Categoria: Opinião

  • Narrativa extremista: terrorismo, pandemia e guerra

    Narrativa extremista: terrorismo, pandemia e guerra


    Recentemente, um Inspector-Chefe disse-nos, numa discussão sobre lidar com autores/criminosos, mesmo que de crimes hediondos de homicídio ou crimes sexuais, que “não podemos ser iguais a eles, temos que ser melhores.”

    Pensamos que isto é verdade, em especial a nível institucional, quando se aborda questões de índole societária, como se pretende neste texto. Esta ideia é fundamental: o Estado/Sociedade não pode agir como um cidadão particular, sujeito às emoções, preconceitos e vicissitudes inerentes à condição humana.

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    Deve, rectius, tem de ser melhor, almejar o bem-comum, com credibilidade, para que o exercício da potestas seja uma manifestação da auctorictas, teleologicamente aceite, porque compreendida.

    Ora, esta compreensão, é aquilo a que nos propomos, nestas linhas. Deste modo, a forma como se comunica, quando se pretende transmitir uma ideia (v. g. uma justificação para uma acção estatal, como seja restrições de direitos e liberdades fundamentais, ou uma acção ofensiva contra actor de nível estatal), em particular se o objectivo é convencer uma determinada audiência (como uma população/opinião pública), é mais eficazmente veiculada através de uma história, de uma narrativa, o que tem explicação nos processos neuropsicológicos de processamento de informação (vide o brilhante livro do investigador Angus Fletcher, ‘Wonderworks’).

    Isto porque os “Porquês” importam, não só os “Como, Quando, Onde e Quem”, como nos ensinam os estudos dos fenomenologistas Boss ou Binswanger (como este último sintetizou, com rasgo, na ideia de “estrutura ontológica apriorística do significado”), sobre a apreensão da realidade e significados dos seus elementos constituintes.  

    Destarte, principiamos pelos modelos conceptuais explicativos dos processos de radicalização no extremismo violento, vertente específica na análise do fenómeno terrorista, que mais relevo tem para a presente discussão. Dos vários existentes, salientaremos dois que nos parecem não só mais claros como mais abrangentes e capazes de compreender as várias dimensões na lide: o “Staircase model”, de F. Moghaddam (The Staircase to Terrorism – A Psychological Exploration, 2005), e o “Process of Ideological Development”, de R. Borum (“Understanding the Terrorist Mindset”, 2003).

     O primeiro, define seis níveis que, como uma escada, um indivíduo “sobe” no decorrer do seu processo de radicalização, conforme melhor se ilustra na imagem infra.

    Destacam-se pela relevância, contudo, dois níveis, a saber o de base (“ground floor”), “Psychological Interpretation of Material Conditions”, onde a maioria das pessoas se encontra, e as considerações de injustiça percebida são determinantes, logo o nível mais importante onde as acções individuais e societárias de prevenção da radicalização se devem focar; e o último (“5th floor”), “The Terrorist Act and Sidestepping Inhibitory Mechanisms”.

    Este último remete-nos para a hierarquia de valores e os princípios de humanidade de cada indivíduo, e a justificação ou construção psicológica que permite a prática de acções limite contra outrém, com destaque para a demonização/desumanização do outro (o “inimigo”, assim feito não-humano).

    Isto é decorrente da visão dicotómica do mundo e/ou realidade (e/ou mesmo duma visão e terminologia militaristas), ou para a intervenção do supernatural, seja pelo sancionamento divino ou pelo aniquilar do mal, o que por sua vez se encontra associado à elevação da vingança e/ou da violência a virtudes.

    De uma forma mais simples, mas não simplista, a concepção de Borum acentua a centralidade dos conceitos de Justiça e justeza, demonstrando de uma forma até intuitiva o quão importantes as percepções de Injustiça para o processo de radicalização, e como uma, ou melhor, como a narrativa extremista “ajuda” a racionalizar um esquema mental apto a explicar logicamente uma história de vitimização, demonização e justificação, não obstante os sempre existentes factos ou eventos que originam, ou permitem o início, do processo de radicalização (Wiktorowicz falava no conceito de “abertura cognitiva” – no seu ‘Radical Islam Rising: muslim extremism in the west’, de 2005), ainda que normalmente acompanhados de falácias ou viés: “Not Right » Not Fair » Your Fault » You’re Evil”.”

    Destacaríamos, aqui, os momentos de “atribuição de culpa” e “generalização/estereotipização”, que facilmente deixam antever algumas falácias-tipo (como teorizado, contemporaneamente, por Daniel Köhler, no seu “Understanding deradicalization. Methods, tools and programs for countering violent extremism”, de 2016), como por exemplo: falácia de confirmação (procurar comprovação para argumento próprio, ignorando contradições), realismo ingénuo (o mundo é tal e qual o vejo), falácia do ângulo morto (só a visão dos outros é que é enviesada), ou efeito do falso consenso (os outros partilham a minha perspectiva), este último muito ligado ao ‘efeito de eco’ no âmbito ciber e das redes sociais. 

    O acima exposto foi-nos possível verificar, por diversas vezes, em sede de investigações de terrorismo e terrorismo internacional, em particular as atinentes às vertentes de (des)radicalização e Foreign Terrorist Fighters (FTF). Com algum pesar, identificamos, às vezes sem esperar, elementos da retórica ou narrativa do extremismo violento na comunicação pública, seja institucional, de comentário e dos meios de comunicação social (aqui referimo-nos aos Main Stream Media – MSM).

    Este iter comunicacional é muitas vezes acompanhado de uma doutrina de pensamento único, o certo, o “nosso”, o lado “bom”, traduzido no conceito do ‘politicamente correcto’, o qual mais não é do que uma limitação encapotada (a coberto de aparentes sentimentos nobres ou virtudes) do direito fundamental da Liberdade de Expressão.

    Algo que, por sua vez, socio-politicamente, se manifesta em movimentos e/ou eventos, ainda que com uma lógica ou incidente de base eventualmente válidos, que, distorcendo ou reorganizando a realidade dos factos (com recurso àquelas falácias), desvirtuam os próprios princípios que alegam sustentar a sua actuação. Exemplos disso são a ’Black Lives Matter’, o ‘Woke movement’ ou a (consequente) ‘Cancel Culture’.

    Adicionaríamos, aqui, o actualíssimo ‘lugar de fala’, um pouco associado aos movimentos de minorias ou LGBTQ, em que quem não partilha da experiência concreta não teria “direito” a ter, e a expressar, uma opinião sobre um determinado assunto, numa negação intelectual… do intelecto dos outros, erga omnes.

    Obviamente, tudo isto se interliga numa questão superior, que é a da utilização de política identitária (“Identity Politics”), temática que, pela sua extensão, não iremos aqui abordar.

    Evidentemente que o problema principal se centrará na comunicação institucional, enquanto emanação da vontade e actuação da sociedade, a qual se desejará, espera-se, melhor e não sujeita aos defeitos e emoções inerentes à condição humana individual.

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    Como tivemos oportunidade de escrever anteriormente, “[é] absolutamente relevante que a comunicação institucional se efectue projectando valores da seriedade, tolerância, legitimidade e proporcionalidade das acções tomadas, mas sempre no quadro de equilíbrio e justiça, para que a legitimidade de actuação com base numa auctoritas, mormente jurídica, permita o exercício da potestas. (…)”.

    Como se compreende a acção internacional de alguns países, com direito de veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas, à revelia das normas de Direito Internacional, como os Estados Unidos no Iraque em 2003 ou a Rússia na Crimeia em 2014?

    Se tais situações fossem expurgadas do quotidiano, eliminando causas de descontentamento e injustiça, adquirir-se-ia mais legitimidade no exercício político, o que levaria ao alcance de mais bem comum, percepcionado como uma maior realização do pacto social, o que redundaria em coesão social e política, aumentando o vínculo societário, fosse através da identificação com a nação, ou apenas do vínculo jurídico da cidadania, ultrapassando eventuais questões multiculturais, e reduzindo, consequentemente, a exposição a retóricas de extremismo violento.” (Contra-Terrorismo: Tópicos Essenciais e a Unidade CT “ideal” – 2021).

    Ora, estas características discursivas ou comunicacionais foram, ou são, passíveis de serem identificadas paradigmaticamente em dois contextos recentes e relevantes: a Pandemia da doença Covid-19 e a Guerra na Ucrânia por invasão russa.

    Quanto à Pandemia, desde logo identificamos aquela visão dicotómica da realidade, numa conjugação das falácias do realismo ingénuo e do ângulo morto, e da do falso consenso com a doutrina do pensamento único, em que toda e qualquer opinião que não se manifeste em absoluta concordância com a “tese vigente” é não só descartada, e acriticamente etiquetada como “negacionismo”, toda a opinião “metida no mesmo saco”, como, pior, não tem sequer espaço para ser apresentada, discutida, analisada, e, potencialmente, compreendida, assim alimentando-se o ciclo de pensamento unívoco, o qual não oferece possibilidades de descoberta ou evolução no conhecimento.

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    Exemplos disto são, desde logo, o artigo de opinião do médico anestesiologista Pedro Girão no Público, que, em Agosto de 2021, foi retirado da plataforma online daquele jornal, depois de 24 horas.

    No termo do próprio periódico, a “despublicação” do texto deste médico deveu-se a uma falha editorial na análise, que precedeu a publicação, ao seu conteúdo, à opinião nele vertida (contra) sobre a vacinação dos adolescentes, contrário à interpretação dominante e defendida (como se veio a verificar) institucionalmente, nomeadamente pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), num acto efectivo de censura, condicionando o acesso livre a opiniões distintas.

