Categoria: Opinião

  • Acordem para o Tribunal ‘negacionista’ Constitucional

    Acordem para o Tribunal ‘negacionista’ Constitucional


    Não sei se já leram um acórdão de um tribunal: é coisa mais chata do que ouvir um discurso do 10 de Junho sem os desmaios do Cavaco – que, parecendo que não, sempre dão outra animação à coisa.

    Faço, por isso, tudo o que posso para não ver nada decidido por um tribunal, porque, em geral, os juízes dão duas dezenas de voltas à semântica para dizerem que sim ou que não. Uma pessoa precisa de ler a mesma estucha cinco vezes até perceber se lhe deram razão ou não.

    Dito isto, enfim, fui ler o douto Acórdão nº 464/2022 do Tribunal Constitucional.

    E por que razão me interessou em particular? Porque alguém me disse que o dito declarava inconstitucionais os confinamentos fora dos Estados de Emergência.

    Como fiquei na dúvida, depois de o ler só quatro vezes, fui então ver a imprensa nacional sobre o tema. E vi que já fazia notícia de capa, nomeadamente no Diário de Notícias, a inconstitucionalidade da coisa. Assim sendo, partindo do princípio que estamos todos no mesmo barco da compreensão, resta a pergunta que conta: e agora?

    Bem sei que já ninguém quer saber da covid-19. E ainda bem, acrescento. O Froes ainda aparece de quando em vez a falar na 38ª vaga e a tentar vender umas vacinas e uns antivirais, mas está com pouca saída. A malta prefere o Zelensky, os aeroportos e o rapaz que carregou a ovelha em Leiria. Mesmo assim eu gostava de trazer o assunto à mesa, mesmo por apenas uns minutos. Depois esquecemos esta conversa e vamos refrescar na praia. Vocês. Eu continuo no inverno açoriano.

    Primeiro, convém recordar que quem se revoltou contra os confinamentos de gente saudável foi, carinhosamente, apelidada de negacionista.

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    Isto porque, em teoria, devíamos abdicar da liberdade individual a troco de nos protegermos uns aos outros. Lembram-se?

    Quem não se fechava em casa de livre vontade estava a infectar o vizinho. Isto mesmo se o vizinho fosse todos os dias para o trabalho no comboio a abarrotar da linha de Sintra. Aquilo que não podia acontecer era cruzarmo-nos num restaurante ou até, quiçá, sentarmo-nos no mesmo banco de jardim. Ou até fazer tudo isto sozinho.

    De igual forma, todos achavam normal mandar uma turma inteira para casa, porque um aluno estava infectado. Quem não concordasse era, logicamente, um assassino. Isto apesar da taxa de mortalidade nas crianças ter andado – deixa-me cá ver os papéis – nos 0%.

    As deslocações de e para Portugal passaram a ser um inferno. Quarentena obrigatória e coisas do género. Quem não obedecesse à restrição dos movimentos injustificados era multado. E tachado de negacionista, também.

    Eis agora, portanto, que aparece o Tribunal Constitucional, essa entidade negacionista também, presumo, a declarar a inconstitucionalidade de tais imposições fora do Estado de Emergência. De modo que, voltando à questão, e agora?

    Quem é que se responsabiliza pelo tempo de aulas perdido?

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    A quem é que se vão pedir as indeminizações pelos dias em confinamento sem possibilidade de trabalhar ou de ter um salário?

    Com quem é que falamos sobre o tempo que perdemos com ente-queridos ou até as despedidas que não fizemos e que já não poderemos fazer?

    O tempo que passámos enfiados em casa, saudáveis – que agora se traduziram numa factura gigante e, para alguns, no fim de um emprego –, cairão sobre as costas de quem?

    As exigências para voar – que, na prática, impediam a vinda a Portugal dos emigrantes por períodos curtos – ficam em que gaveta de reclamações?

    No fundo, quem é que vai indemnizar os “negacionistas” que repetiram, até à exaustão, que o confinamento, além de ilegal, não resolvia absolutamente nada? E não resolvia nada, porque a maior parte da população – o tal sector produtivo e dos serviços essenciais – continuava activo e a deslocar-se nos transportes públicos, e a cruzar-se uns com os outros e a regressar a casa para o seio familiar.

    Imagino que ninguém. Ninguém. Chegámos ao ponto de ter de concluir que, durante um período da nossa História, andou-se a restringir a liberdade de movimentos à população só porque sim. E insultámos quem não concordou. 

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    Quem achava que o confinamento era uma obrigação moral e que, sem isso, não “ficaríamos todos bem”, deve questionar-se agora como é que as vagas de covid-19 não terminaram – e, pior, como é que o Tribunal Constitucional reverteu os “doutos conselhos” dos Froes, dos Antunes e dos Coronas desta vida.

    Agora, enfim, fica mesmo assim: fechamos este capítulo e quem gritava “assassinos” aos contestatários dos confinamentos, reza por uns rodapés discretos deste acórdão. Tudo muito discreto, nada que levante demasiadas ondas, nada que os faça compreender onde estava o lado certo da História.

    Partamos, sim, calma e ordeiramente para o abuso seguinte. Esqueçamos já que a histeria raramente é boa conselheira da Ciência… e da Política.     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Conselho Superior da Magistratura após dois revezes na Justiça: a ânsia de um Golias em derrotar a Democracia

    O Conselho Superior da Magistratura após dois revezes na Justiça: a ânsia de um Golias em derrotar a Democracia

    Previsível: o Conselho Superior da Magistratura (CSM) recorreu da sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que determinou a obrigatoriedade em conceder ao PÁGINA UM o acesso aos documentos do inquérito à distribuição da Operação Marquês em 2014.

    O recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, que pode ser aqui lido na íntegra, foi apresentado no passado 4 de Julho, e o PÁGINA UM tem agora 15 dias para contra-argumentar.

    Mais trabalho e despesa para um David – cuja funda se funda somente no apoio dos seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO, e do trabalho abnegado do advogado Rui Amores – contra verdadeiros Golias, ainda mais contra um gigante como o Gabinete do Vice-Presidente do CSM, que tem em mãos este processo, contando com quatro juízas como adjuntas e mais três assessores a tempo inteiro e demais apoios e mordomias, tudo bem pago com dinheiros do Estado.

    Eu até compreendo a atitude dos membros do CSM: do alto da sua Torre de Marfim, alheados das preocupações terrenas – como sejam a democraticidade de uma sociedade e a transparência da Administração Pública –, eles rangem agora dentes e brandem argumentos para não perderem uma causa contra um simples cidadão, contra um singelo jornalista. Custou-lhes perder na primeira instância, eu sei. Até porque não saíram nada bem na fotografia da sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que, para bom entendedor, lhes chamou obscurantistas e mentirosos.

    Conselho Superior da Magistratura continua a lutar para não ceder documentos administrativos, depois de um parecer da CADA e uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Lutam eles agora como ciclopes, apenas a vitória é o seu objectivo, vençam como vencerem, sejam quais forem as consequências, até porque, como sabemos, a Justiça é dos Homens, e não da Verdade; e eles, julgando-se serem o corpo da Justiça, têm a justa esperança, pelo poder que os assiste, em moldar a dita justiça aos seus intentos. Custe o que custar, mesmo que nos custe a Democracia.

    Em Novembro do ano passado, o PÁGINA UM – ou eu, como seu director – quis conhecer o inquérito arquivado, sem qualquer acusação, à distribuição do processo da Operação Marquês. Nada de mais natural e normal: são documentos administrativos, sem qualquer margem para dúvida, e o seu interesse público parece-me inquestionável, tanto mais que, oito anos depois, continuamos sem conhecer detalhes sobre aquilo que se passou para a Operação Marquês ter ido parar às mãos do juiz Carlos Alexandre.

    Apesar disso, e apesar do próprio José Sócrates ter andado em similar “guerra” para a obtenção desses documentos, o CSM recusou o acesso ao PÁGINA UM, com argumentos estapafúrdios. A primeira vez em Dezembro do ano passado. Recusou uma segunda vez após a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), presidida por um juiz conselheiro (Alberto Oliveira), ter dado um parecer favorável aos direitos do PÁGINA UM em finais de Janeiro passado. E quer agora recusar uma terceira vez, por esse motivo recorreu da sentença histórica do Tribunal Administrativo de Lisboa conhecida no final do mês passado.

    O CSM e os seus membros têm todo o direito de esbanjar recursos financeiros, porque o Estado lhes dá essa possibilidade, e têm legitimidade para recorrerem sucessivamente aos tribunais superiores, mesmo quando um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e uma leitura atenta da Constituição da República Portuguesa e da Lei da Imprensa lhes recomenda outra via: a simples entrega de um inquérito para um escrutínio jornalístico à sua acção.

