Categoria: Opinião

  • Do jogo sujo

    Do jogo sujo


    A CNN Portugal fez uma sórdida campanha suja contra o PÁGINA UM em Dezembro passado acusando-me, sem me identificar pelo nome (mas facilmente se chegaria a mim), de eu ter divulgado numa “página negacionista”, dados clínicos de crianças, dados esses que estavam anonimizados.

    Divulgar dados clínicos, usando até uma médica, para criar pânico já é correcto para a CNN Portugal.

    O processo está em queixa na ERC, mas enfim a CNN Portugal nem teve coragem de mandar fazer esse sujo jogo por um jornalista: foi um jornalista-estagiário a tratar da coisa.

    Agora, já não faz mal para a CNN – nem choca o especialista em Urologia Miguel Guimarães, circunstancial presidente de uma associação profissional de direito público conhecida por Ordem dos Médicos – que se divulgue com detalhe, e que haja até uma médica a comentar, o caso do tratamento por ECMO de um bebé de 13 meses com miocardite eventualmente associada à covid-19.

    Independentemente de ser a covid-19 a causa, há todo um jogo sujo nisto, até porque a mensagem final é sempre a mesma: vacinem crianças, mesmo se o risco de morte ou de situação grave é remota.

    Recordo que nascem por ano cerca de 80 mil crianças, e que as pneumonias “normais” ou as meningites, por exemplo, embora muito raras, são até mais graves e perigosas do que a covid-19.

    Aliás, estamos sempre com o mesmo problema da informação enviesada: fala-se de casos da covid-19 sem nunca se apresentar dados comparativos.

    Quantos casos de tratamento por ECMO se fizeram em crianças com miocardite por outros vírus (porque pode suceder) antes da pandemia? É pergunta que o PÁGINA UM irá fazer ao Hospital de São João, já que a CNN Portugal não fez.

  • Do adeus ao GoFundMe por se vergar a um Governo… e um olá ao Mightycause, a nova plataforma de crowdfunding do PÁGINA UM

    Do adeus ao GoFundMe por se vergar a um Governo… e um olá ao Mightycause, a nova plataforma de crowdfunding do PÁGINA UM


    Quando se defende que o jornalismo deve ser isento – e, talvez, me tenham já lido a usar este adjectivo nesse contexto –, deveria esclarecer que a isenção significa uma demonstração de imparcialidade, ser justo, ser neutro. Ora, a neutralidade, a justiça e a imparcialidade são excelentes características de um jornalismo credível, mas não representa indiferença aos factos, à sua eventual manipulação, à verdade e à mentira.

    O jornalista deve partir, para qualquer notícia, imbuído de um espírito de isenção – ou seja, sem ideias pré-concebidas, sem intenção de criar enviesamentos, sem predisposição de orientar os leitores para uma linha previamente definida.

    A partir do conhecimento que for adquirindo, daquilo que for observando e analisando, então deverá partir para a fase seguinte: tomar uma posição isenta, mas já não na exclusiva acepção de neutro, sem tomar uma posição. Pelo contrário.

    PÁGINA UM deixa, a partir de hoje, de querer recerber donativos a partir da plataforma de crowdfunding do GoFundMe

    Deve ser a isenção interpretada como sendo independência de carácter. Ou seja, depois da sua análise, um jornalista se quiser então ser justo, não pode ser completamente neutro; não pode ser imparcial, tem de tomar partido.

    Um jornalista é, na verdade, um árbitro dos acontecimentos. Espera-se que um árbitro seja neutro, mas também justo e imparcial; porém, se ele, analisando um lance, vir que um jogador da casa dá uma canelada no adversário quando este se dirigia isolado em boa posição para o golo, e não marcar falta nem expulsar o caceteiro, estará então a cometer uma injustiça, uma batotice. Mesmo se receber os elogios do clube da casa pela sua “prestação”.

    Ora, foi como antigo jornalista – assistente pasmado dos maiores atropelos à isenção, no sentido de independência de carácter, durante a pandemia – que decidi, depois de uma profunda análise, recuperar a carteira profissional e enveredar pelo projecto do PÁGINA UM.

    Também foi por observar a realidade do Freedom Convoy – analisando dezenas de notícias, vendo vídeos, alguns ao vivo, e pesquisando pelas redes sociais –, que me foi possível fazer uma cobertura isenta sobre este movimento popular,praticamente ignorado pela nossa imprensa mainstream, a mesma que ignora qualquer outra manifestação em se conteste a gestão da pandemia.

    E, nesta cobertura, não pode ninguém acusar-me de falta de isenção, porquanto coloquei sempre a opinião de todas as partes, mesmo quando me pareciam absurdas. A acusação feita pelo primeiro-ministro canadiano contra os manifestantes e os organizadores do GoFundMe, à luz de todos os acontecimentos que se podem visualizar – e agora é possível ver tudo – , são completamente inverosímeis e absurdas.

    Trudeau até de transfobia os acusou; até de “roubarem comida a sem-abrigos”. Entrámos no mundo do surreal. O governo canadiano, com tantos meios, nunca conseguiu mais do que simples palavras acusatórias. Nem uma foto, nem um vídeo, nada. Apenas palavras acusatórias e vexatórias.

    Não apenas palavras. Também actos. Assustados ou não com a mobilização por força de apoios financeiros de monta através da plataforma do GoFundMed, as autoridades políticas canadianas trataram de diabolizar ainda mais os manifestantes, acusando-os por receberem financiamentos de obscuros interesses estrangeiros e de serem promotores de extremismo. O objectivo era simples: fechar a “torneira” da angariação de fundos através do GoFundMe. Impedir uma manifestação de ter poder, de não vacilar.

    Trudeau chamou aos manifestantes do Freedom Convoy de “pequena minoria marginal” (smal fringe minority”

    Justin Trudeau ganhou este round. Durante esta madrugada, o GoFundMe veio suspender em definitivo a campanha do Freedom Convoy, e já não distribuirá nove dos 10 milhões de dólares canadianos (6,3 dos 7,0 milhões de euros) ao organizadores do GoFundMe, alegando que as “autoridades” lhes demonstraram que a campanha visava a “promoção da violência e do assédio”, o que viola os termos do serviço.

    O GoFundMe concedeu assim um presente ao Governo canadiano – não apenas secando a fonte de financiamento do Freedom Convoy como dando-lhes um estatuto de promotores de violência e assédio, que o Governo de Trudeau não desaproveitará ao longo dos próximos dias – e, em simultâneo, deu uma terrível facada na democracia, na liberdade de manifestação e de intervenção, que são sagradas numa democracia, independentemente de serem desejadas ou convenientes para as autoridades.

    O GoFundMe cedeu à pressão de um Governo,

    O GoFundMe cedeu à manipulação de informação.

    E isso é intolerável.

    Como se sabe, o PÁGINA UM recorreu a várias formas de financiamento, para garantir o seu arranque inicial, o seu crescimento e a sua sustentabilidade financeira. O PÁGINA UM sabia que, pela sua postura e filosofia, traria inimizades e críticas, porventura muitas dos círculos do poder.

    Mas nunca o PÁGINA UM colocou a hipótese de que, um dia, pudessem seguir queixas para este tipo de plataformas, como a do GoFundMe, e ver-se envolvido numa eventual acusação de promoção de violência e de assédio, de estar a receber dinheiro de fontes anónimas e eventualmente associadas a extremismos. Note-se que os apoios são apenas permitidos por cartão de crédito, e a possibilidade de anonimato do doador é apenas para terceiros; não para os angariadores.

    Mightycause,a nova plataforma para apoiar pontuaknente o PÁGINA UM

    Por esse motivo, pelo comportamento do GoFundMe, o PÁGINA UM não poderia continuar a manter nesta plataforma uma campanha de angariação de fundos.

    Não terá essa decisão qualquer efeito para o GoFundMe. É uma decisão simbólica, de protesto, porque a democracia não é assim que se constrói. O montante angariado pelo PÁGINA UM na plataforma do GoFundMe foi apenas de 13.884 euros, através de 356 donativos. O GoFundMe, e entidades associadas, ficaram com cerca de 10% em comissões e encargos de transacção.

    Assim, a partir de hoje, se desejar financiar pontualmente o PÁGINA UM, então pedia que optassem pela campanha agora em curso no Mightycause, AQUI.

    Obrigado, Espero que compreendam esta decisão.