    Existem poucos direitos fundamentais tão importantes quanto a Liberdade de Expressão, o qual alcança um impacto societário assinalável, por isso meritório de protecção. Outro exemplo em que esta visão redutora do mundo a apenas dois actores, o “nós” e o “eles” (dicotomia militarista por excelência), é não só exibida como assumida, são as declarações do Vice-Almirante (agora Almirante) Gouveia e Melo, este já um discurso institucional pelo cargo desempenhado, nas quais afirma, na ‘Web Summit’, que usou “… uma retórica de guerra em que o vírus era o inimigo, em que ou a pessoa estava connosco ou com o vírus. Penso que este plano de comunicação foi importante para as pessoas perceberem que não podiam ficar em casa sem vacinação.

    Portanto, não sendo censura propriamente dita, mas uma quase exigência de acatamento sem crítica, sem questionar, como se de uma ordem (militar) se tratasse, em que a conclusão de actuação diversa era estarmos “ao lado do inimigo”, com todas as consequências associadas (a palavra “traidor” vem à mente).

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    Um último exemplo, aqui, será a da opinião do médico intensivista Gustavo Carona, o qual, em artigo publicado no jornal Público a 14/12/2021, escreveu que “(…) a única forma de não tornar a pandemia uma arma de arremesso político é compreender que o negacionismo/relativismo/obscurantismo é um cancro que mata, e que em matéria de ciência não há vergonha nenhuma em ser um “aceitacionista acéfalo” e acreditar na seriedade e competência das autoridades de que vamos precisar, (…) porque é isso que a comunidade científica nos está a dizer, para melhor nos protegermos da Ómicron.”.

    Só para deixar claro, um médico sustenta que em matéria de ciência se deveria ser “aceitacionista acéfalo” e acreditar na seriedade e competência das autoridades… Não nos lembramos, no método científico, quer nas variantes dedutiva, indutiva, ou outras, da fase ou etapa metodológica de “acreditar”.  

    Também a Guerra na Ucrânia, invadida pela Rússia (poderíamos abordar outros conflitos armados/invasões hodiernos, como sejam o Tibete, ocupado pela China desde 1950, a expansão anual dos colonatos israelitas na Palestina, ou a Síria, ainda hoje invadida e ilegalmente ocupada, pelo menos, por turcos e israelitas – isto se quisermos abordar o assunto da(s) Soberania(s) de um ponto de vista intelectualmente honesto, conforme Jean Bodin teorizou o conceito), é terreno fértil para a manifestação dos fenómenos ora em análise.

    Não sendo necessário afirmar a absoluta objecção a qualquer tipo de guerra e oposição a qualquer actividade com custo de vidas humanas, e sem nos delongarmos em demasia, salientaremos alguns aspectos que julgamos fundamentais.

    Em primeiro lugar, o assumir enquanto dogma, que a acção do Presidente Putin corresponde ao “delírio de um louco” (como verificamos mais do que um comentador afirmar), novamente, desumanizando-o, tornando-o no “inimigo” de todos os “sãos”, reduzindo-o a algo incompreensível, ao invés de se tentar compreender todos os factores, estratégias e contextos que terão levado a esta tomada de acção.

    Mendes Corrêa constatou algo similar quanto ao estudo de delinquentes, em que na altura, as pessoas normais, sãs, eram as menos estudadas, mas a maioria das que cometiam crimes, uma vez que existia um preconceito ao se pressupor que o comportamento desviante na prática de crime deveria ter na base um problema mental. Compreensão esta que não implica, obviamente, defender como legal ou admissível a invasão de um país, seja a Ucrânia, o Iraque ou qualquer outro.

    De resto, subscrevemos a análise do Professor J. Mearsheimer, da Universidade de Chicago, o qual em Junho de 2015 deu uma palestra com o título “The Causes and Consequences of the Ukraine Crisis”, o qual atribui a corrente situação geopolítica à acção dos poderes políticos do Ocidente, numa lógica de “balance of power politics”, o que não invalida que reconheçamos o autoritarismo patente na Rússia de hoje.

    No mesmo sentido, o Major-General Raúl Cunha, comandante de forças NATO na antiga Jugoslávia, em declarações ao jornal online ‘setenta e quatro’ (publicado a 17/03), referiu que “Eu próprio me enganei, convenci-me que havia bom senso e que iam aceitar as linhas vermelhas de Putin. Oito anos de guerra no Donbass, 14 mil mortos, assinados os Acordos de Minsk com o testemunho do presidente da França, Holland, Merkel e Putin. Então? Cumpram os acordos que assinaram. (…) Putin avisou em 2007 sobre o que pensava, depois pediu, repetiu e pôs forças na fronteira, como quem diz: ‘Ou vocês fazem aquilo que ando há séculos a pedir ou ataco’.”, acrescentando ainda, a propósito da presença neonazi na Ucrânia, que “ao nível sobretudo das forças armadas e das forças de segurança estão infiltrados a todos os níveis, estão infiltrados ao nível do comando das forças armadas da Ucrânia, atenção. Um dos conselheiros do chefe de Estado-Maior General ucraniano foi o primeiro comandante do Batalhão Azov.” Isto apesar de ter consciência que, hoje em dia, “Esta malta gosta pouco de ouvir opiniões contrárias. Aqui é um bocado assim. O pensamento único está a imperar neste momento. É uma coisa assustadora.

    Este impingir de ideias, e manipulação de termos, sobre um determinado assunto, sem permitir outras diferentes (falácias do ângulo morto e da confirmação), apenas encontra paralelo no famoso ‘Luntz Document’ de 2009, um dicionário de linguagem com o objectivo de servir o “The Israel Project”, passando a mensagem através de “words that work”, como se pode ler no citado documento. Paradigmaticamente, nas próprias palavras do seu autor, Frank Luntz: “And remember, it’s not what you say that counts. It’s what people hear.”

    Por outro lado, de um ponto de vista mais imagético, a jornalista do órgão MSM CNN americano, Christiane Amanpour, no passado dia 28 de Fevereiro publicou uma foto sua, no seu perfil de Facebook, a propósito da cobertura jornalística dos esforços diplomáticos do presidente francês quanto ao conflito armado na Ucrânia, onde envergava um casaco camuflado. Nada de extraordinário, não fosse encontrar-se a fazer reportagem… em Paris, muito longe dos tiros e bombas do conflito.

    Perguntamos, senão alarmismo e condicionamento da opinião pública, que lógica ou intenção poderá estar na base da decisão de se apresentar desta forma perante as câmaras, sem necessidade real?

    Deverão os jornalistas, quando reportam sobre Saúde, envergar uma bata médica?

    Ou sobre Justiça, uma toga, quiçá uma beca?

    A militarização da sociedade (como são exemplos o caso de Gouveia e Melo na vacinação no âmbito da Pandemia, ou, mais recentemente, o do Brigadeiro General Paulo Viegas Nunes na presidência do SIRESP, empresa pública), em especial das suas “forças vivas”, inclusive uma denominada “4º Poder” como o é o jornalismo, não pode ser considerado como algo positivo, não onde o bom-senso impere.

    Por último, quanto a esta análise, causa-nos elevada estranheza as críticas efectuadas a quem procura analisar o que se passa na Guerra da Ucrânia com objectividade ou considerações diferentes das “aceites” na cartilha única que os MSM permitem.

    Falamos em concreto das objecções do “whataboutismo” e do princípio da autodeterminação dos povos, ainda decorrente da aplicação do Direito Internacional, por um lado, e, por outro, das objecções às críticas à Ucrânia (da sua actuação, pelo menos, desde 2014, concretamente do papel que a extrema-direita neonazi desempenhou e continua a desempenhar no país, os incidentes em Maio desse ano em Odessa, a perseguição e detenção de jornalistas sem julgamento, como o caso de Kirill Vyshinsky, o já afamado conflito no Donbass, ou a interferência de potências estrangeiras como os EUA).

    No primeiro aspecto, dá-se o caso de uma contradição evidente: se não se pode alegar outras situações idênticas ou similares, como o da Síria, Iraque (2003) ou Iémen, enquanto paralelos de análise e compreensão, uma vez que se trata “deste caso concreto, da invasão da Ucrânia pela Rússia de Putin”, segundo vemos/ lemos/ ouvimos sustentar, então não se pode, ao mesmo tempo, alegar o Direito internacional para alocar à Ucrânia o direito de integrar a União Europeia ou a NATO, em decorrência do princípio da autodeterminação dos povos e da sua Soberania.

    Ou se analisa o problema do ponto de vista do Direito internacional ou do ponto de vista da realpolitik (“balance of power politics”), ou no plano do ‘Dever-Ser’ ou do ‘Ser’.

    Se formos intelectualmente sérios, não se pode escolher consoante o argumento que nos dá mais jeito. Além do mais, quando os Estados Unidos, “líderes” do Ocidente, aplicam a Doutrina Monroe, como ficou patente com o caso de Cuba, na crise dos mísseis de 1962, que se tratou não só de uma manifestação explícita da visão da realpolitik, como a sua tese de base é a mesma que esteia, essencialmente, a actuação da Rússia neste cenário actual (como de resto aconteceu em 2008, com a invasão da Geórgia, após a declaração final da Cimeira de Bucareste desse ano, da NATO, em que se assumia, no ponto 23, a intenção de incorporar a Geórgia e a Ucrânia nesta aliança militar), desde logo só “permitida” pela viciação existente nas Nações Unidas, quanto aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança e o seu direito de “veto” – nr.º 3 do art. 27.º da Carta das Nações Unidas.

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    Quanto ao segundo aspecto, mais uma vez, não se pode silenciar ou “cancelar” quem tem uma opinião ou interpretação diferentes.

    Desde logo, apelidar três Generais, militares que comentam no espaço público, como “putinistas”, como o Expresso fez, dando eco a esta narrativa, é, no mínimo, tentativa de “assassínio de carácter”.