    Mas essa via – a da transparência –, eles parecem não querer percorrer. É um “calvário” que os horroriza.

    Primeira página do recurso do Conselho Superior da Magistratura ao Tribunal Administrativo Central Sul.

    Certamente, pensarão os membros do CSM, que podem encontrar num tribunal superior alguém mais simpático com as suas teses e argumentos, ao contrário do que sucedeu com a CADA, com o Tribunal Administrativo de Lisboa e com o poder legislativo que aprovou, hélas, a Constituição da República Portuguesa e a Lei da Imprensa.

    A CSM tem, quiçá, a esperança de vencer a causa.

    E isto, saliente-se, mesmo quando o próprio juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, exigindo que o CSM lhe enviasse os documentos em causa, confirmou, com os seus próprios olhos, que não se estava perante dados nominativos.

    A Justiça em Portugal transformou-se numa lotaria. E, por isso mesmo, o CSM estará esperançoso de vencer ainda a causa – e dessa forma continuar a recusar o acesso aos documentos administrativos ao PÁGINA UM.

    E, por isso, recorreu, o que desde já tem uma função mui pedagógica: recomenda já que todas as outras entidades que perderem causas contra o PÁGINA UM também recorram, donde resulta isto que desejam também vencer pelo cansaço, pelo dispêndio de energia, até porque o dinheiro e meios para dirimir questiúnculas em tribunais superiores são, para essas entidades, inesgotáveis, porquanto provêm dos impostos dos portugueses.

    Sucede, porém, que se o CSM vencer a causa, não é apenas a mim que me derrota.

    A vencer, o CSM derrotará toda a Imprensa, toda a Sociedade, porque vencerão teses anti-democráticas a favor do obscurantismo.

    Os argumentos do recurso do CSM junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa são aterradores – e diria que constituem um libelo contra a Democracia, porque mostram uma magistral mas perigosa apologia ao obscurantismo. E é esse o motivo pelo qual, sendo uma parte interessada no processo, mas sabendo ser eu um pequeno David contra um colossal Golias, me vejo na obrigação moral e ética de denunciar um ataque à Democracia.

    É certo que podem julgar ser demasiada presunção assumir-me como defensor da Democracia perante uns supostos malvados. Concedo: não sou então um defensor da Democracia, nem o CSM é um antro de malvados.

    Mas não sendo o CSM um antro de malvados anti-democráticos, vejamos então os seus argumentos para – contrariando o que defenderam já duas entidades: CADA e Tribunal Administrativo de Lisboa – evitar que um jornalista de uma Democracia, com direitos consagrados na Constituição, tenha direito de acesso a documentos administrativos.

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    Comecemos pela página 5 do recurso para o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa. Aí, o CSM defende que os documentos em causa integram “o conceito de documentos nominativos, [somente] por conter múltiplos dados pessoais designadamente os nomes de juízes de direito e de funcionários judiciais (alguns dos quais não são, tão-pouco, visados nos processos de averiguações e de inquérito em causa), bem como os números dos processos (através dos quais é possível identificar as respetivas partes).”

    Atenção: fala-se apenas em nomes e funções de funcionários públicos, bem como das suas acções como funcionários públicos. Nada mais. Não está em causa saber a morada nem detalhes da vida pessoal nem íntima.

    Mas qual a razão desta postura? Ora, enviesando o que está previsto no Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), o CSM quer que se considere que todo e qualquer documento em sua posse seja visto como contendo dados nominativos, bastando até simplesmente a assinatura de alguém. E nem precisava de provar. Alargando-se isto a toda a Administração Pública, passariam a ser documentos com dados nominativos todos aqueles que tivessem pelo menos o nome de um ministro, de um secretário de Estado, de um presidente de instituto, de um director-geral, de um presidente da Câmara, de um presidente de autarquia, de um técnico, ou de toda e qualquer pessoa ou entidade aí referidos.

    E porquê? Porque assim pode-se aplicar um regime mais restritivo de acesso, pois apenas as pessoas titulares “de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante” podem aceder a documentos com dados nominativos.

    Ora, mas, por norma, e pela Constituição, os jornalistas são legítimos detentores desses direitos. E podem assim aceder a esses documentos, com excepção de informação médica, documentos classificados (em condições muito concretas) ou integrados em processos em curso. Uma chatice! Isso é demasiado, pensarão os membros do CSM, que andarão certamente esquecidos de que com mais um par de anos e estamos com meio século em Democracia.

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    Porém, o CSM considera que esse direito dos jornalistas não é legítimo por lei; tem de ser legitimado caso-a-caso. E por quem e quando? Na página 7 do seu recurso, o CSM responde: compete “à entidade pública [requerida] apurar a necessidade de vedar ou permitir o acesso, segundo critérios de proporcionalidade”.

    Acrescenta ainda que “deverá ser analisada a possível afetação do direito à privacidade do titular dos dados, devendo a informação a fornecer cingir-se ao estritamente necessário no âmbito da finalidade invocada, podendo ser objeto de comunicação parcial ou expurgando-se os dados pessoais que não relevem para essa finalidade.”

    Ou seja, para o CSM deve ser a entidade requerida, geralmente pouco atreita a dar documentos a jornalistas, que deve analisar se deve ou não dar o acesso que não quer dar. Fantástico! Ou então que o requerente sistematicamente recorra aos tribunais, com a rapidez que se lhes reconhece.

    Mas ainda mais temerário, por causar tremores nos alicerces da Democracia, é a tese do CSM sobre a necessidade de se exigir aos jornalistas que confessem a finalidade da consulta requerida. Por outras palavras, o CSM quer que se pergunte sempre a um jornalista: “para que raio quer, vossemecê, ver documentos públicos? Vai escrever alguma coisa? É apenas para leituras de desfastio? Quer ter juízo ou ir a juízo?” Tudo esclarecimentos necessários, e obrigatórios, a Bem da Nação, certamente.

    De facto, como se pode admitir (vd. página 13 do recurso) que um jornalista, no Portugal do ano da graça de 2022, pretenda “a consulta, sem critério e sem concretização de qualquer finalidade específica, do acervo de informação contida em decisão de averiguações de natureza disciplinar, a qual (…) contém apreciações, juízos e valorações acerca de pessoas concretas, as quais assumem a natureza de dados pessoais à luz do RGPD, que não são de acesso público e que se encontram arquivados no CSM”? Era o que faltava! Agora vivemos em Democracia e os jornalistas fazem o que querem, é?

    Qual cereja em cima de bolorento bolo – que julgávamos colocado na lixeira em Abril de 1974 –, ainda consegue o recurso do CSM, na página 21, criticar a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa ao dizer que “mal andou, pois, a Sentença recorrida, ao não efetuar um juízo de proporcionalidade suscetível de conciliar o princípio da transparência e da administração aberta, com o princípio da proteção de dados.”

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    Portanto, para o CSM, proteger simples pessoas de serem identificadas pelo nome – imaginemos, impossibilitando assim a identificação de pessoas que causam dano à res publica – é mais relevante do que a existência de uma administração aberta, daquela que permite aos cidadãos e sobretudo aos jornalistas escrutinarem a acção de políticos e de magistrados.

    Se as teses, se esta argumentação do CSM – na sua ânsia de não perder a causa e a face – vingar num qualquer tribunal superior, saibam que não serei o único derrotado.

    Saibam sobretudo que caminhamos para um insanável precipício de obscuridade, em que os Senhores da Torre de Marfim nem sequer aceitarão, certo dia, que lhe conheçamos nomes e funções. Viveremos sob as suas ordens, sob os seus caprichos.

    Por isso, no dia em que os cidadãos de uma Democracia deixarem de poder sindicar a Administração, e se os jornalistas deixarem de ter o poder de aceder à informação pública, façam um requiem pela Democracia.

    Não se duvide que se joga aqui mais do que um simples processo de acesso a documentos administrativos. Joga-se à Democracia na barra dos tribunais, infelizmente apenas por entre papéis que andam por aqui e por ali, porque se trata de um Tribunal Administrativo.

    Na verdade, nem sequer podemos olhar, olhos nos olhos, os senhores e as senhoras do CSM, e dizer-lhes: “Tenham vergonha!, não foi para estes vossos lastimáveis procedimentos que se fez o 25 de Abril”.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso sete processos administrativos e mais dois em preparação.

