Categoria: Opinião

  • O socialismo está a vencer…

    O socialismo está a vencer…


    Ao fim de vários anos, decido gozar um período de férias com a minha família. Regressámos ao princípio dos anos 90: metemo-nos num carro e partimos por essa Europa fora.

    Mas, apesar de tudo, os tempos já são outros. Viajar de carro tornou-se um luxo extremo. A gasolina nunca esteve tão cara. Aproximámo-nos dos míticos 500 escudos por litro (2,5 Euros), algo impensável há três décadas.

    Primeira paragem, a cidade onde vivemos quase 10 anos, onde os meus filhos frequentaram o infantário, a primária e parte do secundário: Barcelona.

    Em dois dias, com uma paragem num hotel de estrada à entrada de Madrid, chegámos. Apenas em Portugal nos cobraram portagem. O litro de gasóleo em Espanha, depois de aplicado o desconto de 20 cêntimos, situa-se agora em torno de 1,85 euros. Em Portugal, está em 2,2 euros. Algo que, enfim, não nos devia espantar, pois, como todos sabem, somos sumamente mais ricos que os nossos vizinhos espanhóis. Talvez seja esta a razão para ninguém levantar um dedo em protesto.

    Em Barcelona, estivemos três dias a rever amigos. Apesar de todos os ataques, a sociabilidade com outros seres humanos é das melhores coisas que levamos desta vida. A esta distância, e depois de voltar a viver em Portugal desde 2019, o que mais me surpreendeu foram os empregos das pessoas, algo que nunca tinha dado a devida atenção.

    Na capital da Catalunha, o grande desejo de qualquer pessoa é ter um negócio ou singrar numa grande empresa – sócio de uma grande sociedade de advogados ou de consultoria, sócio de uma auditora internacional… A burguesia catalã sempre me surpreendeu pela sua riqueza, aptidão para os negócios e obsessão com a educação dos seus filhos. Talvez isso explique a enorme diferença com Portugal: com uma população de apenas 7 milhões (70% da nossa), o seu PIB é superior ao de Portugal.

    Sagrada Famiglia cathedral during daytime

    Para minha surpresa, os tempos parecem estar a mudar. Uma das minhas amigas, que tem um negócio de promoções em jornais, é uma grande proprietária de imóveis em Barcelona. Segundo me explicou, durante a putativa pandemia, o governo de Espanha decidiu impor um tecto às rendas praticadas em determinadas áreas da cidade.

    Esta medida foi “vendida” como uma forma de “partir os dentes à especulação desenfreada” – já ouvimos isto algures… nunca compreendi a obsessão pela fixação de preços, pois nunca resultou. Ninguém se pergunta se, por exemplo, a 800 euros existem inquilinos disponíveis; se sim, por que razão o proprietário é obrigado a cobrar apenas 650 euros? Tem de realizar caridade em nome de quem?

    Por outro lado, muitos inquilinos protestam agora contra o possível aumento de 10% ou mais das rendas no final do presente ano, em virtude de uma taxa de inflação em dois dígitos. É sempre surpreendente que nunca se acuse o Governo de ser o principal responsável dessa mesma inflação, vertida directamente da impressora de notas do seu Banco Central. Ao Governo pede-se o confisco puro e simples dos proprietários.

    Parece que Espanha regressa ao Portugal pós-revolucionário, em que os proprietários se viram impossibilitados de aumentar as rendas em linha com a inflação. Qual foi o resultado? Um parque imobiliário completamente decrépito, em particular nas cidades de Lisboa e Porto.

    A ténue liberalização das rendas e o sucesso do alojamento local fizeram reverter parcialmente esta desgraça. Não será por muitos anos: o socialismo, entranhado nos nossos dirigentes, encarregar-se-á de reverter os ventos favoráveis que se registaram neste sector nos últimos anos.

    No barco para a Sardenha, aproveito para dar uma olhada na imprensa nacional e internacional. Nada de novo. O representante máximo da República, que pisa há mais de dois anos a Constituição que jurou defender, decide ir de férias ao Brasil e visitar um candidato pouco recomendável, em lugar de realizar a visita oficial. A imprensa mainstream, como previsível, rejubilou com o mergulho na praia de Copacabana. Parece que foi o melhor momento da visita: o tronco nu, os calções de banho, a pele e o cabelo molhado.

    Leio, também, que vários aeroportos europeus se encontram perto da ruptura: caos, filas e cancelamentos de voos parecem ser a norma em pleno período de férias. É sempre enternecedor verificar que a imprensa mainstream nunca aponta o dedo aos confinamentos a pretexto de um vírus com uma taxa de sobrevivência superior a 99%. A culpa parece ser do SEF, os que matam ucranianos à pancada, e da falta de funcionários.

    Entretanto, os meus olhos passam por um panegírico, num estilo canino, ao ministro das Infra-estruturas, o tal que enterrou mais de 4 mil milhões de euros na bancarroteira nacional. Parece que foi assinado por alguém que se diz jornalista.

    Por fim, a revolta dos agricultores holandeses, em protesto contra o fecho de 30%, ou mesmo mais, de explorações agrícolas decretado pelo Governo holandês. Parece que o objectivo é reduzir as emissões de poluentes, como os óxidos de azoto, em 50% até 2030. O socialismo continua a prosperar: planeadores centrais decidem quanto e quem pode produzir, em nome do combate às alterações climáticas que ainda ninguém provou que seja um fenómeno ou mesmo causado pelo Homem.

    Tal como na revolta dos camionistas no Canadá, noto a total ausência desta revolta na imprensa mainstream, sempre do lado dos facínoras e aspirantes a tiranos.

    Chego a uma conclusão: é melhor nem ler notícias. Fico-me pelos livros.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O círculo perfeito da opinião pública

    O círculo perfeito da opinião pública


    Ouvi uma análise que me pareceu realista sobre o actual momento da guerra na Ucrânia. Referia o cansaço da opinião pública sobre o tema e a prova dos nove na solidariedade com o povo ucraniano, agora que a vida dos europeus começa a ficar caótica por causa da subida das taxas de juro e o aumento galopante da inflação.

    Uma coisa é estarmos sentados no sofá a pedir mais sanções contra os russos; outra, bem diferente, é quando nos dizem que, afinal, nos vão levar o sofá. É mais ou menos nesse ponto que estamos.

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    Um presidente de uma confederação de sindicatos alemães avisou, ontem, que a quebra de fornecimento de matérias-primas russas estava a colocar toda a indústria germânica em risco. O colapso pode estar iminente e uns milhões de empregos também. A Alemanha é o motor da Europa: se espirram os outros constipam-se.

    Aquele sentimento de empatia que os europeus dispensaram a um povo que sofre, aqui ao lado, começa a ficar para segundo plano quando, por causa dessa guerra, o nosso próprio modo de vida está ameaçado. No fundo, assim que a solidariedade nos custou mais do que simples bandeiras no Facebook, resolvemos tratar da vidinha.

    Começa, pois, a fase mais “palestiniana” para os invadidos no Donbass: a malta sente a vossa dor e temos pena que tenham ficado sem casa, mas a Lagarde disse-nos que também quer ficar com a nossa. De modo que é altura de fazer contas à vida.

