Categoria: Opinião

  • Covid ad infinitum? Chamem é a polícia!

    Covid ad infinitum? Chamem é a polícia!


    Enquanto o Presidente da República condecorava hoje em Londres um enfermeiro português apenas porque estava de turno quando Boris Johnson foi internado com covid-19, em Portugal os serviços de Obstetrícia andam com supostos “constrangimentos impossíveis de suprir”, diz a ministra da Saúde.

    Contudo, o Ministério da Saúde decidiu que se justificava oferecer 21 milhões de euros para que duas farmacêuticas – Pfizer e Merck Dohme & Sharpe – se “desfizessem” de dois antivirais de duvidosa efectividade, de suspeitosa eficácia em reduzir a infecciosidade, de segurança questionável e de preço especulativo.

    woman in black jacket holding white paper

    As supostas evidências em estudos feitos às “três pancadas” para garantir as compras deveriam ser algo de investigação. A Política não pode continuar a tomar decisões políticas com base em suposta Ciência que garante segurança e efectividade de um fármaco com base em estudos que ora são realizados por investigadores ligados às farmacêuticas (que beneficiarão com as compras) ora apresentam enviesamentos que chumbariam um aluno do secundário.

    Pouco importa. Para o mundo dos medicamentos, aquilo que aconteceu há 12 anos com o Tamiflu, pode bem suceder de novo com o Paxlovid. Importante é fazer negócio já, porque quem compra são sempre os políticos, quem vende e beneficia são sempre as farmacêuticas; quem paga são sempre os contribuintes.

    Não deveria ser assim. Não pode a Política continuar, como em Portugal, a basear as suas decisões com base numa Ciência feita por marketeers como Filipe Froes e outros que, prostituindo-se, se predispõem, no tempo certo, e em compadrio com certa imprensa mainstream e com políticos que lhe amaciam o pelo, a criar alarmismo – como sucede agora com a suposta sexta onda da pandemia (só tivemos uma, na verdade, no Inverno de 2020-2021) – para que o negócio das farmacêuticas continue a fluir.

    Ontem, após mais de uma semana de insistência, o PÁGINA UM divulgou que o Ministério da Saúde comprou 21 milhões de euros em antivirais que Filipe Froes e seus comparsas tanto desejavam. O negócio parece justificável, porque se inculcou mais uma vez no povo – sim, o “povo” elogiado por Marcelo Rebelo de Sousa – de que estamos tão mal ou pior do que antes. A reacção da imprensa mainstream foi, até agora, nula. Parece que é irrelevante. Sem importância. Um valor fútil.

    Enfim, para a covid-19 sempre se gastou como se não houvesse amanhã. E, enquanto isso, tudo definha, tudo arde, tudo é hipocrisia, incluindo a comenda dada a um enfermeiro que “apenas” estava no local certo (que nem sequer era Portugal) para ver o oxímetro do doente certo, e os seus colegas que ganham em redor de mil euros salvam todos os dias velhinhas de 80 anos que nem médico família têm…

    Andamos num mundo de loucos a jorrar dinheiro apenas para agradar a uns quantos.

    Por exemplo, decide-se vacinar à pressa e às cegas, com a quarta dose, todos os idosos (e depois seguirão os outros grupos etários), sobre os quais pouco ou nada se sabe: se apresentam ou não ainda imunidade vacinal ou natural, sabendo-se que até existem testes serológicos que permitem essa distinção. Vacine-se e ofereça-se mais dinheiro às farmacêuticas sem critério científico.

    Não se estuda sequer – intencionalmente, não se quer saber – se existem efeitos secundários imunológicos ou outros relacionados com as vacinas. Nunca se fizeram ensaios clínicos sobre repetições de doses com uma frequência inferior a meio ano. Isso não interessa. Realizam-se ensaios em massa, em cobaias humanas, e ninguém parece incomodar-se. A ética científica deixou de importar.

    Porém, aquilo que mais me choca é aceitar-se como natural a actual situação nacional.

    Portugal é o país com uma das maiores taxas de vacinação do Mundo, mas apresenta agora uma inusitada taxa de infecção e de reinfecção (entre vacinados) e uma mortalidade atribuída ao SARS-CoV-2 que não encontra paralelo nos países europeus e dos outros continentes, sobretudo naqueles que registaram uma incidência cumulativa até abaixo da portuguesa.

    E mais ainda: numa doença com carácter marcadamente sazonal (já não possível negar isso, cientificamente), ninguém estranha que Portugal, um país mediterrânico, se pareça mais com um país do Hemisfério Sul a entrar agora em pleno Inverno?

    Não se pode aceitar sem questionar – sem se achar estranho – que tenhamos agora indicadores piores do que há um ano, e mesmo do que há dois anos, quando nem sequer existia vacina e praticamente toda a população estava sem qualquer imunidade natural.

    Decidi fazer uma breve análise comparativa para mostrar como a situação portuguesa é uma “impossibilidade” científica, confrontando-a com a dos países da União Europeia e diversos outros países, tendo em conta a sua dimensão ou impacte da pandemia (actual e passada).

    Nessa análise, comparou-se a mortalidade atribuída à covid-19 em cada um desses países e o seu valor padronizado (à população de Portugal) com referência a 8 de Junho (média móvel de 7 dias) em três anos distintos: 2020, 2021 e 2022.

    Desta simples comparação, pode-se afirmar que os valores para Portugal aparentam não ser reais. Podem ser oficiais, mas não parecem reflectir uma realidade. Ou, pelo menos, desafiam a dúvida, que é uma virtude do método científico. Exigem investigação. Necessitam de transparência da informação.

    Comparação da mortalidade atribuída à covid-19 no dia 8 de Junho (excepto Suécia, a 2 de Junho), com base na média de 7 dias, em 2020, 2021 e 2022. Valores totais e padronizados à população portuguesa. Fonte; Worldometers. Análise: PÁGINA UM.

    Com efeito, confrontando as mortes atribuídas ao SARS-CoV-2 em 8 de Junho de 2022 (média móvel de 7 dias), e padronizando-a à população portuguesa, o nosso país surge com uma taxa de mortalidade por esta doença 17 vezes superior à do Mundo (34 vs. 2). Isto é um absurdo!

    Os países com mortalidade mais próxima – mesmo assim muito inferior –, apresentam uma muito menor incidência cumulativa, ou seja, grande parte da sua população nem teve tanto contacto com o vírus como a de Portugal, pelo menos considerando os casos positivos. Isto é outro absurdo!

    Por exemplo, a Nova Zelândia e a Austrália – onde agora se está a chegar ao Inverno – contabilizam, por agora, respectivamente 25 e 29 casos positivos por cada 100 habitantes, em grande parte pelas medidas não-farmacológicas que impuseram em grande parte dos últimos dois anos e meio.

    Como estes países do Hemisfério Sul, duas ilhas, algum dia teriam de “reabrir” à normalidade, a subida nos casos positivos e na mortalidade nos meses mais recentes constitui uma mera inevitabilidade expectável. E talvez uma prova de que a imunidade natural é mais determinante do que a imunidade vacinal.

    Similar é a situação da Finlândia, onde a maior mortalidade actual se pode explicar por ser um dos países com menor contacto com o vírus: o rácio é, por agora, de 20 casos positivos em cada 100 habitantes.

    Note-se: Portugal, além de ser um dos países mais vacinados do Mundo – e, portanto, com (suposta) maior imunidade vacinal – é também o país do Mundo, no universo daqueles que têm mais de 10 milhões de habitantes, com um maior rácio de 48 casos positivos por 100 habitantes, ou seja, com uma elevada imunidade natural.

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    Se considerarmos o universo dos países com mais de 1 milhão, estamos apenas atrás da Dinamarca (51/100) e da Eslovénia (49/100). Contudo, a mortalidade diária (média de 7 dias) destes dois países é, actualmente, de 7 e 5 mortes por covid-19, se padronizado à população portuguesa. E nós, repito, apresentamos 34 mortes.

