Viajei, por razões profissionais e académicas, até Roma – a Cidade Eterna; e a propósito de uma conversa casual, dei por mim a pensar na conservação das antigas estradas do Império Romano. Os milhares de quilómetros de construção, que se estenderam da capital ao “resto do mundo”, são de uma qualidade excecional. Tanto assim que a robustez dos materiais e a técnica dos mestres garantiu que essas infraestruturas chegassem muitas vezes quase intactas aos nossos dias.
O tempo e o dinheiro investidos na construção destas vias ofereceram uma importante vantagem à circulação de pessoas e de bens. Infelizmente, com o passar do tempo, esquecemo-nos do significado das ideias de qualidade, de robustez, de mestres. Por isso, já não construímos como antigamente.
É ainda curioso saber que nem todas as pedras destas estradas se mantiveram no lugar. Na verdade, algumas acabaram por ser arrancadas do solo para depois servir na edificação de castelos durante o período medieval. Imagine-se estes pedaços de rocha com características humanas, e facilmente conseguimos vislumbrar o orgulho que poderiam sentir ao deixar de viver no chão – a servir de sustento a pés, patas e rodas – para passar a viver ao alto, integrando muros imponentes.
Quem visita Roma, encontra vestígios de construções milenares espalhadas por toda a cidade. Ano após ano, construção em cima de construção, a cidade evoluiu, mas, ainda assim, as colunas, os capitéis, as paredes ou as abóbodas permaneceram nos mesmos lugares – e resistiram ao tempo, aos terramotos, às guerras, ao vandalismo.
Ainda que a cristianização do Império tenha levado a uma transfiguração da obra imperial – por exemplo, a conversão dos antigos templos em igrejas –, a ideia romana manteve-se na expressão do eterno, do grandioso, do imponente. Cristianizou-se os romanos e romanizou-se os cristãos…
Enquanto pensava em ideias para escrever esta crónica, tive o privilégio de ser embalado pelo som das águas refrescantes das fontes, dos chafarizes, do rio e, se não fosse o descuido na limpeza urbana, tinha-me sentido num pequeno paraíso. Em cada esquina, um monumento, uma relíquia – cada uma mais antiga e mais bonita do que a anterior. Nas ruas ouvimos o tom alto e exagerado com que se fala localmente. Gesticulam muito. Buzinam por tudo e por nada. A condução é caótica. Talvez, por isso, seja difícil imaginar esta cidade fechada ao turismo durante o recolher obrigatório.
Nesta cidade ainda se sente o medo e a exigência trazidos pela pandemia. Ainda se pede certificados e para se andar mascarados…
Na rua, a arte urbana ganhou um novo tema. Numa velha parede de esquina, alguém desenhou um quadro perfeitamente integrado. Nele a alusão à “Vacina Santa”, mesmo ao lado do Vaticano: são os sinais dos tempos.
Mas, voltemos às pedras. Não há dúvida de que o ser humano é capaz de criar obras geniais com elas. Não me refiro exclusivamente às basílicas ou aos edifícios em geral. Refiro-me também à criação de pequenos pormenores artísticos que eternizam ideias e ideais – a vida, a morte, a eternidade, a esperança, a justiça, a fé, a caridade.
Dentro das igrejas existem túmulos lindíssimos, que tentam perpetuar na morte aquilo que não foi alcançado na vida. Parece-me oportuno, hoje, mais do que nunca, entender uma simples ideia: não passamos de pequenas pedras brutas a precisar de um bom desbaste…
Dos castelos medievais, hoje, o que nos mostram são apenas réplicas – Guimarães, São Jorge, Almourol… –, ao contrário das estradas, dos aquedutos, das pontes romanas.
O declínio do Império Romano coincidiu com o desinvestimento na circulação de bens e de pessoas. A estagnação matou. Não aprendemos.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Não sou grande agricultor, e percebo pouco da poda, mas tentei comprar um tractor numa ilha dos Açores. Mal entrei na loja, o senhor avisou-me que o simpático Husqvarna custava agora mais 5%. Perguntei porquê, apenas para ter o momento retórico do dia. Há três meses que todos sabemos a razão oficial para o aumento de qualquer custo: a guerra. A nossa guerra, note-se. As outras nunca mexeram nos nossos salários.
Educadamente, disse-lhe que algo falhava na equação. O tractor, feito a alguns quilómetros de minha casa, na cidade sueca que lhe dá o nome, terá por esta altura o mesmo custo de produção. Não há notícia de aumentos salariais de 5% na Husqvarna. A energia utilizada para o produzir não é fornecida pela Rússia, e, segundo sei, o metal também não vinha de Azovstal.
O barco que o transporta para as ilhas portuguesas também não se move a combustível russo, e, logicamente, a pessoa que o tentava vender não terá recebido um aumento de 5% nos últimos 10 dias. Quiçá, nem nos últimos 10 anos.
Esta conversa aconteceu poucos dias depois de nova redução salarial. A banca, as financeiras, as seguradoras, todas as componentes do mundo empresarial aproveitam a onda e sobem os custos operacionais. Porquê? Porque podem.
Há uma desculpa válida e, embora não tenham de facto aumentos reais nos custos, todos aceitam a escalada de preços como natural. É o xico-espertismo na alta roda. Como é que as empresas aguentam o impacto? Simples, cortando nos salários dos trabalhadores.
Uma repetição, em parte, do que aconteceu durante a pandemia da covid-19. Os governos enviaram as pessoas para casa e ajudaram à subida do desemprego, cortes salariais e aumento da pobreza.
Talvez o problema seja meu, acredito que sim, mas começo a ficar cansado de pagar por decisões alheias.
Bem sei que não podemos ver o mundo pela análise individual, mas, não tendo qualquer voto nas decisões conjuntas de confinar, de pagar impostos para preencher a quota de 2% para a NATO, de impor sanções económicas, iniciar ou prolongar guerras, resta-me aceitar cortes salariais regulares em silêncio. E claro, ir ouvindo todos os dias que A ou B aumentou o seu custo por causa da Ucrânia.
É coisa que me aborrece, especialmente a 5.000 quilómetros de casa, quando dou por mim a trabalhar para pagar os dislates de velhos políticos com disfunção eréctil, e gosto por bombinhas.
Em princípio aplicaria aqui a tradução do Milhazes sobre a guerra – algum dia tinha que dizer qualquer coisa de jeito –, mas tentemos manter o nível até ao fim do texto. Só para dar menos trabalho ao editor…
Quando é que isto acabará? Aliás, como acabará? Nuno Rogeiro, que fala com Zelensky por interposta pessoa, segundo o próprio, diz-nos que a Rússia está a levar uma tareia. Não só falhou todos os objectivos como já perdeu um terço do exército. Vendo o entusiasmo com que faz aquele inventário dos carros de combate em chamas, eu fico sempre a pensar que os ucranianos estão quase a chegar a Moscovo.
O meu problema é que depois vou à BBC e outros canais onde não perguntam nada ao Rogeiro e, para meu espanto, naqueles mapas cheios de setas, a área russa não pára de crescer.
Devagar, devagarinho, mas a coisa parece estar a ficar mais ou menos consolidada no Donbass. E nem a conversa das mortes em barda no lado russo parecem abanar muito Putin.
Aliás, os soviéticos que nos fizeram o favor de limpar os nazis em 45, tiveram mais mortos que todos os outros exércitos. Mas chegaram a Berlim. Portanto, com estratégia ou ao monte para cima das balas, os russos não costumam deixar o serviço a meio. Mas enfim, vou ver se consigo beber do mesmo sumo que o Rogeiro leva para o estúdio da SIC, para me animar.
Chegados aqui temos que discutir a solução. Putin enquanto conseguir vender petróleo e gás, vai andando. Zelensky enquanto for recebendo armas e dinheiro da Comunidade Internacional, também. Pelo meio aparece Kissinger, o artista, a dizer que é boa ideia os ucranianos cederem território e os Estados Unidos não tentarem humilhar muito os russos.
Como desatar este nó?
Quanto ao tractor: ficou na loja.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Devo dizer-vos que 10 minutos antes de começar a escrever, não fazia ideia se Uvalde era marca de sumo de uva comercializada em baldes ou, em alternativa, uma aldeia perdida nos Andes.
Dez minutos volvidos já sei várias coisas. Por exemplo, sei que na página 13, de entre as 192 que compõem o Orçamento Público, disponibilizado online, a pequena cidade rural de Uvalde, que afinal fica no Estado norte-americano do Texas, deposita na sua polícia 40% do seu argent.
