre com gosto: exibe-se e debita slogans para fazerem manchetes. Há décadas que debita slogans; e tem êxito com tantos que preferem a imagem à substância. Por isso, não houve reações públicas à frase “Os chefes militares eram mais do tipo Português Suave”, que prova que rejeita as restrições legais ao exercício de direitos pelos militares, que os anteriores (em geral) respeitaram. Entre os quais estão o General Ramalho Eanes, que elogia, enquanto se refere a ele como indíviduo

    Merecem atenção as mais recentes ações de promoção mediática, duas entrevistas e três artigos de opinião. Na primeira entrevista, cumpriu o débito ritmado de slogans para aplauso das massas. O entrevistador parecia perdido, quiçá a fazer um frete; mas prestou-se a fazer um hino à superficialidade e à frivolidade.

    No primeiro artigo, uma jornalista (ligada ao CDS) usou técnicas subtis para disfarçar que ela também está, pelo menos, a promover a notoriedade de Gouveia e Melo. E também martelou o tema do militar na política. Realço ainda esta “pérola”: “São muitos os que informalmente têm insistido junto de Gouveia e Melo para que arrisque uma candidatura a Belém”. Se é verdade, por que razão não pôs nomes? Dizer só “muitos”, e citar afirmações sem as atribuir, sugere uma ideia diferente do que pode ser a realidade: serão “muitos” só a autora e os que sonham com caudilhos? Se queria excluir esta interpretação, devia ter sido clara, e devia atribuir todas as citações.

    Seguiu-se um artigo do director do Sol, com uma narrativa assente em desejos que tenta passar por factos, pretensamente determinista e sem considerar os pontos negativos deste protocandidato mas notando os dos eventuais demais. Calhou vir logo a seguir o relatório 3/2024 do Tribunal de Contas, que aponta falhas graves em processos de despesas da sua responsabilidade; logo o militar tratou de culpar os subordinados – enquanto reserva sempre para si os méritos quando as coisas correm bem. A desresponsabilização não é novidade. Mas onde está o exemplo de integridade, que alguns só pelas aparências lhe atribuem?

    Veio a seguir uma entrevista na RTP. Parecia aquelas conversas entre um funcionário de um clube e o presidente desse clube para a televisão do clube. O entrevistador martelou o tema dos militares na política; e omitiu tudo o que pudesse prejudicar a imagem do entrevistado.

    Por fim, destaco um artigo de opinião, que comentou esta entrevista. É patente a satisfação da autora com a entrevista e a candidatura presidencial. Como todos os anteriores, e outros, sustenta tudo em sondagens. Mas o número de contactos para obter uma resposta é crucial; hoje, longe das eleições, as sondagens representam quase só os ativistas e os que aceitam participar, uma fração cada vez menos significativa da população. Por isso, a notoriedade é decisiva: falar nele evita que a imagem nas massas se dissipe, e desapareça das sondagens, sobretudo face aos “pesos pesados” com um discurso alargado e profundo.

    Nas referidas peças mediáticas vem a ideia de congregar votos à esquerda, o que merece uma gargalhada depois do Caso Mondego, no qual Gouveia e Melo violou os direitos de todos os membros da guarnição do navio perante todo o país e não só.

    Mas o mais importante das referidas peças mediáticas é que nada dizem de substantivo, e ainda menos de negativo, sobre o protocandidato. Nada dizem sobre como alguém famoso por distribuir injeções e sem experiência política pode exercer bem o cargo mais político e menos executivo do regime. Nada dizem sobre o seu restante passado. Nada dizem sobre as virtudes e defeitos de Gouveia e Melo em geral, ou para o cargo de PR. Nada dizem sobre o seu programa. Nada dizem que justifique o voto numa figura com traços messiânicos e autoritários, e falhas graves na gestão pública. Nada informam; nada tentam esclarecer; nada escrutinam; nada acrescentam de substantivo. Parece que acham que se vota com base em slogans feitos manchetes, insistentemente debitadas pelos media. Assim como um cosmético…

    Enfim, são hinos à superficialidade e à frivolidade; não são peças de informação nem de comentário: são peças de propaganda. Têm todo o direito de fazer propaganda por quem quiserem; mas então assumam essa agenda. Em suma, o tema dos militares na política é irrelevante. A questão substantiva é: este militar está a fazer política e campanha política no ativo, violando os deveres militares; os órgãos de soberania fazem de conta que nada se passa; este militar não tem as virtudes que os media lhe atribuem, nem está isento de graves condutas reprováveis no seu passado, apesar de a maioria dos media as evitarem; e este militar é um aspirante a caudilho. Já é tempo de alguém o dizer: Gouveia e Melo não serve para Presidente da República

    Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas


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  • Sindicato dos Jornalistas: o novo incendiário que queima o Jornalismo

    Sindicato dos Jornalistas: o novo incendiário que queima o Jornalismo


    Alterações Mediáticas, o podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No sétimo episódio, analisa-se o estranho fenómeno que levou o Sindicato dos Jornalistas a fazer uma parceria com a farmacêutica Roche em bolsas a atribuir a jornalistas para fazerem trabalhos jornalísticos sobre Saúde. Pior do que isso, é a composição do júri que vai decidir a quem atribuir as bolsas.

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  • Protestantismo: a desgraça que (ainda hoje) se abate sobre nós

    Protestantismo: a desgraça que (ainda hoje) se abate sobre nós


    Uma das maiores quimeras com as quais a Humanidade vive há séculos é a noção de que o Estado moderno foi erigido sobre os alicerces do famigerado Contrato Social. Os autores desta ideia totalmente disparatada, encontraram voz nos escritos de John Locke – iniciador do liberalismo clássico – e de Thomas Hobbes.

    O primeiro, um paladino do Parlamento, defendia uma monarquia limitada pelo sagrado consentimento dos governados, enquanto o segundo, Thomas Hobbes, fervoroso adepto de Carlos II e apologista da monarquia absolutista, pregava que o poder deveria repousar, inabalável, nas mãos de um soberano vigoroso, sob a justificação nobre de evitar a anarquia!

    Ambos partiram da premissa, cuja validade é, no mínimo, questionável, de que os homens existiram, outrora, num estado primitivo e solitário, anterior ao advento do convívio social. John Locke, com uma veia poética e romântica, própria dos sonhadores, pintava esse “estado de natureza” como uma utopia de liberdade absoluta e igualdade inata, onde cada indivíduo desfrutava do direito inalienável de usar a sua razão – supostamente infalível – para governar a sua vida segundo os seus mais íntimos desejos, sem se curvar ao arbítrio de outrem. Resta apenas o enigma sobre as razões da humanidade abandonar esse paraíso terreno!

    Thomas Hobbes (1588-1679). D.R. ©National Trust Images

    Por sua vez, Thomas Hobbes, com uma visão algo mais sombria, retratava o estado de natureza como um cenário de “guerra de todos contra todos”. Nessa condição, não havia qualquer autoridade comum ou leis para domesticar os ímpetos dos indivíduos, que agiam movidos pelos seus interesses e instintos mais primários. O resultado? Um espectáculo de carnificina incessante pela sobrevivência, onde os seres humanos se engalfinhavam por recursos escassos, conduzidos por uma lógica de violência, desconfiança mútua, egoísmo e agressão constante – quadro que nos leva a questionar como a humanidade sobreviveu a tal inferno!

    E qual seria, então, a panaceia apontada por ambos para curar os males da condição humana? O tão celebrado contrato social. Para Locke, os cidadãos deveriam consentir em delegar a sua soberania a um governo que se legitimaria pelo consentimento dos governados – a democracia! No entanto, manteriam o inalienável direito de resistir a essa autoridade e substituí-la caso se tornasse tirânica ou ousasse violar os seus direitos naturais – como a vida, a liberdade e a propriedade. Parece que, ainda que decidissem abandonar o paraíso da liberdade absoluta, poderiam, em última instância, sempre voltar!

    Já Hobbes, com o seu pessimismo característico, argumentava que os seres humanos, tomados pelo pavor de uma morte violenta e movidos pelo desejo de uma existência mais segura e ordenada – afinal, a sua descrição do inferno não era propriamente atraente –, concordaram em assinar um contrato social! Este contrato, naturalmente, implicaria a criação de um governo ou soberano com autoridade absoluta, um “Leviatã”, capaz de impor a paz e a segurança, regulando o comportamento dos indivíduos e protegendo-os da sua própria natureza violenta e competitiva – eis a justificação do Estado moderno, aquele ente magnânimo que nos protege de nós mesmos e de todos os nossos demónios internos!

    Ambos, é claro, esqueceram-se de observar a realidade que os circundava – como bons protestantes, acreditavam que a razão que brotava das suas cabeças era ilimitada, dotada de uma infalibilidade divina. Ignoraram que as relações humanas, na sua essência, são voluntárias e mutuamente benéficas.

    O surgimento da família, por exemplo, não passou de um acto de amor entre um homem e uma mulher, sendo o primeiro, por um capricho da natureza, fisicamente mais forte. Em vez de a mulher dedicar-se exclusivamente ao cuidado dos filhos do macho alfa, o homem, num gesto de altruísmo, passou a assumir as despesas do lar e a proteger tanto a esposa quanto as crianças – uma relação de benefício mútuo.

    Em todas as relações humanas, há senhores e servos, independentes e dependentes. O trabalhador deseja associar-se a um empresário de sucesso para conseguir salários melhores; o paciente quer ser atendido por um médico competente; o aluno, por sua vez, aspira a ser ensinado por um bom professor; o soldado quer lutar ao lado de um grande general.

