Categoria: Opinião

  • Um louvor ao regime

    Um louvor ao regime


    No próximo dia 25 de Abril de 2022, o actual regime irá completar 17.532 dias, ultrapassando o Estado Novo, que durou 17 499 dias.

    Pela semelhança de duração, julgo estar na hora de realizar um balanço; no fundo, aquilatar os resultados obtidos em cada período. Sem pruridos. A democracia, ser democrata, devia significar não ter medo de comparações.

    Esta avaliação política seguramente não irá ocorrer nas próximas comemorações do 25 de Abril, onde os nossos representantes, por razões óbvias com uma fralda a tapar-lhes a cara – em 2020 não podia haver mascarados –, irão proferir discursos encomiásticos à nossa insigne democracia, por contrapartida às misérias e desgraças do Estado Novo.

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    A incessante entoação de panegíricos ao regime também conta agora com uma comissão organizadora dos 50 anos, presidida por um apaniguado, que terá direito a uma sinecura de seis anos, com um salário mensal de cerca de 4.500 euros brutos e um préstito de assessores.

    Uma das bandeiras do actual regime é o desenvolvimento económico. Será mesmo assim?

    Será que a economia portuguesa tem convergido com economias desenvolvidas ao longo dos últimos 170 anos?

    Se analisarmos a evolução do produto interno bruto (PIB) per capita de Portugal, corrigido pela paridade do poder de compra (PPC), em relação a uma média simples de 12 países desenvolvidos para os últimos 170 anos, podemos constatar que o período do Estado Novo foi aquele de maior enriquecimento dos portugueses.

    Evolução do PIB per capita português (%) face à média aritmética simples de 12 países (Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos da América, França, Holanda, Noruega, Reino Unido e Suécia) em USD (corrigido pelo PPC); Fonte: Luciano Amaral (Convergência e crescimento económico em Portugal no pós-guerra) até 1992; Banco Mundial, a partir de 1992 (análise do autor).

    A 1ª República deu continuidade à divergência económica que ocorreu durante todo o século XIX, em que Portugal ficou completamente relegado à irrelevância, com uma queda de 7,6 pontos percentuais. Em 1974, o PIB per capita de Portugal era de 57,5% da média aritmética do PIB per capita de 12 países desenvolvidos, uma subida de mais de 30 pontos percentuais.

    O que logrou o presente regime?

    Para além de três bancarrotas – seguramente virá aí a quarta –, apenas uma convergência positiva de 4,8 pontos percentuais ao longo de 46 anos. No entanto, com uma agravante: a dívida pública encontra-se agora na estratosfera. Nunca na História de Portugal tivemos uma dívida desta dimensão.

    Evolução da dívida pública portuguesa em percentagem do PIB entre 1850 e 2021. Fonte: Mata e Valério (1994); Banco Mundial; Eurostat (análise do autor)

    No final de 1974, a dívida pública em percentagem do PIB era de apenas 13,9%; actualmente, situa-se acima em 127,4%. Ou seja, enquanto o Estado Novo reduziu-a em 60 pontos percentuais, o presente regime presenteou-nos com uma subida de 114 pontos percentuais.

    Para elevar a dívida pública ao Olimpo, o actual regime serviu-se do seu carácter frascário: estádios sem espectadores, duas e três auto-estradas para o mesmo trajecto, parcerias público-privadas sem risco e com retorno assegurado para os amigos, aeroportos sem passageiros e aviões, comboios de alta velocidade que nunca saíram do papel, clientelas em casa sem trabalhar enquanto decorria uma “pandemia” anunciada por uma imprensa obnóxia.

    Em resumo, esta mísera convergência económica foi alcançada com uma dívida pública astronómica, que se agravou substancialmente a partir de 2000 com a adesão ao Euro, esse projecto, anunciado na altura pelo actual possidónio que lidera a ONU, que nos ia retirar das profundezas do atraso económico.

    No que respeita ao mercado de capitais, em lugar de melhorarmos, simplesmente estamos muito pior, apesar de um autêntico exército de reguladores e polícias de mercado. O actual mercado de capitais vale apenas 38% do PIB, enquanto em 1974 valia 66%.

    Quem não se recorda da equipa do ex-vendedor de PCs Magalhães, aquele que recebeu um milhão de contos num cofre da sua mãe – até hoje ainda não descobrimos como os converteu em euros -, e que se encarregou de destruir várias empresas cotadas na bolsa de Lisboa, em conluio com o então DDT do regime?

    PIB português em 2021 vs. capitalização bolsista no final de 2021 e 1974 em milhares de milhões de euros. Fonte: Filipe S. Fernandes (Os Empresários de Marcello Caetano), CMVM; Eurostat (análise do autor)

    O que tem acontecido nas últimas décadas desde a adesão ao Euro?

    Não parámos de descer na ordenação descendente do PIB per capita.

    Entre 1999 e 2020, passámos de 15ª posição, num conjunto de 25 países da União Europeia, para o 19ª. Em 2021, fomos ultrapassados pela Hungria; agora, corremos o risco de sermos ultrapassados pela Roménia: um país que viveu durante décadas um pesadelo comunista!

    A Grécia, o país que nos tem acompanhado na vida de mendicante, com uma dívida pública colossal, acima de 220% do PIB, e que tem passado a vida a solicitar perdões de dívida, está agora em risco de ser ultrapassada pela Bulgária!

    Já não falta muito para nos tornarmos junto com a Grécia um dos países mais envelhecidos do mundo e a caminho de ser o carro-vassoura da Europa: vamos seguramente disputar o pódio com os gregos em breve.

    Somos agora, além de tudo isto, um país envelhecido, resignado, manietado e que aceita sem qualquer assuada todas as directrizes do poder, independentemente de as mesmas terem qualquer base constitucional. O que importa é a reforma, o subsídio ou a sinecura junto do Estado; esse é o desejo de qualquer jovem licenciado que deseja ter uma “vida sossegada”.

    PIB per capita, corrigido pelo paridade do poder de compra, em 1999 e 2020 de 25 países da União Europeia (Unidade: USD). Fonte: Banco Mundial (análise do autor).

    Aqueles que desejam alcançar algo na vida, nada mais lhes resta do que emigrar, atendendo que a produção de riqueza é tributada com enorme violência. Em 2018, a receita fiscal em percentagem do PIB era de 37,1%, quando no Estado Novo não superava os 15%, apesar de ter enfrentado uma guerra colonial a decorrer em várias frentes.

    Estamos agora sem qualquer soberania. A soberania monetária foi entregue há muitos anos ao Banco Central Europeu (BCE). A partir de então temos passado a viver de mão estendida, à espera de que esta entidade nos adquira a nossa dívida pública para que possamos pagar as contas.

    A soberania política também não existe, a maioria das nossas leis é aprovada em Bruxelas sem qualquer controlo democrático.

    O nosso Parlamento apenas serve para ratificar o que lá se aprova, e enviar comitivas a Bruxelas para suplicar a mutualização da dívida pública europeia, que aconteceu como uma medida de “combate à crise pandémica”.

    Os líderes do regime não cabiam em si de contentes, quando a grande líder, eleita ao melhor estilo de uma ditadura comunista, nos visitou para anunciar que não só iria haver dívida mutualizada, mas também a bazuca europeia estaria a caminho.

    Apenas se esqueceu de dizer que a Europa não tem dinheiro, e que irá utilizar a impressora do BCE para “produzir” aquele que nos faz falta. Ao mesmo tempo, todos vão assobiar para o ar e acusar a Rússia pela inflação desta loucura monetária que estamos a viver.

    E para que servirá o dinheiro da bazuca? Enquanto a inflação dispara e destrói o poder aquisitivo da população, os hábitos dissipadores dos nossos líderes vão continuar de boa saúde.

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    Podem continuar a vencer eleição atrás de eleição com a maior das felicidades, anunciando promessas com o dinheiro dos outros, alimentando clientelas eleitorais – reformas, pensões e subsídios – e pagando à imprensa para se manter submissa e incapaz de qualquer escrutínio.

    Com uma população submissa e envelhecida, incapaz de compreender o empobrecimento contínuo e a riqueza de uns poucos, tudo será cada vez mais fácil.

    Em conclusão, a ópera-bufa que irá ter lugar daqui a uns dias, acompanhada de panegíricos sem qualquer sentido, será o símbolo perfeito da decadência a que chegámos.

    De um país que foi a moeda reserva do mundo entre 1450 e 1530; que foi pioneiro da globalização; que realizou um dos maiores desembarques anfíbios da História – a tomada de Ceuta, em 1415 –; que possuía a quarta capital europeia mais populosa no início do século XVIII; que enfrentou sozinho a esquadra do império otomano em 1717; que foi, até ao final do século XVIII, um dos países mais ricos do Mundo, é agora o gracejo da Europa.

    O seu supremo prócere máximo até liga agora para um programa em directo para felicitar a senhora que o realiza aos guinchos e aos berros.

    O actual regime faz bem em manter a estátua colossal do facínora no topo da Avenida da Liberdade, pois partilha com o Estado Novo o desprezo absoluto pelas liberdades dos portugueses, e a homenagem a tal tirano. Nisso estão juntos com Salazar!

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • De Bucha a Haia, passando pelas trincheiras da opinião

    De Bucha a Haia, passando pelas trincheiras da opinião


    Observei com a estupefacção de quem vê um acidente entre dois camiões, a voracidade das discussões sobre Bucha, na Ucrânia. Com cadáveres espalhados no chão, e um cenário que já não estamos habituados a ver na Europa (que é diferente de não existir), as trincheiras voltaram a formar-se a uma velocidade estonteante.

    Li e ouvi todo o tipo de teorias sobre a autoria daquelas mortes. A Ucrânia acusa a Rússia de crimes de guerra, enquanto do Kremlin chegam notícias contrárias. Até aqui nada de novo: é uma guerra, ninguém assume seja o que for até ao dia de se apresentar em Haia.

    Mas por cá, confortavelmente sentados nos nossos sofás, escorremos ódio baseado em certezas absolutas.
    Discutimos teorias, ouvimos generais que defendem que tudo aquilo foi encenado. Outros dizem-nos que os russos estão a repetir a barbárie da Síria. Foi a mão que abanou à passagem dos soldados, as faixas com Z que indicariam a proximidade com os russos por parte das vítimas ou os corpos, em teoria ali deixados há três dias (altura da partida dos russos) que não mostravam um estado de decomposição satisfatório para 72 horas.

    Zelinsky acusado por uns por usar Bucha como uma última cartada para puxar o “Ocidente”, ao mesmo tempo que as hipóteses de acordo de paz se vão esfumando. Putin, garantem-nos, desistiu de Kiev, assumindo essa derrota para apostar tudo na conquista do leste ucraniano, unindo territórios com a Crimeia. Bucha tem todo o ar de ter sido um crime de guerra daqueles que, cedo ou tarde, chegam a Haia.

