Categoria: Opinião

  • O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial

    O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial


    Aqui há uns dias tive uma discussão com um amigo sobre o “estado da arte” na Ucrânia. Discussão não; um debate. É sempre bom lembrar que mesmo na maior das discordâncias ainda somos capazes de conviver e tolerar as opiniões alheias. Já não é mau para os tempos que se vivem, onde escolhemos odiar a cada divergência.

    Eu acho um erro continuar a armar a Ucrânia, ele acha que se deve “armar pela paz”. Como nos bombardeamentos de Belgrado ou nos ataques de Nagasaki e Hiroshima. Matar pela paz. Foi este o início de conversa, e o cabo das tormentas, que, julgo eu, divide a maior parte das opiniões.

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    Percebo a visão de continuar a armar a Ucrânia. Não o digo de forma irónica, percebo mesmo. Há um invasor; logo, temos que correr com ele. E para esta argumentação vou fugir ao whataboutismo abordado noutras crónicas. Vou ignorar todos os demais invasores a quem continuamos a estender a passadeira, consoante os interesses económicos do momento, e focar-me apenas no caso ucraniano.

    Se optamos por continuar a armar a Ucrânia temos duas saídas possíveis no pensamento.

    Ou acreditamos que os ucranianos, sozinhos, vão conseguir fazer o regime de Putin capitular. Ou então, alimentamos a escalada do conflito até a intervenção da NATO ser irremediável. Em qualquer um dos casos morrerão mais ucranianos e corremos o risco da utilização das armas nucleares. No segundo caso, deixamos de assistir à guerra pela CNN, já que entraremos num conflito global.

    Sempre que ouço o facilitismo com que se discute a escalada bélica, pergunto-me se os autores de tal discurso estão dispostos a sacrificar o seu estilo de vida, ou mesmo a própria vida, com as consequências de tais actos.

    Depois, para quem defende o armamento contínuo, esperando por uma rendição russa – lembremo-nos que, neste momento, o desequilíbrio de forças é de 10 para 1 –, é preciso lembrar que dois dos maiores exércitos do mundo (China e Índia) não só não condenaram a invasão como continuam a fazer negócios com a Rússia.

    Portanto, caso cheguemos a um conflito global, quem é que nos garante o lado em que ficarão indianos e chineses?

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    Eu compreendo a solidariedade com um povo que sofre. Com todos, já agora. Só não vislumbro menos mortes com mais armas. É apenas isso.

    Isto leva-nos ao odioso da questão. E então, qual é a alternativa? Deixamos os ucranianos entregues à sua sorte?

    Ora, a não ser que de facto um exército estrangeiro vá para o teatro de operações, os ucranianos estão entregues à sua sorte. E com todos os erros de cálculo dos russos, com todas as perdas assumidas, com todo o material deixado a meio do caminho, são os ucranianos que estão a perder as famílias, a ver as suas cidades arrasadas e a perder o controlo do Este e Sul do país.

    Por mais injusta que possa ser a discussão com o inimigo e invasor, de que servirá chegar a essa conversa com um número de mortos maior?

    Ouvindo os jornalistas no terreno e os especialistas militares, tenho a sensação que estamos a assistir a uma viagem entre Lisboa e Porto. A dúvida parece apenas ser se lá chegamos rapidamente ou se optamos por dar a volta pelo Algarve. Quanto maior for o percurso, mais pesada será a factura na contagem de mortos e mais do território haverá para reconstruir.

    Sim, porque essa também é uma parte que convém não esquecer. Quando a poeira da guerra assentar e se enterrarem os mortos, Putin – ou o que sobrar do seu regime – estará isolado do resto da Europa (espero eu!) com os restantes amigos de França, Itália e Hungria, entre outros.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Mas a Ucrânia, com o FMI a bater à porta, terá um garrote financeiro por décadas. Os falcões da guerra lucram sempre duas vezes. Primeiro, com o ecoar da destruição provocada pelas armas; depois com a estridente azáfama dos camiões e das escavadoras.

    Em resumo, se continuarmos a enviar armas ninguém se sentará à mesa e com mais mortos, o regime de Zelensky ficará na mesma sem os territórios ocupados e com uma factura maior de reconstrução. É chegar ao mesmo sítio usando um caminho maior.

    Para as armas, que enviamos, servirem de facto para ganhar esta guerra, então temos que estar preparados, sem burocracias, para intervir. Nós, a tão famosa comunidade internacional.

    Na frieza do pragmatismo parece-me que, apesar de tudo, ainda são dois cenários bastante diferentes. Um leva à perda de parte de um território soberano. Com tudo o que isso tem de injusto para um povo – ninguém o discute. O outro, leva a um conflito mundial. Perdoem-me quando digo que, entre estes dois males, não pode haver dúvidas sobre qual o caminho a seguir.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência

    Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência


    Sempre que discuto a “morte assistida”, morro mais um pouco. E por ser “um pouco”, morro de morte sofrida e não de morte morrida.

    Assim, posso voltar para contar como foi estar morto, doutro modo preferiria estar morto de vez. Mas não me deixam “querer”, porque me dizem que só morto desejaria morrer, porque os vivos querem sempre morrer às prestações.

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    Mas há prestações demasiado pesadas, e esperar morrer para poder escolher é, já, ser moribundo. Aliás, se pudesse, realmente, escolher estaria morto por voltar a viver. Mas acontece que é a proximidade da morte que me faz escolher preferi-la à vida morrida.

    Dizem-me que não sou “objectivo”, mas como posso sê-lo sem que me torne Objecto de mim mesmo? Ora, para consegui-lo é necessário viver, não vá a morte avisar-nos que existe um modo de descontar o tempo perdido.

    Disseram religiões e filosofias que antecipar a morte é fazer batota. Elas convenceram-nos que morrer é o objectivo da vida e, depois, arranjaram um modo de nos complicar o caminho: uns com a reencarnação, outros fazendo do matar(-se) um pecado.

    Ninguém quer ver o que a Consciência frustra a si mesma: a Razão, que permite fazer viver mais e melhor, apenas faz adiar o momento inevitável; ela existe, contudo, para dar uma “razão” à vida, razão que a morte não perdoa.

    Se nos pusermos a questionar a moral, estaremos a admitir que a vida é irracional, que não vale a pena sofrer a mais ínfima questão íntima. Então, para que não tenhamos inveja, vendemos a Razão e criamos regras e “deônticas” para os mais in-conscientes.

    Mas sem que o indivíduo viva por “si mesmo” ele não poderá regrar-se com liberdade. É obrigatório que se mate devagarinho, que cresça sozinho, para que possa, um dia, desejar não morrer.

    A moral quer frustrar a liberdade de cada um querer viver por si mesmo. E é por isso que convém falar destas coisas às escondidas, porque cada um evolui como quer a expensas do Colectivo. Só assim, próximo da morte, terá o Ser o último fôlego, que é viver pela primeiríssima vez, que é ver que já não tem de escolher coisíssima alguma.

    Assim, torna-se parte da moral que o queria fazer viver à força. Mas isto não é, já, estar morto? Pois claro que sim, mas ele pôde matar-se à vontade, o que, de mais a mais, mata a moral, mas também a ressuscita.

    Ora, ser livre, bem como perder o medo da morte, não mata a ética, é um seu pressuposto. O mais que poderia acontecer é que as pessoas se matassem cedo de mais. Frustrar-lhes o caminho pode, não obstante, servir-lhes de mote. Mas se lhes dás palco, arriscas-te a assegurar, ainda melhor, a velha moral restritiva.

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    Não há, assim, necessidade de moralizar, mas, apenas de deixar de dar palco à questão, que, ainda por cima, pode fazer sofrer até morrer. Quem precisa, muito, da velha moral, tem, em absoluto, medo da liberdade de morrer, e isto mata, também; mata, aliás, quem ainda tem muito para sofrer, para que possa, deveras, perder o medo de ser livre.

    Saber se o sofrimento compensa ou não, esta é a grande questão, se soubéssemos responder-lhe em absoluto estaríamos mortos. Pretendem os moralistas responder-lhe, e eles falam pela morte, mas para matarem os outros à sua medida.

    São tão “livres”, mas não se livram de querer matar, que é uma forma de se matarem para serem, finalmente, livres. Até lá, sofrerão a irracionalidade, e o medo de poderem desejar matar-se antes de morrerem vivos o ludíbrio da morte morrida.

    Fisioterapeuta e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O nosso glorioso “Mundo Livre”

    O nosso glorioso “Mundo Livre”


    Nos dias que correm, nunca deixamos de escutar um lema já em lengalenga: é preciso defender o nosso modo de vida, a nossa Liberdade, a nossa Democracia, o nosso Estado de Direito…

    Tudo isto é repetido ad nauseam pela nossa comunicação social, em particular por comentadores que descobriram que afinal apenas serviam para tal emprego, depois de anos e anos na vida política e em cargos governamentais.

    As palavras que ecoam da boca destes comentadores proporcionam-nos a sensação de que vivemos numa espécie de Alice no país das maravilhas, liderado por uma nação excepcional: os Estados Unidos da América (EUA), esse farol da Liberdade.

    city skyline across body of water during daytime

    Todos os dias recebemos as suas directrizes e orientações, caso contrário, como seria possível conhecer os bons e os maus da fita deste mundo perigoso?

    Será o mundo ocidental liderado pelos EUA assim tão idílico? Será assim tão respeitador da propriedade privada, dos direitos humanos, da imprensa livre e do estado de direito? Comecemos pela propriedade privada, um direito “sagrado” do mundo ocidental.

    A moeda norte-americana, o dólar norte-americano (USD), é desde o final da II Guerra Mundial a moeda reserva do Mundo.

    Em 1971, depois de ter financiado a guerra do Vietname com a impressora do seu Banco Central, sem qualquer respaldo por Ouro, os EUA foram obrigados a terminar a convertibilidade do USD no metal amarelo. Desde então, o USD perdeu 98% do seu valor!

    A desvalorização de uma moeda, através da impressão massiva de dinheiro, não é mais do que o confisco da propriedade privada dos cidadãos.

    Quais as consequências de tal política? Uma inflação descontrolada. Em Março último situou-se em 8,5%, a mais elevada desde o início da década de 80 do século transacto. Segundo a página Shadow Statistics, que aplica o método de cálculo de inflação de há 40 anos, em Março de 2022 a inflação encontrava-se em 17,5%! Podemos imaginar o presente saque às poupanças dos cidadãos do “mundo livre”, com taxas de juro dos depósitos nos 0% e a inflação próxima de 20%!