  • A autópsia do pequeno Rodrigo: a verdade da mentira ou a confiança nula

    A autópsia do pequeno Rodrigo: a verdade da mentira ou a confiança nula


    As Autoridades de Saúde – englobemos aqui a Direcção-Geral da Saúde (DGS), administrações hospitalares e institutos públicos deste sector, entre os quais o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA), o Infarmed e o Instituto de Medicina Legal – que nos garantem agora que a trágica morte do pequeno Rodrigo nada teve a ver com a vacina contra a covid-19, são as mesmas que nos asseguraram que uma bebé prematura, nascida no início do ano passado no Hospital Garcia de Orta, com uma hemorragia intraventricular de grau 4, afinal teve como causa de óbito as infecções por SARS-CoV-2, à conta de um simples teste positivo.

    Que se saiba, as tais Autoridades de Saúde não se mostraram então tão zelosas em autópsias detalhadas para confirmar se a morte foi por covid-19 ou, enfim, por uma hemorragia intraventricular de grau 4. Não sou médico, mas nem é preciso ser especialista para desconfiar. Mas, neste caso, não interessou averiguar. Nem sobre esta morte, nem sobre a de um outro bebé com menos de 1 anos, nem de outra de uma criança de 4 anos, também com graves comorbilidades, nem a de uma jovem de 19 anos que sofria de síndrome de Dravet. Nesta última situação, a DGS até veio a correr informar que a jovem não estava vacinada. Agora, com o pequeno Rodrigo saiu-se com escrúpulos, e nada avançou, a não ser negar que não foi a vacina. Há escrúpulos convenientes.

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    Enfim, estas são as Autoridades de Saúde que temos e tivemos durante a pandemia.

    São as mesmas Autoridades de Saúde que colocaram pelo menos 40 doentes terminais de SIDA nas estatísticas das vítimas da pandemia, somente porque testaram positivo quando hospitalizados por diversas maleitas da doença causada pelo VIH, independentemente da gravidade da covid-19 que possam ter desenvolvido antes do desfecho fatal.

    São as mesmas Autoridades de Saúde que não tiveram pejo de incluir uma mulher de 41 anos com queimaduras de terceiro grau em toda a cabeça, e acharam bem que lhe tenham metido uma zaragatoa pelas narinas para lhe retirar um exsudado, de modo a colocá-la como vítima da covid-19.

    São as mesmíssimas Autoridades de Saúde que consideraram como morte-covid um suicídio pela janela do Hospital de Vila Nova de Gaia, ou quedas da cama que causaram fracturas cranianas ou do pescoço, ou um sem-número de ataques cardíacos fulminantes, ou AVC, ou cancros terminais, ou falências renais, ou… a lista é infindável.

    O PÁGINA UM tem revelado tudo isto, e muitos mais, provocando apenas um ensurdecedor silêncio de (quase) todos, incluindo de toda a imprensa mainstream.

    São as mesmas Autoridades de Saúde que meteram como doentes-covid, algumas em cuidados intensivos, crianças inicialmente internadas por outras causas – até com cancros, benza-nos Deus! –, e que, em muitos casos, até só deram positivo ao SARS-CoV-2 porque foram contaminadas no próprio hospital.

    São as mesmas Autoridades de Saúde que, elencando-se aqui somente duas das maiores bizarrices, incluíram como doentes-covid um homem de 59 anos que foi mordido por um cão no dia 17 de Abril do ano passado e ficou internado um dia no Centro Hospitalar do Baixo Vouga, ou uma rapariga de 16 anos que se deslocou ao Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa após uma queda de cavalo no dia 12 de Dezembro de 2020.

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    E isto para não ser demasiado exaustivo.

    São as mesmíssimas Autoridades de Saúde que demoraram mais de seis meses a satisfazerem um pedido de acesso a documentos clínicos a um internado-covid – que também apanhou uma infeccção nosocomial e teve “direito” a andar com um fio-guia a passear no coração durante cinco dias –, e isto depois de um parecer da Comissão de Acesso a Documentos Administrativos (CADA), e mais um artigo de opinião sobre obscurantismo de uma administração hospitalar; e que, mesmo assim, enviam mais de 300 páginas impressas, mas sem, hélas, identificar sequer o médico que cometeu um grosseiro acto de negligência, e sem sequer informar quais as consequências e responsabilidades internas de tal procedimento. [Nota: trata-se de uma experiência pessoal, mas representativa do obscurantismo intencional das administrações politizadas dos hospitais]

    São as mesmas Autoridades de Saúde que recusam liminarmente todo e qualquer acesso a base de dados e a responder a toda e qualquer pedido de esclarecimento sobre a pandemia. [Nota: no próximo dia 17, a CADA decidirá, em princípio, através de parecer, quatro queixas do PÁGINA UM contra a DGS]

    São as mesmas Autoridades de Saúde que apagaram informação, antes disponibilizada, como os dados diários dos óbitos por acidentes rodoviários e de trabalho e por suicídio constantes do SICO; com os dados da Plataforma da Mortalidade; e com os relatórios da Task Force de Ciências Comportamentais. [Nota: Depois do editorial do PÁGINA UM de 14 de Janeiro passado, entretanto a DGS fez reaparecer os ditos relatórios no seu site]

    São as mesmas Autoridades de Saúde que defendem, como no caso concreto do presidente do Infarmed no contexto de um pedido do PÁGINA UM para acesso ao Portal de Notificações de Reações Adversas (Portal RAM), que não se deve disponibilizar dados “sensíveis” – presume-se que sensíveis politicamente – porque se corre “o risco de poderem ser analisados por não-especialistas”, e por assim terem “um elevado potencial para criar um alarme totalmente desnecessário e infundado”. [Nota: além de formação académica vasta, e larga experiência jornalística com elevado rigor e escrúpulo deontológico, sou até sócio da Associação Portuguesa de Epidemiologia, não me considerando propriamente leigo nestas matérias]

    São estas, minhas senhoras e meus senhores, meus leitores e meus concidadãos, as Autoridades de Saúde que temos, e que nos pedem para que, sim, acreditemos que o pequeno Rodrigo jamais morreu por causa da vacina contra a covid-19.

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    São estas as mesmíssimas Autoridades de Saúde que, sim, pressionam até à glândula pineal os pais e mães de centenas de milhares de outras crianças para correrem a dar um fármaco – ainda sem resultados de ensaios clínicos para se apurar impactes de longo prazo – contra uma doença que, naquelas idades, é de menor gravidade do que uma gripe ou pneumonia.

    Se me perguntam se o pequeno Rodrigo morreu da vacina, eu direi: não sei.

    Sei apenas que nunca, jamais, as nossas Autoridades de Saúde o admitiriam.

    E porque digo isto?

    Por tudo aquilo que atrás escrevi.

    Neste momento, a minha confiança nas Autoridades de Saúde é nula. Ou melhor, abaixo de zero.

    Todo o histórico de manipulação, sonegação e obscurantismo levam-me a não saber onde está a verdade ou a mentira. E a confiança nas instituições é um pilar fundamental nas democracias. E isso já não existe em relação às nossas Autoridades de Saúde.

    Neste momento, só vejo uma solução para recuperar esse elo essencial: o Ministério Público (re)ganhar liberdade, e abrir de imediato um processo de averiguações sobre a (mais que provável) manipulação da informação durante a pandemia. E hoje já é tarde.

  • Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas recua e “arquiva” queixas contra o PÁGINA UM

    Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas recua e “arquiva” queixas contra o PÁGINA UM


    No dia 19 de Janeiro, recebi do Conselho Deontológico (CD) do Sindicato dos Jornalista, uma missiva, tendo como assunto “Pedido de averiguação de potencial violação do código deontológico”, e onde, sem identificar o potencial queixoso nem sequer o eventual artigo (noticioso ou de opinião) que estaria em causa, me “convidava” a responder duas questões:

    “Considerando que nas suas publicações invoca o seu estatuto de jornalista, procura separar as suas publicações entre notícia e opinião?

    A eventual mistura entre opinião vs. factos poderá gerar no leitor alguma confusão, afastando-se da veracidade dos factos. Como procura atenuar ou eliminar essa eventual confusão, tendo em consideração o artigo 2 do Código Deontológico (“O jornalista deve combater a censura e o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas e o plágio como graves faltas profissionais”)?”

    Insurgi-me contra este tipo de procedimento, e manifestei, de forma veemente, a minha posição de repúdio, através de carta, junto da presidente do CD, considerando intolerável este tipo de condicionamento, ademais sendo o processo de averiguação dirigido por um membro que é simultaneamente editor da CNN Portugal.

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    E acrescentava eu que, face ao modus operandi do processo, “nas actuais circunstâncias, qualquer parecer que coloque em causa o meu bom nome, como jornalista, e a credibilidade do PÁGINA UM, como órgão de comunicação social, [será] intentado um processo judicial por difamação contra cada” membro do dito CD.