    Como o são as recentes noticias da Visão e Diário de Notícias sobre Alexandre Guerreiro, aliás com afirmações, depois verificadas, falsas. De resto, a interferência dos Estados Unidos (e, por inerência, da NATO) na Ucrânia está mais que demonstrada, não só agora pela “ajuda” militar, não só no passado com a conversa telefónica que caiu no domínio público entre Trump e Zelensky sobre os interesses de Joe Biden (o agora Presidente americano, note-se) e o seu filho, mas particularmente pelo recente reconhecimento da existência de laboratórios de investigação biológica naquele país por Victoria Nuland, sub-secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos.

    Não sendo, aliás, despicienda a ligação desta política ao aparelho de estado americano, porquanto é casada com Robert Kagan, conhecido neoconservador fundador do PNAC – Project for the New American Century – think tank cujo um dos esteios era a promoção da liderança americana e exportação dos valores da democracia liberal, isto é, a doutrina expansionista que tem guiado a política externa americana, e por inerência, a expansão da NATO, em particular em direcção à Europa de Leste). 

    A solução, já o escrevemos no passado, passa necessariamente pela Educação, por termos membros da sociedade mais capazes de compreender e criticar a realidade motu próprio, ainda que tenhamos consciência que é hipótese que demora 20 ou 30 anos a surtir efeito, pelo que ontem já era tarde para começar.

    Infelizmente, o sentido das recentes alterações legislativas das ‘Aprendizagens Essenciais’ (efectuadas, com pouca discussão no fórum público), com eliminação dos currículos escolares existentes até agora, vão no sentido oposto ao desejável. Como defendeu, em 1956, o filósofo judeu alemão Günther Anders, na sua obra ‘A obsolescência do homem’: “(…) O ideal seria formatar os indivíduos desde o nascimento limitando suas habilidades biológicas inatas… Em seguida, o acondicionamento continuará reduzindo drasticamente o nível e a qualidade da educação, reduzindo-a para uma forma de inserção profissional. (…) Especialmente sem filosofia. Mais uma vez, há que usar persuasão e não violência direta: transmitir-se-á maciçamente, através da televisão, entretenimento imbecil, bajulando sempre o emocional, o instintivo. Vamos ocupar as mentes com o que é fútil e lúdico. (…) Qualquer doutrina que ponha em causa o sistema deve ser designada como subversiva e terrorista e, em seguida, aqueles que a apoiam devem ser tratados como tal.” Assustadoramente na mouche, diríamos.

    A polarização da visão do mundo, da nossa actuação e expressão nele, não é apta a melhorar o status quo. É mesmo contraproducente porque convoca, precisamente, o nosso oposto, quando a realidade não é simples, assim “preta e branca”, mas complexa, multifactorial, cheia de matizes de cinzentos, desde logo a partir das nossas próprias limitações de intelecção.

    Não podemos desumanizar ou demonizar quem questiona, quem discorda de nós. É preciso compreender o outro, os outros, o mundo. É assim que o conhecimento evolui.

    Bem-hajam, entre outros e os já citados acima, os Manuel Loff e as Raquel Varela deste mundo.

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    Aliás, nas palavras desta última excelsa Professora (em post na sua página de Facebook, de dia 30/03): “Os critérios, amplamente conhecidos dos académicos críticos, são a metodologia que sustenta os argumentos, a coerência, a intenção da verdade, a verificação externa de argumentos, a fiabilidade das fontes, etc. O combate pelo conhecimento e pelo acesso à verdade faz-se com educação e politização, com debate aberto, com desenvolvimento de uma ciência livre de pressões do Estado e do Mercado (…). Não se faz com censura. Não se luta contra as ideias – que consideramos erradas – à chapada.

    A Liberdade de Expressão é, na (correcta, pensamos) acepção de alguns autores, vital ao pensamento humano e ao conhecimento societário. A acção do intelecto, vulgo pensar, é, em grande medida, internalização do discurso, cujas palavras/ ideias assim expressas criam, condicionam, e alteram caminhos neuronais, literalmente.

    É, por isso, um acto de coragem, aceitar poder estar errado umas vezes, para estar certo numa, que fará a diferença. Aos investigadores, em especial, cumpre questionar quando mais ninguém o faz.

    Inspector da Polícia Judiciária, licenciado em Direito e mestre em Direito e Segurança

    Autor do livro Contra-Terrorismo – Tópicos Essenciais e a Unidade CT “Ideal”


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Quem quer ser professor?

    Quem quer ser professor?


    Maria de Lurdes Rodrigues, actual reitora do ISCTE, num debate sobre o futuro da Educação na RTP, disse: “não sei como chegámos aqui, e nem quero saber, quero olhar para o futuro”. O “chegámos aqui” é a falta de professores, que existe hoje, e que se agravará ainda mais com o envelhecimento da classe.

    Também não sou grande coisa de memória, até escrevo temas para estas crónicas nos braços para não me esquecer passados cinco minutos. Ainda assim, deixo duas sugestões para início de conversa do “por que razão não temos professores suficientes hoje?”:

    1 – Pedir à Maria de Lurdes Rodrigues, reitora do ISCTE, que pergunte à Maria de Lurdes Rodrigues ex-ministra da Educação de governos PS. Podia ser que a segunda elucidasse a primeira que, hoje, parece sofrer de amnésia localizada. Como a do Salgado, mas com um livro de cheques mais modesto.

    2 – Porque as carreiras estiveram congeladas 10 anos e os salários são uma miséria?

    people sitting on chair

    A maior parte dos intervenientes no debate repetiram que, hoje, a carreira docente não é atractiva. Entre salários baixos, contratos temporários e colocações onde Judas deixou as botas (termo técnico), não são assim tantos os que sonham com essa vida depois de quatro ou cinco anos numa universidade.

    Isso seria um problema em qualquer parte do Mundo; logo, em Portugal, com o seu crónico atraso nos níveis de Educação, o impacto ainda é maior.

    Eu acrescentaria os problemas familiares provocados pela distância.

    Pouco acompanhamento dos filhos ou dificuldades de ter uma vida normal de casal. Um professor no século XXI é um nómada. Roda escolas na esperança de algum dia ficar efectivo algures.

    Passa 10 anos sem progressão salarial enquanto o custo de vida do país galopa ao ritmo das melhores capitais europeias.

    grayscale photography of two people raising their hands

    Os habituais detratores da Função Pública repetem até à exaustão que os professores apenas trabalham 35 horas, quando, é mais ou menos senso comum, que depois das aulas ainda têm mais umas horas pela frente para preparar matéria, fazer avaliações ou embrulharem-se em tarefas burocráticas.

    Um dos professores presente no debate dizia que as plataformas informáticas apareceram para substituir o papel e facilitar o trabalho administrativo, mas, numa medida muito portuguesa, estes continuavam a fazer tudo em papel, repetindo a informação que deixavam na plataforma.

    Faz-me lembrar a anedota do burocrata a quem pediram para reduzir o arquivo, e ele disse, convicto, para a secretária mandar tudo fora depois de tirar uma fotocópia. É algo muito nosso, precisamos de papel que valide outro papel. Não há “cloud” que safe este rectângulo à beira-mar plantado.

    Sou da opinião que professor e médico são as profissões mais importantes em qualquer sociedade civilizada. Um salva vidas, outro forma. E é por isso que não entendo muito bem como é que chegámos ao ponto de ser tão pouco atractivo ser professor.

    Esse é o primeiro passo para conseguir apenas aqueles que vêm na carreira uma terceira ou quarta opção, enquanto os melhores fogem para outros sectores de actividade. Se um bom professor forma milhares de alunos, um mau também os deixa mal preparados para o que se seguirá.

    Não há muitas voltas a dar a isto, e por muito que os sucessivos Governos fujam, a questão dos salários é crucial. As pessoas vendem a sua força de trabalho a troco de uma compensação financeira que se espera justa. Os professores não são diferentes.

    Por muita paixão que tenham pelo ensino e pelos seus alunos, também pagam contas. E ao fim de 20 anos de trabalho, divididos por não sei quantas escolas e concelhos, levar 1.200 euros para casa é um insulto. Especialmente se pensarmos que Portugal anda há 35 anos a receber subsídios e escolheu, apesar do seu diminuto tamanho, ceder ao lobby do betão e construir uma rede de auto-estradas como nenhum outro país europeu tem.

    Para se compreender as decisões dos sucessivos Governos, podemos pensar nas três auto-estradas que ligam Lisboa ao Porto. São 300 quilómetros com três opções rápidas. Noutro país daria prisão, em Portugal deu votos. No mesmo sítio onde se recusam a deixar um banco privado ir à falência durante 13 anos, aceitam deixar milhares de professores a recibos verdes ou com o mesmo salário anos a fio.

    people raising hands with bokeh lights

    Portanto, se não querem procurar os culpados do passado, como disse Maria de Lurdes Rodrigues, pelo menos não repitam os erros no futuro. Usem o Orçamento do Estado para o que ele serve, e comecem a pagar aos professores o que eles merecem. Não há dignificação da carreira docente sem salários de Primeiro Mundo.

    E aos professores que lutam por melhores direitos, façam um favor à classe: ponham uma guia de marcha ao Mário Nogueira. Os sindicatos são essenciais neste processo, e o Nogueira, ao fim de 20 anos sem entrar numa sala, é como um jacaré numa banheira. Só atrapalha.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Páscoa de chamas na Suécia

    Páscoa de chamas na Suécia


    O fim de semana de Páscoa esteve quente em várias cidades suecas. Esta entrada poder-nos-ia levar a pensar que esta seria uma crónica do saudoso Anthimio de Azevedo, mas não. Vamos falar de nazis, tema em voga há 70 anos, e que nunca desilude.