    Os fracos sempre procuram beneficiar-se de uma aliança com os mais fortes. Após a queda do Império Romano, por exemplo, qual o camponês no seu perfeito juízo preferiria aliar-se a um líder militar fraco? Naturalmente, a resposta é óbvia: ao mais forte! As relações humanas, afinal, existem para o benefício mútuo das partes envolvidas.

    Deus agraciou-nos com uma natureza e meios diversos: uns altos, outros fortes; uns brilhantes e sagazes, outros apenas atléticos. A ideia de que somos todos iguais é uma fantasia pueril, uma quimera digna de contos de fadas. A realidade é mais crua: quanto maior o número de dependentes, maior o sucesso de um indivíduo. Se um senhor feudal, por exemplo, consegue criar condições para que muitos se agreguem, é evidente que conquistou o direito de administrar a justiça nos seus domínios (lei privada). Afinal, o poder emana da propriedade privada. Se esta for mal gerida, se a justiça for negligenciada, se a segurança for um luxo inacessível, nada mais natural do que os dependentes do senhor feudal baterem em retirada.

    O aumento da propriedade privada, portanto, é o indiscutível selo de qualidade das virtudes de um indivíduo. Príncipes, senhores feudais, ou mesmo Repúblicas, como Veneza ou Florença – associações de homens responsáveis por governar – nada mais eram do que formações naturais nas quais os fracos se agrupavam aos fortes na procura de benefícios mútuos. Em suma, o poder reside na habilidade de atrair e reter seguidores, onde a autoridade emerge como um direito nato, e não como um privilégio fabricado; algo tão natural quanto a gravidade, e não uma invenção artificial dos homens.

    grayscale photo of boats near dock

    Do mesmo modo, a Igreja Católica tinha e tem a autoridade inquestionável de interpretar as escrituras. Afinal, foi Cristo, com o auxílio dos seus discípulos, quem a fundou, estabelecendo igrejas e reunindo os fiéis; a sua autoridade é, portanto, auto-evidente e irrevogável. Não foram os fiéis que, num lampejo democrático, decidiram delegar aos seus representantes o poder de eleger bispos e Papas.

    No entanto, como em todas as relações humanas, há sempre o risco de abuso por parte do mais forte, que, assim, deverá estar submetido à lei natural: não pode agredir, não pode coagir, não pode assassinar, não pode invadir a privacidade do outro, não pode impedir a liberdade de movimentação e não pode roubar. Durante a Idade Média, esse poder espiritual e de controlo de abusos foi desempenhado pela Igreja Católica, que, entre outras coisas, tinha a prerrogativa de depor tiranos. Por outro lado, existia e existe o direito à resistência, em que alguém insatisfeito pode procurar outra pessoa para obter, por exemplo, segurança.

    Mas eis que essa ordem natural, em que apenas a lei privada e a lei natural coexistiam harmoniosamente, foi subitamente desafiada pelo famigerado contrato social e a lei pública, o que me leva a levantar uma série de perguntas. Primeiro, até hoje ninguém parece ter visto qualquer evidência de que tal contrato tenha sido, de facto, assinado. Quem seriam as partes contratantes? No mítico estado de natureza de Hobbes e Locke, onde todos eram, supostamente, soberanos e livres, estavam incluídas as mulheres e as crianças? Teriam também rubricado o acordo?

    Nesse estado de natureza, cada homem tinha duas opções: continuar a defender-se sozinho ou associar-se ao mais forte; poderia, mais tarde, abandonar essa relação e procurar um novo aliado ou até mesmo retornar à sua auto-suficiência, à sua soberania. Este homem podia escolher, era verdadeiramente livre. Pois bem, nada disso acontece sob o tal contrato social, onde a protecção deste homem é decidida por outros, pelo tal “povo”. A bem da verdade, trata-se de uma tirania disfarçada, que em nada se assemelha a liberdade!

    Se esse protector é escolhido pelo “povo”, pergunto: quem é exactamente esse “povo”? Todos os que comem e respiram, a população mundial? Ou vamos supor que existem diferentes povos, como traçamos as fronteiras? Por etnia, por cultura, por altura, por sexo? E, dado que cada dia pessoas morrem e outras nascem, não deveria o contrato ser renovado constantemente?

    3 men playing golf on green grass field during daytime

    Por fim, um mero locatário ou empresário deve submeter-me às vontades dos seus inquilinos ou empregados? Ou, colocando de outra forma, com que direito o “povo” ou os seus representantes decidem a parcela dos seus rendimentos a ser extorquida? Onde está a autoridade para tal? Pelo menos, nunca assinou qualquer contrato a dar essa prerrogativa ao “povo”.

    A “Revolução Protestante” foi a precursora da implementação desta ficção chamada contrato social, ao ter promovido a subversão social e a desordem espiritual. A leitura privada das Escrituras fomentou a noção de igualdade entre os fiéis para todas as relações sociais. Esse fermento corrosivo deu à luz o liberalismo e, mais tarde, o marxismo, ambas as doutrinas centradas na premissa fatal de que as hierarquias naturais deveriam ser extintas em nome de uma ilusória igualdade.

    Ao rejeitar a autoridade central da Igreja Católica e do Papa, o protestantismo lançou o mundo numa crise de autoridade que se estendeu para além da esfera religiosa. Primeiro, foi o senhor feudal, depois o monarca absoluto. A soberania individual pregada nas questões de fé evoluiu para a soberania popular nas questões de Estado, lançando as bases do temido contrato social — uma quimera em que a autoridade legítima emana não de Deus, mas do volúvel e caprichoso consenso popular.

    Eis, então, que o protestantismo, na sua cruzada contra a hierarquia natural, promoveu uma sociedade onde todos são considerados iguais diante de Deus, esquecendo convenientemente que o próprio Criador nos fez diferentes, cada qual com os seus dons e propósitos. Esse veneno igualitário corroeu as bases das hierarquias sociais e políticas, pavimentando o caminho para o nascimento de um Estado moderno e secular, esse monstro centralizador que agora se arroga o direito de legislar sobre todas as esferas da vida, públicas e privadas, à custa de qualquer vestígio de autoridade tradicional e natural.

    Para completar o golpe de mestre, o protestantismo foi prontamente instrumentalizado pelos príncipes e líderes seculares que, vendo uma oportunidade dourada de se livrarem das “opressivas” restrições da Igreja Católica, apressaram-se a usurpar terras, bens e poderes eclesiásticos. Estava, assim, aberto o caminho para o despotismo que hoje nos sufoca — um Estado tirânico e absoluto, moldado pela ficção de um governo baseado no consentimento dos governados, mas fundado, na verdade, na transferência descarada de poder para as mãos seculares ávidas de controlo.

    a priest standing at a podium in front of a brick wall

    O glorioso advento do protestantismo, a subverter a ordem divina para instaurar o secularismo triunfante, na sua cruzada para separar a fé e o poder, o protestantismo fez nada menos que acelerar a ascensão de um Estado secular, onde o divino e o sagrado foram jogados às malvas, substituídos por ideais igualitários e racionalistas.

    O Estado moderno tem hoje poderes para confiscar os bens dos seus governados e imiscuir-se em todas as questões de justiça, até mesmo naquelas que dizem respeito aos mais íntimos segredos da vida privada.

    Este Leviatã moderno, vestido com a capa da “soberania popular,” nada mais é do que uma astuta tirania que, sob o pretexto de corrigir todas as injustiças sociais, encontra sempre novos hospedeiros para parasitar — ora através da guerra, ora pela revolução. Que o digam os milhões de almas que pereceram sob as gloriosas bandeiras do Império Britânico ou da Revolução Francesa, todas em nome da igualdade!

    Até a ciência económica não escapou a ser contaminada pelas ideias protestantes. Veja-se o caso de Adam Smith (o verdadeiro pioneiro foi Richard Cantillon), que distinguia entre bens produtivos e luxuosos, como se o moralismo devesse ditar o preço dos prazeres da vida. Ou a teoria do valor baseado no trabalho, essa perniciosa trilha que pavimentou o caminho para as falácias de Karl Marx.

    Hoje, vemos a ciência económica reduzida a agregados, que podem ser manipulados como se fossem guiados pela física, onde o Estado pretende tudo corrigir através do planeamento central, sejam “desequilíbrios macroeconómicos” ou falhas de mercado, ignorando que todas as trocas são voluntárias, enquanto os sábios reguladores e burocratas ainda não conseguiram encontrar o Santo Graal da concorrência perfeita!

    A ladainha continua: o Estado deve regular os salários para corrigir a “injustiça” contra as mulheres e minorias, como se a burocracia pudesse alterar a natureza humana. O Estado deve impor licenças para evitar a entrada dos “maus agentes” no mercado; deve fixar um salário mínimo para proteger os “explorados”; deve imprimir moeda para “estimular a economia,” mesmo enquanto encarceram os falsificadores de moeda por contrafacção, não reconhecendo que o seu Banco Central é o maior manipulador da moeda!

    a statue of a man standing in front of a building

    O Estado moderno até ousa confiscar a riqueza dos cidadãos em nome da redistribuição, impedindo que cada um desfrute do fruto de seu próprio trabalho; impede uma escolha livre, como contratar a reforma ou protecção. E, como corolário, o Estado arroga-se o direito de trancar-nos em casa em nome do “bem comum.”

    A verdade é que, não fosse o conforto material proporcionado pela energia barata — aquela mesma energia que os políticos de hoje diligentemente se encarregam de destruir —, já teríamos percebido que este Estado nascido do protestantismo e do contrato social não é senão uma tirania sem paralelo na história da humanidade. Uma tirania disfarçada de razão, enquanto, na realidade, opera como um intrincado aparato de controlo, coerção e subjugação, de proporções nunca vista.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • Santa Clara 4.1

    Santa Clara 4.1


    Na vida, como no futebol, há um antes e um depois…

    (golo do Santa Clara, uma chapelada logo a abrir, aos 20 segundos, antecedida de um pontapé na atmosfera do Otamendi; vamos fazer de conta que este jogo começa com um handicap a favor do Santa Clara apenas para ser mais emocionante)

    … e o depois é estarmos já a perder, apesar de nos termos livrado do alemão, do qual nem me recordo do nome [será Alzheimer?], de termos contratado mais um jogador turco de exóticos diacríticos no nome [Aktürkoğlu] e de o regressado Bruno Lage ter mudado meia-equipa, sendo que, mesmo assim, receio não fazer, com isso, uma equipa inteira.

