Miguel Guimarães, circunstancial presidente de uma associação profissional denominada Ordem dos Médicos, veio ontem escrever no diário Correio da Manhã um artigo de opinião intitulado “6ª vaga”. Não consta que Maria do Céu Machado, presidente do Conselho Disciplinar Sul na Ordem dos Médicos – investida de inquisidora-mor dos seus colegas que, desde 2020, “mijam fora do penico” da doutrina de discurso único –, venha questionar o seu amigo urologista sobre os palpites ali esparramados.
É pena; até porque o bastonário não opinou; andou a fazer descarado “lobby” a favor de produtos farmacêuticos. Não andou a dar a recomendações de médico; andou sim, com toda a ardileza de um delegado de propaganda médica (mas munido do bastão de líder máximo dos médicos), a pressionar o Infarmed e o Estado português para se comprar fármacos caros e de custo-benefício mais que duvidoso – sobretudo se compararmos com a eficácia de outras medidas fulcrais, como seja a de haver médico de família para mais de um milhão de portugueses que não o têm.
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos.
Escreveu, portanto, Miguel Guimarães que “está a acontecer o expectável: o alívio das medidas contra a pandemia, nomeadamente a eliminação do uso obrigatório de máscara, tem levado ao aumento de casos”.
Esta lógica bacoca – que, aliás, foi o alimento da “Narrativa Única”, e unificadora, por pressão do senhor Guimarães – devia ser automaticamente criticada e censurada pelo Conselho Disciplinar do Sul da Ordem dos Médicos por não-científica. O senhor doutor Guimarães deveria, sim, divulgar todos os pareceres dos diversos Colégios da Especialidade, em vez de apenas divulgar os que lhe interessam e armar-se em dono da Verdade Médica. Aqueles que ele quer esconder é que são científicos; não as suas “opiniões” comprometidas, e comprometedoras para uma profissão (ainda) respeitável.
Vamos ser claros. Não existe sexta vaga coisíssima nenhuma em Portugal – na verdade, ao longo da pandemia, tivemos uma única onda digna desse nome (no Inverno de 2020-2021, cf. imagem) –; tudo o resto que se anunciam como vagas são ficção, foram “ondinhas”. Basta olhar para os gráficos.
Mortalidade atribuída à covid-19 em Portugal desde 2020 até 24 de Maio de 2022. Fonte: Our World in Data.
Por outro lado, a defesa de uma relação “máscaras, logo menos casos” não está consubstanciada na realidade nem na Ciência. Em finais de Janeiro deste ano, na época da “loucura dos testes” – onde se despendeu milhões de euros em testes por dia, quando a letalidade da covid-19 já equivalia à dos surtos gripais –, chegámos a ultrapassar os 60 mil casos positivos em 24 horas.
E isto numa altura em que havia máscaras obrigatórias em todos os espaços fechados e impôs-se a discriminação dos não-vacinados. Por exemplo, eu, que tinha valores de imunidade (IgG) muita acima do valor mínimo (mais de 400 BAU/ml em testes serológicos realizados em Dezembro do ano passado e Março deste ano), não podia sequer entrar num restaurante ou ir a um espectáculo.
Na verdade, alguém com dois pingos de inteligência (mas necessariamente sem ligações à “indústria da pandemia”), deve sim questionar-se sobre as razões de ainda subsistir tanto burburinho em redor de uma doença (covid-19) que já nada tem a ver com aqueloutra com o mesmo nome (da qual até eu padeci há um ano), e que por cá andou antes da dominância da variante Omicron (que até Bill Gates, num momento de lucidez, veio confessar que fez mais contra a pandemia do que a própria vacina).
Como se compreende a retomada do pânico sobre uma doença que, por exemplo, em Janeiro do ano passado teve uma taxa de letalidade em Portugal de 1,90%, e que em Janeiro deste ano já só registou uma letalidade de 0,08%, compatível com um surto gripal? A covid-19 de 2021 era quase 24 vezes mais perigosa do que é a covid-19 de 2022.
Pode o senhor doutor Guimarães dizer que as vacinas são as (únicas) responsáveis por esta situação. Já dou tal de barato. Mas, vendendo-se bem as vacinas, não pode é, através de uma artificial promoção do pânico, baseando-se somente em casos positivos, vir promover ainda mais as ditas vacinas, mas à boleia, como quem não quer a “coisa”, opinar que se deve “garantir acesso às terapêuticas com antivirais e anticorpos monoclonais neutralizantes, já disponíveis em outros países”.
Na verdade, o que ele diz é muito simples: o Infarmed deve autorizar a comercialização e o Estado deve comprar. O dinheiro não é dele, mas as vantagens de “estoirar” dinheiro público (escasso para a solidez do Serviço Nacional de Saúde) parecem ser.
Não sejamos ingénuos – e eu não sou, pelo menos, neste capítulo.
Não existem, neste momento, quaisquer sinais que justifiquem a aposta num fármaco que custa 500 euros por cada tratamento completo de um doente vulnerável que já estará muito provavelmente vacinado com três e quatro doses, e numa fase inicial de sintomas (leves ou moderados). Mais ainda sabendo-se que esses antivirais são de eficácia ainda longe de ser evidente.
E mais ainda quando estamos, a nível mundial, numa evidentíssima e claríssima fase endémica da covid-19. Anteontem, a mortalidade atribuída ao SARS-CoV-2 em todo o Mundo situou-se em 1.590 óbitos (média móvel de 7 dias), o valor mais baixo desde 23 de Março de 2020 – ou seja, o mês da chegada em força da pandemia ao Hemisfério Norte.
Mortalidade atribuída à covid-19 no Mundo desde 2020 até 24 de Maio de 2022. Fonte: Our World in Data.
A queda da mortalidade da covid-19 é indesmentível. Desde o início do presente ano, a descida da mortalidade tem sido contínua: em 9 de Fevereiro atingiu um máximo de 10.918 óbitos. Ou seja, caiu 85% em três meses! Sem descanso.
Porém, apesar disso, o senhor doutor Guimarães confirmou, nesta sua “opinião” no Correio da Manhã, a existência clara de uma medonha e diria mesmo criminosa operação de promoção dos antivirais contra a covid-19, sobretudo do Paxlovid da Pfizer, sobre o qual já aqui escrevi a pretexto de uma suposta notícia da Visão Saúde – na verdade, a mais pura peça de jornalismo ao serviço das farmacêuticas que já vi, e que contou com a participação despudorada de um marketeer travestido de médico, o pneumologista Filipe Froes.
O dito Filipe Froes não satisfeito em servir de “porta-voz” do Paxlovid naquela peça da Visão Saúde, promovendo explicitamente, um fármaco – algo que as regras deontológicas proíbem, e ainda mais o decoro, sabendo-se das suas ligações à Pfizer e mais de duas dezenas de farmacêuticas –, veio no passado fim de semana perorar também na CNN Portugal a favor, hélas, dos antivirais.
Disse ele, a partir do minuto 9:30, com aquela sua desavergonhada cara de quem recebeu já mais de 400 mil euros de farmacêuticas: “(…) e, finalmente, nós temos de acelerar, para o nosso país, o acesso a dois fármacos que já têm muito impacte nos outros países em termos de controlo da doença, que são os novos antivíricos”.
Filipe Froes
Ora, esse dois “novos antivíricos” são, obviamente, o Paxlovid (nirmatrelvir e o ritnonavir), da Pfizer – e o Lagevrio (molnupiravir), da Merck Sharpe & Dohme (MSD).
Nem de propósito – oh, coincidências –, a Pfizer e a MSD são as duas farmacêuticas que mais dinheiro encaminharam para a conta bancária do senhor doutor Froes: entre 2013 e 2021, a primeira transferiu 134.574 euros e a segunda 85.522 euros. Isto atendendo ao que foi declarado no Portal da Transparência e Publicidade, que como sabemos é feito voluntariamente, sem introdução de comprovativos e sem qualquer auditoria posterior.
Receitas de Filipe Froes das farmacêuticas entre 2013 e 2021. Fonte: Infarmed.
Por tudo isto, pelos sinais de “fim de festa da pandemia”, percebe-se a acção deste duo de marketeers de alto gabarito, destacados ou contratados, para meter todas as fichas – leia-se, promover a mensagem de uma falsa necessidade – para pressionar o Governo a comprar aqueles antivirais.
E então, se os marketeers, como os Guimarães & Froes, Lda., forem bem-sucedidos, estarão depois dispostos a garantir-nos que os tais fármacos da Pfizer e da MSD são mesmo miraculosos.
E fá-lo-ão com a mesma convicção do tipo que, assobiando estridentemente pelas ruas, afiança que serve para afugentar tubarões, sendo que a prova da eficácia do seu método é não se verem aí tubarões.
Tenho pensado em fazer uma colectânea das melhores frases sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mais não seja para não nos perdermos daqui a uns anos.
Devia ter feito o mesmo durante o confinamento – e agora podia mostrar, aos que reclamam da carga de impostos, que o “fica em casa, vai ficar tudo bem” tinha um custo, e que o endividamento do país é uma fatura semelhante à disfunção eréctil: cedo ou tarde, chega.
As duas frases que mais aprecio neste momento são: 1) “como é que em pleno século XXI ainda temos guerras?”; e 2) “não se pode comparar a Ucrânia com a Palestina. No primeiro caso há um invasor, e no segundo existe um conflito onde os dois lados se bombardeiam mutuamente”.
A primeira frase não é grave. Reflecte, essencialmente, o nível de conhecimento do Mundo que nos rodeia. Em resumo, se algo não aparece no Jornal da Noite, não existe.