    E acrescentava eu também uma lista exaustiva de nove artigos exclusivos do PÁGINA UM, envolvendo jornalistas de vários órgãos de comunicação social, desafiando o CD a investigar violações à ética jornalística.

    Hoje, depois de nova insistência para saber alguma reacção à minha carta, recebi a informação que, “após a reunião mensal regular do CD, que se realizou nesta semana, foi decidido não dar seguimento às queixas recebidas”, acrescentando-se que se havia elaborado um esclarecimento, sob o título “Queixas sobre opiniões dos jornalistas”, que também me foi enviado.

    Por ser matéria relevante, o PÁGINA UM decide publicar na íntegra este esclarecimento do CD, podendo também ser descarregado AQUI.

    O PÁGINA UM, e eu em particular, defende o escrutínio da actividade jornalística, e sobretudo a aplicação de rigorosos critérios deontológicos e éticos aos jornalistas. Isso inclui, obviamente, todos os jornalistas e colaboradores, presentes e futuros, do PÁGINA UM.

    No entanto, essa averiguação deve sempre ser feita de forma transparente, isenta e leal, o que não foi o caso do processo aberto inicialmente pelo CD.

    Em todo o caso, uma palavra de esperança: pessoalmente, subscrevo, na íntegra, o agora esclarecimento do CD. Apenas julgo que deveria ter sido feito antes de me ser aberto um processo. Que seja de averiguações, ou com outra denominação, foi um processo. E, aliás, pelo que vejo, não havia apenas uma queixa. Seriam “queixas”, assim no plural.

    Significam, pelo menos, como barómetro, que o PÁGINA UM está a fazer o seu (bom) caminho.

    Pedro Almeida Vieira (CP 1786)

    Director do PÁGINA UM


    Queixas sobre opiniões dos jornalistas

    Esclarecimento do Conselho Deontológico

    O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas tem recebido, ao longo dos últimos anos, inúmeras queixas de cidadãos a propósito de textos de opinião de jornalistas, publicados em espaços de opinião, quer em órgãos de comunicação social, quer nas redes sociais dos próprios jornalistas.

    De uma forma geral, as queixas incidem sobre:” Considerando que nas suas publicações invoca o seu estatuto de jornalista, procura separar as suas publicações entre notícia e opinião?

    A eventual mistura entre opinião vs. factos poderá gerar no leitor alguma confusão, afastando-se da veracidade dos factos. Como procura atenuar ou eliminar essa eventual confusão, tendo em consideração o artigo 2 do Código Deontológico (“O jornalista deve combater a censura e o sensacionalismo e considerar a acusação sem provas e o plágio como graves faltas profissionais”)?

    1) a natureza das opiniões publicadas e, implicitamente,

    2) sobre se a expressão pública de opiniões dos jornalistas, mesmo que em espaços privados ou especialmente destinados para o efeito, não poderá comprometer o seu estatuto profissional de independência.

    Em face disto, entende o Conselho Deontológico que deve reafirmar publicamente aquele que tem sido o seu posicionamento de não aceitar queixas nem emitir pareceres sobre opiniões dos jornalistas, esclarecendo o seguinte:

    1) O ponto 1 do artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa refere que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações”. Por sua vez, a alínea a) do ponto 2 do artigo 38.º, sobre a Liberdade de Imprensa, refere que ela implica “a liberdade de expressão e criação dos jornalistas e colaboradores (…)”.

    2) O princípio da Liberdade de Expressão, sem a qual não existe Liberdade de Imprensa, é reafirmado no Código Deontológico do Jornalista, onde, nos pontos 2 e 3, se diz, respetivamente, que o jornalista “deve combater a censura” e “lutar contra as tentativas de limitar a liberdade de expressão”. No ponto 1 do mesmo código, a Liberdade de Expressão do jornalista está condicionada ao estrito exercício profissional de informar, devendo, nestas circunstâncias, “a distinção entre notícia e opinião (…) ficar bem clara aos olhos do público”.

    Nestes termos, o entendimento do Conselho Deontológico tem sido o seguinte:

    a) A Liberdade de Expressão é um direito primordial dos cidadãos e das cidadãs, que não pode ser limitado pelo facto de exercerem a profissão de jornalista.

    b) Enquanto profissionais obrigados a seguir o Código Deontológico, os jornalistas estão obrigados a separar os factos, objeto das informações que divulgam, das suas opiniões pessoais acerca desses mesmos factos e informações, seguindo o princípio comummente aceite na profissão de que os factos são sagrados e as opiniões são livres.

    c) Os jornalistas não podem ser objeto de perseguição pelas ideias ou opiniões expressas em espaços especialmente dedicados para o efeito nos órgãos de comunicação social.

    d) Fora dos espaços regulados pelo jornalismo, o jornalista é também um cidadão no uso pleno dos seus direitos cívicos, pelo que não pode ser limitado na sua Liberdade de Expressão.

    2) Em face do exposto, é legítimo que se questione se as opiniões emitidas por jornalistas em espaços dos órgãos de comunicação social dedicados para o efeito ou enquanto cidadãos, na sua vida privada, serão suscetíveis de comprometer o seu estatuto de independência.

    A este propósito, o Código Deontológico refere apenas, no ponto 11, que o jornalista deve recusar funções, tarefas e benefícios suscetíveis de comprometer o seu estatuto de independência e a sua integridade profissional, não abrangendo, compreensivelmente, as suas opiniões, uma vez que isso poria em causa a sua Liberdade de Expressão.

    Por tudo isto, considera o Conselho Deontológico que não tem legitimidade para aceitar queixas ou emitir pareceres que ponham em causa direitos cívicos, nomeadamente a Liberdade de Expressão, de quem escolheu como profissão o jornalismo.

    Este princípio não deslegitima, porém, que o público, constituído por cidadãos detentores também eles do direito à Liberdade de Expressão, vigie, questione e critique os casos que considere porem em causa o estatuto de independência dos jornalistas, ou que, em situações consideradas de abuso dessa liberdade, decida recorrer para os tribunais.

  • Sondagens: incompetência ou amor laboral?

    Sondagens: incompetência ou amor laboral?


    Pela primeira vez em Portugal, em período de eleições, pudemos acompanhar diariamente as intenções de voto, através da tracking poll da CNN. Um modelo de “política-espectáculo” importado da casa-mãe que garantiu audiências, análises diárias e que… falhou estrondosamente.

    Como escrevi há uns dias neste jornal, a variação da amostra diária (apenas 150 pessoas) dava taxas de erro superiores a 10%, ou seja, poder-se-ia concluir tudo e o seu contrário em cada uma das previsões.

    Contudo, a tendência foi uma e uma só: a de criar um cenário de subida da direita sempre suportada pelos comentadores em estúdio. Tentei reunir os analistas de esquerda, e não me consegui lembrar de outros que não Francisco Louçã, Pedro Adão e Silva, Ricardo Araújo Pereira e Daniel Oliveira, contra um exército infindável, nos três canais, de simpatizantes do CDS, PSD, IL e Chega (embora estes com algum pudor na assunção das suas cores). Esta estratégia teve um efeito óbvio no decorrer da campanha, uma vez que as equipas de comunicação e os líderes partidários adaptavam os discursos ao que imaginavam ser a intenção de voto.

    Catarina Martins, por exemplo, a dada altura deixou de apontar ao PS para sugerir que se sentassem à mesa. Rui Rio que tinha iniciado a corrida sem grandes esperanças, já sugeria a Costa que soubesse perder com dignidade. O próprio primeiro-ministro, na última semana de Janeiro, deixou de falar em maioria absoluta e abriu a porta ao diálogo com todos. Era essa a leitura das intenções de voto, uma maioria absoluta impossível.

    person standing near table

    Quem assistisse aos diários de campanha nas televisões, apoiados nesta ilusão das sondagens e nas análises dos comentadores, imaginava que Rui Rio teria recuperado o terreno perdido e que a vitória estava garantida.

    Sempre me fez alguma confusão toda aquela “onda laranja”, foi assim que a baptizaram, em torno de um homem que tinha mostrado em cada debate que não estava preparado para ser primeiro-ministro, cuja tentativa de se colar ao centro era mais uma estratégia de agradar a todos do que ideologia. E, pior do que tudo, que em momento algum se libertara das amarras do Chega. E nem a matemática que apoiava o foguetório parecia fazer sentido, como se comprovou.

    Esta ilusão ajudou, por exemplo, a que se pensasse no voto útil à esquerda, para evitar um governo do PSD que só o seria com a ajuda dos deputados do Chega. O PS beneficiou, PCP e BE foram prejudicados. Não são poucos os relatos de eleitores de esquerda que, ao saberem da maioria absoluta, se arrependeram de não terem votado nos partidos onde normalmente votariam.