    E, portanto, estamos aqui, na Varanda da Luz, como estivemos há umas semanas: na esperança que isto seja somente um pesadelo, o que parece ser mesmo, mas interminável. Até porque na semana que agora se finda ainda apanhámos mais a notícia de prejuízos de 31,36 milhões de euros na época transacta [até me mete medo analisar oi relatório e contas da SAD], e uma ‘aparição’ de Luís Filipe Vieira na CMTV a chorar-se de lhe terem estragado a dívida [acho que o BES não lhe deu os créditos que ele jugaria merecedor].

    (goloooooooooo…. marca o turco dos dois diacríticos, o Aktürkoğlu; quer dizer, o Kökçü tem duas tremas, mas apenas um diacrítico… enfim, o que conta é o golo de belo efeito, logo na estreia)

    Esperemos que entrada de sendeiro do novo Benfica à Lage tenha sido uma espécie de canto do cisne ao contrário, para assistirmos, no mesmo jogo, à redenção depois da perdição. Ou então a culpa foi da Vitória, que esta noite estava destrambelhada, e andou a cruzar os ares, antes do apito inicial, para pousar onde não devia: o no relvado, bem longe do tratador.

    (goloooooooo… boa, boa!, eis a reviravolta! Florentino, o único jogador anteriormente treinado por Lage, marca de cabeça, após uma assistência pelos ares de Otamendi)

    Agora sim. Finalmente, aos 34 minutos depois do apito inicial, posso então dissertar melhor sobre o antes e o depois, que não diz respeito somente ao despedimento do Robert Schmidt, que garante certamente mais um ano de prejuízos…

    (credooooooo…. remate ao poste direito da baliza do Trubin… isto não anda, de facto, nada fácil)

    Bem, continuamos. Quando comecei, com essa estória do antes e do depois, estava também a lembrar-me [como poderia esquecer] a minha ‘visita de trabalho’ ao estádio de Alvalade para ‘supervisionar’ o Carlos Enes. E… caramba! Como é possível que o Sporting não apenas tenha concedido uma recepção VIP ao PÁGINA UM (com lugar marcado com identificação a preceito) como, de forma retumbante, mete a sandes do farnel do Benfica num bolso. Uma bela e bem apetrechada sandes de leitão de Negrais? Rui Costa: por amor da santa! A partir de agora, só direi bem do ‘farnel da Luz’ quando me presentearam, e me apresentarem, uma sandes de leitão à Bairrada! Não menos…

    (intervalo… descansemos…)

    Enfim, mas bem sei quais as armas do ‘demo’, especialista em tentações – querem que eu vá de novo ao estádio do Sporting só por causa da sandocha de leitão de Negrais. Já não lhe bastava, ao demo, me ter ‘oferecido’ um jogo onde, hélas, se viu um belíssimo jogo.

    (entretanto, recomeça a segunda parte)

    Porém, estou esperançoso que hoje haja mesmo uma redenção, e após a entrada em falso no primeiro lance, se saía daqui com uma exibição de encher olho [a segunda metade da primeira parte mostrou-se já interessante) que ‘enterre’ mesmo o alemão…

    (golooooooo. 3-1: caramba, bela entrada… marca António Silva, na cobrança de um canto do turco do duplo diacrítico, o Kökçü)

    Entretanto, por desfastio, enquanto lá em baixo rola a bola em bom ritmo, e se ouvem cantorias e palmas [há muito tal não se ouviam com esta frequência e entusiasmo], desafio o Chat GPT para me compor o resto da crónica, ‘instruindo-o’ para incluir as referências a eventuais golos. O ‘homem’ entusiasma-se [ainda dizem que a inteligência artificial não tem emoções], metendo-me o Benfica a ganhar por 6-1, sem contar com um (inventado por ele) golo anulado, e somente com pequenos ‘lapsos’ como sejam os golos de Rafa e de João Neves.  

    (goloooooo! E este é real! Di Maria, com uma bela chapelada para facturar)

    Numa ‘coisa’ o Chat GPT parece já ter antecipado, ao escrever-me nessa ‘falsa crónica’ que as manchetes de amanhã dos jornais destacarão “Benfica avassalador” e ainda “Lage traz nova era”, embora caia na real, seguindo o meu estado de espírito: “Palavras fortes que, quem sabe, poderão ser apagadas se na próxima semana voltarmos a tropeçar, mas hoje… hoje tudo parece possível”.

    E parece que sim: ainda faltam 25 minutos, e o 6-1 previsto pelo meu ‘companheiro’ Chat GPT está aqui à mão de semear. Paremos aqui um pouco a crónica para assistir, de forma descontraída, a alguns minutos de jogo, até para ver se o suíço Zeki Amdouni é bom ou não.

    (tudo muito calmo lá em baixo; a única nota de relevo foi o anúncio da presença de 60.145 espectadores nas bancadas, portanto acima dos 60 mil, o que me parece ser a primeira vez que sucede esta época…)

    Como não me parece que haja muito mais para avançar nesta crónica, sucedendo-se as substituições no lado do Benfica, faltando nove minutos para terminar o jogo, já agora, vou fazer outro teste com o ChatGPT: estando o jogo com o Santa Clara em 4-1 aos 81 minutos, qual a probabilidade em percentagem de haver alteração do marcador.

    Responde-me que “considerando o estilo de jogo, a motivação dos jogadores e o desgaste do adversário, a probabilidade de o Benfica marcar mais um golo nos últimos 9 minutos pode ser estimada em 30%.”

    (e bola ao poste, achou eu, a remate de… não sei, estava a escrever…)

    Já o Benfica marcar ainda dois golos, o Chat GPT atira-me com 10% [acho que está a inventar já] e três golos entre 2% e 3%.

    (e grande perdida de… não reparei quem foi, estava a olhar não sei bem para onde)

    Bom, na verdade, pelo que fez o Benfica nos últimos minutos já podiam ter entrado dois…

    (três… grande livre de Amdouni, com a bola a embater com estrondo na barra; seria um grande golo)

    Na verdade, pode não entrar mais nenhum, mas acho que os benfiquistas fizeram hoje as pazes com a equipa. Bem-vindo, Bruno Lage! O futebol tem destas coisas: do desãnimo ao ânimo. Quando é que jogamos com o Sporting para lhe fazermos engolir duas ou três sandes de leitão de Negrais?


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  • O mais estranho almoço

    O mais estranho almoço


    — Tu é que escolheste o restaurante.

    — Eu sei disso, pá. Ou achas que estou senil? Mas isto hoje está horrível. Que queres que te faça? É irritante atirares-me isso à cara. Isto era o meu cantinho favorito. Hoje, é o pior restaurante em que já estive. Além disso, está aqui um cheiro…

    Puxei os meus ombros para a frente, aproximei a minha cara da cara do meu amigo, fixei um olhar trespassante nos seus olhos e disse-lhe:

    — Meu, tu hoje dizes mal de tudo. Do cheiro a cão no teu elevador, dos fones que compraste, do Trump, do Biden, do riso da Kamala, do Maduro, do Irão, do Netanyahu, do Hamas, dos senhorios, dos inquilinos, do SNS, da medicina privada, das obras dos teus vizinhos que não te deixam dormir…  Até com o empregado já implicaste.

    — Mas discordas do que disse? Explica-me lá em que é que estou errado, então. E demonstra-me porque é que estou errado. Diz lá. Quanto ao Mário que trabalha aqui, não sei o que lhe deu hoje. O gajo é que está nitidamente a querer implicar.

    people walking near buildings

    — Não é isso. É que só puxas assuntos para dizer mal. E falas com tanta, tanta ira. Repara só nisto: conseguiste criticar tanto quem fala das alterações climáticas como conseguiste criticar tanto não se fazer nada contra as alterações climáticas. Não sei como queres combater algo que dizes não existir. É, no mínimo, muito confuso.

    — Eu tinha-te como um gajo informado. Se achas que o mundo está bem, vou ter de reconsiderar a tua inteligência.

    Fechou os olhos, levou a mão direita à testa e disse:

    — Este cheiro dá cabo de mim.

    — Não queres ir para a esplanada?

    — Já te disse que não.

    — Então, não sei.

    — Que cheiro tão intenso. Que agonia, pá. Não te cheira a nada?

    — Não.

    — Só podes estar com problemas de olfacto. Tens de ir ao médico. Estou a falar a sério.

    Em dado momento, o meu amigo teve um clarão:

    — Isto é naftalina!

    Levantou-se e deu uns passos para inspeccionar o restaurante com o nariz, executando inspirações muito rápidas e audíveis. Por instantes, o movimento frenético do seu nariz fez-me representar mentalmente um cão com um metro e setenta e oito centímetros. Algumas cabeças de outras mesas moviam-se para o fitar, e um vetusto senhor interrompeu a sopa e mexeu involuntariamente os lábios perplexos, numa manifestação bucal de quem fita um indivíduo a falar sozinho na rua, proclamando ser Jesus Cristo.

    Quando regressou à nossa mesa, decretou com uma expressão facial de detective:

    — Isto é naftalina misturada com outra coisa.

    Como não comentei, por não sentir nenhum odor estranho, acrescentou:

    — Que esterco, pá. Que nojo, pá. Não bastava já o estado da comida.