    Isto leva-nos a duas conclusões simples.

    A primeira é que a solidariedade com os povos é bonita, mas apenas quando não nos sai da pele.

    A segunda é que, agora, a mesma guerra que nos levou a “defender” os invadidos nas redes sociais, serve como desculpa para os deixar de mãos a abanar.

    No nosso dia-a-dia, a cada subida de preços de serviços, não há quem não use esta guerra como justificação.

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    Já perdi a conta aos aumentos estapafúrdios com base na invasão russa. Pedreiros que aumentam o preço hora; jardineiros que dobram o seu custo; empresas familiares (ou não), com os mesmíssimos salários e custos, sobem 50% o preço do seu trabalho por causa da gasolina mais cara. A própria gasolina que “NÃO VEM DA RÚSSIA” atinge preços incríveis com a desculpa da Ucrânia. Empresas de software que cobram mais sem que se perceba porquê. Onde é que uma licença de software sofre por causa de uma guerra?

    Ou seja, o cenário está criado e as empresas aproveitam para aumentarem os lucros, muito para lá da compensação exigida pela inflação. No topo de tudo isto, aparecem os bancos com carta branca para fazerem o que bem lhes apetecer. No caso nacional, ainda com a particularidade de serem instituições privadas quando escolhem o lucro, mas públicas na altura de serem salvas. De facto, só mangas e jacas não crescem no meu país, de resto tudo se dá.

    O engraçado desta história é o círculo perfeito da opinião pública e publicada. Quando os governos europeus decidiram as sanções à Rússia e o fornecimento de armas à Ucrânia, a maioria concordou. Poucos, pouquíssimos, nos jornais e televisões disseram que a paz não se alcança com mais armas.

    Lembro-me de, na altura, ter pensado (e escrito) para onde queriam os nossos governantes ir? Derrotar a Rússia? Envolver a NATO? Combater até ao último ucraniano? Nunca entendi que fim esperavam os países da União Europeia com esse apoio. Dos Estados Unidos percebi, aliás, eles explicaram: desgastar a Rússia. Tudo bem. Para eles.

    blue and yellow striped country flag

    Agora nós, europeus, que saída tínhamos de não empobrecer com isto sem que chegássemos a uma mesa de negociações? Nenhuma. E quanto mais tarde lá chegássemos, pior.

    Inicialmente, eram só os combustíveis. Um clássico da extorsão, a malta ainda aguenta. Depois foi a inflação, os salários, as greves, a perda do poder de compra e a machadada final dada pelo Banco Comercial Europeu (BCE), as taxas de juro. Julho chegou e os aumentos nas prestações estão aí. Num país pobre, como o nosso, é isto uma sentença de morte e uma bomba-relógio social.

    Enfim, começou a arrefecer a solidariedade e a chegar o nervoso miudinho. Como é que vamos pagar a casa com juros a 4%? Nas televisões já falam no ponto de viragem e da onda de choque trazida pela guerra que, quatro meses depois, chega finalmente ao nosso quotidiano com força destruidora.

    Nos jornais já nos perguntam o que fazer com todo o arsenal que ficará na Ucrânia depois da guerra. Os comentadores já se dividem entre o “continuar a enviar armas” e o “dificilmente não teremos negociações e cedência de território”.

    Ninguém o quer dizer alto porque pensa “e se fôssemos nós?”, mas depois recebem o aviso do banco com a nova prestação situada 300 euros acima “por causa da guerra”, e já só querem que os ucranianos desistam do Donbass. E isto mesmo que o Donbass seja apenas a desculpa que o banco utilizou para nos sacar mais dinheiro. O mercado, o eterno mercado que ninguém percebe e que mesmo assim segue.

    E fecha-se o círculo: de exaltados apoiantes de sofá a envergonhados ausentes… carregados de dívidas.

    Pobres ucranianos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Preparem mais caixões

    Preparem mais caixões


    Enquanto se andou entretido com o monkeypox, obstetras, aeroporto e outras coisas de similar relevância, a imprensa mainstream não tugiu nem mugiu com os 10.000 óbitos em Junho. O Governo agradeceu.

    Para eles não teve qualquer importância. Os directores da nossa imprensa têm coisas mais relevantes a tratar, muitas conferências a organizar, conteúdos comerciais a escrever para farmacêuticas, bancos, consultoras e para o que der dinheiro, as férias a organizar, a praia a esperar, as banhocas a tomar. Merecem porque se têm portado muito bem.

    man in white robe standing beside concrete statue

    Anuncia-se, entretanto, temperaturas elevadas para os próximos dias com um pico junto ao fim-de-semana. Pela amostra do calamitoso estado de saúde dos mais idosos, e daquilo que se passou em muitos dias de Junho, anuncia-se novo morticínio.

    Anteontem, o calor de domingo já deu para 341 mortes. Numa situação normal seriam 270-280. Com termómetros acima dos 35 graus e se tivermos várias noites com mais de 20 graus vai ser um “ver se te avias”.

    Não há plano de contingência montado, não há uma estrutura preventiva, os centros de saúde andam às aranhas com falta de médicos, os militares só servem para dar vacinas e vestir camuflados, a DGS não existe, a ministra inexistente, para o calor não serve para nada ter zaragatoas nem testes PCR.

    Nem vacinas, porque não há vacinas contra a incompetência.

    Nem punição para os culpados.

    Importem caixões. Vamos precisar deles durante este mês.

  • Os merckalistas: os novos jornalistas

    Os merckalistas: os novos jornalistas


    Um florescente negócio se tem vindo a desenvolver na imprensa mainstream. É já um novo paradigma onde já não há necessidade de apresentar uma distinção clara entre notícias e anúncios, entre publicidade e informação. Na verdade, os praticantes deste novi-jornalismo  – não confundir com o Novo Jornalismo, onde o jornalista emerge dentro da notícia, dando um cunho literário – são pessoas pragmáticas: afinal, sendo os leitores simultaneamente consumidores, por que não lhes transmitir, em dose única, notícias e publicidade, informação e anúncios?

    Muitos são os exemplos que se poderiam usar, mas para efeitos pedagógicos escolhemos as relações entre o Público e a Merck – uma farmacêutica alemã. Não se deve confundir esta empresa com a norte-americana Merck Sharp & Dohme, que, aliás, também teve recentes relações comerciais com o Público. Aliás, tal como a GlaxoSmithKline, a AstraZeneca, a Boehring Inglheim, Takeda… Nos últimos dois anos, as farmacêuticas têm sido um “ventilador financeiro” da imprensa mainstream.

    Mas peguemos na Merck – até porque, enfim, justifica o título, que não é gralha.