    Mas o que acho mesmo mais deplorável no fim de tudo isto é a tentativa de uma saída à portuguesa. Ninguém diz um simples “desculpem, enganámo-nos”. Discutiram-se durante dias a gravata do Costa, o coelho do Ventura ou o cão do Cotrim, mas não há debate sério sobre uma calamidade probabilística que serviu apenas para entretenimento e teve de informação séria um valor a tender para zero. Não há responsáveis, não há culpados.

    Faz-me lembrar aquela famosa compra de submarinos entre Portugal e Alemanha onde, do lado alemão se descobriu o corrompido, mas, alegadamente, neste belo rectângulo à beira-mar plantado, ninguém tinha sido corruptor. Ah, valente Pátria onde a responsabilidade é sempre aquela mãe de má-fama que acaba na solidão.

    Julgo que foi Luís Aguiar-Conraria que melhor resumiu o que verdadeiramente se fez com a tracking poll. Cito de cabeça, mas julgo que foi algo parecido com o seguinte: “criaram-se notícias a partir de uma amostra pequeníssima e depois, comentaram a sua própria criação”. Acrescento eu, com aqueles painéis escolhidos a dedo e sempre inclinados para o lado que segura a faca. Isto não é informação e, julgo eu, também não deve ser jornalismo.

    Resta, pois, descobrir se se tratará de mais um caso de simples incompetência, tão comum entre nós ou, por outro lado, de extrema dedicação ao trabalho.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Décimo sétimo episódio da Recensão Eleitoral (02/02/2022) – Sondagens: incompetência ou amor laboral?


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Adeus, minoria maioritária. Bem-vinda, maioria minoritária

    Adeus, minoria maioritária. Bem-vinda, maioria minoritária


    Não sou particularmente adepto de maiorias, que sempre são convenientes apenas para quem está no poder. Uma democracia deve pugnar sempre por defender as minorias, daí que uma maioria no poder nunca traz bons resultados, por mais que muitos defendam pretensos benefícios de uma estabilidade. Também nunca apreciei estabilidades, mas isso são contas de outro rosário.

    Tivemos três maiorias no Parlamento durante esta nossa democracia, se excluirmos as duas primeiras – por resultarem de uma coligação (as eleições ganhas por Sá Carneiro para a Aliança Democrática, com PSD, CDS e PPM) –, e nenhuma foi particularmente favorável para Portugal. Cavaco Silva, com as maiorias em 1987 e 1991, desbaratou os fundos comunitários – como D. João V esbanjara o ouro e diamantes do Brasil no século XVIII – em obras sem glória, em programas assentes em sinecuras e subsidiodependências e na formação da cultura da negociata. Depois, em 2005, José Sócrates traçou-nos a sorte até à intervenção da troika.

    Porém, por paradoxal que pareça, saúdo a maioria parlamentar agora obtida pelo Partido Socialista (PS). Os próximos quatros anos vão fazer muito bem à democracia, apesar da minha falta de confiança em mais um Governo de António Costa. Sobretudo porque, paradoxalmente, os seus últimos seis anos como primeiro-ministro desenrolaram-se em falsa minoria. O PS viveu com a desresponsabilização de compartilhar o poder, legislativo e até executivo, por ser Governo minoritário, mas na prática beneficiou de um poder como se fosse Governo maioritário. Podia assim receber os louros pelas coisas boas; descartar responsabilidades pelas coisas más.

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    Em 2015, na ânsia de derrotarem Pedro Passos Coelho na “secretaria”, o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) aceitaram um estranho acordo – que viria a ser baptizado de “geringonça” – para viabilizar um Governo do segundo mais votado partido (PS), mas sem quererem entrar nos corredores ministeriais.

    Durante quatro anos, Costa conseguiu assim o melhor dos dois mundos: governar em minoria, gerindo acordos na Assembleia da República, e eliminar à nascença, em reuniões apenas, qualquer contestação social, porque BE e PCP se auto-manietaram.

    Com apenas 86 deputados em 2015, na verdade António Costa geriu o país durante quatro anos como se fosse o líder de 122 deputados, tendo apenas que “amestrar” 19 de uma ala bloquista e mais 17 de uma ala comunista.

    O desfecho deste casamento de interesse foi glorioso para o PS e trágico para o BE e PCP, lembrando a cópula dos louva-a-deus, em que, no fim, a fêmea deglute literalmente o macho. Com a diferença de o repasto ter sido afinal aos poucos, dentada aqui, dentada ali, até ao golpe final consumado no passado fim-de-semana.

    Com efeito, quatro anos depois desse matrimónio, o PS evidenciava já nas eleições de 2019 ter registado melhores benefícios: o reforço nos mandatos eleitorais para 108 – em especial pela atracção do eleitorado do centro-direita e também de uma parte dos comunistas, que perderam então cinco deputados. PC perdeu com o casamento; o BE nada beneficiou. António Costa mostrou então que o seu casamento com a esquerda fora completamente de interesse: a partir de 2019 não quis saber de qualquer “geringonça 2.0”.

    Liberto de acordos escritos, sendo-lhe preciso apenas “coligações” pontuais de compromisso, bastando para isso arregimentar um de três partidos (BE, PCP ou PSD), o PS tinha, mesmo assim, a vida mais facilitada.

    E depois veio a pandemia. E até aí o PS beneficiou, passando sempre pelos pingos da chuva. Criando-se uma unanimidade nunca vista em outro assunto durante tanto tempo – as leituras dos plenários na Assembleia da República constituem um exercício de pasmo por esse movimento de concordância quase plena –, António Costa não teve qualquer oposição visível nem contestação relevante durante quase dois anos. De mais nada se falava, e se algo mal corria, a culpa era da pandemia. O microscópico vírus teve sempre as costas largas.

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    Não apenas pelas restrições impostas para conter a pandemia, com o consequente acomodamento da sociedade às limitações de direitos fundamentais – sempre apoiadas por uma diligente imprensa –, como também pelo receio de qualquer partido em simular sequer críticas em matérias sensíveis da pandemia (e dos atropelos às liberdades, direitos e garantias), e que dominaram o país desde Março de 2020.

    Portugal esteve anestesiado durante dois anos. E o PS sempre a ganhar em minoria. Mas não era o suficiente no Largo do Rato.

    Bastou, por fim, um incidente forçado para, em fim de festa pandémica – com a generalidade da população e da imprensa em loas ao Governo socialista, esquecendo-se o caos no SNS, o despesismo incontrolado e a crise económica e social –, para António Costa comer, finalmente, toda a oposição de cebolada.

    O Orçamento de Estado (OE) para 2022 foi o álibi perfeito. Foi chumbado porque o PS quis, e queria mesmo eleições; era o momento ideal para aquilo que está na massa do sangue de muitos políticos: vencer com maioria absoluta, porque negociar custa sempre.

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    No diferendo da OE, a oposição, e particularmente o BE e o PCP, estaria sempre na célebre condição de ser presa por ter e não ter cão. Chumbando-o, como fizeram, levariam a uma vitimização do PS, como benefícios para este partido, como se viu. Não o chumbando, os partidos da oposição, sobretudo da esquerda, tinham tudo também a perder: confessariam que Costa governava em maioria de facto, embora não in jure. E assim seria até que outra qualquer coisa fizesse cair o Governo, e o PS se fizesse de vítima, para em novas eleições almejar a maioria absoluta.

    Como alcançou.

    Os partidos à esquerda do PS nunca quiseram perceber que jamais sairiam a ganhar do amplexo da “geringonça”, nem no cenário político após as eleições de 2019, nem na forma como intervieram durante a pandemia.

    Nos últimos dois anos, PCP e BE mostraram-se inexistentes, e gastaram mais tempo a perseguir a extrema-direita do que a lutar contra as carências e injustiças que engrossaram, por exemplo, os votos do Chega.

    Esqueceram que o partido de André Ventura não tem eleitores saudosistas de Salazar, mas sim eleitores que, pouco se importando com a amálgama ideológica (se é que existe no Chega), se sentem filhos de um deus (democracia) menor. Enquanto a esquerda não perceber que o Chega é um barómetro da democracia – quanto mais justa e equitativa ela for, menor será o peso eleitoral de André Ventura –, as coisas só podem correr mal para ela. Para ela, esquerda; para ela, democracia.

    Mas, enfim, temos, portanto, uma maioria absoluta. E ainda bem.