    — Meu, estás com a telha hoje. Falas de tudo com uma fúria. Olha, esta massa está muito boa.

    — Eles estragam isto tudo com os molhos, designadamente a massa. A gastronomia nunca foi a tua especialidade.

    — Pois não.

    — Este cheiro é uma coisa…

    — Ó meu, aquele senhor de bigode branco já olhou para ti como se fosses um maluquinho quando te puseste a farejar.

    cooked pasta

    — Eu quero lá saber. Dás muita importância ao que os outros pensam. Não é admissível comer com este cheiro.

    — Ainda bem que sou desprovido de olfacto, apesar de sentir o cheiro da comida.

     — É porque a comida estragada tem um cheiro mais forte.

    O meu amigo pegava nervosamente no telemóvel a todo o instante, suspirando e bufando. Olhei para o seu relógio de pulso e comecei a ver o movimento dos segundos. Prometi a mim mesmo fazer contas.

    — Não paras de mexer no telemóvel e de olhar para todos os lados depois. Já contei: em média, de sete em sete segundos, consultas o telemóvel. A seguir, olhas para a frente, para a esquerda e para a direita, para trás. Estás neste ritual desde que chegámos.

    — É para me abstrair desta comida putrefacta. Tenho a certeza de que vou ficar doente.

    — Então, não comas mais.

    — Tanto faz. Se for para ficar doente, já comi o suficiente. Só esta pestilência dá cabo da saúde de qualquer um.

    Em dada altura, o meu amigo gritou:

    — Porra, olha para esta merda! Vou chamar o empregado.

    — Deixa ver.

    — É um cabelo. Foda-se, só faltava cabelo no meio desta carne podre. Que bosta, pá! Foda-se.

    Analisei o putativo cabelo, enquanto o meu amigo consultava o telemóvel e praguejava.

    — Meu, isto é um fiozinho de roupa. Acho que é da tua camisa.

    — É um cabelo.

    — É esverdeado.

    — Há quem tenha o cabelo verde.

    — Isto não é um cabelo em parte nenhuma do mundo.

    — É. E não é verde. Além do olfacto, tens de ver também esse problema de daltonismo. Tu não estás bem. É o olfacto, é a visão. Olha que isso pode ser neurológico.

    — Meu Deus, dai-me paciência para o aturar.

    — E a mim dá-me o triplo da paciência.

    — Está tudo mal, menos tu. Ao menos, coopera com quem te ajuda.

     — Vou mas é pedir ao empregado que me troque o prato. Vou pedir outra coisa, que isto está uma bela merda. E agora até cabelos tem. Estou com a nítida sensação de comida estragada na boca. E este cheiro não sai… Aposto que vou passar mal a noite. É hoje que peço o livro de reclamações. A ASAE tem de vir cá. Por muito menos, já fecharam outros estabelecimentos. Isto hoje é de mais, caralho.

    Amarguinha liquor bottle on empty dining table

    O telemóvel do meu amigo sussurrou um chilreio por um instante.

    Agitou-se na mesa e, ao agarrar no telemóvel, deixou cair o garfo. No meio da dança de braços e objectos, ficou com bastante molho a destoar no verde da camisa e no dedo mindinho da mão esquerda, que pingava. Submerso no telemóvel, não deu conta da subtracção de um objecto da mesa nem do molho. Decidi levantar-me, peguei no garfo e passei o guardanapo pelo talher muitas vezes, até o repor na mesa. O meu amigo não deu conta de nada, e eu ouvia-o murmurar uns sons imperceptíveis.

    — Estás a gemer?

    Ele continuava com os olhos presos ao telemóvel.

    Esperei largos momentos, enquanto observava uma metamorfose facial.

    — Até os teus dedos dos pés e os botões da tua camisa sorriem.

    Ele nada disse, e eu olhei para o círculo de molho na camisa, mas decidi calar-me. Um sorriso ocupava-lhe toda a largura da cara.

    Quando voltou a si, o meu amigo pediu-me desculpa pela demora.

    — Não ias pedir outro prato?

    — Ah. Não. Isto come-se. Vou pedir uma sobremesa.

    Acabou de comer a carne num ápice, chamou o empregado e pediu «o de sempre».

    — Estas farófias são óptimas. Acho que vou pedir outras. Não queres provar?

    — Não gosto muito de farófias.

    — É porque não provaste estas.

    Os suspiros davam agora lugar a murmúrios de prazer quase sexual.

    — Que coisa tão boa.

    Peguei numa colher e saboreei umas farófias medianas.

    — Também tens uma baba-de-camelo que é uma maravilha. Posso dividir contigo.

    O meu amigo pediu baba-de-camelo ao empregado com quem discutira.

    — Ó Mário…

    Repetiu o nome com suavidade e doçura:

     — Ó Mário… somos amigos desde que havia dinossauros. Há bocado, fui parvo contigo. Não faças caso.

    O empregado deu-lhe uma palmada amiga no cocuruto e perguntou-lhe se ele queria um tira-nódoas, mas o meu amigo disse que não. Pareceu-me não ter percebido que tinha uma grande mancha na camisa.

    — Já não te cheira a naftalina?

    A sua cabeça absorta inclinava-se de novo sobre o telemóvel, como se o destino pendesse do que ali morava. Era a fácies de quem examinava e reexaminava até ter a certeza de que a sentença de morte fora, afinal, uma troca de nomes.

    Esperei uns momentos e repeti a pergunta num tom alto e grosso:

    — Ouve lá: já não te cheira a naftalina?

    silver iphone 6 on white sony device

    — Já passou.

    Os seus olhos moviam-se da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como se desenhassem linhas.

    Quando veio a conta, decidiu que me pagava o almoço. Sendo a forretice, de longe, o seu pior defeito, disse-lhe que não, imaginando o que lhe doeria.

    — Quem convida é quem paga.

    — Isso nunca foi regra entre nós.

    Agarrou na conta, puxou de um cartão e acenou ao empregado.

    — Se quiseres, dá-lhe uma gorjeta.

    Pus todas as moedas de todas as cores que tinha em cima da mesa.

    — Fazes bem. O Mário é muito porreiro.

    — Tu é que estavas danado com ele.

    — O gajo é seis estrelas. Este restaurante só tem empregados muito bacanos. E come-se maravilhosamente aqui. Não achas?

    — O meu prato estava muito bom.

    — Esta vista é uma coisa incrível. Olha lá…

    Aquiesci.

    —  Por este preço, comer assim, ser tão bem atendido e ainda ver este rio ao fundo… Não conheço restaurante melhor. E tem as melhores farófias e a melhor baba-de-camelo do mundo.

    — Gostaste, então?

    — Já comi melhor aqui, mas gosto sempre.

    — Voltarei de bom grado. Ouve lá: ainda achas que há oitenta por cento de probabilidades de haver uma III Guerra Mundial nos próximos cinco anos?

    a piece of paper sitting on top of a table

    — Como assim?

    — Estou a citar ipsis verbis o que disseste no início do almoço. Disseste que íamos os dois respirar poeira atómica brevemente.

    — Oh… isso foi metafórico.

    — Metafórico?

    — Não vai haver guerra nenhuma. Vamos dar um passeio pelo rio e fazer a digestão?

    Levantámo-nos e caminhámos pelo rio.

    — Já viste o luxo que é andarmos aqui a ver este azul com este sol depois de uma refeição destas?

    — O poder que elas têm sobre ti é tremendo, não é?

    O meu amigo passou o braço por trás do meu pescoço e pousou a mão no meu ombro direito.

    — A vida é bela, amigo. Somos todos perecíveis, o importante é encher a vida de coisas belas e com significado. Nós é que complicamos, porque contabilizamos sempre o que nos falta e não o que temos. Celebremos a nossa amizade, mas é. Tinha saudades de estar contigo, pá.  

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Assange, o anti-herói

    Assange, o anti-herói

    Haverá muitas pessoas que não conhecem Julian Assange, outras só se lembrarão do filme ficcionado sobre o hacker-jornalista em que é representado como uma pessoa vaidosa e difícil. Não vi o filme, mas pelo estilo e depois de uma passagem na diagonal, acho que é daqueles cujo trailer é melhor que o próprio filme.

    Outros fixaram-se no suposto assédio sexual sobre uma mulher, ainda que anos mais tarde essa acusação se revelasse falsa, constatando-se ter sido orquestrada pela CIA.

    Também haverá cabeleireiros que se devem lembrar do seu cabelo louro, dourado ou quase branco e dos seus cortes trendy.

    Para outras pessoas mais incautas, a WikiLeaks poderá ser uma ilha paradisíaca no Pacífico que urge visitar porque deve ter resorts incríveis.

    Por outro lado, muitos jornalistas ao início viram na plataforma (impossível de desencriptar), informação de borla e verdadeira, não havendo forma de deturpá-la, uma vez que conduzia ao acesso às próprias fontes, a documentos e emails sigilosos por exemplo, passando sempre pela casa de partida como no velho Monopólio.

    Depois de Assange ser preso, foram deixando de o fazer, o que só nos elucida acerca da força do Poder, porque a informação é eterna no planeta virtual, onde tudo vai desaguar. Está lá, é só clicar.

    Não há político ou potência que não tenha sido interpelada por esta revolução tecnológica, que é a WikiLeaks, denunciando políticos que antes estavam completamente impunes, fazendo com que o jornalista mais tarde fosse acusado de espionagem por Biden, ainda quando era vice-presidente de Obama.

    Nunca se provou que tenha colaborado com qualquer organização ou país.

    Julian Assange
    (Ilustração: Manuel Silva)

    As pessoas do Livre deveriam consultar mais vezes a plataforma. Quem diz do Livre, diz do Chega, porque para Assange não havia bons e maus, dizem. Para outros será um terrorista que favoreceu uns em prol de outros, como se a vida não fosse assim quase sempre.