    Evolução do dólar (USD) em função da cotação do ouro (unidade: gramas de ouro por 100 USD). Fonte: Yahoo Finance (análise do autor)

    Como chegámos até aqui? Com a impressão de mais 5 biliões de USD (12 zeros) desde o final de Setembro de 2019, em que ocorreu uma crise no mercado interbancário norte-americano, por parte do banco central norte-americano. A crise “pandémica” e agora a “guerra na Ucrânia” são desculpas perfeitas para justificar as consequências desta loucura monetária.

    A classe política do “Mundo Livre” tem de continuar a vencer eleições atrás de eleições. Estes gloriosos feitos requerem dinheiro, muito dinheiro: para as clientelas políticas, para os funcionários públicos, para os empresários e colaboradores em casa sem produzir, para a obnóxia imprensa e para alimentar guerras sem fim, visando incrementar índices de popularidade de líderes caídos em desgraça.

    Evolução da taxa de inflação nos Estados Unidos entre 1970 e Março de 2022. Fonte: Yahoo Finance (análise do autor)

    Como o fazem? Geram défices públicos monstruosos – em 2020 foi de 3,3 biliões, um valor superior a 16% do PIB norte-americano – que necessitam de ser financiados por novas emissões de dívida pública.

    E quem a compra? O Banco Central, usando a respectiva impressora.

    O leitor coloca a seguinte pergunta? Mas isso não gera inflação, o tal confisco de propriedade de privada? Claro que sim, mas a culpa é do “Putin” ou da “pandemia”.

    Para além da inflação, o assalto à propriedade privada no Ocidente ocorre de outras formas. O maior de todos é perpetrado pelo esquema em pirâmide denominado Segurança Social. Apesar de tudo, apresenta duas diferenças, para muito pior, em relação ao famoso burlão Bernie Madoff: (i) é obrigatória, caso contrário, o destino do rebelde é o cárcere; (ii) a saída não é voluntária nem pode ocorrer a qualquer momento, é quando as autoridades assim o decidam.

    Evolução do balanço do Banco Central norte-americano, em biliões de USD, entre 2008 e 2022. Fonte: Stlouisfed (análise do autor)

    E quem não se recorda dos assaltos ocorridos em vários países ocidentais – por cá, já ocorreu por diversas vezes – aos fundos pensões privados, mediante a sua transferência para a Segurança Social? Tal desvio do alheio foi propagandeado como uma receita extraordinária para os cofres públicos, com o propósito de salvar as contas e a boa gestão!

    Agora até temos um estado vassalo dos EUA, liderado por um membro do World Economic Forum (WEF), que decretou um estado de emergência para colocar um fim às manifestações pacíficas de camionistas e confiscar-lhes as contas bancárias e activos financeiros, depois de se ter apropriado de 12 milhões de USD em fundos angariados em plataformas de crowdfunding.

    E os estados vassalos grego e italiano que confiscam todos os meses os seus pensionistas, impondo-lhes sanções pecuniárias apenas por se recusarem à inoculação de substâncias experimentais no seu corpo?!

    O que dizer dos EUA e dos seus vassalos europeus que congelam e confiscam as reservas do Banco Central russo? Ou de cidadãos russos, sem qualquer acusação ou direito de defesa, tal como exige um Estado de Direito?

    Evolução do défice (vermelho) ou superávit (verde) federal dos Estados Unidos, ano a ano, em milhares de milhões de dólares, entre 1980 e 2021. Fonte: Stlouisfed (análise do autor)

    Tal como diz a nossa Constituição, bem como a maioria das constituições do suposto “mundo livre”, no seu nº 1 do artigo 26º: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

    Será mesmo assim? E o nosso direito à personalidade, eliminado por umas fraldas faciais durante dois anos, sem qualquer evidência científica de que funcionam?

    E a tortura de crianças durante dois anos, prejudicando seriamente a sua educação; ora através de um ensino à distância, prejudicando os mais pobres que não têm Internet ou computador pessoal, ora presencial e com fraldas faciais, sem possibilidade de lerem as emoções e os rostos dos professores, indispensáveis a uma boa Educação.

    O que dizer do certificado digital imposto pela União Europeia, utilizado unicamente para discriminar cidadãos que se recusam a inocular-se com uma substância experimental, vedando-lhes o acesso a uma vida normal – ginásios, restaurantes, estádios, teatros –, e impedindo-os de circular livremente, tal como se vivessem numa prisão.

    E o discurso de ódio de que foram vítimas, sem que ninguém se indignasse? E o direito ao corpo tantas vezes reclamado para as questões do aborto e da eutanásia, mas que na “pandemia” não se aplicou, caso contrário, tal “negacionista” não passava de um inimigo do bem comum.

    man opening his arms wide open on snow covered cliff with view of mountains during daytime

    A discriminação atingiu novos absurdos: recentemente, a organização do torneio de ténis de Wimbledon baniu os jogadores russos e bielorussos.

    O mesmo seguramente terá acontecido aos tenistas norte-americanos Arthur Ashe, Pancho González e Stan Smith durante os torneios de ténis nos finais dos anos 60 e princípios dos anos 70, em resultado dos bombardeamentos de nações soberanas como o Camboja e o Vietname, onde faleceram milhares e milhares de civis inocentes.

    Certamente que o mesmo se passou com os jogadores norte-americanos Andy Roddick, James Blake, Andre Agassi e as irmãs Williams durante o torneio de Wimbledon de 2003, como castigo pelo emprego de fósforo branco e urânio empobrecido na cidade iraquiana de Fallujah pelo exército norte-americano.

    Uma missão em nome da eliminação de “armas de destruição maciça” que afinal nunca tinham existido. As consequências são ainda hoje visíveis, em que crianças nascem com defeitos congénitos catastróficos.

    E o que dizer da mítica final de Wimbledon entre os norte-americanos Pete Sampras e Andre Agassi em 1999, como foi possível tal ter acontecido!, dado que nesse ano a NATO bombardeava a capital sérvia e o “Exército de Libertação do Kosovo” fazia uma limpeza étnica de Sérvios, Judeus e Ciganos – na altura, a nossa imprensa não os veio defender, nem o então presidente da Assembleia da República se indignou com tal chacina!

    E o que dizer da detenção por anos a fio de pessoas sem julgamento?

    Por cá, o método é um apanágio da nossa justiça há décadas; para não falar dos milhares de cidadãos acusados pelo Ministério Público e posteriormente absolvidos pelos tribunais, com a total indulgência dos magistrados que arruinaram o bom-nome e a reputação dessas pessoas. São autênticos inimputáveis, destruindo vidas com recursos públicos.

    Nos últimos dois anos, o governo australiano, outro membro do “Mundo Livre”, quis regressar às suas origens, no tempo em que não era mais que uma colónia penal do império britânico. Para tal, construiu acampamentos para forçar cidadãos saudáveis a isolamento e quarentena, sob o olhar atento de guardas e funcionários de saúde. Caso tentassem escapar, eram encarcerados e acusados ​​de crimes! Tudo em nome do estado de direito, das liberdades e garantias tão características do “mundo livre”.

    E no nosso cantinho à beira-mar plantado? Durante a “pandemia”, tivemos cidadãos detidos em prisão domiciliária, apenas por terem acusado positivo num teste sem qualquer fiabilidade, sem qualquer mandado judicial, tal como determina a Constituição, apenas com uma ordem de um funcionário administrativo. Tudo em nome do Estado de Direito!

    E o que dizer de Julian Assange, que teve o topete de desmascarar os crimes de guerra dos EUA, há anos detido sem qualquer julgamento? Outro estado vassalo prepara-se agora para o entregar ao país líder do “Mundo Livre”.

    Bem, mas o que nos salva é a imprensa livre, sem qualquer censura e dotada de uma imaculada imparcialidade.

    Esta “imprensa livre” diz-nos há muito que a censura é necessária, pois serve para nos “proteger da desinformação e da propaganda”.

    Talvez por isso, contrataram os famigerados “Fact-checkers”, para nos proporcionar a verdade oficial.

    Talvez por isso, sejam os beneficiários de enormes subsídios estatais, possivelmente para compensar os colossais prejuízos em que vivem mergulhados há anos, o suficiente para encerrar portas de qualquer simples negócio.

    Talvez por isso, tenham participado na cocção dos cidadãos à inoculação de uma vacina experimental nos seus corpos.

    Talvez por isso, puderam publicar em Janeiro do presente ano que a CIA preparou as forças especiais ucranianas a “matar russos”.

    Talvez por isso, ignorem que o conflito na Ucrânia existe desde 2014, onde faleceram 14 mil pessoas e foram deslocadas 1,5 milhões de pessoas.

    Talvez por isso, as redes sociais agora autorizam discursos de ódio, desde que sejam dirigidos a russos!

    Sorria estimado leitor: não perca os discursos encomiásticos às nossas liberdades, à nossa democracia; convença-se e seja feliz neste mundo perfeito, de garantias e de respeito pelos direitos humanos!

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Hoje mais do que nunca, sempre!

    Hoje mais do que nunca, sempre!


    Na capa da revista do semanário Novo, João Lagos, o conhecido organizador do Estoril Open, dizia há poucos dias que “cheirou-me que o 25 de Abril não seria bom para o ténis”.

    O contexto completo seria que, nessa altura, sendo o ténis um desporto de elites, depois do 25 de Abril de 1974 passaram os seus executantes a serem chamados de fascistas, burgueses e por aí fora.

    O Novo, que apesar do nome já cheira a mofo, vai fazendo o que pode para trazer os valores, os interesses e as notícias de outros tempos. Imagino que tenham na calha um exclusivo da Exposição do Mundo Português de 1940 e ainda um roteiro gastronómico com as melhores tascas de Santa Comba Dão.

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    Devo dizer que concordo no essencial com João Lagos. O ténis sofreu com a Revolução. Antes era um desporto reservado a uma certa classe social. Por exemplo, nas colónias, os campos de ténis eram só utilizados pelos colonos brancos. Hoje, qualquer preto da Amadora vai à Decathlon em Alfragide e compra uma raquete por 30 euros. Onde é que isto vai parar?

    Mas não foi só o ténis que sofreu com a insurreição dos Capitães. Assim de repente lembro-me de mais umas quantas actividades que ficaram para sempre traumatizadas.

