Categoria: Opinião

  • Medidas políticas da gestão da pandemia assentaram em diploma que caducou em Abril de 2021

    Medidas políticas da gestão da pandemia assentaram em diploma que caducou em Abril de 2021


    Tem-me sido questionado se o diploma que instituiu o primeiro Estado de Calamidade em 13 de Março de 2020 (Decreto-Lei nº 10-A/2020) está ou não está em vigor. E, consequentemente, quais os efeitos de todas as resoluções do Conselho de Ministros, bem como de todos os decretos-lei publicados e promulgados pelo Presidente da República desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021.

    E inclui-se aqui, também, a validade do Decreto-Lei 30-E/2022, do passado dia 21 de Abril, que aboliu o uso das máscaras em alguns espaços.

    Desde já afirmo que, para além de material e organicamente inconstitucionais, todos os diplomas que foram sendo publicados assentam no Decreto-Lei nº 10-A/2020, que, na minha opinião, já há muito deixou de vigorar, e desde o fim do Estado de Emergência, ou seja, em Abril de 2021.

    person in white shirt holding pen

    Tentando usar uma linguagem o mais simples possível – sendo certo que, nesta matéria, afigura-se um pouco mais difícil, uma vez que se trata de conceitos algo técnicos –, tudo o que afirmo assenta em suporte legal, como sempre tenho feito.

    As Resoluções do Conselho de Ministros que, desde 1 de Maio de 2021, têm servido para impor normas ao abrigo do Estado de Calamidade, vão buscar a sua legitimidade ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020.

    Sucede, todavia, que:

    • Esse Decreto-Lei n.º 10-A/2020 teve de ser ratificado pela Assembleia da República, através das Lei nº 1-A/2020, publicada em 19 de Março de 2020, que impôs o primeiro Estado de Emergência. Não deixo de estranhar e de sublinhar que uma Lei apenas dispõe para o futuro, e nunca retroactivamente, como foi o caso desta, que fez retroagir a produção dos seus efeitos, para seis dias atrás!

    Apenas a Lei Penal tem efeitos retroativos, quando descriminaliza ou despenaliza condutas, o que bem se compreende.

    O Governo não tem competência para poder dispor inovatoriamente em matérias que incidem sobre direitos, liberdades e garantias, em situação de calamidade, como tinha feito através desse Decreto-lei. Assim, à data em que o mesmo foi exarado, padecia de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 165º e do nº 1 do artigo 19º da Constituição da República Portuguesa.

    Reparem, tentando simplificar o discurso: o Decreto-Lei nº 10-A/2020 decreta o primeiro Estado de Calamidade. A Lei nº 1-A/2020 decreta o primeiro Estado de Emergência, ratificando o Decreto-Lei promulgado seis dias antes.

    woman in red and white santa hat
    • Terminado o Estado de Emergência, no final de Abril de 2021, tal decreto deixou de vigorar na ordem jurídica portuguesa, não só porque caducou com o termo das leis de emergência que o ratificaram, como porque não pode subsistir autonomamente, por incompetência orgânica do Governo para a sua produção original.
    • Assim, todas as Resoluções do Conselho de Ministros que têm vindo a ser publicadas, por lhes faltar qualquer arrimo normativo, padecem de inconstitucionalidade orgânica, mas como também são violadoras de direitos fundamentais, faz-me considerá-las também como materialmente inconstitucionais
    • Acresce que, nessas Resoluções, tem vindo o Governo a criar normas inovatórias, o que não se mostra por lei abrangido no âmbito de Resoluções do Conselho de Ministros, mas tão-somente no de decretos-lei.
    • Os decretos-leis inserem-se na área legislativa do Governo, permitindo-lhe assim impor novas regras; isto é, fazer surgir no ordenamento jurídico, novas normas e conteúdos normativos (embora também possam, estes decretos-lei, ter conteúdo regulamentador).
    • Por outro lado, as Resoluções do Conselho de Ministros inserem-se na área administrativa do Governo e destinam-se a regulamentar o que de inovatório foi determinado por lei; isto é, regulam os conteúdos definidos através de decreto-lei, que se reportam a decisões político-normativas primárias.
    • No caso, as Resoluções de Conselho de Ministros, porque diplomas de carácter administrativo, não poderiam nem conter normas inovatórias na ordem jurídica diversas das estabelecidas por decreto-lei que visassem regulamentar nem, no caso, existia sequer, vigente na ordem jurídica, decreto-lei que legitimasse e carecesse de tal regulamentação.
    cars parked on side of the road in between buildings during daytime
    • Estamos pois perante diplomas inconstitucionais (todas as ditas Resoluções), quer por violação do princípio da precedência da lei, decorrente designadamente dos nº 1, 6 e 7 do artigo 112º, da alínea c) do artigo 199º, e também por violação da alínea a) do nº 1 do artigo 198º, todos da Constituição da República Portuguesa (no que concerne ao uso de Resoluções não para prover à boa execução de leis, mas para criação, inovatória, de deveres e de restrições); quer por inconstitucionalidade orgânica (no que se refere à restrição de direitos, liberdades e garantias, por via governamental, em matéria para a qual a Constituição não lhe confere competência para tal), por violação do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 198º e alíneas c) e d) do artigo 161º, alínea b) do nº 1 do artigo 165º e ainda nº 1 do artigo 200º, todos da Constituição da República Portuguesa.

    CONCLUSÃO: Todos os Decretos-Lei publicados e promulgados desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021 e que têm como base no Decreto-Lei nº 10-A/2020, para além de serem todos organicamente inconstitucionais, “usam” como suporte um diploma que deixou de existir no ordenamento jurídico português.

    Em consequência, o (novo) Decreto-Lei nº 30-E/2022 de 21 de Abril – que terminou com o uso de máscaras em alguns locais, procedendo à trigésima norma ou quadragésima alteração do artigo 13º B, (aquele artigo que estabelece quais os locais em que as máscaras são obrigatórias, para mais fácil compreensão do leitor) – tem como base um diploma que, desde finais de Abril de 2021, com o fim do Estado de Emergência, deixou de vigorar na nossa ordem jurídica.

    João Pedro César Machado é advogado


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • ¿Por qué no te callas?

    ¿Por qué no te callas?


    Estava a preparar um texto do Primeiro de Maio, a pensar no Elon Musk, enquanto dois comentadores debatiam na CNN Portugal os próximos passos nas relações com a Rússia.

    Não conheço nenhum, nem os seus nomes me parecem aqui relevantes, mas senti magia nas palavras de ambos. Um dizia que tinha sido um erro a União Europeia ter criado uma dependência energética da Rússia. Acrescentou que “pensámos que, com as relações comerciais, a Rússia se tornaria numa democracia, mas estávamos errados. Temos que escolher parceiros mais fiáveis para o futuro”.

    Há aqui uma verdade absoluta. Dependência energética é má, concordo. Seja de quem for. E pela quantidade de fichas que metemos nos carros eléctricos significa que, em princípio, continuamos sem perceber o essencial.

    Mas gostei da parte onde perceberam que a democracia na Rússia afinal é fraquita. Quando distribuíamos Vistos Gold, a torto e a direito, pelos russos, correndo com os lisboetas para Corroios, o Kremlin era uma Assembleia Grega. Se a coisa avança e os chineses vêm em auxílio do Vladimir, ainda arriscamos ver algum quadro da EDP a dizer: “mas então, esta democracia não era das nossas?”

    Melhor ainda foi a frase de “temos que ir atrás de parceiros mais confiáveis”. É que a União Europeia virou-se entretanto para a Arábia Saudita e para o Qatar. Alguém sabe que partido ganhou as últimas autárquicas em Doha? Fiquei com a sensação que tinha sido o Al-Mesmo-de-Sempre, mas não sigo com acuidade a política do Golfo Pérsico. Já em Riade julgo que o novo presidente da autarquia também não gosta de bicicletas: parece que o chicote que leva à cintura prende-se nos raios.

    Gosto desta conversa das democracias à la carte. Os mujahidins foram, na década de 80, para a Time, uns freedom fighters – esta, por acaso, dava para aprender no Rambo III. Já no início do século XX passaram a terroristas.