  • Da fé nos milhões: a promoção do Paxlovid na TSF e as ilegalidades da Sociedade Portuguesa de Pneumologia

    Da fé nos milhões: a promoção do Paxlovid na TSF e as ilegalidades da Sociedade Portuguesa de Pneumologia


    Li hoje uma notícia da TSF – inicialmente intitulada: “É algo que nos preocupa.” Fármaco Paxlovid só foi prescrito a um doente com Covid-19 em Portugal – em que surgia o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) a promover um medicamento específico de uma farmacêutica (Pfizer), e perguntei-me por onde anda a vergonha.

    E li ainda o lead, onde se dizia que a SPP “acredita que a mortalidade associada à doença podia ser muito menor se o país apostasse mais neste medicamento [Paxlovid]”, e questionei-me por onde anda a Ciência. Acredita? Isto agora já é uma questão de Fé. Ou antes de fé no dinheiro? E o Infarmed, perante esta descarada publicidade, onde anda? E a Ordem dos Médicos, perante esta prostituição, onde anda? E a Imprensa? Ainda ouve esta gente, ainda lhe dá créditos?

    Paxlovid: mais do que usar o antiviral, seria útil investigar os meandros da sua aquisição pelo Estado português.

    O título da notícia da TSF foi depois alterada – para um menos comprometedor “Combate à Covid. Pneumologistas querem maior aposta em comprimido antiviral” –, mas a mensagem está feita: a SPP e muitos pneumologistas estão ao serviço das farmacêuticas, mesmo, ou sobretudo, com o “fim da festa”, em que há muito para esclarecer sobre os rios de dinheiros que andaram de mão em mão, e sobre os atropelos contra a Saúde Pública e contra a Democracia que se cometeram.

    Nunca neguei a perigosidade da pandemia, tanto assim que esta doença foi a primeira, tirando talvez a tosse convulsa poucos meses após o meu nascimento, que colocou em risco (bem real) a minha própria vida. Mas sempre soube distinguir o caso pessoal (e as particularidades dos riscos distintos da doença em função das comorbilidades, da idade e do acaso) e a forma como governos, farmacêuticas e muitos médicos empolaram uma pandemia em prol do negócio e do poder.

    Durante a pandemia, agudizou-se um problema ético entre muitos médicos que se transformaram, fomentando o medo, em porta-estandartes das farmacêuticas. Os milhões de euros – sim, são milhões de euros – que passaram das mãos das farmacêuticas para os bolsos de médicos que falaram mais a pensar nas suas finanças do que na saúde dos seus doentes, deveriam merecer investigação judicial.

    Mais ainda porque o Portal da Transparência do Infarmed é uma anedota, uma vez que ninguém controla nem valida essa base de dados de registo dos apoios e patrocínios. Pouco ou nada se fiscaliza. Aprofundarei o tema muito em breve. E isto assumindo que não existem pagamentos por debaixo de uma TAC.

    Primeiro título da notícia da TSF

    Sobre os novos antivirais, e sobretudo sobre o Paxlovid, já aqui escrevi, e volto a escrever: Filipe Froes é o expoente da promiscuidade médica que apenas se justifica porque a nossa imprensa – que se vendeu também às maravilhas dos eventos pagos pelas farmacêuticas – deixou de ser pilar do Quarto Poder. Arruinou-se, auto-mutilou-se, já nem uma ruína é.

    Na Primavera passada, Froes andou como “delegado de propaganda médica” a vender à imprensa o Paxlovid, da Pfizer, e um outro antiviral, para que, dessa forma, fossem comprados milhões de euros de um fármaco, pelo Estado português, que está longe de provar alguma utilidade. Froes ajudou a justificar a sua aquisição, integrando a equipa de peritos da Direcção-Geral da Saúde que elabora as normas terapêuticas. Aliás, a mesma equipa manteve o remdesivir – um outro antiviral sobre o qual o Infarmed continua a querer esconder dados sobre os efeitos adversos – como terapêutica anti-covid. E Froes continua ser membro da comissão consultiva da Gilead (que bem lhe paga), que vendeu o remdesivir.

    Mas não tem sido ele o único.

    A SPP, com o seu presidente à cabeça – e que está supostamente a ser alvo de um processo (também ainda sem resultados não revelados) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde –, mostra agora um despudorado empenho em vender produtos da Pfizer. Já nem esconde. Quase arrisco sugerir que a Pfizer desinvista no seu departamento de marketing em Portugal. Para que servirão marketeers quando se tem médicos tão bons para essa função, que chegam tão facilmente à imprensa e ao poder?

    Esta sofreguidão em vender o Paxlovid mostra como este último negócio da Pfizer não está a correr nada bem. Apenas nos Estados Unidos, a Administração Biden se rendeu ao medicamento, que é agora dado livremente a quem tenha teste positivo, mesmo se a lista de contra-indicações é imensa, embora o valor monetário despendido seja pornográfico para os fracos desempenhos.

    Título definitivo (depois de alterado) da notícia da TSF

    Mas como nem todos os países podem livremente imprimir dólares, em muitos outros países os médicos têm sido cautelosos, pelo que os novos antivirais contra a covid-19 não estão a merecer a mesma adesão, o que coloca a Pfizer – e seus marketeers – com nervoso miudinho.

    Aliás, em cada novo estudo, surge um novo desapontamento. A Pfizer, que previa uma facturação, com este medicamento, de 20 mil milhões de dólares até ao fim do ano, já anda a fazer contas à vida e a mudar de estratégia. Agora, é vender e vender, vender à fartazana, quilos e paletes, até que já não se consiga mais esconder que aquilo não vale um chavo. Ou pior: que faz mais mal do que bem.

    A estratégia para vender mais Paxlovid passou por arranjar uns “vendilhões do templo” vestidos de bata branca a elogiar o uso de “banha da cobra” a preço de caviar.

    Perante a fraca prescrição pelos médicos do Paxlovid – que é fármaco demasiado caro, de eficácia ainda muito duvidosa, com um vasto conjunto de contra-indicações e somente se aplica na fase inicial (muito curta) da infecção em doentes com sintomas ligeiros –, não surpreende assim ver saltar, como pulgas sedentas de sangue, diversos pneumologistas a perorar sobre a necessidade de se salvarem mais vidas tiradas pela covid-19. E a promover que se use mais Paxlovid. Mais Paxlovid. Mais Paxlovid.

    Eu acho é que se deveria mesmo investigar a razão de estarem a morrer tantos idosos com mais de 85 anos após a toma da terceira e quarta dose da vacina. Ninguém quer saber? É tabu ou heresia colocar sequer a hipótese de estarem associadas a efeitos adversos de tantos boosters contra a covid-19?

    person holding orange and white plastic bottle

    Curioso também, para mim, tem sido ver que, com a saturação mediática de Froes, surge agora um médico do Hospital de São João do Porto, João Carlos Winck, a fazer as maiores “despesas da casa”, cantando loas e ditirambos aos antivirais, sobretudo ao Paxlovid. Nos dois artigos que li, não consta qualquer referência aos seus proveitos vindos da Pfizer quer na sua actividade em Portugal quer na European Respiratory Society. Esta gente nunca revela conflitos de interesse.

    Certo é que nada é por acaso. Ontem, Marques Mendes, no seu espaço na SIC, cita João Carlos Winck e ajuda o marketing da Pfizer. E hoje surgiu António Morais, o presidente da SPP, a prostituir a associação científica que preside desde 2019, em clara violação do regime de incompatibilidades, em acção de descarada e ilegal promoção de um fármaco específico (Paxlovid) num órgão de comunicação social (TSF).

    Ilegal, por três motivos: os médicos não podem fazer promoção pública de um medicamento, uma sociedade médica também não, e uma farmacêutica não pode fazer publicidade a um medicamento com prescrição médica. E até a TSF, que deveria saber que não pode fazer, numa notícia, publicidade específica a um medicamento. Ainda mais nas circunstâncias que envolvem o Paxlovid, um medicamento que teve uma aprovação de rapidez inaudita pelos reguladores.

    Mas, no país da falta de vergonha, tudo fica impune, tudo se esquece. Ou se calhar, não: por exemplo, eu ainda me arrisco a um processo judicial. Desavergonhados para me meterem um processo andam por aí uns quantos.

  • Há quanto tempo não muda de cuecas?

    Há quanto tempo não muda de cuecas?


    A frase “hoje foram cancelados X voos” entrou nas redacções, em força, para substituir a outra, já mais gasta por esta altura: “o número de infectados por covid-19 subiu para Y”.

    Entendo que os canais informativos, especialmente os que precisam de 24 horas diárias de assunto, vão atrás de qualquer gota de sangue. Ainda assim, existem temas que se esgotam rapidamente. Aos habituais directos dos “teatros de operações”, que saem sempre muito bem nesta época do ano, juntou-se a azáfama dos aeroportos e das filas intermináveis.