    Porque, agora, finalmente, mesmo se aparentemente com mais de metade do hemiciclo, António Costa ouvirá mais críticas no Parlamento, de mais partidos. Terá capacidade plena de tudo aprovar na Assembleia da República e de execução de quaisquer medidas em Conselho de Ministros e nos Ministérios, mas, independentemente da bondade da sua governação (hipótese académica), arcará certamente com mais críticas num mês de maioria absoluta do que num ano de minoria apoiada.

    person watching through hole

    O BE e o PCP lutarão nos próximos anos por mais do que pelas suas causas; lutarão pela sua sobrevivência, porque se o PS for bem-sucedido nestes quatro anos será os seus enterros. IL e Chega não perderão também oportunidade de se ouvirem mais do que antes, pelo peso dos respectivos grupos parlamentares, e o PSD também não poderá ficar atrás.

    Nas ruas ouvir-se-ão mais vozes, até porque uma larga franja dos sindicatos não é “afiliada” aos socialistas. Haverá mais pressão. Nas ruas. Mais greves. Haverá maior mobilização social, assim se espera, até porque a saúde económica do país, além da saúde pública, não se compadecerá apenas com bazucas – que aliás serão mais escrutinadas do que todas as negociatas de ajustes directos nestes anos da pandemia.

    Enfim, haverá mais democracia. Ou, pelo menos, maior participação democrática.

    Exactamente porque sempre acreditei que a democracia se exerce melhor, e de forma mais justa e equitativa, após as eleições – que são um mero, embora importante, acto de eleitores elegerem eleitos, mas não uma “carta branca” para governar. E por isso julgo ser bem-vinda esta maioria.

    Será uma maioria absoluta de jure, mas não tão forte de facto, como foram os Governos minoritários de António Costa nos últimos seis anos.

    Isto vai fazer bem à esquerda; vai fazer bem à direita. Vai fazer bem à democracia.

    Por isso mesmo, saúdo esta maioria do PS, exactamente porque, na verdade, lhe concedeu menor poder do que aquele que teve desde 2015.

  • Out of Africa

    Out of Africa


    O sinistro senhor Tedros, presidente da Organização Mundial de Saúde (OMS), secundado pelo depressivo senhor Guterres, secretário-geral das Nações Unidas (ONU), têm condenado pública e repetidamente a assimetria do fornecimento das vacinas contra a covid-19 pelo Mundo, preconizando mesmo que a dose de reforço atualmente em curso na Europa e América do Norte deveria ser preterida em favor da sua distribuição por África, onde no geral a vacinação não atingiu ainda nem 10% da população.

    Trata-se de uma argumentação aparentemente lógica e correta – aliás, apoiada e aplaudida pela generalidade dos especialistas instantâneos que a covid gerou como subproduto, e pelo público em geral para quem a informação que obtém é normalmente veiculada pelo jornalismo mainstream.

    Só que, em gestão de saúde – sobretudo se os recursos não são ilimitados e não sendo lineares os efeitos e mecanismos das doenças –, as prioridades não podem nem devem ser vistas de forma meramente emocional, guiada por um compreensível impulso afetivo, mas sim em função dos dados, da Epidemiologia, dos grupos e populações de risco, enfim, da Ciência.

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    Concretamente, em saúde, os objetivos são o salvar e preservar, com qualidade, o maior número de vidas, e não, como é usual na política, ganhar o maior número de votos e likes.

    Ora, até 22 de Janeiro de 2022, altura da minha recolha de dados, qual é o ponto da situação oficial em termos de pandemia em África?

    África tem uma população de cerca de 1,4 mil milhões de pessoas (18% da população mundial).

    Actualmente, número de mortes por covid-19 neste continente é de 235.000 (4% das mortes mundiais). Por outro lado, na privilegiada Europa contabilizam-se 750 milhões de habitantes (9,6% da população mundial, praticamente metade da de África) e 1,93 milhões de mortes (34% das mortes mundiais por covid-19, mais de sete vezes e meia face aos valores de África). Ou seja, na vacinada, confinada, testada, higienizada, controlada e rica Europa afinal morre-se, proporcionalmente, 15 vezes mais por covid-19 do que em África.

    Colocam-se assim, sucintamente, duas questões:

    1- Perante estes dados, seria correta a suspensão da 3ª dose na Europa para que essas vacinas fossem redirecionadas para África, como reiteram, entre outros, a OMS e ONU? Ainda para mais tendo em conta que a nova variante Ómicron se expande de forma muito mais rápida na zona europeia devido à incomparavelmente mais intensa circulação de pessoas?

    2- Como se explica que a África, com muitíssimo menos vacinados e quase inexistência de medidas anti-pandemia devidamente controladas (máscaras, distanciamento social, evitamento de aglomerações, desinfeção de mãos e das instalações, testes, rastreio de contactos, etc., etc..), tenha uma tão baixa taxa de mortalidade quando comparada com a Europa, América e Ásia?

    Não vou responder à primeira, porque não considero necessário, mas obviamente que defendo veementemente que o apoio sanitário a África seja encarado, e sobretudo praticado, de modo muito mais sério, eficaz e honesto.

    E não me refiro apenas ao mediático covid-19, mas sim, e principalmente, a permanentemente ignorados flagelos como a malária, sida, avitaminose A, entre outras, que matam muito mais, e nas quais as medidas para as combater – como, por exemplo, o golden rice para o défice de vitamina A – são até muitas vezes bloqueadas por governos e organizações ditas “humanitárias”, como a própria OMS, a Greenpeace e a WWF, entre outros.

    Evolução do número de casos diários de covid-19 desde o início da pandemia em África e na Europa. Fonte: Our World in Data.

    No que se refere à segunda questão, existem vários aspetos importantes a equacionar.

    Em primeiro lugar, embora em termos políticos a referência a África no âmbito da covid-19 seja frequente, é notório que quase nunca os media, instituições e demais agentes, normalmente bastante alarmistas, citam em concreto os números da pandemia naquele continente. E a começar pelas baixas taxas de mortalidade quando comparadas com o resto do mundo, em especial o socialmente mais privilegiado.

    Para quem tem acompanhado todo este processo pandémico, e conhece razoavelmente os meandros, interesses e filtros abafadores ou amplificadores que dominam as nossas sociedades, a explicação é evidente e a habitual: controlo da informação, evitando que o público, em geral, tenha acesso a verdades inconvenientes e/ou lhe sejam incutidos medos e conceitos convenientes.

    Nesta linha, refiro também um dos mais perversos efeitos da pandemia: todo e qualquer cidadão, mesmo que especialista em saúde, mesmo que não contestando a gravidade (mas apenas o impacto) da doença, e mesmo que defendendo a vacinação como proteção importante sobretudo para os mais vulneráveis (agora já é permitido dizer que não impede o contágio), corre hoje em dia o sério risco de ser classificado como “negacionista”, o novo epiteto para os infiéis dos tempos modernos.

    Evolução das mortes diárias por covid-19 desde o início da pandemia em África e na Europa. Fonte: Our World in Data.

    Para isso, basta ousar criticar, propor alternativas, sugerir soluções, denunciar falsidades estatísticas ou avançar com dados que fujam às diretivas oficiais e dogmas vigentes: é imediatamente incluído no mesmo rol dos terraplanistas, extremistas nazis e demais proscritos da sociedade.

    A segunda reflexão tem a ver com as explicações para esta situação aparentemente anacrónica do continente mais desprotegido e castigado em termos de acesso a cuidados de saúde. Não só no que se refere às vacinas, mas a tudo o resto, ser a África comparativamente menos fustigado pelos efeitos da covid-19, ao contrário, por exemplo, do que aí aconteceu e continua a acontecer com a SIDA.

    As principais razões avançadas têm a ver, em primeiro lugar, com a idade média das populações africanas, muito mais jovens do que as populações europeias, americanas e asiáticas. Na verdade, enquanto em África a idade média da população é de 18 anos, na Europa é de 42, na América do Norte 35, América do Sul 31, Ásia 31 e Oceânia 33. Como se sabe, é nas faixas etárias mais elevadas (depois dos 70 e, principalmente, 80 anos) que a doença grave e as mortes incidem na esmagadora maioria. E também é nessas idades que mais aparecem as comorbilidades que agravam a covid-19.

    Outro fator a ter em conta, embora algo mais teórico, mas lógico, prende-se com a situação comum em África de grande parte da população ter, entre outras, deficientes condições em termos sanitários. Isto, no entanto, propícia um constante estimular do seu sistema imunitário, que estará mais preparado para responder a contactos com diferentes agentes patogénicos.

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    Finalmente, há que reconhecer que, como aliás já mencionei, a circulação de pessoas entre grandes distâncias no continente africano é muito menos intensa do que nas outras zonas do Mundo, embora, por outro lado, a aglomeração de multidões locais, sobretudo nas megalópoles em constante crescimento, seja assustadoramente elevada e promíscua.