    Merck 1…

    Ora, por valores que estarão sempre no “segredo dos deuses”, porque comerciais, o Público e a Merck selaram um acordo para a produção de conteúdos comerciais. Variados. Sobre saúde, e apenas este ano, já vão quatro, que deram origem a outros tantos textos, a saber:

    Infertilidade: a ciência ao serviço da esperança (30 de Junho de 2022)

    Detecção precoce do cancro da bexiga melhora o prognóstico (31 de Maio de 2022)

    Esclerose Múltipla: como travar a doença e melhorar a qualidade de vida? (30 de Maio de 2022)

    Hipotiroidismo: relação médico-doente é crucial no diagnóstico e tratamento (25 de Maio de 2022)

    Dirão, em sua defesa, que são mesmo conteúdos comerciais. E assim é: encimando e finalizando a página onde surgem os textos, lá consta o nome do “patrocinador”. Sucede, porém, que nem aparece o autor do texto – há muitos ghost writers nas redacções – nem o Público tem a preocupação de fazer a distinção entre esses textos comerciais no Google News.

    … Merck 2…

    Para os internautas, se procurar no Google por “cancro da bexiga” e “Público” na secção das Notícias, lá lhe surgirá escarrapachado conteúdo comercial travestido de notícia. Um equívoco que convém tanto ao Público como ao seu cliente.

    Porém, quem “vende” indirectamente medicamentos – “vendendo” mensagens das farmacêuticas que os vendem directamente –, também vende a imagem da empresa. Ora, o Público, nesta senda do novi-jornalismo, trata também do branding dos seus clientes perante os seus leitores. Por exemplo, acoplando-se, sob a forma de prestação de serviços, à Merck para promoção da sua suposta – que pode ser mesmo efectiva – preocupação em matérias de igualdade de género.

    Porém, uma coisa seria elaborar um artigo independente sobre igualdade de género onde até, concede-se, se poderia destacar o papel inovador da Merck – talvez com uma declaração de interesses por ser um parceiro comercial na área da saúde –; outra coisa, completamente diferente, é o Público promover um debate no dia 19 de Abril passado, que na verdade foi uma prestação de serviços – com a participação da sua editora-executiva Helena Pereira (estava inicialmente prevista a presença do director Manuel Carvalho) e moderação de uma jornalista da RTP – em que há três – repito: três – representantes da Merck a lançar loas e cantar panegíricos à própria empresa.

    Vejamos: Rita Reis, apresentada como head of communications para o Mid Europe e Portugal; Marieta Jiménez, apresentada como senior vice-president Europe; e Pedro Moura, apresentado como managing director, que é o homem que paga as contas.

    … Merck 3…

    Para dar um lado sério, o Público conseguiu, como órgão de comunicação social, “sacar” para o debate, entre outros, a presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, Sandra Ribeiro. E, à boleia, a responsável para a Inclusão da Sonae MC, dona do Público.

    Porém, tudo isto serviu basicamente para apresentar um suposto estudo nada independente, realizado para a Merck por uma empresa de market research ad hoc, a Spirituc, que conta com 22 farmacêuticas na vasta carteira de clientes, servindo assim o Público de veículo de (suposta) credibilidade na transmissão da mensagem para o seu (incauto) público.

    Antes, a ingrata tarefa de “vender” este tipo de mensagens era das agências de comunicação – que se esforçavam, nem sempre com sucesso, em convencer os jornalistas da bondade dessa mensagem –, mas agora é feito directamente por novi-jornalistas. Isto paga ordenados, matando o jornalismo sério.

    Aliás, na verdade, a seriedade de tudo isto é tão pouca que o Público, que recebeu dinheiro para promover o debate, acabou por antecipar as conclusões do estudo encomendado pela Merck, publicando uma notícia (no seu site), mesmo uma notícia (supostamente sem conteúdo comercial) no próprio dia do debate – porém, não escrita por um jornalista da casa, antes recorrendo a um take da Lusa. Perfeito na manipulação.

    … e no próprio dia do debate, por si organizado e pago pela Merck, o Público antecipa os resultados do estudo. Porém, usando um take da Lusa.

    Por fim, a cereja em cima do bolo da promiscuidade: desde o final do mês passado, o Público oferece uma assinatura semestral aos profissionais de saúde, uma campanha denominada P Profissional.

    Na verdade, não é uma oferta: é “uma iniciativa com o apoio da Merck”.

    Leia-se: paga a Merck.

    Esta Merck está agora em todas. Mas poderia ser outra qualquer empresa.

    Mas, aviso já, a conta da farmacêutica arrisca-se a ser choruda no caso de o contrato tiver sido estabelecido em função do número de assinantes cativados pelo Público.

    Campanha de oferta de assinaturas para profissionais de saúde permitem uso generalizado. Paga a Merck.

    De facto, apesar de a campanha se destinar apenas a enfermeiros, farmacêuticos, médicos, médicos dentistas, psicólogos, nutricionistas, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e técnicos de emergência pré-hospitalar – o que já daria potencialmente para umas valentes dezenas de milhares de novos assinantes –, não é preciso qualquer comprovativo para se fazer o registo.

    Basta escolher uma qualquer profissão e dar o e-mail: nem é preciso enganar, inventando; pode ser um e-mail profissional. Como aquele que usei esta tarde, o do PÁGINA UM.

    Não faz mal. O mercado manda, porque o mercado paga. A Merck paga aos jornalistas, como outras aos jornalistas pagarão. E se é agora directa, quando antes era indirectamente, por via de uma clara publicidade que não se imiscuía na linha editorial nem usava jornalistas, já pouco lhes importa. A muitos jornalistas, que já desistiram dos seus leitores, preocupa-os somente o rendimento mensal.

    Por isso, os merckalistas não se importarão com este meu pequeno pecadilho com o leitor. Eles não são gente de se preocupar com minudências. Ganham sempre: neste caso, a Merck pagará a minha conta por seis meses, e tudo fica bem. E outras empresas haverá que lhes pagarão outras. E assim sucessivamente… até à morte da Imprensa. Amen.

  • Novo aeroporto?! Lisboa que se mexa!

    Novo aeroporto?! Lisboa que se mexa!


    Há uns anos, numa daquelas conversas de elevador, dizia-me um colega brasileiro que estava a adorar a experiência europeia. Segundo ele, como as distâncias eram tão pequenas, em cada fim-de-semana ia ver um país diferente.

    Achei a prosa um pouco exagerada, mas percebi com o comentário que se seguiu: “é que no tempo da universidade fazia 1.000 quilómetros de autocarro para ir a casa (que ficava noutro Estado) a cada fim-de-semana”.

    Portanto, para este camarada, um Copenhaga-Berlim era já ali; e um Gotemburgo-Londres dava para um cochilo rápido.

    saida-exit signage

    A noção de distância depende, obviamente, dos sítios que percorremos. Na minha ilha, por exemplo, a maior distância por estrada são 22 quilómetros. Uma pessoa que vá levar o filho aos treinos de futebol fica a engonhar duas horas para não andar “para baixo e para cima”, percorrendo a totalidade dos 10 quilómetros. Porquê perder 20 minutos quando podemos perder duas horas? Fazer os cinco quilómetros duas vezes é que não.

    Em Portugal, de uma forma geral, consequência de um país pequeníssimo, embrulhamo-nos em discussões eternas sobre voos ou concertos que existem em Lisboa, e não no Porto; ou estradas que estão no litoral e não no interior.