    Como se explica, então, tanta morte atribuída à covid-19? Será isto real? Ou estamos perante um embuste para esconder as reais falhas na Saúde Pública portuguesa, dado que é uma evidência estarmos continuamente a registar um excesso de mortalidade total no país?

    Mas ninguém parece interessado em questionar ou duvidar da veracidade dos números e da “narrativa oficial” – porque ninguém, como excepção do PÁGINA UM, quer obrigar o Ministério da Saúde (e a DGS) e o Infarmed a divulgar dados em bruto para que haja uma análise independente.

    Vamos ser claros: manter a ideia de a pandemia continuar ad infinutum é o ideal para qualquer Governo, e especialmente para António Costa. Mantém-se a imprensa mainstream entretida – e apelativa a receber mais financiamentos das farmacêuticas para “falar” de saúde –, e serve de álibi para as falhas crónicas, estruturais e conjunturais, em todo o Sistema Nacional de Saúde. E continua-se assim, também, a justificar a ideia de que se está continuamente a lutar com um “inimigo público” que não permite, hélas, que o “bom do Governo” nos possa proteger com mais eficácia contra as outras maleitas. Além disso, mantêm-se os promissores negócios com laboratórios e farmacêuticas.

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    A covid-19 tem as “costas bem largas”, para mal dos nossos pecados: continuará a ser o bode expiatório apetecível, porque bastará meter um caso positivo para que seja esquecida a negligência com que o Estado tem tratado, nos últimos dois anos, o tal “povo”. Foi covid-19, e o caso é encerrado. E compre-se mais antivirais e o mais que houver. O resto, que é tudo, que se lixe.

    Isto, na verdade, só mudará quando alguém chamar a polícia.

    E se ela vier.

    Isto quer dizer, claro, que isto só mudará se a Procuradoria-Geral da República se consciencializar que está ao serviço da “arraia miúda” – leia-se, povo de Marcelo Rebelo de Sousa, que fez o país – e não da “arraia graúda”. Até agora tem sido claro de que lado (não) tem estado.

  • Gente de avental

    Gente de avental


    É mais do que um objecto; é um símbolo e, por isso, ocorreu-me falar hoje de uma peça que, muitas vezes, passa despercebida aos olhos daqueles que nos conhecem, e que frequentam a nossa casa, a nossa intimidade.

    Uma peça que, não sendo secreta – excepto em alguns contextos que agora não são para aqui chamados –, se torna discreta. Atrás de uma porta, numa gaveta, num armário, ali está: o avental…

    O uso de avental como peça de vestuário remonta a tempos imemoriais. Feito de pele, de tecido vegetal, de plástico ou de outro qualquer material qualquer – desde que seja maleável – é de uso universal por homens, por mulheres, por crianças.

    Serve de proteção, geralmente em trabalho.

    Por isso mesmo, geralmente ao abordarmos alguém vestido com um avental pedimos desculpa, supondo estar a interromper o visado. O avental tornou-se um símbolo de “mãos ocupadas”.

    Envolvidos na ideia do avental, rapidamente recordamos as nossas mães, tias, avós. Recordamos a infância. Recordarmos a avó de avental e relembramo-la das suas ocupações, dos seus afazeres. O mesmo avental que lhe servia para colher uma peça de fruta no regaço e levá-la até à mesa, servia-lhe de pega quando a panela estava quente. Servia-lhe igualmente para secar as mãos antes de nos abraçar e, por incrível que pareça, bastava-lhe tirá-lo, ajeitar o cabelo e estava “arranjada” para sair de casa.

    Era mágico, aquele avental: podia desaparecer num piscar de olhos, sem que déssemos por isso. Também servia para fazer desaparecer alguma lágrima num desgosto inesperado, para fazer sumir o pó, para esconder pequenos objetos, qual manto da invisibilidade. Era útil para afastar moscas e, se não resultasse, para as matar!

    Provavelmente não recordaremos as nódoas desse avental, mesmo se nele se transportava lenha, legumes ou cascas. Servindo para (se) sujar, a verdade é que a avó o mantinha sempre limpo. Imaculado.

    woman in red and black dress walking on sidewalk during daytime

    O avental era uma extensão de si. Era sinal de identidade e, por isso, tinha orgulho nele do mesmo modo que tinham orgulho em tudo aquilo que fazia.

    Refiro os aventais das avós, mas também posso referir os outros aventais! – os manchados, rotos, riscados, rasgados. Com nódoas de sangue, de óleo, de ferrugem. Acontece que certas profissões a isso obrigam; labutar sujo, marcado pela natureza do trabalho. Sobre estes, escreverei um dia.

    Enquanto crianças, talvez nos recordemos de que sempre que tentávamos usar um avental, achávamo-lo cumprido, largo, e, por isso mesmo, fazia-nos sentir adultos, responsáveis.

    Hoje, já crescidos, pouco ligamos aos aventais. Vendem-se por aí alguns exemplares cuja natureza é meramente decorativa, não oferecendo, por exemplo, segurança nem funcionalidade, fruto de uma sociedade plástica, fútil, superficial.

    O avental é útil para quem faz, não para quem fala. Fala-se tanto… faz-se tão pouco.

    Neste ponto reside o fundamental que a todos aproxima – a possibilidade de transformar o mundo através das nossas próprias mãos. Não importa que o avental seja usado por um homem ou por uma mulher, importa o resultado: a eficácia.

    Talvez nos falte entender que é na utilidade que reside a perfeição, porquanto algo somente se torna perfeito se cumpre a função da sua concepção.

    Talvez um dia, quando aqueles que nos sucederem, se recordarem dos aventais, relembrem-se de nós com o mesmo amor e ternura com que recuperamos da memória aqueles que, por nos terem sido úteis, foram perfeitos.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O fado dos rankings

    O fado dos rankings


    Adoramos um ranking que fale mal de nós. É a altura perfeita para nos deprimirmos um pouco mais e praticarmos o desporto nacional de lançamento da culpa. Se vem “lá de fora”, então deve ser verdade.

    Ainda me lembro dos gritos moralistas do “comprámos muitos LCDs e carros a crédito” quando o FMI nos assegurava que a nossa Economia valia “lixo”, e isto porque, durante anos, vivêramos acima das nossas possibilidades.

    Entretanto, o Air Help – um site alemão que vive da gestão das queixas de passageiros em trânsito aéreo – publicou um ranking onde o aeroporto de Lisboa surge classificado como o pior aeroporto do Mundo. Alguma imprensa portuguesa fez o alarido catastrófico do costume, e nós, naquela falta de orgulho tão nosso, lá fomos em coro dizer que sim, que obviamente a Portela era o pior aeroporto do Mundo.

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    Este tipo de “estudos” – o seu valor e a forma como a discussão fica pelas gordas – é algo que sempre me irritou. Já agora, também em sentido inverso, me irrito quando, ano sim, ano não, Lisboa ou Porto ganham os títulos turísticos dos “melhores destinos do Mundo”. Seja lá isso o que for…

    Nós somos o povo que descobriu os caminhos marítimos para o Mundo, mas que, em simultâneo, rebentamos de orgulho com o cão-de-água português dos Obama.

    Curiosamente, ninguém discutiu esse ranking para lá de Lisboa. Eu fiquei curioso e fui cavar mais um bocadinho.

    Quando Lisboa é classificada como a pior em qualquer coisa do Mundo, sabemos imediatamente que o problema deixa de estar na cidade e passa a estar na classificação.

    Nada, absolutamente nada em Lisboa, nem sequer as obras deixadas pelos pombos nas estátuas, são as piores do Mundo. Quem vos disser o contrário é porque nunca saiu do Prior Velho.

    Há desde logo uma curiosidade interessante. Nos “20 piores aeroportos do Mundo” estão, para além de Lisboa, também Dubai, Porto, Frankfurt, Paris (dois aeroportos), Londres (dois aeroportos), Edimburgo, Dusseldorf, Newark, Manchester e Malta.