    Em momento algum se tentou perceber o óbvio ou, pelo menos, perguntar o que mais interessa: de quem são aqueles corpos esquartejados no meio do chão?

    Entre teorias de trincheira, alguém parou para pensar dois minutos que, factualmente, estavam ali centenas de pessoas atiradas para o chão, mortas, assassinadas, sem qualquer piedade?

    Gente que terá filhos algures, família que procura saber deles, amigos que perderam o seu paradeiro. Gente como nós que está ali a figurar num quadro de horror para que, agora, no quente do lar, possamos discutir teorias sobre quem os matou, e para que, em conjunto, consigamos odiar o outro lado da barricada.

    Ouvi os noticiários durante 24 horas. Li todas as teorias possíveis e imaginárias. Escutei generais, jornalistas e analistas de uma forma geral. Segui discussões intermináveis sobre o crime ou montagem. Nem uma palavra sobre os seres no chão que outrora estavam vivos.

    A famosa coluna de 64 quilómetros do exército russo, estacionada nos arredores de Kiev durante semanas, parece ser agora um depósito de ferro-velho. Ainda bem, acrescento eu. Há notícias de, durante o reagrupamento das tropas em direcção a leste, aldeias e vilas terem sido pilhadas por russos. Mulheres e meninas apresentam agora as primeiras queixas de violação, em zonas que foram reconquistadas pelo exército ucraniano. Molestadas por soldados russos e, quem diria, também ucranianos (segundo o The Guardian).

    A eterna discussão do lado civilizado numa guerra fez-me lembrar a história das invasões napoleónicas e dos nossos eternos aliados ingleses: depois de nos ajudarem a expulsar os franceses, roubavam ainda mais do que aqueles no regresso a casa.

    Aprendi nas últimas horas todas as hipóteses teóricas do que poderá ter acontecido em Bucha. Tudo, menos quem morreu e por que razão. O mais importante, portanto, e o que verdadeiramente me interessa.

    Entre as discussões políticas e as convicções ideológicas, vamos esquecendo que gente com uma história inocente está a pagar por decisões dos governantes.

    É nisto que penso quando vejo os gritos de trincheira nas redes sociais.

    É disto que me lembro quando vejo narrativas ensaiadas que nos obrigam a escolher um lado, seja ele qual for, e ali ficar, independentemente daquilo que a realidade nos vai mostrando.

    Vamos perdendo a sensibilidade e o afecto. Queremos ter razão. Queremos que a nossa teoria passe no crivo dos vencedores. Não queremos saber de quem vai tombando. São danos colaterais.

    Bucha diz muito sobre o agressor, bastante sobre a linha das regras que alguns julgam existir numa guerra. E, claro, qualquer coisa sobre nós.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Das árduas batalhas em defesa do jornalismo independente e da transparência

    Das árduas batalhas em defesa do jornalismo independente e da transparência


    O PÁGINA UM tem mantido, muito por via do apoio dos seus leitores, uma postura intransigente na defesa do jornalismo rigoroso e isento, sabendo, desde o seu nascimento, que tem um caminho espinhoso a percorrer. Não tem sido batalha fácil, até porque desgastante, porque com várias frentes.

    Recordamo-nos que, dois dias após o nascimento formal do PÁGINA UM, a CNN Portugal encetou, em 23 de Dezembro do ano passado, um vil ataque, acusando-nos de ser uma “página negacionista” e “anti-vacinas”, acusação ‘apadrinhada’ pela Ordem dos Médicos, e acompanhada por outros órgãos de comunicação social, como Público, Expresso, Lusa e Observador.

    Recentemente, após uma estranha deliberação que ilibou o Público, e que está agora em fase de reclamação, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) acabou de tomar a decisão de obrigar a CNN Portugal a publicar na íntegra o meu texto de resposta em defesa dos valores do PÁGINA UM. Apesar de formalmente a notificação ter chegado ao PÁGINA UM na sexta-feira passada, e o mesmo terá sucedido com aquele canal televisivo, o direito de reposta não foi ainda publicado. Estaremos atentos.

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    A obrigatoriedade de publicar o texto de direito de resposta não será a única consequência para a CNN Portugal. A ERC determinou o envio do processo para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, e o PÁGINA UM acompanhará com detalhe o assunto, para que não haja “esquecimentos”. E outras medidas ainda serão tomadas.

    Entretanto, esta manhã, o PÁGINA UM enviou a sua defesa relativamente à queixa junto da ERC por parte da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e do seu presidente António Morais. A defesa do PÁGINA UM, que decidimos tornar pública desde já, conta com 39 pontos em 11 páginas.

    E como consideramos que a ERC tem a obrigação, porque está nas suas atribuições, defender o jornalismo de ataques soezes e sem provas, apresentámos uma queixa naquela entidade reguladora contra António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.

    Em causa estão frases daquele responsável que, por exemplo, acusam os artigos do PÁGINA UM, que denunciaram as relações comerciais entre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia e o sector farmacêutico, de terem “consequências para a saúde públicas”. Estamos assim perante graves ofensas ao livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa; uma torpe tentativa de condicionar a independência de um órgão de comunicação social independente perante os poderes económicos; e uma agressão à efectiva expressão e ao confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial do PÁGINA UM.

    Campanha de angariação de fundos para intervenções judiciais do PÁGINA UM no MIGHTYCAUSE

    Aguardamos que esta queixa, que agora também divulgamos publicamente, constitua também um teste à ERC, de modo a apercebermo-nos se estamos perante uma entidade reguladora, que defende a comunicação social, ou se esta apenas deseja supervisionar e controlar a comunicação social.

    Por fim, o PÁGINA UM está em fase de preparação da intimação junto do Tribunal Administrativo para obrigar o Infarmed a disponibilizar os dados em bruto dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do remdesivir, uma vez que esta entidade reguladora dos medicamentos se recusou a cumprir o parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA).

    O PÁGINA UM, através de uma angariação de fundos do MIGHTYCAUSE, que já recolheu um pouco mais de 2.200 euros, tentará usar esses apoios dos leitores para apresentar outras intimações, nomeadamente para a Direcção-Geral da Saúde disponibilizar dados escondidos.

    Nesta linha, e com o vosso apoio, contribuiremos para uma sociedade mais interventiva e esclarecida, e para uma Administração Pública mais transparente e acessível.

    Enfim, o PÁGINA UM fará sempre aquilo que se deveria esperar de um órgão de comunicação social: pugnar pelos princípios da democracia.

  • Nada há de mais humano do que a desumanidade

    Nada há de mais humano do que a desumanidade


    Não quero saber, por agora, se é ou não encenado. Se quem fez aquilo foram os russos ou os ucranianos para acicatar o Ocidente a diabolizar ainda mais alguém que é, era e será um diabo enquanto estiver no poder. Há fortes indícios de massacre. Deve ser investigado, de forma independente; não sei se para já. Não sei se se chegará alguma vez à verdade.

    A verdade é maleável, depende do poder, depende de quem sai vitorioso de uma contenda. Nem sempre coincide com a realidade. A verdade pode ser imposta. A mentira pode ser tornada verdade, por mais evidências que possam aparentemente existir. A História farta-se de nos dar desses ensinamentos.

    Mas importante, talvez sim, seja reflectirmos, desde já, noutro aspecto essencial: aquilo poderá ser real porque é possível? SIM.

    Sim, infelizmente é muito, muito possível que aquela situação em Bucha seja real, e que tenha sido causada pelos russos.

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    E mesmo que não seja, nada nega uma invasão, que tantas mortes já causou. E mesmo que sejam militares, essas vidas perdidas não são justificadas nem legitimadas por os corpos estarem vestidos com uma farda. Eram vidas.

    E ter acontecido mesmo um massacre de civis, será Bucha inédito, merece uma consternação em êxtase, o nosso estupor perante um horror inaudito, uma inqualificável desumanidade? NÃO.

    Lembro-me sempre, desde que escrevi essa frase, da passagem de um dos meus romances em que o narrador, por sinal o diabo, argumenta (cito de cor) que “nada há mais humano do que a desumanidade”.

    Bucha deveria chocar-nos não por ser inédito, não por ser uma surpresa, mas exactamente por ser expectável.

    Lembremo-nos, apenas para nos mantermos num cenário similar, de Grozny. Não foi assim há tanto tempo. Putin “esteve” lá.

    Mas lembremo-nos também que nenhuma guerra, nenhuma outra guerra mata ou matou com contos de fada.

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    Nenhuma das mais de 10 milhões de vidas perdidas em conflitos armados desde a barbárie da chamada II Guerra Mundial, muitos sem ser televisionados, foi através de doces canções de embalar.

    Nos últimos dois anos, antes da invasão da Ucrânia, a base de dados do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED) contabilizou 73.199 mortes no Afeganistão em conflitos bélicos, 38.146 mortes no Iémen, 17.671 mortes Nigéria, 16.704 mortes no México, 14.083 mortes na Síria, 11.723 mortes no República Democrática do Congo, 11.365 mortes no Myanmar e 10.528 mortes no Brasil, que nem sequer está formalmente em guerra, mas onde a violência armada é endémica. Dois anos apenas, e mais conflitos se registaram.

    Os mesmo dirigentes políticos da Europa que agora correm a chamar nomes a Putin e a ameaçá-lo com o Tribunal Penal Internacional (TPI) andaram a banquetear-se à sua mesa e à dos seus oligarcas durante, pelo menos, duas dezenas de anos. E andaram a alimentar guerras e conflitos, nem que fosse através da indústria do armamento.

    Andaram em jogos perigosos com quem nunca foi de confiança.

    Por isso, não se surpreendam, pelo menos se honram a vossa inteligência, com as atrocidades na Ucrânia. Não são de agora nem são só de lá.

    Não esqueçam Bucha, não esqueçam Grozny, não esqueçam sobretudo como chegámos aqui.

    Porque se esquecerem, haverá sempre mais Buchas, com Putin e sem Putin. Com Zelenski e sem Zelenski.

    Haverá sim estas contínuas atrocidades, estas humanas desumanidades, se as democracias ocidentais mantiverem este estilo de virgens surpresas.

    E haverá os vossos horrores para amenizarem as vossas consciências. As nossas consciências. Pesadas. Sempre. Como se fôssemos todos culpados. E talvez sejamos, mas por inacção, antes dos conflitos. Por pouco pressionarmos os nossos dirigentes políticos. Preocupamo-nos só perante as monstruosidades, e pouco com aquilo que vai alimentando os monstros. E esses monstros são alimentados pela realpolitik.

  • Do que precisamos todos não é de bofetadas, mas sim de vergonha na cara!

    Do que precisamos todos não é de bofetadas, mas sim de vergonha na cara!