    Por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Antes desse 25 de Abril de má memória, simplesmente não existia; depois teve que se apresentar ao trabalho e começar uma vida de amarguras com pobres aos rodos nos corredores dos hospitais. A assistência médica durante a ditadura não estava disponível para todos, e em casos mais agudos, e na eventualidade de seres de uma classe mais baixa, falecias só. O que era óptimo em termos de gestão das contas nacionais, porque se poupava muito em pensões e subsídios de desemprego. 

    O problema é que nessa altura também não existiam pensões ou subsídios de desemprego. Outra consequência desagradável da Revolução dos Cravos foi a tentativa de criar uma rede social que não deixasse ninguém na miséria absoluta. Pior ainda, decidiram criar um salário mínimo nacional. Portanto, à própria Economia, tal como a João Lagos, lhe cheirou que isto dos chaimites no Largo do Carmo ia dar asneira. 

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    De repente, um país que estava habituado a gastar o dinheiro dos impostos em guerras em África, onde uma geração morria sem saber porquê, viu-se na contingência de criar uma rede de apoio social e um sistema universal de saúde gratuito. Não só as pessoas deixaram de morrer entre saraivadas de balas na selva como, na Metrópole, deixaram de temer uma pneumonia como se de peste se tratasse. Imaginem o rombo nas contas! 

    Mas a catástrofe não ficou por aqui. O acesso ao emprego também passou a estar consagrado na Constituição da República e a deixar, legalmente, todos com hipótese de serem o que quisessem ser. Independentemente de sexo, raça, cidadania ou território de origem.

    O preto já não tinha que trabalhar na sanzala ou servir o colono. A mulher já não precisava de ficar em casa e ter como objectivo de vida tratar do marido. Agora pensem como isto destruiu o ego masculino e nos trouxe para a cama da insegurança.

    Foi o grande boom dos consultórios de psicanálise. Antes de 74 tínhamos criados, zonas em espaços públicos só para brancos e acesso ao emprego condicionado a um clube. Depois da malfadada Revolução, entrámos num mundo aberto e, em teoria, acessível e mais justo para todos. Ao movimento do macho alpha, tal como ao João Lagos, cheirou-lhe logo que isto do PREC ia deixar traumas.

    Não contentes com o acesso de todos ao mundo laboral, ainda criaram regras mais ou menos civilizadas. Isto quando o processo de jorna e de recolha de homens nas praças para jornadas de trabalho funcionava tão bem.

    De repente, passou a existir um horário de trabalho de oito horas diárias e dois dias de descanso. Em cima disso, a loucura das férias pagas e do direito a licença de maternidade. Foi também nesta altura que o patronato começou, tal como João Lagos, a pensar: “Regras? Isto vai dar merda.”

    group of men in black and gray helmet standing on road during daytime

    E, por esta altura, ainda não se tinham lembrado do direito à greve. Reclamar? O trabalhador pode reclamar se não concordar com o empregador? Mas está tudo doido? Ainda ontem estavam felizes com um cabaz de pão, vinho e azeitonas, e agora temos que negociar como vender a força de trabalho?

    O 25 de Abril foi também muito mau para os lucros dos patrões. Sem aviso, tiveram que começar a tratar os trabalhadores como algo mais próximo de um ser humano.

    Mas o pior de tudo, e que Abril nunca mais endireitou, foi a beleza do acto eleitoral do partido único. Uma pessoa sabia sempre o resultado e, aqui e ali, até se contavam votos dos mortos, o que era sempre uma forma de manter os defuntos entre nós. Um conceito de família para a eternidade numa sociedade devota e cheia de fé.

    Hoje tudo isto acabou, e qualquer pessoa pode formar um partido político com base nas suas convicções. Por muito idiotas que estas sejam, estão protegidas, em princípio, pela liberdade de expressão e de pensamento. Uma facada irreparável no silêncio e tranquilidade vividas até Março de 74, quando as opiniões eram controladas e as publicações autorizadas apenas depois de passarem no filtro editorial.

    Agora todos dizem o que pensam, escrevem o que querem, falam do que lhes apetece. Uma chatice. Se a saudosa PIDE-DGS ainda aplicasse o lápis azul, teríamos para ler, com alguma probabilidade, apenas o Novo e o Observador. O que seria óptimo para as poupanças familiares, sabendo nós, desde que a troika nos informou, que vivemos sempre acima das nossas possibilidades.

    Há quem chame a tudo isto Conquistas de Abril.

    Conquistas que se vão ensombrando um pouco por toda a Europa com o crescimento dos movimentos de extrema-direita, muitos deles apoiados pelo inimigo número um do momento: o Vladimir, que hoje ninguém conhece mas que, durante anos, passeou, tirou fotografias e fez negócios com os principais líderes europeus.

    Até por cá, na nossa pequena democracia, temos um saudoso do Estado Novo que, imitando uma tradição salazarista, forrou os gabinetes dos deputados do seu partido na Assembleia da República com retratos do grande líder. Que saudades desses tempos parece ter o nosso André. 

    woman in black and white tank top leaning on wall

    O mais importante, e que estes últimos anos parecem querer ensinar-nos, é que nada é garantido. A liberdade que hoje conhecemos está, de facto, constantemente ameaçada por uma classe de privilegiados, dentro e fora de portas, que preferem um mundo cheio de compartimentos e acessos restritos.

    E é por isso que, ironias à parte, Abril ainda não terminou. Se há milhões de europeus e milhares de portugueses que, livremente, votam em partidos políticos de índole fascista, significa que a Revolução ainda não cumpriu os seus propósitos.

    E por isso dizemos, hoje mais do que nunca, 25 de Abril. Sempre!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • 25 de Abril Sempre! Democracia só para alguns!

    25 de Abril Sempre! Democracia só para alguns!


    No livro do Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas, a Lebre de Março disse à Alice “Toma mais chá!”, num tom muito sério. “Ainda não tomei nenhum,” respondeu Alice em tom ofendido, “portanto não posso tomar mais.” “Não podes tomar menos, queres tu dizer,” disse o Chapeleiro, “é muito fácil tomar mais do que nada.”

    Desde pequena que o meu feriado preferido é o 25 de Abril! O meu pai é professor de História, e todos os anos, solenemente, assistia-se lá em casa ao Capitães de Abril, realizado pela Maria de Medeiros.

    Assim, cedo me apercebi da importância histórica da revolução de 25 de Abril que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, e que lançou as bases para a implantação de um regime democrático.

    Desde que me lembro de ser, celebro o 25 de Abril como sinónimo de liberdade, e ainda o continuo a fazer, embora o peso da idade, das experiências vividas e observadas, me tenha trazido também o sustentável peso de se ser mulher, e de todas as limitações à liberdade que, embora em democracia, nos continuam a ser impostas.

    Por isso, tal como a Alice, do “chá” da democracia, creio ter bebido ainda muito pouco ou nada. Não obstante, no dia 24 de Março de 2022, assinalou-se o facto de vivermos há mais tempo em democracia, 17500 dias, do que vivemos em ditadura, 17499 dias. 

    Começo assim esta crónica com uma pergunta provocatória: Caras companheiras de resistência, quando chegará o dia em que celebraremos o facto de TODAS vivermos, de facto, em democracia?

    Ou por outras palavras, quando é que chegará o dia de celebrarmos todos (mulheres incluídas) o reconhecimento da dignidade humana, da liberdade de pensamento e expressão, da igualdade de direitos e deveres, da limitação e controle do poder, valores supostamente promovidos pelo regime democrático?

    Disse também a Lebre de Março à Alice num tom encorajador: “Toma um pouco de vinho”, ao que a Alice respondeu: “Eu não vejo nenhum vinho”. “Não há nenhum”, disse a Lebre de Março. “Então não foi muito educado da tua parte oferecê-lo”, comentou a Alice, com raiva.

    Parece-me, caras companheiras de resistência, que tal como aconteceu com a Alice, também a nós nos foi oferecido algo que nunca existiu: liberdade para todos, a ideia da democracia enquanto a única forma de governo que respeita plenamente a dignidade humana e permite aos seus cidadãos desenvolver ao máximo as suas potencialidades.

    O 25 de Abril de 1974 aconteceu para todos, mas só aos cidadãos do sexo masculino lhes é permitido gozar das bem-aventuranças por tal acontecimento proclamadas. Por isso mesmo, caras companheiras de resistência, tal como a Alice, sintam-se no direito de sentir raiva! E já que aqui estamos, e o Mundo, tal como nos é permitido experienciar, não vai a lado nenhum, sintamo-nos também no dever de fazer algo para que possamos não só celebrar a liberdade, mas fazer parte dela também.

    Há um velho ditado popular que diz: “A ignorância é uma bênção”. Já eu acredito mais na máxima de Francis Bacon de que o “conhecimento é poder”.

    Assim, sendo a nossa democracia fundamentalmente patriarcal e machista, e atravessando a Humanidade um período bizarro em que há mulheres que garantem não serem feministas, disponibilizo aqui as já costumeiras definições do Priberam para esclarecer conceitos que me parece essencial não ficarem esquecidos ou serem deturpados:

    Patriarcado é o tipo de organização social em que a autoridade é exercida por homens;

    Machismo é o comportamento ou linha de pensamento segundo a qual o homem domina socialmente a mulher e lhe nega os mesmos direitos e prerrogativas;

    Feminismo, o movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem.

    Para comprovar o argumento da democracia patriarcal e machista em que vivemos poderia socorrer-me de vários exemplos, mas vou concentrar-me apenas em um para ser clara, objetiva, e concisa, em mais uma de muitas tentativas de fugir ao estereótipo de que nós, mulheres, somos todas malucas.

    Segundo a avaliação do Comité Europeu dos Direitos Sociais, tendo por base a Carta Social Europeia, à exceção da Suécia, todos os restantes 14 países europeus signatários – Portugal, Bélgica, Bulgária, Croácia, Chipre, República Checa, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Países Baixos, Noruega e Eslovénia – estão em incumprimento das disposições adotadas para a implementação da igualdade de género em termos salariais.

    Num documento divulgado a 13 de Março do ano corrente, o mesmo Comité afirma que “a disparidade salarial entre os sexos é inaceitável nas sociedades modernas, mas continua a ser um dos principais obstáculos para alcançar a igualdade real”, e apela a que os governos europeus intensifiquem esforços “com urgência” para garantirem a igualdade de oportunidades no local de trabalho.

