Categoria: Opinião

  • Não queremos ser heróis; o que nos dói é sermos retirados da equação

    Não queremos ser heróis; o que nos dói é sermos retirados da equação


    Neste tempo de incertezas, em que um ser microscópico atacou, silenciosamente, e espalhou o seu mal – de forma ordeira, disseminada, que em pouco tempo provocou caos no Mundo, ao ponto de nos fechar em casa, de fechar as sociedades à livre convivência, tentando estas, desta forma conter um mal maior –, existiram seres humanos, que por inerência das suas funções e obrigações profissionais, não o puderam fazer.

    Os Técnicos Auxiliares de Saúde estão entre estes muitos profissionais que viram a sua já fragilizada situação ainda ficar mais agravada, pois nestes dois anos, que tem durado esta crise de saúde mundial, houve um sério retrocesso em algumas garantias e, direi mesmo, liberdades que lhes foram bloqueadas.
    Estes profissionais, que auferindo o salário mínimo nacional, estando sujeitos – direi mesmo, subjugados – à vontade de chefias coniventes com administrações de cariz economicista – que não lhes reconhecem nome, mas sim números –, são catalogados de soldados rasos, obrigados a jornas intermináveis, muitas delas de 14 e 18 horas, que nestes tempos pandémicos se agravaram ainda mais.

    Contudo, sempre souberam responder de uma forma cabal ao apelo nacional, deram de si mais do que podiam. Milhares, com receio, ficaram impedidos da convivência da família; fizeram dos doentes a sua família, deram a estes a Família que lhes faltava, dentro de fatos e mais fatos, em autênticas saunas ambulantes, com turnos de 12, 14 e, não raras vezes, de 18 horas. Prestaram um serviço de relevância ao país.

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    Estes mesmos profissionais, que sendo soldados rasos, estiveram na linha da frente no primeiro contato – aliás, como o fazem sempre, mesmo sem pandemia. Estes mesmos profissionais que são os que cuidam, alimentam, que ajudam na higiene, na eliminação das necessidades fisiológicas, dão o ombro ao choro; por vezes, são os para-raios das angústias dos doentes, estão presentes 24 horas sobre 24 horas, todos os dias da semana, para que os outros profissionais de grau superior, possam ter mais tempo livre para ministrar as terapêuticas.

    Estes profissionais que têm família, que também sentem, que também têm alma, foram e são relegados para o esquecimento, quando enfatizaram o bem que o Serviço Nacional de Saúde prestou à sociedade, ao ponto de pensarmos que ali só existe duas classes: médicos e enfermeiros. E esquecem-se que sem os Técnicos Auxiliares de Saúde a prestação de cuidados, que foi tão bem apregoada pela comunicação social, não teria sido possível; atrevo-me a dizer que teria sido um caos, sem a nossa prestação e sentido de missão.

    Quem iria distribuir o pequeno-almoço, com um bom dia e um sorriso sonoro, atrás de máscaras, e capacetes parecendo astronautas?

    Quem ajudaria no ministrar da medicação a muitos que só a conseguem ingerir juntamente com a refeição?

    Quem depois os ajuda no banho, no levante, para ir fazer as suas necessidades, ou então na troca de fraldas ou mesmo por aparadeiras?

    Quem atenderia as chamadas dos doentes, pedindo isto e aquilo, imensas das vezes só com o intuito de se sentirem acompanhados e poderem falar um pouco?

    Em média, passamos três vezes mais tempo com os doentes do que qualquer outro profissional de saúde.
    Quem depois desinfeta as unidades dos doentes que partem, uns para suas casas, outros deste mundo? Sendo que a estes, ainda com um sentido de humanidade, lhe prestamos um último auxílio, no tratar do corpo, com toda a dignidade que merecem, e depois os transporta para a morgue.

    Quem iria levar os doentes aos exames, que têm de ser feitos em outros locais das unidades de saúde?

    Quem iria levar amostras biológicas, ou buscar medicação à farmácia hospitalar?

    Quem faz e está atento às necessidades de pedir e repor todo o material, para o bom funcionamento das unidades de saúde?

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    Não podemos, e nem devemos, esquecer todos os profissionais que trabalham no setor social. Estes lutam ainda mais com um grave problema de falta de profissionais de enfermagem, ao ponto de muitas vezes não estarem a tempo inteiro, cabendo aos Técnicos Auxiliares de Saúde prestar terapêuticas que só aos enfermeiros caberia fazer.

    A penosidade da nossa profissão vai muito além das questões físicas; ela insere-se numa abrangente problemática, psicológica e fisiológica. Os estudos e estatísticas só referem o burnout e o stress às classes superiores, mas os Técnicos Auxiliares de Saúde são a classe que está mais sujeita a estas patologias, agravadas agora com a pandemia, pois fomos os que mais contraímos covid-19.

    Em suma, esta é a nossa realidade, mas deparamo-nos com um total desprezo por aquilo que fazemos e que tanto damos à sociedade. Temos ordenados equiparados a varredor de rua – com imenso respeito para com estes –, mas, na verdade, temos índice remuneratório semelhante, além da nomenclatura profissional: somos chamados de Assistentes Operacionais, não existindo progressão na carreira, porque nem sequer é considerada uma profissão.

    Foi por tudo isto que a Associação Portuguesa dos Técnicos Auxiliares de Saúde (APTAS) se criou, tendo na sua génese a persecução de um objetivo primordial: a reposição/criação de uma profissão que já existiu (Auxiliar de Ação Médica), sabendo-se ser esta de suma importância para a sociedade. E dando também a estes profissionais, que todos os dias dão de si em prol dos outros, o digno reconhecimento da sua missão, inserindo-os nas equipas especiais da saúde, dando-lhe um bem-estar pessoal, que vai muito além de qualquer questão monetária.

    Dentro deste pressuposto, a APTAS detém na sua raiz de existência, uma visão holística sobre o Técnico Auxiliar de Saúde, e o que ele representa dentro do Serviço Nacional de Saúde. Sabemos ser um trabalho árduo, pois queremos quebrar dogmas em vários quadrantes, e em especial no seio dos profissionais inseridos nesta profissão. Será uma cruzada, por isso mesmo elaborámos já também um Código Deontológico.

    Como disse Fernando Pessoa: “Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso”.

    Esta é, sem sombra de dúvida, a frase que nos define. A APTAS nasceu de um sonho, sonho esse tornado realidade, mas não se extingue o ónus do sonho após a sua realização. Sonhamos elevar a nossa profissão a patamares de excelência, onde os objetivos primordiais sejam, educar, formar e qualificar todos aqueles que estejam abertos a serem Técnicos Auxiliares de Saúde.

    person walking on hallway in blue scrub suit near incubator

    Aquilo que perspectivamos, como base fundamental para esta nobre profissão, numa visão presente/futura, é qualificar todos os Assistentes Operacionais, que se encontrem a prestar serviços, dentro das funções exigidas pelo referencial de Técnico Auxiliar de Saúde. Este documento foi aprovado e usado pela ANQEP – Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional. E, nessa medida, se enquadrem também as várias especificidades aí previstas, designadamente auxiliares de enfermagem, de alimentação, de descontaminação e de desinfeções.

    Por fim, continuaremos a lutar para que esta nossa pretensão, culmine com a tão desejada carreira, reivindicação essa já reconhecida pela Assembleia da República, e referida no programa de proposta do recém-eleito Governo.

    Esperemos que o novo Governo honre e cumpra, respondendo desta forma à confiança que milhares de Técnicos Auxiliares de Saúde depositaram nele.

    A APTAS, tem como pretensão, lutar por esta causa, mas não queremos fazer desta luta, uma luta só nossa. Existem outras organizações que lutam também para esse objetivo. Aquilo que prometemos, como trabalho, vai muito além de protagonismos pessoais, que só minam as sinergias que deveriam existir entre todos para um bem maior: a criação da nossa tão desejada e necessária profissão de Técnico Auxiliar de Saúde.

    Adão Artur M. Rocha, presidente da Direcção da Associação Portuguesa dos Técnicos Auxiliares de Saúde (APTAS)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O whataboutismo do momento

    O whataboutismo do momento


    Aprecio muito modas linguísticas e bengalas argumentativas. Julgo que nos trazem a vantagem de encurtar discussões, evitar a trabalheira que é articular o pensamento e, como bónus, ainda nos dão uma certa aura de inteligência sem grandes desenvolvimentos.

    Na guerra das indignações a que está a fazer furor neste momento é o whataboutismo. Caminham lentamente para remover o “negacionista” da pandemia do pódio mediático. Lembram-se desses tempos, quando uma pessoa que não concordava com o confinamento via a discussão encurtada com a ajuda da bengala do negacionismo? Julgo que vamos por aí no caso do conflito russo-ucraniano, mas com uma componente histórica bem mais interessante.

