Categoria: Opinião

  • Da democracia podre, ou das alergias do doutor Miguel Guimarães

    Da democracia podre, ou das alergias do doutor Miguel Guimarães


    Comecemos com um pouco de História: a Ordem dos Médicos, criada em 1938, é uma associação pública profissional. Chama-se Ordem, mas é uma associação: aliás, herdeira da Associação de Médicos Portugueses, fundada em 1898. Uma associação defende os seus sócios, em primeiro lugar, mesmo que até seja filantrópica, ou mesmo que os seus sócios tenham feito sim o Juramento de Hipócrates, e não estejam apenas a fazer o favor de nos salvarem a vida. Há muitas profissões, aliás, que nos salvam a vida.

    Por vantagens mútuas, o Estado foi concedendo a esta associação diversos direitos especiais – que passam, de forma sucinta, por regular o exercício da profissão dos médicos, quer no seu reconhecimento e formação quer na sua disciplina e deontologia. Porém, esses direitos trouxeram-lhe também deveres perante a sociedade: a Ordem dos Médicos é uma pessoa colectiva de direito público, e sendo assim, é escrutável pelos cidadãos. Pelos jornalistas. A sua acção pode e deve ser questionada, inquirida, analisada, criticada. São os “males” da democracia. E pode também, e deve, ser elogiada, quando é merecedora.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos.

    Não está nem nunca estará em causa – e muito menos num país civilizado e com um sistema democrático – o reconhecimento do papel fundamental dos médicos – e da sua Ordem – no bem-estar da sociedade, na melhoria da qualidade de vida, no aumento da longevidade.

    Podia aqui enumerar rácios e indicadores. Se quiserem, aconselho, a título de exemplo, a leitura de um artigo do PÁGINA UM sobre a evolução de indicadores de saúde de bebés, crianças e jovens ao longo das últimas décadas. Os médicos tiveram uma quota parte fundamental nestas melhorias.

    Porém, não devemos confundir a Estrada da Beira com a beira da estrada.

    Há médicos extraordinários, outros bons, alguns sofríveis e uns poucos maus. Todos se podem encontrar, embora em proporções bem distintas: aqueles que, miraculosamente, salvam vidas, e aqueloutros que, por vezes, de forma desastrada, acidental ou negligente (espero que nenhum por intencionalidade), deixam morrer ou causam danos desnecessários.

    Estamos fartos de saber isso. Num curto espaço de tempo podemos assistir a desgraças e a milagres perpetrados por médicos. Eu que o diga. Há uns meses, um médico do Hospital de São José – que ainda, enfim, não consegui que o Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central o identificasse voluntariamente (embora eu até lhe tenha feito chegar um dos meus romances, de oferta, para o animar) – cometeu uma argolada, de má sorte que estive cinco dias com um fio-guia do cateter enrodilhado no coração. A probabilidade daquilo me suceder era de 1 em 10.000. Cinco dias depois, o dito fio acabou sacado, de forma miraculosa, sem me abrirem, por um cardiologista de intervenção do Hospital de Santa Marta. Cinco dias entre um erro e um acto extraordinário.

    Portanto, não estou aqui, agora, para avaliar nem médicos nem a prática de Medicina. Estou para avaliar pessoas. Comportamentos de cidadãos. Acções de concidadãos. Tenho esse direito como cidadão. Tenho o dever como jornalista.

    Nessa perspectiva, posso e devo olhar para o comportamento do senhor José Miguel Ribeiro de Castro Guimarães que, circunstancialmente, é presidente de uma associação pública profissional, de uma pessoa colectiva de direito público, que dá pelo nome de Ordem dos Médicos. Chamam-no bastonário – advém de bastão, o símbolo de antanho empunhado pelo líder de uma confraria.

    Página 2 do parecer da CADA destacando as afirmações da Ordem dos Médicos sobre o “comportamento” do director do PÁGINA UM

    Como tal, enfim, está ele – o senhor Miguel Guimarães, mais o seu bastão de confrade-mor– e ela – Ordem dos Médicos – sob escrutínio público, e sobretudo da imprensa, em pé de igualdade com um Governo, um Ministério, uma Secretaria de Estado, uma Direcção-Geral, um Instituto Público, uma entidade ou empresa pública, ou uma autarquia.

    Sendo assim, imaginemos, um autarca, um presidente de um instituto público, um director-geral, um secretário de Estado, um ministro, um primeiro-ministro escrever à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) a acusar um jornalista, que lhe solicita documentos administrativos, de estar, “desde há vários meses, (…) a adotar um comportamento suscetível de integrar a prática de crimes para com a Ordem dos Médicos, o Bastonário (…) e alguns dos médicos seus membros”.

    Imaginam? O senhor Miguel Guimarães, sim. Tanto assim, que o escreveu, ou mandou que escrevessem por ele. Acusou um jornalista de ser criminoso. Um jornalismo de ser criminoso.

    Ora, vejamos, quais são os crimes – nem sequer alegados – que eu tenho cometido, através do PÁGINA UM, “desde há vários meses”?

    Será o crime o ter escrito o artigo “Filipe Froes tem incompatibilidades para ser consultor da Direcção-Geral da Saúde”?

    Será o crime o ter escrito o artigo “Relatora da Ordem dos Médicos que quer condenar médica por ‘negacionismo’ tem ligações a farmacêuticas”?

    Será o crime o ter escrito o artigo “Parecer admite desconhecimento dos efeitos da vacina em crianças e usa estudos não publicados nem revistos”?

    Será o crime o ter escrito o artigo “Sociedade Portuguesa de Pneumologia teve ano de ouro em receitas de farmacêuticas com 370 mil euros da Pfizer”?

    Será o crime o ter escrito vários artigos revelando dados escondidos sobre o que se passa nos hospitais portugueses e sobre o obscurantismo da directora-geral da Saúde, uma médica?

    Será o crime eu ter escrito, e fundamentado, sobre a gestão da pandemia?

    Ou será antes o crime eu andar a investigar as sociedades médicas e as suas relações perigosas – sobre as quais escrevi já o artigo “Sociedade Portuguesa de Pneumologia teve ano de ouro em receitas de farmacêuticas com 370 mil euros da Pfizer”?

    Ou será antes o crime eu andar a investigar os donativos recebidos pela Ordem dos Médicos, entre as quais a Merck, e a aplicação de mais de 1,4 milhões em donativos numa campanha (pouco transparente) denominada Todos por Quem Cuida?

    white concrete building under blue sky during daytime

    Como pode um bastonário da Ordem dos Médicos, comportar-se como um rajá, e ter a ousadia de escrever à própria CADA a garantir que se reserva “o direito de continuar o acesso à documentação” que eu lhe vier a solicitar [e que, aliás, solicitei ainda ontem à noite]?

    Como pode um bastonário da Ordem dos Médicos acusar um jornalista de pretender “instrumentalizar a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para atingir os seus objectivos”? Eu? Eu, que escrevo críticas à CADA por se atrasar nos prazos de elaboração dos pareceres? Eu, que critico o carácter não vinculativo dos pareceres? Eu, que critico algum enviesamento da CADA em matérias mais sensíveis?

    Qual será, enfim, o meu crime? O crime de informar? O crime de indagar? O crime de analisar? O crime de criticar? O crime de não ser um pé de microfone? O crime de não ser um jornalista-fofinho?