    “Tá lá? É do inimigo? Olha vocês podiam-me parar a guerra agora aí um bocadinho? Sim? Tenho aqui um colega com dores de cabeça! Tá bem. E também temos o canhão encravado. Sim. Foi o Alfredo que meteu a cabeça lá dentro para fazer a revista e agora não a consegue tirar! Já pusemos sabão já, mas a cabeça não sai!”

    Assim começa um dos sketches humorísticos mais conhecidos de Raul Solnado, um dos principais protagonistas da história do humor em Portugal.

    Mas nada temas, caro Raul, o bom de já se ter falecido é que, em princípio, ninguém vai atrás de si para o cancelar! Digo em princípio porque da maneira que isto vai, e a julgar pelas reações públicas ao caso Smith versus Rock, hoje em dia damos prioridade a enaltecer a violência e a condenar o humor.

    Calma, não me entendam mal! Sei perfeitamente que somos todos contra a violência, e se dúvidas houvesse, muitas foram as pessoas que fizeram questão de o esclarecer nas redes sociais, publicando variadíssimas vezes a frase “Não à violência, mas…” E é sobre este – “mas…” – que me apraz propor uma reflexão conjunta.  

    Debrucemo-nos então sobre o assunto do momento.

    Na cerimónia dos Óscares deste ano, Chris Rock, um conhecido comediante fez uma piada sobre a ausência de cabelo da mulher do ator Will Smith, Jada Pinkett Smith, também ela atriz. Tal piada, desencadeou uma série de acontecimentos desengraçados: o caminhar furioso de Smith até ao palco onde se encontrava Rock, a bofetada de Smith a Rock, e o bradar de insultos e ameaças de Smith a Rock, já regressado ao seu lugar sentado, junto dos seus pares hollywoodescos.

    Perante tal acontecimento, o Mundo dividiu-se em dois: aqueles que condenaram veemente a agressão de Smith a Rock, e aqueles que condenando também tal agressão, fizeram questão de a minimizar, com argumentos muito próximos do ditado popular de “quem não se sente, não é filho de boa gente”. Assim, “Não à violência, mas…” torna-se compreensível que Smith tenha “perdido a cabeça” a uma piada envolvendo a cabeça da sua esposa, trazendo novamente para debate público a velha discussão sobre os limites do humor.

    Contudo a primeira reação de Smith à piada de Rock foi rir-se. Então não terá sido tanto a piada em si que irritou o Will, mas antes perceber o desagrado da Jada. Ainda bem que a discussão sobre os limites do humor causa atualmente mais proclamação do bom samaritanismo do que o culpabilizar das mulheres pela masculinidade tóxica, caso contrário a discussão neste momento seria bem diferente, mais no âmbito do feminismo e tal. Mas não será este caso merecedor de uma reflexão feminista também?

    Sendo eu uma dessas pessoas que acredita na igualdade de género, parece-me pertinente questionar se este retorno aos filmes da Wall Disney, quando as princesas indefesas estavam totalmente dependentes de um príncipe encantado e valentão que as viesse salvar, não deita por terra o trabalho devolvido ao longo das últimas seis décadas pela emancipação da mulher, pelo reconhecimento do seu espaço para ação, para o seu entendimento enquanto semelhante e não inferior ao género masculino?

    Ou será que tal agressão, entendida como um gesto másculo e heroico do príncipe de Bel-Air nada mais foi do que a manifestação da masculinidade tóxica, denunciada, nos últimos sessenta anos, pelas feministas?

    Talvez a melhor forma de entender o caso Smith versus Rock seja uma contextualização histórica.

    Regressemos então ao ano de 2016, quando o Will e a Jada resolveram boicotar a cerimónia dos Óscares como forma de protesto pela ausência de nomeados negros nas categorias de atuação (todas as vinte indicações ao Óscar nas categorias de atuação foram para artistas brancos), juntando-se assim ao movimento de protesto que ficou conhecido como “#OscarsSoWhite”.

    Chris Rock, apresentador da cerimónia nesse mesmo ano, fez algumas piadas sobre a ausência do casal, piadas essas que, segundo foi noticiado na época, não teriam caído bem ao casal de atores.

    Ignoremos o facto de este ano, das vinte indicações de atuação, apenas quatro foram para atores negros, incluindo a nomeação do Will ao Óscar de melhor ator, o que parece denunciar que ao Will preocupava mais a ausência de representatividade do Will nas nomeações ao Óscar de melhor ator do que a falta de representatividade de negros nas nomeações aos Óscares de representação.

    Deixemos de lado também considerações legais sobre este episódio, uma vez que o Ricardo Araújo Pereira já veio esclarecer aos menos esclarecidos, a diferença entre uma piada e uma agressão: sobre a primeira o código penal nada diz, e sobre a segunda tipifica-a como um crime. Concentremo-nos então na conjunção adversativa contida na frase “Não à violência, mas…”

    Este “mas” refere-se exatamente a quê? Aquilo que é aceitável que nos faça rir? É porque quando algo desperta o meu lado mais jocoso normalmente é pela forma como é dito, pelo absurdo da situação, ou pelo quão próxima determinada caricatura está da realidade.

    Ou será que quando nos rimos de “Roubos, e não é muitos, e não são poucos, não é? Bastantes!”; “Eu sei lá menina se são os chineses ou o C*”; “Custa-me muito aturar este barulho porque eu já sofro da cabeça quase de nascença.”; “Dá-me o pito. Foi os termos que ele falou. E eu grito: Nãoooo!”, “Tenho muita humidade. É só, a gente também não pode dizer mais do que é. É só humidade.”; “Filha da mãe que tens uma grande patite v.”; “Chega ao fim sai o trabalho e o dinheiro está no C*”, estamos a gozar com a desgraça destas pessoas?

    Com os assaltos em cemitérios?

    Com a xenofobia?

    Com as doenças neurológicas?

    Com as violações sexuais?

    Com as más condições de habitação?

    Com as infeções sexualmente transmissíveis?

    Com a exploração laboral?

    Estava em crer que não, mas talvez esteja enganada, não é raro.

    Ou será que este “mas…” diz respeito à existência de temas sobre os quais não se pode fazer humor? Ou seja, sobre a calvície não se podem fazer piadas, mas com doenças neurodegenerativas já se pode, como as sempre foram feitas em relação ao Stephen Hawking, e mais recentemente aqui pelo nosso Portugal, em relação ao Ricardo Salgado.

    Faz sentido, até porque é de senso comum que sobre carecas não se fazem piadas, até porque é dos carecas que elas gostam mais. Contudo, e para que de futuro possamos todos evitar ter de recorrer ao método “só à chapada”, será que algum grupo de entendidos pode ter a amabilidade de se reunir, como já se fez para se escrever a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas agora para redigirem a Declaração Universal das Piadas de Bom Tom?

    Dava-nos jeito a todos para evitar discussões absurdas nas redes sociais e consequentes animosidades, e a mim, em particular, dava-me jeito para evitar ter de pousar os livros e ir inscrever-me numas aulas de pugilismo. É que doutra forma não me safo.

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    Mas como sou uma adepta da democracia, o que implica aceitar a decisão da maioria, também se decidirem proibir todo e qualquer tipo de humor, nem precisam de me convidar a tal, porque “aqui estou, aqui estou, Manuel Acácio!”

    Porém, será que os portugueses estão assim tão dispostos a censurar ou proibir o humor?

    As evidências parecem demonstrar que não: o podcast mais ouvido em Portugal em 2021 foi o “Extremamente desagradável” de Joana Marques; “Isto é gozar com quem trabalha”, de Ricardo Araújo Pereira, tem uma audiência média de um milhão de espectadores; “Como é que o bicho mexe” de Bruno Nogueira, teve mais de cem mil visualizações no último direto de Instagram em 2020; o “Relatório DB” de Diogo Batáguas, todos os meses tem liderado as tendências no Youtube em Portugal; e o canal de Youtube “Os primos” tem 213 mil subscritores.

    Por estes exemplos, eu responderia que não, mas olhando às discussões facebookianas a que assisti nos últimos dias, tenho as minhas dúvidas. Para que possamos todos dar resposta à questão colocada, proponho que reúnam a família para uma ronda do jogo “preferias”.

    Então, preferiam o Putin num bar em Moscovo, a beber umas vodcas com os seus compinchas oligarcas, e a contar anedotas sobre Ucranianos, ou a usar o dinheiro desses mesmos amiguinhos, a invadir a Ucrânia, e a matar uns quantos Ucranianos, enquanto bebe umas vodcas? Hum, é difícil? “Diga um, diga um, Pedro, diga um!”

    Para não terminar numa nota negativa, analisemos os resultados do caso Smith versus Rock, pelo lado positivo.

    two man laughing at each other

    O Chris ficou com a cara quentinha e fartou-se de vender bilhetes para o seu espetáculo ao vivo.

    A Jada teve os seus cinco minutos de importamo-nos todos contigo e com a tua condição médica (mas só com a dela); e nós podemos todos fingir que sabíamos o que era a alopecia, vestir o fato de bom-samaritanos, e aparecer nas redes sociais para parecermos todos pessoas muito compreensivas e empáticas porque “Não há violência, mas…” continuemos a desculpabilizar e a justificar aqueles que a praticam!

    E quanto ao Will, não só teve direito a permanecer na cerimónia como ainda angariou o Óscar para melhor actor, fez um discurso de aceitação merecedor de mais um Óscar, e vai finalmente abraçar a terapia e iniciar o seu processo de cura.

    Contas feitas, o único derrotado da noite foi mesmo o humor, que ironicamente, foi o responsável por todas estas conquistas.

    Faço meus os votos de Raul Solnado, “Façam o favor de serem felizes!”, e acrescento ainda “Não há violência”, sem nem mas nem meio mas! E agora “vou sair, vou abandonar que eu tenho uma consulta agora às cinco horas, cinco e meia, não posso estar aqui.”

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Campanha de angariação de fundos “INFARMED: UMA LUZ PARA A TRANSPARÊNCIA” a caminho do Tribunal Administrativo…

    Campanha de angariação de fundos “INFARMED: UMA LUZ PARA A TRANSPARÊNCIA” a caminho do Tribunal Administrativo…

    O Infarmed, um regulador que deveria defender os interesses dos cidadãos e não os interesses da indústria farmacêutica e do Governo, mandou “às malvas” os pareceres (não vinculativos) da CADA, e remeteu o PÁGINA UM para a base de dados da EudraVigilance. O PÁGINA UM iniciou ontem uma campanha de angariação no MightyCause denominada “INFARMED – UMA LUZ PARA A TRANSPARÊNCIA” com o objectivo específico de suportar custos de patrocínio jurídico e demais despesas correlacionadas junto do Tribunal Administrativo. Angariámos já 1.100 euros em menos de 24 horas, mas além deste processo haverá outros, se os recursos financeiros o permitirem, sobretudo envolvendo a Direcção-Geral da Saúde.