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    Acrescenta ainda o mesmo Comité que, apesar dos 15 países signatários da Carta Social Europeia terem “legislação satisfatória”,isto é, “acordos de cotas e outras medidas”, continuam a ser registadas “várias violações” ao pleno estabelecimento de uma igualdade salarial entre homens e mulheres, e “as mulheres também continuam sub-representadas nos cargos de tomada de decisão nas empresas privadas.”

    A Carta estabelece que o direito à igualdade de remuneração salarial entre os sexos deve ser garantido por lei pelos estados subscritores. Portugal assinou a Carta em 1996, e iniciou a sua vigência em Julho de 2002.

    Contudo, de acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Pordata, em Portugal, no ano de 2020 registou-se um fosso salarial entre homens e mulheres de 11, 4%, superior ao verificado em 2019, de 10,9%.

    Tal valor traduz-se numa perda de 51 dias de trabalho remunerado para as mulheres, que é o equivalente a dizer que, em 2020, as mulheres trabalharam pro bono 51 dias.

    Mas para o bem público de quem? É que de acordo com relatório anual “Portugal, Balanço Social 2021. Um retrato do país e de um ano de pandemia”, elaborado pela Nova SBE Economics for Policy, na taxa de risco de pobreza, as mulheres são as que saem mais penalizadas, argumento comprovado pelo risco acrescido de 2,5 pontos percentuais de 2019 para 2020 durante a pandemia de COVID-19, no sexo feminino face ao masculino.

    Caras companheiras de resistência, deixemo-nos então enraivecer, pois!

    E com níveis mais altos de escolaridade, como demonstra o relatório “Education at a Glance 2021”, onde pode ler-se que “em 2020, as mulheres entre os 25 e os 34 anos eram mais propensas do que os homens a frequentar uma carreira universitária em todos os países da OCDE”, embora continuem a receber salários inferiores comparativamente aos seus pares masculinos.

    Em Portugal, 49% das mulheres na faixa etária mencionada, tinham um diploma universitário em 2020, em comparação com os 35% dos homens, taxas que se tornam mais elevadas tendo em conta a média dos países da OCDE, 52% e 39%, respetivamente.

    Parece-me que sou obrigada a dar a mão à palmatória e admitir que, efetivamente, a ignorância é uma bênção.

    “Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir daqui?” Perguntou a Alice. “Isso depende muito aonde queres chegar!” Disse o Gato.

    Caras companheiras da resistência, se o vosso destino desejado é também a igualdade salarial entre homens e mulheres, trago boas e más notícias: a boa é que já há data prevista para tal feito histórico, a má é que a mesma aponta para 2157, segundo o World Economic Forum, no “Global Gender Gap Report 2021”, ou seja, daqui a 135,6 anos, o que significa que “mais uma geração de mulheres terá de esperar pela paridade de género.”

    Se de igual forma desejam contrariar a ideia do Gato de que “somos todos malucos aqui!”, e tal como a Alice não desejem andar “pelo meio de gente maluca”, deixemo-nos então enraivecer, pois! E enquanto isso, descruzemos os braços, não para trabalhar mais 51 dias que os homens por ano, de graça, mas para que os possam cruzar, graciosamente, e por fim, com a sensação de dever cumprido e de igualdade de direitos alcançados, afinal “é muito fácil tomar mais do que nada.”

    Tal como a rainha da Alice no país das maravilhas, também eu “às vezes acreditei em até seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço”, e não pretendo esperar 135 anos para viver numa democracia de facto, porque a esperança média de vida não mo permite, nem tão pouco o facto de, tal como Álvaro de Campos, “o que há em mim é sobretudo cansaço”, cansaço do sustentável peso de ser mulher e de ter de continuar a celebrar, no papel de espectadora, a liberdade dos outros, dos que verdadeiramente continuam a (des)governar a democracia.  25 de Abril sempre!

    E, já agora, para todos. Mulheres incluídas, se puder ser!

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Narrativa extremista: terrorismo, pandemia e guerra

    Narrativa extremista: terrorismo, pandemia e guerra


    Recentemente, um Inspector-Chefe disse-nos, numa discussão sobre lidar com autores/criminosos, mesmo que de crimes hediondos de homicídio ou crimes sexuais, que “não podemos ser iguais a eles, temos que ser melhores.”

    Pensamos que isto é verdade, em especial a nível institucional, quando se aborda questões de índole societária, como se pretende neste texto. Esta ideia é fundamental: o Estado/Sociedade não pode agir como um cidadão particular, sujeito às emoções, preconceitos e vicissitudes inerentes à condição humana.

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    Deve, rectius, tem de ser melhor, almejar o bem-comum, com credibilidade, para que o exercício da potestas seja uma manifestação da auctorictas, teleologicamente aceite, porque compreendida.

    Ora, esta compreensão, é aquilo a que nos propomos, nestas linhas. Deste modo, a forma como se comunica, quando se pretende transmitir uma ideia (v. g. uma justificação para uma acção estatal, como seja restrições de direitos e liberdades fundamentais, ou uma acção ofensiva contra actor de nível estatal), em particular se o objectivo é convencer uma determinada audiência (como uma população/opinião pública), é mais eficazmente veiculada através de uma história, de uma narrativa, o que tem explicação nos processos neuropsicológicos de processamento de informação (vide o brilhante livro do investigador Angus Fletcher, ‘Wonderworks’).

    Isto porque os “Porquês” importam, não só os “Como, Quando, Onde e Quem”, como nos ensinam os estudos dos fenomenologistas Boss ou Binswanger (como este último sintetizou, com rasgo, na ideia de “estrutura ontológica apriorística do significado”), sobre a apreensão da realidade e significados dos seus elementos constituintes.  

    Destarte, principiamos pelos modelos conceptuais explicativos dos processos de radicalização no extremismo violento, vertente específica na análise do fenómeno terrorista, que mais relevo tem para a presente discussão. Dos vários existentes, salientaremos dois que nos parecem não só mais claros como mais abrangentes e capazes de compreender as várias dimensões na lide: o “Staircase model”, de F. Moghaddam (The Staircase to Terrorism – A Psychological Exploration, 2005), e o “Process of Ideological Development”, de R. Borum (“Understanding the Terrorist Mindset”, 2003).

     O primeiro, define seis níveis que, como uma escada, um indivíduo “sobe” no decorrer do seu processo de radicalização, conforme melhor se ilustra na imagem infra.

    Destacam-se pela relevância, contudo, dois níveis, a saber o de base (“ground floor”), “Psychological Interpretation of Material Conditions”, onde a maioria das pessoas se encontra, e as considerações de injustiça percebida são determinantes, logo o nível mais importante onde as acções individuais e societárias de prevenção da radicalização se devem focar; e o último (“5th floor”), “The Terrorist Act and Sidestepping Inhibitory Mechanisms”.

    Este último remete-nos para a hierarquia de valores e os princípios de humanidade de cada indivíduo, e a justificação ou construção psicológica que permite a prática de acções limite contra outrém, com destaque para a demonização/desumanização do outro (o “inimigo”, assim feito não-humano).

    Isto é decorrente da visão dicotómica do mundo e/ou realidade (e/ou mesmo duma visão e terminologia militaristas), ou para a intervenção do supernatural, seja pelo sancionamento divino ou pelo aniquilar do mal, o que por sua vez se encontra associado à elevação da vingança e/ou da violência a virtudes.

    De uma forma mais simples, mas não simplista, a concepção de Borum acentua a centralidade dos conceitos de Justiça e justeza, demonstrando de uma forma até intuitiva o quão importantes as percepções de Injustiça para o processo de radicalização, e como uma, ou melhor, como a narrativa extremista “ajuda” a racionalizar um esquema mental apto a explicar logicamente uma história de vitimização, demonização e justificação, não obstante os sempre existentes factos ou eventos que originam, ou permitem o início, do processo de radicalização (Wiktorowicz falava no conceito de “abertura cognitiva” – no seu ‘Radical Islam Rising: muslim extremism in the west’, de 2005), ainda que normalmente acompanhados de falácias ou viés: “Not Right » Not Fair » Your Fault » You’re Evil”.”

    Destacaríamos, aqui, os momentos de “atribuição de culpa” e “generalização/estereotipização”, que facilmente deixam antever algumas falácias-tipo (como teorizado, contemporaneamente, por Daniel Köhler, no seu “Understanding deradicalization. Methods, tools and programs for countering violent extremism”, de 2016), como por exemplo: falácia de confirmação (procurar comprovação para argumento próprio, ignorando contradições), realismo ingénuo (o mundo é tal e qual o vejo), falácia do ângulo morto (só a visão dos outros é que é enviesada), ou efeito do falso consenso (os outros partilham a minha perspectiva), este último muito ligado ao ‘efeito de eco’ no âmbito ciber e das redes sociais. 

    O acima exposto foi-nos possível verificar, por diversas vezes, em sede de investigações de terrorismo e terrorismo internacional, em particular as atinentes às vertentes de (des)radicalização e Foreign Terrorist Fighters (FTF). Com algum pesar, identificamos, às vezes sem esperar, elementos da retórica ou narrativa do extremismo violento na comunicação pública, seja institucional, de comentário e dos meios de comunicação social (aqui referimo-nos aos Main Stream Media – MSM).

    Este iter comunicacional é muitas vezes acompanhado de uma doutrina de pensamento único, o certo, o “nosso”, o lado “bom”, traduzido no conceito do ‘politicamente correcto’, o qual mais não é do que uma limitação encapotada (a coberto de aparentes sentimentos nobres ou virtudes) do direito fundamental da Liberdade de Expressão.

    Algo que, por sua vez, socio-politicamente, se manifesta em movimentos e/ou eventos, ainda que com uma lógica ou incidente de base eventualmente válidos, que, distorcendo ou reorganizando a realidade dos factos (com recurso àquelas falácias), desvirtuam os próprios princípios que alegam sustentar a sua actuação. Exemplos disso são a ’Black Lives Matter’, o ‘Woke movement’ ou a (consequente) ‘Cancel Culture’.

    Adicionaríamos, aqui, o actualíssimo ‘lugar de fala’, um pouco associado aos movimentos de minorias ou LGBTQ, em que quem não partilha da experiência concreta não teria “direito” a ter, e a expressar, uma opinião sobre um determinado assunto, numa negação intelectual… do intelecto dos outros, erga omnes.