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    Conheço-os quase todos, e por isso vos digo: para aeroportos como Frankfurt, Porto, Dubai ou Gatwick estarem sequer perto de uma cauda seja do que for, o standard mundial teria que ser uma ficção qualquer do Stanley Kubrick com muitos móveis retro e lacados brancos.

    Quando reparei neste top 20, confesso que a credibilidade deste ranking estava para a aviação como o Miguel Relvas para a Academia.

    Fui então ver a metodologia utilizada no “estudo” da Air Help. Sim, admito, há dias em que tenho muito tempo livre e uma vida triste.

    Portanto, verifiquei que eram excluídos todos os aeroportos onde não fosse possível recolher informação, e eram incluídos apenas os “mais conhecidos e mais utilizados”. No “ranking mundial” estavam assim, afinal, apenas 132 aeroportos dos cerca de 42 mil existentes no planeta. Atenção: dados da CIA, só para não pensarem que os fui contar ao Google Maps.

    Ou seja, a Air Help recolheu informação em 0,3% dos aeroportos e fizeram um ranking mundial. Foi isto que deu as parangonas e a discussão em Portugal. O equivalente a um ranking de medalhas numas Olimpíadas disputada apenas por um país.

    Além disso, 80% dos critérios de avaliação referiam-se a atrasos nos voos e ao tempo para passar a segurança. Portanto, aeroportos com mais tráfego e menos pistas, tinham maior possibilidade de irem para a cauda do “Mundo”.

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    Dizia um leitor qual alguma piada: “a sanita é um buraco no chão? Não? Então não é o pior aeroporto do Mundo”. Fiquei curioso de saber por onde andou ele a voar.

    Para que serve então, para lá do clickbait e de alguns ódios virtuais, este estudo da Air Help? Para nada. É a Portela o pior aeroporto do Mundo? Não, nem por sombras, por mais atrasos que a única pista disponível nos traga.

    Assim sendo, como corolário, porque discuto um estudo sem relevância em tom de irritação?

    Também não sei. Mas gostava.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Johnny Depp por umas horas

    Johnny Depp por umas horas


    Dos vários espectáculos degradantes que a vida nos vai proporcionando, o pior dos flagelos será a rentabilização da desgraça alheia. Nesse em particular, a cultura norte-americana é dona e senhora de um estatuto único no planeta.

    Não há nada, por mais desinteressante ou abjecto, que não possa ser transformado em espectáculo para entretenimento das massas. Tudo – menos um livro, vá – serve para massajar o cérebro de uma sociedade cada vez com maior acesso a informação em tempo real, mas, aparentemente, mais estúpida.

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    Confesso a minha estupefacção pelo interesse mundial que gerou um divórcio e as suas sequelas. As horas de directos a partir do tribunal, os rios de tinta sobre a toxicidade do casal, as claques que juravam conhecer a verdade, tudo e um par de botas sobre um simples divórcio entre uma estrela planetária de Hollywood e uma senhora que entrou no Aquaman.

    Antes que me acusem de sexismo, explico a frase anterior. Eu não sabia quem era Amber Heard até a ver num julgamento transmitido em direto.

    Johnny Depp julgo que será conhecido na ilha mais remota da Amazónia, pelo que, com alguma segurança, afirmo que será uma cara mais conhecida que a do papa. E espero, com isto, não ofender cristãos.

    Nos dias que correm, ao escrever uma linha, temos de pedir desculpa na seguinte.

    Ainda assim, com uma estrela mundial no palco, não consigo entender como é que um divórcio é tema de conversa para milhões. Num mundo cheio de lixo até às entranhas, onde ainda se morre de fome e a guerra se espalha por quatro continentes, discutimos apaixonadamente, e com certezas absolutas, as quezílias do divórcio de dois milionários. Sim, porque se fossem pobres, e se espancassem com mocas de pregos, ninguém queria saber.

    Sendo assim, se nada disto me interessa, perguntará o leitor porque estou a requentar o tema?

    Porque, no meio do chavascal, há um e um só detalhe que me interessa, com o qual me sinto representado e que, julgo eu, se aplica a qualquer mortal no planeta. Mesmo aqueles que nunca estiveram nas Caraíbas e nem chegaram a piratas.

    E é este o detalhe: o direito a não ser difamado.

    Não sei se já alguma vez passaram por um tribunal e tiveram que ler folhas e mais folhas contando-vos, por interposta pessoa, quem afinal vocês eram. Usando frases fora de contexto, textos escritos com amor para um filho, acções desesperadas de defesa, coisas que não fizeram, afirmações que não vos pertenciam. Tudo misturado num bolo para provar, num tribunal de estranhos, que vocês afinal são outra coisa que até ali não conheciam. Sem uma única prova palpável, mas com um chorrilho de intenções, planeadas e executadas ao detalhe.

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    Contando que a sociedade, apenas porque sim, apoiasse uma queixosa quando ela diz que o homem é o culpado de todos os seus problemas e um empecilho ao curso da sua vida. Alguém que deve ser afastado, de tudo e de todos, especialmente de um filho, para bem do menor. Alguém que pode até ser perigoso.

    E porquê? Porque uma mulher o afirma. Se não passaram por isso, devo dizer que não recomendo. Não tem o glamour de Hollywood e deixa marcas para a vida.

    Amber Heard escreveu um artigo no Washington Post onde, pelas suas palavras, deixou um rasto de suspeição sobre Johnny Depp. O facto de ser uma figura pública à escala mundial, fez o resto. Perdeu contratos, trabalho e ganhou ódios. Se fosse um de nós, teria sido apenas difamado; como era o Johhny Depp, passou a andar com um alvo nas costas.

    É-me absolutamente indiferente quem mente mais, quem era mais tóxico ou que transacções financeiras resultaram daqueles arranjos. Há milhares de divórcios por dia. Dizem-me todos eles o mesmo que o do Johhny Depp e da Amber Heard: nada. A falência de uma relação entre dois seres-humanos é privada, íntima. Deve ficar entre quem passa por ela.

    Já a difamação não. A difamação é pública, pensada, estruturada, objectiva.

    Quem a faz tem um objectivo. Pode ser o de conseguir uma indemnização, a custódia de um filho, mais uns seguidores para o #metoo, a simples destruição de uma vida alheia. É essa a parte da sentença que me interessa. Aquela que afirma que a dignidade de alguém não pode ser posta em causa só porque sim. Que não podemos destruir a imagem do outro para benefício próprio. Que não podemos acusar sem provas e que opinião não é sentença. E, principalmente, que a justiça se obtém num tribunal e não numa folha de jornal ou em likes do Instagram.

    Nessa e só nessa parte deste julgamento, digo com algum alívio, voltámos a ganhar.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • 9 (para não serem 10) ‘postais’ de um país de inimputáveis

    9 (para não serem 10) ‘postais’ de um país de inimputáveis


    1 – Fausto Pinto, director da Faculdade de Medicina de Lisboa, anunciou há uma semana a sua candidatura a bastonário da Ordem dos Médicos. Não deverá haver clínico com melhores relações com as farmacêuticas: a sua Associação para a Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina recebeu, desde 2018, mais de 4 milhões de euros em patrocínios e apoios para a realização de estudos. À cabeça surge a Gilead, com mais de 1,5 milhões de euros, uma parte substancial para estudos (nunca vistos) sobre os efeitos do polémico antiviral remdesivir.

    Fausto Pinto

    2 – Tato Borges, o novo presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, já está a rentabilizar o seu novo cargo, depois de ter substituído Ricardo Mexia. Enquanto lamentava que o Governo deixasse cair a obrigatoriedade de uso das máscaras – símbolo da pandemia –, recebia 1.000 euros por uma palestra da Pfizer.

    3 – Filipe Froes, pneumologista do SNS e consultor da DGS, nos intervalos das suas colaborações com a indústria farmacêutica, é agora consultor da Sanofi para a vacina contra a gripe da marca Fluzone HD. Esta nova versão da vacina para idosos contra o vírus influenza é uma aposta da farmacêutica francesa para a conseguir compatibilizar com a vacina contra a covid-19. O médico-marketeer já recebeu uma tranche de 2.514 euros.