    Debater, nos dias de hoje este tema, é andar literalmente em areia movediça. Vou arriscar, em todo o caso, com um exemplo, e logo se vê.

    O Martim rejubila com o fabrico caseiro de cocktails molotov nos subúrbios de Kiev. É um povo a resistir a uma ocupação externa, um exemplo de bravura, um acto heróico que nos inspira a todos.

    Pessoalmente, consigo alinhar com este pensamento. O Martim é um gajo que lê jornais, mas não liga muito a História. É informado, mas pouco culto. Junta-se à conversa o Renato, que é um tipo mais dado à História, e que mistura a leitura da imprensa nacional com a internacional. O Renato diz ao Martim: “Ouve lá, não dizias que quando se fabricaram cocktails molotov na Cisjordânia, estávamos perante um acto de terrorismo? Não era afinal a mesma acção de defesa de um povo contra o invasor?”

    O Martim pensa cerca de cinco segundos, e dispara: “Renato, isso agora é whataboutismo!”, ou seja, está a fazer uma acusação de se estar a usar outros exemplos, mesmo se semelhantes, que desculpam a actual situação. Portanto, segundo esta corrente de pensamento, é um argumento não possível de ser utilizado. Porquê? Ninguém sabe.

    Qual a razão de aceitarmos o bombardeamento da Sérvia, pela NATO, para defender separatistas, mas condenarmos o bombardeamento russo que está a defender separatistas? Nenhuma, mas quando o fazemos, não caímos em whataboutismo, o que é sempre positivo.

    O Governo norte-americano, por exemplo, também tem a sua própria definição de coerência. Russos que anexam a Crimeia ou Chineses que chateiam Taiwan, em princípio não; israelitas que anexam colonatos ou fazem paredes altas e sem tectos, já está bom. E nunca, mas nunca, referir as duas contradições em simultâneo, porque, lá está, cairíamos em whataboutismo. E ninguém quer isso.

    Os fãs do whataboutismo gostam de analisar os problemas da vida no dia em que começam.

    Por exemplo, um tipo fuma durante 30 anos, e algures no processo é-lhe diagnosticado um cancro de pulmão. Passa o resto da vida a tentar perceber como é que aquilo aconteceu, porque os últimos 30 anos são encerrados num bunker.

    O que eu ouço quando me dizem “epá!, isso já é whataboutismo“, é isto: um amigo da secundária, que era supercool, porque foi o primeiro a ter uns Air Jordan que não vieram da feira, escreveu isto no mural e eu, que não sabia onde ficava Donetsk até o Paulo Fonseca ir para lá, achei que era um bom drop the mic para finalizar discussões. Ainda por cima é uma linha em estrangeiro. LMAO.

    O meu problema com essa bengala é a impossibilidade de se discutir ou resolver qualquer problema que não seja o do momento. Um argumento inteligente seria, por exemplo, que a reacção ucraniana é exactamente igual à palestiniana, e que qualquer uma das invasões é inaceitável. Seja na Sérvia, na Líbia, no Iraque ou na Ucrânia. E venha de que agressor vier. Sem cores, bandeiras ou partidos. Uma invasão é uma invasão.

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    Ou então, um fã do whataboutismo diria: “ouve lá… agora o Mundo está com a Ucrânia, vamos fazer pressão para derrubar o Putin. No fim disto vamos safar os gajos na Faixa de Gaza!! Certo??”. Ora, isto já me pareceria algo com sentido, ou seja, o Mundo preocupado com as populações oprimidas.

    E reparem, desta forma o whataboutismo desapareceria, porque não existiriam exemplos passados para dar. Estão a imaginar a maravilha? Poderíamos lidar com uma catástrofe de cada vez e ninguém vos pediria o número de crianças mortas no Iémen ontem. O problema é que isso nunca acontece, não é? Há populações no Mundo que podem e devem ser invadidas. Ou são pretos, ou árabes ou estão longe de nossa casa. Outros não podem, e o nosso sentido de decência vem ao de cima.

    Três mil mortos na queda das Torres Gémeas foram uma catástrofe que parou o Mundo. Um acontecimento que mudou a História e a nossa vida. A minha pelo menos mudou.

    Já os 500.000 que em consequência desse ataque morreram no Iraque, foram danos colaterais.

    E ligar os dois acontecimentos, dizem, não é perceber a História ou contextualizar a desproporção da brutalidade. É whataboutismo.

    No fundo passamos a vida em discussões circulares sobre qual o melhor império opressor, e ainda há quem acredite que isto é, de facto, uma guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

    Há pouco ouvi que os Estados Unidos não tinham qualquer interesse neste conflito, o que, na minha opinião, é como dizer que um vendedor de pipocas não quer saber de milho. Os ucranianos morrem no terreno. Os russos também. Os interesses no conflito começam em Washington e acabam em Pequim.

    E sobre mortes há também um dado interessante, mas mórbido. Começam aos poucos a aparecer relatos de desportistas, mais ou menos famosos, mortos em combate. Os líderes são justamente criticados por mandarem jovens para a frente, sem treino, enquanto eles e suas famílias estão resguardados em palácios, bunkers ou até noutros países.

    in flight dove

    Guerras combatem-se com exércitos, não com civis. Putin é um assassino, de opositores ou até dos seus próprios soldados, algo que não será original na História da Rússia. E é retratado como tal. Faz sentido na minha cabeça.

    Já Zelinsky, guardado pelas forças especiais num bunker de Kiev, obrigando todos os homens entre os 18 e 60 anos a ficarem no país, esperando que a população se atire para cima de tanques com garrafas de vinho em chamas, é um herói. E não concordar com isto, meus amigos, ou comparar a sua acção com a de outros líderes que enviam civis para a morte, é whataboutismo.

    Reparem que quando Israel nos diz que o Hamas usa escudos humanos, nós gritamos pela barbárie. Já se mulheres ucranianas atravessam a fronteira a chorar porque os maridos, civis, são forçados a ficar para escudo, achamos ser heróico.

    Glória às bengalas e à estupidificação do discurso. A coerência não faz parte da realpolitik.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Mais uma lição de jornalismo: tenham dó, mas não!, não! e mais não!; ‘isso’ não é ser jornalista

    Mais uma lição de jornalismo: tenham dó, mas não!, não! e mais não!; ‘isso’ não é ser jornalista


    Na noite passada, fui relembrar o texto integral do Código Deontológico dos Jornalistas. Convém sempre, mesmo que se tenha os princípios na ponta da língua. A tentação de transigir em determinados contextos – como sucedeu na pandemia desde 2020, e agora ocorre com a nova invasão da Rússia à Ucrânia – é sempre muito elevada. Os jornalistas são humanos, emocionam-se, agem como humanos.

    Começa logo assim o dito Código, no primeiro ponto:

    “O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.”

    Há mais 10 “mandamentos”, alguns deles redundantes, mas dois são fundamentais, e obrigam-me mesmo a invocá-los por imperativos de consciência, e como instrumento, enfim, talvez inglório, para defesa de um jornalismo independente. E quando falo de independência não pode significar dependência das vontades circunstanciais, e por vezes caprichosas, dos leitores.

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    [Tem sido, aliás, muito interessante observar que alguns, felizmente muitíssimo poucos, dos meus leitores não compreendem o significado de “jornalismo independente”, reivindicando mesmo que lhes devolva pequenos donativos ao primeiro sinal de desagrado sobre algo que surge no PÁGINA UM. É, em escala micro, aquilo que sucede na imprensa mainstream, mas com entidades económicas e financeiras de muito maior relevo.]

    Num desses “mandamentos” fundamentais refere-se “o jornalista deve combater a censura e sensacionalismo”, enquanto no outro se recomenda que “o jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar”, acrescentando ainda ser sua “obrigação (…) divulgar as ofensas a estes direitos.”

    Neste contexto, é uma regra sem excepção: um jornalista jamais pode aceitar a existência de qualquer tipo de censura, mesmo se dirigida a terceiros, mesmo se alegando benefícios para um evidente bem comum.

    Nem que seja porque o bem comum é conceito difuso e escorregadio, geralmente definido pelo poder. Ora, a ética é a alma do jornalista; e não há bem comum que justifique um apoio à censura, seja qual for o “tipo” que a impõe, seja qual for o tipo e circunstâncias da sua aplicação.

    Sejamos claros: nenhuma censura é boa; nenhuma ditadura sobrevive sem censura; nenhuma democracia vive com censura.

    Mas o Código Deontológico nem deveria ser necessário: bastaria uma dose de bom senso e equilíbrio, para um jornalista ser aquilo que deve ser: isento, rigoroso, buscando a verdade, sem tomar aprioristicamente partido de um lado, sobretudo em conflitos. Sobretudo nestas últimas circunstâncias, e no conflito russo-ucraniano, não deve um jornalista comportar-se como um adepto de futebol, ou como um comentador na passadeira vermelha da feira das vaidades.