    Nunca percebi o valor informativo de um directo para observar um regimento de bombeiros em acção, e ainda tenho mais dificuldade em perceber o que ganhamos nós, espectadores, com aquele simulacro informativo, diário, em directo da Portela.

    Interessa a 99,9% da população saber o número de voos cancelados hoje? Por acaso iam voar?  Quão deprimente é ver uma jornalista a chatear passageiros, que desesperam em filas de quatro horas, com perguntas do género: “acha que se vai resolver?”

    Se nem os funcionários do balcão de cada companhia aérea sabem para onde a coisa vai, quanto mais os desgraçados que andam a contar os dias de férias que sobram depois desta empreitada.

    Hoje ouvi uma jornalista, julgo que da CNN, a perguntar a uma passageira se tinha sido informada do estado das coisas. É mais ou menos o mesmo que perguntar a um urso polar se já viu gelo. Há alguém neste planeta, mesmo o monge tibetano mais recolhido, que não saiba de cor e salteado quantos aviões não saíram da Portela? Haverá algum pastor numa aldeia dos Himalaias que não saiba por esta hora que, no hub da TAP, a maior parte dos voos cancelados são, curiosamente, dessa mesma TAP?

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    Normalmente, quando fazem esta contagem de voos e nos dizem quantos são da TAP, esquecem-se de dizer que no Charles de Gaulle a companhia com mais cancelamentos é a Air France, em Barajas a Iberia, em Heathrow a British Airways, em Frankfurt a Lufthansa e em Arlanda a SAS. É uma informação que, a meu ver, fazia falta para se completar o ramalhete de 10 minutos televisivos a explicar que a água molha. O interesse disto seria zero, ainda assim, mas pelo menos os espectadores percebiam que Lisboa sofre do mesmíssimo problema de qualquer aeroporto europeu (ou mundial) com muito tráfego neste período pós-pandemia. E sempre se enchiam mais uns chouriços.

    Depois de percebermos que o caos no mundo da aviação se generalizou é que poderíamos começar uma discussão interessante e, até quem sabe, responder à pergunta do “acha que isto se vai resolver?”

    Por exemplo, em vez de directos razoavelmente deprimentes, ou perguntas para analfabetos, dirigidas a passageiros que já têm problemas maiores para resolver, poderiam as televisões abrir espaços de debate para debate sobre o problema. Bem sei que ninguém me perguntou nada, mas este mau tempo não me deixa ir para a praia. Um homem tem que ocupar o tempo.

    Se convidassem membros do Governo, especialistas da aviação (companhias aéreas, gestores dos aeroportos, etc.) e alguns economistas, só para termos momentos de filosofia, todos bem sentadinhos num painel de debate, talvez nos conseguissem explicar como é que chegámos aqui.

    white airliner on runway

    Por exemplo, se me deixassem fazer uma pergunta nesse painel, seria esta: “como é que a Segurança Social pagou às empresas para não despedirem os trabalhadores e, mesmo assim, chegamos ao período pós-pandémico com uma imensa falta de trabalhadores?”

    Dados do Governo português, em Maio de 2020, confirmavam o apoio a cerca de 40 mil empresas, num total de 600 mil trabalhadores. Imagino que o número tenha aumentado no ano que se seguiu.

    Porque, como diria o nosso António, vam’lá a ver, esta seria a teoria. Os governos decretaram que nada mexia, aviões incluídos, porque o Mundo estava perto do apocalipse e, em princípio íamos todos morrer. Mesmo ao fim de um ano e números semelhantes aos da pneumonia (mortes), os governos europeus não abrandaram. Tudo quieto, todos em casa e os aviões no chão. Pelo esforço de todos, fomos batendo palmas e, aqui e ali, saltava um arco-íris com a promessa que tudo iria ficar bem.

    Uma das formas encontrada para ficar tudo bem foi, no caso português, aumentar a dívida pública e financiar as empresas para que mantivessem os seus trabalhadores sem produção. No caso da aviação, essa realidade era mais do que óbvia, porque, todos percebemos, as ligações estavam praticamente congeladas. Eu confesso que achei boa ideia na altura e o raciocínio também era simples: se por decisão dos Governos não podíamos trabalhar, seria sua obrigação social (dos Governos) garantir o sustento de cada família, fosse como fosse. Com ou sem engenharia financeira.

    Claro que todos percebíamos que o endividamento viria como factura algures no tempo, mas, em princípio, os postos de trabalho estariam assegurados.

    Depois de dois anos com os movimentos condicionados, os europeus quiseram sair de casa e voltar a viajar. E bem. Porém, agora, de Norte a Sul, Este a Oeste, vão chegando relatos de aeroportos absolutamente entupidos e voos cancelados. Em todos a mesma justificação: falta de pessoal.

    E é aqui que começa a minha curiosidade. Falta de pessoal, porquê? Os empregos não deveriam estar garantidos pelo erário público para que “tudo ficasse bem” depois da pandemia? [Nunca sei se devo dizer “depois da pandemia”. Certamente estarei a ofender algum Antunes que me possa ler]

    Vejo duas hipóteses para o caos actual. A primeira: as empresas usaram o dinheiro para garantir lucros e, pelo caminho, aproveitaram para fazer os despedimentos à mesma – ou restruturações, como lhes chamam os gestores premiados. A segunda, menos rebuscada: o pessoal do sector foi para outras áreas profissionais que não tenham sido tão afectadas. Ou ainda, no caso do pessoal mais especializado (manutenção, pilotos, etc.), aproveitaram para mudar de empregador e fugiram para as Arábias (Emirates), Inglaterra (EasyJet) ou qualquer outro destino onde não lhes cortem os salários em 45%.

    Provavelmente, a junção das duas resultou nisto. Neste caos, nesta falta de pessoal um pouco por todo o lado. A isto juntam-se as greves dos trabalhadores que sobraram. Com a pressão existente sobre as empresas e os atrasos que prometem comprometer o Verão, é natural que os trabalhadores façam valer os seus direitos e tentem recuperar o que perderam durante o confinamento. É a lei do mercado a funcionar a favor de quem trabalha. Não pode servir só para benefício do patronato e dos especuladores, portanto, há que aguentar.

    Em todo o caso, se pouco se pode fazer se um trabalhador mudar de empregador, já sobre uma empresa despedir quando todos lhe pagamos para que não o faca, há mais qualquer coisa a fazer. Nomeadamente, perguntas.

    Há alguém que ande a perguntar ao pessoal da aviação que recebeu as ajudas do lay-off, para onde foram os trabalhadores? Eu tenho alguma curiosidade em saber. Com 10% do tempo diário gasto em directos inúteis no aeroporto de Lisboa, organizava-se um debate para esclarecimento.

    Enfim, quanto a vocês não sei, mas, pessoalmente, não estou muito interessado em saber há quantos dias o senhor que vai para o Recife não muda de cuecas. Já descobrir para onde foram os funcionários da aviação, especialmente aqueles que estavam protegidos pela Seguranca Social, dava-me algum jeito. A mim e à senhora da CNN que pergunta todos os dias se achamos que a coisa se vai resolver.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sardenha: não vi o Ricardo Salgado

    Sardenha: não vi o Ricardo Salgado


    Não podia morrer estúpido: na Sardenha, tinha de conhecer Porto Cervo, o local dos famosos, dos multimilionários e do nosso conhecido ex-banqueiro Ricardo Salgado – há uns anos, como sabemos, foi uma espécie de dono do regime.

    No ano passado, a imprensa lusa fez parangonas sobre as férias de Ricardo Salgado, enquanto decorria o seu julgamento. Beneficiou da lei que permitia aos arguidos com mais de 70 anos não marcarem presença em tribunal devido aos riscos associados à putativa pandemia. Por Porto Cervo, segundo fotografias na imprensa, andava ele descontraído, sem máscara e longe dos tais riscos – o “bicho” por lá não aparecia.

    crystal blue water on white sand beach

    Hospedei-me em Olbia, a cerca de 30 quilómetros de Porto Cervo, onde me foi possível encontrar um local para pernoitar a preços acessíveis. Em Porto Cervo, ou nas redondezas, os preços do alojamento são proibitivos. Acima dos 300 euros por quarto em cada noite.

    As estradas na Sardenha são miseráveis; mais se parecem com as estradas de Portugal nos anos 80, onde para percorrer 30 quilómetros se demora 45 minutos. É o oposto da Madeira – com a população a ganhar na sua maioria menos de 1.000 Euros por mês e governada por um tiranete –, onde existem túneis e estradas de luxo para qualquer lugar.