    A Ucrânia era, até há uns meses, um estado corrupto sem os mínimos para sequer se candidatar à União Europeia. Hoje, já é uma democracia sólida. A Rússia largou o comunismo há várias dezenas de anos – há quem defenda que já vai em quase um século –, mas é hoje o invasor comunista.

    tables and chairs inside the hall

    A Líbia era uma ditadura, e quando o petróleo passou para mãos francesas deixou de existir nas notícias, apesar de viver numa anarquia há uma década.

    O que eu não percebo nestas análises é o porquê de termos que reescrever a História para justificar as nossas análises. Putin sempre foi um extremista que alimentou os fascistas europeus. Não é comunista, nunca foi. Não quer democracias. Terá sonhos imperialistas, acredito. E sempre foi isto. Quando sorria ao lado da Merkel, quando apertava a mão do Obama, ou quando fazia investimentos por toda a Europa e África.

    Então, ninguém queria saber se Putin roubava os recursos do seu próprio país a favor dos oligarcas, desde que, lá está!, o gás corresse para o lado certo. Ninguém apontou o dedo, ninguém questionou a democracia.

    Portanto, façam lá o favor, agora, de não serem uma cambada de hipócritas. Putin já foi isto na Geórgia, na Chechénia, na Crimeia. E ninguém quis saber. Não suporto virgens ofendidas consoante o drama do momento.

    Há nesta guerra um invasor e um invadido. Não há dúvida disso. Mas façam-me o favor de não criarem uma realidade que nunca existiu, na Rússia ou na Ucrânia. Na RTP3, ouvi Inês Pedrosa afirmar que o Batalhão Azov não era uma milícia nazi. Quer dizer, para negarmos a narrativa de Putin – que a Ucrânia é governada por nazis, o que é obviamente falso –, caímos no outro extremo que é o de transformarmos nazis em freedom fighters. E eu já disse que não me choca ver nazis na defesa de um país. Em tempo de guerra não se limpam armas. Mas por favor, parem de pintar quadros alternativos. Torna-se insuportável.

    sunflower field under blue sky during daytime

    A outra senhora que comentava na CNN Portugal dizia, por sua vez, que, como prioridade, tínhamos que avançar para o armamento dos países europeus. A ideia é a de nos prepararmos para o que aí vem. Já com a Suécia e a Finlândia no grupo e, a propósito, depois de caças russos terem passado aqui por casa hoje.

    Pergunto a esta senhora, até apelando à sempre discutida igualdade entre os sexos: vestirá ela um colete, empunhará uma arma e virá, com todos os restantes, homens em idade de combater, afundar-se nas trincheiras e dar o corpo às balas?

    Ouço todo o santo dia conversas de “vamos a eles” que me arrepiam, tal é a facilidade de lidar com balas, morteiros, mísseis e, quiçá, um ou outro cogumelo atómico. Eu não sei se andam a aprender história no Rambo III, ou como sobreviver a bombas nucleares com frigoríficos no Indiana Jones IV, mas acreditem que, neste caso, o filme não acaba no Air Force One com o Harrison Ford a esmurrar o árabe e a bradar, triunfantemente, get out of my plane. Será coisa para aleijar um pouco mais, garanto-vos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A desinformação só não existe em sistemas não-democráticos; portanto: Viva a Desinformação!

    A desinformação só não existe em sistemas não-democráticos; portanto: Viva a Desinformação!


    A desinformação é uma externalidade negativa da democracia, prejudicial para as sociedades. Mas também é um indicador da saúde de uma democracia. A sua existência, visível e “palpável”, indicia que a democracia existe. E a sua existência é benéfica para as sociedades.

    Explico melhor: a desinformação – sendo um desvio da verdade e da realidade – advém exclusivamente da possibilidade de existir liberdade de expressão e informação livre, e estas só podem ser concebidas numa democracia. Sem liberdade não existe diversidade de opinião; sem diversidade de opinião, não existe possibilidades de alcançarmos a verdade, que nem sempre é óbvia, nem sempre surge pelo caminho mais fácil e comummente observável.

    Basta-nos hoje olhar para a verdade em torno da teoria heliocêntrica: se acreditamos agora que a Terra roda à volta do Sol, e não o contrário, não é porque a esmagadora maioria de nós confirmou esse fenómeno (pelo contrário, o Sol aparentemente move-se de este para oeste), mas sim porque houve provas científicas que o comprovaram e, embora demorando séculos e séculos, se inculcaram como Verdade.

    man in black crew neck shirt with red and white face paint

    A dificuldade que essa Verdade teve em se impor deveu-se exactamente à ausência de liberdade de expressão e de informação livre; à ausência de um sistema democrático livre. De facto, a teoria heliocêntrica de Galileu foi, em tempos, considerada uma heresia, uma falsidade. Nem sequer era desinformação, porque nem poderia circular. Não tinha sequer existência.

    Actualmente, em países como a Coreia do Norte, a China, mesmo na Rússia, e em muitas outras partes do Mundo, a desinformação continua a não existir. Existe sim um controlo estatal ou institucional que impõe uma verdade única e absoluta: essa é a “informação”, inquestionável, dogmática, a qual pouco importa se se sustém sobre a realidade. A “informação” oficial sobrepõe-se à realidade; impõe-se perante a realidade; molda a realidade em si mesma.

    Ora, nesta linha de raciocínio, conclui-se que num sistema político que bloqueie a liberdade de expressão e de circulação de ideias não existe desinformação, porque, não havendo essa necessária liberdade democrática, não há lugar a “segundas opiniões”. A mentira (associada à desinformação, mas feita pelo poder), sendo imposta, passa a “verdade oficial”, logo é “informação”. E, perante isso, a realidade molda-se, e a verdade (e a realidade) arrisca-se a poder ser, numa bitola independente, a “desinformação”.   

    Contudo, na verdade – e perdoem-me o pleonasmo –, mesmo em sistemas democráticos a verdade tem vindo a arriscar surgir como uma imposição. Alguma verdade já não se plasma apenas com argumentos científicos, empíricos, etc.. Começa já a ser manipulada pelos poderes políticos, financeiros, económicos, por lobbies, por clubites.

    white and black printed paper

    Com a falácia de a “desinformação” ser agora um “bicho-papão” disseminado e incontrolável nas redes sociais, temos agora falsos arautos da democracia, até de cravo na lapela no 25 de Abril, a defender de forma tenaz, e com uma tenaz, uma linha, uma narrativa, uma orientação por vezes normativa para constranger alguém ou um grupo de assumir, sem sofrer um qualquer grau de censura, uma qualquer posição contrária.

    Vimos isso durante a pandemia.

    Vemos isso durante a Guerra da Ucrânia.

    Temo que vejamos isso nos tempos futuros, em outras circunstâncias e eventos, pelas marcas indeléveis que pandemia e Guerra da Ucrânia deixarão mesmo nas sociedades mais desenvolvidas.

    Caminhamos, sem nos apercebermos, para uma democracia distópica. Para uma democracia em que todas as nossas opiniões são bem-vindas desde que não colidam com temas sensíveis, mas se houver temas sensíveis, mediáticos e mediatizados até ao supremo absurdo, então passará a haver uma obrigação de opinar, embora apenas para dizer amén: sofreremos censura se discordarmos, se dissermos um simples “mas”, e até se calhar se quisermos não dar a opinião. Até o silêncio passará a ser suspeito.

    Mesmo correndo eu o risco de, escrevendo nos dias de hoje este simples texto, ser apelidado de um sem-número de epítetos por qualquer pessoa com a quarta classe e opiniões obtidas por osmose de um qualquer Rodrigo Guedes de Carvalho, não posso deixar de defender a existência da desinformação.

    Viva a desinformação, deverei gritar mesmo, porque ela é e será o principal sintoma da existência da democracia. E sobretudo, porque não quero correr o risco de termos um qualquer Galileu no século XXI que seja censurado e obrigado a abjurar porque as suas teses são contrárias a uma imposta narrativa oficial.

    Mas estou eu a defender que a desinformação é bem-vinda?

    Claro que não. Apenas que ela é intrinsecamente humana. É uma decorrência da democracia, da liberdade. Basta conhecer um pouco de História, ler alguns livros antigos, para constatar a existência de montanhas de mentiras e cordilheiras de absurdos, em muitos casos vistos e tidos como verdades na época, e por vezes sem maldade, mas apenas por ignorância. E boatos, rumores, balelas, atoardas e rumorejos sempre existiram antes sequer do surgimento da comunicação social ou das redes sociais.