O mapa que decidi incluir aqui, retirado do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), mostra as zonas do Mundo onde existem conflitos armados. Hoje. Agora. Neste minuto. Enquanto nós discutimos cada opinião do PCP num conflito para o qual não contribuiu, pessoas morrem nas regiões marcadas a azul do globo. Bem sei que estão todos fora da Europa, mas, ainda assim, estão no mesmo planeta – e, acreditem ou não, naqueles territórios também é século XXI.
A segunda frase é um pouco mais grave, porque foi dita por Adolfo Mesquita Nunes. Para o camarada Adolfo (olha… Adolfo), uma coisa é invadir e anexar; outra, completamente diferente, é invadir e anexar.
O nosso camarada Adolfo diz que ser invadido e receber armamento da NATO (mais moderno que o do invasor) para se defender é diferente de empurrar dois milhões de pessoas para uma prisão a céu aberto de 60 quilómetros e bombardeá-los dia e noite sem que tenham escapatória ou possibilidade de defesa. Segundo Adolfo, no segundo caso estamos perante um “conflito” equilibrado.
Quem se refere à ocupação da Palestina como um conflito entre duas partes, renega o invasor e a óbvia desproporção das partes. De um lado, temos o apoio dos Estados Unidos e o silêncio da União Europeia, e ainda todo o dinheiro do Mundo e um dos melhores exércitos; do outro, uma necessidade de sobrevivência que, em último cenário, leva a ataques a carros de combate com pedras.
Na verdade, o “conflito israelo-árabe” é a “operação especial” que tanto nos tem indignado, mas se tem repetido durante 70 anos.
O Adolfo faz parte daquele grupo de homens que, perante o conflito na Ucrânia, preferiu ignorar todos os demais a que nunca ligámos, e assumiu uma vertente bélica patente a cada intervenção: uma espécie de “vamos para cima deles” com o couro alheio.
Para pessoas como o Adolfo, é preciso mais NATO, mais armas, mais bombas, mais tudo e um par de botas, para acalmar o urso russo e metê-lo no seu sítio. É preciso levar tudo até ao limite, ver até quando se mantém aquele botão do nuclear em estado virgem.
O Adolfo é a Ana Gomes na versão masculina: toca de carregar que a guerra não pode esperar.
Mas Adolfo, camarada Adolfo, toda essa coragem nos estúdios de televisão, toda essa verve no “combate político”, como alguns inúteis gostam de lhe chamar, aqui e ali conduz mesmo a combates a sério.
Com os outros meninos e com dói-dói. É que a Ana Gomes, a primeira-ministra da Suécia, Magdalena Andersson, e as demais senhoras que gritam pelo senhor da guerra, não vão lá bater com as costas; já tu, e já agora, eu: vamos.
Portanto, a minha sugestão para ti, se me permites, é simples. Deixa-te de merdas. Queres ser forcado, tudo bem: levanta essa guelra nas festas do ex-CDS, que contigo se juntaram ao sonho liberal. Mas deixa de dizer asneiras e, acima de tudo, de berrar por um quadro nas televisões que, se se cumprisse, nos arrastaria a todos para um conflito mundial.
Uma invasão é uma invasão. Ponto final, Adolfo. Esta ou outra qualquer. Faz parte da História das nações, infelizmente. E quanto a isso, não sei bem até onde queres levar essa tua coragem dos estúdios de TV, mas, pessoalmente, tenho um filho a quem preciso explicar como se pega numa raquete e uma filha que precisa da minha ajuda na Matemática.
A ti, e aos belicistas de sofá, desejo ardentemente que vão para a frente, com todas as armas sonhadas, ferir o grande urso e escrever epopeias de glória. Força camarada, não deixes nada por fazer.
Ah… e já agora, outra coisa. Quando vier esta nova fatura do apoio à Ucrânia, dos 2% para a indústria militar, dos problemas com habitação, da inflação, racionamento de comida, perda no poder de compra e taxas de juros incomportáveis, serás um dos candidatos liberais a dizer que o socialismo não funciona?
Diz aí: é para um amigo.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Há dias, em mais um Conselho de Ministros que faz anúncios recebidos acriticamente pela imprensa mainstream, foi-nos dado a conhecer o anteprojecto de Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública. Disseram-nos que tal documento resultou “de um aprofundado estudo por uma Comissão da mais elevada competência técnica, nas áreas jurídica e de saúde pública”. Protérvia não falta ao Governo.
E pensávamos que já tínhamos “visto” tudo, e de tudo.
Referimo-nos, naturalmente, àquilo que sucedeu desde Março de 2020: o maior e mais impensável ataque ao Estado de Direito Democrático e à Constituição da República Portuguesa, perpetrado precisamente pelos titulares dos órgãos que a juraram defender; a saber, Presidente da República, Primeiro Ministro e governo, com o beneplácito régio da Assembleia da República.
Por conseguinte, não satisfeitos, estamos agora na iminência de tornar a distopia global, nascida a partir de uma “pandemia”, numa verdadeira “bomba atómica” contra o Estado de Direito Democrático, o que representará as exéquias sem glória nem pudor da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Dizem-nos que o malfadado – e quase arriscaríamos a acrescentar já malparido – anteprojecto contou com a participação dos egrégios, excelsos e ilustres juiz conselheiro jubilado António Henriques Gaspar, procurador-geral-adjunto João Possante, e doutor Ravi Afonso Pereira, em representação da Provedoria de Justiça. Assim lança o regime uns “ases” em forma de “duques” para nos fazer cenas tristes: uma berrante e aberrante esquiço de lei que nem digna seria numa certa república popular encravada entre a China e a Coreia do Sul.
Na nota justificativa desta “pérola” legislativa, temos este “penedo”: “procurou-se ainda dotar as disposições legais de uma adequada densidade, pois em caso algum pode a declaração de uma emergência de saúde pública, mesmo na sua fase crítica, traduzir-se numa carte blanche para o poder executivo adoptar quaisquer outras medidas que na lei não estejam expressamente previstas ou, pelo menos, nela não tenham fundamento.”
Nem queremos imaginar o que seria se estas sumidades não se apercebessem do risco de conceder uma carte blanche ao Governo…
Falemos a sério: efectivamente, o que o anteprojecto manifestamente mostra é ser mesmo uma carta em branco, que pode ser usada da mesma forma nas mãos de um democrata ou de um tirano. Com a única diferença de que se um tirano a usar continuará a ser um tirano, e se um democrata a usar se tornará um tirano. Mas só na primeira, porque quererá usá-la sucessivas vezes.
Outra nota relevante que consta do documento é de que as medidas usadas durante a covid-19 eram necessárias. Continuamos sem questionar ou aquilatar os seus resultados; assim, surge esta outra “peça de filigrana”: “Desde cedo, logo em Março de 2020, que se iniciou um debate sobre a adequação do quadro jurídico perante uma tão grave crise de saúde pública, designadamente questionando-se até que ponto algumas das medidas tidas por necessárias para um eficaz combate à pandemia teriam ou não cobertura ao abrigo da legislação em vigor.”
Andámos, certamente, distraídos. Não vimos debate, apenas améns, e resoluções de Conselho de Ministros umas atrás das outras, todos assobiando como se tivessem respaldo constitucional.
Na verdade, importa dizer que estas “medidas tidas por necessárias” não só não foram eficazes como também nem eram necessárias, como também se revelaram catastróficas; basta comparar com o país que, por exemplo, nunca as implementou: a Suécia.
Note-se isso no confronto da mortalidade total – porque, surpresa talvez para os defensores das “medidas tidas por necessárias”, morre-se de muitas outras doenças – entre diversos países latinos e escandinavos durante os anos de 2020 e 2021. Por exemplo, no país que implementou as “medidas tidas por necessárias” – leia-se, Portugal – teve na faixa etária entre os 20 e 65 anos um rácio de mortalidade 70% superior à de certo país que não quis, malvado, implementar as “medidas tidas por necessárias” – leia-se, Suécia.
Óbitos totais por milhão de habitantes no grupo etário 20-65 anos em 2020 e 2021. Fonte: Eurostat.
Similar constatação observamos no grupo etário com idade igual ou superior a 65 anos. Neste caso, o país que tomou todas as “medidas tidas por necessárias” – leia-se, restrições de visitas a lares, “fraldas faciais”, isolamentos e lockdowns, etc., etc., etc. – teve 16% mais mortes de idosos do que certo país onde um rei se lamentou com um “falhámos; temos um grande número de mortos e isso é terrível”, porque, enfim, não foram implementadas as “medidas tidas por necessárias”. É certo que o nosso presidente da República não disse “acertámos”, mas andou lá perto em elogios à eficácia das nossas “medidas tidas por necessárias”.
Outro facto que nos deixa perplexos é a mudança de paradigma; desde sempre, as epidemias, tal como outras catástrofes, eram tidas por eventos fortuitos, imprevisíveis e naturais. Mas agora tudo mudou: para além do senhor Gates – que até já anunciou a próxima pandemia, mas já está a receber royalties por nos ajudar a prevenir a “coisa”–, agora, arriscamo-nos a ver o infame anteprojecto tornar-se lei, podemos vir a viver em permanentes emergências sanitárias.
Óbitos totais por milhão de habitantes no grupo etário dos maiores de 65 anos em 2020 e 2021. Fonte: Eurostat.
Basta tão só que o Governo de ocasião as decrete se e quando assim o entender. Uma simples gripe, uma anunciada onda de calor, uma previsível vaga de frio, uma suposta carta de um bioterrorista, tudo poderá ser uma justificação bastante para uma tirania para o bem da nossa saúde, para que seja possível que o Governo possa implementar, aí está, as “medidas tidas por necessárias”. Assim reza, para mal dos nossos pecados, o artigo 2º do malfadado anteprojecto.