    Vou ser mais concreto.

    Parece por demais evidente que, no conflito russo-ucraniano, Putin é o agressor, independentemente das causas, que, em todo o caso, num trabalho jornalístico, devem ser sempre enquadradas. E é ele também um agressor violento, que merece forte e evidente reprovação – e eu, como jornalista, separando de forma clara (e muito clara mesmo) a opinião da notícia, posso e devo dizer que ele é um criminoso.

    I want you for U.S. Army

    Porém, tanto na opinião como na notícia, um jornalista deve trabalhar “com rigor e exactidão”, e não serve de desculpa não o fazer “só” porque Putin é um facínora.

    Um jornalista não é um cidadão comum.

    Alguns, esquecem-se.

    Muitos leitores, também.

    Um jornalista não é um simples adepto, que observa, relata, instiga as hostes em função de um objectivo: a vitória da sua facção. Um jornalista não serve facções: é um relator e um árbitro dos acontecimentos. Não tem sequer de intermediar nem influir nos acontecimentos, nem deve.

    O jornalista não é um agente dos acontecimentos, e daí que deve fazer um esforço suplementar para não ser instrumentalizado, nem instrumentalizar os leitores – como, aliás, se observou durante a pandemia que, por certo, não teria “terminado” assim tão de repente se não fosse o conflito russo-ucraniano.

    Numa guerra, a informação e a propaganda confundem-se, muitas vezes. Se houver censura ou condicionamento psicológico – fruto de um sentimento intenso de pertença ou afeição incondicional –, e o jornalista se deixar levar na onda, perde a sua independência e objectividade, e o seu trabalho descamba facilmente para a propaganda.

    Pode não ser intencional, mas se um jornalista não for zeloso na verificação de factos, no rigor da informação que transmite, porque enfim a “Rússia é a má da fita”, abre uma caixa de Pandora. Se uma parte que procura manipular o jornalista – e não sejamos ingénuos, mesmo em tempo de paz e assuntos mais comezinhos, as fontes sempre procuram levar água aos respectivos moinhos – observar que consegue uma primeira vez passar propaganda como notícia, e mesmo sendo “apanhado”, continua a ser aceite, jamais deixará de fazer propaganda. Mentirá, porque a mentira passará por verdadeira; a verdade será a mentira.

    A propaganda, diga-se, faz parte das regras do jogo – e, por vezes, cai-se na esparrela –, mas um jornalista que entre num jogo onde voluntariamente sabe que está a participar na propaganda, deixa de ser jornalista. Deixa de fazer notícias. E isto não é uma notícia que eu esteja a dar-vos, embora devesse ser: é claramente a minha opinião, que deveria levar a uma reflexão qualquer jornalista.

    A coragem no jornalismo não se mede apenas em percorrer estradas sem nexo nas imediações de um “teatro de guerra”, mas, sim, também em enfrentar poderes instalados, em investigar e escrever sobre assuntos delicados, mesmo quando se pode sair prejudicado na sua imagem e na sua vida – ou perdê-la mesmo – por mor da sua independência.

    person in blue denim jeans and orange backpack walking on street during daytime

    Isto também escrevo a propósito da “mensagem de solidariedade a congéneres ucranianas” feita pelo nosso (e meu) Sindicato dos Jornalistas, onde aliás se consulta o Código Deontológico. Acho bem uma mensagem de solidariedade, mas esta tem um “pecado capital”: denota um enviesamento incompatível com os princípios que atrás enunciei.

    Com efeito, é um erro e uma injustiça que os jornalistas ofereçam o seu apoio e solidariedade “apenas” aos jornalistas ucranianos; primeiro, porque não são os únicos potencialmente visados em conflitos armados – que já mataram, desde 1992, um total de 2.128 jornalistas e outros profissionais dos media, de acordo com o Committee to Protect Journalists (CPJ). Aliás, na verdade, o SJ está atrasado alguns anos: os jornalistas ucranianos já precisavam de ajuda pelo menos desde 2014, no decurso da invasão da Crimeia e dos conflitos em Donbass.

    [Sobre estes perigos, e as semanas que antecederam o actual conflito, aconselho vivamente a leitura destas breves entrevistas no CPJ aos jornalistas Anastasiya Stanko e Sergiy Tomilenko, este último que ocupa a liderança do União Nacional de Jornalistas da Ucrânia.]

    De facto, tanto ou mais que os jornalistas ucranianos, são os jornalistas russos independentes que mais apoio e solidariedade precisam – e de incentivo para não caírem na propaganda e para perseverarem na sua coragem. E não se diga que não há jornalistas independentes na fria Rússia, excepto se a memória for mesmo muito curta: no passado dia 10 de Dezembro foi entregue em Oslo o Prémio Nobel da Paz ao fundador e editor-chefe do Novaya Gazeta, Dmitry Muratov. Já se esqueceram do que ele passou, e os seus camaradas (termo usado entre jornalistas) para receber esta distinção? Se não se recordam, o PÁGINA UM relembra aqui.

    Sejamos mais uma vez claros.

    A Rússia não é, e muito menos foi antes desta invasão de Putin, um país para jornalistas independentes.

    A Rússia ocupa o 11º lugar no triste ranking da Global Impunity Index da CPJ relacionada com homicídios, raptos e aprisionamentos de profissionais dos media. Mesmo não havendo mortes de jornalistas desde 2017 – mas desde 1992 já caíram 58 e há sete desaparecidos há vários anos –, ao longo de 2021 contabilizam-se 14 presos (um recorde): Abdulmumin Gadzhiev, Aleksandr Dorogov, Aleksandr Valov, Alla Gutnikova, Armen Aramyan, Igor Kuznetsov, Ivan Safronov, Natalia, Vladimir Metelkin, Yan Katelevskiy, Osman Arifmemetov, Remzi Bekirov, Rustem Sheikhaliev, Vladislav Yesypenko – os quatro últimos na invadida Crimeia.

    Mensagem de solidariedade do Sindicato dos Jornalistas apenas às suas congéneres ucranianas.

    O público português pode até ignorar isto; um bom jornalista português não pode, não deve.

    Por isso, pasmo ao ver jornalistas, ou responsáveis na imprensa, a apoiarem (nem que seja pelo silêncio) a censura de órgãos de comunicação, e a incentivarem (nem que seja por omissão) a perseguição sobre aqueles que não seguem princípios maniqueístas, como se estivesse em causa um mero despique futebolístico, em que é obrigação de todos vestir a camisola do mais fraco, e se a não veste merece apupos (ou pior ainda) porque estará infalivelmente a favor do inimigo.

    São estes os tempos que temos, e a culpa é dos jornalistas, que até metem mais álcool para a fogueira.

    Isto não faz esquecer o essencial. Jamais questionei e questionarei o óbvio: a Rússia invadiu a Ucrânia, e está a cometer atrocidades terríveis. Mas o jornalismo não é isto que se tem visto. O jornalismo deve, pelo menos, agir como o russo Novaya Gazeta promete – e aparentemente está a cumprir: “seguir o derramamento de sangue no país irmão e continuar apresentando apenas factos verificados sobre os horrores da guerra.”

    É isto que “basta” o jornalismo fazer, e os jornalistas executar. Comecem por ler, por exemplo, a cobertura noticiosa do Novaya Gazeta sobre os conflitos – aproveitando, ademais, as boas traduções já feitas pelos browsers – ou este texto de hoje assinado por Dmitry Muratov e Beatrice Fihn em nome da Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (entidade que recebeu o Prémio Nobel da Paz em 2017).

    Leiam, já agora, também, por exemplo, o excelente artigo de opinião de Julia Latynina, intitulado “Eles não mentem. Eles pensam assim”. Ou então o lúcido e pacificador artigo de opinião de Petr Shelishch, presidente da União dos Consumidores da Rússia. Ou uma análise muito interessante sobre o efeito da desconexão do SWIFT aplicado ao sistema bancário russo e suas implicações directas no quotidiano dos cidadãos daquele país. Ou este artigo do cineasta Vladimir Mirzoev. E tantos outros.

    E vejam onde há coragem, onde há jornalismo. Onde há esperança. Onde há gente também a precisar de ajuda e alento para combater a barbárie humana, mesmo se intentada por alguém da sua nacionalidade.

    Se acharmos que devemos censurar, estaremos ao mesmo nível de Putin, que começou já a encerrar órgãos de comunicação social classificando-os com “agentes de media estrangeiros”. Hoje foi silenciado canal televisivo Dozhd e a rádio Eho Moskvy. Reparem: o Novaya Gazeta não perdeu tempo a criticar esta medida. E continuará, talvez, até ser silenciada, se deixarmos que a censura até no Ocidente prolifere e seja defendida. A imprensa do regime e os jornalistas russos “dependentes” devem ter achado bem, presumo.