    O empreendimento de Porto Cervo está impecável, vivendas e apartamentos perfeitamente integrados na paisagem, com lojas de luxo em redor de uma marina, onde cada barco parece disputar a primeira posição em tamanho, esplendor e tripulação. Praticamente não se avistam carros de luxo.

    Não vi Ricardo Salgado. Também não vi o café a 10 Euros anunciado pela imprensa mainstream. Também não ouvi ninguém falar português de Portugal, apenas escutei o sotaque do país irmão: o Brasil. Não espanta, hoje aquele país possui uma das comunidades empresariais mais dinâmicas e numerosas do Mundo.

    Em relação à inexistência de portugueses, não há qualquer assombro: em 48 anos de socialismo, o regime encarregou-se de “abater” os empresários, enquanto elevava o peso do Estado na Economia, de 18% para mais de 50%, levando a dívida pública à estratosfera e destruindo o mercado de capitais. As empresas cotadas chegaram a valer 66% do PIB; valem agora menos de 40%, e o mercado está muito dependente de duas cotadas em mãos chinesas.

    Apesar do pesadelo instituído durante dois anos pelo facínora Mario Draghi, a Itália continua a ser uma das nações mais ricas do Mundo. Em Porto Cervo, as lojas de luxo são, na sua maioria, de marcas italianas. Também se vende iates de luxo por encomenda, igualmente de fabrico italiano. Ou seja, continua a existir um capitalismo vibrante, onde a indústria de luxo tem uma enorme preponderância e há capacidade industrial.

    Olho para a Itália, e à distância recordo Portugal. Fomos em tempos uma das nações mais prósperas do planeta; hoje, estamos a caminho de ser a nação mais pobre da Europa. Talvez esteja relacionado com a forma como nos relacionamos com o capitalismo e a riqueza.

    Continuamos a pensar que é fruto do acaso, da sorte, da vigarice e dos contactos certos, em lugar do esforço, da poupança, do risco, da excelência, do trabalho em equipa e da perseverança. Para nos aliviar a abjecção, não espanta o novo-riquismo com estradas e carros de luxo.

    Aparentemente, o único português que pode aparecer em Porto Cervo de Iate e aí alojar-se é um ex-banqueiro acusado de subornar os próceres do regime. Talvez por lá também apareçam figurões desse mesmo regime, com riqueza obtida à mesa do Orçamento do Estado e fruto do confisco dos demais portugueses.

    Mas, confesso, que não os vi; e também não vi Ricardo Salgado. Estará ele e os outros, por certo, em outras paragens paradisíacas.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Da pandemia aos incêndios: o mesmo país, a mesma gestão política, o mesmo bode expiatório, o mesmo desastre

    Da pandemia aos incêndios: o mesmo país, a mesma gestão política, o mesmo bode expiatório, o mesmo desastre


    Fossem os nossos políticos tão exímios em implementar políticas públicas eficazes como em encontrar bodes expiatórios, e Portugal seria um país exemplar. Assim não sendo, espera-nos o inferno. Ontem, como hoje; agora como no futuro, se não atalharmos caminho.

    Sabemos hoje como foram os dois últimos anos. Há duas semanas, o próprio presidente do Tribunal Constitucional (TC) elencava que, a pretexto da pandemia, Portugal conheceu “15 declarações do estado de emergência, 11 declarações de situação de alerta, 11 declarações de situação de calamidade, duas declarações de situação de calamidade, contingência e alerta, três declarações de situação de contingência e alerta e três declarações de situação de contingência”.

    silhouette of man standing on grass field during night time

    Tamanha “barbaridade constitucional” (as aspas são minhas), que até surpreendeu o responsável máximo pela defesa dos nossos direitos constitucionais, não teve como escopo principal criar (ou contribuir para criar) condições para se ser mais eficaz e eficiente nas medidas de controlo da covid-19, de uma forma equilibrada dentro das políticas de Saúde Pública.

    Foram sobretudo aplicadas pensando em dois objectivos. O primeiro, o próprio presidente do TC refere: fomentar o medo.

    Tem lógica, foi assim mesmo, e sabemos. Alimentando o medo (de morte, neste caso), os políticos invocaram para si o papel protector do Estado perante uma agressão externa sobre-humana, retirando de si a responsabilidade de solucionar o problema, e ademais justificando a possibilidade de exigirem, como exigiram, aos seus cidadãos uma subordinação às suas ordens – e levá-los a que eles mansamente as aceitassem e controlassem os “insurrectos”.

    O segundo objectivo foi criar uma conjuntura no ambiente social – o medo colectivo instigado pelos interesses dos media mainstream – que lhe garantisse um resultado do tipo win-win.

    Ou seja, se por circunstâncias diversas, e exteriores ao Governo, a pandemia amainasse – por exemplo, pela natural evolução para uma fase endémica, como a que vivemos –, a “vitória” teria um dono. Ainda mais gloriosa porque a imprensa garantiria o selo.

    red and white UNKs restaurant

    Caso o Governo falhasse – como falhou no controlo da pandemia, em determinada fase (Janeiro e Fevereiro de 2021) e sobretudo na gestão do Sistema Nacional de Saúde (como se constatou ao longo do tempo, e mais ainda agora, para cúmplice silêncio da imprensa mainstream –, nunca se lhes poderia, supostamente, assacar culpas.

    Com efeito, como assacar responsabilidades a um Governo que, parafraseando o presidente do TC, decretou “15 declarações do estado de emergência, 11 declarações de situação de alerta, 11 declarações de situação de calamidade, duas declarações de situação de calamidade, contingência e alerta, três declarações de situação de contingência e alerta e três declarações de situação de contingência”?

    Não estiveram eles, o Governo, a trabalhar incansavelmente, sempre a aparecer, sempre a parecer que faziam coisas? Como se pode, nestas circunstâncias, responsabilizar o Governo português pelo imparável excesso de mortes nos últimos 53 meses? Se tal houve foi porque o “monstro” da pandemia não permitiu mais. Era inevitável, e mais: até seria pior se não fossem as tais 15 declarações do estado de emergência, & etc.

    Para que esta narrativa fosse politicamente bem-sucedida – como foi durante a pandemia –, o controlo da informação mostrou-se essencial. O Governo esteve sempre na crista da onda mediática, a legislar – esteve e está na moda as Resoluções de Conselho de Ministros, que, do ponto de vista legislativo, valem quase nada –, a dar ordens, a comentar, a inundar a comunicação social de suposta informação (muita dela filtrada e manipulada, porque nunca se divulgam dados em bruto para evitar surpresas).

    Misture-se isto com um presidente da República, um primeiro-ministro, uma ministra e directores-gerais sem independência partidária a debitarem opiniões e a fazerem comentários sobre uma estratégia de combate a uma calamidade, e nunca ninguém poderá apontar-lhes que são eles uma calamidade – que foram eles a contribuir para a calamidade.

    silhouette of trees on smoke covered forest

    Esta estratégia de diabolizar ameaças, hiperbolizando problemas – como sucedeu com a covid-19 –, não é, na verdade, inédita. Tal sucedeu sempre nos incêndios rurais. Em 2003 foi assim, quando arderam mais de 400 mil hectares; em 2005 também, quando arderam 350 mil hectares; em 2017, idem, quando arderam 540 mil hectares e morreram mais de 100 pessoas em dois eventos catastróficos, em Junho e em Outubro.

    Nada disto foi culpa de qualquer Governo, claro! Foi tudo culpa de um “monstro” externo – o fogo, “primo” mais antigo do SARS-CoV-2 como bode expiatório – nunca das políticas públicas desastrosas.

    Nada será, portanto, culpa do actual Governo se os próximos dias transformarem o país em chamas. Já vi esse passa-culpas muitas vezes, já escrevi muito sobre isso: mais de 400 páginas há 15 anos, com Portugal: o vermelho e o negro.

    Com a pandemia ainda morna, vejo-me assim perante um déjà vu, agora que se está na iminência de mais um desastre num quente e seco no Verão, como se fosse anormal tempo quente e seco no Verão.

    Tenho para mim – que acompanho essa temática, na função de jornalista, desde os anos 90 – como certo que as alterações climáticas são uma evidência, independentemente de alguns desconfiarem que não são de origem humana (erradamente, na minha opinião). Porém, estou muito longe de aceitar que, a pretexto de uns dias mais quentes de Verão – e é bom recordar que no ano passado Julho foi “fresco” –, se venha, logo, invocar as alterações climáticas com o objectivo de fomentar, desde logo, um “clima” de imprevisibilidade nas consequências.