    Aquilo que estou a defender é que não se elimina a desinformação com medidas anti-democráticas, com o silenciamento, com a censura, com a discriminação de pessoas ou grupos com pensamentos diferentes (mesmo se aparentemente obtusos), porque, parecendo à primeira vista benéfico, traz consequências terríveis a curto e a longo prazo.

    Não se pode correr o risco de a censura errar. Ou não podemos correr o risco de dar o poder da censura a ninguém, mesmo a alguém que jure a pés junto que é democrata.

    Aliás, um democrata que aceite um “bastão“ da Censura, que se assuma “bastonário da Verdade”, deixa automaticamente de ser um democrata.

    Em sistemas democráticos temos de saber conviver com a inconveniência da desinformação, da mentira, do logro, enquanto fazemos esforços para amenizar os seus efeitos nefastos, encontrando “medicamentos” para eliminar umas quantas “variantes”, mas sabendo que outras surgirão.

    selective focus photography of iPhone on MacBook

    Esses “medicamentos” passam pela Educação, pela informação, pela transparência da Administração Pública, pelo debate, pela argumentação, pela Ciência. Nunca por uma lei, nunca por um algoritmo, nunca pela censura.

    Na verdade, nunca eliminaremos a desinformação enquanto tivermos democracia. No momento em que alguém gritar, satisfeito, que acabámos com a desinformação, estará a congratular-se com o fim da democracia.

    Não caiamos, por isso, na tentação de considerar legítimo que algoritmos em computadores remotos ou em clouds censurem a suposta desinformação, que empresas privadas pré-censurem ou “expulsem” da comunidade aqueles que mentem, aqueles que enganam, aqueles que produzem discursos de ódios e de violência.

    Para esses, antes das redes sociais, antes das empresas como o Facebook ou o Twitter, existe um poder disciplinador e regulador: a Justiça. Não tem meios para os novos desafios? Que seja: forneçam-se. Não deixemos essa função social, que deve ser rápida e eficaz, mas moderada, aos algoritmos e às empresas privadas. Essas são funções que foram acometidas à Justiça pelos cidadãos de uma democracia. Não se privatizam nem se “desumanizam”.

    Mas, além disto, para lutar contra a desinformação em sociedades democráticas – nas outras, a questão coloca-se mais a montante: encontrar mecanismos para as tornar democráticas primeiro –, a comunicação social deve assumir o seu papel de regulador e de árbitro, com base em legitimidade assente na confiança.

    Porém, tem a imprensa aí falhado rotundamente nos últimos anos. Não apenas porque a sua independência (financeira, ética, etc.) há muito se questiona já, o que coloca em causa o seu papel de árbitro da verdade, por falta de credibilidade. Mas sobretudo porque deixou de questionar, de pressionar, de exigir justificações. E, em muitos casos, passou mesmo a ser adepta fervorosa de formas de censura. E a praticá-la.

    Por isso, quando leio, como crocodilos lacrimejantes, certos jornalistas queixarem-se da desinformação e a defenderem regras censórias, dá-me vontade de os mandar a um certo sítio.

  • Nova fase, mesmos objectivos: a independência do PÁGINA UM que depende(rá) dos leitores

    Nova fase, mesmos objectivos: a independência do PÁGINA UM que depende(rá) dos leitores


    A génese do PÁGINA UM foi fruto de um desafio, em Outubro do ano passado: saber se seria possível confiar-se num antigo jornalista – “inactivo” durante uma década e sem rede de influências, mesmo tendo passado por alguns dos mais importantes órgãos de comunicação social – para sozinho, ou praticamente sozinho, “refundar” a imagem do jornalismo como um dos pilares da democracia em Portugal.

    Poderia – e poderá – ser presunção considerar que um só jornalista, um só jornal, ainda mais sem um grupo económico na sua base, tenha capacidade para mudar alguma coisa.

    Porém, algo que a pandemia veio confirmar nos últimos dois anos, foi a crise estrutural – de preparação, de valores, de ética – da comunicação mainstream em Portugal. E não apenas em Portugal. E, nessa medida, sempre acreditei que, perante este “estado de coisas”, seria possível uma só pessoa fazer a diferença.

    Porém, quando se diz que uma só pessoa pode fazer a diferença, fica subentendido que a sua acção pressupõe mais acções (ou reacções).

    Pedro Almeida Vieira, Bartolomeu Costa Macedo, Rita Pinto Coelho de Aguiar, Luís Gomes e Nuno André, sócios da Página Um, Lda.

    E o PÁGINA UM tem sido isso: um fluxo de acções e reacções.

    Em 21 de Dezembro, cerca de dois meses após esse apelo de Outubro, o PÁGINA UM nasceu como jornal digital registado como jornal digital na Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Tinha já uma pequena redacção e sede em pleno Bairro Alto, começava a levantar muitos assuntos incómodos e a escrever sem temores nem reverências.

    E sobretudo tinha, tem e terá no seu ADN a “sequência genética” de uma independência inquestionável: um jornal sem publicidade, sem parcerias comerciais e apenas dependente dos apoios pontuais ou regulares dos seus leitores.

    Em quatro meses de existência, o PÁGINA UM tem tentado demonstrar que é um jornal diferente, incomodativo, intransigente na defesa dos valores democráticos e da transparência. Não tememos incomodar.

    E, por esses motivos, temos feito exigências de informação que outros órgãos de comunicação social não arriscam fazer (porque perderam os seus valores).

    Por esses motivos, temos agora – e muito graças aos leitores – uma linha estratégica de obtenção de informação através dos processos de intimação no Tribunal Administrativo, recorrendo ao FUNDO JURÍDICO financiado por apoiantes individuais.

    Começámos logo com um processo contra o Conselho Superior da Magistratura para mostrarmos que confiamos na Justiça, mas sabendo que os mecanismos da Justiça devem também ser escrutinados numa democracia. E seguimos com outro sobre o Infarmed. E haverá mais, incluindo a Direcção-Geral da Saúde, um caso crónico e doentio de intolerável falta de transparência.

    E sabemos que seremos atacados por essa independência, como já sucedeu. E como vai suceder ainda mais.

     Para o crescimento e consolidação do PÁGINA UM – para que consiga dar um salto qualitativo e quantitativo, assente nos seus princípios de “jornalismo independente dependente dos leitores” – foi decidido que seria mais adequado constituir uma estrutura minimamente profissional para o jornal, mas cumprindo o Código de Princípios que então assumi perante os leitores e apoiantes: “até Junho de 2022, e tendo em consideração a sua evolução, comprometo-me a definir um modelo mais empresarial para o PÁGINA UM. Caso a solução encontrada seja a constituição de uma empresa, em nenhuma circunstância terei uma posição minoritária. A minha posição dominante no PÁGINA UM é um bem inalienável.”

    Ontem foi dado esse passo.

    O PÁGINA UM passará, no futuro, a ser gerido por uma pequena empresa denominada PÁGINA UM, Lda., com um capital social de 10.000 euros, e que me terá como sócio maioritário (70%). Os outros 30% do capital social estão distribuídos por Bartolomeu Costa Macedo (10%) Rita Pinto Coelho de Aguiar (10%), Luís Gomes (5%) e Nuno André (5%).

    Luís Gomes é um dos colunistas habituais do PÁGINA UM.

    Nuno André é um dos jornalistas “residentes” do PÁGINA UM, e do qual podem esperar, muito em breve, interessantes novidades.

    O Bartolomeu e a Rita são duas das pessoas que acolheram o PÁGINA UM desde o seu início, ainda como projecto embrionário, permitindo que pudesse ter um espaço físico para a sua consolidação em pleno coração de Lisboa.

    No futuro entrarão novos sócios, sempre com posições simbólicas, e uma garantia: enquanto eu estiver a dinamizar o PÁGINA UM, serei o seu sócio maioritário, como um pilar do desafio inicial de Outubro de 2021.

    Não esquecerei as circunstâncias especiais do nascimento deste projecto nem os apoios que me foram concedidos.

    Apesar da criação desta estrutura empresarial do PÁGINA UM continuará a viver do apoio dos seus leitores, mais ainda pela abertura das notícias mesmo para quem não o apoie.

    Mas isso vai exigir um esforço suplementar dos leitores que desejam um jornalismo independente.

    Neste momento, os recursos financeiros do PÁGINA UM são extremamente escassos, e não permitem mais do que até agora, e com um esforço pessoal que dificilmente tem sustentabilidade no futuro neste nível de exigência.