    Obviamente, tudo isto se interliga numa questão superior, que é a da utilização de política identitária (“Identity Politics”), temática que, pela sua extensão, não iremos aqui abordar.

    Evidentemente que o problema principal se centrará na comunicação institucional, enquanto emanação da vontade e actuação da sociedade, a qual se desejará, espera-se, melhor e não sujeita aos defeitos e emoções inerentes à condição humana individual.

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    Como tivemos oportunidade de escrever anteriormente, “[é] absolutamente relevante que a comunicação institucional se efectue projectando valores da seriedade, tolerância, legitimidade e proporcionalidade das acções tomadas, mas sempre no quadro de equilíbrio e justiça, para que a legitimidade de actuação com base numa auctoritas, mormente jurídica, permita o exercício da potestas. (…)”.

    Como se compreende a acção internacional de alguns países, com direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, à revelia das normas de Direito Internacional, como os Estados Unidos no Iraque em 2003 ou a Rússia na Crimeia em 2014?

    Se tais situações fossem expurgadas do quotidiano, eliminando causas de descontentamento e injustiça, adquirir-se-ia mais legitimidade no exercício político, o que levaria ao alcance de mais bem comum, percepcionado como uma maior realização do pacto social, o que redundaria em coesão social e política, aumentando o vínculo societário, fosse através da identificação com a nação, ou apenas do vínculo jurídico da cidadania, ultrapassando eventuais questões multiculturais, e reduzindo, consequentemente, a exposição a retóricas de extremismo violento.” (Contra-Terrorismo: Tópicos Essenciais e a Unidade CT “ideal” – 2021).

    Ora, estas características discursivas ou comunicacionais foram, ou são, passíveis de serem identificadas paradigmaticamente em dois contextos recentes e relevantes: a Pandemia da doença Covid-19 e a Guerra na Ucrânia por invasão russa.

    Quanto à Pandemia, desde logo identificamos aquela visão dicotómica da realidade, numa conjugação das falácias do realismo ingénuo e do ângulo morto, e da do falso consenso com a doutrina do pensamento único, em que toda e qualquer opinião que não se manifeste em absoluta concordância com a “tese vigente” é não só descartada, e acriticamente etiquetada como “negacionismo”, toda a opinião “metida no mesmo saco”, como, pior, não tem sequer espaço para ser apresentada, discutida, analisada, e, potencialmente, compreendida, assim alimentando-se o ciclo de pensamento unívoco, o qual não oferece possibilidades de descoberta ou evolução no conhecimento.

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    Exemplos disto são, desde logo, o artigo de opinião do médico anestesiologista Pedro Girão no Público, que, em Agosto de 2021, foi retirado da plataforma online daquele jornal, depois de 24 horas.

    No termo do próprio periódico, a “despublicação” do texto deste médico deveu-se a uma falha editorial na análise, que precedeu a publicação, ao seu conteúdo, à opinião nele vertida (contra) sobre a vacinação dos adolescentes, contrário à interpretação dominante e defendida (como se veio a verificar) institucionalmente, nomeadamente pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), num acto efectivo de censura, condicionando o acesso livre a opiniões distintas.

    Existem poucos direitos fundamentais tão importantes quanto a Liberdade de Expressão, o qual alcança um impacto societário assinalável, por isso meritório de protecção. Outro exemplo em que esta visão redutora do mundo a apenas dois actores, o “nós” e o “eles” (dicotomia militarista por excelência), é não só exibida como assumida, são as declarações do Vice-Almirante (agora Almirante) Gouveia e Melo, este já um discurso institucional pelo cargo desempenhado, nas quais afirma, na ‘Web Summit’, que usou “… uma retórica de guerra em que o vírus era o inimigo, em que ou a pessoa estava connosco ou com o vírus. Penso que este plano de comunicação foi importante para as pessoas perceberem que não podiam ficar em casa sem vacinação.

    Portanto, não sendo censura propriamente dita, mas uma quase exigência de acatamento sem crítica, sem questionar, como se de uma ordem (militar) se tratasse, em que a conclusão de actuação diversa era estarmos “ao lado do inimigo”, com todas as consequências associadas (a palavra “traidor” vem à mente).

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    Um último exemplo, aqui, será a da opinião do médico intensivista Gustavo Carona, o qual, em artigo publicado no jornal Público a 14/12/2021, escreveu que “(…) a única forma de não tornar a pandemia uma arma de arremesso político é compreender que o negacionismo/relativismo/obscurantismo é um cancro que mata, e que em matéria de ciência não há vergonha nenhuma em ser um “aceitacionista acéfalo” e acreditar na seriedade e competência das autoridades de que vamos precisar, (…) porque é isso que a comunidade científica nos está a dizer, para melhor nos protegermos da Ómicron.”.

    Só para deixar claro, um médico sustenta que em matéria de ciência se deveria ser “aceitacionista acéfalo” e acreditar na seriedade e competência das autoridades… Não nos lembramos, no método científico, quer nas variantes dedutiva, indutiva, ou outras, da fase ou etapa metodológica de “acreditar”.  

    Também a Guerra na Ucrânia, invadida pela Rússia (poderíamos abordar outros conflitos armados/invasões hodiernos, como sejam o Tibete, ocupado pela China desde 1950, a expansão anual dos colonatos israelitas na Palestina, ou a Síria, ainda hoje invadida e ilegalmente ocupada, pelo menos, por turcos e israelitas – isto se quisermos abordar o assunto da(s) Soberania(s) de um ponto de vista intelectualmente honesto, conforme Jean Bodin teorizou o conceito), é terreno fértil para a manifestação dos fenómenos ora em análise.

    Não sendo necessário afirmar a absoluta objecção a qualquer tipo de guerra e oposição a qualquer actividade com custo de vidas humanas, e sem nos delongarmos em demasia, salientaremos alguns aspectos que julgamos fundamentais.

    Em primeiro lugar, o assumir enquanto dogma, que a acção do Presidente Putin corresponde ao “delírio de um louco” (como verificamos mais do que um comentador afirmar), novamente, desumanizando-o, tornando-o no “inimigo” de todos os “sãos”, reduzindo-o a algo incompreensível, ao invés de se tentar compreender todos os factores, estratégias e contextos que terão levado a esta tomada de acção.

    Mendes Corrêa constatou algo similar quanto ao estudo de delinquentes, em que na altura, as pessoas normais, sãs, eram as menos estudadas, mas a maioria das que cometiam crimes, uma vez que existia um preconceito ao se pressupor que o comportamento desviante na prática de crime deveria ter na base um problema mental. Compreensão esta que não implica, obviamente, defender como legal ou admissível a invasão de um país, seja a Ucrânia, o Iraque ou qualquer outro.

    De resto, subscrevemos a análise do Professor J. Mearsheimer, da Universidade de Chicago, o qual em Junho de 2015 deu uma palestra com o título “The Causes and Consequences of the Ukraine Crisis”, o qual atribui a corrente situação geopolítica à acção dos poderes políticos do Ocidente, numa lógica de “balance of power politics”, o que não invalida que reconheçamos o autoritarismo patente na Rússia de hoje.

    No mesmo sentido, o Major-General Raúl Cunha, comandante de forças NATO na antiga Jugoslávia, em declarações ao jornal online ‘setenta e quatro’ (publicado a 17/03), referiu que “Eu próprio me enganei, convenci-me que havia bom senso e que iam aceitar as linhas vermelhas de Putin. Oito anos de guerra no Donbass, 14 mil mortos, assinados os Acordos de Minsk com o testemunho do presidente da França, Holland, Merkel e Putin. Então? Cumpram os acordos que assinaram. (…) Putin avisou em 2007 sobre o que pensava, depois pediu, repetiu e pôs forças na fronteira, como quem diz: ‘Ou vocês fazem aquilo que ando há séculos a pedir ou ataco’.”, acrescentando ainda, a propósito da presença neonazi na Ucrânia, que “ao nível sobretudo das forças armadas e das forças de segurança estão infiltrados a todos os níveis, estão infiltrados ao nível do comando das forças armadas da Ucrânia, atenção. Um dos conselheiros do chefe de Estado-Maior General ucraniano foi o primeiro comandante do Batalhão Azov.” Isto apesar de ter consciência que, hoje em dia, “Esta malta gosta pouco de ouvir opiniões contrárias. Aqui é um bocado assim. O pensamento único está a imperar neste momento. É uma coisa assustadora.

    Este impingir de ideias, e manipulação de termos, sobre um determinado assunto, sem permitir outras diferentes (falácias do ângulo morto e da confirmação), apenas encontra paralelo no famoso ‘Luntz Document’ de 2009, um dicionário de linguagem com o objectivo de servir o “The Israel Project”, passando a mensagem através de “words that work”, como se pode ler no citado documento. Paradigmaticamente, nas próprias palavras do seu autor, Frank Luntz: “And remember, it’s not what you say that counts. It’s what people hear.”

    Por outro lado, de um ponto de vista mais imagético, a jornalista do órgão MSM CNN americano, Christiane Amanpour, no passado dia 28 de Fevereiro publicou uma foto sua, no seu perfil de Facebook, a propósito da cobertura jornalística dos esforços diplomáticos do presidente francês quanto ao conflito armado na Ucrânia, onde envergava um casaco camuflado. Nada de extraordinário, não fosse encontrar-se a fazer reportagem… em Paris, muito longe dos tiros e bombas do conflito.

    Perguntamos, senão alarmismo e condicionamento da opinião pública, que lógica ou intenção poderá estar na base da decisão de se apresentar desta forma perante as câmaras, sem necessidade real?

    Deverão os jornalistas, quando reportam sobre Saúde, envergar uma bata médica?

    Ou sobre Justiça, uma toga, quiçá uma beca?

    A militarização da sociedade (como são exemplos o caso de Gouveia e Melo na vacinação no âmbito da Pandemia, ou, mais recentemente, o do Brigadeiro General Paulo Viegas Nunes na presidência do SIRESP, empresa pública), em especial das suas “forças vivas”, inclusive uma denominada “4º Poder” como o é o jornalismo, não pode ser considerado como algo positivo, não onde o bom-senso impere.

    Por último, quanto a esta análise, causa-nos elevada estranheza as críticas efectuadas a quem procura analisar o que se passa na Guerra da Ucrânia com objectividade ou considerações diferentes das “aceites” na cartilha única que os MSM permitem.