    Para muitos é um criminoso anarcocapitalista.

    Um exibicionista.

    Um megalómano.

    O western do australiano talvez seja mais parecido com aquelas coboiadas em que a personagem central é um justiceiro como nos filmes chunga spaghetti, já que de qualidade são poucos.

    Mas esses heróis não acabavam na prisão com derrames cerebrais. É o preço de ter aceitado a toma da cicuta como o Sócrates de Atenas, preferindo ser morto, ou ser preso no caso de Assange, já que ser cobarde e ter de viver conhecendo as miseráveis atrocidades do Poder, pode não dar boas noites de sono se não se fizer nada, e o melhor é sacrificar-se pelos valores e pela liberdade de expressão, que com ou sem WikiLeaks continua a ser posta em causa a toda a hora. Não é para todos.

    Mas está aí uma das diferenças entre o cinema e a vida real. O que interessa sobretudo é o que consta nos documentos. Factos.

    Mas quem sou eu?… Algum jornalista, algum cyber-bófia?

    Nada disso, apenas um parolo que de vez em quando está preocupado com a vida e com a ficção.

    Fica mal dizê-lo, mas as injustiças e a ignorância… Enfim, é melhor não… Vou parecer um cripto-romântico!

    A WikiLeaks é sem dúvida o melhor polígrafo de todos e não é feito por estagiários e vigaristas. Foi através da WikiLeaks, que ficámos a saber da proposta da senhora Hillary para bombardear a embaixada do Equador em Inglaterra com o objectivo de assassinar Assange através do uso de drones.

    Para muitos, Hillary Clinton é uma humanista e pacifista que teve o azar de ser enganada pelo outro senhor do Arkansas também humanista e sensível que até tocava trompete. Mas felizmente apareceu o psicólogo de massas Obama que bombardeou mais países do que a droga que o Lou Reed consumiu.

    A grande vitória de Assange foi a pior derrota da História para as agências de inteligência como a CIA, e o seu crime foi ser jornalista e expor o que os assassinos planetários em massa fazem sem que os media tradicionais denunciem, tornando-se eles mesmos até coniventes com o que escondem. Mas é tudo conspiração quando não rima com o verbo oficial, já sabemos.

    Mas que é verdade que a CNN em tempos publicou os crimes de guerra atrozes dos EUA no Afeganistão e no Iraque e depois deixou de o fazer, sabemos; que mostrou a aniquilação massiva de civis em vários locais do mundo, também sabemos; que Israel financiou o Hamas não é novidade para poucos, mas será para a maioria; que a plataforma expõe a forma como os governos da América Latina são completamente controlados pelos EUA também só não sabe quem não quiser. Mesmo os políticos mais esquerdistas, como Obrador, do México, que quis militarizar o país em conluio total com a presidência dos EUA ou Alberto Fernandez da Argentina também lá estão a fazer das suas, mas sempre com a conversa dos trabalhadores e das boas intenções esquerdistas a adocicar os discursos.

    Até os Kissinger papers da década de 70 por lá navegam como se fosse um barco que nunca vai ao fundo, já para não falar da informação secreta das monarquias europeias e até da saudita.

    Há também informação que baste acerca da tortura e do assassinato sem piedade de jornalistas e civis por parte de muitos que têm a bênção dos media mainstream em geral.

    Enfim, quem quiser ler a WikiLeaks despenderá mais tempo a fazê-lo que nos Miseráveis de Victor Hugo.

    Hilary Clinton
    (Ilustração: Manuel Silva)

    Assange só ficou oficialmente preso no governo Trump em 2019. O próprio Trump aproveitou informação da WikiLeaks para derrotar Hillary, mas depois não quis mais saber do jornalista, tendo inclusivamente prometido libertá-lo antes de ser presidente. Ainda há quem pense que o americano saído da casca é uma alternativa ao Deep State. É tão só um plano B de um traidor que gosta da Playboy e que chegou a dizer que nem conhecia a Wikileaks anos depois.

    Não é fácil libertarmo-nos desta gente, cujo desporto preferido é contrair dívida e alimentar bancos centrais.

    Numa entrevista, respondendo sobre quem era o seu maior inimigo, Assange disse tratar-se da ignorância. O jornalista, com nacionalidade equatoriana, não brinca em serviço, mas há quem não veja isso assim, considerando que revelar segredos de Estado não é a melhor via para se ser feliz e pode ser um crime grave. Mas isso seria tinta para outro papel, como dizem os polacos.

    Voltando um pouco atrás, sabe-se que antes de ser acolhido pela Embaixada do Equador esteve a viver durante anos disfarçado num bosque, numa cabana e movendo-se em hotéis com uma identidade falsa.

    Entre 2012 e 2019, esteve, então, “preso” num quarto nessa Embaixada latina, mas suspeita-se que o presidente Rafael Correa, espiava-o através uma empresa espanhola vinculada à CIA dentro da própria embaixada. É tramado ser presidente.

    Há cinco anos Assange foi direitinho para uma cela de três metros por dois em Inglaterra.

    Uns anos antes e já detido, ainda conseguiu participar na fuga de Snowden para a Rússia, planeando o resgate do informático num avião de John McAfee, outro hacker que depois apareceu morto em condições muito estranhas numa prisão em Barcelona.

    McAfee é o responsável pelo anti-vírus que temos no computador chamado… McAfee.

    Se Assange não conseguiu um asilo na Rússia foi porque nunca cedeu a ninguém e quis expor também as cumplicidades de Putin com os Clinton e com Bush, revelando a história do urânio por exemplo. Mas certamente haveria muito mais para expor da Rússia e de Putin. Nas condições em que Assange ficou, eu tentaria logo arranjar protecção, não sou maluco. Ser neutro, neste mundo, nem num poema. Por isso há quem jure que beneficiou Putin.

    Mas ao invés de se informarem melhor, as pessoas em geral preferem continuar a consultar sites pornográficos e vídeos de gatos a tocar piano. Não tem mal, é certo, mas há mais coisas interessantes para fazer.

    Uma das conquistas do Poder tecno-político foi esse. Esvaziou a mente humana com distracção, mas isso é ar para outro balão, como dizem os alemães.

    Ora eu cá também gosto de me distrair, mas prefiro um corneto de chocolate na praia mesmo sabendo que tanto a praia como o gelado devem estar cheios de químicos.

    Vás para onde vás, és sempre passível de ser sabotado. Até a alimentação saudável hoje já é uma doença. Uma obsessão… Vá. Obsessão também é doença segundo o DSM , mas para esse manual também tudo é doença mental e estamos todos a precisar de psicotrópicos. Sobretudo quem os inventa. Aqui estou a fugir do tema, ou talvez não.

    Entretanto, há dois meses e meio, o jornalista saiu da prisão voando directamente para a Austrália, o seu país de origem onde se juntou à sua mulher Stella que deu há uns tempos uma entrevista ao PÁGINA UM e que poderá ser vista aqui.

    Devo acrescentar que esse país dos cangurus, não é muito seguro. Criou “campos de concentração” para dissidentes do covid. Mas vamos ver se lhe corre bem a estadia, de forma que possa assistir em paz um dia a um encontro de ténis jogado por outro “herói” do nosso tempo, o tenista Djokovic, que não quis ser patrocinado pela Pfizer, dando um match point à pseudo-ciência. 

    Há esperança para a humanidade de vez em quando, mesmo que hoje uma parte significativa do mundo na sua auto-representação ache que tem os dias contados. Eu não penso isso e continuo a gostar de ver ténis mesmo que a Adidas agora se considere humanista e tenha entrado no desporto da moda da filantropia e do politicamente correcto. Talvez seja bom consultar a WikiLeaks e ver se há algum email da Adidas para a Coreia do Norte, nunca se sabe. Ir dar uma volta até à WikiLeaks deveria ser um desporto universal, mas também não quer dizer que esteja lá tudo. E se não estiver, não quer dizer que não tenha acontecido. A WikiLeaks não é Deus nem pretende formar uma religião. 

    A notícia da libertação do jornalista australiano parece ter trazido alguma novidade ao mundo, pelo menos no dia em que isso aconteceu foi notícia nalguns órgãos. Depois já não se falou de Assange porque ainda andam por aí muitos gatos à solta a tocar piano à espera de visualizações e muitos vírus mortais à espera do seu dia triunfal para sair do meio do “gelo” como anunciado, para começarem a assustar pessoas.

    Passando pela Wikipédia para ver o que se diz sobre o australiano e fiquei a saber alguma coisa, mas entretanto fui ver o que é que a Wikipédia diz da Wikipédia já que este texto é um pouco wiki até. Diz o seguinte:

    A Wikipédia é um projeto de enciclopédia colaborativa, universal e multilíngue estabelecido na internet sob o princípio wiki. Tem como propósito fornecer um conteúdo livre, objetivo e verificável, que todos possam editar e melhorar. O projeto é definido pelos princípios fundadores e o conteúdo é disponibilizado sob a licença Creative Commons BY-SA e pode ser reutilizado sob a mesma licença, desde que respeitando os termos de uso. Todos podem publicar conteúdo on-line desde que criem uma conta e sigam as regras básicas, como verificabilidade ou notoriedade.

    Henry David Thoreau
    (Ilustração: Manuel Silva)

    Desisti. Se nem a própria Wikipédia diz a verdade sobre a Wikipédia quanto mais sobre o Assange.

    Vários políticos e até presidentes de países deram as graças pela libertação de Assange, entre eles Lula da Silva, mas parece estranho políticos darem graças pelo jornalismo livre. O The Guardian também o fez, mas lembro-me da perseguição feita por esse órgão e quase todos, a quem não concordasse com as políticas abusivas inconstitucionais durante a pandemia, abrindo precedentes perigosos em nome de sabe-se lá de quê, chegando a ser escorraçados.