    Portugal é o único país da Europa mediterrânica que, desde 1980, aumentou a sua área ardida em termos absolutos. Desde o início do presente século, só dois países registaram anos com uma área ardida superior a 1% do respectivo território: Grécia e Portugal. Mas enquanto a Grécia viu isso suceder apenas duas vezes (2000 e 2007; um pouco menos de 2% de área afectada), tal já sucedeu por 17 vezes em Portugal, das quais 10 vezes no presente século, com um pico de 6% em 2017.

    Variação da área ardida por ano nos países mediterrânicos europeus (JRC, 2010-2019)

    Foi isto culpa das alterações climáticas? Foi, se se considerar que seria lícito armarmo-nos as Forças Armadas de arco e flecha em pleno século XXI para enfrentarmos uma eventual invasão estrangeira…

    Ou foi a culpa será antes das políticas de desinvestimento agrícola? E das políticas de promoção da desertificação do interior (porque o interior não dá votos)? E das erradas estratégias florestais que não se adaptaram face às alterações climáticas e as mudanças sociais-culturais do mundo rural? E da criminosa manutenção de um modelo de prevenção e de combate aos incêndios florestais assente em pseudo-voluntarismo em detrimento de um modelo profissional holístico (gestão, prevenção e combate) e responsável?

    Nada disto conta? É tudo culpa de um bode expiatório, de uma força incontrolável, sobre-humana? Culpa de todos em geral, e nunca do Governo em particular, que pode livremente puxar-nos as orelhas, porque por detrás de cada português estará um transmissor de SARS-CoV-2 como está também um incendiário?

    Suspiro, por isso, ao ver agora a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil dizer que estamos perante uma “meteorologia quase inédita” (confesso que não sei o que é um “quase” ineditismo), ao ver o Governo a decretar mais um “estado de contingência”, ao ver o Presidente da República a dissertar sobre fases dos incêndios como se estivesse com comentários no final dos jogos de futebol da Selecção Nacional, e ao ver o reitor do Santuário de Fátima a apelar para que se reze pelo fim dos fogos.

    Este país está condenado.

  • Terra do Sol Nascente

    Terra do Sol Nascente


    Desde os primórdios da Humanidade, as diferentes civilizações têm olhado o sol tecendo considerações religiosas, filosóficas e científicas. Se é graças à sua luz e calor que há vida na Terra, é também por sua causa que a vida um dia se extinguirá.

    Este astro começa por ser uma bola de hidrogénio, que se vai apertando e aquecendo até atingir cerca de dez milhões de graus centígrados. Depois, entra numa reação com a fusão do hidrogénio e vive cerca de vinte milhões de anos neste estado. Até ao presente, estima-se que tenha atingido aproximadamente metade da sua vida e, por isso, terá em média mais dez milhões de anos pela frente até que se consumam os elementos químicos que o compõem.

    Mais tarde vai dilatar-se, depois de ter arrefecido e contraído, fase essa em que se transformará num gigante vermelho. É algures neste o momento que se espera o fim da Terra.

    calm body of water during sunset

    Não deixa de ser curioso que os textos sagrados do Antigo Testamento tenham escolhido a luz como primeiro acto da criação e expressão da vontade de ordenar o Mundo. Este princípio criador, que vai do caos à ordem, arrola a necessidade de conferir lógica à Vida – aliás, ideia presente noutros textos, noutras religiões, noutras tradições filosóficas que se reflectem em símbolos e sinais.

    Num mundo perturbado, a palavra ordem pode assustar. Associa-se frequentemente a palavra ordem a ditaduras e a tiranos, mas a ordem é muito mais. Por ordem entenda-se dispor as “coisas” no seu devido lugar. Não simplesmente porque uma vontade isolada o queira, mas porque a natureza e a vida se encarregam de dar um lugar para todo o existencial.

    Graças à ordem, o que se encontra em potência pode tornar-se Acto. Imagine-se uma árvore que se encontra em potência numa semente. Dir-se-á que está em potência porque ainda não é uma árvore. Mas, se a semente for deitada à terra no tempo próprio, se for regada e se não for destruída, poderá chegar ao acto – ser uma árvore.

    Parece-me oportuno relembrar que toda a criação guarda, além de um ritmo próprio, segredos de funcionamento que nos compete descodificar e descobrir.

    Podemos chamar Conhecimento – que é e deve ser libertador, pois só o ignorante conserva tantos medos e preconceitos; somente aquele que ainda não recebeu a luz continua a viver às escuras.

    Por tudo isto, educar pode significar, precisamente, transmitir conhecimento às gerações futuras, de tal forma que estas possam, depois de o enriquecer, dar continuidade à sua transmissão.

    A História isto nos ensina – não há sociedades perfeitas, ninguém guarda o saber absoluto, ninguém se reduz ao exemplo. Para sermos “hoje melhores do que ontem e amanhã melhores do que hoje”, precisamos mudar, crescer, aprender, pensar.

    E, porque somos dotados de inteligência, é sempre oportuno recordar que assim como sol, todos temos o nosso tempo de vida e por isso, dado que tudo tem uma Ordem, nenhum ser humano tem o direito de tirar a vida a outro ser humano, uma vez que a vida não é uma luz que se pode apagar por vontade de alguém – é um Acto pleno em torno do qual todos giramos.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Emigração: um estudo sobre água molhada

    Emigração: um estudo sobre água molhada


    Segundo um inquérito/estudo feito pela SEDES a 300 emigrantes – será uma amostra representativa? –, 70% queriam regressar a Portugal. Este era o título da notícia que me chamou a atenção em vários jornais. Isto significa que 210 portugueses, entre as três centenas que foram ouvidos, queriam voltar ao país de origem. E se tivessem perguntado a 301, e eu fosse um deles, então seriam 211.

    Depois do cabeçalho, fui ler o corpo da notícia para perceber como é que a matemática funcionava para aqueles meus 210 conterrâneos. É que, como perceberão, a maior parte dos emigrantes gostaria de não o ser. Bem sei que há quem vire costas para não mais voltar, mas julgo que, arriscarei pouco, se disser que a maior parte desejaria o sol português com o salário do estrangeiro.

    desk globe on table

    O mistério esfumou-se em poucos segundos de leitura. Querem voltar, sim, mas na reforma ou daqui a um par de anos. Ou seja, a matemática do emigrante ainda é aquela prova dos nove que nos afasta de casa.

    Este é um dos fados absolutamente insuportáveis da condição de emigrante português.

    Quem se habitua a viver fora de Portugal, compensa as amarguras dessa condição com a melhoria das condições de vida. E acaba por ficar prisioneiro delas. Todos, ou quase, acabamos em mesas redondas de balanços de vida. É agora que voltamos? Há condições? Conseguimos pagar as contas? Os familiares estão a ficar mais velhos? Temos que estar mais presentes? Os amigos ainda se lembram de nós? Dá para aguentar mais três anos?

    Para mim é fatal como o destino que, a cada fim de Verão, me candidate a vagas em empresas portuguesas, ou a recrutar em Portugal. É uma espécie do renovar da esperança de que algo tenha mudado desde a última conversa. Entenda-se, desde o último Setembro.

    Sempre, ou quase sempre, interrompo as entrevistas para colocar um fim ao processo de selecção. E faço-o sem grandes justificações ou sequer sem mostrar metade da frustração que sinto. A culpa não é, nunca foi, de quem do outro lado da linha fala comigo e apresenta propostas de trabalho relativamente semelhantes às que ouvia em 2006, antes de ter decidido emigrar.

    brown cupcakes on silver tray

    A culpa é de um tecido empresarial que ainda procura o lucro através de baixos salários, de um regime fiscal pesadíssimo – quase sem retorno para quem o paga – e do constante atraso nas políticas salariais que tornam o país atractivo para os tubarões multinacionais, que recebem força de trabalho altamente especializada, a troco de amendoins.

    De modo que, a cada Setembro, me interrogo se consigo pagar um apartamento em Lisboa com 25% do salário actual. Não, não consigo.

    E no Miratejo? Aí já consigo. Então é melhor ficar quieto.

    Quando me dizem que dinheiro não é tudo na vida, eu sou o primeiro a concordar.

    Normalmente quem o diz não tem casa para pagar, mas isso, são detalhes. Os baixos salários portugueses não seriam problema se as rendas, os empréstimos, o imobiliário e os restantes custos do quotidiano se adequassem. Se uma casa em Lisboa custasse 50 euros por mês, um salário de 700 euros seria óptimo. O problema é que a despesa cresce como na Europa civilizada, mas a receita, de cada um de nós, cresce ao ritmo do Congo. Alegadamente e sem ofender os nossos camaradas congoleses.