    Rasmus Paludan, um advogado gordinho de quem nunca tinha ouvido falar, é o fundador do Stram Kurs, um partido nacionalista de extrema-direita da Dinamarca, que, curiosa e felizmente, também nunca tinha ouvido falar.

    O bom do Rasmus, filho de um cruzamento entre suecos e dinamarqueses, e por isso beneficiado com dupla nacionalidade, pode dizer asneiras em ambos os lados da ponte Öresund, a maravilha da engenharia que liga Copenhaga a Malmö.

    Pegou no carro e em alguns amigos, e veio fazer uma tour pelo sul e centro da Suécia, com uma agenda bastante simples: falar em praças vazias para quem ali passava e, sempre que possível, queimar um Corão. Esta foi a estratégia de marketing pensada pelo gordinho para entrar no “mercado sueco” e tentar conseguir juntar assinaturas para concorrer às próximas eleições.

    O Stram Kurs, uma versão escandinava do PNR, Ergue-te ou qualquer outra coisa que o José Pinto Coelho se lembre amanhã, já disputou eleições, aqui ao lado de onde vos escrevo, na Dinamarca. Entre algumas frases polémicas, encontra-se esta: “a melhor coisa que poderia acontecer era não sobrar um muçulmano na nossa querida Terra”. Portanto, uma ternura de homem apenas com alguns problemas mal resolvidos.

    Agora, depois de umas dezenas de votos em 2017 e uns milhares em 2019 (com suspeita de fraude e suspensão) na Dinamarca, Rasmus Paludan tenta concorrer às eleições suecas em 2022.

    Num país onde uma em cada cinco pessoas vota no Chega local (Sverigedemokraterna), a quota de fascistas parece já estar bem preenchida, e não sei se há muito espaço para nazis da linha dura.

    Para já, a tour do Rasmus conseguiu que membros das várias comunidades muçulmanas se juntassem nas diferentes cidades em protesto pela queima do Corão. Protestos esses que resultaram em confrontos com a polícia, carros destruídos, gente ferida e prisões.

    Eu pensei, na minha mais profunda ingenuidade, que a sociedade cairia que nem um trovão em cima deste energúmeno, e que, em momento algum, se discutisse a liberdade de expressão numa acção que é simplesmente de incitamento ao ódio. Não há qualquer hipótese de discutir uma ideia política com alguém que vê num livro a arder uma mensagem. Seja o Corão, a Bíblia ou a Tora. É irrelevante para o que aqui se debate.

    Quem não tolera outras raças, outros credos ou outros tons de pele, não tem sequer base para o início da conversa. Com um fascista não se discute, combate-se.

    people kneeling and praying during daytime

    Hoje, no Göteborg Posten, o maior jornal da cidade de Gotemburgo, vejo um editorial onde se exigem mais e melhores meios para a polícia. Canhões de água e toda uma lista de requisitos que transformem as pacíficas forças de segurança, pouco habituadas a motins, numa SWAT de louros que, ao mais pequeno sinal de manifestação, aprendam a disparar e depois perguntar.

    Curiosamente, nem uma palavra sobre prender o gordinho que originou tudo isto. Ou seja, envolto na capa da liberdade de expressão, o fascismo e o nazismo tiveram tempo de antena, e o odioso ficou do lado de quem mostrou a sua indignação.

    Mais de 70 anos depois de termos dito “nunca mais”, vou-me convencendo que o maior perigo neste cancro, que se espalha novamente pela Europa, não está necessariamente nos nazis que se assumem de megafone numa praça perdida. O real problema está naqueles que, em silêncio e nos escritórios, parecem concordar com eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As “bolhas” nas escolas

    As “bolhas” nas escolas


    O meu nome é Ana Raquel Serra Evaristo e sou mãe de uma criança de oito anos que frequenta a EB1/JI do Bairro Novo no Seixal.

    Fui desde cedo crítica das medidas aplicadas nas escolas, sobretudo pela desproporcionalidade e pela diferença na actuação entre as próprias escolas, que adoptaram cada uma as medidas que entenderam…

    No auge da pandemia (ainda a minha filha andava na pré), vi-a a chorar em frente ao computador, a dizer que não queria ver os amigos assim, que queria estar com eles na escola. No regresso à escola em 2020, tive que pedir que não lhe aplicassem tanto álcool-gel nas mãos por lhe estar a fazer alergia.

    No primeiro dia de aulas em 2021 (já no primeiro ano), uma das meninas da sala dela, ficou a chorar no recreio sem entrar na escola. Precisava claro, de um último abraço ou de mais um bocadinho de conforto, mas os pais não podiam entrar, e as auxiliares entre aplicar álcool-gel a quem entrava e assegurar o distanciamento social, limitavam-se a dizer-lhe para entrar na escola, aos gritos e gesticulando.

    Foi a minha filha que, por indicação minha, lhe deu um abraço, lhe deu a mão e confortou a amiga, e assim entraram as duas na escola. Devia ter sido um dia de alegria, mas saí dali com o coração pesado.

    red and yellow metal frame under blue sky during daytime

    A minha filha anda agora no 2º ano, e não conhece o recreio de outra forma, a não ser em “bolhas”. Mesmo apesar do Referencial Escolas, para controlo da transmissão de covid-19 em contexto escolar, ter sido revogado, e de as mais recentes orientações da Direcção-Geral da Saúde (DGS) nada referirem quanto à necessidade de distanciamento social nas escolas.

    Contactei a escola, em busca de esclarecimentos, e fui encaminhada para o Agrupamento. As respostas que obtive foram totalmente desfasadas da realidade e desprovidas de qualquer enquadramento legal.

    Contactei vários pais. Poucos concordam com as “bolhas”, mas nenhum se atreveu a questionar, ou a procurar esclarecer a situação, e quase todos demonstraram um desconhecimento total das orientações em vigor.

    Senti-me impotente para enfrentar sozinha este processo e contactei vários advogados e entidades. Apenas o Dr. Paulo Edson da Cunha acedeu a avançar comigo, assim como a organização Habeas Corpus, que deu o seu contributo com um parecer que suportava a nossa causa.

    E em boa hora o fiz. Durante mais de uma semana tentámos gerir um gigantesco muro de silêncio ou de respostas cheias de nada. Sem a ajuda do Dr. Paulo Edson da Cunha dificilmente eu teria conseguido avançar.

    Iniciámos, pois, uma escalada de contactos que implicou voltar a inquirir a direcção do Agrupamento, para construir um caso sólido. Eu a insistir numa actuação rápida, o Dr. Paulo Edson da Cunha a gerir a minha ansiedade, e a explicar que eram passos pequenos, e que embora parecessem retrocessos, teriam que ser dados.

    O Agrupamento recusou a realização da reunião que solicitámos e encaminhou para a Direção Regional de Educação de Lisboa e Vale do Tejo (DSRLVT). A DSRLVT devolveu para o Agrupamento. Recorremos à DGEstE (Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares), que encaminhou para a DGS e para o respectivo delegado de saúde da área. A resposta ainda a esperamos, e assim andámos, num processo kafkiano, sem que nenhuma entidade fosse capaz de esclarecer de forma clara, objectiva e directa, acerca do enquadramento legal e o que é que suportava a continuação das “bolhas” no recreio.

    group of people wearing white and orange backpacks walking on gray concrete pavement during daytime

    Estas diligências aconteceram maioritariamente durante a pausa lectiva da Páscoa, e face à ausência de respostas, informámos que estaríamos dispostos a recorrer judicialmente para obter, por essa via, o que não estávamos a conseguir junto das entidades competentes.

    Surpreendentemente, ou talvez não, no primeiro dia de aulas “surgiram” orientações da  Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares (DGEstE) indicando que “as crianças que se encontrem no espaço exterior, na altura do intervalo escolar podem circular/interagir livremente (…)”

    Gostaria muito de dizer que a história acaba aqui, mas infelizmente ainda não.

    Quando fui buscar a minha filha à escola ao final do dia, disse-me bastante entusiasmada que já não havia “bolhas”. No desenvolvimento da conversa, percebi que afinal ainda existiram duas “bolhas” e que as auxiliares ainda não agiam de forma uniforme, umas já não dando importância à circulação das crianças, outras insistindo na permanência nas mesmas.

    O meu coração gelou, a pensar que afinal ainda não podíamos cantar vitória e lá se passou mais uma noite mal dormida, a pensar no que faríamos a seguir, caso as “bolhas” não fossem totalmente removidas.

    No dia seguinte lá estávamos junto da escola, à hora do intervalo para perceber o que aconteceria às “bolhas”. Felizmente, desapareceram! Vimos um recreio cheio de meninos a circular livremente e a finalmente interagir sem nenhum constrangimento.

    Resta-lhes agora ser crianças, brincar muito e recuperar destes dois anos de falta de interacção. O meu coração de mãe está agora mais leve e infinitamente mais feliz, e com a certeza de que tudo fiz para garantir à minha filha nada menos do que lhe é devido enquanto criança.

    “Bolhas” no recreio, só se forem das de sabão, para as crianças brincarem com elas!!


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • X: antes a Morte que tal Sorte

    X: antes a Morte que tal Sorte


    Se quisermos, a paranóia da pandemia pode eternizar-se. Ou pode acabar hoje mesmo.

    Depende se aceitamos o absurdo.

    Por exemplo, ontem o Expresso anunciava que “o surgimento de novas variantes, como a Ómicron, reforçou a necessidade de uma estratégia de controlo da covid-19”, e por isso os Estados Unidos estavam a “redobrar esforços colectivos para encerrar a fase aguda da pandemia (…) e nos preparamos para futuras ameaças relacionadas com a saúde”.

    Já sabemos, pela “amostra” dos últimos dois anos naquilo que isto vai dar.