    De notar que, como é de esperar, mostra-se natural que exista uma subnotificação dos casos de infeção, dada a baixa testagem, mas já no que se refere a mortes, que é o que está aqui em causa, os números espelham com muito mais fidelidade a realidade uma vez que as causas de morte são oficialmente notificadas.

    Um processo de avaliar o impacto das mortes por covid-19 será contabilizar o número de mortes totais acima da média dos outros anos sem pandemia. Nos países onde esses estudos foram efetuados com alguma segurança (África do Sul, Egito e Tunísia) verificou-se um excesso de mortalidade de duas vezes o número referido para mortes por covid-19.

    Mesmo que esses dados estejam certos – em Portugal, por exemplo, verificou-se que o excesso de mortalidade foi, na sua maioria, por doenças não-covid –, a taxa de mortalidade em África continuaria a ser muito inferior à europeia (7 a 8 vezes).

    Estes factos evidenciam, mais uma vez, e talvez de forma algo inusitada, que as medidas de gestão da pandemia prevalecente no chamado “mundo ocidental” – com todos os confinamentos radicais e rígidos, e todas as limitações à circulação e a contactos que nos foram impostas, e ainda continuam a ser, muitas sem qualquer fundamento lógico ou racional – foram sanitariamente incorretas e desadaptadas, e causaram enormes e trágicos prejuízos, a maioria ainda por avaliar. Tanto no que se refere a mortes por outras doenças e pela própria covid-19 como pelo agravamento da saúde mental e da violência (por vezes mesmo estatal), e pelo desastre para a economia dos Estados e, sobretudo, dos cidadãos.

    boy showing hand with rubber

    Na verdade, teria sido muito mais adequado – como a Suécia voluntariamente fez e a África involuntariamente demonstra – incidir e privilegiar os cuidados e eventuais restrições dirigidos e adequados prioritariamente nas populações de risco (em termos de idade e patologias agravantes), libertando da maior parte dos constrangimentos sociais a grande maioria da população, não-idosa e saudável.

    E instruindo sem histerias, aconselhando sem prepotências e, coisa que falhou rotundamente em quase todos os países, facilitando o acesso aos cuidados de saúde em tempo útil, tendo em conta que há mais doenças para além da covid-19.

    Como hoje começa final e tragicamente a ser claro – sendo o exemplo africano apenas mais uma demonstração –, muitos e graves erros foram cometidos. Por desconhecimento compreensível ao início, mas depois, demasiadas vezes, por conveniências, teimosia, subserviência, irresponsabilidade, e até vedetismo.

    Espero, sinceramente, que sobretudo aprendamos com isto. Para já, aqui fica um desejo simples: a partir de agora, os políticos, jornalistas não-especializados e justiceiros das redes sociais deixem de exercer Medicina.

    Médico (cédula profissional 22027)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O dia seguinte de cada partido

    O dia seguinte de cada partido


    Dia 31 de Janeiro, depois do pequeno-almoço com sementes de chia, João Cotrim Figueiredo percorreu a lista de comentários na sua última publicação do Linkedin. Para quem não sabe, o Linkedin costumava ser uma plataforma onde empresas e trabalhadores se encontravam para, entre outras coisas, partilhar curricula vitae e concorrer a propostas de emprego. Hoje em dia é uma mistura de Facebook, Tinder, Instagram e frases motivacionais do Gustavo Santos.

    Entre os parabéns antecipados (a publicação foi feita no sábado de reflexão) pelo grupo parlamentar que se adivinhava, escorriam elogios e palavras de esperança de vários CEOs, CFOs, diretores, empresários e toda aquela nata que vê no recibo de cada mês a tabuada dos 10 do salário mínimo.

    Curiosamente não havia grande entusiasmo entre prestadores de serviços, operadores de fábricas ou caixas de supermercado. Dir-me-ão que um operador fabril não usa o Linkedin, porque não depende tanto do networking. Pode ser isso de facto. O meu primeiro pensamento foi para o facto de a taxa única não ajudar muito nos baixos salários, mas posso estar enganado.

    A minha curiosidade agora é a de saber como se sentem os liberais neste momento? Por um lado, formaram um grupo parlamentar com oito deputados, um extraordinário resultado para quem andou a vender ilusões, mas, estão dependentes da vontade de diálogo do governo para conseguirem começar a desviar fundos públicos para o sector privado ou “liberdade”, como eles lhe chamaram.

    Costa disse que seria dialogante apesar da maioria, mas também ele tem clientelas à espera e, por isso, Cotrim até pode passar os próximos quatro anos apenas a sentir o aroma da bazuca, mas sem lhe tocar. Ainda assim, se tivesse que apostar, diria que a IL ainda vai crescer mais.

    A geração mais formada parece ver na IL uma esperança real de desenvolvimento e, essa tendência, a do aumento das qualificações da população, não deverá diminuir na próxima década. Eu diria que o produto da IL continuará a ser apetecível e bem comercializado. O problema maior é mesmo quando se experimenta e se percebe que, afinal, o anunciado Volvo eléctrico, verde, seguro e confortável, era só um Citröen Mehari com dois cavalos e portas de plástico.

    Não sei se André Ventura começou o day after na missa, agora que a CNN não estava por perto, mas imagino o que lhe passará pela cabeça. “O que é que vou fazer com esta malta no parlamento?”, deve ser o refrão mais repetido naquela voz de quem castiga a “Paixão” de Carlos Tê e Rui Veloso. Não sei se os eleitores do Chega tiveram a oportunidade de ver quem são os deputados que formam a nova bancada parlamentar. Diria que as ideias públicas dos 12 não chegam a metade das nove páginas do programa, portanto é coisa para se ler depressa.

    Temos por lá um senhor, com 72 anos, sempre bom para quem quer abanar e renovar o sistema, que pertenceu ao MDLP, movimento de extrema-direita responsável por atentados bombistas depois da Revolução de 25 de Abril de 1974. Um ancião que, entre outras coisas e no seu devido tempo, defendia, tal como o avô deputado no regime salazarista, que Portugal devia manter o império em África.

    Outros, mais novos, trazem para a Assembleia da República temas como “a invasão de Lisboa pelo mundo rural, no dia em que o Governo proibir a tourada”. Há também quem defenda o fim do corte de carne para consumo, como a que é feita por judeus e muçulmanos. Declara-se o “fim do racismo em Portugal” como um dado historicamente adquirido e comprovado.

    Outro elemento deste dream team tem três dívidas públicas na lista de execuções do Estado português, imagino eu que por alguns Mercedes ou algo do género. Um deles é acusado de xenofobia por uma dirigente do Chega de origem brasileira, e outro tem uma petição pública feita por militantes do partido para que seja afastado das listas. Dizem, e cito, “o mesmo demonstra uma impreparação total e uma falta de literacia e intelecto para se candidatar ao cargo de Deputado da Assembleia da República”. Com amigos assim, este deputado não irá longe.

    Quanto a vocês não sei, mas a sensação que me dá é que o Big Brother está a dias de se transferir da Venda do Pinheiro para a bancada parlamentar do Chega. Ou o Ventura fala pelos 12 e mostra a inutilidade dos restantes, num partido que se percebe ser unipessoal, ou distribui a palavra e contribui para o boom da indústria de memes.

    Se tivesse que apostar diria que, ao contrário da IL, o Chega está próximo do seu pico de crescimento.
    Cecília Meireles falou ontem na CNN durante 12 minutos para explicar, em duas frases o que aconteceu ao CDS. O partido que se quis afirmar como a direita mais pura e conservadora, desistiu de falar para os portugueses e preocupou-se essencialmente com a discussão dos golpes palacianos. Pior, esgotou um tema tão abrangente como o mundo rural apenas em caçadores e touradas.

    Cecília, de quem eu tinha ficado com uma boa impressão na comissão de investigação ao BES, disse no fundo o que todos já sabíamos: Chicão é um velho beato num corpo de 30 anos, com pensamentos típicos de quem está no Moçambique de 1963, achando-se um cristão decente porque deixa os empregados da sanzala comerem à mesa com o patrão.

    Depois desta brilhante exposição, com a qual concordo, e que, em parte, já tinha escrito em crónicas anteriores neste jornal, Cecília Meireles disse que continuava a apoiar Nuno Melo.

    Fiquei baralhado com o futuro deste CDS. Parecem querem sair de 1963 sem correrem o risco de verem 1974. Entre Chicão e Nuno Melo a diferença essencial está no racismo dito em voz alta. Que enorme travessia do deserto se adivinha para o CDS.