    Contamos, por isso, agora que teremos uma estrutura mais dinâmica, que os apoiantes do PÁGINA UM vejam no jornal uma aposta num projecto (ainda mais) sério, credível, consolidado mas também com os meios financeiros que lhe permita um desafogo para mais e novas lutas.

    O nosso lema é e será sempre “PÁGINA UM: o jornalismo independente DEPENDE dos leitores”.

    E isto para nós, para mim, significa que se o PÁGINA UM deixar de poder depender apenas dos leitores, porque não há um número suficiente, então preferiremos desaparecer. Ou, pelo menos, eu decidirei sair do projecto.

    Pedro Almeida Vieira, director do PÁGINA UM e sócio maioritário da PÁGINA UM, Lda.

    Nota: Quando diversos trâmites burocráticos forem concluídos, será publicada a escritura do PÁGINA UM, Lda.. Em todo o caso, esta alteração obrigará, dentro dos prazos estabelecidos, a alterar o registo do PÁGINA UM na ERC, o que implicará posteriormente o cumprimento de normas mais rígidas do que aqueles que existiam para um projecto editorial em nome individual.

  • Luís Montenegro, um acidente no horizonte

    Luís Montenegro, um acidente no horizonte


    A insónia é a minha pior maleita. Reza a lenda que começou aos dois anos, e deduzo que me acompanhe até ao descanso final. Ontem, em mais uma dessas noites, resolvi ver o que passava na RTP3 já para lá da meia-noite, na hora local do meu estimado Ártico.

    Vítor Gonçalves, na sua “Grande Entrevista“, tentava colocar umas questões relativamente simples a Luís Montenegro, um dos candidatos à travessia do Saara em patins nos próximos quatro anos, também conhecida por “liderança do PSD”.

    Questionava o bom do Vítor sobre a linha vermelha que entalou Rui Rio. “Então, e o Chega? É desta que alguém nos diz um sim ou não?”. Montenegro passou os minutos seguintes a elaborar uma tese que daria para apresentar na defesa de José Sócrates. Infelizmente, não respondia era à pergunta…

    Luís Montenegro em entrevista conduzida por Vítor Gonçalves na RTP3, em 27 de Abril passado.

    O Vítor tentava agora o gancho, e o Luís esquivava-se novamente, com um bom jogo de pés, dizendo que “não vou perder mais tempo com essa conversa que, no fundo, é fazer um frete ao PS”.

    O entrevistador, sorrindo, dizia-lhe que, “em vez de divagações tão longas, poderia reduzir o tempo dizendo apenas um sim ou não”, ao que o amigo Luís, ainda não satisfeito com o conforto do buraco cavado até ai, acrescentou “mas não é uma resposta de sim ou não!”.

    Oh Luís!, oh Luís!… é pois! Se te perguntassem, por exemplo, se a pizza deve ser comida com talheres ou não, é que era uma resposta não binária. Terias um infindável número de factores a considerar.

    Estás a comer a pizza no sul de Itália e não queres levar uma chapada? Usas a mão.

    Estás num primeiro encontro romântico? Arriscas o garfo.

    A pizza vem a ferver, mas estás esganado sem hipótese de esperar? Metes as fichas todas nos talheres.

    A base é muito fina e quando pegas no pão cai-te tudo nas calças? Voltas ao garfo.

    Estás a comer com a tua mulher e és casado há 30 anos? Comes com a mão, em qualquer circunstância, porque já não tens nada a perder.

    Não sei se me estou a fazer entender, Luís. Às vezes sou um pouco limitado no uso da metáfora. Mas acho que percebes a coisa…

    Agora, quando nos perguntam diretamente: “ouve lá, gostas de fachos?”; nós, em princípio, dizemos que não. É mesmo daquelas questões em que não usamos o 50/50 ou a ajuda do público. Basta teres completado o 9º ano sem faltar às aulas sobre a década de 40. É só disto que precisas para responder à pergunta do pobre Vítor.

    A minha insónia piorou, aliás, porque comecei a ficar interessado, cada vez mais, na catadupa de disparates.

    Infelizmente, sou uma daquelas pessoas que contribui para o caos no trânsito, sempre que acontece um acidente. Não consigo parar de olhar quando vejo uma desgraça. Assumo. Ouvir o Luís nesta entrevista foi como estar na Segunda Circular às 6 da tarde num dia de chuva.

    E pensei com os meus botões que o legado de Rui Rio estaria, se calhar, bem entregue – e, provavelmente, com resultados eleitorais idênticos.

    Mas Montenegro não se ficou por aqui. Piscou o olho à Função Pública, dizendo ser preciso atrair talento com melhores salários. Segundo ele, uma técnica superior não pode levar para casa 900 euros. Fez-se a “hola mexicana” em casa de cada funcionário público, e, antes que se voltassem a sentar no sofá, esclarecia o Luís que era necessário contribuir para as nossas responsabilidades na NATO, os tais 2% destinados ao Ministério da Defesa, indo buscar dinheiro com uma “melhor gestão da Administração Pública”.

    “Por exemplo, na Saúde”, dizia ele, “podemos poupar muito dinheiro”. Nada contra evitar o desperdício da má gestão, contudo, todos os que andamos por cá desde o tempo do Cavaco que percebemos o politiquês da coisa. Entendemos que esta é a famosa conversa das gorduras do Estado, que levou a uma década de congelamento das carreiras, destruindo parcialmente o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a Escola Pública. Isto, claro, enquanto se continuou a salvar a banca privada.

    Não sei absolutamente nada do outro candidato à liderança do PSD para lá do seu nome, Jorge Moreira da Silva, do seu anterior emprego (OCDE) e da total recusa em estabelecer conversas com o Chega.

    Se não quiser também rebentar com a Administração Pública para desviar o dinheiro para os lobbies – sejam estes da banca, da construção ou do armamento –, já parte em vantagem nesta corrida.

    Não é que algum dia vá votar em qualquer um deles, mas, como se vê pela maioria absoluta e crescimento da extrema-direita, o país não ganha nada com um PSD de joelhos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial

    O pragmatismo para evitar a III Guerra Mundial


    Aqui há uns dias tive uma discussão com um amigo sobre o “estado da arte” na Ucrânia. Discussão não; um debate. É sempre bom lembrar que mesmo na maior das discordâncias ainda somos capazes de conviver e tolerar as opiniões alheias. Já não é mau para os tempos que se vivem, onde escolhemos odiar a cada divergência.

    Eu acho um erro continuar a armar a Ucrânia, ele acha que se deve “armar pela paz”. Como nos bombardeamentos de Belgrado ou nos ataques de Nagasaki e Hiroshima. Matar pela paz. Foi este o início de conversa, e o cabo das tormentas, que, julgo eu, divide a maior parte das opiniões.

    person touching and pointing MacBook Pro

    Percebo a visão de continuar a armar a Ucrânia. Não o digo de forma irónica, percebo mesmo. Há um invasor; logo, temos que correr com ele. E para esta argumentação vou fugir ao whataboutismo abordado noutras crónicas. Vou ignorar todos os demais invasores a quem continuamos a estender a passadeira, consoante os interesses económicos do momento, e focar-me apenas no caso ucraniano.

    Se optamos por continuar a armar a Ucrânia temos duas saídas possíveis no pensamento.

    Ou acreditamos que os ucranianos, sozinhos, vão conseguir fazer o regime de Putin capitular. Ou então, alimentamos a escalada do conflito até a intervenção da NATO ser irremediável. Em qualquer um dos casos morrerão mais ucranianos e corremos o risco da utilização das armas nucleares. No segundo caso, deixamos de assistir à guerra pela CNN, já que entraremos num conflito global.

    Sempre que ouço o facilitismo com que se discute a escalada bélica, pergunto-me se os autores de tal discurso estão dispostos a sacrificar o seu estilo de vida, ou mesmo a própria vida, com as consequências de tais actos.

    Depois, para quem defende o armamento contínuo, esperando por uma rendição russa – lembremo-nos que, neste momento, o desequilíbrio de forças é de 10 para 1 –, é preciso lembrar que dois dos maiores exércitos do mundo (China e Índia) não só não condenaram a invasão como continuam a fazer negócios com a Rússia.