    Sempre que aqui chego vejo uma auto-estrada nova, mas admiro-me que ainda não exista uma na porta de cada português. Lá chegaremos.

    Até já ouvi reclamações só porque determinado artista/comediante faz um espectáculo em Lisboa ou em Almada, mas não vai a Setúbal. Portugal atravessa-se num dia; porém, nós queremos que o mundo comece e acabe no nosso bairro.

    silhouette of man sitting on bench

    Isto para dizer que esta história do aeroporto de Lisboa é, de momento, pouco mais do que uma paródia.

    A quantidade de estudos, milhões de euros públicos gastos e decisões inócuas, num país de Primeiro Mundo, dariam prisão. Por cá já anunciaram agora três aeroportos: OTA, Portela + 1 e Alcochete. Todos bem estudados, e com as consultoras que gravitam na órbita do Estado, devidamente engordadas. Contar 50 anos de estudos para definir, em definitivo, o local para um aeroporto é uma daquelas coisas que temos vergonha de dizer fora de portas.

    Mas é real. De facto, continuamos sem decidir onde será o novo aeroporto de Lisboa, mesmo sabendo que o actual recebe milhões de pessoas todos os anos, apenas com uma pista de aterragem a funcionar.

    Somos os mestres do desenrascanço. Bastou um avião privado ter um azar – um rebentamento de dois pneus na aterragem – e a Portela voltou para a Idade da Pedra: voos desviados, aeroporto encerrado, partidas canceladas e filas intermináveis de espera com passageiros que desesperavam para chegar a casa. Porquê? Porque a alternativa à pista existente são os autocarros da Barraqueiro. Ou o UBER.

    A cidade engoliu o aeroporto. Lisboa cresceu até tocar na pista de aterragem, e será hoje, julgo, uma das poucas capitais europeias com o aeroporto na sua zona central. Chegámos aqui porque os sucessivos Governos se limitam a estudar e estudar, chutando para mais tarde qualquer decisão.

    Pedro Nuno Santos tentou despachar o assunto e foi arrasado. Juro que li “atitude precipitada”. Importam-se de repetir? Imprudente? Apressado? Depois de 50 anos? Era necessário um pacto de regime com o PSD? Como os restantes que nos trouxeram aqui? Este país ainda adora as comissões de Salazar. Discute-se para dar a impressão de que há movimento apenas para que tudo fique na mesma.

    white passenger plane flying over snow covered mountain during daytime

    Confesso que não percebo o que pode ser tão complicado na decisão de uma obra pública como um aeroporto. Quantas décadas e estudos são necessários mais? A discussão deve ficar ao rubro entre especuladores imobiliários e municípios interessados, compreendo isso.

    Imagino, aliás, os lobbies e a quantidade de boys apertados nestes anos para influenciarem a decisão aqui ou ali. Mas por favor… estamos em Portugal, já sabemos que a obra encherá os bolsos a uns quantos e, portanto, andem lá com isso e facilitem a vida aos viajantes. O dinheiro gasto já dava um terminal internacional. Daqueles onde pensamos que o gin é mais barato, mas depois percebemos que fica mais em conta no Pingo Doce.

    De entre as várias discussões que este tema acarreta, a minha preferida é a da distância. E aqui lembro a conversa inicial do meu amigo brasileiro para quem a conversa de “longe” começa nos 1.000 quilómetros. Li dezenas de indignados que, de uma forma geral, davam a entender que tudo o que não fosse uma pista no Rossio, parecia ser a visão do Apocalipse.

    Montijo e Alcochete são longe de Lisboa. Ota é longíssimo. Beja é noutro planeta.

    São as mesmíssimas pessoas que adoram voar com a Ryanair, e que elogiam a experiência de aterrar no Aeroporto de Frankfurt-Hahn quando compraram um bilhete para Frankfurt, não se importando que fique a 125 quilómetros daquela cidade alemã. Que aterram em Bérgamo quando no site dizia Milão, distando afinal 45 quilómetros. Que chegam a Skavsta, a 100 quilómetros a sul de Estocolmo, quando querem chegar à capital sueca. E que dizer de Charleroi, quando o destino é Bruxelas? Ou Stansted, e afinal vão para Londres?

    people walking on sidewalk near yellow tram during daytime

    Ora, mas uma coisa é passar uma hora num comboio ou autocarro, num destino qualquer europeu, a caminho do centro depois de aterrar a mais de uma centena de quilómetros de distância; outra é fazer isso dentro de portas. Era o que faltava!

    Aterrar do outro lado da ponte? Ou num aeroporto que já está feito (Beja), e que num comboio de alta velocidade nos pode deixar em Lisboa em menos de uma hora? Please: isso não é para nós! Além do mais Beja já está pronto, como é que se pagavam os favores? Não! Vamos com calma procurar um sítio perto, sem flamingos ou pontes.

    E, já agora, eu sugiro uma alternativa: desloque-se antes Lisboa. O aeroporto da Portela fica. Às tantas, em despesas de construção e em pagamento de mordomias, o saldo aumentaria mais; e, portanto, compensaria.

    Estude-se!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Hoje pode ser que não mates ninguém

    Hoje pode ser que não mates ninguém


    A comunicação é a chave da sobrevivência.

    As células comunicam, os órgãos comunicam, os animais comunicam; aliás, a própria Natureza é um complexo sistema comunicante.

    Num olhar sobre a História da Humanidade, percebemos de que forma a comunicação tem funcionado como catalisador do pensamento racional – particularidade que favoreceu o pensamento crítico, capaz de julgar, relacionar e decidir em consciência e liberdade.

    minimalist photography of three crank phones

    A propósito da Era Global em que vivemos, onde a informação se difunde a alta velocidade ligando todos os pontos do globo em poucos segundos, gostava de vos falar um pouco sobre uma regra pela qual pautamos a nossa comunicação.

    Se, por um lado, podemos afirmar que evoluímos, retirando das novas tecnologias o melhor partido, também é verdade que aos poucos criámos uma dependência, quiçá doentia, em torno desta mesma conexão que, fazendo-nos sentir tão acompanhados, nos deixa tão sós.

    Recordemos: “O homem age e o animal reage”.

    Esta é uma verdade quando nos referimos ao estado normal da consciência humana; porém, quanto mais dependemos das tecnologias mais parecemos não ser capazes de pensar sobre o que nos rodeia, tomando por vezes decisões irracionais até na luta pela sobrevivência, conscientes de que a Humanidade tende a viver em comunidade e, assim, só é capaz de vingar através de sistemas interligados que potenciam todas as ideias e vontades em torno da construção de um mundo melhor, mais justo, pacífico e tolerante.

    Por isso, acreditar nesta ideia é também entender que somos parte activa e responsável na transformação histórica desde que a Internet surgiu para ligar pessoas umas às outras. Internet que é, sem dúvida alguma, a maior reserva de informação que alguma vez existiu e uma via a infinitas possibilidades de conteúdos.

    purple and blue light digital wallpaper

    Por tudo isto, podemos entendê-la como um psicoactivo que gera sensações de novidade, imprevisibilidade e euforia, comunicando e consumindo-se instantaneamente, prestando-se ainda à evasão do quotidiano, das gentes e dos lugares envoltos numa névoa de sentimentos penosos.