Eis-nos, por conseguinte, ao “estado a que chegámos”: um Governo de uma república dita democrática – mas em que a capital não se chama Kinshasa – passa a ser nosso dono e senhor. Pode declarar uma emergência, sem mais, apenas por que lhe apetece; não por haver meia dúzia de critérios pré-definidos e objectivos – vá lá, um! –, seja quantitativo ou qualitativo, emitido por uma entidade verdadeiramente independente.
Ora, o anteprojecto não estabelece qualquer critério e depois sustenta-se numa comissão científica ad hoc, criada à posteriori, escolhida directamente pelo poder político, sendo que a maioria (seis em nove membros) é nomeada pela voz e caneta do primeiro-ministro! E define as sinecuras.
Mas vamos a detalhes do infame documento, e sobre os direitos que tem ganas de atropelar.
Direito à liberdade
Segundo o artigo 9º, alínea 1, “A autoridade de saúde pode determinar o isolamento no domicílio, em local adequado de alojamento, estabelecimento de saúde ou estrutura de acolhimento e apoio por um período que não ultrapasse 14 dias, com a finalidade de afastar o risco para a saúde pública, de pessoa afectada por doença que fundamenta a declaração da emergência de saúde pública”.
Ficamos a saber que, em lugar de um juiz, basta um mero esbirro, na solidão de um gabinete (ou, de pantufas em teletrabalho), para decretar a prisão domiciliária de um qualquer servo da gleba, não só no seu domicílio, mas também em campos de concentração, eufemisticamente denominados por “estrutura de acolhimento e apoio”, e que serão, por certo, destinados aos impenitentes e relapsos.
Sejamos claros: o artigo 27º, alínea 2, da CRP – se é que ainda não foi revogada sem nos darmos conta – não permite a privação da liberdade sem controlo judicial: “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.” Mesmo as excepções que constam da alínea 3 do mesmo artigo não permitem que um funcionário administrativo possa privar alguém da sua liberdade.
E atenção: a “prisão” decretada pelo tal “senhor das pantufas” poderá não ficar pelos 14 dias. Segundo o nº 2 do artigo 30º, caso estejamos na fase crítica da emergência, “o isolamento pode ser sucessivamente renovado por períodos até 10 dias enquanto persistirem as condições de risco para a saúde pública.”, ou seja, a privação de liberdade é pelo tempo que as autoridades de saúde entendam. Se as autoridades considerarem que as “medidas tidas por necessárias” são mesmo necessárias por, vá lá, a vida toda, enfim, “azarito”. Podemos imaginar de que forma este instrumento poderá ser usado para calar vozes incómodas ou até abafar escândalos políticos.
A arbitrariedade não se fica por aqui: os critérios para determinar se a pessoa está afectada (ou infectada) pela doença ou outras maleitas ficam inteiramente nas mãos das autoridades de saúde. Até porque a emergência pode ser decretada pela simples iminência – ou seja, de algo que ainda não existe, que pode nunca vir a existir, mas que, como pode existir (porque o pode admite a possibilidade do “não pode”), para segurança de todos decreta-se a tal emergência e implementam-se as “medidas tidas por necessárias”, que obviamente incluirá ao enclausuramento domiciliário.
Recordemo-nos que, na recente crise sanitária, decretaram-se milhares e milhares de prisões domiciliárias, completamente anticonstitucionais, suportadas em teste de duvidosa fiabilidade, que, além de mais, nem sequer garantiam que a pessoa estava doente e que transmitia a infecção.
Sobre esta matéria, o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 11 de Novembro de 2020, afirmou taxativamente: “Por essa fiabilidade depender do número de ciclos que compõem o teste; Por essa fiabilidade depender da quantidade de carga viral presente… O que decorre destes estudos é simples – a eventual fiabilidade dos testes PCR realizados depende, desde logo, do limiar de ciclos de amplificação que os mesmos comportam, de tal modo que, até ao limite de 25 ciclos, a fiabilidade do teste será de cerca de 70%; se forem realizados 30 ciclos, o grau de fiabilidade desce para 20%; se se alcançarem os 35 ciclos, o grau de fiabilidade será de 3%.”.
Confrontemo-nos também com o comunicado do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) que, em Julho de 2021, desaconselhou o teste PCR, considerando-o incapaz de distinguir na perfeição o SARS-Cov 2 do vírus influenza (gripe comum).
Recordemo-nos também de um pedido de informações de um grupo de cidadãos ao Ministério da Saúde para que fosse disponibilizada a “publicação científica, revista por pares, relativamente ao teste RT-PCR como ferramenta de diagnóstico fiável para identificar a infecção por vírus SARS-CoV 2 em humanos”, que justificasse a adopção destes testes. A resposta foi simples: “ não possuía nenhum documento administrativo” a respeito.
Estes são os critérios científicos que esta gente utiliza para nos mandar para o cárcere: podemos ficar descansados!
Direito à integridade pessoal
Segundo a CRP, no seu artigo 25º, alínea 1, “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”. O diagnóstico de uma doença não é uma ofensa à integridade física caso seja praticado por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, conforme o artigo 150º do Código Penal português (CPP): “As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.”; no entanto, carecem de consentimento, caso contrário, não podem ser realizadas, tal como nos indica o artigo 156ª do CPP, alínea 1: “As pessoas indicadas no artigo 150.º que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente são punidas com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
Aquilo que propõe o documento aberrante, no seu artigo 11º, é isto: “A autoridade de saúde pode determinar a sujeição a controlo laboratorial ou a outros meios não invasivos de diagnóstico que permitam a identificação das pessoas afectadas pela doença ou das cadeias de transmissão de agente infeccioso.” Nem é necessário o consentimento da pessoa, é simplesmente compulsivo e arbitrariamente decidido pelas autoridades!
Estes são os exactos métodos utilizados pela tirania chinesa, passando inclusive por cima dos tratados internacionais subscritos pelo Estado português, como o artigo 6º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, no seu nº 1, que convém saber, e ler em voz altissonante: “Qualquer intervenção médica de carácter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo”. Recordemo-nos que o artigo 8º da CRP diz-nos que os tratados internacionais subscritos pelo estado português vigoram no direito interno português.
Direito à identidade pessoal
Sabemos a ladainha do nº 1 do artigo 26º da CRP: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal…”. Porém, no artigo 12º do infame documento consta esta “prata de lei”: “O Governo pode determinar a obrigatoriedade do uso de equipamentos de protecção individual ou colectiva, que se revelem necessários como meio de contenção da doença, para o acesso, circulação ou permanência em determinados locais, inclusivamente em espaços públicos ou nas vias públicas.”
Enfim, querem obrigar-nos a usar fraldas faciais, uma e outras vezes mais, visando assim eliminar a nossa personalidade e criando uma atmosfera de terror e medo. Isto apesar de não existir qualquer evidência científica que as justifique, tal como indicado no documento da OMS de 1 de Dezembro de 2020, na sua página 10: “Actualmente são limitadas e variáveis as evidências científicas que corroboram a eficácia do uso de máscaras por pessoas saudáveis na comunidade com o intuito de prevenir a infecção por vírus respiratórios, incluindo o SARS-CoV-2.” É impressionante a permanente pressão para nos transformar numa autêntica manada sem individualidade.
Também podemos mencionar os 150 estudos científicos que provam a ineficácia das máscaras e do prejuízo que podem causar à saúde das pessoas. É insultuoso para a nossa inteligência denominá-las “equipamentos de protecção individual” como este documento o faz.
Direito a circular livremente
A possibilidade de circular livremente está inscrita nos Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 13º. Tem dois pontos, ditemos: “1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado; 2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.”
A nossa CRP confirma este direito no artigo 44º. Convém citar, porventura: “1. A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional; 2. A todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar.”
Ora, e o que propõe o infame anteprojecto? No nº 1 do seu artigo 31º, dispara: “O Governo pode, por modo adequado e indispensável à prevenção, à redução e eliminação dos riscos de disseminação ou ao controlo da doença que determinou a declaração da emergência de saúde pública, estabelecer: a) Limitações ou interdição de circulação de pessoas ou de veículos; b) Interdição de deslocações ou viagens; c) Proibição de permanência na via pública sempre que não se verifiquem motivos justificados; d) Fixação de cercas sanitárias; e) Evacuação de pessoas que se encontrem em local de elevado risco iminente ou efectivo para a vida ou saúde.”
Ao abrigo de restrições à circulação, no mesmo artigo 13º, também nos podem colocar uma vez mais em prisão domiciliária – retirar-nos a liberdade é uma obsessão dos autores do documento –, conforme se observa no nº 2: “O Governo pode determinar a obrigação de permanência na habitação, salvo se existirem motivos que justifiquem a ausência, nomeadamente por razões de saúde, imperiosos motivos de natureza familiar, exigências de trabalho, para aquisição de bens essenciais, ou por outro motivo relevante”.
O tempo de prisão domiciliária é também mais uma vez estabelecido de acordo com os caprichos dos tiranos no poder, ou dos seus lacaios de pantufas, mas seguindo o nº 3 do mesmo artigo 13º -ou seja, aplica-se a tal carta branca a favor do Executivo, a tal que a nota justificativa dizia querer evitar a todo o custo!
Direito de reunião e manifestação
Também podemos ainda recordar, porque a CRP ainda existe, outros direitos que nos assistem, nomeadamente os estabelecidos nos nº 1 e 2 do artigo 45º: “1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização; 2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação”.