    No fundo, a dúvida é se devemos continuar a sofrer longe ou se queremos passar a sofrer mais perto. Normalmente vence a casa aquecida e a facilidade de não andar a fazer contas a meio do mês. Depois, em cima disto, ainda aparecem as vantagens de sistemas políticos mais justos, menos corrupção, sociedades que funcionam de forma simples e pouco burocrática, saúde gratuita, educação universal.

    Aposta-se em mais um ano e pensamos, à Sporting: “para o ano é que é!”.

    E assim acabamos a engrossar a lista de quase três milhões de emigrantes espalhados pelo Mundo, números oficiais, embora se estimem muitos mais. E a contribuir para a famosa lista das remessas que, dizia Clara Ferreira Alves um dia destes, já não são significativas.

    euro banknote collection on wooden surface

    Segundo dados do Observatório da Emigração, em 2020 foram enviados cerca de 3 mil milhões de euros para Portugal pelos emigrantes, quase 2% do PIB do país – ou seja, uma Autoeuropa. Adorava ler o dicionário da Clara Ferreira Alves e perceber o que é significativo.

    Quando discuto este tema, até com outros emigrantes, observo as reacções de desprezo a um possível regresso. A vida em sociedades mais evoluídas – perdoem-me o termo, mas a comparação e todas estatísticas europeias o provam – dá-nos outra visão do nosso próprio país.

    Eu compreendo as queixas e até o facto de alguns não quererem voltar para o nosso cantinho, mas não é a minha. Não conseguir regressar, deixa-me frustrado, não me faz sentir melhor por estar num país rico ou até num sistema político mais limpo. Nós somos o que somos, para o bem e para o mal. Se a vida dos meus filhos não sofresse com essa mudança, eu preferia encerrar o período de emigração e abdicar das facilidades sociais proporcionadas longe daqui, e até de um conforto que em Portugal nunca tive.

    Aquilo que não consigo aceitar é que, por causa de décadas de escolhas erradas do ponto de vista político, de fundos europeus mal gastos ou da gigantesca corrupção que tudo leva, eu tenha que me sujeitar, ao fim de 20 anos de trabalho, a receber um salário miserável e a viver num subúrbio qualquer, porque, entretanto, a cidade onde nasci me ficou vedada.

    red green and yellow flag

    Depois de 35 anos na União Europeia, com uma dependência enorme dos subsídios, Portugal tem a melhor rede de estradas da Europa e as Parcerias Público-Privadas (PPP) mais absurdas. Mas não tem uma rede de creches públicas em condições, ensino universal e totalmente gratuito, cuidados para cidadãos em fim de vida (despejar velhos em lares ilegais é de Terceiro Mundo) e até o SNS, antiga jóia da Coroa, já teve melhores dias. As casas boas e centrais são para estrangeiros, aos portugueses de classe média resta o subúrbio e um encolher de ombros perante a voracidade da especulação descontrolada.

    Chegamos ao ponto de formar engenheiros para lhes pagar 800 euros ou implorar por trabalhadores para o turismo a troco do salário mínimo. Caminhamos para sermos uma República Dominicana europeia onde o investimento público na Educação se converte em mão-de-obra para outros parceiros europeus. É obra. Da estupidez, é certo, mas ainda assim obra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As missangas do século XXI

    As missangas do século XXI


    De férias, aproveito para ler. Desde sempre, a História e a Teoria do Dinheiro foram temas que me fascinaram. Revejo o livro que mais me marcou a este respeito: The theory of money and credit, do economista Ludwig von Mises, publicado em 1912 em alemão.

    Hoje, a maioria dos estudantes de Economia não compreende o funcionamento do presente sistema monetário, nem tão pouco estudou ou se debruçou sobre o tema. São coisas esotéricas para muitos. Não podemos atribuir-lhes qualquer culpa, pois o ensino dá pouca importância a estas matérias, talvez porque interessa manter a ignorância generalizada.

    man in red and white plaid shirt wearing white scarf

    Eu próprio fui uma vítima deste sistema de ensino: poucas disciplinas tive sobre estes temas no meu tempo de faculdade; mas salvei-me: apesar de tudo, a experiência profissional e a minha curiosidade ajudaram-me a reconhecer a importância do dinheiro no aparecimento de sociedades prósperas e dinâmicas.

    Dentro desta temática, sempre me fascinou um episódio da nossa História: a troca de missangas por ouro e escravos, que os descobridores portugueses realizavam na costa africana. A pergunta que sempre subsistiu na minha cabeça foi a seguinte: qual a razão para uma troca voluntária aparentemente tão desfavorável para os africanos?

    Não devia ser desfavorável. E passo a explicar. As missangas eram pulseiras, podendo ser adaptadas para colares ou braceletes, construídas com pedaços de vidro. Tornaram-se preciosas na África subsariana, porque a tecnologia do vidro era então cara e pouco comum naquela região. Desta forma, tornaram-se dinheiro, ou seja, um meio de troca e uma reserva de valor.

    Os europeus – detentores de tecnologia capaz de produzir vidro em enormes quantidades – foram assim capazes de produzir missangas em enormes quantidades, utilizando-as como meio de pagamento para obter escravos e ouro. Saiu-lhes barato, e acabou por dar cabo das missangas como reserva de valor em África.

    gold and silver round coins

    O colapso do valor das missangas em África, em resultado das enormes quantidades introduzidas pelos europeus, acabou por ser uma tragédia para os proprietários das missangas originais. Os comerciantes europeus, capazes de as produzir em enorme quantidade e a baixo custo, operaram assim uma enorme transferência da riqueza para si.

    Para ser reserva de valor, o dinheiro tem que ser imune à putrefacção, corrosão, e outras formas de deterioração. Por isso, se alguém pensar em acumular riqueza sob a forma de maçãs, peixes ou laranjas, não se dará bem: no futuro, não será capaz de vender estes bens no mercado porque apodreceram ou perderam qualidades com uma eventual congelação – além de que o congelamento teria um custo que depreciaria o valor. Ou seja, devemos utilizar como reserva de valor algo que possua as mesmas características ao longo de anos, ou mesmo séculos, com baixo ou nenhum custo.

    Deste modo, para além de não se poder deteriorar, a reserva de valor exige também que o “dinheiro” seleccionado se mantenha escasso ao longo do tempo. Para tal, é necessário que a emissão do “dinheiro” não aumente de forma drástica ao longo do tempo; caso contrário, o seu valor de mercado irá diminuir drasticamente.

    Ora, as missangas funcionaram bem durante séculos, pois cumpriam os dois critérios: por um lado não eram deterioráveis e, por outro, a sua escassez estava garantida, atendendo à dificuldade em emitir drasticamente novas missangas. Em conclusão: antes da chegada dos europeus, a emissão drástica não era possível.

    Assim, para medirmos a força monetária do dinheiro devemos atender a dois aspectos: (i) o inventário, que consiste em tudo o que foi produzido no passado e deduzido do que foi consumido, e (ii) a produção que irá ocorrer no período temporal seguinte. O rácio entre a quantidade e a produção define a força monetária do dinheiro.

    O ouro transformou-se assim em dinheiro, durante longo tempo, fundamentalmente por possuir uma elevada força monetária, ou seja, a produção de um dado período tem pouco ou nenhum impacto no inventário existente.

    Praticamente todo o ouro extraído da natureza até à data encontra-se na posse de alguém, seja de um particular ou de um Banco Central. Por outro lado, a produção anual de ouro não supera os 2% do inventário, atendendo que a mineração é cara e difícil.

    Diga-se que outros metais não possuem esta força monetária, como, por exemplo, o ferro. Num dado ano, a produção é praticamente consumida, havendo, por conseguinte, pouco inventário; por outro lado, afectando capital e recursos humanos à sua produção, esta pode ser drasticamente incrementada, algo que não acontece com o ouro.

    O sucesso deste metal levou a que Bancos Centrais, governos e bancos centralizassem a sua propriedade. Hoje, estima-se que apenas os Bancos Centrais possam deter mais de 30% do inventário existente.

    grey concrete building

    Tal concentração de propriedade permite a emissão de substitutos, como notas ou cheques, deixando de existir a necessidade de transportar o ouro para realizar o pagamento, bastando a compensação junto do banco, movendo-se a propriedade do mesmo de um cliente para outro.

    Esta capacidade de emitir substitutos permitiu aos governos manipular o inventário do ouro. Para financiar a guerra do Vietname, os Estados Unidos emitiram uma enorme quantidade de notas de dólar sem qualquer respaldo em ouro. E, deste modo, a manipulação do seu inventário levou ao fim do ouro como dinheiro.