    4 – Luís Varandas, infecciologista pediátrico no Hospital Dona Estefânia (Lisboa) e também professor do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, que foi um dos subscritores da denúncia contra o presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, Jorge Amil Dias – por delito de opinião –, dá conselhos à Pfizer facturando 2.000 euros por mês. O caso foi denunciado há já quase um ano, mas continua. De permeio, escreveu artigos de opinião em jornais a recomendar vivamente a vacinação de crianças contra a covid-19.

    5 – António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPS), é um ‘fazedor de dinheiro’: este ano, a sua associação já recebeu 499.228,4 euros da indústria farmacêutica. Para ele continuar a ser consultor da DGS e do Infarmed, a SPP só poderia receber em média 50.000 euros por ano. A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde precisa, contudo, de um “processo de esclarecimento” para acabar com este regabofe, enquanto Infarmed e DGS estão calados que nem ratos.

    António Morais (ao centro), preside à Sociedade Portuguesa de Pneumologia, e é consultor da DGS e do Infarmed.

    6 – A Pfizer pagou em Maio mais de 90 mil euros a médicos para estarem presentes no habitual encontro sobre vacinas, desta vez na Trofa. Estiveram lá nomes sonantes, de grande “independência” aquando da pandemia, tais como Baltazar Nunes, Luís Varandas, Maria João Brito, Tato Borges, Ricardo Mexia e António Diniz.

    7 – Em vez do Estado português, e o seu Ministério da Saúde, promover um estudo independente sobre a insuficiência cardíaca, deixa que seja a Sociedade Portuguesa de Cardiologia a receber 151.927,49 euros da AstraZeneca para o fazer. O Porthos Study iniciou-se em Dezembro do ano passado e consistirá numa baterias de testes a 5.616 voluntários com mais de 50 anos. Os resutados ficam nas mãos da farmacêutica, que os pode usar para convencer o Estado a gastar mais dinheiro em medicação.

    AstraZeneca é o financiador de um estudo necessário mas que o Estado não faz. Os dados vitais ficam na posse da farmacêutica.

    8 – A Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares que, visto está, tem administradores hospitalares como sócios, não tem razões de queixa das farmacêuticas: desde 2018, as diversas empresas já lhes concederam subsídios e apoios no valor de 1.521.815 euros. À cabeça está a incontornável Gilead – a produtora do polémico antiviral remdesivir – que concedeu 320.846 euros durante esse período. Só este ano, o crédito a favor da associação dos administradores pela parte da Gilead vai em mais de 84 mil euros, grande parte dos quais para a segunda edição da Bolsa de Desenvolvimento do Capital Humano em Saúde.

    Gilead é um dos principais financiadores da associação que integra os administradores hospitalatres que decidem as compras de fármacos.

    9 – A Cofina recebeu 133.455 euros da Sanofi, desde o ano passado, para organizar o Prémio Saúde Sustentável. Ignora-se se o valor é grande ou pequeno em comparação com os montantes recebidos pela Impresa, Público e Global Notícias, entre outros órgãos de comunicação social, porque mais nenhuma outra farmacêutica envia essa informação para o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed. A transparência é um conceito teórico em Portugal.

  • O PIB cresceu. Urra! O português empobreceu. Bolas!

    O PIB cresceu. Urra! O português empobreceu. Bolas!


    O dia em que Portugal seria elogiado pelos parceiros europeus por outra coisa que não sol, mar, comes e bebes, haveria de chegar. E chegou!

    A União Europeia felicita Portugal pela primeira posição no crescimento previsto do Produto Interno Bruto (PIB) na Zona Euro: 5,8%. Só para terem uma noção da tareia que vamos dar nos outros; no que toca a previsões, alemães e escandinavos nem aos 3% chegarão.

    Mal acabei de ler a notícia comecei aos saltos, e tive alguma dificuldade em conter a emoção. Bati com umas panelas, meti o Poeira da Ivete Sangalo aos berros e gozei com os meus vizinhos suecos. Finalmente, vamos crescer economicamente, meter este pessoal a comer o nosso pó do progresso, e ultrapassar a Lituânia, Estónia, Eslováquia e todos os outros que aparecem nos cartazes da Iniciativa Liberal.

    10 and 20 banknotes on brown wooden table

    Finda a celebração, limpei o suor da testa e sentei-me a fazer contas, só para perceber se mandava vir um Ferrari ou se teria que me contentar com um Mustang.

    O primeiro cálculo deu-me a sensação de que iríamos continuar pobres, o que só poderia ser falha minha. Contactei uma economista que conheci poucos dias depois de nascer. Eu; ela já por cá andava.

    Para não parecer muito idiota fui navegar na imensidão de dados que o Instituto Nacional de Estatística (INE) nos disponibiliza. Só para ler aquilo, uma pessoa tem de tirar um curso em Matemática Aplicada. Pelos últimos dados disponíveis (de 2020), 40% das famílias declararam menos de 10.000 euros de rendimentos anuais, ou seja, ficaram isentas. No universo de cerca de 5,5 milhões de trabalhadores, temos 86,5% dos agregados que levam para casa (cada elemento do casal em média) menos de 1.000 euros líquidos.

    Ou seja, numa aproximação mais simples, em cada 20 trabalhadores portugueses, 17 vendem o seu mês de trabalho por menos 1.000 euros líquidos. Numa realidade sueca isto seria o equivalente a ter 86.5% da população a viver com subsídios de estudante.

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    Por outro lado, menos de 1% dos agregados conseguem um salário bruto, por cabeça, igual ou superior a 3.500 euros, o que representaria menos de 3.000 líquidos. Ou seja, apenas 0.9% das famílias portuguesas têm um rendimento parecido com aquele que, a tal Europa mais rica que agora nos elogia, aceita como mínimo.

    Durante a pandemia a população portuguesa empobreceu – tínhamos cerca de 20% no limiar –, alguns empregos desapareceram e a dívida externa do país aumentou para pagar os custos do confinamento, dos lay-offs e dos apoios ao comércio/actividades encerrados. É por isso de esperar que os rendimentos das famílias tenham piorado.

    Junta-se a isto o anúncio do aumento nas taxas de juro e percebe-se facilmente que, com os salários declarados, 80% da população portuguesa não conseguiria comprar uma casa no centro de Porto ou Lisboa, aos preços de hoje.

    De onde vem então o milagroso crescimento do PIB? Segundo alguns economistas, essencialmente do consumo interno. Mas este aumento do consumo interno não se deve somente a um aumento do consumo de produtos e serviços, mas também ao aumento dos preços. Portanto, à inflação.

    green tractor on brown grass field under blue sky during daytime

    Mas vamos assumir que com o fim das restrições, o consumo aumentou, as pessoas voltam a sair de casa e os lucros já não vão apenas para os supermercados e bens de primeira necessidade.

    A vida volta ao normal – pelo menos para a fatia da população que conseguiu manter os seus empregos e o nível de vida. Há ainda a “bazuca europeia” que permitirá uma boa dose de investimento público. Ou seja, com mais pobres do que em 2020, com aumento da dívida externa (a “bazuca” não é grátis) e com a perda do poder de compra (por causa da inflação galopante), o PIB português crescerá.

    Que diferença isto trará à fatia de pessoas que depende do seu salário – especialmente daquelas que, apesar de trabalharem 160 horas por mês, não conseguirem abandonar a faixa de pobreza? Nenhuma. Zero.

    Algumas clientelas vão receber fatias da “bazuca”, mas, no essencial, o português comum continuará a fazer contas para esticar o salário até dia 25 do mês seguinte.

    Pelo meio dão-se ao luxo de um ou outro jantar fora, quem sabe uma volta ao Algarve e está feito. O PIB dispara.