Pensando na frequência destas tragédias de mass shooting nos Estados Unidos, o país com mais armamento per capita do Mundo, lembro-me de dois argumentos que ouço recorrentemente. Primeiro, o clássico direito “à defesa pessoal”. Melhor, as tragédias que se evitariam se todos estivéssemos armados – sim, este argumento existe. Depois, e ainda mais elaborado, como mais espingardas podem contribuir para a paz.
Só por má vontade é que não percebemos, todos, as vantagens de nos armarmos até aos dentes.
Um amigo, acérrimo defensor da Segunda Emenda, diz-me que pela lógica do pensamento (anti-arma) também devemos proibir os carros porque há acidentes rodoviários. É uma forma simpática de comparar a necessidade de nos deslocarmos com a vontade de vivermos entre saloons e botas de espora. E digo simpática para não ofender ninguém.
Curiosamente, a tecnologia evolui no sentido de evitar acidentes (no ar, terra e mar), e as leis, essas malvadas, contribuem para retirar da estrada os condutores que não estejam habilitados para tal.
Mas as armas? Qual é a necessidade de um civil andar armado?
Dizem-me que é uma forma de nos protegermos. Ora… a escola em Uvalde, onde os alunos podiam assistir às aulas com armas de fogo na cintura, não se conseguiu proteger. Nem sequer a cidade, que gasta 40% do seu orçamento na polícia, chegou para prevenir um ataque destes.
Porquê? Porque malucos existem em todo o lado, certo? Certo. Certíssimo. Mas se o acesso às armas não estiver ao nível do acesso ao lego, em princípio os danos devem ser menores.
A Constituição americana consagra a violência – é um facto, e por mais mortes choradas, não há poder político que se atravesse no caminho do fortíssimo lobby do armamento. O mesmo que prolifera internamente, e que, em cada década, necessita de um empurrão “em busca da paz” para exportar o seu produto.
Quem não se lembra do súbito interesse em defender a democracia e a liberdade no Kuwait, nos idos de 90? Democracia num sítio sem eleições é sempre um dos meus jargões preferidos. Ou as intervenções na Sérvia, Síria, Iraque, Afeganistão ou Líbia?
Uma receita tantas e tantas vezes repetida.
Começa com um povo sofredor dominado por um tirano. Segue-se o armamento dos rebeldes. Mais tarde, aparece a cavalaria, que parte aquilo tudo. No fim, escolhe-se um novo presidente, e chamam-se os Joes que tomam conta da reconstrução do quintal. É sempre a lucrar, da primeira bala ao último bloco de cimento. Como brinde, há ainda o facto de, normal e curiosamente, os povos sofredores adormecerem à sombra de poços de petróleo.
No caminho para o Kuwait e Iraque, por exemplo, as tropas fizeram escala na Palestina, mas não encontraram povo algum a precisar de ajuda. Passam despercebidos, de facto. Quem nunca esteve 70 anos sem ver as notícias, que atire a primeira pedra.
Da escola no Texas para o Donbass, o negócio segue a bom ritmo. A Ucrânia fornece a carne, os Estados Unidos as armas. Os russos oferecem a possibilidade de se procurar um mundo melhor, e a União Europeia, entre material velho de guerra, disponibiliza também um rombo nos seus orçamentos, um aumento do custo de vida para os seus cidadãos e uma factura mais alta com a energia comprada no outro lado do Atlântico.
Dou voltas e mais voltas à cabeça e não vejo ninguém no continente europeu que beneficie com a continuação da guerra na Ucrânia. Ninguém. Absolutamente ninguém.
Mas não consigo deixar de pensar que, entre Texas e Kiev, as desgraças humanas trazem lucro uma e outra vez aos mesmos de sempre.
E para que não fiquem dúvidas a que me refiro, serei claro com as palavras.
Putin é o maior responsável do início desta guerra e o primeiro a ter que ir parar a Haia. Não é, contudo, no dia de hoje, o único interessado na sua continuação. Os Estados Unidos já assumiram que pretendem desgastar a Rússia, e, como tal, o seu interesse tornou-se oficial. Por outro lado, não precisam de nos dizer que as exportações aumentaram que, em princípio, conseguimos fazer as contas sozinhos.
Voltarei, porventura ou má-ventura dos leitores, ao tema em próximo artigo, com os números da nova dupla de marretas: Rogeiro e Milhazes.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Começou este mês. Recebo no dia 1 de Maio, o primeiro comunicado de imprensa da Direcção-Geral da Saúde (DGS) sobre os casos positivos da “varíola dos macacos” – ou monkeypox – uma doença endémica em certas regiões do continente africano, mas rara na Europa. A doença, sabe-se, é de difícil transmissão e, por regra benigna. Está longe de ser um problema premente de saúde pública.
Porém, a DGS – provavelmente já para testar a nossa participação no projecto-piloto da Organização de Saúde no âmbito do Universal Health and Preparedness Review (UHPR) – tem estado a transformar este evento numa operação de criação de alarme, alimentando a imprensa com “actualizações” diárias. O objectivo é claro: fornecer “combustível” para criar pânico.
Só esta semana, a DGS enviou para a imprensa cinco comunicados sobre o monkeypox.
Sobre outro qualquer assunto de Saúde Pública, nada.
Nada sobre as consequências dos atrasos nos rastreios de cancros.
Nada sobre os ataques cardíacos.
Nada sobre os casos de AVC.
Nada sobre a tuberculose.
Nada sobre as infecções do aparelho respiratório não-covid e, muito menos, sobre uma infindável quantidade de doenças infecciosas e parasitárias com letalidade superior à causada pelo SARS-CoV-2.
Nada sobre os doentes que não conseguem ter médico de família.
Nada sobre o facto de não se conseguir já marcações online de consultas.
Nada mais. Deve chegar hoje ainda, ao final da tarde, um novo update sobre a covid-19, mas de resto, esta semana só saiu monkeypox do gabinete de imprensa da senhora directora-geral Graça Freitas.
E o que são esses comunicados sobre o monkeypox?
Bem, o de segunda-feira passada dizia que havia 37 casos, mais 14 do que três dias antes.
O de terça-feira apontava 39 casos, mais 2 do que no dia anterior.
Graça Freitas, directora-geral da Saúde.
Quarta-feira seguia nos 49 casos, mais 10 do que no dia anterior.
Quinta-feira lá estávamos nos 58 casos, mais 9 do que no dia anterior.
E, por fim, hoje, 74 casos, mais 16 do que no dia anterior.
Tudo isto, assim, para uma doença que não matou sequer alguém. Em média, garanto-vos, há mais casos detectados de tuberculose, que felizmente é doença bem mais rara do que no passado, mas ainda bastante mortal.
Enquanto andamos nisto, e após um excedente de mortalidade de cerca de 20% nos últimos dois anos, a doutora Graça Freitas, mais a doutora Marta Temido, e mais ainda o doutor António Costa, nada dizem sobre a actual situação de Saúde Pública em Portugal. Em Maio (até ao dia 25), a mortalidade por todas as causas está em níveis absurdos: 14% acima do período homólogo de 2020-2021 e 18% acima da média do período homólogo dos cinco anos anteriores à pandemia (2015-2019).
Sobre isto nem um piu se ouve da DGS ou do Ministério da Saúde ou do Governo. E da imprensa mainstream, que anda há muito anestesiada.
Como já não têm cara para culpar a pandemia – afinal como podemos estar a falhar se “nós já ganhámos a este vírus”, como nos afiançou o putativo candidato a Belém, o almirante Gouveia e Melo, em Setembro passado –, inventam agora uma manobra de diversão.
Entretêm-nos com “macacadas”, enquanto a “casa arde”.
Durante o “Vietname benfiquista”, um massacre ocorrido entre 1995 e 2003, perante mais um lastimável espectáculo no velhinho Estádio da luz, um sofredor na fila da frente dizia: “a culpa até nem é do Manel Zé, nem é do Manel Zé!”.
O Anel, aquele que era Terceiro – e, por vezes, nem nesse lugar se ficou –, nunca falhou, concordava em surdina: que mais poderia fazer o pobre Manel Zé com Akwá, King, Marcelo, Paredão, Tahar e Pringle? De modo que nós escolhemos sofrer, e ele, o Manel Zé, começou a caminhada que o levaria a Faraó, aos ombros dos Shikabalas desta vida.
De Manel Zé a Carlos Moedas vai um saltinho quase imperceptível. Como diria outro poeta da nossa praça, “andarei por aí”, e, como ele, resolvi eu ver o que traria à mais bela cidade portuguesa o nosso Charles Coins.
Escrevi sobre isso, na altura devida, mas lembro-me, recorrendo à minha péssima memória, que Carlitos Plata tinha dois grandes trunfos eleitorais. Primeiro: informou o Mundo que estava habituado a levantar-se para trabalhar todos os dias e chegar a horas ao escritório, procurando, desta forma, dizer com um vocabulário mais elaborado que “não era político”. Segundo: talvez de forma menos original, mas consideravelmente mais estúpido, propunha voltar a povoar a cidade com carros.