    Que caminho sobra agora para o PSD? Um partido do sistema, com boys para colocar, clientelas dependentes e abutres à espera da TAP, em ano de bazuca, e com 71 almas no parlamento sem saberem muito bem o que fazer.

    Se, quando foi necessário, Rui Rio não conseguiu fazer oposição, e se tornou no melhor amigo que Costa podia ter, como encarar agora estes quatro anos, sabendo que o dono da bola provavelmente não os deixará jogar?

    António Costa pode ficar no cargo o tempo suficiente para se tornar o primeiro-ministro português com o maior número de anos em funções. O PSD sofre do mal de qualquer grande partido que passa muito tempo longe dos centros de decisão. As críticas internas multiplicam-se e as facções também.

    Rui Rio conseguiu sempre derrotar os adversários internos, que não lhe deram grande descanso, diga-se, mas nunca conseguiu convencer o país de que estava preparado para o liderar. Tentou ao centro, e falhou. Tentou em terrenos da IL, e baralhou-se. Tentou normalizar o Chega, e selou o seu destino. O senhor que se segue, se fosse eu a escolher, seria Paulo Rangel. Na minha opinião representaria um corte definitivo com a extrema-direita e uma ameaça real à IL.

    Dizem-nos que PCP e BE pagaram a factura do apoio à geringonça. Sinceramente, não acho que termine aí a dor da esquerda. Julgo que a rasteira do Orçamento, deixada por Costa, foi a imagem que ficou na memória mais recente. Chegamos, pois, ao cúmulo de o PS se preparar para aprovar um Orçamento de Estado, lembre-se, chumbado por quase todos os partidos em Dezembro passado, mas que ficou nas costas de comunistas e bloquistas.

    O que se segue para ambos, agora com grupos parlamentares bem menores, caso queiram evitar o destino do CDS? São cenários diferentes na minha opinião. Em comum, o óbvio, devem voltar às políticas marcadamente de esquerda. À defesa dos trabalhadores, à luta nas ruas, ao combate frontal que fora do parlamento poderão fazer já que, lá dentro, o hemiciclo estará apenas com espectadores num jogo onde apenas o PS joga.

    Colocar a estratégia para os próximos quatro anos na capacidade de diálogo de António Costa parece-me um risco desnecessário. Catarina Martins talvez tenha condições para continuar. Posso não gostar do estilo, mas reconheço a combatividade. Já Jerónimo não tem mesmo por onde seguir. Só por teimosia e absoluto conservadorismo é que Jerónimo de Sousa não sai já da liderança, abrindo caminho para João Ferreira. Ou até João Oliveira.

    Se alguém me deixasse entrar no comité central para cinco minutos de prosa, pediria a Jerónimo para se despedir da Assembleia da República, receber a saudação e o respeito que todos lhe prestarão, mas, depois, deixar a renovação do PCP efectivamente acontecer. A hora já passou há muito, resta saber se num partido pouco maleável, alguém está disposto a dar um murro na mesa.

    Rui Tavares é um parlamentar de quem espero algo bom, e, imagino, que possa beneficiar de um crescimento nas próximas eleições, em virtude da sua maior visibilidade a partir de agora. O Livre foi um projecto adiado por causa do caso Joacine Katar Moreira, mas, mesmo tendo que voltar à casa de partida, parece-me um projecto com alguma solidez para se manter na Assembleia da República.

    Já o PAN, a não ser que António Costa lhes dê a mão como fez nos debates, não vejo como podem ganhar alguma relevância e inverter este ciclo de perda. Não há ideologia nem uma líder carismática ou de discurso cativante. A componente da Ecologia pode ser ocupada pelo Livre, e a maior parte das suas linhas programáticas são coincidentes com outros partidos, nomeadamente o PS. Só com as leis para os animais o discurso tender-se-á a esvaziar ainda mais.

    A direita diz-nos que depois desta maioria do PS chegará a troika. A Moody’s, segundo notícias de hoje, parece contente e já faz contas à nossa dívida pública. Quando uma agência de rating começa a falar do nosso país, ainda que seja para elogiar, devemos logo esperar o pior.

    O PS tem agora campo livre para cumprir o seu programa: aumento do salário mínimo, desdobramento dos escalões do IRS, creches públicas, a TAP, crescimento económico acima da média europeia, estabilidade na carreira de docente, semanas de trabalho de quatro dias, aumento do rendimento médio em 20%, redução da dívida para 110% do PIB e alteração de leis para a dignidade no trabalho.

    Não sei onde estaremos daqui a quatro anos, mas, uma coisa é certa: de todas as desculpas para as falhas no cumprimento do programa, a única que o PS não poderá invocar será a do número de votos no Parlamento.

    A manhã de dia 31 foi gloriosa para António Costa e para o PS. Pedro Nuno terá que esperar mais uns anos, e não há quem levante a voz internamente depois de uma vitória destas. Em democracia aceita-se tudo o que as urnas nos dizem, e, por isso, viveremos em regime de quero, posso e mando.

    Regra geral, em Portugal, a população não beneficia com isso, já as clientelas costumam gostar muito.

    O povo escolheu e o voto é soberano. Agora é aguentar.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Décimo sexto episódio da Recensão Eleitoral (01/02/2022) – O dia seguinte de cada partido


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O caldeirão da indigência jornalística: Spotify, Young, Rogan, Tesla, Musk e o que mais quiserem

    O caldeirão da indigência jornalística: Spotify, Young, Rogan, Tesla, Musk e o que mais quiserem


    A Tesla teve uma queda bolsista na semana passada de 10,3%. Entretanto, vamos imaginar que Elon Musk se preocupava com isto – numa empresa cotada que valorizou 20 vezes nos últimos dois anos e meio –, e aflito corria a twittar, como efectivamente fez, a dar apoio ao Freedom Convoy, o movimento de camionistas canadianos que se manifestam em Ottawa.

    Como esta segunda-feira a Tesla – da qual este empresário detém cerca de 20,7% – está a subir, no momento em que escrevo, 9,57% – “comendo” praticamente as perdas da semana anterior –, se eu fosse um jornalista acéfalo, com conhecimentos de Economia ao nível da regra de três simples mal-amanhada, poderia já fazer o seguinte título bombástico: “Apoio a negacionistas canadianos faz Elon Musk enriquecer 15,2 mil milhões de euros”.

    Depois, no lead, se fosse um jornalista sem escrúpulos, especularia que, por obra e graça de mais umas postas de pescada, o empresário sul-africano-canadiano poderia agora aproveitar a onda para reforçar ainda mais o apoio ao tal Freedom Convoy, porque dois tweets lhe tinham rendido numa só sessão bolsista do Nasdaq o equivalente a 7,3% do produto interno bruto (PIB) português.

    blue coupe parked beside white wall

    Se eu quisesse ser ainda mais populista – e para me aproveitar da desoladora iliteracia económica cá do burgo –, ainda fazia os crédulos comer como verdade que o suporte de Musk aos tais “negacionistas” das vacinas, afinal tinha feito todos os accionistas da Tesla empochar tanto guito como aquele que Portugal acumular este ano até finais de Abril.

    Enfim, se assim agisse, esquecia tudo o resto, esquecia o essencial, esquecia como funcionavam os mercados, esquecia que era jornalista que não embarca no primeiro navio nem surfa a primeira onda que lhe surge, nem veste a primeira camisola que lhe estendem.

    Vamos ser claros: o absurdo do meu imaginário título, e da minha esdrúxula história de Elon Musk, da Tesla e do Freedom Convoy, não difere em nada dos bizarros e verdadeiros títulos de recentes notícias do Expresso – copiando a Variety – e do Público sobre o alegado impacte do ultimato e posterior boicote ao Spotify do músico Neil Young por causa dos podcasts do comediante Joe Rogan.

    Vejam. O Expresso titula “Spotify vê o seu valor de mercado cair 1,8 mil milhões de euros devido ao boicote de Neil Young e ao movimento #CancelSpotify”, enquanto o Público adianta: “Spotify em queda acentuada no mercado após diferendo com Neil Young”, acrescentando logo no lead que “as acções da empresa caíram 6% entre a quarta-feira e a sexta-feira da semana passada”. E diz ainda mais a jornalista Inês Nadais, a autora desta rica peça: o “impacto da saída de Joni Mitchell e de uma possível vaga de cancelamentos de assinaturas pode agravar as perdas do serviço de streaming dominante no segmento áudio”.

    person holding iPhone showing Spotify application

    Eis um caso clássico do jornalista que olha a asa sem ver a mosca, e só sabe fazer contas de merceeiro: pega numa semana, observa um evento e extrapola logo que um efeito é só e apenas do evento que observou.