    Pedindo desculpa pela qualidade do som, siga em baixo um vídeo explicativo sobre a fraca qualidade da informação da EudraVigilance relativa aos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do remdesivir, e que justifica assim ser fundamental o acesso aos dados em bruto do Portal RAM na posse do Infarmed.

    Os apoios podem ser encaminhados directamente para a plataforna de angariação no MightyCause denominada “INFARMED – UMA LUZ PARA A TRANSPARÊNCIA” com o objectivo específico de suportar custos de patrocínio jurídico e demais despesas correlacionadas.

    Pode também contactar o PÁGINA UM através do e-mail: gera@paginaum.pt.

    Os montantes angariados nesta campanha destinam-se em exclusivo para gastos judiciais nestes e em outros processos dinamizados pelo PÁGINA UM, e será feito, com periodicidade a indicar, um relatório circunstanciado dos montantes gastos.

    Os apoios gerais ao PÁGINA UM podem continuar a ser feitos pela via normal, através das subscrições no STEADY ou na outra campanha do MIGHTYCAUSE.

  • Mais armas, por favor… sempre em nome da paz

    Mais armas, por favor… sempre em nome da paz


    Sempre que vou a casa do meu pai, passo os olhos pela porta amolgada do correio. Sinais de outros tempos em que ainda se escreviam cartas à mão e um teenager, ansioso, dobrava a lata para não ter de esperar pela chave, que chegaria no bolso de um adulto lá para o fim do dia.

    Hoje a rotina é consideravelmente diferente. Já ninguém escreve algo que mereça uma ida ao correio, e o entulho que por lá se acumula, na caixa, varia entre a publicidade de supermercado ou ofertas de crédito com fantásticas taxas de juro de 11% de uma qualquer cofidis. Até as contas – a adrenalina do mês, como lhes chama o meu pai –, já nos aparecem nos computadores e smartphones, em formato digital.

    Ontem, enfim, pensei, antes de ir dormir, que já não ia ao correio há uma semana. Desafiei os graus negativos, e lá fui enfiar a mão naquela montanha de papiro.

    red steel Royal Mail mailbox

    Devo dizer que a entrada em Abril é, daqui de onde vos escrevo, de autêntica tortura para mim. Na minha Lisboa natal, o céu azul começa a acompanhar-se de algum calor, vocês arriscam nas t-shirts, e eu aqui, entre impropérios verbais, desloco-me em temperaturas que não convidam à interacção com outros humanos.

    É a altura do ano em que repito que já chega, que agora é que me vou mesmo embora. Depois visto um casaco, acalmo-me, e espero pelo próximo Abril. O décimo sétimo, neste meu caso.

    Mas já me desviei do tema, e levei-vos por divagações pouco importantes para o tema em debate. Peço desde já perdão pela minha reduzida capacidade de síntese…

    O entulho na minha caixa de correio, voltemos a ele.

    Entre a resma de publicidade estava um panfleto do partido liberal de cá. Em linhas gerais dizia que a Suécia devia entrar na NATO (e já!), e que o país teria que investir mais na defesa.

    Acrescentavam ainda que há já 10 anos que defendiam esta ideia, e que hoje estaria mais actual do que nunca por causa do “efeito Putin”.

    Confesso-vos, com alguma tristeza, que não tenho seguido o partido liberal sueco na última década, mas percebo agora, com algum embaraço, que tenho perdido momentos memoráveis.

    Fiquei a pensar naquilo até adormecer, e concluí que os liberais suecos têm razão. Diria mais: não só estão cobertos de razão como estão a revitalizar um mercado algo adormecido desde a Guerra Fria. É tempo de a Suécia começar a usar o dinheiro dos impostos para comprar mais armamento.

    Existem várias razões para isso. A primeira é que, como sabemos, a compra de material bélico é a primeira forma de prolongar a paz. Quem nunca ouviu “estamos a bombardear para conseguir terminar esta guerra”, que atire a primeira pedra.

    Depois, aqui entre nós, a Suécia fez opções políticas a partir da década de 60 do século XX que são um verdadeiro ultraje à vida no limbo da incerteza que todos aspiramos. Investiu fortemente em habitação, num programa que trouxe um tecto para todos, colocou o erário público ao serviço de uma Educação verdadeiramente universal onde, e reparem neste escândalo, os miúdos são subsidiados pelo Estado para estudarem no ensino superior.

    Ou seja, os filhos do sapateiro e do astronauta partem do mesmo patamar no que toca às oportunidades na vida. Como se não bastasse, ainda nos sacam mais uma fortuna em impostos para que os mais velhos tenham assistência em casa na fase final da vida, para que os miúdos tenham dentista grátis até aos 26 anos, e para que, de uma forma geral, toda a população tenha assistência gratuita providenciada pelo Serviço Nacional de Saúde.

    Por fim, proporcionam a todos, no fim da vida contributiva, uma pensão pública, devolvem em sede de IRS 30% dos juros cobrados pelos bancos, proporcionam centenas de dias de paternidade a cada casal, e garantem uma Segurança Social que não deixa ninguém debaixo da ponte nos momentos mais difíceis.
    Como se percebe, um tédio. Uma vida sem surpresas, receios ou aflições provenientes da falta de emprego, falhas de saúde ou azares de percurso.

    Pessoalmente, isto tudo enerva-me. Raramente estou doente e não vou a hospitais.

    Estudei em Portugal e, em princípio, também passarei por lá o tempo da reforma. Ou seja, nem consigo aproveitar bem os descontos. Já se tivéssemos um grupo de vigilantes em cada bairro, talvez com um tanque ou um lança-mísseis, sempre me poderia entreter nas noites de frio, que vão de Agosto a Julho. De resto, são óptimas.

    Como se não bastasse, com estas escolhas de investimento, a Suécia conseguiu, durante décadas, figurar entre os mais ricos do mundo, com elevada percentagem da população a concluir o ensino superior e a chegar a um valor mínimo de salário a rondar os 2.000 euros (não oficial).

    Note-se ainda que, para os senhores da guerra, fãs dos mercados e da corrida ao armamento, que durante estes anos de paz e neutralidade, parte do desenvolvimento económico da Suécia foi também assente na produção e venda de equipamento militar.

    Cerca de 2% dos tiros dados a nível mundial são produzidos pela Suécia. Nada mau para uma população igual à portuguesa. Ambos têm 0,13% da população mundial. No fundo, a Suécia pratica aquela paz que consiste em vender armas aos dois lados. Onde é que já vi isto?

    Mas essa neutralidade, com uma mancha aqui e outra ali, valeu 77 anos de prosperidade e de enorme crescimento económico, reflectido diretamente na qualidade de vida dos seus habitantes.

    men in green and brown camouflage uniform

    Chegados aqui, o que devemos fazer?

    Seguir uma receita de sucesso testada ao longo de quase oito décadas, ou desviar os fundos que construíram isto para nos armarmos até aos dentes? Melhor, perante a ausência de ameaça, devemos criar uma narrativa para que passemos a ter uma preocupação nova?

    Eu acho que sim. E entendo perfeitamente os liberais. Tal como eles, também eu estou aborrecido com esta vida calma, organizada e sem problemas. Aliás, quando aqui cheguei em 2007 fiquei logo desconfiado.

    Habituado em Lisboa a entregar uma bíblia impressa em A4, a que chamavam declaração de IRS, fiquei estupefacto quando apenas me pediram um sms com a mensagem; “sim” ou “não”, para fazer o mesmo em Gotemburgo, ao fim do meu primeiro ano de trabalho. Era o primeiro de vários anos sem emoções e irritações com o quotidiano.

    Assim, há que aderir à NATO, e meter um alvo nas nossas costas. Há que tirar dinheiro das escolas e canalizá-lo para mísseis. E depois é deixar os mercados agirem. Todos temos visto ao longo do último mês como eles se ajustam bem.

    É como diz o poeta João: o liberalismo é necessário e funciona.

    Primeiro cria-se o deserto, depois vende-se a água. Brilhante.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Manifesto consciente e com Ciência contra os senhores inquisidores dos tempos modernos

    Manifesto consciente e com Ciência contra os senhores inquisidores dos tempos modernos


    Por quatro vezes, pelo menos, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) já se debruçou sobre a magna questão da legitimidade dos jornalistas em chamarem alguém, a pretexto da pandemia, de “negacionista”.

    Em 9 de Dezembro do ano passado, sobre um artigo da Visão, a ERC considerou que como uma peça jornalística “se reporta[va] a um conjunto de pessoas que ou negam a existência da pandemia de covid-19, ou a sua gravidade, ou a validade científica das respostas de combate à doença”, então mostrava-se “adequada e contextualizada a terminologia (‘negacionistas’)”.

    No mesmo dia, abordando mais duas outras peças, ambas do Observador (a primeira publicada em 12 de Setembro; a segunda em 21 do mesmo mês) , a ERC considerava também adequada a terminologia “negacionistas” usada para retratar uma manifestação contra a vacinação contra a covid-19 de crianças realizada em Setembro do ano passado. E acrescentavam os membros da ERC que “negacionistas” era já expressão “globalmente utilizada para descrever pessoas e grupos de pessoas que negam os conhecimentos científicos existentes, à data, sobre a covid-19”.

    Mais recentemente, em 23 de Fevereiro passado, a ERC reiterou a sua posição anterior, e, nessa medida, concordava até com a TVI que, em defesa do seu jornalista José Alberto Carvalho, alegou a existência de um insondável “princípio, estatisticamente correto, segundo o qual negacionistas (pessoas que negam a existência da covid-19 ou são críticos das restrições impostas para a resolução do problema de saúde pública por ela colocado) teriam tendencialmente taxas de vacinação e logo de imunização mais baixas do que a população em geral”.

    Os excelsos membros da ERC “comeram” de bom modo o tal “princípio, estatisticamente correcto” ditado pela TVI, tal como consideraram que qualquer pessoa que questione e critique uma determinada “linha maioritária” seja “negacionista”.

    Compreende-se, lendo os seus curricula:

    Sebastião Póvoas, o seu presidente, é licenciado em Direito e juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

    Mário Mesquita, o seu vice-presidente, é licenciado em Comunicação Social e foi jornalista.

    Francisco Azevedo e Silva é licenciado em História da Arte e foi jornalista.

    Fátima Resende é licenciada em Direito.

    João Pedro Figueiredo é licenciado em Direito.

    Nenhum dos excelsos membros da ERC se vê obrigado, portanto, a ler artigos científicos sobre Epidemiologia ou Ciências Médicas.

    Até porque são eles sobretudo pessoas de Fé: acreditam na Direcção-Geral da Saúde, no Governo, no vice-almirante herói da Nação, na TVI, na demais imprensa amen, etc..

    Mas mesmo que lessem, seguiram os dogmas contra a pravidade e apostasia .