    Vemos agora, pelo exemplo demencial de Xangai, naquilo que se pode transformar a vida mesmo em civilizadas sociedades ocidentais que foram criadas com base no livre-arbítrio responsável e nas liberdades individuais.

    mans face with white scarf

    Tudo isto se pode, e deve (defenderão os políticos sanitaristas), ser posto em causa se houver razões de excepção. Novas variantes de um vírus, “futuras ameaças relacionadas com a saúde”, eis a excepção, qual sonho húmido de políticos democratas com tentações despóticas, que pode ser a regra, se assim se quiser.

    Se assim a imprensa mainstream quiser. Se os Governos quiserem. Se os povos aceitarem.

    Pesquiso no Google News sobre a suposta nova variante XE, através das palavras XE e covid: contabilizo já 29.800.000 notícias. Estão reunidos os ingredientes para a renovação da pandemia.

    Ler algumas destas notícias causa uma dor de alma a quem defende um jornalismo que não permite manipulações, mistificações, especulações.

    Leio, por exemplo, uma notícia da CNN Portugal – pego nesta como poderia pegar em tantas de tantos outros órgãos de comunicação social mainstream –, publicada em 6 de Abril passado, que reza assim:

    A Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido (UKHSA) detetou, em janeiro, uma nova variante do SARS-CoV-2. Chama-se Ómicron XE, combina duas estirpes desta variante e, do pouco que se sabe, é mais contagiosa do que as variantes anteriores. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já foi notificada.

    Esta nova variante é aquilo a que se chama de vírus ‘recombinante’, isto é, que combina o material genético de dois vírus, neste caso, de duas variantes e subvariantes do mesmo vírus. A Ómicron XE combina a BA.1 (chamada de Ómicron original) e a BA.2 (uma subvariante).

    Até ao momento, já tinham sido detetadas outras variantes recombinantes: as XD e XF, que juntavam a Delta e Ómicron BA.1. Segundo a OMS, a XD ‘está associada a maior transmissibilidade ou resultados mais graves”.

    Nem sei bem onde pegar quando leio “pérolas” deste jaez.

    A manipulação, a mistificação e a especulação começa logo em detalhes, que aliás serviram já para a Ómicron, que afinal acabou por ser uma bênção, do ponto de vista epidemiológico, pela sua maior transmissibilidade (mais casos) e menor letalidade (menos mortes), e portanto por ter concedido maior imunidade à população. Num raro momento de lucidez, Bill Gates até admitiu isso em 18 de Fevereiro deste ano numa conferência em Munique.

    Na verdade, existirão razões científicas muito plausíveis e compreensíveis para que agora surjam variantes que usam um X inicial para a sua denominação. Em todo o caso, não temos apenas a XE. Já andam também por aí, e por agora, as variantes XA, XB, XC, XD, XF, XG, XH, XJ (não há XI, por razões políticas!), XK, XL, XM, XN, XP, XQ, XR, XS e XT, todas elas recombinantes, como todas as outras, desde que o SARS-CoV-2 começou a infectar humanos.

    white and black speaker on green wall

    As letras e as denominações possuem também valor simbólico, uma carga, um karma. E isso tem-se notavelmente feito notar na alimentação da pandemia.

    A percepção da existência de um perigo (afinal inexistente, aparente ou real) proveniente de uma variante X qualquer coisa – como se marcasse um alvo – é maior do que seria se se continuasse a usar as letras A e B seguidas de pontos e números.

    [já agora, diga-se que também há, em muito menor número, iniciadas por C (47), D (4), G (1), K (3), L (4), M (3), N (10), P (29), Q (8), R (2), S (1), U (3), V (2), W (4), Y (1, que, aliás, “nasceu” em Portugal) e Z (1)]

    O “marketing vírico” em redor do surgimento (supostamente repentino) de novas variantes – que “podem” ser sempre mais perigosas, mais transmissíveis, mais um “par de botas”, como propalam jornalistas “acéfalos”, porque acríticos e preguiçosos – mostra bem o grau de insanidade colectiva.

    A variante XE – que aparenta ser uma novidade, que justifica o levantamento de redobrados alertas – foi, na verdade, já identificada em 19 de Janeiro passado. Existem dados sobre a sua letalidade que justifiquem preocupação? Claro que não.

    Nem sobre todas as outras variantes iniciadas por X, incluindo da primeira (XB) identificada no “longínquo” 8 de Julho de 2020!

    Diga-se, aliás, a talhe de foice, que a famigerada variante Ómicron – anunciada como se fosse o fim do Mundo, e que justificou mesmo o encerramento de uma ala pediátrica do Hospital Garcia de Orta em Novembro do ano passado – foi identificada afinal nos Estados Unidos (com a nomenclatura BA.1) em 7 de Setembro do ano passado, ou seja, dois meses antes do pânico ser novamente relançado a nível mundial.

    Porém, onde a insanidade colectiva espraia em todo o seu esplendor é nas notícias sobre o surgimento de uma nova variante, como se fosse fenómeno raríssimo, de sorte que cada vez que surgisse uma nova maiores perigos adviriam.

    person holding orange and white toothbrush

    Vamos ser claros: é uma estupidez absoluta continuar a pensar que a “criação” de novas variantes alguma vez terminará, a menos que se continuem com lockdowns, com máscaras, vacinas, com a obrigação de fazer o pino virado para Meca ou com a entrega das nossas liberdades de viver antes de morrermos.

    Simplesmente, não vai acontecer.

    Se, porventura, em vez de perguntarem aos leitores quanto tempo vai durar a Guerra da Ucrânia, os jornais com maior capacidade de endividamento (não propriamente económico ou financeiro) questionassem as pessoas sobre quantas variantes do SARS-Cov-2 existem, talvez se chegasse à conclusão da existência de quatro ou cinco.

    E porquê? Porque se foi sempre moldando a percepção de que o surgimento de novas variantes era um fenómeno raro, imprevisível, e que, sendo assim, anunciada essa raridade, logo seria motivo necessário mas suficiente para alarme, medo e pânico.

    Aliás, a raridade de certos fenómenos foi sempre pasto para especulações e medos cegos. Daí que, durante séculos e séculos, o surgimento de cometas ou de eclipses eram vistos como prenúncios ou causas de desgraças. Ninguém jamais anunciou o fim do Mundo porque o sol nasceu em certo dia, porque nasceu tantas outras vezes antes e renascerá outras tantas no futuro. A banalização de um evento elimina qualquer fobia. Não se assusta uma criança gritando-lhe muuuu todos os dias por detrás da porta.

    Portanto, vamos lá fazer contas sobre variantes do SARS-CoV-2, procurando onde se deve. E arrumemos já com o assunto sobre a raridade das variantes.

    black and white human face drawing

    No Pango Network estão listadas, à data de hoje, 1.847 variantes, desde que as duas primeiras foram identificadas ainda em 2019: a variante B, em 24 de Dezembro, e a variante A, em 30 de Dezembro.

    Como sucedeu com os testes PCR para encontrar casos positivos, no caso das variantes, quanto mais que escarafunchou na investigação, mais pequenas diferenças se descobriram. Levado ao extremo do absurdo, se aplicada à espécie humana a busca de diferenças classificadas como variantes, teríamos hoje não quase oito mil milhões de pessoas mas sim quase oito mil milhões de variantes da espécie humana.

    Assim, no caso do SARS-CoV-2 foram “brotando” variantes. Só em Janeiro de 2020, ainda antes da chegada da covid-19 a Portugal, já havia 21 novas variantes no Mundo. No mês seguinte foram identificadas mais 35. Em Março – o mês do início do pandemónio na Europa – identificaram-se mais 385 novas variantes.

    Desta sorte, na primeira metade de 2020 já estávamos com 883 variantes de SARS-CoV-2. No final desse ano, eram já 1.328 variantes, ou seja, 72% do total identificado até agora, o que é um paradoxo.

    Até ao final de 2020, o SARS-CoV-2 “apenas” tinha infectado (casos positivos) 84 milhões de pessoas, mas “criou” mais de 1.300 variantes. Desde 2021, apesar de ter infectado mais 420 milhões de pessoas – isto é, cinco vezes mais – “só” teve habilidade para “criar” menos de meio milhar. Um mistério da virologia.

    De facto, ao longo de 2021, a “multiplicação” de variantes amenizou, e desconfio que não terá sido por cansaço do vírus, mas mais por “aborrecimento” dos virologistas. Mas nem assim se pode dizer que se tenha parado de descobrir ou de que passou a ser um fenómeno raro. No primeiro semestre do ano passado “descobriram-se” mais 219 variantes; no segundo semestre foram 104.

    Nos dois primeiros meses do presente ano contabilizam-se já 21 novas variantes, grande parte das quais recebendo agora a denominação iniciada por X. Não estão aqui contabilizadas 175 variantes que não têm data de identificação no Pango Network.

    Neste cenário de inevitável “descoberta” de novas variantes, aceitarmos candidamente que algumas possam ser escolhidas, de forma aleatória e manipulatória, para fazer soar alarmes – e sem se compreenderem os motivos –, e justificarem-se assim renovadas medidas de excepção em prol de uma quimérica Saúde Pública de risco zero, é rendermo-nos a um distópico Novo Normal. Um Mundo em que é preferível a Morte que tal Sorte.

  • A terrível e (in)esperada visita do Cisne Negro

    A terrível e (in)esperada visita do Cisne Negro


    O termo Cisne Negro foi popularizado pelo livro The black swan, de Nassim Nicholas Taleb, que mostra como eventos raros e imprevisíveis e de consequências potencialmente graves são muito difíceis de prever, apesar de, quando ocorrem, se observa uma insistência generalizada de que as suas causas e consequências eram antecipadamente óbvias.