    Eu confesso: seria um criminoso, certamente, como jornalista, se vivesse na China ou na Coreia do Norte, ou em outro qualquer país sem liberdade de imprensa, sem liberdade de investigar e questionar. Aí sim, nesses países, o senhor Miguel Guimarães até se alegraria de ser o meu carrasco.

    Aliás, arrisco dizer, ser esse o sonho do senhor Miguel Guimarães: encarcerar-me, silenciar-me. E nem precisa de ser bastonário na China ou na Coreia do Norte. Basta-lhe deixar a nossa democracia apodrecer um bocadinho mais. Falta pouco, senhor doutor: o senhor tem contribuído para isso, “desde há vários meses”.

    P.S. Estou em lamentável incumprimento de uma promessa, mesmo não sabendo ele que a fiz. Já passaram sete meses. Tenho mesmo de ir ao Hospital de Santa Marta deixar não um mas talvez todos os meus quatro romances ao Dr. António Fiarresga, o médico que retirou o fio-guia enrodilhado no meu coração.

  • O plano ausente e a regulação dos mercados à la Iniciativa Liberal

    O plano ausente e a regulação dos mercados à la Iniciativa Liberal


    Uma ausência de peso nos debates foram os grandiosos planos quinquenais do regime. Em todos, como sabemos, sempre está o milagre que nos livrará do subdesenvolvimento e da cauda da Europa.

    Infelizmente, aquilo que mais se tem visto, há décadas, é uma condução em direcção a essa cauda.
    Há mais de um ano, o PS – pela mão de Costa Silva, por forma a preparar o festim da anunciada bazuca – apresentava-nos outro plano, aparentemente escrito em apenas dois dias, que defendia “mais estado na Economia” – o que já temos não parece ser suficiente – e a “capitalização” (um eufemismo para designar o enterro de milhões de euros) da bancarroteira TAP.

    É pena! Tínhamos saudades da discussão de planos durante uma campanha eleitoral. Quem não se lembra do Plano Tecnológico de José Sócrates? Em 2007, foi assim anunciado: “O Plano Tecnológico é uma peça essencial da política económica… para responder de vez aos problemas estruturais que têm afectado o crescimento económico de Portugal”.

    Na prática, tratava-se de um elenco de lugares-comuns, vagas intenções, frustrações, sentimentos e aspirações. Adicionalmente, também apresentava uma enorme lista de compras. Hoje, sabemos porquê: amigos, correligionários e compadres, envolvidos na patranha divertiram-se a desperdiçar e a embolsar o nosso dinheiro e a endividar-nos até ao infinito.

    Uma das listas de compras do plano rezava assim: “Fornecer às escolas com 2.º e 3.º ciclos do ensino básico ou com ensino secundário: 310.000 computadores até 2010; 9.000 quadros interactivos por ano até 2010; 25.000 videoprojectores até 2010”.

    Nestas coisas, fica sempre a pergunta: por que não 330 mil computadores, em lugar de 310 mil? Mas os planeadores centrais nunca nos conseguem responder a estas perguntas. Organizam uma tertúlia e decidem que são 330 mil. É indiferente, o dinheiro não é deles!

    O que fica para a história deste plano tecnológico? O então primeiro-ministro perdeu uma fulgurante carreira como vendedor itinerante de computadores Magalhães, e os problemas estruturais do país foram resolvidos em definitivo… com uma terceira bancarrota! Para nossa sorte, a equipa que o ajudou a conduzir-nos à ruína, não só governou nos últimos seis anos, de mão dada com comunistas e trotskistas, como se apresenta de novo a eleições, desta vez, não com os originais, mas com as filhas, as esposas, as mulheres, os primos…

    Talvez o único partido que apresentou à discussão um “plano” nestas eleições foi a Iniciativa Liberal (IL), dado que tiveram a “coragem” de apresentar, embora com atraso, um calhamaço de 614 páginas! Através deste “plano”, para nossa surpresa, ficámos a saber que a Iniciativa “Liberal” também deseja “mais Estado e mais regulação”. Aliás, parece que não há partido que não o deseje.

    Na página 499 do calhamaço anunciam: “Assegurar que a legislação promove a estabilidade dos activos virtuais, em especial das criptomoedas (moeda digital), enquanto classe de activos, que permita a sua disseminação e transacção de forma adequada, mitigando adequadamente o risco da formação de eventuais fenómenos de bolha”.

    Ficámos a saber que vão existir uns burocratas, eleitos certamente pelos líderes da IL, que nos irão dar a conhecer o nível de preços a partir do qual se designa por “bolha”. Afinal, a livre interacção de compradores e vendedores num mercado não é suficiente, alguém nos vai informar sobre o momento em que a mesma chega. Se chegar, talvez mandem encerrar o mercado, para nossa protecção.

    Na página 502 do calhamaço temos esta pérola: “Os activos virtuais têm vindo a assumir uma importância crescente enquanto classe de activos, com destaque para as criptomoedas. Dada a elevada volatilidade e número elevado de moedas existentes, importa ter um quadro regulatório claro, assim como de tributação adequada, contribuindo assim para uma maior estabilidade para os investidores e/ou aforradores que aqui decidam alocar os seus recursos. Para além dos activos em si, importa também regular o funcionamento de bolsas (exchanges), para mitigar práticas anticoncorrenciais, como o front running”.

    gold and black round coin

    Aqui ficamos perplexos: os nossos “liberais” desejam mais tributação sobre a Economia, a que existe parece não ser suficiente, mas não só: a tributação sobre as criptomoedas irá assegurar, aparentemente, a estabilidade de preços! Ou seja, onera-se a transacção para que deixe de ter lugar. Nada como matar um mercado para assegurar a “estabilidade” de preços.

    Mas a ambição da IL não fica por aqui. Também desejam regular as bolsas de criptomoedas. Ou seja, bolsas que se encontram disseminadas pela Internet, vão agora ficar debaixo da alçada dos reguladores. Podem seguramente esperar sentados para ver isso acontecer.

    Por fim, demonstram eloquência: querem acabar com o front running, ou seja, com a prática ilegal de obtenção de informações antecipadas. Alguém elucide o escritor deste parágrafo que esta prática é hoje realizada sob os olhos de uma pletora de reguladores. Para tal, basta investigar de que forma obtêm lucros as corretoras de comissões 0%, que vendem informação sobre as instruções dos seus clientes a institucionais – uma espécie de entrega de carneiros para o sacrifício. Dificilmente irá encontrar tal prática nas bolsas de criptomoedas, pois estas não estão centralizadas; bem pelo contrário: é um mercado verdadeiramente atomizado, algo tão ambicionado pelos teóricos da concorrência perfeita que pululam pelas universidades.

    Costuma-se dizer: com amigos destes, quem precisa de inimigos? Dá vontade de afirmar: com liberais destes, quem precisa de socialistas?

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A campanha eleitoral: primeiras reflexões

    A campanha eleitoral: primeiras reflexões


    Falar da presente campanha eleitoral é sempre difícil, em particular para mim que assisti a poucos debates, creio que não foram mais de cinco ou seis. Apesar do esforço e da atenção, pouco retive das ideias dos candidatos, talvez porque não foram abundantes em ideias e propostas.

    Confesso, no entanto, que alguns debates tiveram momentos particularmente hilariantes, nomeadamente quando André Ventura relembrou o passado profissional de Catarina Martins: – “Percebe-se porque é que a Catarina Martins era actriz, é uma excelente actriz…”; – ou quando o líder do CDS acusou André Ventura de não possuir quaisquer ideias, com uma grandiloquente tirada: “um esquadrão de cavalaria em desfilada na sua cabeça não encontra uma ideia”.