    Onde está, enfim, e por fim, a verdade, pergunto-vos?

    Estará em jornais independentes russos, como o Novaya Gazeta?

    Dmitry Muratov, editor-chefe do Novaya Gazeta, com a jornalista filipina Maria Ressa, na cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Paz em Oslo, no dia 10 de Dezembro do ano passado (© Nobel Prize Outreach. Foto: Jo Straube)

    Ou estará apenas e só na imprensa ocidental?

    Naquela que, por exemplo, noticiava a chacina de 13 soldados ucranianos numa pequena ilha do Mar Negro – revelando mesmo que o presidente ucraniano os agraciaria com medalhas póstumas –, mas que, três dias mais tarde, anunciava que afinal estavam vivos, dando este volte-face acompanhada com uma mera menção de ser uma “actualização” à informação primitiva.

    Eu, por mim, fiz já uma escolha. Como jornalista e como leitor. Não quero censura, e quero apoio a todos os jornalistas. Sei serem escolhas pouco simpáticas nestes tempos continuamente distópicos. Mas se alguém quer ser simpático, não deve jamais querer ser jornalista independente. Está a mais. E a fazer mal às democracias.

  • O enquadramento histórico selectivo

    O enquadramento histórico selectivo


    António Filipe foi à CNN Portugal discutir a actual situação da Ucrânia ou, pelo menos, assim pensava ele. Ladeado por Sérgio Sousa Pinto e Sebastião Bugalho, portanto, direita conservadora, acabou a discutir a posição do PCP em relação ao conflito. Ou, nas palavras de Sérgio Sousa Pinto, do “capacho de Putin”.

    Sérgio, antigo líder da Juventude Socialista (JS), disse há uns tempos, numa entrevista a um jornal, que era um betinho de Lisboa e que, graças à JS conseguiu conhecer Portugal.

    Não me admirei por ser um betinho, mas já fiquei mais surpreendido com a vertente turística da JS. Sabia que o cartão de jotinha abria muitas portas, mas nunca pensei que uma delas fosse a da Agência Abreu.

    O que eu achei interessante no debate de ideias é que, a dada altura, passou a ser mais importante a posição do PCP em relação a Putin, ao conflito ou à NATO, do que propriamente a análise ao que aqueles desgraçados sofrem no terreno. Fico sempre encantando com a atenção que o país dá à opinião de um partido que, segundo me explicam, está para desaparecer desde o século passado.

    white duck with orange beak

    Há um ponto do debate que vale a pena relevar: o “mas”. Sérgio Sousa Pinto, que não parece saber que o partido comunista russo é oposição, e não poder, fica a espumar porque o PCP condena a NATO ao mesmo tempo que critica a invasão.

    Para ele, não pode haver um “mas”. Há que arrasar a Rússia e acertar o relógio da História para sexta-feira, 25 de Fevereiro de 2022. Aliás, como disse o moderador/pivot da CNN: “António Filipe, a guerra começou há 3 dias!”

    Ora, aí é que está, não começou, não. A não ser que comecemos a procurar sinónimos mais latos para guerra. Há oito anos que se trocam tiros na região de Donbass, entre russos e ucranianos. Para mim, que não sou muito versado em kalashnikovs, se há tiros no ar durante muito tempo, e entre as mesmas pessoas, já lhe chamo uma guerra.

    Entramos então na moralidade do “mas”, que me irrita ligeiramente, confesso. A direita acusa o PCP de não condenar a Rússia com força suficiente, embora já repetidas vezes tenham dito que não apoiam Putin. Ou, como disse António Filipe, “a Rússia capitalista e senhor Putin nunca nos enganaram”. Mas não chega.

    Não se pode falar na História de 2014, do Acordo de Minsk ou na expansão da NATO. Para Sérgio Sousa Pinto e para a direita em geral, isso é validar a agressão. O relógio temporal tem que ser iniciado apenas no dia 25 de Fevereiro e nós temos que ignorar tudo o que nos trouxe aqui.

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    O problema é que este “MAS” só se aplica nas críticas feitas ao PCP. Aos outros não só é permitido como essencial na argumentação. Exemplo: “O PCP foi importante na luta contra a ditadura, MAS queria, ele próprio, impor outra em seguida”, diz um dirigente do CDS enquanto comemora o 25 de Novembro.

    Durante os bombardeamentos da Faixa de Gaza, há pouco mais de um ano, ouvimos todos os dias os lamentos pela morte de 50 crianças palestinianas, MAS fomos recordados que morreu uma do lado israelita. Portanto, a brutalidade está justificada para o mundo ocidental. Ainda nestas últimas eleições, elementos do PSD se indignaram com o cordão sanitário exigido na relação com o Chega dizendo que, se o PS se pode coligar com o PCP e BE, por que razão não pode o PSD coligar-se com o Chega? Ou seja, na discussão sobre um partido racista e xenófobo, sentiram necessidade de falar em dois partidos que cumprem a Constituição.

    Sérgio Sousa Pinto dizia a António Filipe, por que razão devemos falar da NATO quando há uma invasão no terreno? Pela mesma razão que o caro Sérgio, na análise das legislativas, dizia que a demonização do Chega não fazia sentido quando o PCP tinha um acordo de Governo.

    Para o jotinha que conheceu Portugal faz sentido falar no PCP quando se discute um Governo de direita com o Chega, mas já é estranho, ou vá, descabido, falar na NATO por causa de uma guerra onde ela é uma causa direta. Realmente… quem é que se lembraria, Sérgio, quem?

    O que é que isto nos diz? Que sempre, em qualquer tema ou discussão, a análise é feita de acordo com as convicções, conhecimento histórico e enquadramento global. Aqueles que agora exigem ao PCP que ignore tudo o que aconteceu antes de dia 25, são os mesmo que usam o comparativo quando o seu lado se apresenta como o facínora da história.

    Pior, fazem-no num momento delicado, tentando colar o PCP a um regime de direita e confundindo a crítica à NATO com a validação da guerra. E por mais que António Filipe e seus pares digam o contrário, a mensagem vai circulando, e o PCP fica com o odioso rótulo de ser o apoio de Putin em Portugal.

    Putin que, lembremo-nos, financia os partidos de extrema-direita na Europa, entre os quais os amigos Salvini e Le Pen, companheiros de retrato de Ventura.

    Isto, meus amigos, é desinformação em horário nobre. E da boa.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Porque estando eu a 3.806,3 quilómetros de Kiev tenho raiva de Putin e medo de Helena Ferro de Gouveia

    Porque estando eu a 3.806,3 quilómetros de Kiev tenho raiva de Putin e medo de Helena Ferro de Gouveia


    Há uma grave tragédia na Ucrânia, à escala mundial, humanitária, política, geoestratégica, psicológica. Mais grave ainda por suceder no culminar de dois anos de uma pandemia que criou uma psicose colectiva – formatada por políticos, imprensa e indústria farmacêutica –, e que permitiu transformar um evento grave de Saúde Pública em prenúncio de um cataclísmico Armageddon vírico.

    Desde 2020, pasmo com a mudança das mentalidades, mesmo em espíritos abertos. Ressurgiu, como em sombrios tempos passados, um pensamento unívoco e dogmático, baseado num mundo maniqueísta: o altruísta e o egoísta; o bondoso e o maldoso; o santo e o pecador; o humano e o desumano; o anjo e o demónio; o imaculado e o hediondo; o generoso e o sovina; o insigne e o abjecto; o puro e o impuro; o elevado e o rasteiro; o herói e o vilão.

    Obviamente que, neste mundo, e desde que o mundo é mundo – que, neste contexto, se situa desde que o ser humano surge com as suas imperfeições –, há homens e mulheres egoístas, maldosos, pecadores, desumanos, demoníacos, hediondos, sovinas, abjectos, impuros, rasteiros, vilões. Porventura, ou “malventura” nossa, Putin será alguém que bem se encaixa em todas estas adjectivações. Se lhe faltar alguma, será, por certo, compensada por todas as outras.

    Porém, o maior problema do mundo nem é a existência de Putins – porque houve piores ou iguais em séculos passados (e não apenas Hitler), e os haverá em séculos futuros. E no futuro sobretudo se pensarmos que ele é único, e fruto de um acaso ou de um azar genético.

    Na verdade, a grande causa das piores desumanidades da Humanidade (lembremo-nos que a desumanidade é algo apenas dos humanos) foi a incapacidade colectiva em prevenir e precaver a existência desses maldosos, pecadores, desumanos, demoníacos, etc. – e, pior ainda, que estes fossem concebidos e crescessem na base, ou sob a assistência ou apatia, de pessoas que até se assumem como altruístas, bondosas, santas, humanas, anjos, imaculadas, generosas, insignes, puras, elevadas e heróicas.