    Mas essa imprevisibilidade não significa improbabilidade; apenas significa que não sabemos quando, com exactidão, ocorrerá o evento repentino. Ora, mas se conseguirmos identificar sinais que concorram para esse evento raro e imprevisível, talvez continuemos a não conseguir prever o exacto dia em que irrompe um Cisne Negro por aí fora, mas podemos garantir que ele está a chegar; que a sua chegada é mesmo inevitável.

    white and blue labeled pack

    Qual será então o nosso próximo Cisne Negro?

    Uma crise financeira. E económica.

    E tudo começa pela política monetária implementada pelos bancos centrais após a crise iniciada pela falência do banco de investimento norte-americano Lehman Brothers, em Setembro de 2008.

    Como se sabe, essa política consistiu na compra de activos financeiros pelos bancos centrais directamente no mercado secundário por contrapartida da impressão massiva de dinheiro. O activo de eleição foi a dívida soberana, com consequências na taxa de juro implícita: a sua inexorável descida a valores próximos de zero, ou mesmo negativos, como aconteceu na Alemanha e outros países do norte da Europa. Uma “impossibilidade” teórica escrita em manuais de Economia.

    Como funciona este mecanismo? Os bancos comerciais que participam nos leilões de dívida pública estão plenamente seguros dos seus investimentos, dado que passou a existir um comprador com bolsos infinitos e dinheiro de monopólio: o Banco Central.

    No entanto, importa, em primeiro lugar, explicar a relação entre a taxa de juro implícita e o preço de uma obrigação. Vamos supor que uma obrigação proporciona um pagamento de 10 Euros todos os anos, como se mostra na figura seguinte.

    Análise do valor de uma obrigação com um cupão anual de 10 euros (valor actual vs. rendibilidade)

    Se o leitor investir apenas 100 euros na aquisição dessa obrigação, a taxa de juro que irá receber será 10%; se investir 200 euros será 5%; mas se investir 2000 euros será apenas 0,5%. Vamos resumir:

    1. O valor actual (hoje) dos recebimentos anuais futuros no valor de 10 euros descontados a 10% é 100 Euros;
    2. O valor actual (hoje) dos recebimentos anuais futuros no valor de 10 euros descontados a 5% é 200 Euros;
    3. O valor actual (hoje) dos recebimentos anuais futuros no valor de 10 euros descontados a 0,5% é 2 000 Euros.

    A uma taxa de juro mais elevada corresponde um valor actual menor e vice-versa. Para simplificarmos a nossa explicação, vamos suportá-la num exemplo:

    • os bancos comerciais participam num leilão de dívida pública, em que um dado estado deseja colocar 1000 milhões de Euros no mercado primário;
    • obrigação emitida pelo estado proporciona o tal cupão anual de 10 Euros;
    • no leilão determina que o preço da obrigação é 100 Euros, ou seja, uma rendibilidade implícita de 10%;
    • seguidamente, os bancos comerciais tentam vender a obrigação no mercado secundário;
    • dada a enorme procura do banco central por estas obrigações, o preço das mesmas sobe, estabelecendo-se um novo preço de 200 Euros por obrigação;
    • a nova taxa de juro implícita é 5%, em lugar de 10%, uma descida de 10 pontos percentuais.

    Isto foi precisamente o que aconteceu nos últimos 13 anos. Os Estados e os bancos comerciais passaram a estar seguros de que as suas obrigações eram sempre vendidas ao Banco Central; por essa razão, ocorreu a inexorável descida das taxas de juro implícitas nos últimos anos, em particular em 2020, ano em que ocorreu uma massiva impressão de dinheiro para responder à crise Covid-19.

    Evolução da taxa de juro implícita (%) das obrigações emitidas por Portugal com maturidade a 10 anos. Fonte: Yahoo Finance (análise do autor)

    A pressão compradora do BCE provocou a subida do preço das obrigações, levando à redução da taxa de juro implícita. Na figura anterior, podemos observar que no final de 2021, com a subida da inflação, a taxa de juro implícita está a subir consideravelmente, ainda que de forma controlada.

    E qual o impacto desta política no mercado de acções?

    Vamos agora imaginar que um investidor tem as seguintes expectativas para a empresa ABC, tal como ilustrado na figura seguinte: hoje, perde muito dinheiro, mas, num futuro longínquo, supõe-se que irá ganhar imenso dinheiro. Isto é o que acontece, regra geral, com as empresas tecnológicas. No arranque perdem imenso dinheiro – Amazon, Tesla, Netflix e Uber –, com o propósito de ganhar uma enorme quota de mercado, e depois consolidam a sua posição, podendo vender a preços mais elevados e gerar enormes lucros.

    Expectativa para os resultados da empresa ABC (unidade: euros)

    Nesta figura podemos ver que no primeiro ano a empresa perde 250 Euros; ao longo do tempo, espera-se que vá diminuindo as perdas, até que no 9º ano começa a apresentar resultados positivos, passando, a partir daí, a crescer todos os anos a 0,5%.

    Qual o valor actual dos resultados futuros caso sejam descontados com diferentes taxas de juro? Se descontarmos a 10%, 5% e 4%, trata-se de um investimento não interessante, tal como podemos observar na próxima figura.

    No entanto, para valores inferiores a 4%, o valor actual passa a ser positivo; quando se aproxima dos 0%, o valor actual começa a subir de forma exponencial. Trata-se precisamente do fenómeno que acontece com os mercados financeiros da actualidade. Esta é a explicação para as valorizações estratosféricas a que assistimos recentemente!

    Os estímulos dos bancos centrais durante a crise Covid-19 são paradigmáticos desta situação.

    No início de 2020, o índice Nasdaq 100 situava-se em 8.000 pontos e a taxa de juro implícita das obrigações do tesouro norte-americano a 10 anos situava-se em torno de 2%.

    Quando o Banco Central norte-americano decidiu emitir dinheiro e comprar obrigações do tesouro norte-americano, o preço destes activos financeiros disparou, provocando a descida da taxa de juro implícita para 0,5%.

    Repare-se que ao mesmo tempo o Nasdaq 100 subia de 8.000 para 16.000 pontos, praticamente duplicando de valor em resultado de tal “estímulo monetário” – um eufemismo para denominar a impressão de dinheiro.

    Valor actual de uma empresa com vários cenários de taxas de juro (%)

    Note-se que a partir do final de 2021, com a subida da inflação – a consequência da enorme impressão de dinheiro durante a crise Covid-19 -, os bancos centrais passaram a estar pressionados para reduzir a impressão massiva de dinheiro e a subir os juros.

    Desse modo, o índice Nasdaq 100 não recuperou do máximo histórico ocorrido no final do ano transacto, estando em correcção desde então.

    Em resumo, o valor dos activos financeiros depende da taxa de juro que se aplica aos fluxos financeiros futuros, tal como sobredito no presente artigo.

    O valor de uma obrigação depende do valor do cupão (fluxos financeiros futuros), da capacidade do devedor pagar – se existem dúvidas, o valor da obrigação desce e os juros sobem, como foi o caso da última bancarrota em Portugal – e da taxa juro que se aplica para descontar os cupões.

    Tal como vimos no exemplo no início deste artigo, se o preço da obrigação sobe por pressão compradora do Banco Central, a taxa de juro implícita desce, e vice-versa.

    No caso das acções, estas funcionam igual às obrigações, mas com uma diferença relevante: os fluxos financeiros futuros não são conhecidos, pois numa obrigação o pagamento dos cupões e do capital estão calendarizados desde o início, enquanto os lucros futuros dependem da gestão, do mercado onde a empresa actua e da situação económica em geral.

    Em relação ao Bitcoin (BTC) ou ao Ouro (PAXG), esta relação não se aplica: ou seja, não existe qualquer rendimento – dividendos, cupões, lucros, etc. – associado à sua detenção, dado que a procura por estes activos deriva da sua situação de reserva de valor. São activos com oferta escassa – no caso do Bitcoin, 21 milhões – e não dependentes dos “caprichos” dos bancos centrais.

    Qual então o Cisne Negro a que podemos assistir em breve?

    Evolução do índice Nasdaq 100 (pontos) e da taxa de juro implícita (%) das obrigações do tesouro norte-americano com maturidade a 10 anos. Fonte: Yahoo Finance (análise do autor).

    Nada mais nada menos que o final da bolha da dívida que se iniciou desde o final de Bretton Woods em 1971.

    Desde o início dos anos 80, em que o então presidente da Reserva Federal norte-americana subiu os juros acima de 15%, a política tem sido uma redução sistemática dos juros, através da impressora dos bancos centrais, provocando a subida sistemática da dívida no sistema. Esta situação agravou-se a partir de 2008 e particularmente com a crise Covid-19 em 2020.

    A impressão massiva de dinheiro para aquisição de obrigações emitidas pelos estados do Ocidente elevou a dívida pública à estratosfera, e poderá ser o Canto do Cisne da enorme bolha que é hoje o mercado de dívida – pública, privada e empresarial.

    Se, nos próximos meses, a taxa de juro implícita das obrigações norte-americanas com maturidade a 10 anos subir de forma descontrolada – isto é, atingir os 3% e continuar a subir rapidamente –, poderá advir daí uma visita do Cisne Negro, que porá um fim à bolha de dívida que tem caracterizado a Economia ocidental.

    O dinheiro, tal como o poder, ocupa sempre o vazio.

    Se toda massa monetária “fugir” do mercado de dívida – pois ocorre uma venda descontrolada de obrigações do tesouro norte-americano, e do mercado de acções –, terá inevitavelmente de ir para algum lado.

    Esse lado, na minha opinião, será o das Criptomoedas – em particular, o Bitcoin –, o Ouro e as matérias-primas. Ou seja, activos reais não dependentes de bancos centrais.

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Sonae como exemplo de uma mentalidade

    A Sonae como exemplo de uma mentalidade


    A conversa de aumento de salário indexado à produtividade, repetida até à exaustão, é uma narrativa que me enerva. Como tal, acaba em texto.