    Enfim, parece-me que os debates de 25 minutos foram essencialmente preenchidos com isto: palavras atiradas acintosamente com insolência e desprezo ao outro candidato, pouco mais.

    Aquilo que se estranha desta campanha, e em particular dos debates, foi a total ausência da pandemia – honra seja feita ao candidato do ADN que o denunciou, carregando consigo um elefante de peluche, com o propósito de nos alertar que o elefante da sala da política nacional é a pandemia. Isto depois de dois anos em que se decretou a prisão domiciliária de cidadãos saudáveis, o uso obrigatório de máscaras, incluindo em crianças nas aulas e sem qualquer evidência científica que as justificasse, o encerramento de negócios, a restrição de movimentos, a vacinação “compulsiva”, as falências em catadupa, o desemprego, a dívida pública galopante.

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    Note-se, em 2020 e 2021 a dívida galopante subiu 27 mil milhões de euros, algo em torno de 14% do produto interno bruto (PIB), mas, estranhamente, não é tema. Um estranho silêncio sepulcral a este respeito parece ter sido acordado entre os candidatos do regime.

    O regime é tão pândego que até nos apresenta um partido de ideologia “liberal”, de seu nome Iniciativa Liberal, “acérrimo defensor” das liberdades individuais, mas que, no início da campanha, realizou um congresso exigindo certificados e máscaras, privando vários membros de votar, obviamente segregados e discriminados, e temeroso em não fazer figura de patinho feio da narrativa oficial: esta não se pode questionar ou discutir! Falam apenas de Economia e ideias, esquecendo-se que as pessoas são a Economia. No fundo, já fazem parte do regime.

    É também insólito que nenhum candidato tenha comentado o regresso da inflação, em particular em 2021, onde várias matérias-primas registaram subidas excepcionais, muito longe da “inflação oficial” de 2,8%. Vejam-se os casos da aveia, que subiu mais de 100%; do café, que subiu 100%; do gás natural, que subiu 71%; do petróleo, que subiu 64%. Estas foram as maiores valorizações. No entanto, a maioria das matérias-primas – como o leite, a madeira, o milho e o açúcar – subiu mais de 20%. Os salários e as poupanças estão a ser obliterados pela inflação, mas o regime teima em ignorar o seu impacto nesta campanha.

    Talvez não se queira admitir que esta inflação resulta da impressora do Banco Central Europeu (BCE), que serve um único propósito: comprar toda a dívida pública dos Governos, para que estes continuem o regabofe de dívida e despesa pública sem fim, em particular aquela que ocorreu durante a pandemia.

    Pela primeira vez na História da Humanidade, durante esta pandemia os governos ignoraram por completo a prosperidade dos negócios que lhes pagam a conta, pouco se importando com as falências e o desespero de muitos empreendedores. O dinheiro para a pletora que vive à mesa do Orçamento nunca falta, incluindo para os políticos do regime. Até agora, a torneira do BCE parece que não os abandona.

    É também singular que nenhum candidato tenha denunciado o enorme esquema em pirâmide que constitui a nossa Segurança Social. Lá tivemos a eterna tirada da esquerda: não podemos colocar o dinheiro dos portugueses no casino da bolsa, quando tal há muito ocorre, e que correctamente foi denunciado pelo líder da Iniciativa Liberal no debate com António Costa.

    Apesar de tudo, continua por se explicar às pessoas que o dinheiro que descontamos para a Segurança Social todos os meses apenas serve para pagar as reformas dos pensionistas, ou seja, que se trata de um sistema que depende de entradas superiores às saídas, ao melhor estilo Madoff. Em face disto, nenhum político explica como vai resolver o actual suicídio demográfico, em que jovens a entrar no mercado de trabalho são brutalmente confiscados para pagar um exército crescente de pensionistas.

    Outro dos temas completamente ignorado é a nossa irrelevante soberania; hoje, somos praticamente governados por uma burocracia não eleita em Bruxelas, que legisla sobre todos os aspectos das nossas vidas, tornando o quotidiano da maioria das pequenas e médias empresas um verdadeiro inferno kafkiano.

    Também ninguém comenta que a famosa bazuca da União Europeia não é mais do que um presente envenenado, pois ninguém nos esclarece de onde provém o dinheiro. Da impressora do BCE? Nem mais, da máquina de falsificar dinheiro. Com a pandemia, a União Europeia lá apareceu a emitir dívida pública em nome de todos os Estados. E quem a comprou? A impressora do BCE. A mesma que é responsável pela enorme inflação que estamos a sofrer.

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    Por um lado, oferecem “a fundo perdido” uma enorme quantidade de fundos; por outro, desvalorizam o poder aquisitivo da moeda que carregamos no bolso: uma espécie de Robin dos Bosques ao contrário, que rouba aos fracos e assalariados do sector privado a favor da casta à mesa do Orçamento e dos empresários do regime. Este Robin dos Bosques também parece que anda alheado dos debates.

    Para além dos insultos entre candidatos, o que mais preenche os debates? As intrigas palacianas, muito ao gosto da maioria dos jornalistas da nossa praça. Vai-se aliar ou não? Vai permitir o governo ou não? Tem a certeza que nunca irá conversar com o Chega? Garante-nos? Assegura-nos? Ainda não respondeu à minha pergunta: em que condições se vai aliar, vai exigir ministérios? Passamos horas a discutir estas tricas, em lugar de discutir os temas que interessam às populações.

    Outra ideia que se repete nesta campanha é o eterno anátema sobre a direita: o perigo da “extrema-direita”. De forma insólita, tal tratamento não se aplica à “extrema-esquerda”, defensora de ideologias totalitárias, que, em nome de uma utopia – as ideias acima das pessoas –, foi responsável pelo extermínio de milhões de pessoas, pela fome e miséria de muitos povos. Aliás, nunca citam o modelo económico que lhes serve de referência. Se o fizessem, seriam certamente lugares de onde as populações fogem à primeira oportunidade! Mas ninguém os questiona sobre o que verdadeiramente defendem: são os “fofinhos” do regime. Para além da direita “mariquinhas”, também devíamos ter escutado: “a esquerda fofinha”.

    Outra das vacas sagradas do regime e da campanha é a bancarroteira TAP: há anos acumula prejuízos atrás de prejuízos, milhões e milhões de euros de perdas, com a maioria dos seus colaboradores principescamente pagos – salários brutos médios anuais de 50 mil euros –, enquanto a maioria da população recebe salários mensais de mil euros. Nem mesmo o “querido líder da nossa extrema-direita” a abandona: para ele não tem importância os três ou quatro mil milhões de euros ali enterrados, quase 2% do PIB. Em paralelo, indigna-se de forma pungente com os 15 ou 20 milhões de Euros do RSI dos ciganos, 200 vezes menos!

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    Honra à Iniciativa Liberal e ao seu líder, a única a denunciar esta autêntica vergonha nacional. Apesar de tudo, muito falta apurar: gostaríamos de conhecer os nomes e apelidos dos fornecedores da TAP que tanto preocupam o regime, nunca revelados nos debates. Uma nota para o jornalismo de investigação neste país.