    Falamos em concreto das objecções do “whataboutismo” e do princípio da autodeterminação dos povos, ainda decorrente da aplicação do Direito Internacional, por um lado, e, por outro, das objecções às críticas à Ucrânia (da sua actuação, pelo menos, desde 2014, concretamente do papel que a extrema-direita neonazi desempenhou e continua a desempenhar no país, os incidentes em Maio desse ano em Odessa, a perseguição e detenção de jornalistas sem julgamento, como o caso de Kirill Vyshinsky, o já afamado conflito no Donbass, ou a interferência de potências estrangeiras como os EUA).

    No primeiro aspecto, dá-se o caso de uma contradição evidente: se não se pode alegar outras situações idênticas ou similares, como o da Síria, Iraque (2003) ou Iémen, enquanto paralelos de análise e compreensão, uma vez que se trata “deste caso concreto, da invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin”, segundo vemos/ lemos/ ouvimos sustentar, então não se pode, ao mesmo tempo, alegar o Direito internacional para alocar à Ucrânia o direito de integrar a União Europeia ou a NATO, em decorrência do princípio da autodeterminação dos povos e da sua Soberania.

    Ou se analisa o problema do ponto de vista do Direito internacional ou do ponto de vista da realpolitik (“balance of power politics”), ou no plano do ‘Dever-Ser’ ou do ‘Ser’.

    Se formos intelectualmente sérios, não se pode escolher consoante o argumento que nos dá mais jeito. Além do mais, quando os Estados Unidos, “líderes” do Ocidente, aplicam a Doutrina Monroe, como ficou patente com o caso de Cuba, na crise dos mísseis de 1962, que se tratou não só de uma manifestação explícita da visão da realpolitik, como a sua tese de base é a mesma que esteia, essencialmente, a actuação da Rússia neste cenário actual (como de resto aconteceu em 2008, com a invasão da Geórgia, após a declaração final da Cimeira de Bucareste desse ano, da NATO, em que se assumia, no ponto 23, a intenção de incorporar a Geórgia e a Ucrânia nesta aliança militar), desde logo só “permitida” pela viciação existente nas Nações Unidas, quanto aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e o seu direito de “veto” – nr.º 3 do art. 27.º da Carta das Nações Unidas.

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    Quanto ao segundo aspecto, mais uma vez, não se pode silenciar ou “cancelar” quem tem uma opinião ou interpretação diferentes.

    Desde logo, apelidar três Generais, militares que comentam no espaço público, como “putinistas”, como o Expresso fez, dando eco a esta narrativa, é, no mínimo, tentativa de “assassínio de carácter”.

    Como o são as recentes noticias da Visão e Diário de Notícias sobre Alexandre Guerreiro, aliás com afirmações, depois verificadas, falsas. De resto, a interferência dos Estados Unidos (e, por inerência, da NATO) na Ucrânia está mais que demonstrada, não só agora pela “ajuda” militar, não só no passado com a conversa telefónica que caiu no domínio público entre Trump e Zelensky sobre os interesses de Joe Biden (o agora Presidente americano, note-se) e o seu filho, mas particularmente pelo recente reconhecimento da existência de laboratórios de investigação biológica naquele país por Victoria Nuland, sub-secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos.

    Não sendo, aliás, despicienda a ligação desta política ao aparelho de estado americano, porquanto é casada com Robert Kagan, conhecido neoconservador fundador do PNAC – Project for the New American Century – think tank cujo um dos esteios era a promoção da liderança americana e exportação dos valores da democracia liberal, isto é, a doutrina expansionista que tem guiado a política externa americana, e por inerência, a expansão da NATO, em particular em direcção à Europa de Leste). 

    A solução, já o escrevemos no passado, passa necessariamente pela Educação, por termos membros da sociedade mais capazes de compreender e criticar a realidade motu próprio, ainda que tenhamos consciência que é hipótese que demora 20 ou 30 anos a surtir efeito, pelo que ontem já era tarde para começar.

    Infelizmente, o sentido das recentes alterações legislativas das ‘Aprendizagens Essenciais’ (efectuadas, com pouca discussão no fórum público), com eliminação dos currículos escolares existentes até agora, vão no sentido oposto ao desejável. Como defendeu, em 1956, o filósofo judeu alemão Günther Anders, na sua obra ‘A obsolescência do homem’: “(…) O ideal seria formatar os indivíduos desde o nascimento limitando suas habilidades biológicas inatas… Em seguida, o acondicionamento continuará reduzindo drasticamente o nível e a qualidade da educação, reduzindo-a para uma forma de inserção profissional. (…) Especialmente sem filosofia. Mais uma vez, há que usar persuasão e não violência direta: transmitir-se-á maciçamente, através da televisão, entretenimento imbecil, bajulando sempre o emocional, o instintivo. Vamos ocupar as mentes com o que é fútil e lúdico. (…) Qualquer doutrina que ponha em causa o sistema deve ser designada como subversiva e terrorista e, em seguida, aqueles que a apoiam devem ser tratados como tal.” Assustadoramente na mouche, diríamos.

    A polarização da visão do mundo, da nossa actuação e expressão nele, não é apta a melhorar o status quo. É mesmo contraproducente porque convoca, precisamente, o nosso oposto, quando a realidade não é simples, assim “preta e branca”, mas complexa, multifactorial, cheia de matizes de cinzentos, desde logo a partir das nossas próprias limitações de intelecção.

    Não podemos desumanizar ou demonizar quem questiona, quem discorda de nós. É preciso compreender o outro, os outros, o mundo. É assim que o conhecimento evolui.

    Bem-hajam, entre outros e os já citados acima, os Manuel Loff e as Raquel Varela deste mundo.

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    Aliás, nas palavras desta última excelsa Professora (em post na sua página de Facebook, de dia 30/03): “Os critérios, amplamente conhecidos dos académicos críticos, são a metodologia que sustenta os argumentos, a coerência, a intenção da verdade, a verificação externa de argumentos, a fiabilidade das fontes, etc. O combate pelo conhecimento e pelo acesso à verdade faz-se com educação e politização, com debate aberto, com desenvolvimento de uma ciência livre de pressões do Estado e do Mercado (…). Não se faz com censura. Não se luta contra as ideias – que consideramos erradas – à chapada.

    A Liberdade de Expressão é, na (correcta, pensamos) acepção de alguns autores, vital ao pensamento humano e ao conhecimento societário. A acção do intelecto, vulgo pensar, é, em grande medida, internalização do discurso, cujas palavras/ ideias assim expressas criam, condicionam, e alteram caminhos neuronais, literalmente.

    É, por isso, um acto de coragem, aceitar poder estar errado umas vezes, para estar certo numa, que fará a diferença. Aos investigadores, em especial, cumpre questionar quando mais ninguém o faz.

    Inspector da Polícia Judiciária, licenciado em Direito e mestre em Direito e Segurança

    Autor do livro Contra-Terrorismo – Tópicos Essenciais e a Unidade CT “Ideal”


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quem quer ser professor?

    Quem quer ser professor?


    Maria de Lurdes Rodrigues, actual reitora do ISCTE, num debate sobre o futuro da Educação na RTP, disse: “não sei como chegámos aqui, e nem quero saber, quero olhar para o futuro”. O “chegámos aqui” é a falta de professores, que existe hoje, e que se agravará ainda mais com o envelhecimento da classe.

    Também não sou grande coisa de memória, até escrevo temas para estas crónicas nos braços para não me esquecer passados cinco minutos. Ainda assim, deixo duas sugestões para início de conversa do “por que razão não temos professores suficientes hoje?”:

    1 – Pedir à Maria de Lurdes Rodrigues, reitora do ISCTE, que pergunte à Maria de Lurdes Rodrigues ex-ministra da Educação de governos PS. Podia ser que a segunda elucidasse a primeira que, hoje, parece sofrer de amnésia localizada. Como a do Salgado, mas com um livro de cheques mais modesto.

    2 – Porque as carreiras estiveram congeladas 10 anos e os salários são uma miséria?

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    A maior parte dos intervenientes no debate repetiram que, hoje, a carreira docente não é atractiva. Entre salários baixos, contratos temporários e colocações onde Judas deixou as botas (termo técnico), não são assim tantos os que sonham com essa vida depois de quatro ou cinco anos numa universidade.

    Isso seria um problema em qualquer parte do Mundo; logo, em Portugal, com o seu crónico atraso nos níveis de Educação, o impacto ainda é maior.

    Eu acrescentaria os problemas familiares provocados pela distância.

    Pouco acompanhamento dos filhos ou dificuldades de ter uma vida normal de casal. Um professor no século XXI é um nómada. Roda escolas na esperança de algum dia ficar efectivo algures.

    Passa 10 anos sem progressão salarial enquanto o custo de vida do país galopa ao ritmo das melhores capitais europeias.

    grayscale photography of two people raising their hands

    Os habituais detratores da Função Pública repetem até à exaustão que os professores apenas trabalham 35 horas, quando, é mais ou menos senso comum, que depois das aulas ainda têm mais umas horas pela frente para preparar matéria, fazer avaliações ou embrulharem-se em tarefas burocráticas.

    Um dos professores presente no debate dizia que as plataformas informáticas apareceram para substituir o papel e facilitar o trabalho administrativo, mas, numa medida muito portuguesa, estes continuavam a fazer tudo em papel, repetindo a informação que deixavam na plataforma.

    Faz-me lembrar a anedota do burocrata a quem pediram para reduzir o arquivo, e ele disse, convicto, para a secretária mandar tudo fora depois de tirar uma fotocópia. É algo muito nosso, precisamos de papel que valide outro papel. Não há “cloud” que safe este rectângulo à beira-mar plantado.

    Sou da opinião que professor e médico são as profissões mais importantes em qualquer sociedade civilizada. Um salva vidas, outro forma. E é por isso que não entendo muito bem como é que chegámos ao ponto de ser tão pouco atractivo ser professor.

    Esse é o primeiro passo para conseguir apenas aqueles que vêm na carreira uma terceira ou quarta opção, enquanto os melhores fogem para outros sectores de actividade. Se um bom professor forma milhares de alunos, um mau também os deixa mal preparados para o que se seguirá.

    Não há muitas voltas a dar a isto, e por muito que os sucessivos Governos fujam, a questão dos salários é crucial. As pessoas vendem a sua força de trabalho a troco de uma compensação financeira que se espera justa. Os professores não são diferentes.