    Actualmente, estamos a viver o mesmo drama dos proprietários das missangas. A produção de nova moeda é quase infinita: Euros e Dólares norte-americanos podem ser produzidos com um simples apertador de um botão de computador, praticamente sem quaisquer custos. Isso gera uma transferência de riqueza a favor dos produtores de dinheiro: Bancos Centrais, governos, bancos e apaniguados, em detrimento dos produtores de bens e serviços.

    A força monetária das actuais moedas é mínima, pelo que a sua viabilidade a longo prazo é inexistente. Por outro lado, a alternativa proposta, a moeda digital dos Bancos Centrais mantém o mesmo problema: a sua produção pode ser aumentada drasticamente e sem custos.

    A razão de afirmar, vezes sem conta, que o Bitcoin é uma excelente reserva de valor deriva das suas características, que resolvem os problemas já anteriormente indicados.

    aerial photography of dump trucks

    Primeiro, a sua produção está limitada a 21 milhões de tokens; a emissão é muito cara, pois consome imensa energia, pelo que a produção está fortemente condicionada. Assim, a sua força monetária está assegurada.

    Segundo, a tecnologia em que assenta – o blockchain – elimina por completo a centralização. Cada node pode operar de forma individual e não é possível controlar mais de 50% dos nodes da rede. Em resumo, dispensa uma autoridade central e funciona de forma descentralizada.

    Por fim, ao contrário do ouro – que pode ser manipulado o seu inventário através de substitutos, i.e., o fenómeno das reservas fraccionadas –, o valor de Bitcoins total, e a quem pertence, pode ser auditado com uma simples ligação à Internet, impossibilitando tal prática.

    Isto para concluir, embora seja suspeito por estar nesta área, e mais ainda de férias, que continuo a pensar que a acumulação de riqueza em Bitcoins será altamente compensadora no futuro. Mais do que a moeda fiduciária dos Bancos Centrais, que se transformou nas “missangas do século XXI”.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As gotas e o oceano, a vida e a morte, Davos e o que devemos a Assange

    As gotas e o oceano, a vida e a morte, Davos e o que devemos a Assange


    Tempo quente faz pensar em tempo – tempo de assimilação, de cura ou de memória. E no tempo de cura, como no de assimilação, nada tem real significado se for rápido, enquanto o tempo da memória pode ser um acaso fugaz, um aroma, um pestanejar. Ou toda uma História.

    Na memória do mundo, com mais ou menos floreados e contos com pontos, está inscrita uma história partilhada por todos que informa (e em forma) o presente e o pensamento. E eis uma:

    No mar Egeu, embrulhado no Mediterrâneo, pequenina partícula do arquipélago grego das Cíclades, a ilha de Delos surge árida e divina.

    aerial photography of body of water

    Inundada pelo sol desde o amanhecer ao anoitecer, Delos, na mitologia grega, julga-se ter sido dada a Leto para que esta tivesse onde dar à luz os gémeos Apolo e Artemísia, perseguida pelo desdém de Hera – mulher de Zeus – que, ao vê-la engravidar de Dionísio, quis garantir que Gaia não a deixaria parir em lugar algum na terra. Poseidon apiedou-se de Leto e fez emergir Delos do mar.

    Parece talvez confuso? Tantos nomes, parentescos, intrigas e tragédias, que sempre me causaram aflição por não abarcar tudo o que se passava atrás da cortina. Segredo dos deuses e nós, meros mortais, espectadores na melhor das hipóteses.

    Delos foi talvez o primeiro local a receber purificação, pelo menos no nosso berço civilizacional, onde se declarou ser proibido morrer (e nascer também). Atenas declarou a exumação de todos os cadáveres na ilha, movendo-os para uma ilha vizinha, para garantir a limpeza do local para culto divino do casal de deuses.

    Claro que nascer ou morrer são os pontos mais importantes e sagrados de uma vida, por isso a nossa perplexidade se vemos os dois tocarem-se. Atenas podia declarar que a razão era religiosa, mas, acima de tudo, a preocupação era se poderia haver clamores de direitos de propriedade e herança sobre o local, se estes pontos tão essenciais da vida e da morte se inscrevessem naquela morada. Havia que manter o local neutro comercialmente.

    (Ai, a moeda!)

    Portugal sabe uma coisa ou duas sobre proibição de morrer (e nascer também). Ou talvez seja a língua portuguesa.

    No Brasil também tentaram passar esta lei em 2005 (vêem como isto não é só antigo), porque, alegadamente (devido crédito ao titular recente da expressão nesta casa), a população cuidava muito mal da sua saúde e não haveria mais espaço para sepultar os falecidos, por razões ambientais.

    Por cá vemos os mortos serem usados como arma de arremesso há mais de dois anos e, agora, que tantos partem, já ninguém faz boletim diário, já ninguém apresenta gráficos.

    (Excepção feita aqui, nesta morada.)

    Talvez haja proibição de morrer em Portugal (e de nascer também).

    Outra história:

    Davos é uma comuna suíça junto aos Alpes onde, tanto quanto sei, é possível morrer, nascer e reunir globalistas muito pertinentes ao destino de cada um de nós.

    Local anfitrião do World Economic Forum – esta pequena estância de boa saúde alpina e ar puro acolhe todos os anos gente que é gente no mundo. (Não nós, meros mortais, na melhor das hipóteses espectadores.) São já cerca de 50 anos de reuniões auspiciosas.

    Nestas reuniões já passaram toda uma série de líderes internacionais essenciais à cena mundial que sempre assistimos. Guerras são traçadas ou evitadas, os tempos de régua e esquadro sobre o atlas vão-se mantendo. Nos últimos anos, principalmente, tem havido muito interesse em conversarem por lá em transhumanismo, emergência climática e, claro, pandemia.

    Claro também é que este ano a Rússia faltou, pela primeira vez desde 1991. Um pequeno sinal de transformação de desígnios.

    person standing on cliff during golden hour

    Quem fala desta reunião, ou concílio, pode também falar da reunião do G7, dos BRICS, do FMI, ou da OMS. Muitas salas extravagantemente decoradas, bem servidas de excesso (de comes e bebes, cereais, talvez até de bacalhau à Brás).

    E porquê falar de Davos? Porque ao contrário de Delos e o seu controlo sobre nascer e morrer, em Davos podemos considerar que é operado um controlo muito eficaz sobre viver. (“… Entre uma e outra todos os dias são meus…”, serão?)

    Mas são nossos os dias se são passados em domínios filtrados e curados pelos senhores, ou seus algoritmos, destas reuniões? São nossos os dias e os pensamentos se nos são alimentados por outras pessoas ou ecrãs?

    O meio sempre manipulou a mensagem, percebeu-se isso rápido, daí que a invenção da Imprensa seja o acontecimento mais importante do nosso passado colectivo. O acesso generalizado à informação permite às gotas no oceano saberem que cor tem o céu.

    Em princípio quase todos nós podemos ir confirmar uma informação, mas nem sempre podemos ter a certeza da sua veracidade, fora o próprio viés da leitura. Mais grave ainda é ver como a informação nos é oferecida sem procura, sugestões (inofensivas), prioridade em resultados de buscas, conteúdo misteriosamente desaparecido.

    E isto é verdade desde as sugestões Google, às sugestões Facebook, às sugestões Netflix. Mesmo para quem se tenta ausentar dos meios de comunicação tradicionais, tudo está embrenhado numa enorme teia que nos conhece intimamente, projecta e prevê o nosso futuro e extrapola o nosso passado como uma espécie de engenharia invertida.

    Sabemos se, por entre sugestões e previsões, não estamos subtilmente a ser empurrados?

    Ora, a acção da Wikileaks, conduzida por Julian Assange, registou um dos maiores impactos que o jornalismo de investigação alguma vez teve.

    Em 2019, ano de grandes viragens, Assange perdeu o direito de asilo político na Embaixada do Equador em Londres, onde se refugiava há muitos anos, e foi preso, estando na iminência de extradição para os Estados Unidos e de ser julgado por conspiração. Já foi privado da sua liberdade anos a fio; agora arrisca a pena de morte.

    A Wikileaks empurrou o público a ver a verdade, com provas, sobre, por exemplo, aquilo que os Estados Unidos fizeram no Iraque. Assange foi o outro lado da balança para encontrarmos equilíbrio entre o que o poder nos alimenta, as nossas crenças e a realidade. As gotas e o oceano.

    Mas Julian Assange está agora sozinho no mundo, onde a Imprensa alterna entre definhar e borbulhar.

    O que poderíamos saber desde 2019 se ele não tivesse sido preso?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.