    Talvez uma leitura da Divina Comédia de Dante ajudasse a compreender os erros deste pensamento maniqueísta, mas se tal não for possível bastará a máxima popular, “de boas intenções está o Inferno cheio”.

    Desse modo, colocar o conflito russo-ucraniano – ou, para se ser mais rigoroso, a invasão da Rússia à Ucrânia, porque é disso que se trata – numa esfera simplista, maniqueísta, é esquecer tudo aquilo que sucedeu antes. Até porque esquecer o que aconteceu antes impede compreender o que está a suceder. E o que mais virá.

    Para que não seja uma interpretação minha dos acontecimentos, cito a excelente base de dados do Departamento de Pesquisa da Paz e Conflitos da Universidade de Uppsala, para termos presente o que tem sido a Rússia das últimas três décadas:

    “Após o colapso da União Soviética, a recém-criada Federação Russa reprimiu uma tentativa de golpe das forças parlamentares em 1993. Também lutou contra movimentos pró-independência no norte do Cáucaso. No contexto do conflito na Chechênia, iniciado em 1994, o Governo russo usou violência unilateral em grande escala. As brutais guerras chechenas contra a República Chechena de Ichkeria arrastaram-se até 2007, quando o líder da República Chechena de Ichkeria declarou o estabelecimento do Emirado do Cáucaso. No final de 2015, o grupo estava praticamente extinto, com seus membros mortos ou capturados pelas forças de segurança, ou desertando para se juntar ao Estado Islâmico em seu conflito para estabelecer um Estado Islâmico no Cáucaso, que ainda está em andamento como uma insurgência de baixa intensidade.

    Os governos da União Soviética e da Federação Russa também forneceram apoio secundário de guerra a vários governos e grupos não estatais na sua esfera de interesse. Tais conflitos incluíram: Irão (1946), Coreia (1949–1953), Tajiquistão (1993–1996), Afeganistão (1979–1988 e 2001), Ucrânia (a partir de 2014 até à actualidade) e Síria (a partir de 2015 até à actualidade)”.

    Ou seja, Putin não saiu assim do nada, de repente, de forma surpreendente.

    Os conflitos da Ucrânia, associados à Rússia, também não. Não começaram este mês. Se não antes, começaram pelo menos em 2013, nos protestos pacíficos (EuroMaidan) em Kiev que, depois causaram a morte de 88 pessoas entre Janeiro e Fevereiro do ano seguinte.

    Sucederam-se depois com a anexação da Crimeia, e com as intermináveis lutas na região de Donbass, que constituíram uma consequência directa da viragem da Ucrânia para o Ocidente, com a participação activa da Rússia.

    Os dados da sueca Universidade de Uppsala, do departamento acima citado, ajudam-nos, tristemente, a compreender o caminho até aos dias de hoje, apenas pelo registo detalhado dos eventos e número de baixas nos últimos sete ou oito anos: Donetsk e arredores, 2.618 mortos, Horlivka 140, Debaltseve 238, Volnovakha 720, Ilovaisk 601, Mariupol 200, Hrabove 2.215, incluindo o abate de um avião civil da Malasya Airlines com 298 passageiros e tripulantes, em 17 de Julho de 2014. Os quatro suspeitos, actualmente a serem julgados à revelia na Holanda, têm óbvias ligações à Rússia.

    Desde a Crimeia – ou mesmo antes disso –, a Rússia de Putin apenas “sofreu”, como consequência mais nefasta, deixar de ser convidada para as reuniões do G7. Ninguém quis perceber o que estava por detrás da decisão de Putin em descartar há três anos, por completo, uma readmissão a estas reuniões dos orgulhosos países com as economias consideradas mais desenvolvidas do Mundo.

    Desdenharam Putin e a Rússia: os livros de História estão cheios de ensinamentos passados sobre o que, em muitos e trágicos casos, resulta disto.

    Porém, há quem faça agora de conta que não se estava a ver crescer o “papão”; na verdade, a fazer crescer o “papão”. E que muitos contribuíram para aguçar a vontade do “papão”.

    Os supostos e autodenominados altruístas, os bondosos, os santos, os humanistas, os anjos, os imaculados, os generosos, os insignes, os puros, os elevados e os heróis – que assobiaram anos a fio para o ar, enquanto concordavam com os negócios e investimentos da Rússia, aceitando-os como cidadãos de visto gold, graças a investimento sujo, com homicídios e perseguições de Estado –, surgem agora como paladinos da democracia e da paz. E contra o Mal, corporizado em Putin.

    Putin é o Mal, sem dúvida. Mas não está sozinho. E, pior, do lado do suposto Bem, está outro mal.

    [escrito em minúsculas para que não se queira interpretar, hélas, que estou a colocar tudo ao mesmo nível]

    O mal (em minúsculas) está naqueles que agora, céleres, rotulam quem diz “mas” – como já tinham feito durante a pandemia com quem colocava críticas à gestão política – com epítetos, impondo um pensamento único.

    person holding umbrellas on road at daytime

    Hoje, cada vez mais se nota, que quem disser um “mas” ao conflito da Ucrânia, não seguindo a lógica dos demais, corre o risco de ser olhado de soslaio, de ser ostracizado e renegado.

    Eis aquilo que agora temos, enfim, em democracias: paladinos do maniqueísmo. São pessoas que, aproveitando circunstâncias especiais, de emoção, de forte cunho psicológico e atrelados à Comunicação Social – que vê agora a crise ucraniana com o mesmo apetite por clickbaits que usou na pandemia –, promovem em cada indivíduo um futuro sacerdote dogmático.

    Um povo que só veja preto e branco, que assimila uma linha narrativa única, sem investigar nem questionar. Obediente.

    É esse o nosso mal, que pode medrar até ter um M maiúsculo disseminado por todo o Mundo.

    São esses perigosos e nefastos paladinos do maniqueísmo, que encontramos na nossa imprensa, de que o expoente, não sendo isolado, é Helena Ferro de Gouveia, uma persona que se fez administradora caída do céu na Lusa, a agência noticiosa do Estado português.

    Ver alguém como ela, a defender num país democrático (e como fez ontem na CNN Portugal), o condicionamento da informação – hoje da Rússia, amanhã, se calhar, cá de dentro, desde que fuja da narrativa oficial –, porque “nem toda a gente tem capacidade e o conhecimento e a literacia mediática para poder desconstruir” uma determinada narrativa externa, é de uma extrema perigosidade para um português, para um democrata, para uma democracia.

    Na verdade, estando eu a 3.806,3 quilómetros de Kiev, as palavras de Helena Ferro de Gouveia – e de muitos e muitos outros que, na imprensa, defendem as suas teses, incluindo muitos jornalistas – têm trejeitos de Putin.

    E têm, porque são estas posturas anti-democráticas, censórias, que alimentaram poderes como os de Putin, que se impôs na Rússia enquanto implantava, em simultâneo, supostas medidas para o Bem Comum contra um “inimigo externo”. E eliminando opositores, em sentido figurado ou literal.

    brown tree trunk on brown rock

    As palavras de Helena Ferro de Gouveia não são balas nem mísseis, mas corroem uma democracia, sobretudo porque nem são irrealistas. São exequíveis – e foram mesmo agora aplicadas em sites noticiosos (mesmo se propagandísticos da Rússia) –, até porque socialmente aceites em contextos como os que vivemos há dois anos.

    Saibamos compreender que a ausência da democracia pode não matar já, como as balas na Ucrânia. Mas mata a prazo. Aliás, como se constata pela invasão decidida por Putin, só possível porque Putin conseguiu manter-se mais de duas décadas no poder de um país com eleições mas nunca sendo um democrata. E conseguiu porque começou por impor uma imprensa condicionada e restrições de acesso à informação.

    Ora, Helena Ferro de Gouveia trata de nos dizer que, em Portugal e no Ocidente democrático, a imprensa e a informação devem também estar condicionadas a uma narrativa – aliás, como já esteve durante a pandemia.

    E isso é dramático.

    Contudo, também muito mais facilmente resolúvel: basta demiti-la da administração de uma agência noticiosa pública, e deixá-la, enfim, manifestar as suas parvoíces antidemocráticas nos canais que lhe derem acolhimento.

    Se se fizer isso, pelo menos ficaremos um pouco mais afastados de termos sósias de Putin no mundo ocidental. O mundo não ficará perfeito, como nunca foi, mas um pouco menos imperfeito.

  • Ventos de mudança

    Ventos de mudança


    Acompanhar e perceber o confronto entre a Rússia e a Ucrânia é bem mais difícil do que esforço, a todos exigido, naqueles “anos felizes” em que éramos apenas especialistas em Saúde Pública.