    Por muita paixão que tenham pelo ensino e pelos seus alunos, também pagam contas. E ao fim de 20 anos de trabalho, divididos por não sei quantas escolas e concelhos, levar 1.200 euros para casa é um insulto. Especialmente se pensarmos que Portugal anda há 35 anos a receber subsídios e escolheu, apesar do seu diminuto tamanho, ceder ao lobby do betão e construir uma rede de auto-estradas como nenhum outro país europeu tem.

    Para se compreender as decisões dos sucessivos Governos, podemos pensar nas três auto-estradas que ligam Lisboa ao Porto. São 300 quilómetros com três opções rápidas. Noutro país daria prisão, em Portugal deu votos. No mesmo sítio onde se recusam a deixar um banco privado ir à falência durante 13 anos, aceitam deixar milhares de professores a recibos verdes ou com o mesmo salário anos a fio.

    people raising hands with bokeh lights

    Portanto, se não querem procurar os culpados do passado, como disse Maria de Lurdes Rodrigues, pelo menos não repitam os erros no futuro. Usem o Orçamento do Estado para o que ele serve, e comecem a pagar aos professores o que eles merecem. Não há dignificação da carreira docente sem salários de Primeiro Mundo.

    E aos professores que lutam por melhores direitos, façam um favor à classe: ponham uma guia de marcha ao Mário Nogueira. Os sindicatos são essenciais neste processo, e o Nogueira, ao fim de 20 anos sem entrar numa sala, é como um jacaré numa banheira. Só atrapalha.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Páscoa de chamas na Suécia

    Páscoa de chamas na Suécia


    O fim de semana de Páscoa esteve quente em várias cidades suecas. Esta entrada poder-nos-ia levar a pensar que esta seria uma crónica do saudoso Anthimio de Azevedo, mas não. Vamos falar de nazis, tema em voga há 70 anos, e que nunca desilude.

    Rasmus Paludan, um advogado gordinho de quem nunca tinha ouvido falar, é o fundador do Stram Kurs, um partido nacionalista de extrema-direita da Dinamarca, que, curiosa e felizmente, também nunca tinha ouvido falar.

    O bom do Rasmus, filho de um cruzamento entre suecos e dinamarqueses, e por isso beneficiado com dupla nacionalidade, pode dizer asneiras em ambos os lados da ponte Öresund, a maravilha da engenharia que liga Copenhaga a Malmö.

    Pegou no carro e em alguns amigos, e veio fazer uma tour pelo sul e centro da Suécia, com uma agenda bastante simples: falar em praças vazias para quem ali passava e, sempre que possível, queimar um Corão. Esta foi a estratégia de marketing pensada pelo gordinho para entrar no “mercado sueco” e tentar conseguir juntar assinaturas para concorrer às próximas eleições.

    O Stram Kurs, uma versão escandinava do PNR, Ergue-te ou qualquer outra coisa que o José Pinto Coelho se lembre amanhã, já disputou eleições, aqui ao lado de onde vos escrevo, na Dinamarca. Entre algumas frases polémicas, encontra-se esta: “a melhor coisa que poderia acontecer era não sobrar um muçulmano na nossa querida Terra”. Portanto, uma ternura de homem apenas com alguns problemas mal resolvidos.

    Agora, depois de umas dezenas de votos em 2017 e uns milhares em 2019 (com suspeita de fraude e suspensão) na Dinamarca, Rasmus Paludan tenta concorrer às eleições suecas em 2022.

    Num país onde uma em cada cinco pessoas vota no Chega local (Sverigedemokraterna), a quota de fascistas parece já estar bem preenchida, e não sei se há muito espaço para nazis da linha dura.

    Para já, a tour do Rasmus conseguiu que membros das várias comunidades muçulmanas se juntassem nas diferentes cidades em protesto pela queima do Corão. Protestos esses que resultaram em confrontos com a polícia, carros destruídos, gente ferida e prisões.

    Eu pensei, na minha mais profunda ingenuidade, que a sociedade cairia que nem um trovão em cima deste energúmeno, e que, em momento algum, se discutisse a liberdade de expressão numa acção que é simplesmente de incitamento ao ódio. Não há qualquer hipótese de discutir uma ideia política com alguém que vê num livro a arder uma mensagem. Seja o Corão, a Bíblia ou a Tora. É irrelevante para o que aqui se debate.

    Quem não tolera outras raças, outros credos ou outros tons de pele, não tem sequer base para o início da conversa. Com um fascista não se discute, combate-se.

    people kneeling and praying during daytime

    Hoje, no Göteborg Posten, o maior jornal da cidade de Gotemburgo, vejo um editorial onde se exigem mais e melhores meios para a polícia. Canhões de água e toda uma lista de requisitos que transformem as pacíficas forças de segurança, pouco habituadas a motins, numa SWAT de louros que, ao mais pequeno sinal de manifestação, aprendam a disparar e depois perguntar.

    Curiosamente, nem uma palavra sobre prender o gordinho que originou tudo isto. Ou seja, envolto na capa da liberdade de expressão, o fascismo e o nazismo tiveram tempo de antena, e o odioso ficou do lado de quem mostrou a sua indignação.

    Mais de 70 anos depois de termos dito “nunca mais”, vou-me convencendo que o maior perigo neste cancro, que se espalha novamente pela Europa, não está necessariamente nos nazis que se assumem de megafone numa praça perdida. O real problema está naqueles que, em silêncio e nos escritórios, parecem concordar com eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As “bolhas” nas escolas

    As “bolhas” nas escolas


    O meu nome é Ana Raquel Serra Evaristo e sou mãe de uma criança de oito anos que frequenta a EB1/JI do Bairro Novo no Seixal.

    Fui desde cedo crítica das medidas aplicadas nas escolas, sobretudo pela desproporcionalidade e pela diferença na actuação entre as próprias escolas, que adoptaram cada uma as medidas que entenderam…

    No auge da pandemia (ainda a minha filha andava na pré), vi-a a chorar em frente ao computador, a dizer que não queria ver os amigos assim, que queria estar com eles na escola. No regresso à escola em 2020, tive que pedir que não lhe aplicassem tanto álcool-gel nas mãos por lhe estar a fazer alergia.

    No primeiro dia de aulas em 2021 (já no primeiro ano), uma das meninas da sala dela, ficou a chorar no recreio sem entrar na escola. Precisava claro, de um último abraço ou de mais um bocadinho de conforto, mas os pais não podiam entrar, e as auxiliares entre aplicar álcool-gel a quem entrava e assegurar o distanciamento social, limitavam-se a dizer-lhe para entrar na escola, aos gritos e gesticulando.

    Foi a minha filha que, por indicação minha, lhe deu um abraço, lhe deu a mão e confortou a amiga, e assim entraram as duas na escola. Devia ter sido um dia de alegria, mas saí dali com o coração pesado.

    red and yellow metal frame under blue sky during daytime

    A minha filha anda agora no 2º ano, e não conhece o recreio de outra forma, a não ser em “bolhas”. Mesmo apesar do Referencial Escolas, para controlo da transmissão de covid-19 em contexto escolar, ter sido revogado, e de as mais recentes orientações da Direcção-Geral da Saúde (DGS) nada referirem quanto à necessidade de distanciamento social nas escolas.

    Contactei a escola, em busca de esclarecimentos, e fui encaminhada para o Agrupamento. As respostas que obtive foram totalmente desfasadas da realidade e desprovidas de qualquer enquadramento legal.

    Contactei vários pais. Poucos concordam com as “bolhas”, mas nenhum se atreveu a questionar, ou a procurar esclarecer a situação, e quase todos demonstraram um desconhecimento total das orientações em vigor.

    Senti-me impotente para enfrentar sozinha este processo e contactei vários advogados e entidades. Apenas o Dr. Paulo Edson da Cunha acedeu a avançar comigo, assim como a organização Habeas Corpus, que deu o seu contributo com um parecer que suportava a nossa causa.

    E em boa hora o fiz. Durante mais de uma semana tentámos gerir um gigantesco muro de silêncio ou de respostas cheias de nada. Sem a ajuda do Dr. Paulo Edson da Cunha dificilmente eu teria conseguido avançar.

    Iniciámos, pois, uma escalada de contactos que implicou voltar a inquirir a direcção do Agrupamento, para construir um caso sólido. Eu a insistir numa actuação rápida, o Dr. Paulo Edson da Cunha a gerir a minha ansiedade, e a explicar que eram passos pequenos, e que embora parecessem retrocessos, teriam que ser dados.

    O Agrupamento recusou a realização da reunião que solicitámos e encaminhou para a Direção Regional de Educação de Lisboa e Vale do Tejo (DSRLVT). A DSRLVT devolveu para o Agrupamento. Recorremos à DGEstE (Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares), que encaminhou para a DGS e para o respectivo delegado de saúde da área. A resposta ainda a esperamos, e assim andámos, num processo kafkiano, sem que nenhuma entidade fosse capaz de esclarecer de forma clara, objectiva e directa, acerca do enquadramento legal e o que é que suportava a continuação das “bolhas” no recreio.

    group of people wearing white and orange backpacks walking on gray concrete pavement during daytime

    Estas diligências aconteceram maioritariamente durante a pausa lectiva da Páscoa, e face à ausência de respostas, informámos que estaríamos dispostos a recorrer judicialmente para obter, por essa via, o que não estávamos a conseguir junto das entidades competentes.

    Surpreendentemente, ou talvez não, no primeiro dia de aulas “surgiram” orientações da  Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) indicando que “as crianças que se encontrem no espaço exterior, na altura do intervalo escolar podem circular/interagir livremente (…)”

    Gostaria muito de dizer que a história acaba aqui, mas infelizmente ainda não.

    Quando fui buscar a minha filha à escola ao final do dia, disse-me bastante entusiasmada que já não havia “bolhas”. No desenvolvimento da conversa, percebi que afinal ainda existiram duas “bolhas” e que as auxiliares ainda não agiam de forma uniforme, umas já não dando importância à circulação das crianças, outras insistindo na permanência nas mesmas.

    O meu coração gelou, a pensar que afinal ainda não podíamos cantar vitória e lá se passou mais uma noite mal dormida, a pensar no que faríamos a seguir, caso as “bolhas” não fossem totalmente removidas.

    No dia seguinte lá estávamos junto da escola, à hora do intervalo para perceber o que aconteceria às “bolhas”. Felizmente, desapareceram! Vimos um recreio cheio de meninos a circular livremente e a finalmente interagir sem nenhum constrangimento.