    Champagne pouring on glass

    Entretanto, o combustível subirá amanhã pela 18ª vez – décima oitava vez – em seis meses, recuperando assim tudo o que não se vendeu durante a pandemia. Isto apesar da descida dos impostos, provando que o liberalismo dos mercados é um embuste e um apelo aos cartéis. E a Galp Energia obteve um resultado líquido de 155 milhões de euros no primeiro trimestre de 2022, que comparam com 26 milhões de euros do período homólogo.

    Bendita Ucrânia de costas largas.

    Enfim, estamos mais pobres, mais endividados e mais longe dos centros urbanos. Mas o PIB cresceu. Comemoremos, pois, mas com espumante. Champanhe é só para 0.9% dos portugueses.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Senhora Lagarde, o Zimbabué, a inflação e o Banco Central Europeu

    A Senhora Lagarde, o Zimbabué, a inflação e o Banco Central Europeu


    Recentemente, ficámos a conhecer a taxa de inflação para o mês de Maio de 2022 na Zona Euro: 8,1%; um máximo de muitas décadas! Em Portugal situou-se nos 8,0%, um máximo desde 1993, quase três décadas depois.

    A imprensa já noticia isto com a maior das naturalidades, sem mais; há uns meses seriam as rupturas das cadeias de abastecimento, há umas semanas a guerra na Ucrânia. Indagar as razões de tal evolução não parece ser a vontade da imprensa mainstream. As dezenas de casos da varíola dos macacos parece ser agora mais importante que os 8,0% que perdemos todos os anos nas nossas poupanças aplicadas nos bancos, onde o juro é literalmente de 0,0%.  

    10 and 20 euro banknotes

    Enquanto isto acontece, a principal instituição responsável por esta situação, o Banco Central Europeu (BCE), parece estar imune a qualquer crítica ou reparo. Aliás, a sua presidente, Christine Lagarde, parece apenas estar preocupada em “atacar” as Criptomoedas, como se viu numa entrevista a um canal holandês.

    Apesar de tudo, tiveram coragem de a questionar sobre o crescimento do balanço do BCE, em particular de 4 biliões de Euros (atenção: são 12 zeros) desde o início de 2020. Respondeu ela, candidamente, que “teve de ser”, caso contrário, teríamos assistido a uma autêntica catástrofe financeira, uma recessão económica nunca vista!

    A protérvia não tem limites: não se conhece nenhuma Economia ocidental que não tenha colocado as impressoras de notas a funcionar a toda a velocidade durante 2020 e 2021, mas a Senhora Lagarde conhecia e conhece as consequências de um cenário alternativo ao adoptado – “teria sido muito pior”, informa-nos!

    Evolução do balanço do Banco Central Europeu (em biliões de Euros) entre 1999 e 2022. Fonte: FRED Economic Data (análise do autor)

    Na verdade, ao contrário do que a Senhora Lagarde imagina, já podemos tirar conclusões da sua política monetária: há mais de quatro décadas que não assistíamos a uma inflação tão elevada.

    Não foi a guerra na Ucrânia, Senhora Lagarde: foi a impressora do BCE, por si presidido, que provocou uma enorme subida dos preços.

    A população com rendimentos fixos, a mais pobre, enfrenta agora enormes subidas de preços quando se dirige a um supermercado, abastece o carro, ou recebe as contas de luz e gás em sua casa.

    Não é por causa da guerra da Ucrânia, como tenta impingir.

    Senão vejamos, o que aconteceu, entre o final de 2019 e o final de Fevereiro de 2022 com algumas matérias-primas. Ou seja, antes da invasão da Rússia à Ucrânia. Chegaram a subir mais de 200%, no caso da Madeira; o Gás Natural subiu 101%, o Petróleo encareceu 57%. Os cereais também registaram fortes subidas: a Aveia cresceu 139%, o Milho 80% e o Trigo 66%.

    Evolução (%) do preço das principais matérias-primas entre finais de 2019 e Fevereiro de 2022. Yahoo Finance (contratos de futuros).

    A impressora da Senhora Lagarde, ao contrário dos anos anteriores a 2020, não só afectou os activos financeiros, mas também os bens de consumo da generalidade da população, que vê o seu poder de compra confiscado pela tal suposta política salvífica do BCE.

    E como a Senhora Lagarde e o BCE causaram a inflação?

    Bem, é um processo de complexidade muito mais elevada que o utilizado pelo Zimbabué, onde há uns anos Robert Mugabe pagava religiosamente aos funcionários públicos, simplesmente ordenando que o seu banco central imprimisse notas, e com estas pagava os salários. Seguidamente, os funcionários públicos saíam à rua e desatavam a comprar, gerando a subida de preços, pois os vendedores sabiam que notas não faltavam! Os preços subiam e os funcionários públicos berravam então por mais. Solução para isto? Colocava-se a rotativa a funcionar com mais velocidade, e formou-se um círculo vicioso que terminou em hiperinflação.

    Aqui, na civilizada Europa, o método é muito mais sofisticado, ao abrigo de um qualquer programa de estímulos e em nome de um bem-comum. De forma simplista, eis como funciona:

    • Um Governo necessita de dinheiro; para isso, emite obrigações ou títulos de dívida;
    • Para se realizarem propostas de compra por essas obrigações, o Estado organiza um leilão, onde apenas os bancos comerciais podem participar;
    • Vamos imaginar que após a realização do leilão, apura-se um preço de 100 Euros por obrigação, com um cupão anual (juros) de 10 euros, ou seja, um juro implícito de 10% (10 ÷ 100);
    • Para procederem à compra das obrigações, os bancos solicitam um empréstimo ao BCE, e vamos imaginar que é de 1.000 Euros e que foram vendidas 10 obrigações;
    • Seguidamente, ao abrigo de um programa de estímulos, o BCE decide comprar essas obrigações aos bancos no mercado secundário; ou seja, por essa razão os bancos comerciais compram toda a dívida pública, pois já que sabem que, no futuro, existe um comprador com notas de monopólio disposto a comprar tudo – é garantido, e nunca falha;
    • O BCE emite “dinheiro do ar”, ou seja, credita reservas aos bancos comerciais e adquire essas obrigações, obviamente com lucro para os bancos. Vamos imaginar que as compra por 200 Euros – não nos podemos esquecer que para a Senhora Lagarde dinheiro não lhe custa e nunca é um problema; desta forma, o juro implícito passa a ser 5% (5÷200). Por isso, nos últimos anos as taxas de financiamento do Estado português não pararam de descer, era “o milagre dos mercados”. Os bancos podem assim amortizar a dívida e embolsar 1000 Euros;
    • Com as obrigações no seu balanço, o BCE distribui essas obrigações pelas suas filiais, por exemplo, as obrigações emitidas pelo Estado português vão parar à sua filial em Portugal, o Banco de Portugal; assim, no momento de pagar o cupão da obrigação – os juros -, é pago ao Banco de Portugal pelo Estado português, constituindo uma receita para o Banco de Portugal;
    • No final, o Banco de Portugal, depois de abatidas as suas despesas, distribui lucros ao Estado português e paga impostos sobre esses lucros. Coisa fantástica! É uma espécie de alquimia financeira, onde a inflação gerada pelo BCE roda a favor de bancos e Estado. Depois, o “patinho feio” da história é a plebe, que tem de suportar preços mais elevados.
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    Naquela entrevista, não estranhemos que a Senhora Lagarde nunca tenha comentado o enorme esquema em pirâmide que é hoje o BCE.

    Vamos analisar a sua situação financeira. No final de 2021, as contas do BCE informavam-nos do seguinte:

    • Activos totais: 8,6 biliões de Euros (atenção: 12 zeros), dos quais 4,9 biliões, investidos em activos financeiros – isto é, obrigações dos diferentes Estados da Zona Euro –, e 2,2 biliões em empréstimos aos bancos comerciais da zona Euro;
    • Capitais próprios: 0,109 biliões de Euros, ou seja, apenas 1,3% dos activos totais.