E então, o que propõe o infame documento? No seu nº 1 do artigo 13º, suspende-se este direito, assim desta simples forma: “De modo adequado e indispensável à redução e à eliminação do risco de disseminação de doença, o Governo pode estabelecer limitações de ajuntamentos de pessoas na via pública ou em lugar aberto ao público”.
Já estamos a ver o perigo que manifestações de “negacionistas” poderão constituir para a saúde pública; ou de sindicalistas, ou da oposição. Não há critério algum, apenas a total arbitrariedade, o poder infinito de eliminar as manifestações que se entendam “por desagradáveis”.
Direito a não ser discriminado
Sobre esta matéria, o nº 1 do artigo 26º da CRP acena-nos com direitos inalienáveis. Diz que qualquer cidadão tem “…protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. Mas isso é a CRP, um “papelucho” certamente sem importância perante um infame documento que nos quer salvar a vida, privando-nos de viver. No nº 1 do artigo 22º está prometido que “o Governo pode determinar, após parecer emitido pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, a exigência de exibição de certificado ou teste, relativos a doença, agente infecioso ou a outro fenómeno que tenha fundamentado a declaração da emergência de saúde pública, para acesso a estabelecimentos, locais ou eventos, definindo as pessoas, as modalidades de habilitação e os serviços autorizados a verificar esses documentos”.
Todos sabemos que o certificado digital Covid nada certifica! Quem tomou vacina pode infectar e ser infectado; não protege ninguém a não ser, na melhor das hipóteses, a si próprio. Nem sequer é um certificado absoluto contra a morte, até porque os poros do papel em que é impresso são ainda maiores do que os das fraldas faciais. Os tratamentos genéticos experimentais contra a covid-19 nunca imunizaram as pessoas.
Recordemo-nos que jamais as pessoas foram discriminadas por tomarem ou não uma vacina contra a gripe, que, aliás, e muito bem, é recomendada pela DGS – sem qualquer coerção – a pessoas e grupos de risco.
Agora, ao arrepio da CRP, quer-se discriminar pessoas apenas por se recusarem a ser inoculadas com substâncias sobre as quais ainda não existem provas sólidas sobre os seus efeitos secundários a médio e longo prazo.
E mesmo que houvesse 100% de eficácia e 100% de segurança, por hipótese académica, nem a CRP nem o Código Penal português permitem que se discrimine qualquer pessoa, por qualquer motivo, de tomar uma decisão que não contrarie a sua vontade e autonomia sobre o seu corpo.
O corpo de qualquer pessoa não é pertença do Estado nem da sociedade – parece que muita gente se esqueceu destes sagrados direitos tão arduamente conquistados pelos nossos antepassados.
Mas o regime comunica todos os dias com crescente protérvia, menosprezando sistematicamente a inteligência das pessoas; o primeiro-ministro até nos diz para discutirmos este infame documento com serenidade! Ainda bem que o diz, porque a vontade é metê-lo já na trituradora.
Por outro lado, o nosso presidente – perito há mais de 40 anos em mexericos, tricas e conspirações – informa-nos que, por ele, o documento, pronto, “está bem”, mas, vá lá, faz-nos a vontade de comprar um selo, lamber a cola do sobrescrito e mandar o estafeta ao Palácio Ratton – leia-se, Tribunal Constitucional –, não haja por aí uns “chatos” – leia-se, cidadãos indignados por acharem que estavam numa democracia – que aborreçam o regime com processos judiciais. Enfim, bom, bom, para todos, incluindo o Professor Marcelo, era toda a gente comer e calar, sem liberdade.
O mais grave, é que este projecto-lei, a ser aprovado, será regulamentado em concreto por resoluções do conselho de ministros, que já são bem nossas conhecidas e pelas piores razões, ou seja, será o primeiro-ministro a decidir quem vai preso, por quanto tempo e para onde!?
Será o primeiro-ministro a decidir quais os estabelecimentos comerciais que encerrarão ao público e por quanto tempo!?
Será o primeiro-ministro quem decidirá quando cessa a emergência de saúde pública!?
Será o primeiro-ministro quem decidirá quantas pessoas poderão estar num restaurante, num centro comercial ou em qualquer outro lugar aberto ou mesmo… na via pública!?
Será o primeiro-ministro quem decidirá qual o cidadão que terá de exibir certificado ou teste para acesso a estabelecimentos, locais ou eventos, ou seja, decidirá quem poderá frequentar um cinema, um restaurante, um estádio de futebol, um ginásio ou talvez, quem sabe, frequentar uma praia!?
“Reflexão final”
A Lei nº 34/87, respeitante aos crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos, diz no seu artigo 9º que “o titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se não tiver seguido.”
A tentativa de crime, como sabemos, costuma ser punida, mesmo se em menor grau.
Sendo assim, temos uma pergunta final: no decurso deste anteprojecto de lei e da sua “libertação” pelo Conselho de Ministros, estará já a PGR a instruir um processo-crime por tentativa de golpe de Estado?
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
João Pedro César Machado é advogado
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O meu filho está naquela fase em que acha as meninas, todas, muito chatas. Não lhe vou dizer ainda que essa fase só dura mais 90 anos, para não estragar a surpresa, mas não resisti a perguntar quem escolheria num hipotético casamento: uma italiana, uma portuguesa ou uma sueca.
A “casca de banana” estava nas duas representantes da Europa que sabe comer. Tenho a secreta esperança de que o amor o empurre para sul, e eu possa vê-lo sem andar de avião ou abraçar os netos sem vestir dois casacos.
Ele foi pragmático: “Quem escolhia? A mais gira pai, qual é a dúvida?”. Nacionalismos completamente descartados, o que é sempre bom, e os meus intentos deixados ao acaso da probabilidade do encanto.
Resta-me esperar que a mais gira seja morena. Caso a Matemática me engate os planos, e tenha mesmo que usar gorro em cada visita à Maria Johanna e ao Johan Franco, contar-lhes-ei os dias de hoje, antes que os aprendam na escola.
Os meus netos, nessa escola sueca, aprenderão que ao fim de 200 anos de neutralidade, com apenas 54% de apoio popular, o Governo sueco decidiu aderir à NATO. Ser-lhes-á explicado, em princípio, que a invasão russa da Ucrânia empurrou a Suécia para os braços da NATO. Mas ninguém lhe dirá que as acções da NATO, o alargamento para Leste durante 20 anos e as promessas feitas ao governo de Zelensky, deram toda a narrativa que Putin precisava para formar uma história que justificasse o seu sonho imperial.
Vão aprender também uma ou outra coisa sobre aquilo a que se chama a realpolitik. A negociata entre Estados com impacto nas vidas reais de quem nada decide.
Por exemplo, que menos de uma semana depois do secretário-geral da NATO ter dito que suecos e finlandeses seriam recebidos de braços abertos, estes formalizaram uma candidatura, expondo-se ao regime de Putin e esperando esse abraço fraterno.
Ao invés disso, um dos membros da Aliança (Turquia), contrariou as palavras do seu secretário-geral e votou contra a entrada de Suécia e Finlândia. Segundo o líder turco, Recep Erdogan, estes países escandinavos são paradeiro e abrigo de terroristas – e por isso, há que fechar a porta. Esta é a narrativa oficial.
Traduzido para linguagem corrente, o que quer verdadeiramente a Turquia? Erdogan quer “via verde” para esmagar os separatistas curdos do PKK, passando pela extradição daqueles que se encontram em solo sueco e finlandês. Um filme já visto.
O Ocidente prepara-se para deixar os curdos à sua sorte, uma vez mais. Pergunto-me: quem é que ainda não traiu os curdos? Usados sempre como pontas da lança a cada invasão no Médio Oriente em troca de promessas sobre um território que nunca foi reconhecido.
Observo, com alguma curiosidade, a forma como serão comunicadas ao Mundo as negociações de Ancara. Até onde cederão Suécia e Finlândia? De que forma será desvalorizada, novamente, uma vida fora do espaço europeu?
Tudo o que vejo em redor é uma escalada na violência, uma corrida ao armamento e uma repetição ad nauseam do argumento “temos que nos proteger”?
Proteger de quê? Não ouvimos diariamente que a Rússia está a perder esta guerra? Que encontrou na Ucrânia o seu Vietname?
Se é assim, se isso é verdade, como é que nos protegemos continuando a meter gasolina num fogo cuja extensão não podemos controlar? Há semanas que ninguém se refere a conversações de paz. Começo a acreditar que o Ocidente quer mesmo levar esta guerra até ao último ucraniano.
Espero que na escola, quando aprenderem este período da história, os meus netos não tenham que ouvir também os relatos sobre a III Grande Guerra que se seguiu.
Pensando bem, se isso acontecer, talvez os meus netos nem cheguem a nascer aqui.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Será difícil, nos tempos vindouros, encontrar peça jornalística mais infame. Ademais, complementada pelas balelas do mais mercantilista “vendedor da banha da cobra do país” que ostenta (ainda) uma cédula passada pela Ordem dos Médicos.
Este é um sinal dos tempos modernos, do Novo Normal: do conluio entre uma imprensa sem escrúpulos e vergonhosa, alicerçada em médicos que mandaram Hipócrates à merda e que se vendem por 29 dinheiros, porque até se comercializam abaixo da cotação de um Judas.
Hoje, pelas 10h15 horas, na edição online da revisa Visão Saúde, a jornalista Mariana Almeida Nogueira – que, pelo seu número elevado de carteira profissional (CP 8227), não deve ter tido ainda tempo de ler o Código Deontológico – escreve o mais descarado artigo de propaganda de marketing de que tenho memória. Ou melhor dizendo, publicidade pura e dura. E tenho (ainda) muito boa memória.