Naquilo que foi essencialmente um debate de totós, Medina e Moedas mostraram que era mais o que os unia do que os separava. Contudo, nesta história da “cidade verde”, Medina era consideravelmente mais próximo do século actual.
Enquanto o novo Ronaldo das Finanças queria mais gente a pedalar, Charles Monnaie tinha ideias mirabolantes sobre como encher Lisboa de parques de estacionamento, na cintura da cidade. Esperava assim que as pessoas se aventurassem no caos dos transportes públicos. Ao mesmo tempo anunciava a abertura de mais avenidas, a custo das ciclovias, reduzindo o espaço para os lisboetas que já se deslocavam de bicicleta, e contribuíam, de facto, para uma redução do trânsito.
Existem dois tipos de pessoas que acham que uma capital europeia não deve ter bicicletas: aquelas não conhecem nenhuma, e aqueloutros que só conhecem Lisboa.
Estávamos aos poucos a querer ser uma Berlim do Sul – sem aquela coisa chata dos muros –, mas felizmente o Karl Mint deu ouvidos aos gordos (isto conta como body shaming?), e voltamos ao nosso lugar. De atraso civilizacional, de mais poluição, de mais tempo desperdiçado, de menor qualidade de vida. Mas aquele onde nos sentimos confortáveis, honra nos seja feita.
Pensar que mais carros em Lisboa ajudam na melhoria das deslocações é um pouco como acreditar que mais sexo oral pode combater o mau hálito.
Enquanto toda a Europa, de norte a sul, de este a oeste, procura reduzir o trânsito automóvel nos centros urbanos, temos a capital portuguesa a apostar em mais carros como forma de desenvolvimento.
Eu já nem falo nos habituais países escandinavos, ilhas britânicas ou centro da Europa onde a bicicleta é um meio de transporte de excelência.
Digo apenas para irem aqui ao lado, de avião ou de carro, já que comboio também não existe, e vejam o que se faz nas principais cidades espanholas. Como é que é possível gastarmos rios de dinheiro nas autarquias a dar um passo para a frente e, no mandato seguinte, dois para trás?
Tal como nos idos do Manel Zé, a culpa agora também não é do Carlitos dos Popós. É vossa, que votaram nele, mesmo sabendo que o programa eleitoral consistia em fazer Lisboa voltar aos tempos do betão.
Aproveitem, pois, a viagem, e não se esqueçam: apertem os cintos. Quando quiserem ver o Primeiro Mundo, esqueçam o Uber, chamem antes a TAP.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Miguel Guimarães, circunstancial presidente de uma associação profissional denominada Ordem dos Médicos, veio ontem escrever no diário Correio da Manhã um artigo de opinião intitulado “6ª vaga”. Não consta que Maria do Céu Machado, presidente do Conselho Disciplinar Sul na Ordem dos Médicos – investida de inquisidora-mor dos seus colegas que, desde 2020, “mijam fora do penico” da doutrina de discurso único –, venha questionar o seu amigo urologista sobre os palpites ali esparramados.
É pena; até porque o bastonário não opinou; andou a fazer descarado “lobby” a favor de produtos farmacêuticos. Não andou a dar a recomendações de médico; andou sim, com toda a ardileza de um delegado de propaganda médica (mas munido do bastão de líder máximo dos médicos), a pressionar o Infarmed e o Estado português para se comprar fármacos caros e de custo-benefício mais que duvidoso – sobretudo se compararmos com a eficácia de outras medidas fulcrais, como seja a de haver médico de família para mais de um milhão de portugueses que não o têm.
Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos.
Escreveu, portanto, Miguel Guimarães que “está a acontecer o expectável: o alívio das medidas contra a pandemia, nomeadamente a eliminação do uso obrigatório de máscara, tem levado ao aumento de casos”.
Esta lógica bacoca – que, aliás, foi o alimento da “Narrativa Única”, e unificadora, por pressão do senhor Guimarães – devia ser automaticamente criticada e censurada pelo Conselho Disciplinar do Sul da Ordem dos Médicos por não-científica. O senhor doutor Guimarães deveria, sim, divulgar todos os pareceres dos diversos Colégios da Especialidade, em vez de apenas divulgar os que lhe interessam e armar-se em dono da Verdade Médica. Aqueles que ele quer esconder é que são científicos; não as suas “opiniões” comprometidas, e comprometedoras para uma profissão (ainda) respeitável.
Vamos ser claros. Não existe sexta vaga coisíssima nenhuma em Portugal – na verdade, ao longo da pandemia, tivemos uma única onda digna desse nome (no Inverno de 2020-2021, cf. imagem) –; tudo o resto que se anunciam como vagas são ficção, foram “ondinhas”. Basta olhar para os gráficos.
Mortalidade atribuída à covid-19 em Portugal desde 2020 até 24 de Maio de 2022. Fonte: Our World in Data.
Por outro lado, a defesa de uma relação “máscaras, logo menos casos” não está consubstanciada na realidade nem na Ciência. Em finais de Janeiro deste ano, na época da “loucura dos testes” – onde se despendeu milhões de euros em testes por dia, quando a letalidade da covid-19 já equivalia à dos surtos gripais –, chegámos a ultrapassar os 60 mil casos positivos em 24 horas.
E isto numa altura em que havia máscaras obrigatórias em todos os espaços fechados e impôs-se a discriminação dos não-vacinados. Por exemplo, eu, que tinha valores de imunidade (IgG) muita acima do valor mínimo (mais de 400 BAU/ml em testes serológicos realizados em Dezembro do ano passado e Março deste ano), não podia sequer entrar num restaurante ou ir a um espectáculo.
Na verdade, alguém com dois pingos de inteligência (mas necessariamente sem ligações à “indústria da pandemia”), deve sim questionar-se sobre as razões de ainda subsistir tanto burburinho em redor de uma doença (covid-19) que já nada tem a ver com aqueloutra com o mesmo nome (da qual até eu padeci há um ano), e que por cá andou antes da dominância da variante Omicron (que até Bill Gates, num momento de lucidez, veio confessar que fez mais contra a pandemia do que a própria vacina).
Como se compreende a retomada do pânico sobre uma doença que, por exemplo, em Janeiro do ano passado teve uma taxa de letalidade em Portugal de 1,90%, e que em Janeiro deste ano já só registou uma letalidade de 0,08%, compatível com um surto gripal? A covid-19 de 2021 era quase 24 vezes mais perigosa do que é a covid-19 de 2022.
Pode o senhor doutor Guimarães dizer que as vacinas são as (únicas) responsáveis por esta situação. Já dou tal de barato. Mas, vendendo-se bem as vacinas, não pode é, através de uma artificial promoção do pânico, baseando-se somente em casos positivos, vir promover ainda mais as ditas vacinas, mas à boleia, como quem não quer a “coisa”, opinar que se deve “garantir acesso às terapêuticas com antivirais e anticorpos monoclonais neutralizantes, já disponíveis em outros países”.
Na verdade, o que ele diz é muito simples: o Infarmed deve autorizar a comercialização e o Estado deve comprar. O dinheiro não é dele, mas as vantagens de “estoirar” dinheiro público (escasso para a solidez do Serviço Nacional de Saúde) parecem ser.
Não sejamos ingénuos – e eu não sou, pelo menos, neste capítulo.
Não existem, neste momento, quaisquer sinais que justifiquem a aposta num fármaco que custa 500 euros por cada tratamento completo de um doente vulnerável que já estará muito provavelmente vacinado com três e quatro doses, e numa fase inicial de sintomas (leves ou moderados). Mais ainda sabendo-se que esses antivirais são de eficácia ainda longe de ser evidente.
E mais ainda quando estamos, a nível mundial, numa evidentíssima e claríssima fase endémica da covid-19. Anteontem, a mortalidade atribuída ao SARS-CoV-2 em todo o Mundo situou-se em 1.590 óbitos (média móvel de 7 dias), o valor mais baixo desde 23 de Março de 2020 – ou seja, o mês da chegada em força da pandemia ao Hemisfério Norte.
Mortalidade atribuída à covid-19 no Mundo desde 2020 até 24 de Maio de 2022. Fonte: Our World in Data.
A queda da mortalidade da covid-19 é indesmentível. Desde o início do presente ano, a descida da mortalidade tem sido contínua: em 9 de Fevereiro atingiu um máximo de 10.918 óbitos. Ou seja, caiu 85% em três meses! Sem descanso.