    Ainda assim, a Internet parece ser um espaço democrático: todos a ela acedem em condições de igualdade, em certa medida. Neste mundo paralelo, todos temos espaço para dizer algo, mesmo que disfarçados com nomes, perfis ou avatares virtuais, acreditando, contudo, que estamos a influenciar o real – e influenciamos.

    Entretanto, na realidade virtual podemos ter mil caras, mil opiniões, milhões de certezas. Dominemos ou não o conhecimento, opinamos, julgamos, defendemos, manipulamos… É este outro dos grandes riscos: arruinar a capacidade de ser. Somos o que fazemos, o que dizemos, o que pensamos.

    Navegando pela Internet, assumimos responsabilidades profissionais, temos acesso à cultura, ao lazer, ao consumo, a diálogos e a monólogos, encontros e desencontros. A vida virtual também é real e por isso é um espelho daquilo que somos. Usamos, abusamos. Vivemos, vadiamos. Fingimos. Mentimos, desmentimos. Traficamos. Ameaçamos, asfixiamos. Matamos. Ou não.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Balanços no mercado terrorista

    Balanços no mercado terrorista


    Não sei se já tentaram acompanhar as movimentações no “mercado de terroristas”. É um hobby algo estranho, concedo, mas um excelente exercício às capacidades interpretativas e até de memória.

    Antigamente, acompanhava as movimentações no mundo do futebol, tentava perceber qual dos 30 nomes anunciados diariamente para o Benfica vinha, de facto, embora este divertimento acabou por me aborrecer. No fim chegava sempre apenas um refugo qualquer do Atlético de Madrid, e a coisa perdeu a piada.

    Já no “mercado de terroristas” a complexidade é outra e as movimentações difusas. É como jogar xadrez contra um robot que muda as regras a cada cinco minutos. Pensas que estás a perceber e, de repente, zás, começas do princípio.

    O caso mais famoso no mundo terrorista será o dos afegãos, o clássico dos Mujahideen: um povo bravo classificado como “combatentes da liberdade” no final do século XX e que, no início do século XXI, passou a terrorista.

    À partida pode ser estranha esta mudança com o virar do milénio, mas não: até é simples de perceber. Na década de 80 do século passado, os afegãos combatiam a invasão russa, logo, eram classificados pelos americanos como freedom fighters. Já em 2001, foram os próprios americanos a invadir o Afeganistão e, obviamente, a classificar os invadidos como terroristas.

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    Nada mais simples e lógico. Depois da derrota dos talibãs – lembrem-se, terroristas afegãos –, seguiram-se 20 anos de presença americana na região e dois presidentes escolhidos a dedo. Em 2021 os talibãs, agora novamente fora da lista de terroristas, negociaram a retirada americana e assumiram as rédeas do país. E quem quiser que feche a porta.

    O cartão de membro dos Talibãs já deve permitir, por esta altura, a resposta “é complicado” no menu das actividades terroristas.

    A polémica mais recente do mercado adensou-se ontem, em Madrid, na cimeira da NATO. A Turquia de Erdogan exigia que a Suécia e a Finlândia deportassem membros do PKK (Kurdistan Workers Party) e que deixassem de dar asilo, ou qualquer tipo de apoio a esta (e outras organizações) curdas.

    No fundo, o que Erdogan queria era carta branca para perseguir os curdos até onde bem lhe apetecesse dentro do espaço europeu.

    O PKK é a parte visível de um conflito com mais de 40 anos entre curdos e turcos pela separação (ou autonomia) de um território no sudeste da Turquia, junto à fronteira com a Síria e Iraque, onde se concentra a maioria curda.

    Logicamente, o conflito já tem algumas chacinas, de parte a parte, e o PKK surge classificado como uma organização terrorista pela Turquia, Estados Unidos, Reino Unido e maior parte dos países da União Europeia. Ou seja, por todos os membros da NATO.

    Note-se aqui a suprema ironia nesta classificação pelas potências ocidentais: os curdos são terroristas quando querem criar fronteiras onde, de facto, vivem. Os kosovares tinham direito a um país porque eram a maioria no sul da Sérvia. Os russófonos do Donbass são nazis e, por isso, não podem pedir autonomia. Os chechenos tinham direito à sua terra, no início do presente século, porque estavam lá há 200 anos – hoje, porém, em princípio já não, porque combatem ao lado dos russos na Ucrânia.

    Como disse ali em cima, é um mercado muito volátil e a interpretação mostra-se difícil. Quero sempre torcer pelos bons, mas, neste caso, fico baralhado no meio das histórias. Viram mais que um argumento do Hitchcock. Mas recomendo para as férias, é mais entusiasmante do que o sudoku.

    Quando os EUA pensavam que Bashar Al-Assad ia cair na guerra civil da Síria, meteram-se ao barulho e apoiaram as forças curdas que combatiam o regime. A principal frente era mantida pelo YPG (People Protection Units), uma unidade curda, conhecida por ser a extensão do PKK em território sírio.

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    Foram eles – a solo ou integrados nas forças democráticas sírias (SDF) – que combateram Al-Assad e o ISIS. Como de costume, os curdos foram à frente e deram o corpo ao manifesto para combater uma ameaça que era global: o Estado Islâmico.

    Ou seja, os Estados Unidos, através da NATO, consideravam o PKK uma organização terrorista e, em simultâneo, aliavam-se ao “PKK da Síria” para terem o trabalhinho sujo feito. Erdogan não gostou, mas comeu sem calar. No fim, como de costume, os curdos foram abandonados à sua sorte contra nova chacina turca que aproveitou a guerra civil síria para resolver assuntos internos.

    Portanto, os curdos conseguiram ser terroristas e combatentes da liberdade no mesmo dia. E abandonados no seguinte. Não é para todos.

    Agora, em Madrid, Erdogan conseguiu que a Suécia e a Finlândia não só considerassem o PKK como uma organização terrorista como os obrigou a terminar o embargo de armas para a Turquia. A Suécia é um dos maiores fabricantes de armas a nível europeu e a NATO aludiu a essa mais-valia com a entrada do novo membro.

    A partir de agora, não só acaba o asilo para os curdos como, sempre que Erdogan quiser, a Suécia tem de lhe fornecer armas, ao abrigo dos protocolos da Aliança, para que ele possa arrasar mais umas vilas no Curdistão.

    De uma assentada, a Suécia cria um problema interno – o óbvio descontentamento da enorme comunidade curda – e passa a contribuir directamente para mais uma guerra. Cessa o apoio à maior população do Mundo sem território (30 milhões) e passa a fornecer armas a um país não-democrático.

    Nada mau para uma terça-feira de manhã nos escritórios da NATO.