    Agora estamos em modo Enciclopédia. Historiadores de manhã para entendermos o relato dos acordos de Lisboa (durante a crise da Bósnia), feitos pelo major-general Raul Cunha. Daí passamos logo a Especialistas Militares, porque descobrimos que major-general é um posto.

    À tarde ouvimos o Rogeiro e ficamos com Phd em Logística de Combate.

    Segue-se o Monjardino com quatro hipóteses futuras para as opções de Putin no Kremlin. Concluímos a tese de mestrado em Ciência Política.

    Chega então o Zé Gomes da SIC, e dá-nos uma esfrega com as sanções e a “bomba nuclear” do Swift. É a pós-graduação em Economia.

    Quando chega a hora de dormir, já nem a tabuada se consegue processar. Nestas intermináveis horas de directos, com muitas repetições, e por vezes perguntas idiotas, tenho visto também bom serviço (público e não só), excelentes comentadores que trazem alguma luz à contra-informação, e repórteres no local que acrescentam algo à informação.

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    Pedro Mourinho, agora com matéria, tem sido um exemplo de sobriedade e tranquilidade na transmissão de informação. Já José Rodrigues dos Santos pula de angústia, em exclamações de excitação, como se estivesse em trabalho de prospecção para o próximo livro sobre campos de concentração.

    Algo parece ter mudado nas últimas 48 horas. Pensava-se que a capital cairia anteontem noite, mas a resistência ucraniana mostrou-se organizada. O presidente Zelinsky, que incentivou civis a pegarem em armas e cocktails molotov, parece ter ganhado uma nova aura de líder, depois de ter recusado as ofertas de exílio oferecidas pelos Estados Unidos e Letónia. Disse que não queria boleia, mas sim armas.

    Zelinsky anunciou que a Turquia iria bloquear o acesso ao Mar Negro, o que não se verificou, mas a Ucrânia conseguiu mobilizar a atenção mundial e cocar Putin como um pária. O líder russo já quer terminar as invasões, que não estão a ser um passeio para as suas tropas, e quer encetar negociações. Putin mostra que não quer uma guerra longa, mas tal pode não suceder. Alemanha enviou mais armas para ajudar a resistência ucraniana, tal como os Estados Unidos.

    Contudo, por agora são apenas sanções contra os russos, e armas para a Ucrânia resistir. Os ucranianos, na verdade, continuam sozinhos, mas parecem manter a fé. Resta saber até quando vão aguentar. Suecos e finlandeses entram agora no radar e começam também a enviar dinheiro para o combate à Rússia. A Bielorrússia cedeu o seu território sem pensar que, no futuro, podem eles ser a próxima Ucrânia.

    Que amanhecer teremos daqui a umas horas?

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Difícil é mobilizar portugueses para salvar Portugal

    Difícil é mobilizar portugueses para salvar Portugal


    Não pode ninguém decente com o mínimo espírito humanista e civilizacional aceitar as atrocidades perpetradas pelas tropas russas a mando de Vladimir Putin nem tão-pouco considerar que estas se devem, em exclusivo, às suas paranoias, à sua maldade e aos seus sonhos de czarismo.

    O Mundo, e as suas guerras, nunca foram coisas simples nem fáceis de explicar, nem de entender. E quem conheça um pouco de História saberá, ainda mais no Leste da Europa, que batalhas sanguinárias se fizeram por aspectos bem mais comezinhos do que certo país não apreciar que um seu vizinho, ainda mais “irmão”, ande em namoros com quem não aprecie, neste caso os países da NATO. Foi por razões de fé (religião), por disputas de famílias, por traição, por desaforo, por dinheiro, por coisas mundanas e do Mundo, humanas.

    people gathering on street during daytime

    Aliás, convém recordar que se Olivença se perdeu para Espanha – ainda hoje não oficialmente reconhecido por Portugal – foi por razões de alianças: o nosso país recusou aceitar em 1801 aliar-se à Espanha e França contra a Inglaterra, nosso parceiro histórico. A Guerra das Laranjas seria mesmo o prenúncio das invasões napoleónicas anos mais tarde.

    Em todo o caso, não pretendo aqui, e agora, tecer grandes considerações sobre a génese e as razões e desrazões do conflito russo-ucraniano, excepto considerar que a única solução, para evitar um banho de sangue ou um recrudescimento para um nível de guerra mundial, seja a via negocial.

    Por muito que nos custe, nas actuais circunstâncias – e isso já sucedeu milhentas vezes –, a via militar maciça para fazer recuar a Rússia de Putin parece a pior solução, mesmo sendo aquela que nos mais reconfortaria a consciência e o coração.

    person raishing his hand

    De igual modo, as sanções prometidas e em execução – desde censurar pessoas da Cultura pelo “crime” de serem próximas de Putin até “expulsão da Rússia do sistema bancário internacional SWIFT (que afectaria tanto aqueles países como todos os negócios do “lado bom” –, não parecem ser instrumentos muito eficazes para uma solução pacífica.

    Derrotar Putin agora é virtualmente impossível; e a prazo apenas através de uma guerra fraticida; e não é isso que ninguém deseja (e se for não está do “lado bom”). Por isso, a solução é fazê-lo sair com uma aparente vitória.

    Mas, perguntam, quem sou eu, no meio deste enorme conflito internacional, para tecer estas considerações?

    Ninguém.

    E é exactamente por isso que escrevo este texto. Num conflito desta natureza, mesmo em países ditos democráticos, valemos cada vez menos – e muito por nossa culpa -, até porque, nos últmos tempos, deixámos que os movimentos sociais e a contestação pública fossem ostracizados e maltratados.

    Veja-se, aliás, como foram tratadas pela imprensa mainstream as contestações públicas à gestão da pandemia, entre o menosprezo e a colocação de rótulos, completamente descabidos, como sucedeu recentemente no Canadá.

    Por isso, olho agora para os apelos nos jornais e nas redes sociais, e pasmo com as campanhas de mobilização dos portugueses para a crise na Ucrânia.

    Por exemplo, o Expresso e o Público fazem eco dos movimentos ucranianos, e colocam mesmo ligações para donativos. Alguns desses financiamentos aparentam servir para a compra de armamento, e não propriamente para acções humanitárias. E pasmo. É esta a função da imprensa portuguesa?

    O politólogo Nuno Rogeiro faz um apelo para um “cordão humano pela Paz na Ucrânia”, insistindo para que “não fiques em casa a ver a guerra na TV; intervém, vem para a rua pela PAZ”. E eu pergunto: é essa a função de um comentador português de política?

    A Juventude Socialista (JS), a Juventude Social Democrata (JSD), a Juventude Popular (JP), o Livre, a Iniciativa Popular e o Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) juntam-se para organizar amanhã uma manifestação pela paz e contra a invasão da Ucrânia em frente à embaixada da Rússia. E eu pergunto: é esta a função das juventudes partidárias e dos partidos políticos?

    E eu respondo, já: é (com excepção de apelos para armamento da “resistência” ucraniana).

    grayscale photo of man and woman holding hands

    Também é.

    Porém, lamento que esta capacidade de mobilização, este direito à indignação, esta demonstração colectiva de repúdio seja “apenas” para este tipo de causas. Para as causas boas, para as causas politicamente consideradas boas; contudo, boas sobretudo para as consciências, mas irrelevantes, hélas, para o desenrolar do conflito russo-ucraniano.

    Não é no “tabuleiro das ruas” de Lisboa ou de qualquer outro lugar do mundo ocidental que se encontrará uma solução.

    De facto, esta mobilização pela Ucrânia faz-me também olhar para o nosso país. Infelizmente, não se vê, em Portugal, este tipo de atitude activa e proactiva, militante mesmo, para outras necessidades domésticas : para uma Justiça melhor; para uma Educação melhor; para um Serviço Nacional de Saúde melhor; para uma Economia mais justa; para um investimento sério na investigação e uma maior penalização da corrupção; para uma gestão política mais equitativa e justa; para uma maior participação pública nas estratégias de investimento; para um país que adopte políticas não discriminatórias; para um melhor país.

    Para isso, não vejo jornais mobilizados, comentadores mobilizados, partidos e suas juventudes mobilizadas, pessoas mobilizadas para um “cordão humano”.

    E, contudo, ao invés daquilo que sucederá com tudo aquilo que os portugueses fizerem e disserem sobre a Ucrânia – incluindo o português António Guterres na ineficaz Organização das Nações Unidas –, porque no xadrez político tudo isto será irrelevante, se tivéssemos em Portugal metade da ora mobilização, porventura teríamos uma melhor democracia, vidas mais felizes, umas quantas salvas, por certo.

    Mas isso parece ser irrelevante. Por norma, preferimos lutas para descansar consciências – porque estamos afastados dos problemas – às lutas pelos nossos verdadeiros direitos, porque nessas lutas os “inimigos” estão próximos, e podem ficar chateados connosco.