Porém, apesar disso, o senhor doutor Guimarães confirmou, nesta sua “opinião” no Correio da Manhã, a existência clara de uma medonha e diria mesmo criminosa operação de promoção dos antivirais contra a covid-19, sobretudo do Paxlovid da Pfizer, sobre o qual já aqui escrevi a pretexto de uma suposta notícia da Visão Saúde – na verdade, a mais pura peça de jornalismo ao serviço das farmacêuticas que já vi, e que contou com a participação despudorada de um marketeer travestido de médico, o pneumologista Filipe Froes.
O dito Filipe Froes não satisfeito em servir de “porta-voz” do Paxlovid naquela peça da Visão Saúde, promovendo explicitamente, um fármaco – algo que as regras deontológicas proíbem, e ainda mais o decoro, sabendo-se das suas ligações à Pfizer e mais de duas dezenas de farmacêuticas –, veio no passado fim de semana perorar também na CNN Portugal a favor, hélas, dos antivirais.
Disse ele, a partir do minuto 9:30, com aquela sua desavergonhada cara de quem recebeu já mais de 400 mil euros de farmacêuticas: “(…) e, finalmente, nós temos de acelerar, para o nosso país, o acesso a dois fármacos que já têm muito impacte nos outros países em termos de controlo da doença, que são os novos antivíricos”.
Filipe Froes
Ora, esse dois “novos antivíricos” são, obviamente, o Paxlovid (nirmatrelvir e o ritnonavir), da Pfizer – e o Lagevrio (molnupiravir), da Merck Sharpe & Dohme (MSD).
Nem de propósito – oh, coincidências –, a Pfizer e a MSD são as duas farmacêuticas que mais dinheiro encaminharam para a conta bancária do senhor doutor Froes: entre 2013 e 2021, a primeira transferiu 134.574 euros e a segunda 85.522 euros. Isto atendendo ao que foi declarado no Portal da Transparência e Publicidade, que como sabemos é feito voluntariamente, sem introdução de comprovativos e sem qualquer auditoria posterior.
Receitas de Filipe Froes das farmacêuticas entre 2013 e 2021. Fonte: Infarmed.
Por tudo isto, pelos sinais de “fim de festa da pandemia”, percebe-se a acção deste duo de marketeers de alto gabarito, destacados ou contratados, para meter todas as fichas – leia-se, promover a mensagem de uma falsa necessidade – para pressionar o Governo a comprar aqueles antivirais.
E então, se os marketeers, como os Guimarães & Froes, Lda., forem bem-sucedidos, estarão depois dispostos a garantir-nos que os tais fármacos da Pfizer e da MSD são mesmo miraculosos.
E fá-lo-ão com a mesma convicção do tipo que, assobiando estridentemente pelas ruas, afiança que serve para afugentar tubarões, sendo que a prova da eficácia do seu método é não se verem aí tubarões.
Tenho pensado em fazer uma colectânea das melhores frases sobre a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mais não seja para não nos perdermos daqui a uns anos.
Devia ter feito o mesmo durante o confinamento – e agora podia mostrar, aos que reclamam da carga de impostos, que o “fica em casa, vai ficar tudo bem” tinha um custo, e que o endividamento do país é uma fatura semelhante à disfunção eréctil: cedo ou tarde, chega.
As duas frases que mais aprecio neste momento são: 1) “como é que em pleno século XXI ainda temos guerras?”; e 2) “não se pode comparar a Ucrânia com a Palestina. No primeiro caso há um invasor, e no segundo existe um conflito onde os dois lados se bombardeiam mutuamente”.
A primeira frase não é grave. Reflecte, essencialmente, o nível de conhecimento do Mundo que nos rodeia. Em resumo, se algo não aparece no Jornal da Noite, não existe.
O mapa que decidi incluir aqui, retirado do Armed Conflict Location & Event Data Project (ACLED), mostra as zonas do Mundo onde existem conflitos armados. Hoje. Agora. Neste minuto. Enquanto nós discutimos cada opinião do PCP num conflito para o qual não contribuiu, pessoas morrem nas regiões marcadas a azul do globo. Bem sei que estão todos fora da Europa, mas, ainda assim, estão no mesmo planeta – e, acreditem ou não, naqueles territórios também é século XXI.
A segunda frase é um pouco mais grave, porque foi dita por Adolfo Mesquita Nunes. Para o camarada Adolfo (olha… Adolfo), uma coisa é invadir e anexar; outra, completamente diferente, é invadir e anexar.
O nosso camarada Adolfo diz que ser invadido e receber armamento da NATO (mais moderno que o do invasor) para se defender é diferente de empurrar dois milhões de pessoas para uma prisão a céu aberto de 60 quilómetros e bombardeá-los dia e noite sem que tenham escapatória ou possibilidade de defesa. Segundo Adolfo, no segundo caso estamos perante um “conflito” equilibrado.
Quem se refere à ocupação da Palestina como um conflito entre duas partes, renega o invasor e a óbvia desproporção das partes. De um lado, temos o apoio dos Estados Unidos e o silêncio da União Europeia, e ainda todo o dinheiro do Mundo e um dos melhores exércitos; do outro, uma necessidade de sobrevivência que, em último cenário, leva a ataques a carros de combate com pedras.
Na verdade, o “conflito israelo-árabe” é a “operação especial” que tanto nos tem indignado, mas se tem repetido durante 70 anos.
O Adolfo faz parte daquele grupo de homens que, perante o conflito na Ucrânia, preferiu ignorar todos os demais a que nunca ligámos, e assumiu uma vertente bélica patente a cada intervenção: uma espécie de “vamos para cima deles” com o couro alheio.
Para pessoas como o Adolfo, é preciso mais NATO, mais armas, mais bombas, mais tudo e um par de botas, para acalmar o urso russo e metê-lo no seu sítio. É preciso levar tudo até ao limite, ver até quando se mantém aquele botão do nuclear em estado virgem.
O Adolfo é a Ana Gomes na versão masculina: toca de carregar que a guerra não pode esperar.
Mas Adolfo, camarada Adolfo, toda essa coragem nos estúdios de televisão, toda essa verve no “combate político”, como alguns inúteis gostam de lhe chamar, aqui e ali conduz mesmo a combates a sério.
Com os outros meninos e com dói-dói. É que a Ana Gomes, a primeira-ministra da Suécia, Magdalena Andersson, e as demais senhoras que gritam pelo senhor da guerra, não vão lá bater com as costas; já tu, e já agora, eu: vamos.
Portanto, a minha sugestão para ti, se me permites, é simples. Deixa-te de merdas. Queres ser forcado, tudo bem: levanta essa guelra nas festas do ex-CDS, que contigo se juntaram ao sonho liberal. Mas deixa de dizer asneiras e, acima de tudo, de berrar por um quadro nas televisões que, se se cumprisse, nos arrastaria a todos para um conflito mundial.
Uma invasão é uma invasão. Ponto final, Adolfo. Esta ou outra qualquer. Faz parte da História das nações, infelizmente. E quanto a isso, não sei bem até onde queres levar essa tua coragem dos estúdios de TV, mas, pessoalmente, tenho um filho a quem preciso explicar como se pega numa raquete e uma filha que precisa da minha ajuda na Matemática.
A ti, e aos belicistas de sofá, desejo ardentemente que vão para a frente, com todas as armas sonhadas, ferir o grande urso e escrever epopeias de glória. Força camarada, não deixes nada por fazer.
Ah… e já agora, outra coisa. Quando vier esta nova fatura do apoio à Ucrânia, dos 2% para a indústria militar, dos problemas com habitação, da inflação, racionamento de comida, perda no poder de compra e taxas de juros incomportáveis, serás um dos candidatos liberais a dizer que o socialismo não funciona?
Diz aí: é para um amigo.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Há dias, em mais um Conselho de Ministros que faz anúncios recebidos acriticamente pela imprensa mainstream, foi-nos dado a conhecer o anteprojecto de Lei de Protecção em Emergência de Saúde Pública. Disseram-nos que tal documento resultou “de um aprofundado estudo por uma Comissão da mais elevada competência técnica, nas áreas jurídica e de saúde pública”. Protérvia não falta ao Governo.
E pensávamos que já tínhamos “visto” tudo, e de tudo.
Referimo-nos, naturalmente, àquilo que sucedeu desde Março de 2020: o maior e mais impensável ataque ao Estado de Direito Democrático e à Constituição da República Portuguesa, perpetrado precisamente pelos titulares dos órgãos que a juraram defender; a saber, Presidente da República, Primeiro Ministro e governo, com o beneplácito régio da Assembleia da República.