    Portanto, caso cheguemos a um conflito global, quem é que nos garante o lado em que ficarão indianos e chineses?

    landscape photography of trees

    Eu compreendo a solidariedade com um povo que sofre. Com todos, já agora. Só não vislumbro menos mortes com mais armas. É apenas isso.

    Isto leva-nos ao odioso da questão. E então, qual é a alternativa? Deixamos os ucranianos entregues à sua sorte?

    Ora, a não ser que de facto um exército estrangeiro vá para o teatro de operações, os ucranianos estão entregues à sua sorte. E com todos os erros de cálculo dos russos, com todas as perdas assumidas, com todo o material deixado a meio do caminho, são os ucranianos que estão a perder as famílias, a ver as suas cidades arrasadas e a perder o controlo do Este e Sul do país.

    Por mais injusta que possa ser a discussão com o inimigo e invasor, de que servirá chegar a essa conversa com um número de mortos maior?

    Ouvindo os jornalistas no terreno e os especialistas militares, tenho a sensação que estamos a assistir a uma viagem entre Lisboa e Porto. A dúvida parece apenas ser se lá chegamos rapidamente ou se optamos por dar a volta pelo Algarve. Quanto maior for o percurso, mais pesada será a factura na contagem de mortos e mais do território haverá para reconstruir.

    Sim, porque essa também é uma parte que convém não esquecer. Quando a poeira da guerra assentar e se enterrarem os mortos, Putin – ou o que sobrar do seu regime – estará isolado do resto da Europa (espero eu!) com os restantes amigos de França, Itália e Hungria, entre outros.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Mas a Ucrânia, com o FMI a bater à porta, terá um garrote financeiro por décadas. Os falcões da guerra lucram sempre duas vezes. Primeiro, com o ecoar da destruição provocada pelas armas; depois com a estridente azáfama dos camiões e das escavadoras.

    Em resumo, se continuarmos a enviar armas ninguém se sentará à mesa e com mais mortos, o regime de Zelensky ficará na mesma sem os territórios ocupados e com uma factura maior de reconstrução. É chegar ao mesmo sítio usando um caminho maior.

    Para as armas, que enviamos, servirem de facto para ganhar esta guerra, então temos que estar preparados, sem burocracias, para intervir. Nós, a tão famosa comunidade internacional.

    Na frieza do pragmatismo parece-me que, apesar de tudo, ainda são dois cenários bastante diferentes. Um leva à perda de parte de um território soberano. Com tudo o que isso tem de injusto para um povo – ninguém o discute. O outro, leva a um conflito mundial. Perdoem-me quando digo que, entre estes dois males, não pode haver dúvidas sobre qual o caminho a seguir.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência

    Morri-me: a “morte assistida” ou o paradoxo da Consciência


    Sempre que discuto a “morte assistida”, morro mais um pouco. E por ser “um pouco”, morro de morte sofrida e não de morte morrida.

    Assim, posso voltar para contar como foi estar morto, doutro modo preferiria estar morto de vez. Mas não me deixam “querer”, porque me dizem que só morto desejaria morrer, porque os vivos querem sempre morrer às prestações.

    man sitting on chair

    Mas há prestações demasiado pesadas, e esperar morrer para poder escolher é, já, ser moribundo. Aliás, se pudesse, realmente, escolher estaria morto por voltar a viver. Mas acontece que é a proximidade da morte que me faz escolher preferi-la à vida morrida.

    Dizem-me que não sou “objectivo”, mas como posso sê-lo sem que me torne Objecto de mim mesmo? Ora, para consegui-lo é necessário viver, não vá a morte avisar-nos que existe um modo de descontar o tempo perdido.

    Disseram religiões e filosofias que antecipar a morte é fazer batota. Elas convenceram-nos que morrer é o objectivo da vida e, depois, arranjaram um modo de nos complicar o caminho: uns com a reencarnação, outros fazendo do matar(-se) um pecado.

    Ninguém quer ver o que a Consciência frustra a si mesma: a Razão, que permite fazer viver mais e melhor, apenas faz adiar o momento inevitável; ela existe, contudo, para dar uma “razão” à vida, razão que a morte não perdoa.

    Se nos pusermos a questionar a moral, estaremos a admitir que a vida é irracional, que não vale a pena sofrer a mais ínfima questão íntima. Então, para que não tenhamos inveja, vendemos a Razão e criamos regras e “deônticas” para os mais in-conscientes.

    Mas sem que o indivíduo viva por “si mesmo” ele não poderá regrar-se com liberdade. É obrigatório que se mate devagarinho, que cresça sozinho, para que possa, um dia, desejar não morrer.

    A moral quer frustrar a liberdade de cada um querer viver por si mesmo. E é por isso que convém falar destas coisas às escondidas, porque cada um evolui como quer a expensas do Colectivo. Só assim, próximo da morte, terá o Ser o último fôlego, que é viver pela primeiríssima vez, que é ver que já não tem de escolher coisíssima alguma.

    Assim, torna-se parte da moral que o queria fazer viver à força. Mas isto não é, já, estar morto? Pois claro que sim, mas ele pôde matar-se à vontade, o que, de mais a mais, mata a moral, mas também a ressuscita.

    Ora, ser livre, bem como perder o medo da morte, não mata a ética, é um seu pressuposto. O mais que poderia acontecer é que as pessoas se matassem cedo de mais. Frustrar-lhes o caminho pode, não obstante, servir-lhes de mote. Mas se lhes dás palco, arriscas-te a assegurar, ainda melhor, a velha moral restritiva.

    silhouette of man illustration

    Não há, assim, necessidade de moralizar, mas, apenas de deixar de dar palco à questão, que, ainda por cima, pode fazer sofrer até morrer. Quem precisa, muito, da velha moral, tem, em absoluto, medo da liberdade de morrer, e isto mata, também; mata, aliás, quem ainda tem muito para sofrer, para que possa, deveras, perder o medo de ser livre.

    Saber se o sofrimento compensa ou não, esta é a grande questão, se soubéssemos responder-lhe em absoluto estaríamos mortos. Pretendem os moralistas responder-lhe, e eles falam pela morte, mas para matarem os outros à sua medida.

    São tão “livres”, mas não se livram de querer matar, que é uma forma de se matarem para serem, finalmente, livres. Até lá, sofrerão a irracionalidade, e o medo de poderem desejar matar-se antes de morrerem vivos o ludíbrio da morte morrida.

    Fisioterapeuta e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O nosso glorioso “Mundo Livre”

    O nosso glorioso “Mundo Livre”


    Nos dias que correm, nunca deixamos de escutar um lema já em lengalenga: é preciso defender o nosso modo de vida, a nossa Liberdade, a nossa Democracia, o nosso Estado de Direito…

    Tudo isto é repetido ad nauseam pela nossa comunicação social, em particular por comentadores que descobriram que afinal apenas serviam para tal emprego, depois de anos e anos na vida política e em cargos governamentais.

    As palavras que ecoam da boca destes comentadores proporcionam-nos a sensação de que vivemos numa espécie de Alice no país das maravilhas, liderado por uma nação excepcional: os Estados Unidos da América (EUA), esse farol da Liberdade.

    city skyline across body of water during daytime

    Todos os dias recebemos as suas directrizes e orientações, caso contrário, como seria possível conhecer os bons e os maus da fita deste mundo perigoso?

    Será o mundo ocidental liderado pelos EUA assim tão idílico? Será assim tão respeitador da propriedade privada, dos direitos humanos, da imprensa livre e do estado de direito? Comecemos pela propriedade privada, um direito “sagrado” do mundo ocidental.

    A moeda norte-americana, o dólar norte-americano (USD), é desde o final da II Guerra Mundial a moeda reserva do Mundo.

    Em 1971, depois de ter financiado a guerra do Vietname com a impressora do seu Banco Central, sem qualquer respaldo por Ouro, os EUA foram obrigados a terminar a convertibilidade do USD no metal amarelo. Desde então, o USD perdeu 98% do seu valor!

    A desvalorização de uma moeda, através da impressão massiva de dinheiro, não é mais do que o confisco da propriedade privada dos cidadãos.

    Quais as consequências de tal política? Uma inflação descontrolada. Em Março último situou-se em 8,5%, a mais elevada desde o início da década de 80 do século transacto. Segundo a página Shadow Statistics, que aplica o método de cálculo de inflação de há 40 anos, em Março de 2022 a inflação encontrava-se em 17,5%! Podemos imaginar o presente saque às poupanças dos cidadãos do “mundo livre”, com taxas de juro dos depósitos nos 0% e a inflação próxima de 20%!