    Resta-lhes agora ser crianças, brincar muito e recuperar destes dois anos de falta de interacção. O meu coração de mãe está agora mais leve e infinitamente mais feliz, e com a certeza de que tudo fiz para garantir à minha filha nada menos do que lhe é devido enquanto criança.

    “Bolhas” no recreio, só se forem das de sabão, para as crianças brincarem com elas!!


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • X: antes a Morte que tal Sorte

    X: antes a Morte que tal Sorte


    Se quisermos, a paranóia da pandemia pode eternizar-se. Ou pode acabar hoje mesmo.

    Depende se aceitamos o absurdo.

    Por exemplo, ontem o Expresso anunciava que “o surgimento de novas variantes, como a Ómicron, reforçou a necessidade de uma estratégia de controlo da covid-19”, e por isso os Estados Unidos estavam a “redobrar esforços colectivos para encerrar a fase aguda da pandemia (…) e nos preparamos para futuras ameaças relacionadas com a saúde”.

    Já sabemos, pela “amostra” dos últimos dois anos naquilo que isto vai dar.

    Vemos agora, pelo exemplo demencial de Xangai, naquilo que se pode transformar a vida mesmo em civilizadas sociedades ocidentais que foram criadas com base no livre-arbítrio responsável e nas liberdades individuais.

    mans face with white scarf

    Tudo isto se pode, e deve (defenderão os políticos sanitaristas), ser posto em causa se houver razões de excepção. Novas variantes de um vírus, “futuras ameaças relacionadas com a saúde”, eis a excepção, qual sonho húmido de políticos democratas com tentações despóticas, que pode ser a regra, se assim se quiser.

    Se assim a imprensa mainstream quiser. Se os Governos quiserem. Se os povos aceitarem.

    Pesquiso no Google News sobre a suposta nova variante XE, através das palavras XE e covid: contabilizo já 29.800.000 notícias. Estão reunidos os ingredientes para a renovação da pandemia.

    Ler algumas destas notícias causa uma dor de alma a quem defende um jornalismo que não permite manipulações, mistificações, especulações.

    Leio, por exemplo, uma notícia da CNN Portugal – pego nesta como poderia pegar em tantas de tantos outros órgãos de comunicação social mainstream –, publicada em 6 de Abril passado, que reza assim:

    A Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido (UKHSA) detetou, em janeiro, uma nova variante do SARS-CoV-2. Chama-se Ómicron XE, combina duas estirpes desta variante e, do pouco que se sabe, é mais contagiosa do que as variantes anteriores. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já foi notificada.

    Esta nova variante é aquilo a que se chama de vírus ‘recombinante’, isto é, que combina o material genético de dois vírus, neste caso, de duas variantes e subvariantes do mesmo vírus. A Ómicron XE combina a BA.1 (chamada de Ómicron original) e a BA.2 (uma subvariante).

    Até ao momento, já tinham sido detetadas outras variantes recombinantes: as XD e XF, que juntavam a Delta e Ómicron BA.1. Segundo a OMS, a XD ‘está associada a maior transmissibilidade ou resultados mais graves”.

    Nem sei bem onde pegar quando leio “pérolas” deste jaez.

    A manipulação, a mistificação e a especulação começa logo em detalhes, que aliás serviram já para a Ómicron, que afinal acabou por ser uma bênção, do ponto de vista epidemiológico, pela sua maior transmissibilidade (mais casos) e menor letalidade (menos mortes), e portanto por ter concedido maior imunidade à população. Num raro momento de lucidez, Bill Gates até admitiu isso em 18 de Fevereiro deste ano numa conferência em Munique.

    Na verdade, existirão razões científicas muito plausíveis e compreensíveis para que agora surjam variantes que usam um X inicial para a sua denominação. Em todo o caso, não temos apenas a XE. Já andam também por aí, e por agora, as variantes XA, XB, XC, XD, XF, XG, XH, XJ (não há XI, por razões políticas!), XK, XL, XM, XN, XP, XQ, XR, XS e XT, todas elas recombinantes, como todas as outras, desde que o SARS-CoV-2 começou a infectar humanos.

    white and black speaker on green wall

    As letras e as denominações possuem também valor simbólico, uma carga, um karma. E isso tem-se notavelmente feito notar na alimentação da pandemia.

    A percepção da existência de um perigo (afinal inexistente, aparente ou real) proveniente de uma variante X qualquer coisa – como se marcasse um alvo – é maior do que seria se se continuasse a usar as letras A e B seguidas de pontos e números.

    [já agora, diga-se que também há, em muito menor número, iniciadas por C (47), D (4), G (1), K (3), L (4), M (3), N (10), P (29), Q (8), R (2), S (1), U (3), V (2), W (4), Y (1, que, aliás, “nasceu” em Portugal) e Z (1)]

    O “marketing vírico” em redor do surgimento (supostamente repentino) de novas variantes – que “podem” ser sempre mais perigosas, mais transmissíveis, mais um “par de botas”, como propalam jornalistas “acéfalos”, porque acríticos e preguiçosos – mostra bem o grau de insanidade colectiva.

    A variante XE – que aparenta ser uma novidade, que justifica o levantamento de redobrados alertas – foi, na verdade, já identificada em 19 de Janeiro passado. Existem dados sobre a sua letalidade que justifiquem preocupação? Claro que não.

    Nem sobre todas as outras variantes iniciadas por X, incluindo da primeira (XB) identificada no “longínquo” 8 de Julho de 2020!

    Diga-se, aliás, a talhe de foice, que a famigerada variante Ómicron – anunciada como se fosse o fim do Mundo, e que justificou mesmo o encerramento de uma ala pediátrica do Hospital Garcia de Orta em Novembro do ano passado – foi identificada afinal nos Estados Unidos (com a nomenclatura BA.1) em 7 de Setembro do ano passado, ou seja, dois meses antes do pânico ser novamente relançado a nível mundial.

    Porém, onde a insanidade colectiva espraia em todo o seu esplendor é nas notícias sobre o surgimento de uma nova variante, como se fosse fenómeno raríssimo, de sorte que cada vez que surgisse uma nova maiores perigos adviriam.

    person holding orange and white toothbrush

    Vamos ser claros: é uma estupidez absoluta continuar a pensar que a “criação” de novas variantes alguma vez terminará, a menos que se continuem com lockdowns, com máscaras, vacinas, com a obrigação de fazer o pino virado para Meca ou com a entrega das nossas liberdades de viver antes de morrermos.

    Simplesmente, não vai acontecer.

    Se, porventura, em vez de perguntarem aos leitores quanto tempo vai durar a Guerra da Ucrânia, os jornais com maior capacidade de endividamento (não propriamente económico ou financeiro) questionassem as pessoas sobre quantas variantes do SARS-Cov-2 existem, talvez se chegasse à conclusão da existência de quatro ou cinco.

    E porquê? Porque se foi sempre moldando a percepção de que o surgimento de novas variantes era um fenómeno raro, imprevisível, e que, sendo assim, anunciada essa raridade, logo seria motivo necessário mas suficiente para alarme, medo e pânico.

    Aliás, a raridade de certos fenómenos foi sempre pasto para especulações e medos cegos. Daí que, durante séculos e séculos, o surgimento de cometas ou de eclipses eram vistos como prenúncios ou causas de desgraças. Ninguém jamais anunciou o fim do Mundo porque o sol nasceu em certo dia, porque nasceu tantas outras vezes antes e renascerá outras tantas no futuro. A banalização de um evento elimina qualquer fobia. Não se assusta uma criança gritando-lhe muuuu todos os dias por detrás da porta.

    Portanto, vamos lá fazer contas sobre variantes do SARS-CoV-2, procurando onde se deve. E arrumemos já com o assunto sobre a raridade das variantes.

    black and white human face drawing

    No Pango Network estão listadas, à data de hoje, 1.847 variantes, desde que as duas primeiras foram identificadas ainda em 2019: a variante B, em 24 de Dezembro, e a variante A, em 30 de Dezembro.

    Como sucedeu com os testes PCR para encontrar casos positivos, no caso das variantes, quanto mais que escarafunchou na investigação, mais pequenas diferenças se descobriram. Levado ao extremo do absurdo, se aplicada à espécie humana a busca de diferenças classificadas como variantes, teríamos hoje não quase oito mil milhões de pessoas mas sim quase oito mil milhões de variantes da espécie humana.

    Assim, no caso do SARS-CoV-2 foram “brotando” variantes. Só em Janeiro de 2020, ainda antes da chegada da covid-19 a Portugal, já havia 21 novas variantes no Mundo. No mês seguinte foram identificadas mais 35. Em Março – o mês do início do pandemónio na Europa – identificaram-se mais 385 novas variantes.

    Desta sorte, na primeira metade de 2020 já estávamos com 883 variantes de SARS-CoV-2. No final desse ano, eram já 1.328 variantes, ou seja, 72% do total identificado até agora, o que é um paradoxo.

    Até ao final de 2020, o SARS-CoV-2 “apenas” tinha infectado (casos positivos) 84 milhões de pessoas, mas “criou” mais de 1.300 variantes. Desde 2021, apesar de ter infectado mais 420 milhões de pessoas – isto é, cinco vezes mais – “só” teve habilidade para “criar” menos de meio milhar. Um mistério da virologia.

    De facto, ao longo de 2021, a “multiplicação” de variantes amenizou, e desconfio que não terá sido por cansaço do vírus, mas mais por “aborrecimento” dos virologistas. Mas nem assim se pode dizer que se tenha parado de descobrir ou de que passou a ser um fenómeno raro. No primeiro semestre do ano passado “descobriram-se” mais 219 variantes; no segundo semestre foram 104.

    Nos dois primeiros meses do presente ano contabilizam-se já 21 novas variantes, grande parte das quais recebendo agora a denominação iniciada por X. Não estão aqui contabilizadas 175 variantes que não têm data de identificação no Pango Network.

    Neste cenário de inevitável “descoberta” de novas variantes, aceitarmos candidamente que algumas possam ser escolhidas, de forma aleatória e manipulatória, para fazer soar alarmes – e sem se compreenderem os motivos –, e justificarem-se assim renovadas medidas de excepção em prol de uma quimérica Saúde Pública de risco zero, é rendermo-nos a um distópico Novo Normal. Um Mundo em que é preferível a Morte que tal Sorte.