    Para simplificar a coisa: seria o mesmo que o leitor constituísse uma empresa com 1.300 Euros do seu capital (dinheiro) e pedisse ao banco 98.700 euros. Com os 100.000 euros decide comprar uma loja de rua. Esta é a situação do BCE: o capital representa apenas 1,3% dos activos. Estamos perante uma alavancagem financeira de 78 vezes (100÷1,3), algo que um investidor particular, através de CFDs – um produto financeiro regulado –, está proibido de fazer pela ESMA, o regulador europeu dos valores mobiliários.

    E isto por uma razão muito simples: se os prejuízos forem de 2%, as perdas para os accionistas serão de 156% (78 vezes os 2%).

    man holding 1 US dollar banknote

    Voltando ao nosso exemplo: se a loja de rua desvalorizar 2%, passando a valer 98.000 Euros, significa que a perda para o accionista é de 156%, aproximadamente. Isto porque perdeu os 1.300 Euros do seu capital inicial, e ainda mais 700 Euros. Além disso, a sociedade está falida, pois a loja não permite pagar as dívidas: 98 000 < 98 700!

    É esta a instituição, o BCE, que se arroga de afirmar o seguinte: “O dia em que tivermos a moeda digital do Banco Central, um euro digital, garanto que o Banco Central estará por trás dela e penso que será muito diferente“. Julgamos que a diferença é em relação às Criptomoedas. A segurança do tal Euro Digital assenta em dívida pública de Estados falidos, o tal activo subjacente de que Christine Lagarde nos fala.

    E ainda teve tempo a Senhora Lagarde para o “chavão” do risco das Criptomoedas, porque supostamente as pessoas “não percebem os riscos” do investimento. Bastaria à Senhora Lagarde percorrer as páginas web de corretoras de valores devidamente autorizadas, onde são comercializados produtos de risco, como os CFDs, onde aparece o seguinte aviso: “82% das contas de investidores não profissionais perdem dinheiro quando negoceiam CFD com este distribuidor”.

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    Apesar destas corretoras realizarem milhares de perguntas e testes aos seus clientes, de os avisarem de uma panóplia de riscos, temos estes resultados com produtos regulados. Mas depois, a Senhora Lagarde diz que o problema são as Criptomoedas e que estas “devem ser reguladas”.

    Enfim, continuamos a ser tratados pela Senhora Lagarde como criancinhas, incapazes de compreender o risco associado às Criptomoedas [obviamente que estas são altamente voláteis, devendo apenas investir-se o dinheiro que se pode perder, uma pequena fracção do património financeiro de cada um.]

    Por fim, a pérola da entrevista: o seu filho investe em Criptomoedas, não seguindo o seu conselho. Talvez seja uma pessoa sensata. Se o fez há uns anos, conseguiu preservar o seu poder aquisitivo, ao contrário das pessoas que deixaram o seu dinheiro no banco a ser confiscado pela inflação criada pela Senhora Lagarde e a sua “rica” regulação.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Do ‘normal’ de 2009 aos teóricos das conspirações da pandemia: uma viagem ‘a cavalo’ do doutor Francisco George

    Do ‘normal’ de 2009 aos teóricos das conspirações da pandemia: uma viagem ‘a cavalo’ do doutor Francisco George


    Seria eu rotulado de teórico da conspiração, negacionista, terraplanista, anti-Ciência, um perigo para a Saúde Pública, e provavelmente considerado membro de “movimentos inorgânicos antissistema” pelo Relatório Anual de Segurança Interna, se porventura em meados de 2020, ao longo de 2021 ou hoje mesmo, no ano da graça de 2022, dissesse ou escrevesse coisa assim:

    A vacinação para o vírus que veio a emergir foi preparada mesmo antes da emergência do vírus. Em 2019, a Direcção-Geral da Saúde recebeu cientistas da empresa farmacêutica XXX que estavam a preparar a nova vacina. Um tipo que a directora-geral da Saúde conhece, e que tinha trabalhado na OMS, chamado K**** S**** e a sua equipa, esteve a apresentar o projecto para as vacinas mesmo antes da estirpe pandémica ter surgido. Mas, tudo tinha sido preparado para, em termos globais, a resposta ser rápida. E se formos ver o plano de contingência português, refere-se que a vacina estaria disponível no prazo de seis meses, e que as medidas de contenção para atrasar a propagação da epidemia deviam ser tomadas, a rigor, como aliás foram, para dar tempo à chegada da vacina.

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    Sucede que, além de todas as etiquetas que me apodariam, das denúncias no Facebook e em outras redes sociais pedindo a minha exclusão do mundo virtual, e das queixas na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) de sorte a me cassarem o registo e a acreditação, ficaria eu sujeito a um high profile trial por plágio – justíssimo, aliás – por iniciativa do doutor Francisco George, presidente da Cruz Vermelha Portuguesa até ao ano passado e director-geral da Saúde entre 2005 e 2017.

    Vou-me explicar.

    No já longínquo dia 23 de Outubro de 2009 – esquecido na memória de muitos, e ainda mais da desmemoriada classe jornalística –, o doutor Francisco George, então na qualidade de director-geral da Saúde foi entrevistado por duas jornalistas (Joana Bénard da Costa, pela Rádio Renascença; e Romana Borja-Santos, pelo Público, e que agora é assessora de comunicação da Ordem dos Médicos), para o programa Diga Lá Excelência, na RTP 2.

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    Vivia-se então em plena “pandemia” da gripe suína – vírus influenza A/(H1N1)pdm09 –, que surgira no México em Abril desse ano de 2009. Repita-se: 2009.

    Nesse dia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tinha passado já a situação de emergência pública internacional para a fase 4, enquanto a Food and Drug Administration (FDA) aprovou, no dia seguinte, um teste de detecção.

    A cronologia é conhecida e fácil de sintetizar. A primeira sequência do genoma foi, oficialmente, determinada em 27 de Abril de 2009. Repita-se: 27 de Abril de 2009.

    Por sua vez, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) emitiria, também nesse dia 28, a primeira orientação provisória para encerramento de escolas e creches com casos confirmados em laboratório do vírus. No dia 29, estávamos já na fase 5 do alerta da OMS.

    Em 11 de Junho, o nível subiu para a fase 6 – o topo da escala. Também foram surgindo variantes, uma das quais em Julho, supostamente resistente ao antiviral então em voga, o oseltamivir – comercializado pela Roche, sob a marca comercial Tamiflu, que entretanto vendera milhões e milhões de embalagens por esse Mundo fora. Só no primeiro semestre de 2009, esta farmacêutica suíça teve receitas superiores a 900 milhões de dólares com o Tamiflu.

    Mas havia as vacinas, claro. Em 22 de Julho de 2009 oficialmente começaram os ensaios clínicos da primeira vacina contra a gripe H1N1. Em 15 de Setembro foram aprovadas pela FDA quatro vacinas: Sanofi, Novartis, CSL e MedImmune; mais tarde, também a GlaxoSmithKline teve a sua. Em tempo recorde. Em 5 de Outubro de 2009 começaram a ser dadas as primeiras doses nos Estados Unidos. Nesse mesmo mês chegaram à Europa.

    Mas nem quero falar muito sobre o flop da pandemia da gripe H1N1, que afinal teve um impacte inferior à das gripes banais – mas com a indústria farmacêutica a sair beneficiada por vendas de vacinas imprestáveis e de antivirais desastrosos que serviram para ir para o lixo, ou melhor, para queimar.

    white and green plastic blister pack

    Quero mesmo falar sobre o grave plágio que cometeria se eu tivesse escrito ou dito o que acima expus.