    É certo que há muita mentira e desinformação por aí, a começar pelo jornalismo mainstream e por malucos ligados à extrema-direita, por exemplo, e não será fácil lidar com essa esquizofrenia galopante. A única coisa que muitas pessoas pedem, estando eu aí incluído, é que os assuntos sejam discutidos com transparência e neutralidade, apanágio do verdadeiro jornalismo que quando foi nobre, adorava a diversidade de opinião e o contraditório. E depois que cada um tome as suas decisões e aí a plataforma de que falo pode ajudar a que todos sejamos um pouco jornalistas já que estamos a precisar de ir ao cinema outra vez, mas para ver filmes com princípio, meio e fim.

    Filmes que tragam novamente alguma poética ao espectador, e já agora alguma coerência. Porque isso de a realidade ser uma sala de cinema, já chega. Tem piada, mas cansa muito. Qualquer dia está tudo aos tiros. E é chato.

    Anda muita gente a ver-se ao espelho, mas a usar um espelho turvo e cheio de ferrugem ao qual nos estamos a começar a habituar. Precisávamos, mas era de um espelho feito de areia, é certo, mas não daquela que nos andam constantemente a atirar para os olhos.

    Thoreau disse que perante uma lei injusta é uma obrigação e um dever desobedecer.

    Assange certamente leu Thoreau.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


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  • Taxa de inflação: um embuste?

    Taxa de inflação: um embuste?


    A democracia, esse grandioso espectáculo em que o “povo” – seja lá quem for – elege os seus próprios parasitas, conhecidos por políticos. Para ingressar nesse selecto grupo, são necessárias aptidões peculiares: ser demagogo, popular e exímio mentiroso. A genialidade desta farsa reside na sua natureza despersonalizada; ao contrário da monarquia absoluta, onde o bandido tinha um rosto identificável e que podia ser odiado, enquanto na democracia todos aspiram ao papel de parasita. Afinal, se os ladrões foram eleitos por mim, são “os meus ladrões”, e assim o poder perpetua-se sem resistência.

    Além disso, não podemos esquecer a feroz competição entre esses salteadores, cada um prometendo mais favores e benesses aos grupos de pressão – sejam plutocratas, multinacionais ou sindicatos – na busca incessante pela reeleição. Em vez de limitarem o poder dessa ficção chamada Estado, alimentam-na, com promessas que apenas servem para invadir cada vez mais a vida dos cidadãos, sob o disfarce de uma “eleição legítima”. No final, o Estado expande-se, o indivíduo definha, e a liberdade evapora-se, num jogo de cartas marcadas.

    Quando um Governo, composto por parasitas, cede aos pedidos dos grupos de pressão, necessita inevitavelmente de mais recursos e de maior controlo para implementar e gerir as políticas exigidas. Isso frequentemente conduz à expansão do poder centralizado, culminando na formação de um cartel de grupos mafiosos, como é o caso da União Europeia.

    macro photography of green aphid

    Primeiro, através da criação de regulações, de supervisores e de burocracias, visando gerir e fiscalizar os benefícios e programas concedidos aos grupos de interesse. Isso exige uma coordenação centralizada para garantir que as políticas sejam aplicadas uniformemente em toda a jurisdição sob a alçada do Estado.

    Em segundo lugar, à medida que o Governo assume novas responsabilidades, o seu alcance sobre a vida dos cidadãos amplia-se. Isso pode incluir desde políticas sociais e económicas até à regulamentação de aspectos culturais e educacionais, todos geridos por uma autoridade central.

    Por fim, como sobredito, a extorsão do gado intensifica-se, dada a necessidade de financiar os programas e benefícios prometidos pelos bandidos que aspiram a ser eleitos. O Governo necessita, assim, de aumentar a arrecadação de impostos ou contrair dívidas. Mas, como se sabe, nunca é suficiente.

    A democracia, na sua brilhante “generosidade”, erradicou o ouro e a prata — os meios de troca escolhidos pelo mercado desde há milénios —, substituindo-os por simples papelinhos, ou, nos dias de hoje, por meros registos informáticos (amanhã, será o Euro Digital). Estas “moedas fiduciárias”, cuja produção não custa praticamente nada, foram confiadas a um autodenominado “independente” banqueiro central, que mais parece um comissário soviético.

    Para que o roubo passasse despercebido, o protestantismo positivista inventou o índice de preços, uma ficção científica digna de aplausos. Esse índice, supostamente, mede a inflação, permitindo ao povo manter-se actualizado sobre o poder aquisitivo do “seu dinheiro”.

    É imperativo recordar que o dinheiro serve apenas como um meio de troca, facilitando transacções e evitando a dupla coincidência de desejos característica das trocas directas. Por ser um fenómeno de mercado, o dinheiro não mede nada. Os preços, por sua vez, só fazem sentido como proporções, pois tanto o dinheiro (a escala) como os bens ou serviços (os objectos de medição) estão sujeitos a mudanças constantes, a ideia de uma medição absoluta torna-se impossível.

    Assim, quando se diz que uma maçã custa 1 Euro e uma laranja custa 2 Euros, não significa que a laranja vale exactamente o dobro da maçã; o valor relativo pode variar conforme a oferta, a procura ou a percepção de valor – algo que definitivamente não pode ser medido; em que unidade se mede isso? Portanto, a ilusão de medir algo tão mutável quanto a Economia é apenas mais uma ferramenta na vasta caixa de truques do positivismo.

    bird opening slice bread pack

    Imaginemos uma Economia onde existe apenas um bem: maçãs. A quantidade total de Euros em circulação é fixa, digamos 100 Euros, e a produção anual é de 100 maçãs, o que resulta num preço de mercado de 1 Euro por maçã. Com o tempo, o capital acumulado — em máquinas, fábricas, estradas, etc. — permite um aumento na produção, passando, por exemplo, para 110 maçãs por ano, um aumento de 10%. Agora, suponha-se que o banqueiro central lá do sítio decide imprimir mais 10 Euros.

    Neste cenário, se a procura por maçãs e por dinheiro permanece constante, o preço de uma maça fixa-se novamente em 1 Euro. A democracia, com as suas métricas de “inflação” manipuladas, diria que não houve inflação, pois os preços não subiram – milagre, inflação 0%! Contudo, na realidade, houve uma inflação de 10% na oferta monetária, e os preços deveriam ter caído para 0,9 Euros por maçã, reflectindo o aumento na produção. O efeito real no bolso dos consumidores seria, portanto, uma maior capacidade de compra devido à maior oferta de bens, mas isso é ocultado pela taxa de inflação oficial que nos diz que os preços estão estáveis, sem variação!

    Os preços não medem valores absolutos, mas apenas relações de troca. Suponhamos que, antes da putativa pandemia, uma consulta médica custava 80 Euros e um café 0,8 Euros, estabelecendo um rácio de troca de 100 cafés por consulta. Se a impressora do BCE provocar uma subida homogénea de preços de 50%, com a consulta agora a 120 Euros e o café a 1,2 Euros, o nosso médico manterá o mesmo poder de compra, desde que a inflação afecte de forma equitativa todos os bens e serviços que consome regularmente. Assim, uma inflação dos preços em 50% não impacta a sua vida.

    A moderna teoria económica erroneamente afirma que os preços medem o valor. Na verdade, uma troca ocorre precisamente porque as partes envolvidas atribuem valores diferentes ao mesmo bem; se assim não fosse, a troca não aconteceria. Consideremos um agricultor com cinco cavalos homogéneos: o primeiro cavalo é destinado à necessidade mais urgente, como puxar um arado, enquanto o último pode ser usado para actividades menos urgentes, como passear. Assim, o valor de um bem depende da necessidade menos urgente que se deixa de atender, explicando por que o pão, essencial à sobrevivência, vale menos que a platina, um metal escasso reservado para necessidades muito específicas.

    Imagine que estou num café na Av. da Liberdade, em Lisboa, e desejo tomar um café. Eu poderia preferir o café a 3,5 Euros; ou seja, até esse valor, dou mais importância ao café do que ao dinheiro. No entanto, se o café custar 1,5 Euros, aceito a transacção, pois está abaixo do meu limiar. Para o proprietário da cafetaria, o café, sendo abundante no seu inventário, não tem o mesmo valor; daí a troca ocorrer. O preço de 1,5 Euros é apenas uma relação de troca, uma intermediação entre serviços. Se eu viver de serviços de corretagem estou a trocá-los por um café, com o dinheiro a servir de intermediário dado que não satisfaz qualquer necessidade humana.

    assorted bunch of fruit lot

    Convém destacar que a impressão de dinheiro simplesmente redistribui riqueza, sem criar valor real. Tomemos o exemplo de Alves dos Reis, que falsificava notas do Banco de Portugal e as gastava, por exemplo, exclusivamente em prostitutas; o preço deste “serviço” em Lisboa dispararia, uma vez que a sua preferência por dinheiro é diminuta, dada a sua fartura. Essa inflação de preços iria espalhar-se, afectando em primeiro lugar os bens preferidos das prostitutas e assim sucessivamente. Os primeiros a receber o dinheiro falso beneficiam-se dos preços não inflacionados, o que é notório nas subidas das cotações das acções e obrigações e nos preços do imobiliário nas últimas décadas, atendendo que o dinheiro impresso pelos bancos comerciais se dirigiu em grande medida para estes mercados.