    Por exemplo, sem pestanejar mas sem evitar também um estremecimento de horror, determinariam que, perante um texto intitulado “The illusion of evidence based medicine”, os seus autores, um certo Jon Jureidini e tal Leemon McHenry, eram “negacionistas” impenitentes e relapsos.

    Benzer-se-iam se chegassem ao lead, com a seguinte frase: “A medicina baseada em evidências tem sido corrompida por interesses corporativos, regulamentação falhada e mercantilização da academia”.

    E exorcizariam os hereges perante o seguinte trecho: “Os reguladores recebem financiamento da indústria e usam ensaios financiados e realizados pela indústria para aprovar medicamentos, sem, na maioria dos casos, ver os dados brutos. Que confiança temos num sistema em que as empresas farmacêuticas podem ‘marcar o seu próprio trabalho de casa’ em vez de ter os seus produtos testados por especialistas independentes como parte de um sistema regulatório público?”

    E sentenciariam à mesma um anátema mesmo se lhes dissessem que o primeiro autor é um psiquiatra infantil da Faculdade de Medicina de Alberta e o segundo é um especialista em bioética e professor emérito de Filosofia da Universidade Estadual da Califórnia.

    E confirmariam a sentença mesmo que lhes argumentassem que esse artigo tinha sido publicado na conceituada revista científica BMJ.

    E também decretariam ser um “negacionista” quem questionasse a Direcção-Geral da Saúde para disponibilizar dados e relatórios, e que, após uma “luta” para obter alguns desses dados, revelasse que, afinal, andou-se a vacinar adolescentes quando cinco dos 12 membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC) não concordava com a medida. Como eu fiz.

    Também promulgariam ad perpetuam rei memoriam ser um “negacionista” quem questionasse a ética do senhor vice-almirante Gouveia e Melo e da Direcção-Geral da Saúde de quererem vacinar a torto e a direito os recuperados da covid-19, sabendo – porque sabiam – que este grupo não tinha sido incluído nos ensaios clínicos das vacinas, e que existiam já indicações sobre os riscos de efeitos adversos das ditas serem superiores nesses em comparação com aqueles que nunca antes tinham tido contacto anterior com o vírus. Como eu fiz.

    E também deliberariam in saecula saeculorum ser um “negacionista” quem questionasse a ética deontológica de certos jornalistas e o sentido ético dos membros da ERC. Como eu fiz.

    E por esses benquistos motivos, porque chamar “negacionista” a alguém incómodo é um expediente muito cómodo para evitar questionamentos, o jornalista José Alberto Carvalho não tem assim de provar coisíssima nenhuma.

    Nem tem ele e ela de mostrarem estudos a suportar aquelas afirmações. Um dogma surge da Fé.

    Nem a ERC exigirá, a si e à TVI, que seja provada a existência de um “princípio, estatisticamente correto, segundo o qual negacionistas (pessoas que negam a existência da covid-19 ou são críticos das restrições impostas para a resolução do problema de saúde pública por ela colocado) teriam tendencialmente taxas de vacinação e logo de imunização mais baixas do que a população em geral”. Um dogma não necessita de comprovação nem comprovativo.

    Resultado do teste serológico de IgG em 24 de Março de 2022 com referência ao valor obtido em 20 de Dezembro de 2021 para um “recuperado” em Junho de 2021 e não-vacinado nem com teste positivo nos últimos 10 meses.

    Não têm eles, nem ninguém, nem muito menos a Direcção-Geral da Saúde, nem o vice-almirante, nem quem o premiou, nem os excelsos membros da ERC terão que dar explicações sobre as razões pelas quais eu e muitos outros recuperados da covid-19 – mais precisamente, agora, um terço da população – temos de nos vacinar se quisermos ser, ou continuar a ser, cidadãos de pleno direito no século XXI, uma vez que só assim, com injecções cujos efeitos não são conhecidos (aguarda-se que o Infarmed cumpra o parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos), receberemos uma espécie de “carta de alforria” como obedientes súbditos dos paladinos de um bem comum e das nossas vontades.  

    E se eu, recuperado há nove meses, argumentar que a Ciência me indicou, através de um teste serológico em Dezembro de 2021, que os meus níveis de IgG no sangue eram de 427,00 BAU/ml, e que três meses mais tarde (terceira semana de Março) o valor era de 438,00 BAU/ml (não me tendo vacinado nem sentido quaisquer sintomas de nova infecção nesse interim), e que, portanto, não vislumbro necessidade de vacinação, então têm eles todos o “direito” de me chamarem “negacionista”. E de me prescreverem castigo compatível.

    E podem ter, sim, esse poder.

    Não devem é chamar a isto uma democracia.

  • O mito da transmissão dos assintomáticos: debates impedidos, danos descomedidos

    O mito da transmissão dos assintomáticos: debates impedidos, danos descomedidos


    NOTA DA DIRECÇÃO (30/03/2022)

    O PÁGINA UM publicou este artigo de opinião no pressuposto de ser uma actualização de um artigo publicado em 9 de Maio de 2021 no Observador, intitulado “Da fraude científica à ruína dos povos: o mito da transmissão por assintomáticos”, da autoria de Miguel Menezes e Tiago Mendes.

    Constatámos, entretanto, que tanto o artigo do Observador como o artigo ora publicado no PÁGINA UM segue uma linha de raciocínio muito semelhante ao artigo publicado em 6 de Março de 2021 no jornal The Blind Spot, da autoria do seu director Nuno Machado.

    O artigo de Miguel Menezes no PÁGINA UM, embora desenvolva muitos aspectos mais recentes sobre a temática em causa, cita e desenvolve pelo menos oito das 15 referências bibliográficas usadas antes por Nuno Machado.

    Note-se que Miguel Menezes não faz qualquer referência ao artigo anterior de Nuno Machado. Mesmo se estamos perante um artigo de opinião, e tratando-se este de um artigo de opinião com elementos relevantes do ponto de vista científico, estamos perante uma situação que se poderá considerar um plágio.

    Aos leitores fica este aviso. E ao The Blind Spot, e particularmente ao seu director Nuno Machado, o nosso pedido de desculpas mesmo se por algo alheio e involuntário.

    O artigo original de Nuno Machado no The Blind Spot pode ser lido AQUI.



    No início de Fevereiro, a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, admitiu o fim do isolamento para casos positivos assintomáticos. Tratou-se de uma admissão da não transmissibilidade dos assintomáticos, ou pelo menos, da não relevância destes para o desenrolar da pandemia? Como se explica este aproximar à evidência científica depois de tantos danos causados pelas medidas adotadas?

    A ideia da transmissibilidade de assintomáticos foi um ponto chave para justificar as medidas impostas, embora nunca tenha sido provada cientificamente. Na verdade, o presente artigo apresenta abundantes evidências que apontam precisamente para o oposto.

    Verificou-se desde cedo um grande condicionamento na divulgação de informação, apresentando-se uma ideia nova e não fundamentada como se de um facto irrefutável se tratasse, impedindo assim o debate, ao rotular e conotar todos os dissidentes negativamente.

    brown bear plush toy on white textile

    A ausência de informação heterogénea em relação a vários temas da atualidade, reprime o pensamento crítico e conduz ao desconhecimento sobre a realidade, o que acontece sobretudo na questão pandémica, facto que contribuiu para a incomensurável e cada vez mais notória degradação da nossa sociedade.

    Os danos causados pelas medidas de contenção tiveram por base informação divulgada de forma imprecisa, distorcida e amiúde falsa, sem direito ao contraditório e por quem ocupa posições de poder. Promoveu-se um pensamento unilateral, e consequentemente, a crença de que as consequências se devem à pandemia e não às medidas, ilibando os decisores de responsabilidades.

    Este artigo resulta de uma revisão completa da literatura científica acerca do tema, além dos acontecimentos que conduziram à adoção generalizada da crença no mito da transmissão por assintomáticos e alguns exemplos das suas consequências gravosas.

    1 Origem do mito

    Historicamente, o papel dos assintomáticos na transmissão de infeções respiratórias foi sempre relativizado. A ideia, quase consensual, sempre foi a de que a transmissão assintomática seria muito mais rara e menos importante do que a que ocorre nas pessoas com sintomas.

    Anthony Fauci, diretor do National Institute of Allergy and Infectious Diseases norte-americano e um dos principais membros da equipa da Casa Branca destacada para a COVID-19, afirmou a 28 de janeiro de 2020:

    “O que as pessoas precisam perceber é que, em toda a história de vírus respiratórios de qualquer tipo, mesmo que haja alguma transmissão assintomática, esta nunca foi a propulsora de surtos. Os surtos são sempre essencialmente dependentes do contágio em pessoas sintomáticas. Mesmo que haja um raro evento de transmissão por uma pessoa assintomática, uma epidemia não é causada por nem evolui com base em portadores assintomáticos.”

    Dois dias após a declaração de Fauci (a 30 de Janeiro de 2020), surgiu uma carta dirigida aos editores e publicada no New England Journal of Medicine (NEJM) com um caso de uma transmissão por um indivíduo assintomático.

    O polémico Fauci, que tem sido muito criticado por alegados conflitos de interesse com a Indústria Farmacêutica, reformulou subitamente toda a sua posição anterior, afirmando:

    “Não há dúvidas, depois de ler a carta [do NEJM], de que a transmissão assintomática é uma possibilidade (…). Isto esclarece a questão.”

    person holding white and gray digital device

    Esta posição de Fauci, aparentemente definitiva, daquele que é denominado frequentemente como “o maior especialista em doenças infeciosas dos Estados Unidos”, atraiu enorme atenção mediática. No entanto, o citado estudo apresenta irregularidades irreparáveis.

    O estudo foi baseado no suposto contágio a partir de uma mulher de negócios chinesa numa visita à Alemanha. Na carta, os autores do estudo referiam:

    “Durante a sua estadia, ela estava bem, sem sinais ou sintomas de infeção, mas adoeceu no voo de volta para a China.”

    Essa informação revelou-se falsa.

    A cidadã chinesa apresentava realmente sintomas durante a sua estadia na Alemanha, quando entrou em contacto com o alemão que adoeceu, como relatado pela revista Science, poucos dias após a publicação da carta. O Instituto Robert Koch (RKI), a agência de saúde pública do governo alemão, em conjunto com a Autoridade de Saúde e Segurança Alimentar do estado da Baviera contactaram a mulher chinesa somente após a publicação do NEJM.

    Na Alemanha não foi realizado qualquer teste para confirmar a eventual infeção com o vírus. A cidadã foi testada para o SARS-CoV-2 apenas na China, logo após o seu retorno da Alemanha, tendo sido obtido um resultado positivo.

    Os investigadores não chegaram sequer a interagir com a mulher antes da publicação do artigo.

    Um dos autores, Michael Hoelscher, do Centro Médico da Universidade Ludwig Maximilian de Munique, afirmou que o documento se baseou em informações de outros quatro pacientes:

    “Disseram-nos que a paciente da China não aparentava qualquer sintoma.”