    É aquele jornalista que, se lhe metessem um Excel com o número absoluto de padres e ladrões num vasto conjunto de cidades, concluiria logo serem os padres atreitos a quadrilhas, porquanto nas cidades de maiores dimensões havia, em número, mais padres e também mais ladrões do que em cidades pequenas.

    O absurdo deste tipo de notícias manipuladoras – perfeitas, vergonhosas e intencionalmente manipuladoras – deveriam ser o opróbrio para qualquer jornalista decente. Ou, pelo menos, à decisão voluntária ou obrigatória de não voltar a escrever sobre aquilo de que pouco ou nada sabe, de sorte a evitar usar uma nobre profissão para desinformar.

    Não sei qual seria a cara da jornalista Inês Nadais – não sei mesmo, porque nem a conheço, e surge aqui porque assina a peça do Público, mas não está sozinha – se tivesse de justificar o que estará por detrás da cotação de hoje do Spotify no NYSE, que, à hora que escrevo, apresenta uma valorização de 12,03% em relação ao fecho de sexta-feira passada. Comeu a perda de toda a semana da polémica de Neil Young. Qual a explicação, Inês? Há-de haver uma, que envolva obrigatoriamente o Neil Young e Joe Rogan, mesmo se inventada, não é?

    E então, Ineses desta vida, quais foram os Neils Youngs ou Joe Rogans que estiveram por detrás da queda de 47% na cotação do Spotify desde 19 de Fevereiro do ano passado? E o que sucedeu para antes disso se ter registado uma subida de 200% a partir do início da pandemia? Foram também os Neils Youngs ou Joe Rogans desta vida? Ou há mais palpites por aí?

    Foi mercado, minhas senhoras e meus senhores. Foi apenas mercado.

    Tal como foi o mercado que causou as quedas na semana passada da Tesla (-10,3%), do Airbnb (-8,9%), da Intel (-8,3%) ou da Electronic Arts (-5,1%). Nada disto teve a ver com o Neil Young ou com o Joe Rogan, ou com o Elon Musk ou com outra qualquer causa explicada por “cartomantes da pena”.

    Na verdade, se os jornalistas, antes de escreverem parvoíces do género da polémica com o Spotify, olhassem fora dos “óculos de uma narrativa”, veriam que a empresa sueca de streaming fez o que andava a fazer desde Outubro do ano passado: cair de forma consistente, ou seja, na sexta-feira registava, nesta período, uma queda acumulada de 40%.

    E hoje, como poderia ser amanhã, ou nunca, recuperou. Que teve isto a ver com o Neil Young ou o Joe Rogan? Pode ter sido tudo. Pode ter sido nada. E o jornalismo tem de acabar com essa bengala irresponsável do “pode isto”, ou do “pode aquilo”. Basta!

  • Quem ganhou e quem perdeu?

    Quem ganhou e quem perdeu?


    Este é o primeiro de uma série de três textos sobre a noite eleitoral.

    O grande derrotado da noite foi, sem qualquer dúvida, Rui Rio. Não só viu o PS chegar a uma impensável maioria absoluta, depois de dois anos de crise pandémica e saturação da população, como ainda foi penalizado com a perda de deputados e fuga de votos para os partidos à sua direita, o Chega e a Iniciativa Liberal.

    Rio disse na declaração de derrota que a esquerda se uniu em torno do PS mas, à direita, não se verificou igual movimento em torno do PSD. Deduz-se, pois, que a culpa estará nos receptores da mensagem, vocês, portanto, e não em quem a transmite. Em português e alemão assumiu que chegara a sua hora e que, por ele, a facção de “Rangelistas” podia ir começando a afiar as facas. Depois de quatro eleições perdidas e uma presença parlamentar nos próximos anos de puro corpo presente, resta pouco para fazer ao PSD de Rui Rio. A conta do jantar nos Açores com André Ventura demorou, mas chegou.

    Francisco Rodrigues dos Santos e o CDS figuram entre os outros derrotados à direita. Pela primeira vez em democracia o partido conservador desaparece do Parlamento. Era um fim expectável e, apesar das sucessivas tentativas de Chicão, entre o combate aos opositores internos e a renovação dos quadros do partido, estimava-se que a debandada dos mais radicais para o Chega, ou dos mais progressistas para a Iniciativa Liberal, traria o fim anunciado. Veremos quem é o próximo aluno do Colégio Militar que quer pegar num partido que participará em debates acompanhado pelo RIR, MRPP, Aliança e Ergue-te.

    four men sitting at desk talking

    João Cotrim Figueiredo e André Ventura foram os vencedores da noite à direita. Ambos criaram um grupo parlamentar – no caso do Chega com 12 deputados –, uma subida absolutamente estratosférica. Quase 400.000 pessoas em vários distritos acharam boa ideia votar num partido de índole racista e xenófoba, cujas principais discussões que trouxe para a campanha foram a castração química, prisão perpétua e os ciganos do RSI. Temas fundamentais e estruturantes na República Portuguesa, como se perceberá.

    A Iniciativa Liberal conseguiu juntar quase 270.000 pessoas que concordam com a baixa de impostos aos mais ricos, saúde privada paga pelo Estado e escolas financiadas por todos, mas com acesso limitado a alguns. Beneficiaram largamente do deserto de ideias de Rui Rio, e da incapacidade deste se distanciar mais do Chega, para captar descontentes mais progressistas no PSD. A sensação com que fico é que, mesmo sem conseguir explicar os unicórnios do liberalismo, João Cotrim Figueiredo convenceu os desiludidos do PSD, mas com escolaridade suficiente para não aderirem ao Chega, que a IL era a única porta que lhes restava.

    À esquerda a noite foi agridoce. Costa arriscou tudo no braço de ferro com o PCP e o Bloco, na discussão do Orçamento de Estado. Forçou eleições e convenceu a população que o chumbo do Orçamento era da responsabilidade dos parceiros de geringonça. Isto apesar de ter votado durante a legislatura, quase sempre, ao lado de PSD e contra PCP e BE.

    black statue of a man

    A população acreditou e deu os votos que Costa precisava para não precisar de discutir com mais ninguém. O PS, a solo, em ano de enxurradas de dinheiro europeu, poderá decidir onde o quer aplicar e por quem o vai distribuir. Já há filas de boys a fazerem meia-volta do centro de emprego e empresas de construção à espera de novo ajuste direto.

    António Costa, como já tinha escrito em crónicas anteriores neste jornal, saiu dos debates pouco amassado, e conseguiu sempre manter-se à tona da narrativa oficial das sondagens, tema a que voltarei no terceiro texto.

    Explicou, ao vivo, como fez a cama a António José Seguro, a Pedro Passos Coelho e a Rui Rio, sem aparentemente se sujar, gritar ou cansar. Está claramente mais bem preparado para o cargo do que Rui Rio, mas a forma como vence deveria ser estudada em teoria política.

    Bloco de Esquerda tem a maior queda da noite com a perda de 14 deputados. Uma hecatombe. Se António Costa soube culpar o BE pela queda do Governo, Catarina Martins nunca conseguiu desmascarar a estratégia do PS. Ao invés, insistiu naquele discurso ensaiado e sem alma, por vezes surreal, que levou a que eleitores do BE fossem na cantiga de Costa, do voto útil, para evitarem um governo de aliança entre a direita ou ao centro.

    O PCP perdeu metade do seu grupo parlamentar, mas, pior do que isso, deixa de contar com deputados importantes como António Filipe ou João Oliveira. A campanha do PCP foi um misto de enganos e a ausência de Jerónimo foi a única coisa boa. Tal como o BE, não conseguiram distanciar-se da bola de ferro que Costa lhes colocou nos pés. Olhar para o destino do CDS deve agora ser uma prioridade. Sem renovação, arriscam-se ao mesmo destino.

    O PAN também foi castigado, embora não se perceba bem se foi à esquerda ou direita. Inês Sousa Real não soube passar ideias que interessem verdadeiramente à maioria das pessoas e, como se não bastasse, mostrou-se confortável com alianças com qualquer Governo. A factura da falta de ideologia chegou na noite de ontem.

    Já Rui Tavares recupera um lugar que devia ser seu há três anos. É uma lufada de ar fresco à esquerda, e uma esperança para uma esquerda que pode aprender algo com as esquerdas europeias que importam.
    Entre os perdedores da noite estão também as empresas de sondagens, e aquele inenarrável empate técnico que durou sete dias. Voltarei a este tema no terceiro texto desta análise.

    Regresso amanhã com a segunda parte do rescaldo eleitoral, onde tentarei perceber o dia seguinte de cada partido.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    Décimo quinto episódio da Recensão Eleitoral (31/01/2022) – Como encher 12 horas de emissão?


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