    Só não vislumbra a paz, aqui, quem estiver provido de “óbvia” má vontade.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Saber quantas Agudas existem em Portugal ou o aborto nos Estados Unidos

    Saber quantas Agudas existem em Portugal ou o aborto nos Estados Unidos


    São, pelo menos, três: a praia da Aguda, em Arcozelo, no concelho de Gaia, onde descobri o cheiro a maresia na infância; a praia da Aguda, em Sintra, de onde um amigo me mandou a cor das ondas; e a freguesia da Aguda, em Figueiró dos Vinhos, que descobri porque perguntei ao maravilhoso mundo da Internet.

    Sempre me fascinou encontrar os meus sítios noutros sítios. Entender o porquê de se multiplicarem por este jardim Atlântico, se foi falta de imaginação ou se existe uma razão (geográfica, que seja) para tantas Canelas em Portugal (acho que são bem mais do que três Agudas, e fazem-me sempre pensar em pontapés). Talvez seja reflexo de colonizações, invasões ou contágio.

    É desta maneira que sempre julgo ter a prova cabal que tudo aquilo que alguém pensa hoje, neste preciso momento, algures numa Aguda, alguém certamente já terá pensado antes, ou até no mesmo momento; talvez num espanto cósmico de interferência mística! Ou então, podemos convir que nada disto é novo, que há dilemas eternos, barreiras evolutivas do pensamento, eventualmente cristalizadas no seu entorno, e que sempre, sempre, passam por uma ascensão civilizacional e culminam com a sua queda.

    Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

    O dilema eterno do valor da vida humana, quando começa, quando termina, quem pode dispor dela, continua a inflamar as gentes deste mundo. Seria até de esperar que numa década tão furiosamente dominada por Cientismo, e em sociedades que clamaram por mandatos sanitários sem pruridos éticos, não houvesse agora uma bandeira de alarme hasteada em continente americano.

    O direito de acesso ao aborto nos Estados Unidos ficou consagrado há umas boas décadas, mas manco: usava do princípio da constitucionalidade – não descrita na Constituição – da privacidade.

    Agora, está aparentemente perdido e, para alguns, é motivo de gáudio; para outros é motivo para pensar que, se existir uma Aguda repetida, porventura alguém pensará igual.

    anti pregnancy pills and condoms

    Pesa ainda todo um novelo de moralidade e instituições religiosas – conhecidos baluartes de emancipação feminina (consultar no dicionário: sarcasmo) – a alardearem furiosamente a propaganda da sua mensagem.

    A verdade simples é que talvez o direito nunca tenha existido, não pelas razões que pelo menos muitas pessoas defenderiam. Talvez esse direito só tenha sido garantido enquanto o mercado – esse outro baluarte – queria acomodar as mulheres. Agora, com o monstro da recessão a bater à porta as sociedades, apressam-se em sacar os grilhões. Profilaxia.

    A verdade simples é que a preocupação do planeamento familiar cai sempre nos ombros da mulher: as consequências de ter ou não ter uma gravidez, um parto e um pós-parto; as consequências de uma pílula; as consequências de um DIU; os riscos de outros métodos mais naturais. Somos a baliza e temos de arranjar guarda-redes.

    A verdade aguda é que assim que se começou a desenvolver uma pílula masculina os primeiros estudos foram rapidamente interrompidos porque os participantes se queixaram de efeitos adversos. Alguns eram acne, diminuição da libido e variações de humor. Foi considerado que estes incómodos não compensavam em comparação com o estudo da eficácia desta pílula.

    man kissing woman's forehead white holding ultrasound photo

    Quem é mulher lê isto e não deixa de pensar, seja lá qual for a sua posição sobre o resto – e lembrando que quase todas nós sabemos que a posição é muito perigosa de ser escrita em pedra, que, pois claro, a mulher resolve. A pílula feminina “só” tem efeitos adversos como: ansiedade, depressão, flutuação de peso, cefaleia, náusea, redução da libido e até coágulos sanguíneos, entre outros.

    A verdade triste é que, neste momento, em alguns estados americanos, até as apps de monitorização de ciclos menstruais podem ser intimadas por um tribunal para fornecer dados privados sobre os ciclos das utilizadoras, para verificar se poderá ter ocorrido um aborto clandestino ou não, em caso de denúncia. Assim, à semelhança do gado.

    Importante é que se salve aquela gestação, mesmo que seja para viver na miséria, mesmo que seja fruto de violação, mesmo que a mãe seja uma criança de 11 anos – como ocorreu também agora no Brasil, e empataram a decisão até a gravidez ter sete meses. Seria, por certo, outra Aguda mais a sul.

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    A verdade muito aguda é que isto afecta e destrói sempre as vidas mais pobres, mais desprotegidas, mais infelizes. E não falo dos bebés. Falo das mães.

    A verdade obtusa é que andam a debater crenças morais quando a ética deveria falar mais alto, e lembrar que o direito à autodeterminação sobre o próprio corpo e actos médicos realizados é absoluto.

    Resta saber quantas Agudas existem no Mundo, e se estamos mesmo a ver a perda de direitos de controlo reprodutivo, em nome de fervores morais e agendas políticas que atribuem poderes de uma sociedade ditar o que podemos individualmente fazer com o nosso corpo. Nada que não esteja a ser ensaiado e aplaudido há algum tempo.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sobre esta coisa chamada opinião

    Sobre esta coisa chamada opinião


    Antes de emigrar para a Suécia costumava ter acesos debates com um amigo “passista”. Tínhamos visões absolutamente distintas do mundo e percursos de vida completamente antagónicos. Certo dia, durante um almoço perto do mar, com aquele sol bem luso e um peixe grelhado com mestria, ele abre os braços e diz-me: “Tiago, percebes agora porque não emigro? Como é que se vive sem isto?”.

    Eu ouvi, respirei e disse: “os teus pais, depois de te pagarem os estudos em universidades estrangeiras, ofereceram-te uma casa e, ao dia de hoje, usas o teu salário para as contas do Pingo-Doce e da EDP. Percebes agora porque não emigras?”

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    Os nossos caminhos deixaram de se cruzar e imagino que, entretanto, se tenha tornado liberal. Tinha tudo para ser um forte apoiante dos mercados. Mas, por mais que as opiniões dele me irritassem, eu adorava debater com o sujeito. Não só era inteligente na defesa dos seus argumentos, como o fazia de forma convicta, educada e racional. Nas estuchas que eu tinha que levar nos convívios com aquela malta, o choque de opiniões com aquele indivíduo era a única coisa que me cativava.

    E isso nunca mudou.

    Sempre preferi estar no meio de correntes diversas de opinião em vez de me situar, apenas, entre aqueles que pensam como eu. É a única forma que conheço de evoluir, aprender e até de formar a raiz do pensamento. Se falarmos apenas com pessoas que votam como nós, apoiam o nosso clube e adoram a mesma zona balnear, dificilmente saíamos da bolha a que as redes sociais e a manipulação de informação dos dias de hoje nos condenam.

    Portanto, partindo desta base de pensamento, do respeito pelas diversas opiniões e do facto de expor a minha opinião publicamente há algum tempo, estou habituado a receber críticas constantes ao que escrevo. Faz parte e até agradeço.

    Aliás, incentivo.

    people in conference

    Alguns dos reparos que me fazem ajudam-me a melhorar a escrita e até a ver as coisas de outra forma. Por outro lado, se há crítica é porque há leitores – e esse é sempre o primeiro objectivo de quem quer escrever.