    Evolução do dólar (USD) em função da cotação do ouro (unidade: gramas de ouro por 100 USD). Fonte: Yahoo Finance (análise do autor)

    Como chegámos até aqui? Com a impressão de mais 5 biliões de USD (12 zeros) desde o final de Setembro de 2019, em que ocorreu uma crise no mercado interbancário norte-americano, por parte do banco central norte-americano. A crise “pandémica” e agora a “guerra na Ucrânia” são desculpas perfeitas para justificar as consequências desta loucura monetária.

    A classe política do “Mundo Livre” tem de continuar a vencer eleições atrás de eleições. Estes gloriosos feitos requerem dinheiro, muito dinheiro: para as clientelas políticas, para os funcionários públicos, para os empresários e colaboradores em casa sem produzir, para a obnóxia imprensa e para alimentar guerras sem fim, visando incrementar índices de popularidade de líderes caídos em desgraça.

    Evolução da taxa de inflação nos Estados Unidos entre 1970 e Março de 2022. Fonte: Yahoo Finance (análise do autor)

    Como o fazem? Geram défices públicos monstruosos – em 2020 foi de 3,3 biliões, um valor superior a 16% do PIB norte-americano – que necessitam de ser financiados por novas emissões de dívida pública.

    E quem a compra? O Banco Central, usando a respectiva impressora.

    O leitor coloca a seguinte pergunta? Mas isso não gera inflação, o tal confisco de propriedade de privada? Claro que sim, mas a culpa é do “Putin” ou da “pandemia”.

    Para além da inflação, o assalto à propriedade privada no Ocidente ocorre de outras formas. O maior de todos é perpetrado pelo esquema em pirâmide denominado Segurança Social. Apesar de tudo, apresenta duas diferenças, para muito pior, em relação ao famoso burlão Bernie Madoff: (i) é obrigatória, caso contrário, o destino do rebelde é o cárcere; (ii) a saída não é voluntária nem pode ocorrer a qualquer momento, é quando as autoridades assim o decidam.

    Evolução do balanço do Banco Central norte-americano, em biliões de USD, entre 2008 e 2022. Fonte: Stlouisfed (análise do autor)

    E quem não se recorda dos assaltos ocorridos em vários países ocidentais – por cá, já ocorreu por diversas vezes – aos fundos pensões privados, mediante a sua transferência para a Segurança Social? Tal desvio do alheio foi propagandeado como uma receita extraordinária para os cofres públicos, com o propósito de salvar as contas e a boa gestão!

    Agora até temos um estado vassalo dos EUA, liderado por um membro do World Economic Forum (WEF), que decretou um estado de emergência para colocar um fim às manifestações pacíficas de camionistas e confiscar-lhes as contas bancárias e activos financeiros, depois de se ter apropriado de 12 milhões de USD em fundos angariados em plataformas de crowdfunding.

    E os estados vassalos grego e italiano que confiscam todos os meses os seus pensionistas, impondo-lhes sanções pecuniárias apenas por se recusarem à inoculação de substâncias experimentais no seu corpo?!

    O que dizer dos EUA e dos seus vassalos europeus que congelam e confiscam as reservas do Banco Central russo? Ou de cidadãos russos, sem qualquer acusação ou direito de defesa, tal como exige um Estado de Direito?

    Evolução do défice (vermelho) ou superávit (verde) federal dos Estados Unidos, ano a ano, em milhares de milhões de dólares, entre 1980 e 2021. Fonte: Stlouisfed (análise do autor)

    Tal como diz a nossa Constituição, bem como a maioria das constituições do suposto “mundo livre”, no seu nº 1 do artigo 26º: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

    Será mesmo assim? E o nosso direito à personalidade, eliminado por umas fraldas faciais durante dois anos, sem qualquer evidência científica de que funcionam?

    E a tortura de crianças durante dois anos, prejudicando seriamente a sua educação; ora através de um ensino à distância, prejudicando os mais pobres que não têm Internet ou computador pessoal, ora presencial e com fraldas faciais, sem possibilidade de lerem as emoções e os rostos dos professores, indispensáveis a uma boa Educação.

    O que dizer do certificado digital imposto pela União Europeia, utilizado unicamente para discriminar cidadãos que se recusam a inocular-se com uma substância experimental, vedando-lhes o acesso a uma vida normal – ginásios, restaurantes, estádios, teatros –, e impedindo-os de circular livremente, tal como se vivessem numa prisão.

    E o discurso de ódio de que foram vítimas, sem que ninguém se indignasse? E o direito ao corpo tantas vezes reclamado para as questões do aborto e da eutanásia, mas que na “pandemia” não se aplicou, caso contrário, tal “negacionista” não passava de um inimigo do bem comum.

    man opening his arms wide open on snow covered cliff with view of mountains during daytime

    A discriminação atingiu novos absurdos: recentemente, a organização do torneio de ténis de Wimbledon baniu os jogadores russos e bielorussos.

    O mesmo seguramente terá acontecido aos tenistas norte-americanos Arthur Ashe, Pancho González e Stan Smith durante os torneios de ténis nos finais dos anos 60 e princípios dos anos 70, em resultado dos bombardeamentos de nações soberanas como o Camboja e o Vietname, onde faleceram milhares e milhares de civis inocentes.

    Certamente que o mesmo se passou com os jogadores norte-americanos Andy Roddick, James Blake, Andre Agassi e as irmãs Williams durante o torneio de Wimbledon de 2003, como castigo pelo emprego de fósforo branco e urânio empobrecido na cidade iraquiana de Fallujah pelo exército norte-americano.

    Uma missão em nome da eliminação de “armas de destruição maciça” que afinal nunca tinham existido. As consequências são ainda hoje visíveis, em que crianças nascem com defeitos congénitos catastróficos.

    E o que dizer da mítica final de Wimbledon entre os norte-americanos Pete Sampras e Andre Agassi em 1999, como foi possível tal ter acontecido!, dado que nesse ano a NATO bombardeava a capital sérvia e o “Exército de Libertação do Kosovo” fazia uma limpeza étnica de Sérvios, Judeus e Ciganos – na altura, a nossa imprensa não os veio defender, nem o então presidente da Assembleia da República se indignou com tal chacina!

    E o que dizer da detenção por anos a fio de pessoas sem julgamento?

    Por cá, o método é um apanágio da nossa justiça há décadas; para não falar dos milhares de cidadãos acusados pelo Ministério Público e posteriormente absolvidos pelos tribunais, com a total indulgência dos magistrados que arruinaram o bom-nome e a reputação dessas pessoas. São autênticos inimputáveis, destruindo vidas com recursos públicos.

    Nos últimos dois anos, o governo australiano, outro membro do “Mundo Livre”, quis regressar às suas origens, no tempo em que não era mais que uma colónia penal do império britânico. Para tal, construiu acampamentos para forçar cidadãos saudáveis a isolamento e quarentena, sob o olhar atento de guardas e funcionários de saúde. Caso tentassem escapar, eram encarcerados e acusados ​​de crimes! Tudo em nome do estado de direito, das liberdades e garantias tão características do “mundo livre”.

    E no nosso cantinho à beira-mar plantado? Durante a “pandemia”, tivemos cidadãos detidos em prisão domiciliária, apenas por terem acusado positivo num teste sem qualquer fiabilidade, sem qualquer mandado judicial, tal como determina a Constituição, apenas com uma ordem de um funcionário administrativo. Tudo em nome do Estado de Direito!

    E o que dizer de Julian Assange, que teve o topete de desmascarar os crimes de guerra dos EUA, há anos detido sem qualquer julgamento? Outro estado vassalo prepara-se agora para o entregar ao país líder do “Mundo Livre”.

    Bem, mas o que nos salva é a imprensa livre, sem qualquer censura e dotada de uma imaculada imparcialidade.

    Esta “imprensa livre” diz-nos há muito que a censura é necessária, pois serve para nos “proteger da desinformação e da propaganda”.

    Talvez por isso, contrataram os famigerados “Fact-checkers”, para nos proporcionar a verdade oficial.

    Talvez por isso, sejam os beneficiários de enormes subsídios estatais, possivelmente para compensar os colossais prejuízos em que vivem mergulhados há anos, o suficiente para encerrar portas de qualquer simples negócio.