    O virologista Christian Drosten, do Charité University Hospital em Berlim, que fez o trabalho de laboratório para o estudo (do qual é um dos autores), disse à Science:

    “Sinto-me mal com o que aconteceu, mas acho que ninguém foi culpado.” (…) “Aparentemente, a mulher não pôde ser contactada num período inicial e considerou-se que se tratava de algo que deveria ser comunicado rapidamente.”

    woman lying on white textile

    (Nota: Christian Drosten tem estado envolto em polémica, por vários motivos, em relação a toda a questão da COVID-19. Um desses motivos é por ter criado o criado o protocolo do teste RT-PCR para a COVID-19, muito contestado pela comunidade científica.

    Causa estranheza a publicação de uma carta tão fracamente fundamentada numa revista científica conceituada, e sobretudo as repercussões que teve ao gerar peso mediático suficiente para que a transmissibilidade dos assintomáticos viesse a ocupar um papel chave no corpo conceptual relativo à COVID-19.

    O retratamento dos autores da carta não chegou para que Fauci voltasse a alterar a sua posição relativamente à questão dos assintomáticos.

    A crença de que os assintomáticos constituíam grave perigo difundiu-se e avolumou-se, pelo que as declarações de Maria Van Kerkhove, chefe da unidade de doenças emergentes da Organização Mundial de Saúde (OMS), a 8 de Junho de 2020, caíram como uma bomba ao referir que as transmissões por assintomáticos eram “muito raras”:

    “Possuímos muitos relatórios de países que estão a fazer rastreamentos muito detalhados dos contactos com casos assintomáticos, não encontrando transmissões secundárias. Trata-se de algo raro e que ainda não foi publicado na literatura”.

    As declarações foram divulgadas por toda a comunicação social a nível mundial e provocaram fortes reações. De um lado, reações de perplexidade, dadas as medidas adotadas com base nesse pressuposto; de outro lado, reações críticas. Fauci foi um dos críticos.

    person writing on white paper

    Nalguns casos, as considerações de alguns especialistas, foram bastante divididas no teor. Por exemplo, o professor Keith Neal afirmou que o “papel da transmissão assintomática no número total de novas infeções permanece pouco claro, mas as pessoas sintomáticas são responsáveis pela maioria das novas infeções da COVID-19”. Já o professor Babak Javid referiu que “pode muito bem ser verdade [que os assintomáticos não transmitem]” e que os dados “sugerem que os verdadeiros assintomáticos raramente transmitem.”

    Van Kerkhove apressou-se a fazer nova intervenção, logo no dia seguinte, dando a ideia de algum recuo ou retratação em relação ao que havia proferido. Referiu que a sua afirmação sobre a transmissão entre assintomáticos ser bastante rara baseava-se nalguns estudos e rastreamentos feitos por vários países, mas que tal seria insuficiente para poder afirmá-lo peremptoriamente, porque os modelos informáticos estimaram cerca de 40% de transmissões entre assintomáticos.

    Esta intervenção informou-nos de algo fundamental: os estudos no terreno dizem que as transmissões de assintomáticos são “bastante raras”, mas os modelos informáticos, que não são reais e dependem daquilo que neles é inserido, dizem que são significativas (40%).

    2 – O que disseram as Agências de Saúde?

    Organização Mundial da Saúde (OMS)

    “Com base no que sabemos atualmente, a transmissão de COVID-19 ocorre principalmente em pessoas quando elas apresentam sintomas (…)”

    European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC)

    “As principais incertezas permanecem em relação à (…) dinâmica geral de transmissão da pandemia, devido à evidência limitada sobre a transmissão de casos assintomáticos.”

    3 – Assintomáticos e pré-sintomáticos

    A destrinça que se passou a fazer entre assintomáticos e pré-sintomáticos é curiosa. Quererá assumir-se que os assintomáticos não transmitem? Quererá admitir-se que se tratam de falsos positivos? Porquê a distinção?

    A narrativa dominante sempre se serviu da palavra “assintomáticos” para se referir à ideia de que estes seriam agentes de transmissão, mas à medida que a fragilidade da hipótese se foi tornando evidente, encetou-se a divisão. No entanto, nada se altera, como veremos de seguida.

    woman in black scoop neck shirt wearing white face mask

    Num artigo da Nature, assumia-se que a comunidade científica estava dividida relativamente à questão da transmissibilidade dos assintomáticos.

    Kuppalli, investigadora de doenças infeciosas na Universidade de Medicina da Carolina do Sul em Charleston, citada no artigo, refere que “assintomático é alguém que nunca desenvolveu sintomas ao longo do curso da sua doença, e pré-sintomático é alguém que apresenta sintomas ligeiros antes de desenvolver sintomas”, embora não exista uma “definição padronizada aceite”.

    4 – Testes PCR

    Só se pode utilizar estatística frequencista no cálculo da estatística de teste, quando a doença é muito prevalente na população, o que não é o caso com a COVID-19.

    O Limite de Prevalência para a COVID-19 foi avaliado em 9,3%, abaixo do qual, a Taxa de Falsos Positivos (TFP = 1 – VPP) aumenta de forma exponencial, o que se denomina como Paradoxo dos Falsos Positivos ou Falácia de Taxa Básica.

    No caso da COVID-19, a prevalência nunca foi além dos 1%, estabelecendo-se maioritariamente abaixo dos 0,1% (conforme o fator sazonal). Precisar de uma coorte de 100 mil indivíduos para se encontrar 100 ou 200 positivos é epidemiologicamente considerado uma doença rara.

    Por isso, precisa utilizar-se a estatística Bayesiana, para o cálculo da estatística de teste de rastreio, que considera o valor da Prevalência como fundamental para que se possam calcular o Valor Preditivo Positivo (VPP) e Valor Preditivo Negativo (VPN).

    Esse ponto é referido no ‘FactSheet‘ da Sciensano, onde se salienta, na página 22, que as “sensibilidades e especificidades relatadas devem ser consideradas com precaução. Outrossim, os valores preditivos positivos e negativos do teste dependerão da prevalência do vírus”.

    Ainda que possuísse uma especificidade muito elevada, com prevalências na ordem dos 1% e até muito mais baixas, a TFP estaria sempre muito acima dos 90%, tornando o PCR impraticável como teste de despiste.

    A primeira revisão da literatura que compara o PCR com o Gold Standard (cultura viral e não o PCR, conforme referido ignotamente por alguns), observou que os resultados positivos do PCR só se confirmam laboratorialmente 20 a 40% das vezes, um valor chocantemente baixo.

    No conhecido manual de Epidemiologia Gordis Epidemiology (SixthEdition) (leitura recomendada para alguns epidemiologistas televisivos), da página 107 à 109, surge um exemplo prático bastante instrutivo da influência da prevalência na TFP.

    Um estudo alemão chegou, recentemente, à conclusão que “mais de metade dos PCR positivos não são, muito provavelmente, infeciosos. Desta forma, o teste RT-PCR não deveria ser tomado como uma medida precisa de incidência de infeção pelo SARS-CoV-2.” Isto, por si só, e não sendo necessário recorrer a uma análise ao nível da Biologia Molecular, demonstra o potencial enviesamento que os testes PCR podem introduzir nos estudos de transmissão de assintomáticos.

    gold glitter with jar

    5 – Estudos apresentados para justificar propagar o mito

    São escassos os estudos que sugerem que os assintomáticos têm algum impacto na transmissão, e foram alvo de críticas negativas fundamentadas (algumas reconhecidas pelos próprios autores):

    Na conclusão do estudo refere-se que “apesar da grande heterogeneidade dos estudos, a proporção de infeções assintomáticas entre pessoas com Covid-19 parece alta e o potencial de transmissão elevado.”

    É preciso distinguir “proporção de infeções assintomáticas” de “transmissão assintomática”. O primeiro é o número de pessoas que testam positivo e permanecem assintomáticos. Nada tem a ver com “transmissão”.

    Segundo os autores, os trabalhos que estudaram diretamente a transmissão de assintomáticos foram cinco estudos de série de casos, que no início da pandemia podem ter algum interesse explorativo, mas que oferecem um valor muito limitado em termos de evidência, devido aos vieses associados a este tipo de estudos (sobretudo vieses de seleção) e uma validade interna geralmente muito reduzida. Por isso, os autores recomendam no futuro, a realização de estudos de coorte mais rigorosos. As séries de casos não são estudos epidemiológicos.

    Portanto, esta revisão sistemática carece de qualidade geral, não só pela grande heterogeneidade, como pelo desenho dos estudos revistos.

    O rastreio dos casos foi feito com o teste PCR, mas para o efeito da transmissibilidade, o estudo é baseado numa simulação matemática.

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    Utilizaram uma distribuição contínua de probabilidades (gama) para inferir a distribuição da transmissão ao longo do tempo, tendo como base o início dos sintomas.

    Trata-se de uma simulação cujos resultados dependem da hipótese assumida à priori de que a transmissão começa antes do início dos sintomas. Poderá ter algum interesse como hipótese de trabalho, mas não constitui evidência científica.

    Ainda assim, refere-se apenas 9% das transmissões num período anterior ao início dos sintomas, inferior a 3 dias. Além de ser fruto de uma simulação, esta pequena percentagem, é influenciada pelas várias limitações que o estudo apresenta o que aliás, é reconhecido pelos próprios autores: a) perfil de infecciosidade inferido a partir de pares “infetores-infetados” que pode ter sido enviesado; b) intervalos de série podem ter sido enviesados, desviando o perfil inferido de infecciosidade para o negativo (transmissão antes do aparecimento de sintomas); c) número muito elevado de ciclos de amplificação (ct < 40); d) Transmissões baseadas em inferências.

    Além disso, é um estudo retrospetivo, baseado em relatos pessoais, dependentes da memória, e como tal, menos fiáveis.

    Trata-se de um estudo proveniente da China, pouco replicável noutros pontos e sabendo-se do estrito controlo em relação ao que é publicado naquele país.

    É um Estudo publicado pelo CDC que se identifica como uma “rápida revisão da literatura” e que a nível epidemiológico, se baseia num conjunto de estudos, muito semelhantes no nível científico, com vieses e limitações que comprometem inteiramente o seu objetivo (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui):

    a) Pequena amostra, sem qualquer robustez estatística (baseiam-se sobretudo em estudos com famílias);

    b) Viés de memória (dados epidemiológicos recolhidos através de entrevistas muito à posteriori, o que incorre em falhas no rigor com que os factos são recordados);

    c) Dependência de um teste PCR positivo.

    Um dos estudos conclui estranhamente, que um indivíduo pré-sintomático infetou familiares, a despeito de se terem iniciado sintomas visíveis enquanto em contacto com eles. Outro,  apresenta o caso de uma família (pai, mãe e filho) que se deslocaram a Wuhan, após o que todos testaram positivo (apenas o pai desenvolveu sintomas). Os autores depreenderam que um dos familiares, pré-sintomático, infetou os restantes, sem ter sido colocada a hipótese de que todos poderão ter sido expostos a uma fonte de contágio comum.