    Porque, de facto, foi o doutor Francisco George, digníssimo director-geral da Saúde, na referida entrevista de 23 de Outubro de 2009, o autor das seguintes palavras, ipsis verbis:

    A vacinação para o vírus que veio a emergir foi preparada mesmo antes da emergência do vírus. Em 2008, na Direcção-Geral da Saúde, recebemos cientistas da Novartis que estavam a preparar a nova vacina. Um colega meu que tinha trabalhado na OMS chamado Klaus Stöhr e a sua equipa, esteve a apresentar o projecto para as vacinas mesmo antes da estirpe pandémica ter surgido. Mas, tudo tinha sido preparado para, em termos globais, a resposta ser rápida. E se formos ver o plano de contingência português, refere-se que a vacina estaria disponível no prazo de seis meses, e que as medidas de contenção para atrasar a propagação da epidemia deviam ser tomadas, a rigor, como aliás foram, para dar tempo à chegada da vacina.

    Pasmados?!

    Então, oiçam aqui:

    Mais pasmados ainda?

    Não estejam. Ora essa! Dizer aquilo que o doutor Francisco George disse, publicamente, em 2009 era a coisa mais natural: uma vacina apresentada às autoridades antes do surgimento do vírus (que nem aparecera sequer antes no Hemisfério Sul), e ter tudo preparado para um programa de vacinação em larga escala em seis meses.

    Mas hoje, hélas, dizer coisas como as que o doutor Francisco George nos disse em 2009, e pensar que a pandemia da covid-19 – esta, que oficialmente começou em finais de 2019, na China, mas que chegou ao Mundo Ocidental em 2020 e se prolonga até agora – tem cada vez contornos mais suspeitos; ai!, isso não pode ser. Isso é ser “ista” de tudo e mais alguma coisa…

    Já agora, o doutor Klaus Stöhr não foi apenas um técnico da OMS especializado em vacinas para a gripe que transitou para a indústria financeira, nem é hoje somente mais um alto quadro de uma farmacêutica (um dos vice-presidentes da Novartis) que já apresentou uma vacina antes do vírus surgir. Foi também homem profético que em 2005 já andava a preparar o Mundo para uma pandemia

  • Os humanos de oito pernas

    Os humanos de oito pernas


    Foi descoberto recentemente o manuscrito primordial de Clavis Prophetarum, ou Chave dos Profetas, umas das obras magnas do Padre António Vieira, que se julgava perdido para sempre. Ainda que possamos pensar na sorte da investigadora, que quase por mero acaso o encontrou na Biblioteca da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a verdade é que a sorte, se assim lhe quisermos chamar, esteve do lado do manuscrito. Muitos o manusearam, folhearam, leram e por ignorância, por incompetência, ou simplesmente por indiferença, não lhe atribuíram o respectivo valor.

    Manuscrito original de Clovis Prophetarum. Foto: © Arquivo Pontifícia Universidade Gregoriana.

    Porque já quase tudo foi dito sobre a descoberta, considero oportuno partilhar com os leitores uma ou outra ideia sobre aquilo que Vieira nos deixou. E que continua de grande actualidade.

    Recordemos, por exemplo, o Sermão de Santo António aos peixes. Se a memória não me falha, e se a Internet não me engana, diz-nos este jesuíta: “E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (…) o dito polvo é o maior traidor do mar.” Compara assim o religioso a aparência do polvo com a serenidade e confiança que nos deve fazer passar um monge.

    Padre António Vieira (1608-1697)

    O conhecido olhar de António Vieira sobre da Humanidade acaba por estar permanentemente na ordem do dia, tanto hoje como há mais de 350 anos. Vivendo ele para o absoluto, não viveu para o poder. Deu murros na mesa, defendeu os fracos, os diferentes, foi um verdadeiro advogado da Humanidade.

    Como visionário, esteve à frente do seu tempo, razão pela qual remou sempre, e incansavelmente, contra a maré, enfrentando maiorias. A irreverência isolou-o de tal forma que acabou por parecer, aos olhos dos outros homens, mais homem do que santo. É pena. Foi pena.

    Voltando ao polvo. Também eu tenho razões de queixa deste desgraçado cefalópode. A verdade é que, quando o colocamos na panela, nunca sabemos com o que podemos contar. A maneira como mirra chega a parecer vingança. E pode mesmo ser – pela maldade que lhe fizemos.

    Sabemos que a capacidade do polvo em mudar de cor, ao assumir os tons do ambiente, faz dele um dos mais hábeis predadores e, uma vez mais, em tudo se assemelha à forma de ser e de actuar do ser humano. Não é que tenhamos predadores à nossa volta, que nos queiram comer. Desses, de uma forma geral, já nós nos fomos libertando, mas a constante lei do mais apto torna-nos, muitas vezes, verdadeiros “polvos terrestres”. Aprendemos tais manhas, desde tenra idade, que ficamos perigosos muito célere, e o pior de tudo é que não paramos de adquirir novas capacidades e esquemas até à velhice. Com isto, sobrevivemos. Não vivemos. Essa parece ser, aliás, a questão que nos leva a actuar como predadores.

    Apesar de tudo isto, ou sobretudo por isto, convém relembrar a inteligência dos polvos, que os mergulhadores relatam em momentos de interação. Nessas situações, eles vêem-nos como seres inteligentes, e como tal, assim gostam de brincar com humanos. Eles não nos olham, durante esses contactos, nem como presas nem como predadores. Por isso, um mergulhador que não queira caçar um polvo pode vê-lo, e sentir, que tem ali um bom companheiro para momentos de descontração. E não vê no polvo nem fúria nem medo.

    brown octopus

    Na verdade, esta analogia serve para dizer que não somos maus por uma nossa natureza, tal como mau este molusco não é. Defendemo-nos simplesmente daquilo que nos assusta ou que nos tenta atacar. Quando formos capazes de perder o medo e nos tornarmos mais seguros de nós próprios, talvez esteja dado o passo significativo no que toca aos valores e integridade.

    Afinal, não é o polvo que se apresenta como monge, nós é que nos apresentamos, muitas vezes, como polvos.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Hipócrita que “matou” Hipócrates

    O Hipócrita que “matou” Hipócrates


    Nas últimas semanas, o pneumologista Filipe Froes – um dos mais promíscuos médicos desta Nação, tantas são as suas relações com a indústria farmacêutica, ao mesmo tempo que é clínico no SNS e consultor na Direcção-Geral da Saúde (DGS) – desdobrou-se em declarações elogiosas a favor dos antivirais e anticorpos monoclonais para tratamento da covid-19.

    Estes medicamentos – cuja rapidez na aprovação por parte dos reguladores causa espanto, apesar das dúvidas da sua eficácia e das notícias sobre os efeitos secundários – têm sido, claramente, uma aposta de marketing das farmacêuticas nesta fase da pandemia: na generalidade, destinam-se a doentes com sintomas ligeiros a moderados, numa altura em que a Omicron, no caso português, somente causa a hospitalização de 0,2% dos casos positivos.

    Como cada tratamento poderá vir a custar cerca de 500 euros, fácil se conclui que as farmacêuticas ficam com os louros e com o dinheiro mesmo se a eficácia dos medicamentos for idêntica à de um placebo. E isto já para não falar nos problemas já anotados, sobretudo nos Estados Unidos, onde o seu uso, promovido por Joe Biden, se tem generalizado.

    Filipe Froes é pneumologista no SNS, consultor da DGS (incluindo a definição de terapêuticas contra a covid-19) e consultor e palestrante pago por farmacêuticas.

    Mas voltemos ao Doutor Filipe Froes. Para o Infarmed garantir a “luz verde” para compras e o Governo tratar de gastar uns bons milhões de euros para constituir uma Reserva Nacional – como sucedeu com o remdesivir, da Gilead –, este especialista desmultiplicou-se, nesta última quinzena, em perorações em tudo quanto era sítio que lhe dá guarida – leia-se, imprensa mainstream – a promover dois antivirais das suas queridas farmacêuticas, a saber: o Paxlovid, da Pfizer, e o Lagevrio, da Merck Sharpe & Dohme (MSD).