    Uma das notícias positivas desta campanha: pela primeira vez, a taxa única de IRS é discutida abertamente durante a campanha. A Iniciativa Liberal e o Chega propõem modelos semelhantes. Esperemos que esta reforma fiscal seja rapidamente implementada, pois temos que dar oportunidades aos jovens de ascender na vida através do trabalho, em lugar de os obrigar a emigrar.

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    Apesar das inúmeras vantagens de tal modelo – em particular, tornar-nos mais competitivos –, ambos os partidos não nos explicam as despesas públicas que irão cortar para compensar tal redução de receitas. Para eles, tudo se resolve pelo milagroso crescimento económico, que tudo paga. Tocar no monstro: nem pensar!

    Pela negativa: o eterno o Bloco Central. Empurrados pelas sondagens e pela imprensa, propõe-se mais do mesmo: agora é que vai ser! Ao longo de décadas, estes partidos foram responsáveis por três bancarrotas, estando agora em preparação a quarta. Aquele que não está agora no poder, o PSD, utiliza sempre a mesma estratégia: vamos aplicar a mesma receita, mas, desta vez, com maior “rigor e honestidade”, sem dar emprego a “famílias”, atendendo que o préstito de apaniguados atrás de mim é “mais competente”. Aparentemente, a estratégia resulta: parece que os portugueses continuam a acreditar que agora é que vai ser!

    O político mais perigoso e plangente desta campanha talvez seja Rui Rio. O PSD, a par com o Chega, há cerca de uns meses propôs uma alteração à Constituição, destacando-se a possibilidade de decretar a prisão domiciliária de alguém sem uma decisão judicial, ou seja, um simples funcionário administrativo, em nome da “Saúde Pública”, passaria a ordenar a prisão domiciliária sem passar por um juiz. Podemos imaginar a total arbitrariedade e autoritarismo que tal modificação poderia acarretar para as nossas vidas.

    Rui Rio ainda se destacou com outra pérola: com enorme protérvia, defendeu medidas distintas para não-vacinados. A discriminação de uma minoria parece ser a sua maior aspiração. Talvez um dia, sem rebuço, o vejamos propor a estrela de David no braço dos não-vacinados. Aquilo que nos conforta é que o regime solta sempre uns encómios a seu favor: é um homem de direita!

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O debate das rádios e o desespero dos guiões

    O debate das rádios e o desespero dos guiões


    Escapou-me o debate das rádios (Antena 1, TSF e RR) e, agora que o ouvi, compreendo que dei duas horas da minha vida para ver uma sequela de categoria B. Lembrei-me da minha meninice, para usar uma expressão da minha avó alentejana, e daquela tarde na Academia Almadense a torcer pelo Ivan Drago, iludido pela ingenuidade da tenra idade e das mensagens políticas formatadas em guiões.

    Depois de assistir a mais de 30 debates, fiquei com a sensação de que há muito tempo nada de novo nos é dito. A repetição do discurso e a fuga às questões colocadas pelos jornalistas são as principais armas de retórica.

    Mesmo sabendo que cada partido tem uma mensagem para passar, torna-se insuportável, ao fim de dias e dias de tempo de antena, ouvir intervenções que começam com um “vou já responder à sua pergunta, mas antes permita-me que…”.

    Deste lado apetece-me gritar “epá, responde só à pergunta!!!”.

    Já são tão raras as ideias válidas partilhadas e discutidas que, qualquer deriva no discurso, arrisca-se a tornar miserável o que já era pobre.

    Ventura e Rio não apareceram. O primeiro porque, provavelmente, depois da catástrofe que foram as suas prestações nas televisões, não quis voltar a correr riscos. Isto numa altura em que as sondagens mostram o Chega em perda, mas ainda a segurar o terceiro lugar.

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    Já Rui Rio, imagino que justifique a ausência com as maravilhas que a campanha de rua está a fazer pelo PSD. Recuperou grande parte da desvantagem que trazia dos debates e já há no ar um cheiro a poder, basta ver como a oposição interna se vai chegando ao líder.

    Se uma crise económica transforma um liberal num socialista, já a distribuição de lugares na governação transforma a oposição interna no Coro de Santo Amaro de Oeiras.

    O Óscar “como ajudar Rui Rio em 10 lições” segue destacado nas mãos de Catarina Martins. Eu, confesso eleitor de esquerda, já não consigo ouvir aquele discurso. O tom de voz, a pontuação, o ritmo ensaiado, a repetição de ataques ao PS, deixando campo aberto à direita.

    Depois de 20 dias neste registo, algum dos estrategas da campanha bloquista deve ter olhado para as sondagens e percebido que o BE se prepara para dar o maior trambolhão no lado esquerdo do espectro político. Assim, ontem, num comício, a líder do BE abriu a porta para se sentar à mesa com o PS e discutir propostas de governação com António Costa. Isto, note-se, três dias depois de o ter rasgado na rádio.

    António Costa continua a disparar para todo o lado e a recusar assumir pontes de governação. Vai aguentando os ataques e, tirando o PAN (que provavelmente perderá metade do grupo parlamentar e não será grande ajuda), parece apostado em não revelar entendimentos futuros. Custa-me um pouco concordar com João Cotrim Figueiredo, mas, pelo carácter específico destas eleições, era bom que cada um de nós soubesse que destino pode ter o seu voto.

    Neste momento António Costa joga com tripla. Entendimento com maioria de esquerda, bloco central ou um novo Queijo Limiano, com acordos pontuais.

    Rui Rio ensaia uma solução parecida, mas com aquele embrulho da maioria de direita dependente do Chega.

    Dias difíceis para os eleitores dos dois maiores partidos portugueses.

    Regresso amanhã, com o obituário do CDS, se, obviamente, não voltar a ver fotografias do Ventura com um camuflado do Exército.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Nono episódio da Recensão Eleitoral (24/01/2022) – O debate das rádios e o desespero dos guiões


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Do grande poder da imprensa: o caso da reviravolta “urgente” na cedência dos meus dados clínicos

    Do grande poder da imprensa: o caso da reviravolta “urgente” na cedência dos meus dados clínicos


    Existe uma regra no jornalismo, e no próprio Código Deontológico, que prescreve que um jornalista não deve abordar assuntos sobre os quais possui um interesse directo.

    Essa regra, convém dizer, é teórica, porque qualquer jornalista tem, em princípio, e se for decente, que pugnar pela promoção ou defesa dos sistemas democráticos, pela paz, pela liberdade de expressão e de auto-determinação, pela justiça, pela equidade, pelo respeito dos seus concidadãos. Logo, como tem ele, em princípio, interesse directo em viver numa sociedade democrática, então a aplicação literal dessa norma implicaria que nunca ele poderia denunciar atropelos à democracia.

    Em abono da verdade, um jornalista “apenas” pode e deve defender causas comuns. Ponto. E jamais deve, por isso, de prescindir do seu poder efectivo – ele existe, de facto, e tenho essa experiência, sobretudo dos tempos em que fui jornalista do Expresso ou da Grande Reportagem –, independentemente de ser um agente envolvido ou um mero observador.

    Deve, porém, esse assunto que lhe diga respeito estar integrado num interesse colectivo; não pode ser um interesse somente seu, ou do seu “clube”. Deve o jornalista, sim, usar a sua influência e as suas vivências para, relatando de forma objectiva e explicitando o seu interesse também particular, alertar ou denunciar situações que não o afectam apenas a si, mas que atinjam negativamente outros. E até mais os outros.

    Envelope registado no dia 20 de Janeiro, contendo elementos clínicos solicitados em Julho do ano passado.