    Já todos perceberam esta parte, e por isso avancemos para o cerne da questão, como diria Pacheco Pereira, o mais famoso comunista nos quadros do PSD.

    Apesar dos lucros estratosféricos, a Sonae recebeu um apoio do Estado como forma de compensação para o aumento do salário mínimo nacional. Gente que fez a contas reporta que, com apenas 0,15% dos lucros do último ano, a Sonae conseguiria sem qualquer ajuda pública pagar o aumento envergonhado do salário mínimo.

    Cláudia Azevedo, CEO da Sonae

    Ao mesmo tempo, a companhia divulgou um aumento no salário da sua CEO na ordem do meio milhão de euros. Arredondando, chegamos mais ou menos ao apoio recebido do Governo.

    Liberais, apoiantes do Chega, saudosos do Passos Coelho e os quatro apoiantes do Nuno Melo dizem: “Qual é o problema? Uma empresa remunera a sua Administração como bem entender.”

    Permitam-me discordar.

    Uma empresa privada faz o que quer na sua gestão, desde que não receba fundos públicos de apoio.

    Depois, e esta é uma opinião arriscada que assumo, não podem as empresas continuar com este eterno modelo de salários miseráveis na base da pirâmide; e, depois, sem qualquer problema ético ou moral, continuarem a premiar os gestores de topo. Estes recebem salários anuais de milhões; cá em baixo, uma operadora de caixa do Continente luta para sobreviver com 750 euros mensais.

    Se é este o modelo ad aeternum dos empresários portugueses, assumamos todos que queremos um país de mão de obra barata, onde os mais qualificados procuram a porta da emigração e se recusam a viver na pobreza, mesmo trabalhando 40 horas semanais.

    Esse é o drama nacional: ser possível trabalhar 160 horas por mês em Portugal e ser pobre.

    Este é um conceito que, na tal comunidade ocidental, que se resume a 10% dos países mundiais, já não existe. Uma pessoa que trabalhe um horário regular tem, a troco da sua força laboral, a recompensa suficiente para uma vida digna, confortável e digna.

    Não é pobre, não tem que alugar uma casa até à velhice, e, luxo dos luxos, até se pode dar ao desplante de ver um bocadinho do Mundo que a rodeia.

    Numa frase simples, pode viver sem a angústia de escolher entre a conta da luz, os livros escolares dos filhos. Ou o bife de vaca, que a Jonet já nos avisou, há uns anos, não poder ser um hábito, enquanto nos continua a carpir que compremos para o seu Banco Alimentar latas de atum e esparguete para os pobrezinhos no Continente, aumentando os lucros da Sonae e engrossando as receitas de IVA do Estado.

    Aquilo que a Sonae e outros grandes grupos deseja é algo verdadeiramente simples: maximização dos lucros através de baixos salários. Uma espécie de fado português, aqui e ali interrompido pela confederação dos patrões para nos explicar, como se fôssemos todos idiotas, não ser possível aumentar salários (começando pelo mínimo) se a produtividade não aumentar.

    Lembro-me sempre do modelo de negócio da Padaria Portuguesa, com incontáveis lojas em Lisboa e tão elogiada pela sua gestão. Até recordo, com algum carinho, um dos gestores de topo que dizia, numa reportagem qualquer, que o salário não era tudo; o amor que davam aos funcionários era mais importante.

    Compreende-se, porque olhando apenas para o salário mínimo, torna-se difícil sentir a chama da paixão.

    Ao fim de 15 dias de lockdown, por causa da covid-19, a empresa com lucros fabulosos e, uma vez mais, um mundo de distância entre a base e o topo da pirâmide, pedia ajuda ao Governo para pagar salários.

    Portanto, quando me dizem que uma empresa privada, como a Sonae, paga o que quiser aos seus funcionários, eu até sou, enfim, obrigado a concordar. E mesmo quando direccionam apoios estatais para o CEO, eu também, enfim, tenho de aceitar. São os mercados. As regras da gestão privada. Agora, não posso é continuar a engolir a argumentação da produtividade ligada a salários que não sejam de fome.

    Portugal tem uma faixa salarial que nos envergonha. Não está só na cauda da Europa civilizada como se aproxima, a passos largos, do Terceiro Mundo.

    A Sonae choca porque é um dos maiores empregadores, e mesmo assim escolhe, sem qualquer vergonha, a estrada da mais injusta distribuição de lucros entres trabalhadores.

    E se aceitamos, pacificamente, a imoralidade da distribuição dos lucros apenas no topo da pirâmide, estamos apenas a fazer um favor a quem vê nos trabalhadores portugueses uma fonte de rendimento de baixíssimo custo.

    Com o aproximar da data percebe-se que, afinal, talvez seja tempo de uma nova Revolução. Não pode um país, com mais de três décadas a receber fundos europeus, achar normal que 20% da população esteja na pobreza e, entre os que trabalham, mais de 70% traga para casa menos de 900 euros mensais.

    Viver é qualquer coisa mais. Em Portugal sobrevive-se. Sem contestação.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A importância da (verdadeira) Ciência

    A importância da (verdadeira) Ciência


    Num editorial publicado a 19 de Janeiro de 2022, no The British Medical Journal (The BMJ), e que o PÁGINA UM noticiou, a revista mais antiga de medicina do Mundo, Peter Doshi (editor sénior do The BMJ e da equipe News & Views, e professor associado na Escola de Farmácia da Universidade de Maryland), Fiona Godlee (editora-chefe do The BMJ de Março de 2005 até 31 de Dezembro de 2021) e Kamran Abbasi (editor-chefe do The BMJ, médico, professor visitante do Departamento de Atenção Primária e Saúde Pública do Imperial College de Londres e editor do Journal of the Royal Society of Medicine) chamaram a atenção para a urgência da partilha de dados brutos sobre as vacinas e tratamentos à covid-19.  “Devem estar total e imediatamente disponíveis para escrutínio público”, defenderam.

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    Começa o editorial por mencionar fatos históricos, de suma importância: “Nas páginas do The BMJ há uma década, no meio de uma pandemia diferente, veio à tona que governos de todo o mundo gastaram bilhões armazenando antivirais para influenza que não demonstraram reduzir o risco de complicações, internações hospitalares ou morte. A maioria dos ensaios que sustentaram a aprovação regulatória e o armazenamento governamental de oseltamivir (Tamiflu) foram patrocinados pelo fabricante; a maioria era inédita, os que foram publicados foram escritos por escritores pagos pelo fabricante, as pessoas listadas como autores principais não tinham acesso aos dados brutos e os académicos que solicitaram acesso aos dados para análise independente foram negados.”

    Acrescentam ainda os autores que “os erros da última pandemia estão a ser repetidos. As memórias são curtas. Hoje, apesar do lançamento global de vacinas e tratamentos contra a covid-19, os dados anonimizados de participantes subjacentes aos testes para esses novos produtos permanecem inacessíveis a médicos, pesquisadores e ao público – e provavelmente permanecerão assim nos próximos anos. Isso é moralmente indefensável para todos os ensaios, mas especialmente para aqueles que envolvem grandes intervenções de saúde pública.”

    Já sabemos da tendência perniciosa que a História tem em se repetir, mas a História não é autónoma neste feito!

    A repetição fica a cargo daqueles que mais lucram e se beneficiam das nossas curtas memórias, das memórias que tão facilmente são substituídas por novas catástrofes que nos desviam a atenção de um assunto que não deve ser esquecido, negligenciado, ou tido de menor importância – a nossa saúde pública.

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    A mesma saúde pública que durante quase três anos esteve no epicentro de discursos políticos e mediáticos que banalizaram a ciência como se esta fosse do domínio e do entendimento de qualquer cidadão, passível de ser utilizada de forma corriqueira, em debates televisivos que em muito se assemelhavam a conversas de café.

    “É a ciência”, fartamo-nos de ouvir das bocas daqueles que dela, tal como a maioria de nós, percebe muito pouco. E a culpa não é nossa, não somos obrigados a saber de tudo, para isso existem os especialistas, os formados na matéria, os entendedores. E esses, infelizmente, não são os políticos, a big pharma, os médicos, ou os filantropos, todos cheios de boas intenções, as mesmas que, segundo reza o ditado popular, está o inferno cheio.

    Digo infelizmente porque só nos foi dado acesso a estas opiniões, destas mesmas pessoas sem qualificações para tal, que teimam em silenciar ou ignorar os verdadeiros entendidos na matéria: “Deram-nos acesso às publicações, mas negaram-nos o acesso aos dados subjacentes mediante solicitação razoável. Isso é preocupante para os participantes do estudo, pesquisadores, médicos, editores de periódicos, formuladores de políticas e o público”, afirmaram Doshi, Godlee e Abbasi.

    E acrescentaram ainda que “os periódicos que publicaram esses estudos primários podem argumentar que enfrentaram um dilema embaraçoso, entre disponibilizar rapidamente os resultados resumidos e defender os melhores valores éticos que apoiam o acesso oportuno aos dados subjacentes. Na nossa opinião, não há dilema; os dados anonimizados de participantes individuais de ensaios clínicos devem ser disponibilizados para escrutínio independente.”

    Não pretendo questionar o porquê desta falta de transparência na partilha de dados científicos que a todos nós dizem respeito, até porque somos nós, não só os recetores do produto em questão, mas somos também os seus financiadores, enquanto contribuintes.

    Não pretendo também desmotivar ninguém de se vacinar, pois, acredito que em matérias de saúde, como em qualquer outra que diga respeito à liberdade de cada um, a cada um cabe decidir, livremente.

    Também não pretendo afirmar que as vacinas são ineficazes ou prejudiciais, porque isso não sei.