    É muito mais fácil mobilizarmos portugueses para salvar a Ucrânia do que para salvar Portugal.

  • Os sonhos do czar Putin

    Os sonhos do czar Putin


    Não é muito fácil imaginar o que passará pela cabeça de Putin neste momento. Mais difícil ainda é perceber que acesso de loucura imperialista o levou a meter-se num buraco de onde dificilmente sairá vencedor. Depois de semanas de incentivo americano, especulação em algumas televisões e promessas de guerra com hora marcada, a Rússia lançou de facto uma ofensiva em todo o território ucraniano. A partir deste momento o regime de Putin deixou de ter qualquer poder de argumentação para o que se seguirá.

    Numa situação extremamente complexa, como a que se vive neste conflito, acho confrangedora a simplista análise do Bem contra o Mal, e a escolha de lados.

    man holding sword and shield statue

    Mariana Mortágua fez, até ao momento, o julgamento que me parece mais lógico, e com o qual concordo. Putin é um oligarca de extrema-direita, sem qualquer apreço pela democracia e com sonhos imperialistas, como mostram as anexações na Geórgia, Crimeia e, desde 2014, Donbass.

    Mas a história não começa aqui. Independentemente da loucura atribuída a Putin, não se pode contar esta história sem pensarmos na expansão da NATO para os países da antiga Cortina de Ferro, nos repetidos ataques de pelotões de neonazis à população russa no leste ucraniano, dos bombardeamentos da NATO na Sérvia, da invasão da Líbia e do Iraque, dos interesses americanos no conflito, seja pelo armamento ou pelos acordos energéticos.

    Putin poderia até querer equilibrar a balança de poder, e trazer a Rússia para o confronto com os Estados Unidos, ao mesmo tempo que colocaria um tampão à expansão da NATO. Era uma posição, ainda assim discutível. Uma versão russa do Kosovo, quiçá.

    Contudo, assim que as tropas russas lançam ataques em todo o território ucraniano, cai por terra a defesa dos separatistas de leste.

    Fica visível que o discurso sobre a Ucrânia, onde Putin considerou que aquele território nem um país deveria ser, não era um bluff.

    E é aqui que as dúvidas se multiplicam. O que esperará Putin obter de tudo isto?

    A narrativa oficial é de que a Rússia não quer controlar a Ucrânia, mas sim retirar-lhe qualquer poder militar. Pergunto: porquê? Para defender uma região separatista de leste? Não bastava para isso estacionar tropas como fizeram na Crimeia? Alguém comprará a narrativa oficial?

    Mesmo que a Rússia consiga vergar a Ucrânia, e trocar o governo pró-europeu por um pró-russo, que mais valia tirarão daí para além do acesso às riquezas do subsolo?

    No outro lado da balança estará o despertar do fantasma russo na União Europeia. Os Estados Unidos atiram-se ao fornecimento de gás, a Europa certamente começará a pensar em sanções económicas, e mais defesas militares contra a Rússia. É este o preço que Putin quer pagar? O de ter como inimigos praticamente todos os parceiros comerciais do continente? Ainda por cima quando a NATO nem sequer queria admitir a Ucrânia como membro.

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    Putin fez tudo o que o governo americano poderia desejar, e é isso que, decididamente, não consigo compreender.

    Numa das declarações à televisão russa, Putin avisou ainda que, para além da invasão nos seus termos, não quer qualquer interferência no terreno de outros países, porque, se for esse caso, também esses países serão visados pelo exército russo.

    Há quem diga que desde 1989, quando em Berlim assistiu encurralado à queda do muro, que os sonhos de grandeza e de recuperação do império habitam a mente deste ex-KGB. Será este o seu momento?
    A NATO informou que não terá qualquer intervenção, e sabemos que tropas estrangeiras, entre elas portuguesas, estarão nas fronteiras apenas para controlar refugiados. Ainda assim, por quanto tempo ficarão os ucranianos entregues à sua sorte? Poderá o conflito ficar resolvido sem ultrapassar as fronteiras da União Europeia?

    Imagino que as conversas da III Guerra Mundial comecem agora a tomar forma.

    O rublo está em queda e o preço do gás e do crude começam a subir, afectando a vida de todos no continente europeu. A União Europeia vai ter que acelerar a transição energética e, com isso, reduzir a dependência da Rússia. Não há nada neste quadro que possa beneficiar a Rússia, seja qual for o desfecho da guerra.

    Entendo que um homem como Putin, que entre manobras internas com Medvedev ou a alteração da Constituição, se consegue manter no poder há duas décadas, queira deixar uma marca na História do país. Pergunto-me é se terá feito as contas todas antes de ultrapassar as fronteiras de Donbass.

    people gathering on street during nighttime

    Por fim uma nota interna para quem, a partir de Lisboa, vê este conflito. Putin não é um político de esquerda. Putin não é comunista. Putin nem sequer vê com agrado as ideias de Lenine ou uma sociedade socialista. Putin é um capitalista corrupto à frente de um império que defende os seus interesses económicos. Tal como os que estão do outro lado do Atlântico.

    Portanto, por favor, Partido Comunista Português, organização fundamental na luta contra a ditadura e defesa dos trabalhadores, não confundam a obra-prima do mestre com a prima do mestre de obra. Uma coisa é a política expansionista da NATO, orquestrada pelos Estados Unidos, que está na origem do conflito – e sim, deve ser criticada. Outra, é fechar os olhos a um louco de extrema-direita, só porque dirige um país que já foi palco de revoluções de trabalhadores e de ideais de Lenine.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O tempo das sanções

    O tempo das sanções


    As declarações de Putin, reconhecendo a independência dos territórios no leste da Ucrânia, geraram uma multiplicação de reuniões e respectivas reacções dos decisores políticos.

    Nas Nações Unidas, o representante ucraniano disse que não dariam nada a ninguém. O russo avisou o Ocidente para uma reflexão antes de começarem com sanções, que é como quem diz, depois não digam que não avisei.

    Os Estados Unidos avisaram que as tropas russas, ao contrário do afirmado por Putin, não são forças de paz, mas sim invasores.

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    As Nações Unidas, aqui que ninguém nos ouve, servem para muito pouco.

    Basta ver que há mais de 50 anos, por voto favorável de apenas dois países, contra os restantes cento e tal, o embargo a Cuba não é levantado.

    O Reino Unido também mostra as garras, e o good old Boris lançou já uma série de sanções a cinco bancos e três milionários russos. Felizmente Abramovich pediu passaporte português aqui há uns tempos, senão, digo eu, lá iria a Premier League ao fundo. É que é importante fazer muito alarido, dar a sensação que se está a mudar algo, mas, no essencial, deixar tudo na mesma enquanto os impérios se entendem.

    A União Europeia também impôs sanções, nomeadamente ao Nord Stream 2 – o famoso abastecimento de gás, que resulta numa grande fonte de rendimento para Moscovo. E já agora, que fornece uns bons banhos quentes na Finlândia, Bulgária, Eslováquia, Alemanha, Itália, Polónia e França, sem passar pela Ucrânia.

    Joe Biden não quer o Nord Stream 2 a funcionar, pois acabará por amarrar os alemães, e, já se sabe, sem os alemães a Europa não decide seja o que for.

    Aliás, a União Europeia dá, neste momento, uma imagem de fraqueza confrangedora nesta luta de interesses entre russos e americanos, via NATO. Polónia e Ucrânia dificultam sempre que lhes interessa a passagem de gás russo para a Europa. É por estes territórios que é hoje feito o abastecimento. A Ucrânia, mais concretamente, até já bloqueou a passagem prejudicando países da União Europeia.

    Contudo, neste momento de aflição, exigem que a União Europeia boicote um abastecimento de gás que não dependeria dos interesses ucranianos… é, no mínimo, curioso.

    Mas como é essa a vontade dos Estados Unidos, via NATO, a União Europeia faz.

    Os cidadãos europeus que lidem com o que aí vier. Depois do gás, veremos o aumento do preço do petróleo, também fornecido pela Rússia a alguns países da União Europeia.

    Somos uns meros peões neste tabuleiro de reis e rainhas.

    white concrete building during night time

    Portugal, na voz do nosso Marcelo, já repudiou veemente as acções russas. Julgo que terá sido a gota de água para Putin. Uma coisa é receber uns milionários recambiados de Londres, ou ter que fechar a torneira do gás. Outra é o repúdio do Marcelo. Um homem não é de ferro.

    Putin fez, durante uma hora, um discurso inenarrável, que, entre outras coisas, afirmou que os ucranianos não se conseguiam governar sem ajuda externa. Ou seja, estão mesmo a pedir uma anexação para se organizarem. Já os Estados Unidos vêm com bons olhos o aumento do preço dos combustíveis na Europa, mais dificuldades para as populações e a abertura de uma linha de crédito para continuarem a armar os ucranianos.