    Estes estudos, sem rigor, equiparam-se ao estudo supracitado, acerca de um alegado contágio a partir de uma mulher de negócios chinesa numa visita à Alemanha. Absurdamente, o mesmo continua a ser citado neste estudo do CDC, como prova da transmissão por indivíduos assintomáticos (ou pré-sintomáticos).

    Infelizmente, muitas das conclusões da investigação científica que se produz atualmente são falsas e os seus autores não revelam reflexividade sobre o seu trabalho, como refere John Ioannidis num ensaio publicado na PLOS Medicine.

    woman standing in front of the digital machine

    Os padrões da prática científica têm decrescido, sendo pautados por uma mediocridade crescente: menor replicação, menor potência estatística e menos rigor no controlo dos vieses. A tendência de minimizar-se custos associada à pressão para publicar e, por vezes, conflitos de interesse, têm tido como consequência um desvirtuamento da qualidade do trabalho científico.

    Esta revisão publicada pela CDC, apresenta ainda “evidências virológicas”, nas quais se reconhece que os relatórios apresentados, não identificaram a transmissão do vírus por pessoas assintomáticas e pré-sintomáticas. Portanto, continua sem se apurar evidências científicas.

    Por último, são apresentadas “evidências” através de modelos de estimativas. Os modelos informáticos de estimativas estatísticas, dependem inteiramente dos dados hipotéticos que neles se insere, podendo falhar rotundamente, como sobejamente se reconhecem exemplos.

    Noutro estudo publicado pela CDC conclui-se que apenas 6,4% das transmissões ocorreram a partir de assintomáticos, mas este pequeno número pode ser explicado por vieses: trata-se de um estudo retrospectivo, onde todos os eventos de transmissão são hipotéticos, não havendo também confirmação laboratorial dos casos primários. Falamos de um estudo observacional, bastante enviesado, com pouca validade interna, na linha dos referidos anteriormente.

    Este estudo utiliza um modelo informático “agent-based” criado pelos autores e inspirado no Covasim, que simula a transmissão de COVID-19 – o chamado SEIR (Susceptible, Exposed, Infectious, Recovered). Como referido anteriormente, os modelos informáticos são suscetíveis de grandes erros, porque dependem inteiramente de hipóteses especulativas. Mencionado no próprio site do Covasim: “Os modelos são tão bons quanto os valores dos parâmetros que neles são inseridos.”

    Outra grande limitação é o facto de se tratar de um estudo retrospetivo, que depende muito da memória de cada participante, para definir quais foram os seus contactos sociais (viés de memória).

    No rastreio em massa foram realizados 566.320 testes RT-PCR dos quais resultaram 1.099 positivos (prevalência de 0,19%). Com uma especificidade de 97% anunciada pelo INSA, perfaz uma TFP de 94.3%, o que por si só, inviabiliza todo o estudo (ainda que a especificidade fosse quase 100%, com este valor de prevalência, a TFP seria altíssima). Portanto, outra limitação inultrapassável. Se o leitor estiver interessado em aprofundar as contas (Teorema de Bayes) pode consultar os seguintes artigos: aqui e aqui.

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    Além disso, a amostra foi recolhida através de ação voluntária o que gera um viés de seleção enorme.      

    Apesar de tudo, os resultados (completamente adulterados pelos lapsos referidos), indicam uma Taxa de Ataque Secundário (frequência de novos casos de uma doença entre contactos com os casos primários conhecidos) menor para os assintomáticos.

    Em síntese, trata-se de um estudo que apresenta problemas metodológicos, que o impedem de medir o que pretendia (validade interna), e como tal, não serve para o efeito.

    Um mal-entendido comum por parte de quem utiliza este estudo como evidência da transmissão de assintomáticos é afirmar 100% de especificidade e sensibilidade do teste realizado. Os autores realizaram uma estratégia de amostras combinadas (Pooled Samples) contra amostras individuais. Os 100% de especificidade e sensibilidade são por comparação ao PCR de amostras individuais. O que isso significa é que não se contabilizaram erros na mistura e reanálise da amostragem combinada. Isso não significa que o teste em si tenha 100% de sensibilidade e especificidade, porque o próprio PCR não o tem. A única forma de aferir mais exatamente seria compará-lo com o Gold Standard (a cultura viral, que ainda assim, não chega a uma perfeição, que não existe).

    Este estudo não apresenta também ele, qualquer evidência de que haja transmissão por assintomáticos (ou pré-sintomáticos). Através da distribuição de ciclos de amplificação, o estudo conjeturou que a distribuição de cargas virais é semelhante entre sintomáticos e assintomáticos. A partir daí, hipotetizou-se que os assintomáticos poderiam transmitir tanto como os sintomáticos. Mas o número de ciclos de amplificação é um surrogate marker (marcador substituto) da carga viral, que por sua vez é surrogate marker da possibilidade de transmissão, ou seja, suposições em cima de suposições.

    Qual será o significado de sintomáticos e assintomáticos apresentarem a mesma carga viral? Que o vírus não é causa suficiente para provocar doença. Tudo dependerá do sujeito e do seu sistema imunitário, algo diverso do propagandeado pela narrativa dominante, que desvaloriza o reforço do sistema imunitário por oposição às medidas farmacológicas e não-farmacológicas, na sua maioria, desajustadas.

    Acumula-se robusta evidência científica (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), de que as crianças não são agentes de transmissão, o que suporta a ideia de que, o sistema imunitário desempenha um papel chave para a ausência de sintomas e consequentemente, de transmissão.

    6 – Estudos que demonstram que a transmissão por assintomáticos é irrelevante

    O estudo refere que a proporção de casos assintomáticos foi 17%, afirmação sublinhada por alguns. No entanto, é uma afirmação irrelevante que pode induzir em erro (proporção de assintomáticos não é o mesmo que transmissão por assintomáticos).

    O imprescindível do estudo é o seguinte: “as taxas de transmissão assintomática variaram de zero a 2.2%”. A pequena variância acima de zero poderá ser explicada pelos vieses típicos neste tipo de estudos e já enumerados acima, mas o intervalo de confiança começa no zero, pelo que não é estatisticamente significativa para se provar existência de transmissão assintomática.

    Este estudo não observou qualquer transmissão assintomática, no entanto, são válidas algumas limitações ao estudo, elencadas na referida carta ao editor.

    Este estudo observou uma menor probabilidade de transmissão de casos assintomáticos: 0,3% (correspondente a uma pessoa em 305 contactos sociais), um valor com um intervalo de confiança de 0 a 1% (que não encontra prova da existência de transmissão assintomática estatisticamente significativa), e cuja variância acima de 0% é facilmente justificável através dos vieses já referidos.

    Uma das conclusões do estudo, é que a transmissão por casos assintomáticos em casa é pequena, com uma proporção de 0,7%, com um intervalo de confiança a começar novamente nos 0%. É interessante notar que, segundo a literatura científica, a maioria dos contágios se dá entre residentes da mesma casa (aqui, aqui e aqui). Concluir que a transmissão por assintomáticos é nula ou quase nula, num contexto onde é praticamente inviável o distanciamento social e o efeito pretendido do confinamento, é muito significativo para a (in)justificação das deletérias medidas aplicadas.

    Esta revisão da literatura foi desenhada sobretudo para descobrir a proporção de assintomáticos na população de positivos. Ao nível da transmissão por assintomáticos, só foram apurados cinco estudos. Um deles (Lei Luo et al. (2020)) já foi comentado. Os quatro restantes (Cheng et al. (2020), Parket al. (2020), Zanget al. (2020) e Chawet al (2020)) serão comentados mais abaixo. Todos apresentam valores de ataque secundário nulos ou residuais.

    Um estudo publicado na Nature, apresenta uma amostra enorme (N = 10 milhões) e a confirmação laboratorial dos infectados. Nesse estudo, a evidência apontou para uma transmissão assintomática residual ou mesmo nula, as mesmas conclusões que chegaram outras revisões sistemáticas, como a referida anteriormente (Madewell et al. (2020)).

    Alguns críticos justificam estes resultados, ao afirmar que “houve eliminação efetiva do vírus devido a medidas não farmacológicas muito rigorosas”, sem oferecer qualquer prova para o que afirmam.

    Mencionam ainda que “neste caso de baixa prevalência, deveriam aparecer milhões de falsos positivos, que inevitavelmente existem quando se faz um teste PCR”. No entanto, esta crítica é demonstrativa de falta de conhecimentos estatísticos.

    As observações não têm de seguir a estatística, a estatística é um sumário das observações.

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    A especificidade de um teste calcula-se comparando-se com um Gold Standard, não decorrentemente de um rastreio. A prevalência baixíssima faz com que os positivos, qualquer que seja o seu valor absoluto, sejam todos (ou quase todos) falsos.

    O que influencia o valor absoluto é a aleatoriedade dos erros laboratoriais e de recolha, que como tal, podem ter expressão muito elevada em certas condições e muito reduzida noutras (e.g. pressão na produção massificada de testes). A China, com a sua capacidade de produção, não aparenta sofrer deste problema.

    O estudo, ao seguir as recomendações da National Health Commission of the People’s Republic of China, introduziu maior rigor na testagem: resultados positivos só são aceites abaixo de 37 ciclos de amplificação, todas as amostras separadas (e as mistas, quando positivas, são re-testadas em separado) e houve confirmação de cultura viral para os assintomáticos.

    Talvez o maior rigor na testagem (e não as medidas) explique a pouca expressão da pandemia na China.

    O facto de 100% dos casos serem falsos positivos é mais um reforço de que os assintomáticos não importam para a transmissão.

    A maioria dos estudos que investigaram a putativa transmissibilidade de assintomáticos, descobriram ataques secundários nulos ou residuais (estes podem ser explicados pelos vieses já enunciados). Alguns exemplos:

    No que diz respeito aos pré-sintomáticos, também há vários estudos com ataques secundários nulos ou residuais. Alguns exemplos:

    A ligeira superioridade nos números de ataques secundários dos pré-sintomáticos relativamente aos assintomáticos, poderá ser explicada pela dificuldade em comunicar o início exato dos sintomas, em entrevistas epidemiológicas concedidas posteriormente.

    7 – Alguns exemplos dos crescentes prejuízos (dificilmente quantificáveis) decorrentes das medidas aplicadas:

    Um estudo da Universidade Nova de Lisboa refere a enorme redução de cuidados de saúde prestados, e um aumento da mortalidade que seria evitável.

    O site da Transparência do Sistema Nacional de Saúde (SNS), informa-nos que em 2020 ficaram cerca de 11 milhões e meio de consultas por realizar em centros de saúde, 26 milhões de atos de diagnóstico, 126 mil cirurgias e 400 mil rastreios oncológicos. O mesmo site dá conta de uma grande diminuição da Taxa de Ocupação Hospitalar relativamente a 2019.