    Mas gostaria muito de saber, gostaria muito de ter acesso à verdadeira Ciência, à Ciência que serve aos interesses de todos nós, e não de apenas alguns; à Ciência que é feita com transparência, sem interesses sub-reptícios, sem agendas escondidas, e essa só é possível de ser feita e avaliada por especialistas independentes, em tempo útil, o que não está ainda, a acontecer.

    “O principal teste de vacina contra a covid da Pfizer foi financiado pela empresa e projetado, executado, analisado e criado por funcionários da Pfizer. A empresa e as organizações de pesquisa contratadas que realizaram o teste detêm todos os dados.”, pode ler-se no mesmo editorial.

    person holding orange and white toothbrush

    E acrescentavam ainda: “Entre os reguladores, acredita-se que a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA recebe a maioria dos dados brutos, mas não os liberta proactivamente. Após um pedido de libertação de informação à agência para os dados da vacina da Pfizer, a FDA ofereceu libertar 500 páginas por mês, um processo que levaria décadas para ser concluído, argumentando no tribunal que a divulgação pública de dados era lenta devido à necessidade de redigir primeiro informações confidenciais.”

    Confidenciais?! Agora os nossos dados de saúde, que a nós nos dizem respeito, devem ser de nós escondidos? Para proveito de quem? Para nos proteger do quê? Com que intenção?

    Como escrevi em outro texto aqui no PÁGINA UM, a minha existência pauta-se mais por dúvidas do que por certezas, mas mantenho a esperança de que, neste assunto em particular, não esteja sozinha neste questionamento e exigência da verdade científica.

    E espero que as nossas memórias não continuem a ser curtas, para que não cometamos o gravíssimo erro de deixar, uma vez mais, a História repetir-se.

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um novo Hotel Ruanda

    Um novo Hotel Ruanda


    Poucas coisas se comparam à emoção de ter um texto pronto a enviar, e ver o computador entregar a alma ao Criador antes de o gravar.

    Quer isto dizer que o caro leitor apanhará um texto novo sobre outra temática, produzido quando me passar a neura?

    Não, não senhor.

    O estimado leitor que apoia este jornal vai ler o mesmíssimo texto, mas elaborado com as palavras que a minha memória guardou. Não prometo grande coisa, porque a minha memória apresenta-se, taco a taco, ao nível dos conhecimentos de Excel da doutora Graça Freitas. Mas, convenhamos, o Colombo também não sabia o caminho, e tentou. Vamos a isto.

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    Volto a uma forma particular de argumentação que me enerva: a de que apenas podemos discutir um assunto de cada vez, para não cairmos em whataboutismo. Coisas que me enervam são, aliás, a minha maior fonte de escrita, e felizmente o mundo nunca me desilude.

    Sempre que ouço ou leio a redução mental de “então és um whataboutista“, se, por audácia, discutirmos Palestina, Iémen ou Afeganistão entre um ou outro morteiro no Donbass, fico na dúvida se terei perdido algo nos últimos anos? Nomeadamente no que concerne ao envio de arroz para o Iémen e no acolhimento de afegãos na União Europeia.

    Ouvindo quem recusa o alargamento do debate, parece que estávamos todos imbuídos numa solidariedade monstruosa com as guerras em África, Ásia e Médio Oriente, e, de repente, com um conflito mais próximo, interrompemos os esforços para nos concentrarmos na ajuda aos ucranianos.

    Ora, como se percebe, nada disso alguma vez aconteceu. Os conflitos que geram refugiados há décadas nunca nos mereceram particular interesse, e quem agora inventou essa idiotice do whataboutismo precisa apenas de um escape argumentativo que justifique o racismo encapotado.

    Não é preciso andarmos com voltas e mais voltas, é preferível chamarmos os bois pelos nomes, usando aqui algum português técnico.

    Tedros Ghebreyesus, presidente da Organização Mundial de Saúde, disse esta semana que é importante continuar a ajudar a Ucrânia, mas que, e cito, o “Mundo não presta a mesma atenção às vidas de negros e brancos “. O pobre Tedros não sabe que, por esta altura, em Portugal, já é considerado whataboutista (usou um “mas” no discurso), um comunista e um pró-Putin. Nada mau para uma manhã de trabalho.

    Mas o nosso TG não está só na afirmação. Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, anunciou esta semana um acordo assinado com o Ruanda para alojamento de refugiados com destino a terras de Sua Majestade. Em abono da verdade, Party Boris não está a ser muito original.

    Já no ano passado, a Dinamarca iniciou um protocolo semelhante com o mesmo Ruanda e outros países africanos. A ideia é simples e pretende desocupar as fronteiras do Reino Unido. Quem ali chegue vindo do Magreb, do Médio Oriente ou de outras paragens problemáticas, em busca de um futuro seguro, será gentilmente recambiado para o Ruanda. Entre fugir de uma guerra na Ásia Central ou desembarcar no Ruanda, julgo que toda uma nova equação de vida se coloca.

    Passei esta semana em Londres, e ouvi diariamente na BBC as críticas e os apoios a esta medida. Um parlamentar dizia que o Reino Unido gastava uma fortuna em hotéis para alojar todos os refugiados que por cá apareciam, e que, como se percebe, o modelo não era sustentável.

    Já enviar essa malta para longe, algures no centro de África, parecia, segundo este deputado, uma medida com futuro. Aliás, para quem sabe um bocadinho de História, os hotéis no Ruanda costumam ser um porto seguro, se não aparecer um machete maroto aqui ou ali.

    Curiosamente, estas medidas não se aplicam a refugiados ucranianos. À primeira vista, comentar esse facto poder-vos-ia parecer um ligeiro whataboutismo, mas, se pensarmos bem, é só uma colocação do referencial no sítio certo.

    Portanto, chega um ucraniano a Londres ou Copenhaga, recebe casa, comida e uma ajuda para voltar a organizar a vida. E ainda bem – já agora, convém dizer isto. Ainda bem.

    Chega um afegão a Gatwick ou um sírio a Kastrup, e, com sorte, acorda dali a uns dias em Kigali.

    No meio disto, aparece o Tedros a dizer que tem a sensação de andarmos a tratar a vida de forma diferente consoante a tonalidade da pele.

    Tedros, Tedros… vê se te acalmas. Ninguém suporta whataboutistas.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A claque dos generais

    A claque dos generais


    Não tendo passado por qualquer teatro de guerra, nem sequer como soldadinho de chumbo, tenho apreciado com algum vigor os comentários aos comentários no que ao desfilar de militares nas televisões nacionais diz respeito.

    Aparentemente, também se está a formar uma claque de vila bajo e outra de vila arriba – publicidade dos anos 90, sinal primeiro de velhice – para puxar pelos nossos generais.

    Pelo que percebo, se dizem aquilo que achamos ser a lógica da guerra no momento, são as vozes da razão. Já se escorrem opiniões disparatadas, são uns energúmenos ao serviço de alguém. Note-se que somos nós, que nem o serviço militar fizemos, que decidimos o que faz sentido ser dito sobre o teatro de guerra.

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    Jornalistas conceituados como, por exemplo, Fernanda Câncio, insultam generais no Twitter ridicularizando as suas opiniões. Classificando-as como disparatadas.

    Fernanda Câncio pode não detectar uma moscambilha, digamos, no próprio quarto ou no cofre de uma hipotética sogra, mas sobre invasões e reagrupamento de batalhões não pede meças a ninguém.

    Acho extraordinária a arrogância com que arriscamos entrar em campos desconhecidos. É algo muito português esta coisa da convicção na opinião. Não primamos pela busca do conhecimento, mas defendemos, com unhas e dentes, uma opinião pouco fundamentada. Até ao limite. Mesmo que tenhamos de insultar homens que andaram em cenários de guerra como observadores internacionais.

    Tudo porque, no decorrer de uma guerra, eles, os militares, não pensam como nós, que vimos todos os Rambos e até nos emocionámos com o Platoon.

    E nesta coisa das claques definimos logo que uns militares defendem cegamente a causa russa, outros estão pela Ucrânia. A poucos parece passar pela cabeça que aqueles homens, sentados em frente a uma câmara, se limitam a correr o risco de emitir uma opinião para que possam ser mais tarde ridicularizados pelos verdadeiros especialistas de sofá.

    Se afirmam que o exército russo é mais forte, são pró-Putin. Se observam na resistência ucraniana os novos barbudos da Sierra Maestra, logo são pró-Zelensky. Sofrem do delito de opinião e sujeitam-se ao julgamento da Câncio, do Milhazes ou do Rogeiro, que fala por interpostas pessoas com o Zelensky.

    Durante a pandemia tínhamos doutorados em Geologia a dar lições de Saúde Pública, e todos faziam ámen. Agora temos militares a falar sobre guerra e… dizem que todos estão ao serviço de uma agenda qualquer. Tenho a impressão de que o excesso de informação nos retirou a capacidade de raciocínio. Ou, pior, nos deixou com a sensação que sabemos mais do que nos ensinaram.

    white ceramic mug on table

    Hoje ouvi um militar na CNN, cujo nome não decorei, a dizer que na preparação da grande batalha do Donbass, as tropas russas estavam com o moral em baixo. A razão? Muitos reservistas vinham de longe, lá dos confins da Sibéria, mal preparados, sem saber bem o que iam fazer para o centro da Europa. Já os ucranianos, com os civis em grande forma e os drones a terem um papel decisivo, estariam em melhor posição para a fase decisiva do conflito.

    Com os afilhados de Putin a ganharem votos por toda a Europa civilizada – veja-se França, por exemplo –, a última coisa que precisamos é que a Rússia ganhe mais território em direcção ao Ocidente.

    De modo que, como nem sequer passei da recruta, espero que o general de hoje tenha razão. Na dúvida, vou ver o que a Câncio diz. Só para ficar esclarecido.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.