Para sustentar esta peça: as opiniões de um vendedor encartado pela Ordem dos Médicos, e não investigado a preceito pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS): o pneumologista Filipe Froes.
Qual o tema?
Notícia de hoje na Visão Saúde, assinada pela jornalista Mariana Almeida Nogueira.
Já viram na imagem em cima: Paxlovid, um antiviral contra a covid-19 da farmacêutica Pfizer, apresentado logo no título como o “antiviral campeão de vendas nos EUA”, e que, acrescenta-se ainda, “pode [sempre a velha questão do pode, que pode significar o contrário, ou seja, pode não] pôr a salvo os doentes de risco”.
O lead não seria melhor escrito por uma agência de comunicação; e mal não lhe ficaria.
Mas a imprensa, e um(a) jornalista não pode ser uma agência de comunicação.
O texto da Visão Saúde, através de uma (suposta) jornalista encartada, não pode ter um lead assim: “E se existisse um antiviral capaz de complementar a ação da vacina e de reduzir a probabilidade de estes doentes de risco irem parar ao hospital, terem doença grave e morrerem? E existe mesmo. Chama-se Paxlovid, mas ainda não está disponível no nosso País, nem se sabe quando estará”.
Se fosse a Cristina Ferreira ou o Manuel Luís Goucha a dizer isto do Calcitrin, a gente até aguentava. Mas isto não é “banha da cobra”: é um medicamento que arrisca custar-nos, se levados por esta intrujice de vendedor, muitos milhões de euros sem préstimo. Na melhor das hipóteses.
De facto, toda esta (alegada) notícia é escrita como se fosse inexplicável o não-aproveitamento deste milagre da Pfizer.
Como se estivéssemos perante uma inexplicável negligência do Estado.
Não é o caso. Na verdade, a notícia é puro marketing para favorecer (sem aspas) uma farmacêutica, criando pressão mediática sobre o Governo e o Infarmed para a concretização de um negócio de milhões.
Mas, afinal, do que falamos quando falamos do Paxlovid – questão de pouca relevância para a Visão Saúde, mais preocupada em panfletar o fármaco milagroso da Pfizer?
O Paxlovid é, na verdade, uma combinação antiviral, de toma oral, constituída por dois medicamentos: o nirmatrelvir e o ritnonavir. O primeiro destes medicamentos já tinha sido criado em 2002 para combater o primeiro SARS, mas sem qualquer utilidade prática. Com o advento do SARS-CoV-2, a Pfizer começou então a testá-lo, em conjunto com outros. Apenas em Novembro do ano passado, a Pfizer anunciou um ensaio provisório envolvendo 774 pacientes com sintomas ainda leves ou moderados de covid-19, sobre os quais se avaliava o seu risco de internamento e morte. Em menos de um mês e meio, a farmacêutica apresentou então os resultados finais e, sem grandes demoras, em 16 de Fevereiro passado, saiu um artigo na revista científica New England Journal of Medicine.
Se acham estranha a rapidez da publicação deste artigo – assinado por investigadores da Pfizer (que admiração!) – numa revista científica, que dizer então da celeridade na autorização de comercialização pela Food and Drug Administration (FDA)?
Apenas 11 dias após a imprensa – que passou a constituir a fase crucial para convencer Governos e reguladores – ter divulgado os resultados obviamente extraordinários do Paxlovid, a Pfizer pediu autorização à FDA. Estávamos em 11 de Novembro do ano passado. No dia 22 de Dezembro, quase sem pestanejar, a FDA concedeu uma “autorização de uso de emergência”.
Nunca outro medicamento teve aprovação tão rápida. E isto não é uma boa notícia.
Israel seguiu logo os passos dos Estados Unidos, com uma autorização em 26 de Dezembro. E depois foi em cascata: Reino Unido em 31 de Dezembro e, por fim, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) recomendou a autorização de comercialização condicional em 27 de Janeiro passado, deixando aos reguladores dos países europeus solicitar ou não mais testes.
A euforia com que o Paxlovid foi recebido nos últimos meses somente encontra paralelo com o anúncio das vacinas contra a covid-19. Lembram-se?! Daquelas que iriam ter uma eficácia de quase 100%, que concederiam imunidade de grupo e até maior protecção contra as infecções. Lembram-se? Pois bem, os resultados são bem mais modestos, e tanto assim que as autoridades de Saúde – incluindo a nossa DGS – os escondem para uma avaliação independente.
Mas para escoar o Paxlovid, a máquina de marketing da Pfizer ainda está mais oleada, mostrando uma “eficácia” extraordinária na perspectiva de obtenção dos máximos lucros no mais curto espaço de tempo.
De facto, sem uma justificação plausível – e muito menos transparente –, o preço de cada tratamento de cinco dias de Paxlovid nos Estados Unidos custará quase 530 dólares, ou seja, aproximadamente 510 euros. Este deverá ser o preço estabelecido para a Europa.
Os preços dos medicamentos já não reflectem, em grande parte dos casos, os custos de investimento, mas sim os previstos benefícios para a saúde individual e colectiva. Como o Plaxlovid está a ser “vendido” como um fármaco milagroso – apenas com base em ensaios clínicos realizados pela empresa e sem uma análise independente de longo prazo –, anunciando-se uma redução de 88% das hospitalizações, então a farmacêutica pode pedir um valor elevado desde que inferior ao custo de internamento dos doentes que seriam hospitalizados se o medicamento não existisse.
Mas isso é fazer futurologia. O Paxlovid é um medicamento que não mostrou ainda provas. Não justifica compras massivas.
Aliás, em epidemias, muitos medicamentos prometeram muito, e deram pouco, mas custaram muito. Tamiflu, há uma década, ou o Veklury (remdesivir), na pandemia da covid-19, surgem logo à lembrança. Milhões entregues de bandeja às farmacêuticas; resultados zero. Aliás, sobre o Tamiflu, da farmacêutica suíça Roche, corre ainda um processo judicial nos Estados Unidos por falsificação de dados que sobrestimaram efeitos benéficos.
Artigo científico que “explica” como a Roche actuou para vender o Tamiflu em 2009.
Aliás, quem quiser entender como funcionam as estratégias de marketing farmacêutico em tempos de pandemia, basta ler o artigo científico de 2017 intitulado “Pharmaceutical lobbying and pandemic stockpiling of Tamiflu: a qualitative study of arguments and tactics”, no Journal of Public Health.
Mas a máquina da Pfizer quer mais do que vender aos países ricos. Sabe que pode maximizar o lucro se vender o Paxlovid aos países pobres com suposto preço de saldo. Até, supostamente, fica bem na fotografia. Não sejamos ingénuos: as margens de lucro serão muito menores, mas muitas mais vendas sempre dará mais lucro.
E assim, sem perda de tempo, vimos a Pfizer a querer inundar os países pobres com Paxlovid. No passado dia 17 de Março, o Pool de Patentes de Medicamentos, apoiado pelas Nações Unidas, assinou acordos com 35 fabricantes de medicamentos genéricos na Europa, Ásia e América Central e do Sul para fabricar este fármaco e fornecê-lo em 95 países mais pobres.
Dois dias mais tarde, os Centros Africanos de Controle e Prevenção de Doenças assinaram um memorando de entendimento com a Pfizer para fornecer Paxlovid com um preço de 25 euros.
No início de Maio, a Pfizer estimava conseguir vender 22 mil milhões de dólares, até final deste ano, de Paxlovid, aproximando-se das receitas da vacina Cominarty (32 mil milhões de dólares).
Obviamente, para esta estratégia ser bem-sucedida, além de uma imprensa ao seu serviço, a Pfizer precisa de pessoas como o Doutor Filipe Froes, um marketeer travestido de médico, que foi “chamado” para a peça da Visão Saúde.
O pneumologista – que já foi o maior “impingidor” de remdesivir, da Gilead, que nos custou 20 milhões de euros sem préstimo algum, a troco de uns bons milhares de euros – está agora vocacionado para vender – e aqui sem aspas – o Paxlovid da Pfizer, tal como virá, certamente em breve, a vender também o Molnupiravir da Merck Sharpe & Dohme (MSD). Ele não é esquisito.
Para que não se tenha dúvidas sobre a índole mercantilista de Filipe Froes – contra todas as regras éticas, deontológicas e até legais, tanto mais que é médico do SNS e consultor da DGS, integrando a equipa que define as terapêuticas anti-covid –, atente-se nas frases usadas pela (suposta) jornalista Mariana Almeida Nogueira (e mais ainda nas aspas que são declarações textuais deste pneumologista; os parêntesis rectos são meus):
1 – Segundo o pneumologista Filipe Froes, perante o que está a acontecer agora em Portugal, a aposta deveria ser feita, precisamente, nas medidas que diminuem o impacto da gravidade da doença, “nomeadamente, o reforço da vacinação e um acesso mais fácil a outras terapêuticas, que já existem noutros países, como os anticorpos monoclonais neutralizantes e os novos antivíricos, dos quais o Paxlovid é um deles”.
2 – Filipe Froes sublinha que “este tipo de medicamentos [novos antivíricos, como o Paxlovid] é muito bem vindo em Portugal e necessário nesta fase de combate à pandemia, que é diferente da fase inicial”.
Filipe Froes
3 – Segundo o médico, o fármaco [Paxlovid] “é essencial, sobretudo na altura em que nos encontramos, por contribuir significativamente na diminuição do impacto da gravidade e da mortalidade nas pessoas mais vulneráveis”.
4 – Perante a importância do Paxlovid, surge a dúvida: Por que razão não está ainda disponível no nosso País? Desde janeiro, que a DGS estará a preparar uma norma “para a utilização o mais racional e equitativa possível deste medicamento”, afirma Filipe Froes [que integra a equipa da DGS que define as terapêuticas anti-covid].