    Assim, quando no dia 18 passado escrevi sobre a recusa do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC) em ceder o meu processo clínico integral, eu sabia que não estava somente a representar-me, a denunciar algo sobre o qual tinha um interesse exclusivo.

    Estava eu, sim, a acusar um problema frequente: o obscurantismo da Administração Pública.

    O obscurantismo, ou falta de transparência do Estado, é, para mim, um dos mais graves sintomas da falta de sentido democrático de um país. E tenho a percepção – diria mesmo a certeza plena – que, se esse mal comigo sucede, sucede a milhares de pessoas. Nesse aspecto, não me considero diferente dos demais concidadãos nem alvo de particular flagelação, embora por vezes pareça.

    Com efeito, por exemplo, o facto de o PÁGINA UM ter já apresentado cerca de uma dezena de queixas na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) por recusa de informação pública, ou a ausência de respostas da Direcção-Geral da Saúde às inúmeras questões que tenho colocado, não é um problema estritamente pessoal. É sim algo intrínseco, ou até inato, que está na “massa do sangue” de políticos e, sobretudo, de funcionários públicos mais preocupados em servir um Governo, ou um partido, do que servir os seus concidadãos. Esconder, esconder, esconder: mostrar dá trabalho, e por vezes chatice. A divulgação de informação e o escrutínio sempre foram uma chatice, excepto em sistemas não-democráticos, onde essas “excentricidades” não se mostram deveres para as autoridades.

    Na verdade, não é o Estado, coitado, que é obscuro, ou que fomenta e vive na penumbra, enquanto ostensivamente deixa os cidadãos na ignorância, até em relação a informação que lhe diz muito respeito, como a saúde. O Estado, ou a máquina do Estado, são pessoas. São funcionários públicos. São servidores públicos. Ou do público. De todos nós.

    Devem ser nomeados sempre que recusam executar as suas funções.

    Por esse motivo, o meu artigo de opinião do passado dia 18, intitulado “Eu e a covid-19: como sobrevivi e a minha aventura nos meandros burocráticos da obscura negligência”, tinha de ter nomes. Tinha eu a obrigação de dizer aquilo que eu fizera: um pedido no dia 15 de Julho do ano passado, o qual não obtivera resposta cabal do CHULC, e que cerca cinco meses depois, a CADA emitira um parecer instando ao cumprimento do meu pedido. E tinha a obrigação de escrever aquilo que o CHULC fizera: nada ainda, passadas mais de três semanas.

    Quase seis meses depois do pedido, mas somente um dia após o meu artigo de opinião, a solicitação acabou classificada como URGENTE.

    Mas tinha de nomear uma responsável. A Administração Pública são pessoas, que têm obrigações. Exijamos que as cumpram. Exijamos que as nomeemos se não as cumprirem. Os jornalistas têm esse direito e esse dever, o de denunciar comportamentos contrários à democracia e à gestão da res publica.

    Por isso mesmo, como jornalista, eu tinha o direito e o dever de recordar publicamente quem era a responsável máximo do CHULC. Quem era a presidente do Conselho de Administração deste centro hospitalar: a senhora Rosa Matos Zorrinho, que não é uma pessoa qualquer (e mesmo que fosse), porquanto foi presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (2016-2017) e do Alentejo (2005-2011), secretária de Estado da Saúde (2017-2018) e é casada com o eurodeputado e ex-dirigente socialista Carlos Zorrinho.

    Se pessoas com experiência e responsabilidades políticas como ela não têm, ou não incutem nos funcionários públicos, uma cultura de transparência, o que podemos esperar da democracia no futuro, e mesmo no presente?

    Daí o papel fundamental de uma imprensa independente, apenas dependente em prestar serviço público àqueles que a alimentam: os cidadãos. A denúncia é a mais nobre função do jornalismo. O questionamento do poder, também.

    Até porque, cumprindo o papel de (bom) denunciante, de (bom) inquisidor, o jornalista independente consegue resultados eficazes.

    Deste modo, não sei se este artigo deveria ser assinado pelo jornalista Pedro Almeida Vieira, ou antes pelo paciente e cidadão Pedro Alexandre de Almeida Vieira.

    Sei sim que o paciente Pedro Alexandre de Almeida Vieira deveria mesmo agradecer, se não fosse isso um acto algo esquizofrénico, ao jornalista Pedro Almeida Vieira por aquele artigo de opinião, escrito no dia 18 de Janeiro de 2022, que teve rápidos resultados: no dia a seguir, o CHULC classificou a solicitação como URGENTE, e logo a seguir, e em carta registada, enviou os documentos pedidos pelo dito (im)paciente há mais de seis meses.

    Uma coincidência, dirão muitos.

    Eu direi antes ser este um sinal do nobre poder do jornalismo: fazer aumentar as coincidências.

  • Choy vs. Scimed: a aventura placebetária

    Choy vs. Scimed: a aventura placebetária


    A contenda “Choy vs. Scimed” criou, na opinião pública, uma fractura ideológica que devia ser aproveitada para efeitos de discussão basilar acerca das “ciências”. Muito nos diz, aliás, tal peleja sobre os próprios portugueses, bem como do que os prende e motiva.

    Não é, apesar de tudo, meramente nacional a, tão antiga, atracção pelas terapêuticas de cunho “tradicional”. Atracção que vigora na devida proporção do que estas terapias possuem de fabulístico. O “mito” opera bem mais, precisamente, porque não se conforma à realidade. Mas será o efeito, neste caso, da acupunctura mera ficção? Nem o placebo é ficção, ele implica uma “injecção hormonal” que serve determinadas necessidades subjectivas.

    Ora, bem sabemos que, no fim, o que interessa é, tão-só, o que sentimos, o grau de “insofrimento”. Mas se atendermos a este em exclusividade, podemos perigar outros aspectos da saúde, com repercussões a médio e longo prazo.

    Vamos ser claros: não há qualquer evidência científica de que a acupunctura resulte no tratamento de patologias e estados internos. Aceitar o que a move “estruturalmente” é, portanto, como aceitar certos aspectos do dogmatismo, sem pura evidência “material”.

    Essa aceitação é, também, um placebo. Abraçá-lo é criar uma ilusão perigosa. Porque, por ser “irrealista”, o placebo é de duração ténue. Mais, por permitir “compensar” o paciente sem chegar à causa do problema, pode ceder ao corpo a oportunidade para se criar maior desequilíbrio. E isto é verdade, também para a possibilidade de a acupunctura resultar no tratamento da dor. É aqui que a evidência ruma a favor da acupunctura.

    Esta parece ser efectiva no tratamento da dor, para além do placebo. Mas o motivo por que isso acontece reside no sistema nervoso, na forma como a acupunctura poderá resultar na diminuição do estímulo de dor. Subsiste, aliás, aqui, um mecanismo semelhante ao do placebo, porque este implica a acção “descendente” no mesmo estímulo álgico. E, do mesmo modo, permanece o problema: diminuir a dor é retirar o “alerta” necessário ao tratamento mais profundo do que a gera. Daí que, às tantas, se tenha convencionado que a acupunctura poderia ser muito efectiva no tratamento da dor crónica, quando o mecanismo profundo que a gera tiver sido sancionado.

    Portanto, quem faz uso da acupunctura poderá estar a incorrer numa ilusão, que pode perigar a sua saúde. Claro está que cada um bebe da ilusão, da crença, que lhe serve. E, como é óbvio, ela resulta melhor onde subsiste a ignorância, bem como a fragilidade psíquica.