    Aqui há uns anos, 2019 julgo, escrevi um texto sobre a TAP e as reclamações constantes dos portugueses aos seus serviços (não me lembro se nessa altura ainda pertencia aos privados a quem o Passos a ofereceu).

    Pelo meio fiz uma piada sobre glúten, que, como se percebe, não era o foco do texto. A coisa acabou por ter mais de mil partilhas, e eu passei os meses seguintes a ser insultado por algumas mães ofendidas, cujas intolerâncias próprias ou dos filhos, tinham sido mortalmente ofendidas com essa piada. Não é que eu tivesse matado alguém, mas, a avaliar por algumas reacções, poder-se-ia pensar que sim.

    Foi mais ou menos por esta altura que deixei de ler comentários ao que escrevo. Sejam elogiosos ou não, prefiro passar sem ver, porque tenho sempre a tendência para entrar em debate. Especialmente quando leio coisas mais disparatadas ou insultuosas. Um dos fenómenos que nunca perceberei é dos anónimos, sentados em frente a um teclado, e que dedicam boa parte do seu dia a insultarem outros anónimos, por divergência de opinião.

    man wearing black t-shirt close-up photography

    Pode ser um golo em fora-de-jogo, o resultado de uma eleição, a obrigatoriedade de uma máscara ou uma brasileira a abanar as nádegas no Rock in Rio. Tudo, mas absolutamente tudo, serve para insultar o desconhecido do lado, se este não corroborar a nossa opinião. Ora, eu acho esse movimento ligeiramente deprimente e, com a vossa licença, prefiro não entrar nele.

    Quando fui convidado para escrever colunas de opinião no PÁGINA UM, a minha pena estava mais do que identificada: emigrante, benfiquista, eleitor de esquerda, área de Ciências, contra os sucessivos confinamentos e pouco amante da histeria em volta da covid-19, sem nunca negar que o vírus existe, e nada fã de teorias da conspiração.

    Em princípio, não serei parte de nenhuma minoria escondida… vam’lá a ver: benfiquista e eleitor de esquerda, dizem os números, é onde se situa a maioria da nossa população. E pelo andar da carroça, não tarda, e também seremos mais na condição de emigrantes do que os residentes neste cantinho de bom sol e fresca sardinha.

    Portanto, quando escrevo opinião neste jornal – e isto poderá ser surpreendente –, escrevo a minha. Não a do partido A ou B, do clube Z ou Y. Pego nos temas da actualidade, e dou, sobre eles, a minha opinião. Critico o que tenho que criticar, elogio o que tenho que elogiar. Como qualquer um de nós.

    Depois das legislativas, repeti que Jerónimo de Sousa estava a afundar o PCP (e fui criticado por comunistas), que Rio não tinha qualquer ideia original e fazia a melhor oposição que Costa podia pedir. Disse que Cotrim de Figueiredo vendia um ideal que não se podia aplicar em Portugal e, mesmo assim, era constantemente apanhado em contradições na tentativa de explicar o liberalismo pensado para a nossa realidade. Valeu-me críticas da malta dos sapatos de vela. Disse que o Ventura não tinha conteúdo para mais do que dois ou três debates de seis minutos, como se provou nos 36 das últimas eleições onde chegou a ser penoso vê-lo.

    person touching and pointing MacBook Pro

    Critiquei Jorge Jesus desde o malfadado dia em que abandonou o Flamengo. Critiquei as escutas do YouTube que não foram usadas como prova no Apito Dourado. Critiquei Bruno de Carvalho por todo o ódio em que empestou o Sporting.

    Durante o confinamento, critiquei muito o Governo português, e escrevi, noutro jornal, sobre a experiência sueca onde a vida seguiu com menos limitações e restrições à liberdade individual. Alguns votantes de esquerda chamaram-me “negacionista” e votantes de direita, nomeadamente liberais ou apoiantes do Chega, sentiram-se mais representados nesse tema.

    No entanto, quando o assunto passou a ser eleitoral, os mesmos que elogiavam, passaram a insultar-me. Portanto, é normal que todos cruzemos opiniões algures na vida e que, aqui e ali, concordemos em temas.

    Aquilo que quero dizer com isto é que a minha opinião não é partidária ou ideológica. É minha. Segue apenas aquilo que a minha cabeça dita em cada momento.

    Ontem, abri uma pequena excepção, e fui ler alguns comentários ao meu texto sobre o festival do Chega. Era uma paródia, pouco mais do que isso.

    Vi que alguns leitores decidiam deixar de apoiar o jornal porque o seu partido era satirizado nestas páginas. Houve até quem pedisse mais isenção. Ora… é aqui que eu queria ser bem claro nas linhas escritas: a opinião não é isenta, a opinião nunca pode ser isenta, porque se o for, então não é opinião. É outra coisa qualquer, mas não opinião. 

    As notícias do PÁGINA UM é que são, e devem ser, isentas.

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    O facto deste jornal ser apoiado pelos leitores e não ter qualquer patrocínio de entidades privadas ou públicas, significa que nunca será pressionado para não dar a notícia A ou alterar um pouco o conteúdo da notícia B. É isso que marca a isenção do PÁGINA UM, e é isso que o torna diferente e único no panorama nacional.

    Quem espera colunas de opinião que reflictam única e exclusivamente o seu pensamento, não está verdadeiramente interessado em “opinião”, mas sim numa extensão da sua bolha informativa.

    Em todos os jornais, eu tenho colunistas que gosto muito e outros que não suporto. O mesmo nas televisões. O que faço, quando fala ou escreve algum daqueles que me dá voltas ao estômago, não é partir a televisão ou fechar o jornal. Simplesmente mudo de canal, ou folheio as páginas.

    Já se encontrar algum órgão de comunicação social que reflicta apenas aquilo que penso, bom, nesse dia deixo mesmo de o seguir. Para espelho já basta o que tenho em casa.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Chega: só há uma “festa” como esta!

    Chega: só há uma “festa” como esta!


    O meu timing de entrada nos temas que circundam o Chega é quase sempre péssimo. Tenho a sensação que corro para a paragem e só vejo o escape do autocarro. Mas não é fácil, não é fácil, embora eu tenha tentado perceber este fenómeno da extrema-direita desde o início da aventura do nosso André.

    Um dia estava ele na CMTV a discutir centímetros dum penalti com aquele advogado que, alegadamente, recebia umas massas do Rui Pinto; e, no dia seguinte, aparecia ele em frente à Assembleia da República aos gritos contra o sistema.

    [Disseram-me que com a muleta do “alegadamente”, antes do verbo, podemos disparar toda e qualquer bojarda sem aquele risco incómodo de ir parar a um tribunal português. Ninguém tem 10 anos de vida para desperdiçar num processo na justiça lusa. De modo que, alegadamente, disparemos…]

    André Ventura, líder do Chega.