    Talvez por isso, tenham participado na cocção dos cidadãos à inoculação de uma vacina experimental nos seus corpos.

    Talvez por isso, puderam publicar em Janeiro do presente ano que a CIA preparou as forças especiais ucranianas a “matar russos”.

    Talvez por isso, ignorem que o conflito na Ucrânia existe desde 2014, onde faleceram 14 mil pessoas e foram deslocadas 1,5 milhões de pessoas.

    Talvez por isso, as redes sociais agora autorizam discursos de ódio, desde que sejam dirigidos a russos!

    Sorria estimado leitor: não perca os discursos encomiásticos às nossas liberdades, à nossa democracia; convença-se e seja feliz neste mundo perfeito, de garantias e de respeito pelos direitos humanos!

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Hoje mais do que nunca, sempre!

    Hoje mais do que nunca, sempre!


    Na capa da revista do semanário Novo, João Lagos, o conhecido organizador do Estoril Open, dizia há poucos dias que “cheirou-me que o 25 de Abril não seria bom para o ténis”.

    O contexto completo seria que, nessa altura, sendo o ténis um desporto de elites, depois do 25 de Abril de 1974 passaram os seus executantes a serem chamados de fascistas, burgueses e por aí fora.

    O Novo, que apesar do nome já cheira a mofo, vai fazendo o que pode para trazer os valores, os interesses e as notícias de outros tempos. Imagino que tenham na calha um exclusivo da Exposição do Mundo Português de 1940 e ainda um roteiro gastronómico com as melhores tascas de Santa Comba Dão.

    yellow ball on water during night time

    Devo dizer que concordo no essencial com João Lagos. O ténis sofreu com a Revolução. Antes era um desporto reservado a uma certa classe social. Por exemplo, nas colónias, os campos de ténis eram só utilizados pelos colonos brancos. Hoje, qualquer preto da Amadora vai à Decathlon em Alfragide e compra uma raquete por 30 euros. Onde é que isto vai parar?

    Mas não foi só o ténis que sofreu com a insurreição dos Capitães. Assim de repente lembro-me de mais umas quantas actividades que ficaram para sempre traumatizadas.

    Por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Antes desse 25 de Abril de má memória, simplesmente não existia; depois teve que se apresentar ao trabalho e começar uma vida de amarguras com pobres aos rodos nos corredores dos hospitais. A assistência médica durante a ditadura não estava disponível para todos, e em casos mais agudos, e na eventualidade de seres de uma classe mais baixa, falecias só. O que era óptimo em termos de gestão das contas nacionais, porque se poupava muito em pensões e subsídios de desemprego. 

    O problema é que nessa altura também não existiam pensões ou subsídios de desemprego. Outra consequência desagradável da Revolução dos Cravos foi a tentativa de criar uma rede social que não deixasse ninguém na miséria absoluta. Pior ainda, decidiram criar um salário mínimo nacional. Portanto, à própria Economia, tal como a João Lagos, lhe cheirou que isto dos chaimites no Largo do Carmo ia dar asneira. 

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    De repente, um país que estava habituado a gastar o dinheiro dos impostos em guerras em África, onde uma geração morria sem saber porquê, viu-se na contingência de criar uma rede de apoio social e um sistema universal de saúde gratuito. Não só as pessoas deixaram de morrer entre saraivadas de balas na selva como, na Metrópole, deixaram de temer uma pneumonia como se de peste se tratasse. Imaginem o rombo nas contas! 

    Mas a catástrofe não ficou por aqui. O acesso ao emprego também passou a estar consagrado na Constituição da República e a deixar, legalmente, todos com hipótese de serem o que quisessem ser. Independentemente de sexo, raça, cidadania ou território de origem.

    O preto já não tinha que trabalhar na sanzala ou servir o colono. A mulher já não precisava de ficar em casa e ter como objectivo de vida tratar do marido. Agora pensem como isto destruiu o ego masculino e nos trouxe para a cama da insegurança.

    Foi o grande boom dos consultórios de psicanálise. Antes de 74 tínhamos criados, zonas em espaços públicos só para brancos e acesso ao emprego condicionado a um clube. Depois da malfadada Revolução, entrámos num mundo aberto e, em teoria, acessível e mais justo para todos. Ao movimento do macho alpha, tal como ao João Lagos, cheirou-lhe logo que isto do PREC ia deixar traumas.

    Não contentes com o acesso de todos ao mundo laboral, ainda criaram regras mais ou menos civilizadas. Isto quando o processo de jorna e de recolha de homens nas praças para jornadas de trabalho funcionava tão bem.

    De repente, passou a existir um horário de trabalho de oito horas diárias e dois dias de descanso. Em cima disso, a loucura das férias pagas e do direito a licença de maternidade. Foi também nesta altura que o patronato começou, tal como João Lagos, a pensar: “Regras? Isto vai dar merda.”

    group of men in black and gray helmet standing on road during daytime

    E, por esta altura, ainda não se tinham lembrado do direito à greve. Reclamar? O trabalhador pode reclamar se não concordar com o empregador? Mas está tudo doido? Ainda ontem estavam felizes com um cabaz de pão, vinho e azeitonas, e agora temos que negociar como vender a força de trabalho?

    O 25 de Abril foi também muito mau para os lucros dos patrões. Sem aviso, tiveram que começar a tratar os trabalhadores como algo mais próximo de um ser humano.

    Mas o pior de tudo, e que Abril nunca mais endireitou, foi a beleza do acto eleitoral do partido único. Uma pessoa sabia sempre o resultado e, aqui e ali, até se contavam votos dos mortos, o que era sempre uma forma de manter os defuntos entre nós. Um conceito de família para a eternidade numa sociedade devota e cheia de fé.

    Hoje tudo isto acabou, e qualquer pessoa pode formar um partido político com base nas suas convicções. Por muito idiotas que estas sejam, estão protegidas, em princípio, pela liberdade de expressão e de pensamento. Uma facada irreparável no silêncio e tranquilidade vividas até Março de 74, quando as opiniões eram controladas e as publicações autorizadas apenas depois de passarem no filtro editorial.

    Agora todos dizem o que pensam, escrevem o que querem, falam do que lhes apetece. Uma chatice. Se a saudosa PIDE-DGS ainda aplicasse o lápis azul, teríamos para ler, com alguma probabilidade, apenas o Novo e o Observador. O que seria óptimo para as poupanças familiares, sabendo nós, desde que a troika nos informou, que vivemos sempre acima das nossas possibilidades.

    Há quem chame a tudo isto Conquistas de Abril.

    Conquistas que se vão ensombrando um pouco por toda a Europa com o crescimento dos movimentos de extrema-direita, muitos deles apoiados pelo inimigo número um do momento: o Vladimir, que hoje ninguém conhece mas que, durante anos, passeou, tirou fotografias e fez negócios com os principais líderes europeus.

    Até por cá, na nossa pequena democracia, temos um saudoso do Estado Novo que, imitando uma tradição salazarista, forrou os gabinetes dos deputados do seu partido na Assembleia da República com retratos do grande líder. Que saudades desses tempos parece ter o nosso André. 

    woman in black and white tank top leaning on wall

    O mais importante, e que estes últimos anos parecem querer ensinar-nos, é que nada é garantido. A liberdade que hoje conhecemos está, de facto, constantemente ameaçada por uma classe de privilegiados, dentro e fora de portas, que preferem um mundo cheio de compartimentos e acessos restritos.

    E é por isso que, ironias à parte, Abril ainda não terminou. Se há milhões de europeus e milhares de portugueses que, livremente, votam em partidos políticos de índole fascista, significa que a Revolução ainda não cumpriu os seus propósitos.

    E por isso dizemos, hoje mais do que nunca, 25 de Abril. Sempre!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • 25 de Abril Sempre! Democracia só para alguns!

    25 de Abril Sempre! Democracia só para alguns!


    No livro do Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas, a Lebre de Março disse à Alice “Toma mais chá!”, num tom muito sério. “Ainda não tomei nenhum,” respondeu Alice em tom ofendido, “portanto não posso tomar mais.” “Não podes tomar menos, queres tu dizer,” disse o Chapeleiro, “é muito fácil tomar mais do que nada.”

    Desde pequena que o meu feriado preferido é o 25 de Abril! O meu pai é professor de História, e todos os anos, solenemente, assistia-se lá em casa ao Capitães de Abril, realizado pela Maria de Medeiros.