    Mas o que importa, também, é saber se homens como o Pedro Choy chegam a ter mais “sabedoria” científica do que os seus pacientes. Porque um dos aspectos mais interessantes no placebo é precisamente a forma como ele actua sobre os próprios terapeutas. E se o terapeuta acredita genuinamente ajudará o paciente a acreditar cada vez mais.

    Daqui só poderá advir uma espécie de comunhão. Mas a melhor comunhão é aquela que cede a cada um dos seus membros a possibilidade de um divórcio. Ora, para um espiritual crédulo, não há divórcio exequível ou desejável. Tal ensejo configura uma total heresia.

    No passado, homens como Francis Bacon representaram essa mesma heresia, ao apresentarem os perigos da subjectividade “espiritual”. E estes perigos, que são estendidos pela religião e, tal-qualmente, pelos médicos de Molière, tiveram, e têm, na ciência moderna um franco opositor. Mas é importante que a oposição não atinja um limite de “objectividade” tal que se conforme novo dogma. Porque quando a ciência se comporta como uma religião, perde-se, novamente, o senso, a distância. E, no entanto, é, de algum modo, a distância “objectiva” que desagrada aos espirituais.

    Uma medicina tamanhamente preocupada com diagnósticos e prescrições serve pouco os interesses da subjectividade. E nem sempre um anti-depressivo resolve a coisa. Muito menos aos que acreditam, inclusive, que o anti-depressivo escusa a entrada no reino dos Céus. Já os mais adaptados à modernidade científica, não precisarão, talvez, de tal ajuda; não será, portanto, assim tão difícil para estes tolerar os que requerem de alguma ilusão placebetária.

    man wearing black t-shirt close-up photography

    No entanto, os supostos “científicos” nem sempre representam a latitude “segura” do Sistema. Parece que também os seus egos periclitam, e pretendem, como tal, beber, e dar a beber à força, da sua pretensa “objectividade”. Não fosse esta uma eventual incapacidade de se representarem subjectivamente. Incapaz de tamanha “psicanálise”, bem como incapaz de qualquer tipo de preciosismo teorético e cultural, está aquele que alguns elegeram como padroeiro da cientificidade.

    João Júlio Cerqueira devia ser estudado, já que o próprio nunca foi capaz de estudar nada. Mas quem deveria ser puramente objecto de estudos é a turba que o segue.

    Como pode um indivíduo filosoficamente pobre, sem nada publicado, sem qualquer tipo de experiência clínica e de investigação, atrair tantos que se pretendem embaixadores do cepticismo? Tão-somente, pela ausência de cepticismo. Porque se os que visitam a página “Scimed” fossem, realmente, científicos, não perderiam o mais pequeno segundo com aquilo.

    Há ciência a sério, por aí. Aquilo é uma atrocidade à ciência. E, no entanto, é uma representação perfeita do que acontece quando a ciência se torna, ela mesma, ideologia, ou seja, placebo dos supostos “científicos”. João Cerqueira é o Pedro Choy da medicina. Provavelmente nenhum dos dois se apercebe disso, e, por isso mesmo, desempenham, cada um, um precioso papel, digno de um estudo sociológico.

    A página “Scimed” conseguiu, tamanhamente, o que certa “ciência” alcançou: adensar, ainda mais, a fractura social que, actualmente, opõe modernos a pós-modernos. Ao invés de permitir o grau necessário de tolerância “terapêutica”, aquela página conseguiu reforçar, ainda mais, as certezas placebetárias dos “crentes” acientíficos. Por isso mesmo, a página “Scimed” é a melhor amiga do Pedro Choy, a melhor providenciadora de clientes à acupunctura e às “terapêuticas não convencionais”. Se eu sequer imaginasse que aquilo é “ciência”, entraria para uma seita, o que, de mais a mais, poderia tornar-me fã da página em questão.

    Fugir do aspecto cruento da ciência e abraçar a simpatia dum acupunctor, que mais quererá o indeciso que poderá perder-se nesta confusão? Todos os outros, que bebam do seu placebo, e, não obstante, isso não chega, é preciso gozar, achincalhar, lastimar, estigmatizar, mas quem o tem feito é precisamente o modelo dominante, o “científico”, nas mãos dos “entertainers” da ciência, ajudando a fazer da “pseudociência” o parente pobre do Sistema, entretanto ganhando adeptos que ajudarão a fazer dela o velho e portentoso dogma.

    Se não é possível conciliar, é preciso, então, tolerar, para que ambos os pólos possam, um dia, comunicar (lembremos Habermas), assegurando o equilíbrio perdido. Porque a ciência “plena” é duplamente objectiva e subjectiva, grupal e idiossincrática.

    A tolerância é, sempre foi, o signo da liberdade. E as duas permitem a dúvida, o real exercício do cepticismo. A Sociedade actual deseja, tão-só, o extremismo polar. Ele nutre, obviamente, celeumas, retóricas, rancores, que, sobretudo no tempo vigente, têm minado o terreno da Verdade. Claro está que esta não é alcançável plenamente, e sabê-lo é, igualmente, ser científico.

    A conturbação em causa poderia ser muito saudável, não fosse a urgência de soluções para tantas vítimas dos dois pólos. Dito isto, parece-me que o caso “Choy vs. Scimed” não beneficia nada nem ninguém. Quiçá pudesse Pedro Choy ser menos sensível a um Cerqueira ego-teo-maníaco. Oxalá pudesse João Cerqueira resolver o seu complexo de castração junto de um bom psicanalista. Mas eu não sei se o Cerqueira considera a psicanálise pseudociência. E isso é relevante para obter resultados tangíveis.

    Fisioterapeuta e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As letras pequenas no contrato com a Iniciativa Liberal

    As letras pequenas no contrato com a Iniciativa Liberal


    Com os dois maiores partidos em empate técnico, o grande destaque desta semana no que a sondagens diz respeito é a Iniciativa Liberal (IL). O crescimento nas sondagens deixa a IL com um grupo parlamentar constituído por 4 a 6 deputados.

    Esta subida assinalável tem, na minha opinião, duas razões primordiais. Desde logo as prestações de João Cotrim Figueiredo nos debates. Depois, a magnífica capacidade da retórica liberal que transforma um prato de feijão com arroz numa experiência gourmet de hidratos.

    O objectivo é só um: desviar dinheiro público para bolsos privados, chamando-lhe outra coisa qualquer. Ou como diria um liberal, um rebranding no Orçamento de Estado.

    A parte difícil é convencer uma população, ou parte dela, que isto lhes trará algo de bom. Cotrim tem feito um bom trabalho nesse campo, admito. Até na gestão das incongruências vejo mérito. As sondagens assim o provam.

    Andou anos a pedir menos Estado, mas, durante a pandemia, pediu intervenção urgente do Governo nos apoios às empresas.

    Falou em cada debate sobre o dinheiro gasto na TAP, mas, que me lembre, nem uma palavra sobre a banca, em especial o BPP, de cuja holding foi presidente.

    Vende todos os dias as maravilhas do imposto único sem explicar que isso beneficia verdadeiramente uma minoria, não os 75% que levam menos de 900 euros para casa.

    Consegue dizer, sem se rir, que desviar dinheiro da escola pública para o ensino privado (é disto que se trata, por mais nomes que lhe possam dar) é dar mais liberdade de escolha às pessoas. Nunca o ouvi explicar que, na verdade, são as escolas privadas, pagas por todos, que teriam a liberdade de escolha, uma vez que fazem a selecção dos alunos.