Por conseguinte, não satisfeitos, estamos agora na iminência de tornar a distopia global, nascida a partir de uma “pandemia”, numa verdadeira “bomba atómica” contra o Estado de Direito Democrático, o que representará as exéquias sem glória nem pudor da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Dizem-nos que o malfadado – e quase arriscaríamos a acrescentar já malparido – anteprojecto contou com a participação dos egrégios, excelsos e ilustres juiz conselheiro jubilado António Henriques Gaspar, procurador-geral-adjunto João Possante, e doutor Ravi Afonso Pereira, em representação da Provedoria de Justiça. Assim lança o regime uns “ases” em forma de “duques” para nos fazer cenas tristes: uma berrante e aberrante esquiço de lei que nem digna seria numa certa república popular encravada entre a China e a Coreia do Sul.
Na nota justificativa desta “pérola” legislativa, temos este “penedo”: “procurou-se ainda dotar as disposições legais de uma adequada densidade, pois em caso algum pode a declaração de uma emergência de saúde pública, mesmo na sua fase crítica, traduzir-se numa carte blanche para o poder executivo adoptar quaisquer outras medidas que na lei não estejam expressamente previstas ou, pelo menos, nela não tenham fundamento.”
Nem queremos imaginar o que seria se estas sumidades não se apercebessem do risco de conceder uma carte blanche ao Governo…
Falemos a sério: efectivamente, o que o anteprojecto manifestamente mostra é ser mesmo uma carta em branco, que pode ser usada da mesma forma nas mãos de um democrata ou de um tirano. Com a única diferença de que se um tirano a usar continuará a ser um tirano, e se um democrata a usar se tornará um tirano. Mas só na primeira, porque quererá usá-la sucessivas vezes.
Outra nota relevante que consta do documento é de que as medidas usadas durante a covid-19 eram necessárias. Continuamos sem questionar ou aquilatar os seus resultados; assim, surge esta outra “peça de filigrana”: “Desde cedo, logo em Março de 2020, que se iniciou um debate sobre a adequação do quadro jurídico perante uma tão grave crise de saúde pública, designadamente questionando-se até que ponto algumas das medidas tidas por necessárias para um eficaz combate à pandemia teriam ou não cobertura ao abrigo da legislação em vigor.”
Andámos, certamente, distraídos. Não vimos debate, apenas améns, e resoluções de Conselho de Ministros umas atrás das outras, todos assobiando como se tivessem respaldo constitucional.
Na verdade, importa dizer que estas “medidas tidas por necessárias” não só não foram eficazes como também nem eram necessárias, como também se revelaram catastróficas; basta comparar com o país que, por exemplo, nunca as implementou: a Suécia.
Note-se isso no confronto da mortalidade total – porque, surpresa talvez para os defensores das “medidas tidas por necessárias”, morre-se de muitas outras doenças – entre diversos países latinos e escandinavos durante os anos de 2020 e 2021. Por exemplo, no país que implementou as “medidas tidas por necessárias” – leia-se, Portugal – teve na faixa etária entre os 20 e 65 anos um rácio de mortalidade 70% superior à de certo país que não quis, malvado, implementar as “medidas tidas por necessárias” – leia-se, Suécia.
Óbitos totais por milhão de habitantes no grupo etário 20-65 anos em 2020 e 2021. Fonte: Eurostat.
Similar constatação observamos no grupo etário com idade igual ou superior a 65 anos. Neste caso, o país que tomou todas as “medidas tidas por necessárias” – leia-se, restrições de visitas a lares, “fraldas faciais”, isolamentos e lockdowns, etc., etc., etc. – teve 16% mais mortes de idosos do que certo país onde um rei se lamentou com um “falhámos; temos um grande número de mortos e isso é terrível”, porque, enfim, não foram implementadas as “medidas tidas por necessárias”. É certo que o nosso presidente da República não disse “acertámos”, mas andou lá perto em elogios à eficácia das nossas “medidas tidas por necessárias”.
Outro facto que nos deixa perplexos é a mudança de paradigma; desde sempre, as epidemias, tal como outras catástrofes, eram tidas por eventos fortuitos, imprevisíveis e naturais. Mas agora tudo mudou: para além do senhor Gates – que até já anunciou a próxima pandemia, mas já está a receber royalties por nos ajudar a prevenir a “coisa”–, agora, arriscamo-nos a ver o infame anteprojecto tornar-se lei, podemos vir a viver em permanentes emergências sanitárias.
Óbitos totais por milhão de habitantes no grupo etário dos maiores de 65 anos em 2020 e 2021. Fonte: Eurostat.
Basta tão só que o Governo de ocasião as decrete se e quando assim o entender. Uma simples gripe, uma anunciada onda de calor, uma previsível vaga de frio, uma suposta carta de um bioterrorista, tudo poderá ser uma justificação bastante para uma tirania para o bem da nossa saúde, para que seja possível que o Governo possa implementar, aí está, as “medidas tidas por necessárias”. Assim reza, para mal dos nossos pecados, o artigo 2º do malfadado anteprojecto.
Eis-nos, por conseguinte, ao “estado a que chegámos”: um Governo de uma república dita democrática – mas em que a capital não se chama Kinshasa – passa a ser nosso dono e senhor. Pode declarar uma emergência, sem mais, apenas por que lhe apetece; não por haver meia dúzia de critérios pré-definidos e objectivos – vá lá, um! –, seja quantitativo ou qualitativo, emitido por uma entidade verdadeiramente independente.
Ora, o anteprojecto não estabelece qualquer critério e depois sustenta-se numa comissão científica ad hoc, criada à posteriori, escolhida directamente pelo poder político, sendo que a maioria (seis em nove membros) é nomeada pela voz e caneta do primeiro-ministro! E define as sinecuras.
Mas vamos a detalhes do infame documento, e sobre os direitos que tem ganas de atropelar.
Direito à liberdade
Segundo o artigo 9º, alínea 1, “A autoridade de saúde pode determinar o isolamento no domicílio, em local adequado de alojamento, estabelecimento de saúde ou estrutura de acolhimento e apoio por um período que não ultrapasse 14 dias, com a finalidade de afastar o risco para a saúde pública, de pessoa afectada por doença que fundamenta a declaração da emergência de saúde pública”.
Ficamos a saber que, em lugar de um juiz, basta um mero esbirro, na solidão de um gabinete (ou, de pantufas em teletrabalho), para decretar a prisão domiciliária de um qualquer servo da gleba, não só no seu domicílio, mas também em campos de concentração, eufemisticamente denominados por “estrutura de acolhimento e apoio”, e que serão, por certo, destinados aos impenitentes e relapsos.
Sejamos claros: o artigo 27º, alínea 2, da CRP – se é que ainda não foi revogada sem nos darmos conta – não permite a privação da liberdade sem controlo judicial: “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.” Mesmo as excepções que constam da alínea 3 do mesmo artigo não permitem que um funcionário administrativo possa privar alguém da sua liberdade.
E atenção: a “prisão” decretada pelo tal “senhor das pantufas” poderá não ficar pelos 14 dias. Segundo o nº 2 do artigo 30º, caso estejamos na fase crítica da emergência, “o isolamento pode ser sucessivamente renovado por períodos até 10 dias enquanto persistirem as condições de risco para a saúde pública.”, ou seja, a privação de liberdade é pelo tempo que as autoridades de saúde entendam. Se as autoridades considerarem que as “medidas tidas por necessárias” são mesmo necessárias por, vá lá, a vida toda, enfim, “azarito”. Podemos imaginar de que forma este instrumento poderá ser usado para calar vozes incómodas ou até abafar escândalos políticos.
A arbitrariedade não se fica por aqui: os critérios para determinar se a pessoa está afectada (ou infectada) pela doença ou outras maleitas ficam inteiramente nas mãos das autoridades de saúde. Até porque a emergência pode ser decretada pela simples iminência – ou seja, de algo que ainda não existe, que pode nunca vir a existir, mas que, como pode existir (porque o pode admite a possibilidade do “não pode”), para segurança de todos decreta-se a tal emergência e implementam-se as “medidas tidas por necessárias”, que obviamente incluirá ao enclausuramento domiciliário.
Recordemo-nos que, na recente crise sanitária, decretaram-se milhares e milhares de prisões domiciliárias, completamente anticonstitucionais, suportadas em teste de duvidosa fiabilidade, que, além de mais, nem sequer garantiam que a pessoa estava doente e que transmitia a infecção.
Sobre esta matéria, o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 11 de Novembro de 2020, afirmou taxativamente: “Por essa fiabilidade depender do número de ciclos que compõem o teste; Por essa fiabilidade depender da quantidade de carga viral presente… O que decorre destes estudos é simples – a eventual fiabilidade dos testes PCR realizados depende, desde logo, do limiar de ciclos de amplificação que os mesmos comportam, de tal modo que, até ao limite de 25 ciclos, a fiabilidade do teste será de cerca de 70%; se forem realizados 30 ciclos, o grau de fiabilidade desce para 20%; se se alcançarem os 35 ciclos, o grau de fiabilidade será de 3%.”.