    Assim, cedo me apercebi da importância histórica da revolução de 25 de Abril que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, vigente desde 1933, e que lançou as bases para a implantação de um regime democrático.

    Desde que me lembro de ser, celebro o 25 de Abril como sinónimo de liberdade, e ainda o continuo a fazer, embora o peso da idade, das experiências vividas e observadas, me tenha trazido também o sustentável peso de se ser mulher, e de todas as limitações à liberdade que, embora em democracia, nos continuam a ser impostas.

    Por isso, tal como a Alice, do “chá” da democracia, creio ter bebido ainda muito pouco ou nada. Não obstante, no dia 24 de Março de 2022, assinalou-se o facto de vivermos há mais tempo em democracia, 17500 dias, do que vivemos em ditadura, 17499 dias. 

    Começo assim esta crónica com uma pergunta provocatória: Caras companheiras de resistência, quando chegará o dia em que celebraremos o facto de TODAS vivermos, de facto, em democracia?

    Ou por outras palavras, quando é que chegará o dia de celebrarmos todos (mulheres incluídas) o reconhecimento da dignidade humana, da liberdade de pensamento e expressão, da igualdade de direitos e deveres, da limitação e controle do poder, valores supostamente promovidos pelo regime democrático?

    Disse também a Lebre de Março à Alice num tom encorajador: “Toma um pouco de vinho”, ao que a Alice respondeu: “Eu não vejo nenhum vinho”. “Não há nenhum”, disse a Lebre de Março. “Então não foi muito educado da tua parte oferecê-lo”, comentou a Alice, com raiva.

    Parece-me, caras companheiras de resistência, que tal como aconteceu com a Alice, também a nós nos foi oferecido algo que nunca existiu: liberdade para todos, a ideia da democracia enquanto a única forma de governo que respeita plenamente a dignidade humana e permite aos seus cidadãos desenvolver ao máximo as suas potencialidades.

    O 25 de Abril de 1974 aconteceu para todos, mas só aos cidadãos do sexo masculino lhes é permitido gozar das bem-aventuranças por tal acontecimento proclamadas. Por isso mesmo, caras companheiras de resistência, tal como a Alice, sintam-se no direito de sentir raiva! E já que aqui estamos, e o Mundo, tal como nos é permitido experienciar, não vai a lado nenhum, sintamo-nos também no dever de fazer algo para que possamos não só celebrar a liberdade, mas fazer parte dela também.

    Há um velho ditado popular que diz: “A ignorância é uma bênção”. Já eu acredito mais na máxima de Francis Bacon de que o “conhecimento é poder”.

    Assim, sendo a nossa democracia fundamentalmente patriarcal e machista, e atravessando a Humanidade um período bizarro em que há mulheres que garantem não serem feministas, disponibilizo aqui as já costumeiras definições do Priberam para esclarecer conceitos que me parece essencial não ficarem esquecidos ou serem deturpados:

    Patriarcado é o tipo de organização social em que a autoridade é exercida por homens;

    Machismo é o comportamento ou linha de pensamento segundo a qual o homem domina socialmente a mulher e lhe nega os mesmos direitos e prerrogativas;

    Feminismo, o movimento ideológico que preconiza a ampliação legal dos direitos civis e políticos da mulher ou a igualdade dos direitos dela aos do homem.

    Para comprovar o argumento da democracia patriarcal e machista em que vivemos poderia socorrer-me de vários exemplos, mas vou concentrar-me apenas em um para ser clara, objetiva, e concisa, em mais uma de muitas tentativas de fugir ao estereótipo de que nós, mulheres, somos todas malucas.

    Segundo a avaliação do Comité Europeu dos Direitos Sociais, tendo por base a Carta Social Europeia, à exceção da Suécia, todos os restantes 14 países europeus signatários – Portugal, Bélgica, Bulgária, Croácia, Chipre, República Checa, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Países Baixos, Noruega e Eslovénia – estão em incumprimento das disposições adotadas para a implementação da igualdade de género em termos salariais.

    Num documento divulgado a 13 de Março do ano corrente, o mesmo Comité afirma que “a disparidade salarial entre os sexos é inaceitável nas sociedades modernas, mas continua a ser um dos principais obstáculos para alcançar a igualdade real”, e apela a que os governos europeus intensifiquem esforços “com urgência” para garantirem a igualdade de oportunidades no local de trabalho.

    men holding white, black, and red Men of quality respect womens equality banner on road

    Acrescenta ainda o mesmo Comité que, apesar dos 15 países signatários da Carta Social Europeia terem “legislação satisfatória”,isto é, “acordos de cotas e outras medidas”, continuam a ser registadas “várias violações” ao pleno estabelecimento de uma igualdade salarial entre homens e mulheres, e “as mulheres também continuam sub-representadas nos cargos de tomada de decisão nas empresas privadas.”

    A Carta estabelece que o direito à igualdade de remuneração salarial entre os sexos deve ser garantido por lei pelos estados subscritores. Portugal assinou a Carta em 1996, e iniciou a sua vigência em Julho de 2002.

    Contudo, de acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Pordata, em Portugal, no ano de 2020 registou-se um fosso salarial entre homens e mulheres de 11, 4%, superior ao verificado em 2019, de 10,9%.

    Tal valor traduz-se numa perda de 51 dias de trabalho remunerado para as mulheres, que é o equivalente a dizer que, em 2020, as mulheres trabalharam pro bono 51 dias.

    Mas para o bem público de quem? É que de acordo com relatório anual “Portugal, Balanço Social 2021. Um retrato do país e de um ano de pandemia”, elaborado pela Nova SBE Economics for Policy, na taxa de risco de pobreza, as mulheres são as que saem mais penalizadas, argumento comprovado pelo risco acrescido de 2,5 pontos percentuais de 2019 para 2020 durante a pandemia de COVID-19, no sexo feminino face ao masculino.

    Caras companheiras de resistência, deixemo-nos então enraivecer, pois!

    E com níveis mais altos de escolaridade, como demonstra o relatório “Education at a Glance 2021”, onde pode ler-se que “em 2020, as mulheres entre os 25 e os 34 anos eram mais propensas do que os homens a frequentar uma carreira universitária em todos os países da OCDE”, embora continuem a receber salários inferiores comparativamente aos seus pares masculinos.

    Em Portugal, 49% das mulheres na faixa etária mencionada, tinham um diploma universitário em 2020, em comparação com os 35% dos homens, taxas que se tornam mais elevadas tendo em conta a média dos países da OCDE, 52% e 39%, respetivamente.

    Parece-me que sou obrigada a dar a mão à palmatória e admitir que, efetivamente, a ignorância é uma bênção.

    “Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir daqui?” Perguntou a Alice. “Isso depende muito aonde queres chegar!” Disse o Gato.

    Caras companheiras da resistência, se o vosso destino desejado é também a igualdade salarial entre homens e mulheres, trago boas e más notícias: a boa é que já há data prevista para tal feito histórico, a má é que a mesma aponta para 2157, segundo o World Economic Forum, no “Global Gender Gap Report 2021”, ou seja, daqui a 135,6 anos, o que significa que “mais uma geração de mulheres terá de esperar pela paridade de género.”

    Se de igual forma desejam contrariar a ideia do Gato de que “somos todos malucos aqui!”, e tal como a Alice não desejem andar “pelo meio de gente maluca”, deixemo-nos então enraivecer, pois! E enquanto isso, descruzemos os braços, não para trabalhar mais 51 dias que os homens por ano, de graça, mas para que os possam cruzar, graciosamente, e por fim, com a sensação de dever cumprido e de igualdade de direitos alcançados, afinal “é muito fácil tomar mais do que nada.”

    Tal como a rainha da Alice no país das maravilhas, também eu “às vezes acreditei em até seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço”, e não pretendo esperar 135 anos para viver numa democracia de facto, porque a esperança média de vida não mo permite, nem tão pouco o facto de, tal como Álvaro de Campos, “o que há em mim é sobretudo cansaço”, cansaço do sustentável peso de ser mulher e de ter de continuar a celebrar, no papel de espectadora, a liberdade dos outros, dos que verdadeiramente continuam a (des)governar a democracia.  25 de Abril sempre!

    E, já agora, para todos. Mulheres incluídas, se puder ser!

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.