    Quando fui ver que ruído era aquele, e porque razão o gajo dos penaltis andava na rua a vociferar contra os poderes instalados, cheguei atrasado umas semanas. Já havia um partido político formado e com um segundo nome. O “Basta!” durou pouco e eu já só vivenciei mais a sério a experiência “Chegana”. Ainda dei ali o benefício da dúvida, porque, convenhamos, quem é que não corrige os temperos a meio do guisado? “Basta” era mais queque; “Chega” parecia mais do povo. Estavam afinados e prontos para partir.

    Nome bem acutilante, e grito de guerra “vergonha” a postos, faltavam as ideias. Ouço por um amigo: “ouve lá, este Ventura é que diz as verdades!”. Fui ver as verdades a meio de uma campanha legislativa e, novamente, cheguei tarde.

    Havia um programa político que previa o fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola pública, mas, segundo consta, deu reclamações em barda. Foi alterado, e quando lá apareci já só vi a versão 2.0, mais difusa e macia, de forma a agradar às hostes. Pensei: “ora aqui está uma originalidade política, programas à la carte!”. Gostei e percebi de imediato que iam longe.

    A legislatura foi mais fraca em termos de trabalho feito. Metade do tempo fora das votações e todo o poder de fogo colocado em vídeos do YouTube de dois minutos com bocas ao primeiro-ministro. O homem das verdades conseguia ainda assim trilhar o seu caminho. Continuei à espera das ideias, nem que viessem numa terceira versão do programa, mas, essencialmente, a coisa resumiu-se a cascar nos beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) e nos ciganos, em geral, sem qualquer ordem em particular.

    Lá por fora, o Chega colou-se aos outros partidos de extrema-direita – da Le Pen ao Salvini –, o que levou alguns ingratos a apelidarem-nos de racistas. Quando fui escrever sobre o tema, já o assunto estava, novamente, fora de prazo. Ventura, Parrachita e alguns incógnitos apoiantes desfilavam pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, empunhando tarjas com o slogan: “Portugal não é racista”. Fiquei informado sobre a nova posição e até me senti aliviado. Era o Portugal que eu queria também.

    André Ventura durante encontro do grupo político do Parlamento Europeu (direita e extrema-direita) Identidade e Democracia em 23 de Junho em Antuérpia (Bélgica).

    Tentei então dizer qualquer coisa sobre o tema, mas, de repente, um deputado do Chega afirmou, na Assembleia da República, que só não tinha sido eleito vice-presidente por causa da sua cor de pele, ou seja, por discriminação racial. Fiquei fora de jogo – e sem hipótese de ir ao VAR, tema que o André tanto gostava de debater, antes de se meter nestas andanças.

    Enfim, eu quero comentar a actualidade do Chega, mas torna-se incompatível com um horário de trabalho normal. Entre o tempo que começo a escrever e a pausa para o café, já o Ventura mudou de opinião três vezes. Aliás, nem estou a ser original, ele de facto mudou a intenção de voto três vezes no mesmo dia numa votação parlamentar. Não sei se o editor do PÁGINA UM aceita podcasts, mas, com palavra escrita, não há pai para a velocidade do Ventura.

    Há uns meses ouvi uma intervenção de alguém do Chega que falava nos boys dos aparelhos partidários. Alegadamente do Carlos César que, alegadamente, tem metade da árvore genealógica encaixada em cargos públicos.

    Muito bem, de repente senti um ponto de encontro e finalmente ia dar uma palmadinha nas costas por escrito. Porém, a meio do meu texto já se tinha descoberto que o pai de um deputado qualquer do Chega era agora assessor do Chega na Assembleia da República.

    Não quero imaginar o drama de combinar um jantar com um gajo destes. Sugerem a tasca do Avillez, 20 minutos antes do repasto dizem que é mesmo na tasca, mas do Zé e em Alfama. Trinta minutos depois da hora ligam a perguntar se sabemos onde fica a roulotte da Sónia, ali por baixo da Segunda Circular, mesmo na saída do Campo Grande. É gente que não se decide. Ou que estuda pouco e navega às sortes. Também pode ser isso.

    Antes do Verão, quando recebemos todos ordem de soltura da covid-19, o Ventura anunciou que o Chega faria a maior festa de Portugal, um festival algures em Julho, com comes e bebes, boa música e muita diversão. Pensei que seria uma forma de, por exemplo, arrasarem com o Avante.

    Imagino que seja fácil: se um partido moribundo, que nos juram estar a dar os últimos passos (há décadas), consegue juntar uns milhares há quatro décadas durante três dias, certamente que o Chega consegue juntar muito mais.

    A expectativa era alta até ter saído o cartaz do festival. E uso aqui a palavra “cartaz”, porque “programa” seria um exagero. Em termos de artistas, não sei se podem ser encaixados nessa categoria profissional: confirmados, estarão lá o Rui Bandeira e o Jaimão.

    Lembro-me que o primeiro cantava o “que venha um alien divino e nos leve para lá, aqui já não dá!”; e o segundo, julgo ser um camarada que aposta numas rimas à Quim Barreiros, mas com menos classe na métrica. Não sei se chegam para o “maior festival de Verão português”, mas darão uns bons três minutos de Youtube. Com o enquadramento certo e apresentação do Tilly, até poderá ser equiparado ao Rock in Rio na ChegaTV.

    Devo, contudo, manifestar-vos a minha surpresa com a forma de preenchimento de linhas no cartaz. Nunca tinha visto a referência a música ambiente num evento deste tipo. É quase como anunciar uma lista do Spotify ou avisar que o recinto terá urinóis. Parece aqueles relatórios de electrónica, que eu fazia, depois das madrugadas no Bairro Alto, em Times New Roman 16, só para conseguir ter mais do que uma folha atrás do título do trabalho. 

    Rui Bandeira, cabeça de cartaz da Chega Fest Batalha.

    Noto também a astúcia na pesquisa de trabalhadores. O Chega pede por voluntários, e depois diz-lhes que terão que passar por uma selecção. É o equivalente à experiência de trabalho voluntário na WebSummit, mas na companhia de pessoas que não terminaram a escolaridade obrigatória.

    Em suma, o Chega gosta da voracidade dos mercados, do indivíduo que se sobrepõe ao todo e, sempre que possível, do desvio de dinheiro público para lucros de uma minoria privada, mas, no seu quintal, opta pela camaradagem do trabalho gratuito em prol do bem comum. Ahh…o sol ainda nascerá para todos eles. 

    Quando comecei a escrever isto colocava, sem ironia, todas as esperanças musicais deste festival na banda de tributo aos Queen. Não há forma de correr mal quando se tocam os clássicos. “I want it all, I want it all, and I want it noooooow!”

    Um pouco antes de enviar o texto, vou olhar para o cartaz de novo para ver se não me esqueci de nada, e vejo que a banda anunciou ter sido colocada no programa da festa por engano e, como tal, não marcará presença. Estes gajos não têm descanso. Devem andar a calmantes com o carrossel que a vida lhes proporciona.

    Provam ainda assim que tenho duplamente razão: a banda deve de facto ser boa, e não há maneira de uma verdade chegana durar o tempo de cozedura de um texto.

    Que venha a FEST. Vai ser porreira, pá!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.