5 – O pneumologista considera o medicamento [Paxlovid] “essencial para controlar a circulação do vírus na comunidade e, sobretudo, para diminuir a gravidade da pandemia na população, sobretudo na mais vulnerável”.
Acrescento eu, por fim, apenas mais uma nota: corre na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) uma queixa contra mim e contra o PÁGINA UM accionada pelo presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), onde Froes tem um lugar de destaque. António Morais – o dito presidente, que também é consultor da DGS e do Infarmed, e não deveria ser por incompatibilidades legais – escreveu que “a SPP é uma associação sem fins lucrativos e não faz publicidade ou comércio de produtos farmacêuticos”, e que “a sua actividade é de natureza científica, recolhendo patrocínios e donativos para os seus objectivos estatutários, no escrupuloso cumprimento das normas em vigor”.
É tudo “gente séria”! Neste caso, as aspas é porque, obviamente, estou a ser irónico.
Poucas coisas têm o poder revigorante da morte em Portugal. Enfrentamos cada década a acreditar no milagre dos restauradores capilares, nas dietas detox à base de pepino ou nos cremes que nos tiram anos cravados em redor dos olhos. Procuramos em cada esquina de publicidade uma solução para uma versão melhor de nós próprios, quando, afinal, basta falecer.
Enquanto lia e ouvia os discursos sobre João Rendeiro, iniciados três exactos segundos após a notícia da sua morte, fabriquei na minha mente uma banda sonora para acompanhamento, à base de poesia urbana. Que é como quem diz azeite em garrafas MTV. Reza a nossa Jeninha no seu poema:
Don’t be fooled by the rocks that I got
I’m still, I’m still Jenny from the block
Used to have a little now I have a lot
No matter where I go I know where I came from.
Que é uma forma de dizer: atenção, sou muito, mas mesmo muito rica, possuo um pouco de tudo e valentes diamantes, mas reparem, nem me esqueci que cresci no Bronx. Sou no fundo uma de vós que não viaja em turística. De resto tudo igual. Continuo a mesma menina cheia de sonhos.
O poema, de riqueza gramatical dúbia, assenta como uma luva no nosso Rendeiro. Vejamos: até há poucos dias, o estimado João era um fugitivo à Justiça portuguesa.
Era um banqueiro que fizera fortuna lesando (vocabulário de luxo para “roubar”) milhares de pessoas e o Estado.
Era um magnata que apresentava livros sobre excelência em gestão enquanto o seu banco falia.
Era um homem que, durante a fuga, se deu ao desplante de aparecer numa entrevista na CNN Portugal para mostrar o quão inimputável era.
Mais de uma década depois de o Estado ter assumido o calote (portanto, um roubo a todos nós), muitos dos seis mil lesados ainda não receberam o dinheiro. Alguns morreram enquanto esperavam.
Na minha memória ficou a imagem de uma manifestação à porta do Banco Privado Português (BPP) no auge da derrocada onde, entre os manifestantes, chorava um emigrante português que, ao fim de 40 anos a trabalhar na Venezuela, tinha perdido as economias de uma vida.
Para quem vive longe de casa, há quase duas décadas, estas histórias tocam um pouco mais, porque se percebe bem o esforço feito e o que ali se perdeu.
Portanto, Rendeiro era, até há pouco, um criminoso que roubou pessoas e o país, enriquecendo com isso e vivendo uma vida de impunidade até Dezembro de 2021, altura em que foi apanhado na África do Sul.
Com a sua morte, tudo mudou. Um criminoso decidiu por termo à vida. Ou foi morto por outros numa das prisões mais violentas do mundo. Não se sabe. Partimos do princípio que morreu. E por aí começa a “nossa” simpatia.
Agora, João Rendeiro passou a ser o banqueiro que não nasceu rico; que veio de baixo e que, graças à sua genialidade, entrou na alta roda da banca. É, desde há uns dias, não um criminoso, mas alguém que, entre banqueiros, foi afinal o que roubou menos. Um renegado da classe e perseguido, porque, ao contrário de Salgado, não tinha segredos de Estado e partidos políticos no bolso. Devemos respeitar a sua morte, e há até quem condene o Estado Português pela morte numa prisão africana.
Como?!
Podem repetir?!
Foi o Estado Português que meteu o Rendeiro num jato privado para África do Sul? As únicas responsabilidades de Portugal neste caso, quase anedótico, foram a devolução do passaporte que permitiu a fuga e, numa primeira instância, a lentidão da Justiça que aguentou com 10 anos de recursos em tribunal.
Se isto continua, não tarda nada e chegaremos à conclusão de que Rendeiro era afinal o Robin Hood dos banqueiros, que roubava para dar aos pobres, nomeadamente aos da sua família.
Leio também, com alguma estupefacção, quem defenda que a família deve ficar fora das dívidas deixadas por João Rendeiro.
Como é que é?! A família que, durante anos, viveu no meio do luxo roubado aos outros, que beneficiou diretamente com o produto da vigarice, deve agora ser esquecida, fazer o luto e continuar a viver à custa da fortuna roubada? Mas anda tudo a ficar doido neste país?!
Façam o luto pela morte de um familiar como quiserem, mas cada cêntimo, deixado ou escondido, por João Rendeiro deve ser utilizado para indemnizar as seis mil famílias roubadas, e cujos sonhos foram destruídos pela ganância de um homem. O facto de os lesados do BPP não aparecerem nas capas dos jornais não significa que não existam, que não tenham família ou que não tenham ficado com as vidas de pernas para o ar.
É-me indiferente saber que Rendeiro seria o menos mau entre os banqueiros facínoras – um eufemismo sugerido pelo editor para evitar invocações a descendentes directos de certas pessoas de “má vida” – que nos roubaram. Desejo a todos igual fim: bens apreendidos até à última mesinha de cabeceira e vendidos para indemnizar lesados e o Estado; privados de liberdade até ao fim dos seus dias; e, se morreram durante a estadia na prisão, espero, como consolação final, que não seja pela cobardia de um suicídio.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Numa democracia não se deve proibir de discutir nada. Mas, em abono da verdade, deve haver temas que teremos mesmo de descartar para um debate aos primeiros sinais. Logo ao lermos as primeiras linhas. À cabeça deve estar a possibilidade de regressarmos à ditadura, ao regime de um homem-só, salvífico, protector e redentor.
Nem sequer me apetece discutir demasiado as minudências e consequências deste anteprojecto – de onde se destaca a possibilidade de uma autoridade de saúde, a mando de um Governo, impôr restrições às liberdades individuais e colectivas, sob pena de prisão.
Apetece-me, sim, abordar conceitos, porque a democracia também são conceitos e princípios.
O dito anteprojecto da LPESP começa logo mal. Diz que tem “por objeto o conjunto de procedimentos e ações, regulamentares, científicas, organizativas e materiais, com a finalidade de conter, tratar e eliminar as causas e as consequências de doenças que tenham por efeito gerar elevado risco ou provocar danos severos na saúde pública”.
Note-se: inclui procedimentos científicos – os procedimentos da Ciência a serem regulamentados por legislação política. Começa bem, mesmo – ou melhor, começa mal.
Depois, seguimos para o artigo 2º, referente às definições. Ler aquilo, deveria logo levar-nos a devolver ao remetente estas desgraçadas páginas. Portanto, uma “emergência de saúde pública” é, para os doutos autores desta lamentável peça, apenas uma manta de retalhos sem indicadores, sem métricas, sem Ciência, acabando por ser definida como uma “ocorrência extraordinária, ou a ameaça iminente, de uma doença ou condição de saúde (…) que constitua um risco para a saúde pública ou com efeitos graves no funcionamento de sectores críticos da sociedade e da economia”?
Não admira que, desde as Descobertas, a Ciência nunca foi bem tratada em Portugal.
Ademais, o conceito de “pandemia” e “epidemia” – que constituem factores para desencadear a suposta “emergência de saúde pública”, a par, entre outros, do bioterrorismo, de acidentes radiológicos ou nucleares, e de uma enigmática “ocorrência ambiental” – seria risível, se não configurasse um enorme perigo. No anteprojecto surgem como sinónimos e definidos, simplesmente, como “surtos de doenças de natureza e localização disseminada”.
Minhas senhoras e meus senhores, aqui cabe tudo.
Um surto de gripe, num qualquer Inverno, pode transformar-se numa “emergência de saúde pública”. Até uma constipação.
Uma nova variante do SARS-CoV-2 – das centenas e centenas que já se formaram, e mais haverá – pode alcandorar-se, num estalar de dedos, a uma “ameaça iminente” e lá temos a “emergência de saúde pública”.
A própria possibilidade imprevista no tempo, mas previsível do ponto de vista histórico de surgir uma nova pandemia (tantas que já houve) pode sempre encaixar-se no conceito (não especificado) de “ameaça iminente”, e portanto pode accionar-se uma “emergência de saúde pública” hoje, amanhã, para a semana, quando o Governo estiver em queda de popularidade…
Os serviços secretos “desenterram” uma sempre secreta ameaça de bioterrorismo? Hélas, aqui vai uma redobrada “emergência de saúde pública”.
Um anúncio de “onda de calor” no Verão? Meta-se tudo dentro de casa e encerrem-se as praias.
Extraordinário é ver que, de acordo com o artigo 6º do tal anteprojecto, é o Governo que decreta a “ocorrência extraordinária”, e somente tem de apresentar os “elementos disponíveis” e uma “análise de risco”. E em que deve consistir isso? Nada se diz. A Doutora Graça Freitas há-de inventar qualquer coisa.