Confrontemo-nos também com o comunicado do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) que, em Julho de 2021, desaconselhou o teste PCR, considerando-o incapaz de distinguir na perfeição o SARS-Cov 2 do vírus influenza (gripe comum).
Recordemo-nos também de um pedido de informações de um grupo de cidadãos ao Ministério da Saúde para que fosse disponibilizada a “publicação científica, revista por pares, relativamente ao teste RT-PCR como ferramenta de diagnóstico fiável para identificar a infecção por vírus SARS-CoV 2 em humanos”, que justificasse a adopção destes testes. A resposta foi simples: “ não possuía nenhum documento administrativo” a respeito.
Estes são os critérios científicos que esta gente utiliza para nos mandar para o cárcere: podemos ficar descansados!
Direito à integridade pessoal
Segundo a CRP, no seu artigo 25º, alínea 1, “A integridade moral e física das pessoas é inviolável”. O diagnóstico de uma doença não é uma ofensa à integridade física caso seja praticado por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, conforme o artigo 150º do Código Penal português (CPP): “As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.”; no entanto, carecem de consentimento, caso contrário, não podem ser realizadas, tal como nos indica o artigo 156ª do CPP, alínea 1: “As pessoas indicadas no artigo 150.º que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente são punidas com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
Aquilo que propõe o documento aberrante, no seu artigo 11º, é isto: “A autoridade de saúde pode determinar a sujeição a controlo laboratorial ou a outros meios não invasivos de diagnóstico que permitam a identificação das pessoas afectadas pela doença ou das cadeias de transmissão de agente infeccioso.” Nem é necessário o consentimento da pessoa, é simplesmente compulsivo e arbitrariamente decidido pelas autoridades!
Estes são os exactos métodos utilizados pela tirania chinesa, passando inclusive por cima dos tratados internacionais subscritos pelo Estado português, como o artigo 6º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, no seu nº 1, que convém saber, e ler em voz altissonante: “Qualquer intervenção médica de carácter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada. Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo”. Recordemo-nos que o artigo 8º da CRP diz-nos que os tratados internacionais subscritos pelo estado português vigoram no direito interno português.
Direito à identidade pessoal
Sabemos a ladainha do nº 1 do artigo 26º da CRP: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal…”. Porém, no artigo 12º do infame documento consta esta “prata de lei”: “O Governo pode determinar a obrigatoriedade do uso de equipamentos de protecção individual ou colectiva, que se revelem necessários como meio de contenção da doença, para o acesso, circulação ou permanência em determinados locais, inclusivamente em espaços públicos ou nas vias públicas.”
Enfim, querem obrigar-nos a usar fraldas faciais, uma e outras vezes mais, visando assim eliminar a nossa personalidade e criando uma atmosfera de terror e medo. Isto apesar de não existir qualquer evidência científica que as justifique, tal como indicado no documento da OMS de 1 de Dezembro de 2020, na sua página 10: “Actualmente são limitadas e variáveis as evidências científicas que corroboram a eficácia do uso de máscaras por pessoas saudáveis na comunidade com o intuito de prevenir a infecção por vírus respiratórios, incluindo o SARS-CoV-2.” É impressionante a permanente pressão para nos transformar numa autêntica manada sem individualidade.
Também podemos mencionar os 150 estudos científicos que provam a ineficácia das máscaras e do prejuízo que podem causar à saúde das pessoas. É insultuoso para a nossa inteligência denominá-las “equipamentos de protecção individual” como este documento o faz.
Direito a circular livremente
A possibilidade de circular livremente está inscrita nos Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 13º. Tem dois pontos, ditemos: “1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado; 2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.”
A nossa CRP confirma este direito no artigo 44º. Convém citar, porventura: “1. A todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional; 2. A todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar.”
Ora, e o que propõe o infame anteprojecto? No nº 1 do seu artigo 31º, dispara: “O Governo pode, por modo adequado e indispensável à prevenção, à redução e eliminação dos riscos de disseminação ou ao controlo da doença que determinou a declaração da emergência de saúde pública, estabelecer: a) Limitações ou interdição de circulação de pessoas ou de veículos; b) Interdição de deslocações ou viagens; c) Proibição de permanência na via pública sempre que não se verifiquem motivos justificados; d) Fixação de cercas sanitárias; e) Evacuação de pessoas que se encontrem em local de elevado risco iminente ou efectivo para a vida ou saúde.”
Ao abrigo de restrições à circulação, no mesmo artigo 13º, também nos podem colocar uma vez mais em prisão domiciliária – retirar-nos a liberdade é uma obsessão dos autores do documento –, conforme se observa no nº 2: “O Governo pode determinar a obrigação de permanência na habitação, salvo se existirem motivos que justifiquem a ausência, nomeadamente por razões de saúde, imperiosos motivos de natureza familiar, exigências de trabalho, para aquisição de bens essenciais, ou por outro motivo relevante”.
O tempo de prisão domiciliária é também mais uma vez estabelecido de acordo com os caprichos dos tiranos no poder, ou dos seus lacaios de pantufas, mas seguindo o nº 3 do mesmo artigo 13º -ou seja, aplica-se a tal carta branca a favor do Executivo, a tal que a nota justificativa dizia querer evitar a todo o custo!
Direito de reunião e manifestação
Também podemos ainda recordar, porque a CRP ainda existe, outros direitos que nos assistem, nomeadamente os estabelecidos nos nº 1 e 2 do artigo 45º: “1. Os cidadãos têm o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, mesmo em lugares abertos ao público, sem necessidade de qualquer autorização; 2. A todos os cidadãos é reconhecido o direito de manifestação”.
E então, o que propõe o infame documento? No seu nº 1 do artigo 13º, suspende-se este direito, assim desta simples forma: “De modo adequado e indispensável à redução e à eliminação do risco de disseminação de doença, o Governo pode estabelecer limitações de ajuntamentos de pessoas na via pública ou em lugar aberto ao público”.
Já estamos a ver o perigo que manifestações de “negacionistas” poderão constituir para a saúde pública; ou de sindicalistas, ou da oposição. Não há critério algum, apenas a total arbitrariedade, o poder infinito de eliminar as manifestações que se entendam “por desagradáveis”.
Direito a não ser discriminado
Sobre esta matéria, o nº 1 do artigo 26º da CRP acena-nos com direitos inalienáveis. Diz que qualquer cidadão tem “…protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. Mas isso é a CRP, um “papelucho” certamente sem importância perante um infame documento que nos quer salvar a vida, privando-nos de viver. No nº 1 do artigo 22º está prometido que “o Governo pode determinar, após parecer emitido pela Comissão Nacional de Protecção de Dados, a exigência de exibição de certificado ou teste, relativos a doença, agente infecioso ou a outro fenómeno que tenha fundamentado a declaração da emergência de saúde pública, para acesso a estabelecimentos, locais ou eventos, definindo as pessoas, as modalidades de habilitação e os serviços autorizados a verificar esses documentos”.
Todos sabemos que o certificado digital Covid nada certifica! Quem tomou vacina pode infectar e ser infectado; não protege ninguém a não ser, na melhor das hipóteses, a si próprio. Nem sequer é um certificado absoluto contra a morte, até porque os poros do papel em que é impresso são ainda maiores do que os das fraldas faciais. Os tratamentos genéticos experimentais contra a covid-19 nunca imunizaram as pessoas.
Recordemo-nos que jamais as pessoas foram discriminadas por tomarem ou não uma vacina contra a gripe, que, aliás, e muito bem, é recomendada pela DGS – sem qualquer coerção – a pessoas e grupos de risco.
Agora, ao arrepio da CRP, quer-se discriminar pessoas apenas por se recusarem a ser inoculadas com substâncias sobre as quais ainda não existem provas sólidas sobre os seus efeitos secundários a médio e longo prazo.
E mesmo que houvesse 100% de eficácia e 100% de segurança, por hipótese académica, nem a CRP nem o Código Penal português permitem que se discrimine qualquer pessoa, por qualquer motivo, de tomar uma decisão que não contrarie a sua vontade e autonomia sobre o seu corpo.
O corpo de qualquer pessoa não é pertença do Estado nem da sociedade – parece que muita gente se esqueceu destes sagrados direitos tão arduamente conquistados pelos nossos antepassados.
Mas o regime comunica todos os dias com crescente protérvia, menosprezando sistematicamente a inteligência das pessoas; o primeiro-ministro até nos diz para discutirmos este infame documento com serenidade! Ainda bem que o diz, porque a vontade é metê-lo já na trituradora.