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    Um estudo descobriu um aumento de 7,8% da incidência de stress cardiomiopático em 2020, comparado com as incidências pré-pandémicas que variaram entre 1,5% e 1,8%. Ou seja, pessoas a morrer, literalmente de medo, resultante do alarmismo gerado.

    No Reino Unido registou-se um aumento de suicídios e tentativas de suicídio infantis, sobretudo em crianças com necessidades educativas especiais (tal como o Autismo), que se crê ser devido às alterações nas rotinas, produzidas como medidas preventivas.

    Devido às medidas adotadas, cerca de 5 mil pessoas que sofreram ataques cardíacos, em Inglaterra, não puderam dispor de auxílio médico, que seria indispensável para que pudessem ter hipótese de sobreviver.

    Em Abril de 2020, foram registados em Inglaterra e País de Gales, 10 mil casos de demência a mais do que o habitualmente, em igual período dos anos anteriores. Ainda há a lamentar 83% mais mortes por demência do que é habitual. Julga-se que estes números se devam ao isolamento social e restantes medidas aplicadas. Os números foram recolhidos pelo Gabinete Nacional de Estatísticas do Reino Unido.

    Já em Julho de 2020, os especialistas sugeriam que o confinamento tinha matado cerca de 21 mil pessoas em Inglaterra. A análise foi feita pelas Universidades de Sheffield e de Loughborough e pelos economistas do Economic Insight. Acrescentam ainda que as medidas de distanciamento social poderão dar continuidade a essa mortalidade.

    Vários especialistas têm demonstrado a sua preocupação com o enfraquecimento do sistema imunitário das crianças devido ao distanciamento social, conforme advogado pela hipótese higiénica, naquele que é apenas um pequeno exemplo dos problemas ao nível da saúde das populações resultantes das medidas aplicadas.

    Nem os animais escaparam à histeria alarmista. Na Dinamarca abateram-se 17 milhões de Martas, na Holanda e em Espanha, 1 milhão.

    Em Portugal, em Outubro de 2020, era noticiado o falecimento de 7 mil pessoas em excesso não causadas pela COVID-19. Atualmente, o número é seguramente, muito superior.

    Poderia continuar-se indefinidamente conquanto os exemplos são intermináveis, mas seria um exercício que fugiria ao escopo do atual artigo.

    A causa efetiva da devastação é a insensatez na aplicação das medidas.

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    O recrudescimento da inflação observada nos dias atuais, foi também, em parte, potenciada pelas medidas. Colocou-se a impressora dos bancos centrais a trabalhar a todo o vapor, ao mesmo tempo que se congelou a economia.

    Como tal, tem sido notória a tentativa de “lavar a cara”, associando todos os prejuízos humanos e não-humanos à pandemia, inclusive, recorrendo a um sobredimensionamento de diagnósticos e certificados de óbito por COVID-19, que nem assim, permite explicar o excesso de mortes registado.

    O Dr. António Ferreira, Médico, Professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Presidente do Conselho de Administração do Hospital de São João, num artigo onde analisa a frieza dos números, atribui a pressão sobre o Sistema Nacional de Saúde à impreparação, falta de planeamento e desorganização. Mas estes são dados que se tenta evitar, com a justificação de que, debate-los é colocar vidas em risco. Mas como se verificou pelas linhas acima, omiti-los tem tido piores repercussões.

    8 – Conclusão

    Sintomas como a tosse, espirros e corrimento nasal (isolado ou associado a espirros) parecem ser determinantes para a disseminação dos vírus respiratórios. O sistema imunitário reduz a carga viral abaixo de um limiar onde não existem sintomas; e, se não há carga viral suficiente, não pode haver contágio para terceiros.

    A única forma de obter evidências científicas conclusivas acerca da transmissão de assintomáticos (ou pré-sintomáticos), seria realizar um Random Control Trial (estudo randomizado controlado) bem concebido, impossível devido a constrangimentos éticos, pelo que se recorre a estudos observacionais e de modelagem muito limitados, sendo que ainda assim, os primeiros demonstram na sua maioria, que os assintomáticos pouca ou nenhuma expressão têm na transmissão.

    A posição da Epidemiologia sensivelmente, ao longo dos últimos cem anos foi a de que os assintomáticos não são transmissores de doença respiratória. As evidências científicas concluíram o mesmo relativamente ao SARS-CoV. Para contrariar o que está estabelecido, seria necessário que fossem apresentadas sólidas evidências científicas. Mas, por mais pressão que tenha sido exercida nesse sentido, não há evidências científicas para contrariar um século de evidências epidemiológicas.

    A forma como se alterou um paradigma científico com décadas de existência, contrariando a evidência científica, tem tanto de surpreendente como de preocupante e constitui um sério alerta para a fragilidade do atual edifício científico, que tem vindo a ficar gradualmente mais dependente de interesses económicos.

    Visualization of the Coronavirus

    Em Epidemiologia é essencial escrutinar qualquer tendência emergente em Saúde Pública: será real ou estará a ser causada por algum viés? Obviamente, não foi o que sucedeu com a COVID-19, onde a pressão para a conformidade com a narrativa dominante impediu qualquer tipo de contraditório.

    O ambiente gerado em torno desta situação é hostil ao desenvolvimento da Ciência (sobretudo Epidemiologia) que se deseja neutra e imparcial, condição sine qua non para minimizar os potenciais vieses. Pelo contrário, as condições criadas foram propícias à sua proliferação.

    O debate foi silenciado com apelos à responsabilidade, como se debater fosse gerar comportamentos irresponsáveis, denotando somente a fragilidade de uma posição que se desejou manter inquestionada.

    A narrativa dominante nunca questionou as consequências das medidas não-farmacológicas, e estas têm sido amplamente ocultadas ou justificadas com outras causas. No entanto, têm e continuam a ser devastadoras.

    Este artigo é um apelo ao debate, como condição essencial para uma maior consciencialização nas escolhas e responsabilidades individuais. Os debates permitem que cresçamos coletivamente, facilitando a difusão de uma informação mais autêntica e enriquecedora.

    Psicólogo com formação em Epidemiologia


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Qatar à vista, apesar de Fernando Santos

    Qatar à vista, apesar de Fernando Santos


    Diz quem se defende da alcunha de sortudo que tê-la, à sorte entenda-se, dá muito trabalho. No caso de Fernando Santos, nos anos que leva à frente da Selecção Nacional, a fortuna dos deuses se convertida em calcário, granito e argamassa daria para construir mais três pirâmides de Gizé.

    Não sendo eu um apreciador do estilo, percebo o óbvio: os únicos troféus internacionais de Portugal chegaram pela mão do nosso Fernando, pelo que teremos de aguentar a estucha até que ele queira, ou, em alternativa, que o descalabro de derrotas seja tal que nos faça esquecer a vitória no Euro 2016 e na Liga das Nações de 2019.

    Uma espécie de Mancini, versão Amadora.

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    O problema, contudo, é que o Mancini ganhou o Euro 2020 com um grupo de bons rapazes, e não é propriamente um escândalo não participar no Mundial.

    Já Fernando Santos tem ao seu dispor, há anos, a melhor geração de futebolistas nacionais, presentes nas equipas mais fortes do Mundo, e repetidamente vencedores das competições de clubes mais importantes.

    Mesmo assim, insiste num modelo de jogo ultra-defensivo, deixando de fora, consecutivamente, boa parte das opções de ataque.

    Quando Fernando Santos foi convidado para seleccionador nacional, de certa forma todos percebemos o que ali estava a ser feito. Era um chef que entrava na cozinha de um restaurante com três estrelas Michelin apenas para fazer esparguete à carbonara.

    Pergunto: quem sai de casa para comer esparguete com queijo e fiambre, tendo dourada grelhada ou bacalhau escalado no menu?

    Foi assim no Benfica, Sporting, Porto, Selecção grega, Panathinaikos e AEK. Quatro defesas, quatro médios em losango. Defender, defender, defender. De empate em empate até à vitória final.

    white and blue soccer ball on green grass field

    Nada contra se a equipa treinada for a Albânia, a Bulgária ou Islândia. Agora, um país que consegue ter Diogo Jota, Cristiano Ronaldo, João Félix, Bruno Fernandes, Rafa, Renato Sanches, Bernardo Silva, Gonçalo Guedes, Rafael Leão, entre outros, com as suas cores, vai jogar apenas com dois ou três destes em campo?

    E colocar oito para “segurar” e “passar para o lado”? Ou vai seguir a lógica de Johan Cruyff quando se defendia dos críticos que o acusavam de sofrer muitos golos? No fundo, “o que importa levar 3 se marcamos 5?”

    Não é preciso ser engenheiro, como o Fernando, para fazer esta conta. O futebol não é física quântica, e é pela sua simplicidade que apaixona milhões.

    Se te dão uma equipa com Pepes e Williams, jogas como o Portugal do Fernando.

    Se te dão Jotas, Bernardos e Ronaldos, jogas como o Bayern de Munique ou o Liverpool. Em modo trituradora.

    Em princípio ganha-se mais do que se perde porque, e esta vai de borla, a maioria dos adversários são piores.

    Chegados ao ano da graça de 2022, depois de falhar um apuramento direto num grupo onde a única coisa parecida com concorrência vinha da Sérvia, que se apresentava com pouco mais do que três ou quatro jogadores de primeiro plano – e já estou a contar com o ponta de lança que é figura na segunda divisão inglesa –, Fernando Santos fez o que sabe fazer melhor: rezar.

    Neste plano julgo que estaremos mesmo perante um escolhido dos deuses. Não sei bem quais, mas alguém olha para o nosso Fernando num Olimpo qualquer.

    Com a Itália no caminho, Portugal viu a Macedónia fazer o trabalho de sapa na maior vitória da sua História, mesmo ao cair do pano.

    Poucos minutos antes, a Turquia, em pleno Dragão, falhou o penalti que justamente lhes daria o empate.

    Ninguém me convence que, se Fernando Santos desembarcasse em Kiev, um míssil em rota para a Praça Maiden acabasse afinal desviado para o Kremlin, rebentando na sala da mesa infinita onde se senta Putin, dando como concluída a guerra.

    Tantos especialistas na CNN e nenhum se lembrou desta.

    Provavelmente, esta terça-feira, Portugal chegará mesmo a um Mundial que nem deveria existir.

    Tudo o que envolveu a atribuição da competição ao Qatar e o trabalho escravo na construção dos estádios, justifica certamente outro texto. Mas para já, no que ao futebol diz respeito, parece que Ronaldo se prepara para ter a merecida despedida com a camisola da Selecção Nacional.

    E isto apesar de Fernando Santos. Este rapaz não pára mesmo de bater recordes.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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