Sabendo como sabemos o obscurantismo da gestão da pandemia da covid-19 – com a recusa sistemática da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed, a par de uma “imprensa mansa” –, já se antevê que “elementos disponíveis” nos preparam, e que “análise de risco” nos mostrarão. Se for como os famosos e vergonhosos “relatórios de monitorização das linhas vermelhas”, estamos conversados.
Mas o mais espantoso neste anteprojecto – que deveria envergonhar qualquer pessoa com uma sinapse de pendor democrático – é que todas estas decisões políticas – apenas políticas – desencadeiam depois a constituição de um Conselho Científico. Pasmo absoluto: uma decisão que deveria ser baseada sobretudo em Ciência – ou previamente ratificada por cientistas –, acaba por ser uma decisão política de um Governo que depois vai procurar “cientistas” que digam ámen.
A fantochada anti-democrática chega ao ponto de determinar, no artigo 39º e seguintes, que o Conselho Científico, sendo um “órgão pluridisciplinar de apoio à decisão”, é nomeado imediatamente pelo Governo, sendo que seis dos nove membros são escolhidos pelo próprio primeiro-ministro. E outros três por entidades políticas (Assembleia da República e Governos Regionais). Coisa nunca vista em democracia.
Gente sem escrúpulos e ausentes de “coluna vertebral”, como uns Filipes Froes ou umas Raquéis Duarte, terão certamente, nestes Conselhos Científicos, a sinecura que ambicionam. E farão todos os fretes políticos que lhes solicitarem. Serão mais papistas do que o papa.
Aliás, serão cooperantes, até porque o anteprojecto não se esquece de vincar o direito a mordomias – leia-se “regime de compensação pelo exercício de missão” – determinadas por despacho do primeiro-ministro, e com a possibilidade de perpetuarem o posto, porque o dito Conselho Científico “mantém-se em funções até à declaração de cessação da emergência de saúde pública”.
Posto tudo isto, escalpelizar o articulado deste anteprojecto de “aborto antidemocrático” – que, em súmula, aplica aquilo que foi a gestão da pandemia – acaba por ser exercício desnecessário.
Isto não pode sequer chegar ao nível de uma discussão em Assembleia da República. E aprovar um diploma deste jaez equivale a Golpe de Estado; é accionar um mecanismo que pode transformar uma democracia numa ditadura quando o primeiro-ministro quiser.
O novo presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, esteve muito bem quando, no dia 8 de Abril, passado interrompeu um habitual discurso xenófobo de André Ventura contra os ciganos, para lhe dizer: “Permita-me que o interrompa para lhe dizer que não há atribuições coletivas de culpa em Portugal e, portanto, solicito-lhe que continue livremente a sua intervenção, como tem direito, mas respeitando este princípio.”
Perante o ar escandalizado do líder do Chega por esta inusitada interrupção, Augusto Santos Silva justificou-a com o n.º 3 do artigo 89º do Regimento do nosso Parlamento: “O orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra”.
Augusto Santos Silva no passado dia 8 de Abril, enquanto repreendia André Ventura.
Há, porém, um detalhe neste artigo que, em democracia, estando previsto, acaba por ser um abuso se usado. Com efeito, nenhumas dúvidas sequer éticas ou morais assistem a que Ventura, ou outro qualquer deputado de qualquer partido, seja advertido pelo Presidente da Assembleia da República “quando o discurso se torne injurioso” – como, e muito bem, repita-se, fez Augusto Santos Silva. Porém, se o presidente do Parlamento avançar com a parte final do artigo – “podendo retirar-lhe a palavra” –, já consubstancia, mesmo se previsto no regimento, uma “possibilidade” de abuso.
Eu acho que Ventura deve ser advertido e contestado as vezes que forem necessárias. E serão muitas. E muitos outros também devem ser advertidos se for caso disso. Mas, numa democracia, retirar a palavra, impor o silêncio, ainda mais num Parlamento, é algo contra-natura; aí “derrotam-se” ideias ou argumentos com palavras; não com imposições de silêncio.
Julgar que se derrotam ideias, mesmo se más ou nefastas, com silêncio em vez de ser com palavras é um erro.
Numa sociedade democrática jamais se pode impor ideias ou argumentos restringindo a liberdade de expressão e de opinião. Isso fazem as ditaduras. A diferença entre uma ditadura e uma democracia não se estabelece apenas pela questão do sufrágio; isso é quase um pormenor.
Por isso mesmo, fico extremamente preocupado perante uma pergunta “retórica”– mas não ingénua – do mesmo Augusto Santos Silva, anteontem num encontro com jovens, em que abordou a velha questão da “desinformação”. Disse ele, passo a citar: “A pergunta que se coloca hoje é saber se o nível de ódio, de desinformação e até de violência que assaltou as redes sociais nos obriga ou não a ser um pouco menos minimalistas e um pouco mais avançados nesta regulação dos conteúdos das redes sociais”.
Já aqui defendi que a “desinformação” é uma externalidade negativa da existência da democracia; e que se uma democracia anunciar o fim da “desinformação” por decreto – passando a definir o que é verdade, podendo transformar as “verdades incómodas” em “desinformação” –, então passa a ser uma ditadura. Sem tirar nem pôr.
Ora, numa democracia pouco sólida – o mesmo se aplicando a uma ditadura –, facilmente se cai no abuso de rotular “desinformação” uma simples opinião minoritária, não necessariamente errada. Uma democracia pouco sólida tende assim a decretar o fim da “desinformação” usando, mesmo que eufemisticamente, as mesmas armas das ditaduras para controlar a liberdade de expressão: a censura e o silenciamento, através de leis ou comissões.
Ao invés, numa democracia sólida, a “desinformação” é auto-regulada – se for mesmo sinónimo de “falsa informação” –, e tende a ser reduzida ou eliminada pelo debate de ideias e pela liberdade de expressão. E sucede através de um processo pacífico – e não político ou governamental –, porque a sociedade tem, per si, e de forma inculcada na esmagadora maioria das pessoas, elevados padrões de Educação e de Cultura. E de convivência democrática, passe o pleonasmo.
Assim, quanto mais bem-sucedidas tiverem sido as políticas públicas de um país na área da Educação e da Cultura, menor será a probabilidade de proliferação de “desinformação”, e maior será a probabilidade de termos debates de ideias onde até as opiniões minoritárias tenham oportunidade de dirimir argumentos – e serem justamente sublimadas como verdades, ou eliminadas como falsidades.
Ora, nem de propósito, o senhor Professor Doutor Augusto Santos Silva – com um impressionante currículo académico e político – já foi tanto ministro da Educação (2000-2001) como ministro da Cultura (2001-2002). Pertenceu a Governos durante 14 anos.
Os seus Governos, e ele, falharam em incutir melhores padrões de Educação e de Cultura. Não conseguiu ele, por essa via, reduzir (ou eliminar) a “desinformação”.
A pergunta retórica do presidente da Assembleia da República só demonstra o quão débil se encontra a nossa democracia.
Não queiramos, não permitamos que ele, Augusto Santos Silva, por eventualmente se sentir um falhado político como membro de tantos Governos, queira acertar agora como presidente da Assembleia da República promovendo a eliminação da “desinformação” por decreto. E deitando fora, nesse nefasto processo, os princípios democráticos, e brindando-nos com uma ditadura. Sem tirar nem pôr.
Estou, em todo o caso, esperançoso que Augusto Santos Silva – com a sua proposta de controlar a “desinformação” através de uma alteração da Constituição da República – tenha tido apenas uma má ideia no sítio certo, na Assembleia da República. Afinal, lembremo-nos das suas palavras no passado dia 29 de Março, aquando da sua tomada de posse: “Todas as ideias podem ser trazidas, mesmo as que contestam a democracia. Essa é a mais óbvia vantagem da democracia sobre a ditadura”. Touché.
Dizia a responsável de uma empresa de extracção de granito, em Pinhel, no distrito da Guarda, que as pessoas deviam pensar um pouco mais no interior. Há falta de mão-de-obra, todos fogem para o litoral.
É um facto, não há muito a dizer sobre isso. Há um êxodo, de décadas, para o litoral do país. Dizem-nos que a principal razão se prende com a concentração do mercado de trabalho nas cinturas de Porto e Lisboa.
Pessoalmente, acho que a escolha de deixar o interior não acaba nas oportunidades laborais, mas sim na ilusão de estarmos no sítio onde tudo acontece. Em Portugal, isso resume-se a Lisboa e, de quando em vez, ao Porto.
E digo ilusão porque, depois de ter mudado de casa 30 vezes, vivido em subúrbios bons e maus, vilas e cidades, capitais e periferias, passando ainda por uma ilha com apenas cinco mil habitantes, considero hoje que se vive melhor fora dos grandes centros.
Obras, trânsito, especulação imobiliária. Três coisas que gosto de evitar na minha vida, e que me fazem passar na minha Lisboa natal sempre em rotação para outro sítio qualquer.
Gosto de estar no centro de tudo…Londres, Paris, Nova Iorque, Lisboa, Berlim, Amsterdão, Tóquio, Istambul ou Rio de Janeiro estão entre os sítios onde me sinto melhor. Mas, no fim, no fim de tudo, gosto de regressar à paz do mar, do silêncio, das caras conhecidas e da ausência de conflitos na estrada. Gosto da guerra urbana por uns dias, não por uma vida.
O problema, pelo menos em Portugal, é como transformar o interior num sítio apelativo. Na Suécia é relativamente simples. Tanto as fábricas como as empresas ou serviços do Estado estão espalhadas pelo país. Claro que há mais oportunidades nas três principais cidades – Estocolmo, Gotemburgo e Malmö –, mas ninguém tem que sair da sua aldeia se não quiser. Há sempre emprego por perto.