    Num país onde os privados fugiram do combate à pandemia ou exigiram ao governo uma fortuna por cada paciente, Cotrim quer dizer-nos que liberdade na saúde é um bom seguro da Medicare.

    Quando lhe perguntam se o exemplo a seguir é a selva americana, ele diz que não. A IL segue o modelo nórdico e de outros países europeus de “sucesso económico”. E é aqui que fico baralhado. A Suécia, tão utilizada nos cartazes, tem 30% da força de trabalho assente na Função Pública. Ora, Cotrim está farto de dizer que temos funcionários públicos a mais.

    O Governo sueco (de esquerda), governa com o apoio dos centristas, comunistas e ambientalistas. O partido liberal é a sétima força no parlamento sueco. Isto está para um “país liberal” como o Brasil de Bolsonaro estava para o mapa de partidos socialistas, com que a IL decorou os cartazes da Segunda Circular.

    A ideia liberal tem óptimos conceitos. E não estou a ser irónico. Pena é que não se apliquem a pessoas que dependem de um sistema público de Saúde, aos que necessitam de uma escola pública decente num bairro de subúrbio ou para quem tem salários, digamos, inferiores a 4.000 ou 5.000 euros. Mas para todos os outros funciona às mil maravilhas, isso é garantido. Resta saber quantos portugueses se encaixam nesta última categoria.

    Por isso, olhando para as intenções de voto na IL, fico na dúvida se a classe média portuguesa aumentou, e estão a tratar da vida, o que compreendo, ou se o pessoal que depende da rede pública de serviços, e está naquela média salarial que nos mata, ainda não percebeu as letras pequenas do contrato que João Cotrim Figueiredo nos tenta vender.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Oitavo episódio da Recensão Eleitoral (23/01/2022) – As letras pequenas no contrato com a Iniciativa Liberal


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os tiros nos pés da esquerda

    Os tiros nos pés da esquerda


    Por esta altura circulam SMS e e-mails no Largo do Rato com a seguinte questão: “és amigo do Sócrates? Se sim, apaga tudo”.

    A CNN cortou 30 minutos aos directos sobre o covid e presenteou-nos com um martírio ainda maior. José Sócrates, o nosso estimado filósofo da Sorbonne apareceu para trazer novidades. Para discutir se o cofre era da mãe? Se as fotocópias eram em papel timbrado com fios de ouro? Se as luvas eram feitas na serra da estrela ou na casa da moeda? Não, nada disso. Para que Sócrates pudesse descascar o juiz Carlos Alexandre e as falhas do processo Marquês.

    Júlio Magalhães repetia a mesma pergunta a cada acusação, “mas acha que o Carlos Alexandre tem algo contra si?”. Que borla do sistema para os desvios de Sócrates e que luxo ter um juiz que adora as luzes da ribalta, as páginas do Expresso e o cognome de “justiceiro”. Tudo o que o nosso José precisava para que não se falasse do que interessa ou, como ele dizia, “aquilo que eu gosto”.

    O bom do Júlio não deixou a homília acabar sem que Sócrates falasse das legislativas. Era tudo o que António Costa precisava. Com o PS a descer nas sondagens, Rui Rio a fazer stand-up no programa de Ricardo Araújo Pereira, PCP e IL em bom plano, faltava só aparecer o defunto a reclamar créditos passados, e a mandar um abraço solidário para os amigos que estão a disputar as eleições. É o chamado beijo da morte.

    Costa, a braços com os constantes ataques de Catarina Martins, numa estratégia que confesso não perceber por parte do BE, deve ter engolido em seco durante aqueles fatídicos 30 minutos. A última coisa que António Costa quer, neste momento, é que alguém se lembre de um Sócrates que não seja o grego. A campanha entra na última semana com o PS a receber um presente envenenado da CNN. Isto um dia depois de Rosa Mota, num evento de apoio ao PS, ter chamado nazi a Rui Rio. Nada corre bem a António Costa.

    Rio que entrou pessimamente no ciclo de debates e que não é propriamente forte em campanha, está a fazer um final de corrida, ou maratona como diria a nossa Rosa, bastante interessante. E com um empurrão decisivo por parte das forças de esquerda que, ao que parece, insistem em dar tiros nos pés.
    Veremos o que nos reserva o sprint final.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Sétimo episódio da Recensão Eleitoral (22/01/2022) – Os tiros nos pés da esquerda


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As contas de dia 31

    As contas de dia 31


    Sempre que se fala em sondagens ouvimos dois chavões, um clássico e outro mais recente, consoante os interlocutores. “Sondagens são apenas sondagens”, diz quem normalmente vai atrás. Ou “lembrem-se do Moedas!”, quando queremos prevenir um falhanço catastrófico das empresas que fazem os estudos.
    Ainda assim, com o PS a descer nas intenções de voto e o PSD a subir, será interessante olharmos para o mapa parlamentar que se vai formando.

    Segundo a última sondagem (CESOP para a Universidade Católica e Público em 20/1/2022), o PS pode aspirar a um máximo de 110 deputados, sendo que Livre e PAN não ultrapassarão, em conjunto, o número de quatro deputados. Isto quer dizer que António Costa não terá a maioria absoluta sem se entender com PCP ou BE.

    É curioso verificar que, apesar do desaparecimento do líder (Jerónimo de Sousa) e da estratégia utilizada pelo PS para atingir a maioria absoluta (diabolizar os companheiros da geringonça), o PCP, segundo esta sondagem, não é muito castigado. No melhor cenário perderá apenas três deputados.

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    Pessoalmente, acho que a entrada de João Oliveira na campanha foi uma lufada de ar fresco positiva para o partido. Por outro lado, já se sabe que o eleitorado do PCP é fiel e não se dá a grandes indecisões. Já o BE, mesmo com a votação máxima prevista, perderá pelo menos 11 deputados. Uma pequena hecatombe. Ainda assim serão decisivos para uma maioria de esquerda.

    À direita o cenário é ligeiramente mais complicado. Segundo os dados recolhidos, o PSD pode chegar aos 100 deputados, IL aos seis e o CDS aos dois. Mesmo contando com a boa vontade do PAN, Rui Rio não alcançará a maioria sem o Chega. É aqui que a democracia treme um bocadinho e o populismo e as ideias do século XIX ganham um novo fôlego.

    Desde Junho de 2021 que o Chega tem vindo a descer nas intenções de voto (de 9% para 7%, dados Marktest), ainda assim, mesmo depois das prestações deprimentes de André Ventura nos debates, apresenta-se a poucos dias do acto eleitoral em boa posição para ser a terceira força.

    A boa notícia é que nenhuma sondagem atribui uma maioria absoluta ao PS. A pior coisa que poderíamos ter na nossa, sempre frágil e dada a desvios, democracia, era vermos os boys instalados e sem controlo, na distribuição dos dinheiros da bazuca.

    A má nova é que, a História ensinou-nos, a sede de poder do PSD pode levar a uma segunda parte do acordo dos Açores e, de repente, termos um governo com pastas ministeriais distribuídas por um partido unipessoal, racista e xenófobo.

    Rio não fechou essa porta, apenas a IL e o CDS a encerraram à direita.