Por outro lado, o nosso presidente – perito há mais de 40 anos em mexericos, tricas e conspirações – informa-nos que, por ele, o documento, pronto, “está bem”, mas, vá lá, faz-nos a vontade de comprar um selo, lamber a cola do sobrescrito e mandar o estafeta ao Palácio Ratton – leia-se, Tribunal Constitucional –, não haja por aí uns “chatos” – leia-se, cidadãos indignados por acharem que estavam numa democracia – que aborreçam o regime com processos judiciais. Enfim, bom, bom, para todos, incluindo o Professor Marcelo, era toda a gente comer e calar, sem liberdade.
O mais grave, é que este projecto-lei, a ser aprovado, será regulamentado em concreto por resoluções do conselho de ministros, que já são bem nossas conhecidas e pelas piores razões, ou seja, será o primeiro-ministro a decidir quem vai preso, por quanto tempo e para onde!?
Será o primeiro-ministro a decidir quais os estabelecimentos comerciais que encerrarão ao público e por quanto tempo!?
Será o primeiro-ministro quem decidirá quando cessa a emergência de saúde pública!?
Será o primeiro-ministro quem decidirá quantas pessoas poderão estar num restaurante, num centro comercial ou em qualquer outro lugar aberto ou mesmo… na via pública!?
Será o primeiro-ministro quem decidirá qual o cidadão que terá de exibir certificado ou teste para acesso a estabelecimentos, locais ou eventos, ou seja, decidirá quem poderá frequentar um cinema, um restaurante, um estádio de futebol, um ginásio ou talvez, quem sabe, frequentar uma praia!?
“Reflexão final”
A Lei nº 34/87, respeitante aos crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos, diz no seu artigo 9º que “o titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito se não tiver seguido.”
A tentativa de crime, como sabemos, costuma ser punida, mesmo se em menor grau.
Sendo assim, temos uma pergunta final: no decurso deste anteprojecto de lei e da sua “libertação” pelo Conselho de Ministros, estará já a PGR a instruir um processo-crime por tentativa de golpe de Estado?
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
João Pedro César Machado é advogado
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O meu filho está naquela fase em que acha as meninas, todas, muito chatas. Não lhe vou dizer ainda que essa fase só dura mais 90 anos, para não estragar a surpresa, mas não resisti a perguntar quem escolheria num hipotético casamento: uma italiana, uma portuguesa ou uma sueca.
A “casca de banana” estava nas duas representantes da Europa que sabe comer. Tenho a secreta esperança de que o amor o empurre para sul, e eu possa vê-lo sem andar de avião ou abraçar os netos sem vestir dois casacos.
Ele foi pragmático: “Quem escolhia? A mais gira pai, qual é a dúvida?”. Nacionalismos completamente descartados, o que é sempre bom, e os meus intentos deixados ao acaso da probabilidade do encanto.
Resta-me esperar que a mais gira seja morena. Caso a Matemática me engate os planos, e tenha mesmo que usar gorro em cada visita à Maria Johanna e ao Johan Franco, contar-lhes-ei os dias de hoje, antes que os aprendam na escola.
Os meus netos, nessa escola sueca, aprenderão que ao fim de 200 anos de neutralidade, com apenas 54% de apoio popular, o Governo sueco decidiu aderir à NATO. Ser-lhes-á explicado, em princípio, que a invasão russa da Ucrânia empurrou a Suécia para os braços da NATO. Mas ninguém lhe dirá que as acções da NATO, o alargamento para Leste durante 20 anos e as promessas feitas ao governo de Zelensky, deram toda a narrativa que Putin precisava para formar uma história que justificasse o seu sonho imperial.
Vão aprender também uma ou outra coisa sobre aquilo a que se chama a realpolitik. A negociata entre Estados com impacto nas vidas reais de quem nada decide.
Por exemplo, que menos de uma semana depois do secretário-geral da NATO ter dito que suecos e finlandeses seriam recebidos de braços abertos, estes formalizaram uma candidatura, expondo-se ao regime de Putin e esperando esse abraço fraterno.
Ao invés disso, um dos membros da Aliança (Turquia), contrariou as palavras do seu secretário-geral e votou contra a entrada de Suécia e Finlândia. Segundo o líder turco, Recep Erdogan, estes países escandinavos são paradeiro e abrigo de terroristas – e por isso, há que fechar a porta. Esta é a narrativa oficial.
Traduzido para linguagem corrente, o que quer verdadeiramente a Turquia? Erdogan quer “via verde” para esmagar os separatistas curdos do PKK, passando pela extradição daqueles que se encontram em solo sueco e finlandês. Um filme já visto.
O Ocidente prepara-se para deixar os curdos à sua sorte, uma vez mais. Pergunto-me: quem é que ainda não traiu os curdos? Usados sempre como pontas da lança a cada invasão no Médio Oriente em troca de promessas sobre um território que nunca foi reconhecido.
Observo, com alguma curiosidade, a forma como serão comunicadas ao Mundo as negociações de Ancara. Até onde cederão Suécia e Finlândia? De que forma será desvalorizada, novamente, uma vida fora do espaço europeu?
Tudo o que vejo em redor é uma escalada na violência, uma corrida ao armamento e uma repetição ad nauseam do argumento “temos que nos proteger”?
Proteger de quê? Não ouvimos diariamente que a Rússia está a perder esta guerra? Que encontrou na Ucrânia o seu Vietname?
Se é assim, se isso é verdade, como é que nos protegemos continuando a meter gasolina num fogo cuja extensão não podemos controlar? Há semanas que ninguém se refere a conversações de paz. Começo a acreditar que o Ocidente quer mesmo levar esta guerra até ao último ucraniano.
Espero que na escola, quando aprenderem este período da história, os meus netos não tenham que ouvir também os relatos sobre a III Grande Guerra que se seguiu.
Pensando bem, se isso acontecer, talvez os meus netos nem cheguem a nascer aqui.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Será difícil, nos tempos vindouros, encontrar peça jornalística mais infame. Ademais, complementada pelas balelas do mais mercantilista “vendedor da banha da cobra do país” que ostenta (ainda) uma cédula passada pela Ordem dos Médicos.
Este é um sinal dos tempos modernos, do Novo Normal: do conluio entre uma imprensa sem escrúpulos e vergonhosa, alicerçada em médicos que mandaram Hipócrates à merda e que se vendem por 29 dinheiros, porque até se comercializam abaixo da cotação de um Judas.
Hoje, pelas 10h15 horas, na edição online da revisa Visão Saúde, a jornalista Mariana Almeida Nogueira – que, pelo seu número elevado de carteira profissional (CP 8227), não deve ter tido ainda tempo de ler o Código Deontológico – escreve o mais descarado artigo de propaganda de marketing de que tenho memória. Ou melhor dizendo, publicidade pura e dura. E tenho (ainda) muito boa memória.
Para sustentar esta peça: as opiniões de um vendedor encartado pela Ordem dos Médicos, e não investigado a preceito pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS): o pneumologista Filipe Froes.
Qual o tema?
Notícia de hoje na Visão Saúde, assinada pela jornalista Mariana Almeida Nogueira.
Já viram na imagem em cima: Paxlovid, um antiviral contra a covid-19 da farmacêutica Pfizer, apresentado logo no título como o “antiviral campeão de vendas nos EUA”, e que, acrescenta-se ainda, “pode [sempre a velha questão do pode, que pode significar o contrário, ou seja, pode não] pôr a salvo os doentes de risco”.
O lead não seria melhor escrito por uma agência de comunicação; e mal não lhe ficaria.
Mas a imprensa, e um(a) jornalista não pode ser uma agência de comunicação.
O texto da Visão Saúde, através de uma (suposta) jornalista encartada, não pode ter um lead assim: “E se existisse um antiviral capaz de complementar a ação da vacina e de reduzir a probabilidade de estes doentes de risco irem parar ao hospital, terem doença grave e morrerem? E existe mesmo. Chama-se Paxlovid, mas ainda não está disponível no nosso País, nem se sabe quando estará”.
Se fosse a Cristina Ferreira ou o Manuel Luís Goucha a dizer isto do Calcitrin, a gente até aguentava. Mas isto não é “banha da cobra”: é um medicamento que arrisca custar-nos, se levados por esta intrujice de vendedor, muitos milhões de euros sem préstimo. Na melhor das hipóteses.
De facto, toda esta (alegada) notícia é escrita como se fosse inexplicável o não-aproveitamento deste milagre da Pfizer.
Como se estivéssemos perante uma inexplicável negligência do Estado.
Não é o caso. Na verdade, a notícia é puro marketing para favorecer (sem aspas) uma farmacêutica, criando pressão mediática sobre o Governo e o Infarmed para a concretização de um negócio de milhões.