Em Portugal não será bem assim. Empresas que abrem no interior são notícia. Casos raros. Exemplos de coragem e de quebra de barreiras. Mas poucos querem ir para lá viver. A qualidade de vida difere de análise para análise e, pessoalmente, sempre que tenho esta conversa com conhecidos o que mais ouço é “o que vou eu fazer numa aldeia do Alentejo?”.
Isto dito por quem vive na Arrentela, famosa pelos seus museus, restaurantes de grelhados, bailados, orquestras sinfónicas e arranha-céus com vista para o Monsanto. Quem nunca viu o Lago dos Cisnes na Torre da Marinha, que atire a primeira pedra.
Nos grandes centros urbanos, as deslocações tornaram-se um pesadelo – julgo que ouço a conversa da fila na segunda ponte do Feijó desde que nasci – e, com a especulação imparável no centro, a tendência é que os subúrbios não parem de receber gente, futuros clientes do caos no trânsito.
Ainda assim, quem quer deixar este inferno – para mim, isto é um cenário de Dante –, que hipótese de emprego tem no interior?
Esqueçamos a oferta cultural, as actividades, a ocupação dos tempos livres, ou tudo aquilo que achamos imperdível numa cidade. Que empregos esperam estas pessoas em Pinhel, por exemplo, nas palavras da senhora que se queixava ao jornalista de serviço?
Dizia ela que as pessoas normalmente só querem empregos de escritório, como em Lisboa. E que tinham que procurar também outras coisas, porque o interior precisava. Só a referência a um emprego de escritório como algo bom faz-me logo lembrar a bitola da minha avó, quando falava de uma neta ou filha de uma amiga qualquer na sua pequena aldeia do Alentejo: “Olha, ela até conseguiu um emprego muito bom. Num escritório. Não sei o que fazia, mas era num escritório”.
Eu sorrio sempre com as avaliações à vida feitas pela minha avó. Ela nasceu em 1927. Nas décadas seguintes, os escritórios estariam reservados para umas elites e, portanto, tudo aquilo faz sentido na cabeça dela. Já ouvir esse discurso numa empresária do granito neste século, enfim, ajuda um pouco a perceber a falta de mão-de-obra.
O problema, em última análise, é o “arame”, como lhe chamava Mário Soares. À pergunta sobre o nível salarial feita pela jornalista, respondeu a empresária, ligeiramente envergonhada: “Bom, isso depende do trabalhador”. Seguiu-se a insistência da entrevistadora, na tentativa de sacar um número: “Mas qual é a base? Está ao nível do salário mínimo?”. Aí a entrevistada já se soltou um pouco mais. “Sim, sim. Começam todos pelo salário mínimo, e depois vão evoluindo por aí fora”.
Ui…por aí fora. Eu imagino as reuniões com análises de produtividade, aumentos salariais correspondentes, e acordos com os sindicatos para as evoluções da carreira da extracção da pedra. Por outro lado, se começam todos pelo salário mínimo, lá se vai aquela narrativa do “depende do trabalhador”.
Portanto, em resumo, oferece-se um salário mínimo para acartar pedra a norte da Guarda. Progressões de carreira “por aí fora” e actividade ao ar livre – boa para evitar as bronquites causadas pelo ar condicionado dos escritórios. Garante-se um frio de rachar penicos durante os meses de Inverno, que só fortalece os ossos, e gasolina mais barata, uma vez que Espanha dista pouco mais de 30 quilómetros.
Visto assim, também não percebo a dificuldade em arranjar trabalhadores. Ou colaboradores, como se diz agora.
Eu gosto muito do interior de Portugal, mas infelizmente, tal como no litoral, o tecido empresarial ainda se rege pela exploração da força de trabalho, confundindo essa prática com o que, levianamente, costumam apelidar de “oferta de emprego”.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O meu dia começa invariavelmente a olhar para um mapa. Diz quem me conhece que só estou bem onde não estou. Todos os dias planeio uma viagem diferente. Todos os dias encontro problemas no destino.
Ou, na minha meninice, era o Mundo mais simpático, ou era eu que consultava menos mapas.
Por estes dias, olho bastante para Chisinau e para a região separatista em redor de Tiraspol. Há mais de 10 anos que penso lá ir, desde que vi um documentário narrado pelo Michael Palin, dos Monty Python. Não sei se daqui a uns meses ainda existirá como caso único no mundo, ou se, em alternativa, como novo território nos domínios de Putin.
Dramas reais à parte, isto lembra-me uma máxima de um antigo marinheiro e colega na Autoeuropa que diz haver “duas coisas que nunca se trocam ou adiam na vida: aumentos salariais e viagens”.
O velho lobo-do-mar sabia que sem um dificilmente aconteceria o outro.
De Tiraspol, desloco-me 650 quilómetros para leste, com um simples click, e estou em Mariupol, a cidade mártir da invasão russa. Começam aqui algumas das minhas dúvidas sobre este conflito, e a diferença entre aquilo que nos contam e o que, efectivamente, é a realidade.
Durante várias semanas, ouvi glorificações ao batalhão Azov (ou Combatentes da Liberdade). Desde a direita portuguesa a Inês Pedrosa, passando por dirigentes europeus e, obviamente, Zelensky, que tentou transformar uma milícia nazi numa feroz unidade de combate patriota. Confesso que nunca percebi a razão de tal esforço.
Escrevi aqui, neste jornal, há umas semanas, que, por mim, se estivesse num teatro de guerra com soldados ao meu lado, tornar-se-ia absolutamente irrelevante saber em quem votariam nas próximas eleições. Interessar-me-ia, isso sim, perceber se tinham boa mira ou se faziam bombas com um elástico, pastilha e um sumo de laranja, tal como o MacGyver. O resto, meus amigos, é política de sofá.
É por isso mais ou menos óbvio para todos, hoje, que o grupo nazi que entrou em combate com os separatistas em 2014, e que, segundo Rodrigo Moita de Deus, “já venceu os russos duas vezes e por isso é que não gostam deles”, foi normalizado enquanto parte do exército ucraniano. E repito o que disse antes, para não deixar dúvidas: acho normal.
Só vê aqui algo estranho quem nunca precisou do maior rufia da turma para se safar. Os ucranianos têm nazis nas suas fileiras. Os russos também. O eterno esforço de encontrar aqui meninos de coro, bombas pela paz ou violações razoáveis, é algo que me deixa doente. As regras de bom comportamento são para as salas de aula, ou um jantar em casa da Bobone; não para um teatro de guerra.
A minha dúvida começa, contudo, hoje, depois de ouvir as declarações dos civis, que foram libertados de Azovstal, e, principalmente, do pedido de ajuda desesperado de um comandante do batalhão Azov.
Desde já parece que a viagem de António Guterres, apesar do escárnio a que foi sujeito pelos especialistas nacionais em postura vertical nas cadeiras do Kremlin, teve algum efeito positivo e abriu um corredor para a saída de civis.
Relatos de alguns desses civis indicam que eram ameaçados dentro da fábrica por elementos do batalhão, e que não os deixavam sair. A ser verdade, indica duas coisas. Que, de facto, estavam a ser usados como escudos humanos, e que a narrativa de os invasores não permitirem a saída era falsa. Mas, enfim, o que sabemos nós sobre a verdade num cenário daqueles?
Porém, são as declarações do comandante do batalhão Azov, e o seu pedido de ajuda, que me deixa mais surpreso. Zelensky anda a dizer há semanas que Mariupol resistirá até ao último homem, sabendo de antemão que esse homem será do glorificado batalhão Azov.
Contudo, os homens dentro da fábrica, e agora sem civis para trocar, parecem relatar um abandono das autoridades ucranianas. Apelam aos líderes europeus, ao governo ucraniano, às Nações Unidas. Os homens que estavam dispostos a morrer pela pátria, segundo Zelensky, afinal parecem que têm onde estar para a semana, e não estão muito interessados em contribuir com os respectivos corpos para a fertilização do solo agrícola.
Não os posso condenar. Não sei bem como pensa um nazi, mas quando toca a morrer somos todos muito pouco católicos: ninguém tem pressa para confirmar se o Paraíso tem aquelas cores que nos vendem na Sentinela.
Alguns analistas defendem que o presidente ucraniano pretende livrar-se de um problema (nazis), transformando-os em mártires de guerra, num combate que sabe estar perdido (Mariupol).
Esta explicação é ligeiramente hedionda. Faz-me lembrar um pouco aquela de que os suecos queriam matar velhinhos com a covid-19 para pouparem nas pensões da Segurança Social. Mas lá que eu gostava de saber quais os planos da Ucrânia para os encurralados de Azovstal, isso gostava. Aliás, é nestas alturas que todos precisamos de um amigo como Rogeiro que fala por interposta pessoa com Zelensky.
Com o cerco russo e abandonados pelo seu governo, o batalhão Azov parece ter os dias contados. Zelensky fez um vídeo poderoso – muito bem feito, diga-se – para relembrar o dia da vitória aliada. Falou longos minutos sobre a destruição nas cidades ucranianas, o heroísmo do povo ucraniano, a contribuição da Ucrânia na II Guerra Mundial e as vidas que deu para combater as forças de Hitler.
Disse, entre outras coisas, que o never again tinha que perder o never, já que, hoje, a Ucrânia era novamente vítima do nazismo e das forças de ocupação. Hoje, como antes, disse-nos Zelensky, a Ucrânia voltará a derrotar o totalitarismo.
Ficou foi por esclarecer se a empreitada começaria por Azovstal.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.