    Já António Costa, que partiu para isto com algum excesso de confiança, deve ter percebido entretanto que o apelo à maioria com a narrativa de que os parceiros de geringonça seriam os culpados por algo que todo o parlamento votou, também já caiu por terra.

    Hábil como é, vai obviamente entender-se com o PCP. João Oliveira abriu essa porta no último debate e, se há dançarino que não perde um tango, é António Costa.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Sexto episódio da Recensão Eleitoral (21/01/2022) – As contas de dia 31


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quatro lições sobre o caso da morte da criança vacinada (incluindo um ‘engasganço’ do Expresso), se formos todos parvos

    Quatro lições sobre o caso da morte da criança vacinada (incluindo um ‘engasganço’ do Expresso), se formos todos parvos


    Não existem 100% de certezas, mas a simples comunicação ao Infarmed de um potencial efeito adverso da vacina da Pfizer da gravidade de uma morte de criança, deveria ter levado já à suspensão da vacinação neste grupo etário.

    Não há urgência justificável para se manter um programa vacinal em crianças, ademais sabendo que no grupo dos 5 aos 11 anos ainda não morreu qualquer uma por covid-19. Além disso, em plena fase de “avalanche” de casos positivos (só ontem foram mais 56.426), a peregrina ideia de os netos poderem “proteger” os seus avós já vacinados, ainda faz menos sentido. Na verdade, pelos números de infectados com menos de 20 anos disponibilizados pela Direcção-Geral da Saúde (164.262 casos positivos nos menores de 10 anos; e 236.844 no grupo dos 10 aos 19 anos), estimo que quase 130 mil crianças dos 5 aos 11 anos já tiveram contacto com o vírus desde o início da pandemia. Zero mortes em 130 mil casos. Onde está a urgência?

    Após a autópsia da malograda criança, e antes mesmo de qualquer certeza que os exames toxicológicos e anatómicos tragam, há já quatro lições a retirar:

    1 – A pergunta retórica e demagógica do vice-almirante Gouveia e Melo – “Uma hora de vida de um idoso é menos importante do que uma hora de vida de um jovem?” – deveria ter tido uma resposta unânime: “Sim”.

    “Uma hora de vida de um idoso é menos importante do que uma hora de vida de um jovem?” Sim.

    A vida de um jovem, de uma criança, tem um valor incomensuravelmente superior à de um idoso, porque com a sua perda se desmoronam esperanças, sonhos e experiências que os mais velhos tiveram oportunidade de usufruir. A solidariedade intergeracional faz uma sociedade ser civilizada. Aliás, muitos dos problemas ambientais com que nos deparamos (e não são somente as alterações climáticas) advêm da ausência de solidariedade entre gerações, entre os velhos perante os jovens, entre os políticos que decidem em relação ao futuro das crianças que não têm ainda voto na matéria.

    Sim: as crianças merecem mais horas de vida do que um idoso.

    Notícia do Expresso de 18 de Janeiro de 2022, colocando a “hipótese# de “poder ter sido” um engasgamento a causa da morte da criança

    A resposta do vice-almirante foi possível, e elogiada, porque vivemos na era do populismo. E esse populismo enraizou-se porque se coloca tudo numa visão maniqueísta de escolha de um lado ou de outro. Recordo, aliás, uma frase do ex-presidente Ramalho Eanes, por sinal outro militar, no início da pandemia: “Se necessário, [nós, os idosos] oferecemos o ventilador ao homem que tem mulher e filhos”. Parecendo postura heróica, na altura pensei que um país decente não poderia permitir que um idoso tivesse necessidade de oferecer a vida para salvar um jovem; um país decente deveria salvar ambos.

    2 – A comunicação social, com excepção do Correio da Manhã (saliente-se), enveredou sempre, em relação ao fatídico caso da criança, por uma tese desculpabilizante do Governo, da Direcção-Geral da Saúde e dos membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC).

    Na verdade, independentemente da causa da morte desta criança ser atribuída à vacina, andaremos sempre sob uma espada de Dâmocles: o programa de vacinação destinada às crianças portuguesas dos 5 aos 11 anos não conseguirá salvar uma vida sequer pelo simples facto de, em quase dois anos, não morreu nenhuma. Por isso, qualquer morte por causa da vacina colocará logo o programa de vacinação numa situação de ser pior a cura do que a doença. E isto é insustentável. Não tem “margem de manobra”, ao contrário do que sucede com os mais idosos, onde a letalidade elevada da covid-19 pode “encaixar” perdas colaterais devidas à vacina.

    3 – O trabalho de certos jornalistas da imprensa mainstream mostrou-se, mais uma vez, em todo o seu esplendoroso servilismo. A extraordinária notícia do Expresso de anteontem – elaborada por uma jornalista que não é naif, porque escreve sobre assuntos de Saúde há mais de 20 anos –, sob o título “Engasgamento com comida ou objeto pode ter sido causa da morte de menino de seis anos”, foi um atirar de areia para olhos da opinião pública. Hoje o “pode ter sido” serve para tudo. Teve este artigo, porém, o desejado objectivo de lançar a confusão necessária para que o Governo e, em particular, o Partido Socialista evitassem sequer ter de prestar declarações. Ajudou também uma campanha eleitoral em que a pandemia se mostra tema tabu, como se aquela não se tivesse embutido nas nossas vidas nos últimos dois anos.

    Notícia da RTP “desmentindo” posteriormente a notícia do Expresso.

    Vamos ser claros, e sem ingenuidades: alguém acredita que, se a tese do engasgamento fosse plausível, os médicos que assistiram a criança teriam sido assim tão lestos a informarem o Infarmed sobre um potencial efeito adverso da vacina? Será que um jornalista com dois dedos de testa não saberá que, ao longo de um ano, já morreram largas dezenas de pessoas, sobretudo idosas, que tinham sido vacinadas, mas cujos óbitos, na sua quase totalidade, facilmente se atribuiu a outras causas (que não as vacinas)?

    Agora, mesmo com o desmentido do próprio Hospital de Santa Maria, como só haverá conclusões sobre a causa da morte da malograda criança daqui a um mês, o “serviço” do Expresso foi consumado com sucesso. Parabéns!

    4 – Pela postura de certos especialistas, e em particular da Ordem dos Médicos – que apelou para “que se mantenha a serenidade que uma situação destas exige” e que é “necessário aguardar pelas conclusões da equipa forense, nomeadamente pelos resultados da autópsia médico-legal e potenciais exames toxicológicos” –, fica-se com a perfeita noção da dissonância cognitiva dos gestores da pandemia.

    Note-se que, no caso das mortes contabilizadas pela pandemia, a Direcção-Geral da Saúde sempre tudo contabilizou: pessoas com ataques cardíacos, AVC, quedas de cama, suicídios, acidentes rodoviários e outras bizarrices, se tivessem um teste positivo as suas mortes foram catalogadas automaticamente, e sem qualquer dúvida, por covid-19. Existe mesmo uma norma que determina que em lares com surtos as mortes sejam sempre classificadas como causadas pelo SARS-CoV-2 até prova em contrária. Como não houve autópsias, nunca essa prova contrária surgiu.

    Saliente-se também que, nos casos de miocardites ou da síndrome inflamatória multissistémica – que já existiam antes da pandemia –, os mesmos especialistas não têm dúvidas de estas raras afecções estarem associadas à covid-19 no caso de crianças com teste positivo anterior, mas já colocam reticências sempre que surjam após a toma da vacina.

    Estas são as tristes lições que temos de aprender. Se formos todos parvos.