    Como é que o índice de preços capta o efeito das novas notas introduzidas pelo burlão Alves dos Reis? Qual é o real impacto da expansão da massa monetária? Qual o impacto da nova oferta, depois dos novos empreendedores de bordéis que, visando atrair este famoso cliente, decidem aumentar a oferta e a qualidade das suas “funcionárias”? Se subitamente o Alves dos Reis fosse convertido por um padre zeloso e perdesse o interesse pelos bordéis? Se estes serviços nem sequer constam do índice de preços, como captariam o impacto da nova massa monetária introduzida por Alves dos Reis?

    Então, o índice de preços opera num universo paralelo, onde o surgimento de novos produtos de “qualidade superior” ao mesmo preço indica uma “redução” dos preços. Quais são os critérios? Se os proprietários dos bordéis introduzem novas “fantasias” ao mesmo preço, como quantificam o “desconto”? Quem é o iluminado que decide?

    Na Economia contemporânea, novos produtos inundam constantemente o mercado. Como comparar médias de preços ao longo do tempo se a própria “cesta” de bens muda constantemente? E quando os consumidores trocam carne de vaca por frango por ser mais barato, eliminando a primeira do índice? Não seria isto uma piada de mau gosto disfarçada de estatística?

    Se há preços diferentes para quase todos os bens e novas variações surgem constantemente, como é o caso de ovos comuns e ovos “ecológicos”, ou ainda de diferentes marcas — quem garante que os burocratas do Governo conseguem captar essas mudanças incessantes? Que critérios obscuros aplicam para medir essas variações? Será que têm alguma fórmula mágica para compreender as complexidades do mercado? Ou será que tudo isto é apenas uma ficção orquestrada, um jogo de sombras onde o preço é tão manipulável quanto o discurso de um político?

    O índice de preços é um exercício de ilusionismo estatístico, ancorado na fantasia de uma cesta de bens fixa como unidade de medida. Não há qualquer método científico para se medir o “nível de preços”. O proprietário de uma casa, por exemplo, não se torna subitamente mais rico apenas porque o índice de preços das casas sobe — especialmente se não planeia vendê-la. O mesmo se aplica ao mercado de acções; um aumento num índice não transforma, magicamente, a prosperidade da população.

    grayscale photography of woman opening her mouth

    Falar de um “nível de preços” ou de uma “riqueza geral” para toda a Economia é tão sensato quanto tentar medir o peso de um pensamento! Cada pessoa, cada família, cada região possui uma estrutura de preços única, com variações distintas no seu poder de compra. Pretender medir isso para toda uma Economia é tão frutífero quanto calcular a “riqueza nacional” ao somar os preços de propriedades, títulos e acções e proclamar que isto, por si só, é o retrato da prosperidade de um país.

    Por fim, é sempre um espectáculo hilariante assistir às conferências de imprensa de Christine Lagarde e Jerome Powell, onde nos revelam que a meta mágica é uma inflação de 2%. Por que não 1,9% ou 2,1%? São estas taxas inflacionárias heresias? Como é que estes “iluminados”, na verdade planeadores centrais, conseguem discernir as preferências temporais de milhões de consumidores para decretar se a taxa de juro será de 4% ou 5%? O cúmulo é ver liberais de pacotilha a defenderem tais burocratas, como se eles soubessem algo, quando na verdade nada sabem e esquecem-se que servem exclusivamente para roubar silenciosamente a população através do imposto mais pérfido de todos: a inflação!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • Us discurços dus noços pulíticos

    Us discurços dus noços pulíticos


    A carreira política, em Portugal, deveria ser caso de estudo.

    Quem são os nossos políticos? Como são escolhidos? Que características devem possuir? Quais os seus currículos?

    Os portugueses, tão exigentes no que respeita à escolha nalgumas profissões, pouco ou nada se preocupam na altura de eleger aqueles que nos governam.

    Os deputados, é sabido, são eleitos sem que os eleitores consigam identificar a maioria deles porque votam em listas com dezenas de nomes, mas onde só os dois ou três primeiros lhes são familiares.

    Os Governos saem dessas eleições, já que o Primeiro-Ministro será, em princípio, o líder do Partido Político que as ganhar, o que deveria aumentar a responsabilidade dos cidadãos eleitores.

    Já ficaria contente se houvesse o mesmo cuidado que têm, por exemplo, na escolha das direcções dos clubes de futebol de que são adeptos.

    E, principalmente, se estivessem dispostos a pagar salários equivalentes à excelência de cada candidato.

    Custa-me compreender que aceitem que os clubes paguem ordenados mensais de dezenas de milhares de euros e considerem que Ministros, que vão decidir tudo sobre a nossa vida, ganham demasiado ao auferir, num ano, menos do que miúdos de vinte anos, futebolistas, numa semana.

    Os ordenados pagos aos nossos governantes levam a que os melhores de nós procurem outros empregos, muitas vezes no estrangeiro, deixando que os lugares passem a ser ocupados por pessoas que não conseguiriam qualquer lugar na direcção de uma empresa privada de média dimensão.

    Percebemos isso ao ver o país na cauda da Europa e com tendência a ser cada vez mais pobre.

    Os deprimentes discursos dos nossos governantes são a prova da sua incapacidade e ignorância.

    É gente que governa um País e nem sequer consegue falar, ou escrever, correctamente, a sua língua.

    Os exemplos são inúmeros.

    Recentemente a Ministra da Administração Interna, Margarida Blasco, explicava que uma das causas dos incêndios florestais tinha a ver com a “urologia” dos terrenos.

    Não faço ideia do que irá naquela cabeça, mas talvez ela quisesse dizer “orografia”, ou “orologia” [a ciência que estuda os fenómenos orográficos], e não chegasse lá o seu conhecimento de português. 

    Prefiro isso à hipótese de a senhora pensar que as árvores ali plantadas, por qualquer problema de rins, não conseguiam apagar o fogo por dificuldade em urinar.

    Já o Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, garantiu com toda a pompa e circunstância que aos beneficiários de pensões “será-lhes paga” uma verba extraordinária.

    Se for tão extraordinária como a sua aversão à língua portuguesa em breve os reformados estarão a receber um ordenado equiparado ao dos futebolistas!

    Continuando a subir na hierarquia, passemos aos Presidentes da República.

    Cavaco Silva, Primeiro-Ministro em dois mandatos e Presidente da República noutros tantos, o homem que “nunca se enganava e raramente tinha dúvidas” achou por bem, num momento raro de humildade, agradecer aos “cidadões” que nele tinham votado.

    Razão tinha um meu Amigo, Carlos Esperança, ele sim um brilhante Cronista, com textos magníficos escritos num português exemplar, ao dizer que “Cavaco já escreveu mais livros do que os que leu”…

    O actual Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, ao comentar o recente tremor de terra, do alto da sua sapiência, afirmou à plebe:

    “O sismo revelou que, felizmente, o sistema de segurança e protecção civil português é robusto e eficaz no caso de não ser preciso fazer nada.”

    Fantástica notícia.

    O alívio que todos os portugueses tiveram ao ouvi-lo!

    “Se não for preciso fazer nada o sistema de segurança e protecção civil é robusto e eficaz”. Já se for necessário agir, cada um que se desenrasque!

    Podem ser incompetentes, mas são cómicos e baratos.

    Tudo porque consideramos que não vale a pena investir em governantes capazes, ainda que mais caros.

    Deixo uma história que mostra como é errada esta opção:

    Consta que Deus, depois de criar o Homem, viu que Adão não estava muito feliz e perguntou-lhe a razão.

    – “Sinto-me muito só” – disse este – “gostava de ter uma companhia!”

    – “Que tipo de companhia?” – questionou o Criador.

    – “Outra pessoa, mas que fosse bonita, inteligente, compreensiva, amiga.”

    – “Tudo bem. Vai custar-te um olho!”

    – “Um olho??? Caríssimo!!! O que é que consegues arranjar por uma costela?”

    E, pronto.

    Os problemas causados pelo regatear já vêm de longe.

    Vítor Ilharco é assessor


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  • Ambiente, clima e democracia: para onde caminhamos?

    Ambiente, clima e democracia: para onde caminhamos?


    O Plano Nacional de Energia e Clima 2030 (PNEC) atualizado, e em consulta pública até esta quinta-feira, 5 de 5etembro, é suposto ser o eixo da política energética e climática, em execução entre 2021 e 2030, para que Portugal se transforme numa “sociedade neutra em carbono”, sobretudo através da “redução das emissões de GEE e o compromisso da neutralidade climática até 2045, conforme preconizado pela Lei de Bases do Clima”. Para isso, 96% da energia produzida no sistema eletroprodutor português deverá ser de origem renovável, e dessa energia 40% terá de ser de origem eólica e 42% de origem solar.

    O Plano aponta oito Objetivos Nacionais (PNEC, pág. 35), de entre os quais destaco o Objetivo 8: “Garantir uma transição justa, equitativa, democrática e coesa”. Como activista ambiental, não tenho dúvidas em dizer que este objetivo está longe de ser implementado.

    path surrounded by green grass and trees

    São inúmeras as causas ambientais activas pelo país: SOS Quinta dos Ingleses, em Carcavelos; Dunas Livres, entre Tróia e Melides; Salvem os Sobreiros de Morgavel, em Sines; Minas Não, em Covas do Barroso; Contra a Ampliação da Mina de Alvarrões, na Serra da Estrela; Não às obras na Cascata do Tahiti e aos Painéis nas Barragens de Paradela e Samalonde, no Gerês, o nosso único Parque Nacional; ou Juntos pelo Divor em Évora – apenas para nomear algumas.

    Directamente envolvida ou a acompanhar o evoluir de algumas destas causas, a percepção é a de que, no geral, as populações que nelas participam, genuinamente interessadas e preocupadas, tanto com as questões ambientais como com o património paisagístico e cultural dos lugares onde vivem, não têm sido devidamente escutadas.