Mas, afinal, do que falamos quando falamos do Paxlovid – questão de pouca relevância para a Visão Saúde, mais preocupada em panfletar o fármaco milagroso da Pfizer?
O Paxlovid é, na verdade, uma combinação antiviral, de toma oral, constituída por dois medicamentos: o nirmatrelvir e o ritnonavir. O primeiro destes medicamentos já tinha sido criado em 2002 para combater o primeiro SARS, mas sem qualquer utilidade prática. Com o advento do SARS-CoV-2, a Pfizer começou então a testá-lo, em conjunto com outros. Apenas em Novembro do ano passado, a Pfizer anunciou um ensaio provisório envolvendo 774 pacientes com sintomas ainda leves ou moderados de covid-19, sobre os quais se avaliava o seu risco de internamento e morte. Em menos de um mês e meio, a farmacêutica apresentou então os resultados finais e, sem grandes demoras, em 16 de Fevereiro passado, saiu um artigo na revista científica New England Journal of Medicine.
Se acham estranha a rapidez da publicação deste artigo – assinado por investigadores da Pfizer (que admiração!) – numa revista científica, que dizer então da celeridade na autorização de comercialização pela Food and Drug Administration (FDA)?
Apenas 11 dias após a imprensa – que passou a constituir a fase crucial para convencer Governos e reguladores – ter divulgado os resultados obviamente extraordinários do Paxlovid, a Pfizer pediu autorização à FDA. Estávamos em 11 de Novembro do ano passado. No dia 22 de Dezembro, quase sem pestanejar, a FDA concedeu uma “autorização de uso de emergência”.
Nunca outro medicamento teve aprovação tão rápida. E isto não é uma boa notícia.
Israel seguiu logo os passos dos Estados Unidos, com uma autorização em 26 de Dezembro. E depois foi em cascata: Reino Unido em 31 de Dezembro e, por fim, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) recomendou a autorização de comercialização condicional em 27 de Janeiro passado, deixando aos reguladores dos países europeus solicitar ou não mais testes.
A euforia com que o Paxlovid foi recebido nos últimos meses somente encontra paralelo com o anúncio das vacinas contra a covid-19. Lembram-se?! Daquelas que iriam ter uma eficácia de quase 100%, que concederiam imunidade de grupo e até maior protecção contra as infecções. Lembram-se? Pois bem, os resultados são bem mais modestos, e tanto assim que as autoridades de Saúde – incluindo a nossa DGS – os escondem para uma avaliação independente.
Mas para escoar o Paxlovid, a máquina de marketing da Pfizer ainda está mais oleada, mostrando uma “eficácia” extraordinária na perspectiva de obtenção dos máximos lucros no mais curto espaço de tempo.
De facto, sem uma justificação plausível – e muito menos transparente –, o preço de cada tratamento de cinco dias de Paxlovid nos Estados Unidos custará quase 530 dólares, ou seja, aproximadamente 510 euros. Este deverá ser o preço estabelecido para a Europa.
Os preços dos medicamentos já não reflectem, em grande parte dos casos, os custos de investimento, mas sim os previstos benefícios para a saúde individual e colectiva. Como o Plaxlovid está a ser “vendido” como um fármaco milagroso – apenas com base em ensaios clínicos realizados pela empresa e sem uma análise independente de longo prazo –, anunciando-se uma redução de 88% das hospitalizações, então a farmacêutica pode pedir um valor elevado desde que inferior ao custo de internamento dos doentes que seriam hospitalizados se o medicamento não existisse.
Mas isso é fazer futurologia. O Paxlovid é um medicamento que não mostrou ainda provas. Não justifica compras massivas.
Aliás, em epidemias, muitos medicamentos prometeram muito, e deram pouco, mas custaram muito. Tamiflu, há uma década, ou o Veklury (remdesivir), na pandemia da covid-19, surgem logo à lembrança. Milhões entregues de bandeja às farmacêuticas; resultados zero. Aliás, sobre o Tamiflu, da farmacêutica suíça Roche, corre ainda um processo judicial nos Estados Unidos por falsificação de dados que sobrestimaram efeitos benéficos.
Artigo científico que “explica” como a Roche actuou para vender o Tamiflu em 2009.
Aliás, quem quiser entender como funcionam as estratégias de marketing farmacêutico em tempos de pandemia, basta ler o artigo científico de 2017 intitulado “Pharmaceutical lobbying and pandemic stockpiling of Tamiflu: a qualitative study of arguments and tactics”, no Journal of Public Health.
Mas a máquina da Pfizer quer mais do que vender aos países ricos. Sabe que pode maximizar o lucro se vender o Paxlovid aos países pobres com suposto preço de saldo. Até, supostamente, fica bem na fotografia. Não sejamos ingénuos: as margens de lucro serão muito menores, mas muitas mais vendas sempre dará mais lucro.
E assim, sem perda de tempo, vimos a Pfizer a querer inundar os países pobres com Paxlovid. No passado dia 17 de Março, o Pool de Patentes de Medicamentos, apoiado pelas Nações Unidas, assinou acordos com 35 fabricantes de medicamentos genéricos na Europa, Ásia e América Central e do Sul para fabricar este fármaco e fornecê-lo em 95 países mais pobres.
Dois dias mais tarde, os Centros Africanos de Controle e Prevenção de Doenças assinaram um memorando de entendimento com a Pfizer para fornecer Paxlovid com um preço de 25 euros.
No início de Maio, a Pfizer estimava conseguir vender 22 mil milhões de dólares, até final deste ano, de Paxlovid, aproximando-se das receitas da vacina Cominarty (32 mil milhões de dólares).
Obviamente, para esta estratégia ser bem-sucedida, além de uma imprensa ao seu serviço, a Pfizer precisa de pessoas como o Doutor Filipe Froes, um marketeer travestido de médico, que foi “chamado” para a peça da Visão Saúde.
O pneumologista – que já foi o maior “impingidor” de remdesivir, da Gilead, que nos custou 20 milhões de euros sem préstimo algum, a troco de uns bons milhares de euros – está agora vocacionado para vender – e aqui sem aspas – o Paxlovid da Pfizer, tal como virá, certamente em breve, a vender também o Molnupiravir da Merck Sharpe & Dohme (MSD). Ele não é esquisito.
Para que não se tenha dúvidas sobre a índole mercantilista de Filipe Froes – contra todas as regras éticas, deontológicas e até legais, tanto mais que é médico do SNS e consultor da DGS, integrando a equipa que define as terapêuticas anti-covid –, atente-se nas frases usadas pela (suposta) jornalista Mariana Almeida Nogueira (e mais ainda nas aspas que são declarações textuais deste pneumologista; os parêntesis rectos são meus):
1 – Segundo o pneumologista Filipe Froes, perante o que está a acontecer agora em Portugal, a aposta deveria ser feita, precisamente, nas medidas que diminuem o impacto da gravidade da doença, “nomeadamente, o reforço da vacinação e um acesso mais fácil a outras terapêuticas, que já existem noutros países, como os anticorpos monoclonais neutralizantes e os novos antivíricos, dos quais o Paxlovid é um deles”.
2 – Filipe Froes sublinha que “este tipo de medicamentos [novos antivíricos, como o Paxlovid] é muito bem vindo em Portugal e necessário nesta fase de combate à pandemia, que é diferente da fase inicial”.
Filipe Froes
3 – Segundo o médico, o fármaco [Paxlovid] “é essencial, sobretudo na altura em que nos encontramos, por contribuir significativamente na diminuição do impacto da gravidade e da mortalidade nas pessoas mais vulneráveis”.
4 – Perante a importância do Paxlovid, surge a dúvida: Por que razão não está ainda disponível no nosso País? Desde janeiro, que a DGS estará a preparar uma norma “para a utilização o mais racional e equitativa possível deste medicamento”, afirma Filipe Froes [que integra a equipa da DGS que define as terapêuticas anti-covid].
5 – O pneumologista considera o medicamento [Paxlovid] “essencial para controlar a circulação do vírus na comunidade e, sobretudo, para diminuir a gravidade da pandemia na população, sobretudo na mais vulnerável”.
Acrescento eu, por fim, apenas mais uma nota: corre na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) uma queixa contra mim e contra o PÁGINA UM accionada pelo presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), onde Froes tem um lugar de destaque. António Morais – o dito presidente, que também é consultor da DGS e do Infarmed, e não deveria ser por incompatibilidades legais – escreveu que “a SPP é uma associação sem fins lucrativos e não faz publicidade ou comércio de produtos farmacêuticos”, e que “a sua actividade é de natureza científica, recolhendo patrocínios e donativos para os seus objectivos estatutários, no escrupuloso cumprimento das normas em vigor”.
É tudo “gente séria”! Neste caso, as aspas é porque, obviamente, estou a ser irónico.