    Portanto, pergunto-me se, nesta disputa de interesses entre duas potências, com a China a observar, há ainda alguém que acredite num confronto entre o Bem e o Mal.

    Não. Nada disso. Há negócio e interesses. Os ucranianos podem esperar.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dos ataques à liberdade de imprensa: o caso da Ordem dos Médicos vs. Página Um (e a sua investigação às farmacêuticas e à pandemia)

    Dos ataques à liberdade de imprensa: o caso da Ordem dos Médicos vs. Página Um (e a sua investigação às farmacêuticas e à pandemia)


    Por indicação da Ordem dos Médicos – e à laia de argumento por uma queixa minha à Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA) pela recusa daquela associação profissional de direito público em ceder acesso aos documentos sobre um donativo da Merck no valor de 380.000 euros –, uma sociedade de advogados, com procuração do bastonário Miguel Guimarães, lançou-me um ataque pessoal ao longo de sete páginas. Tive apenas hoje acesso integral a este ofício, porquanto antes somente surgiam pequenos extractos num parecer da CADA que me foi favorável.

    O ofício integral escrito em nome da Ordem dos Médicos pode ser consultado AQUI.

    Poderia isto ser visto apenas como um ataque pessoal, mas dá-se o caso de eu ser jornalista e de esse ataque pessoal ser feito em consequência, e apenas por causa, de actos no exercício da actividade de um jornalista: solicitação de acesso a documentos públicos a uma associação de direito público, pedido de informação e escrita de trabalhos informativos.

    Há sempre formas para “justificar” estas atitudes da Ordem dos Médicos, incluindo que eu sou um “ista” daquilo ou daqueloutro, mesmo não sendo verdade, mas procurando que os outros pensem que seja. Temos visto isso mesmo, nos últimos dois anos, e mesmo no meio jornalístico.

    Ora, para mim, queira-se ver isto da perspectiva que se queira, é pura tentativa de silenciamento, intolerável numa democracia, da Liberdade de Imprensa. Estamos perante um ataque à liberdade de expressão, estamos perante uma soez ofensiva aos direitos a uma imprensa independente, consagrada na Constituição da República.

    Não é pouco, sendo feita por uma ordem profissional representativa de uma classe prestigiada como são os médicos; e executada por advogados.

    Primeira página do ofício em nome da Ordem dos Médicos enviado à CADA (ver aqui o texto integral)

    No ofício desta sociedade – A. de Freitas Gomes e Inês Folhadela Sociedade de Advogados R. L. – enviado à CADA, além da acusação de eu estar, “desde há vários meses”, a “adotar um comportamento suscetível de integrar a prática de crimes para com a Ordem dos Médicos, o Bastonário Dr. Miguel Guimarães e alguns dos Médicos seus membros” – mas não identificando as normas do Código Penal que estarei a violar –, o advogado signatário (de assinatura ilegível) insinua sistematicamente de eu estar a agir com interesses inconfessáveis, e mesmo de pretender “instrumentalizar a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos para atingir os [meus] objectivos”.

    E insinua também sistematicamente de eu mentir e de usurpar funções de jornalista, solicitando mesmo que a CADA “se digne oficiar a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista para informar a partir de que data, no presente ano [2021], o Sr. Pedro Almeida Vieira ‘recuperou’ a sua carteira profissional de jornalista”.

    Além disso, fazendo sistematicamente alusões desrespeitosas às minhas legítimas pressões num Estado de Direito e democrático para obtenção de documentos de carácter público – que a Ordem dos Médicos continua sem facultar, mesmo após parecer favorável da CADA às minhas pretensões –, a dita sociedade de advogados a mando da Ordem dos Médicos requereu também à CADA que considerasse “abusivos os pedidos formulados pelo Sr. Pedro Almeida Vieira”.

    Ou seja, a Ordem dos Médicos pretendeu que eu, como cidadão e jornalista, e por decisão da CADA, ficasse excluído de exercer direitos como jornalista e como cidadão, de poder solicitar informação e documentos à Ordem presidida pelo Sr. Miguel Guimarães.

    O ofício da sociedade de advogados a mando da Ordem dos Médicos também expõe os apelos que fui fazendo, nas redes sociais, ao apoio financeiro necessário à criação e consolidação do PÁGINA UM, numa lamentável tentativa de depreciar o meu trabalho e de menorizar a minha independência e rigor.

    Não tenho muitos comentários a fazer nesta matéria, mas não posso deixar de fazer duas breves considerações.

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    Primeiro: pessoalmente, já recebi telefonemas de empresas de marketing a trabalhar para jornais nacionais (e.g., Público e Expresso), tentando convencer-me a fazer uma assinatura ou a renovar assinaturas outrora por mim anuladas, e considero isso legítimo; e, neste contexto, não tenho memória da Ordem dos Médicos andar a criticar estratégias de comunicação, nem me parece que, entre as suas competências, ou atributos do Sr. Miguel Guimarães, se incluam a análise de estratégias comerciais de entidades, como o PÁGINA UM, registadas na Entidade Reguladora da Comunicação Social. Sempre poderei acrescentar que o PÁGINA UM opta por fazer apelos ao apoio financeiro dos leitores para, desse modo, não ter de recorrer a publicidade institucional ou privada, por considerar que poderiam condicionar a acção. São opções legítimas.

    Segundo: faço notar que a Ordem dos Médicos, sendo uma associação profissional, está porém isenta de pedir apoios, de forma pública ou privadas, aos seus sócios para funcionar, porquanto, por imperativos legais, os seus sócios apenas podem exercer a profissão de médico se pagarem as devidas quotas.

    Este ofício em nome da Ordem dos Médicos , e no decurso de uma investigação jornalística, constitui mais uma prova de uma degradação do sistema democrático em Portugal, de uma inusitada mudança no paradigma das relações entre as instituições e a imprensa independente – que nunca foi popular, quando se pretende exercer um “jornalismo incómodo, irritante para os poderes, denunciador de injustiças, comprometido apenas com a verdade” (palavas minhas, destacadas pela sociedade de advogados a mando da Ordem dos Médicos como se fosse um “crime”).

    Antes, as pressões existiam, mas eram mais discretas e mantinham-se as relações cordiais. As instituições compreendiam o papel incómodo, mas essencial, do jornalismo. Agora, pessoas como o Sr. Miguel Guimarães não apenas não gostam de uma imprensa livre e de jornalistas independentes como mostram as pressões de forma clara, impetuosa, agressiva, ameaçadora, numa evidente tentativa de limitar e condicionar direitos da imprensa.

    Querem calar-me e não escondem já as suas intenções.

    Veja-se: perante um mero pedido de consulta de documentos administrativos à Ordem dos Médicos sobre um inédito donativo de 380.000 euros de uma farmacêutica para uma campanha que angariou 1,4 milhões de euros, e da qual não se conhecem documentos da sua gestão, aquilo que a sociedade de advogados diz à CADA é que o “Sr. Pedro Almeida Vieira age deliberadamente contra a Ordem dos Médicos, o Bastonário, alguns Médicos, e agora também, o Chefe de Gabinete, o que justifica que, quer a Ordem dos Médicos, quer todas as demais pessoas, não tenham que continuar a sujeitar-se a serem espezinhadas ou vilipendiadas na página do Facebook do Sr. Pedro Almeida Vieira que, quanto mais não seja, sempre poderia obstar a que comentários ofensivos do bom nome, honra e reputação das pessoas, fossem objeto das afirmações que lhes são dirigidas”.

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    Faço, entretanto, notar que, como se pode confirmar AQUI (printscreen da extranet da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista), a minha carteira profissional foi revalidada com efeitos a partir de 16 de Setembro de 2021. Nunca antes dessa data, e posteriormente a 28 de Abril de 2011, quando solicitei suspensão temporária da actividade (que nem sequer seria necessário, porque tinha mais de 10 anos de profissão de jornalista, podendo assim mantê-la para todos os efeitos), fiz uso desse título em qualquer contacto pessoal ou institucional. Comecei a minha actividade jornalística em 1995, e tenho carteira profissional desde 1996, e tenho mais de 15 anos de profissão, conforme pode ser confirmado AQUI.

    Por todos estes motivos, e por ser orquestrado por uma instituição como a Ordem dos Médicos, e por ser executada por advogados – que têm o dever de conhecer e reconhecer leis e direitos constitucionais, e devem assumir que não vale tudo para defender os seus clientes –, enderecei uma participação à Ordem dos Advogados para as diligências consideradas pertinentes.

    Enderecei também uma carta à Entidade Reguladora para a Comunicação Social, à Provedoria da Justiça, à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e ao Sindicato dos Jornalistas para as diligências que considerarem pertinentes.

    E faço, obviamente, esta publicação. E esta denúncia