    Com demasiada frequência as questões remetidas por interpelação em consulta pública, em assembleia municipal ou de freguesia, por carta, por e-mail, por petição à Assembleia da República, por manifesto ou protesto público, acabam sem ser cabalmente respondidas, ou são mesmo simplesmente ignoradas. Algumas destas causas, entretanto levadas a tribunal, entram num impasse que pode levar anos a resolver, consumindo recursos e tempo de todas as partes envolvidas.

    Neste PNEC, pouco ou quase nada se refere à importância da conservação, regeneração e criação de espaços florestais e da Natureza, essenciais como sumidouros de carbono e de calor, áreas de biodiversidade e de conservação dos solos e aquíferos para prevenir tanto as secas, como as cheias. Como contraponto às ilhas de betão e actividade humana, dentro e fora dos centros urbanos, as florestas e outros espaços onde a natureza respira, tornaram-se fundamentais, como, aliás, se reconheceu recentemente na Lei do Restauro da Natureza, aprovada pela União Europeia, com o voto favorável de Portugal.

    green grass field near road during daytime

    Qual, então, o sentido de se destruírem ecossistemas existentes para se criarem parques de energia solar ou eólica?

    No âmbito do Objetivo 8, o PNEC indica, como linha de actuação, “promover plataformas de diálogo e debate permanentes e duradouras, à escala nacional e local, que envolvam os principais agentes dos vários setores, e que possam contribuir de forma ativa para a construção de uma política energética mais transparente, proactiva e inclusiva, que assegure o cumprimento das metas e compromissos nacionais em matéria de energia” (PNEC, pág. 138).

    Passemos à sua concretização efectiva. Para além das consultas públicas online, é essencial sentar à mesma mesa, para ouvir e dialogar de forma construtiva, compreender as razões de quem quer ser escutado, e tudo fazer para verter essa informação nas decisões que enformam e melhoram a gestão desses políticas e recursos. Por parte do Governo, Assembleia da República, autarquias, e demais instituições, sobretudo da área ambiental, como a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).

    blue and white solar panel lot

    O artigo 48º da nossa Constituição consagra aos cidadãos o direito de participação na vida pública, nomeadamente “tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos,” e “ser esclarecidos objetivamente sobre atos do Estado e demais entidades públicas e de ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos”.

    A democracia e a cidadania participativa só se tornam plenas se exercidas proactiva e regularmente, tanto pelos cidadãos como pelas instituições do Estado. O propósito não é mais do que encontrar as melhores decisões em favor do interesse público: desenvolver uma sociedade neutra em carbono, sem pôr em causa o desenvolvimento sustentável e a produção de energia mais limpa, nem os direitos a viver em ambiente sadio e à proteção do património local.

    Silvie Lai é activista ambiental e licenciada em Ciências da Comunicação e mestre em Estudos Europeus


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Juro que nunca festejei um golo do Sporting

    Juro que nunca festejei um golo do Sporting


    Armado de uma habilidosa trela invisível, o Génio Catamo puxou a bola para dentro até encontrar uma pista de descolagem entre os centrais. Nasceu nele, que eu vi e poderei testemunhar em tribunal, uma juba resplandecente de leão do Delta do Zambeze. Quando a perna esquerda do Aladino de Alvalade subiu ao céu, para urdir o retumbante remate de desenlace, eu abri a boca para um grito do catano, inconveniente e obsceno numa bancada de imprensa.

    – Está lá dentro! Está lá dentro!

    Uma tesoura da prestigiada marca luso-canadiana Stephen Eustáquio ainda cortou a relva num esforço inglório. De igual modo, o desesperado guarda da baliza adversária mergulhou como um perdido naquele rio selvagem. Debalde de água fria para ambos. Fatal como o destino, um filhote de leão em forma de bola voadora cruzou a grande área feito um raio e resolveu o clássico. Tendo eu gritado antes do tempo, já nem festejei o golo. Pensei antes em resgatar de imediato a reputação e a aparência de imparcialidade entre camaradas jornalistas.

    – Pedro, desculpa-me. Não devia fazer estas figuras credenciado pelo PÁGINA UM, mas foi um reflexo condicionado pelo meu início de carreira.

    E então recordei os gloriosos tempos na Rádio Alto Minho, a carregar pesadas bobines com quilómetros de cabo e mesas de mistura com dois metros por três de cursores de áudio. Ao lado de profissionais de gabarito, como Mário Gonçalves, Paulo Sérgio e o lendário Paulo Torres, mais reconhecido na Expo de Sevilha do que o José Rodrigues dos Santos, eu descrevia “o pormenor” das jogadas do Vianense e as noites gloriosas da Juventude de Viana no hóquei em patins. Quando me lembrava de dizer que um penalty a nosso favor tinha sido mal assinalado, o meu pai recebia no dia seguinte o pontual protesto de cidadãos indignados pela minha traição à cidade. Paciente, suportava estoicamente, sem comentários, os ouvintes que através dele tomavam a palavra. E depois insistia comigo para perseguir a verdade e o sonho de ser jornalista. Andei assim dos 14 anos até à maioridade. Descobri agora que, afinal, passei ao lado de uma valiosa carreira, a relatar os golos sempre em primeira mão, catorze segundos antes da concorrência.

    – Pedro, conheces outro relatador que cante golo antes de um remate de fora da área?

    O Senhor Director do PÁGINA UM respondeu que não, mas acrescentou que ando a cantar muito de galo, uma frase que lhe oiço desde que começámos a ir à bola juntos, na época passada. Eu acho que ele bem poderia personalizar tal censura com recurso estilístico a um animal verdadeiramente perigoso, como um leão ferido ou um cavalo puro sangue da Suécia. Considerando a queda dele para as aves amestradas, engulo com amizade a injustiça. E até concordo que devemos ter cuidado, em especial com as viagens dos árbitros ao Catar e outros vícios tão antigos como as velhas profissões. Ao fim de tantos anos de roubos de capoeira, estamos a expiar o tempo de presidentes, treinadores e atletas de aviário. A nossa festa é tão natural como a própria sede e a fome insaciável do Gyökeres.

    – Viste a raça do animal? Ainda gosto mais dele por ser bravo do que pelos golos atrás de golos que marca.

    Aos 92 minutos, com o resultado em aberto depois de um jogo de ostensivas oportunidades desbaratas, o namorado loiro da bela Inês foi despudoradamente derrubado pelo canivete canadiano de marca. Para o efeito, tal adversário, embora fresco e recém-entrado em campo como uma alface frisada, agarrou-se à mais bela e perigosa camisola do campeonato com as duas mãos que tinha mais ao pé, por manifesta falta de pernas para lhe aplicar uma tesourada. E o gigante sueco, em lugar de rebolar de dores e agredir a relva como ditam os tristes hábitos de violência doméstica da liga portuguesa, levantou-se como uma mola, de dentes afiados, a convidar o leão do Zambeze para a estocada final no adversário.

    – Eu passo-te a bola e vais ser tu a marcar, porque os meus pais podem estar a ver o jogo pela parabólica e cortam-me a mesada se me apanham a mentir duas vezes no mesmo jogo.

    Farnel do Sporting: sandes de leitão de Negrais, bem aviada…

    O génio moçambicano, outro rapaz educado e bem-mandado, sobretudo nos minutos de compensação pelo tempo gasto pelos adversários em rábulas e fitas manhosas, em menos de um minuto recebeu o passe, atrelou a bola, abriu a juba, fez golo e resolveu o clássico. Depois disso, festejou com os adeptos eufóricos nas bancadas, reconhecido pela assistência mas ainda intrigado quanto a tão insuperável generosidade. Só nos balneários, o mágico Pote, que tem muita graça, traduziu por gestos, com os dois pés que tem sempre à mão e os 32 dentes brancos de tantas piadas, as misteriosas razões do sueco.

    – Jag har aldrig gjort ett mål i mitt liv!

    Peço desculpa aos leitores interessados por me abster de traduzir. Se a entidade que censura a comunicação, para pontualmente justificar a própria existência, me apanha a reproduzir uma mentira despudorada, troca-me a carteira profissional por um cartão vermelho. Essa correspondência poderia agradar ao Pedro Almeida Vieira, que (ainda) é do Benfica e adora metê-los em tribunal, mas eu prefiro deixar em paz e ao pó a caixa do correio. Por favor, peçam ajuda ao dr. Google, ao mágico Pote ou a outro tradutor qualificado.

    – Jag har aldrig gjort ett mål i mitt liv!

    O cidadão Viktor Einar Gyökeres, nascido a 4 de Junho de 1998, em Estocolmo, Suécia, um metro vírgula oitenta e sete vezes noventa quilos de força bruta orientada, com residência e piscina em Lisboa, é suspeito de cometimento na forma continuada do crime de fraude sobre os valorosos e honrados defesas centrais adversários. Há indícios recolhidos e bem embrulhados nas bandeiras pelos funcionários fiscais de linha, de que o arguido proferiu aquela frase do início do jogo até sofrer uma falta inocente na grande área. Apanhado em flagrante ameaça e consumada violação da linha de baliza, alega ter-se inspirado numa entrevista recente do histórico presidente adversário.

    – Eu nunca comprei um árbitro. Isso não é verdade!

    Assim seja eu arrolado como testemunha, abonatória, e estou disposto a declarar que o arguido só disse a verdade. Pelo menos, nos exactos termos em que eu declaro, juramentado, não guardar qualquer memória de algum dia haver festejado um golo do Sporting. No último jogo, é verdade, gritei golo, mas foi antes do mesmo ser materializado. Ora, meritíssimo juiz, não pode tal descrição objectiva, factual e incontroversa da realidade, por mais adiantada, ser confundida com outra coisa que não o despretensioso relato de um profissional da imprensa desportiva, com 37 anos de experiência.


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