    Em simultâneo, como consultor da DGS, o mesmo Doutor Filipe Froes afanosamente procurava incluir os tais antivirais e anticorpos monoclonais nas terapêuticas oficiais contra a covid-19. No intervalo disto – ou aquilo é que é o intervalo – continuava a passar facturas às farmacêuticas, como a Pfizer, Merck Sharpe & Dohme e GlaxoSmithKline, interessadas neste chorudo negócio. Este ano já vai em 23.383 euros de oito farmacêuticas. E o ano ainda nem vai a meio, e nem sempre tudo se vê.

    Mas regressemos às aparições mediáticas do Doutor Filipe Froes nas últimas duas semanas.

    Foi um fartote.

    Uma pornografia.

    No dia 16 de Maio era vê-lo na Visão numa peça jornalística (?) de pura publicidade a elogiar o antiviral Paxlovid, produzida pela sua “querida” Pfizer. O título não poderia ser mais sugestivo: O que é Paxlovid, o antiviral campeão de vendas nos EUA, que pode pôr a salvo os doentes de risco”. Se pode ou não, ignora-se. Sabe-se, sim, que a Pfizer já anunciou metas de vendas até ao final do ano de 20 mil milhões de euros.

    Paxlovid, o antiviral da Pfizer.

    No dia 19 de Maio, era ouvi-lo na Rádio Renascença a dizer que era necessário “divulgarmos rapidamente e termos acesso aos novos medicamentos antivirais que têm impacto na diminuição da circulação do vírus e aos anticorpos monoclonais, de maneira ainda a protegermos mais as pessoas mais graves.” (sic)

    No mesmo dia, também o encontramos no inefável Diário de Notícias, em artigo de opinião, em que avisa que “Portugal não pode continuar a ser dos escassos países europeus que não disponibiliza as novas intervenções terapêuticas à sua população e, em particular, aos doentes com maior risco de evolução para gravidade ou incapazes de montar uma resposta eficaz à vacinação e que se mantêm ‘prisioneiros da pandemia’”.

    No dia 22 de Maio, lá o encontrámos na CNN Portugal, a dizer que “nós temos de acelerar, para o nosso país, o acesso a dois fármacos que já têm muito impacte nos outros países em termos de controlo da doença, que são os novos antivíricos”.

    No dia 27 de Maio, em mais um artigo de opinião, desta vez no Expresso, lá surgiu o Doutor Filipe Froes a defender, entre outras coisas, hélas, “o acesso prioritário aos novos antivirais e anticorpos monoclonais”.

    Anteontem, dia 29 de Maio, mais uma nova notícia na CNN Portugal, com o Doutor Filipe Froes a botar faladura sobre antivirais e anticorpos monoclonais.

    Nos Estados Unidos têm sido relatados casos de reincidência de covid-19 pouco depois do tratamento com Paxlovid, que custa mais de 500 dólares por tratamento.

    E eis, portanto, que hoje surge a notícia de ter sido homologado, no passado sábado (!), uma nova norma terapêutica farmacológica para a covid-19 pela directora-geral da Saúde, Graça Freitas, que passou a incluir, como forma de tratamento convencional, e em alguns casos de forma prioritária, os antivirais da Pfizer (Paxlovid) e da Merck Sharpe & Dohme (Lagrevio), mais os anticorpos monoclonais da GlaxoSmithKline (Xevudy).

    A inclusão não é nada discreta: na verdade, os clínicos que sigam doentes-covid têm, a partir de agora, de fundamentar no processo clínico a existência de uma “eventual impossibilidade da aplicação da presente Norma”. Leia-se: se não quiserem chatices, prescrevam o que está aqui, que as farmacêuticas agradecem.

    Ora, mas adivinhem quem é um dos peritos da DGS-Infarmed que compôs a norma?

    Parabéns!!!

    Acertou!!!

    O Doutor Filipe Froes, claro!, que surge logo no segundo posto na lista (que não está por ordem alfabética).

    Este país, de facto, não sabe o que é o pudor. Não tem vergonha na cara.

    Mas eu quero ir mais longe. Tenho de ir mais longe.

    Que o Doutor Filipe Froes se venda e haja quem o compre, eu dou de barato, mesmo que ele se faça caro. Não posso é aceitar, como cidadão, que ele brinque com a Saúde Pública, com o dinheiro dos contribuintes e com um dos princípios básicos da Medicina: o primum non nocere.

    Bem sei que isto é molhar a chuva, porque o Doutor Filipe Froes existe como o sabemos porque ele não é só ele: ele representa uma tipologia de pessoas que juraram perante Hipócrates mas servem apenas Mamon. Por isso, onde se lê Doutor Filipe Froes, leia-se pessoas como o Doutor Filipe Froes.

    silver and black stethoscope on 100 indian rupee bill

    Para o Doutor Filipe Froes basta-lhe apenas as simpatias da imprensa mainstream, o ouro das farmacêuticas e o despudor das autoridades de Saúde em o manterem como consultor.

    Ele faz o resto, e bem, como bom marketeer: vende fármacos, apenas garantindo, sem qualquer base que não seja o seu paleio e os argumentos das farmacêuticas, que se tem de salvar a velhinha da covid-19, custe o que custar, mais o gato e o periquito, e ele garantirá que tudo é verdade, e que por isso ali está ele nas televisões, rádios e jornais – e que, quem o contestar, só pode ser por maledicência, por ser um negacionista, um anti-vacinas, um anti-ciência, um terraplanista e o mais que lhe aprouver inventar, desde que ele, assim como se comporta e o deixam comportar, continue o acarinhado ponta de lança do lobby das farmacêuticas.

    Nunca ouviremos da boca do Doutor Filipe Froes que, por exemplo, o “seu” Paxlovid foi ensaiado apenas para a variante Delta (muitíssimo mais agressiva do que a actual dominante Omicron), e que, portanto, os potenciais benefícios são uma mão-cheia de nada.

    Nem dele se ouvirá qualquer comentário sobre a (fraca) segurança efectiva deste fármaco que, no Resumo das Características do Medicamento (RCM lista (e ainda estamos no começo) 125 medicamentos com interacções indesejadas ou ainda não completamente conhecidas (vd. pp. 6-21). São cento e vinte e cinco medicamentos – agora por extenso: uma coisa raramente vista. Se acham que exagero, eu listo-os:

    assorted medication tables and capsules

    Alfuzosina, Anfetamina, Buprenorfina, Norbuprenorfina, Petidina, Piroxicam, Propoxifeno, Fentanilo, Metadona, Morfina, Ranolazinha, Amiodarona, Bepridil, Dronedarona, Ecainida, Flecainida, Propafenona, Quinidina, Digoxina, Teofilina, Afatinib, Abemaciclib, Apalutamida, Ceritinib, Dasatinib, Nilotinib, Vincristina, Vinblastina, Encorafenib, Fostamatinib, Ibrutinib, Neratinib, Venetoclax, Rivaroxabano, Vorapaxar, Varfarina, Carbamazepina, Fenobarbital, Fenitoína, Valproato, Lamotrigina, Fenitoína, Amitriptilina, Fluoxetina, Imipramina, Nortriptilina, Paroxetina, Sertralina, Desipramina, Colquicina, Astemizol, Terfenadina, Fexofenadina, Loratadina, Rifabutina, Metabolito 25-O-desacetilo da rifabutina, Voriconazol, Cetoconazol, Itraconazola, Eritromicina, Atovaquona, Bedaquilina, Delamanid, Claritromicina, Metabolito 14-OH da claritromicina, Sulfametoxazol/trimetoprim, Ácido fusídico, Rifampicina, Efavirenz, Maraviroc, Raltegravir, Zidovudina, Glecaprevir/pibrentasvir, Clozapina, Pimozida, Haloperidol, Risperidona, Tioridazina, Lurasidona, Quetiapina, Salmeterol, Amlodipina, Diltiazem, Nifedipina, Bosentano, Riociguat, Di-hidroergotamina, Ergonovina, Ergotamina, Metilergonovina, Cisaprida, Hipericão, Atorvastatina, Fluvastatina, Lovastatina, Pravastatina, Rosuvastatina, Sinvastatina, Etinilestradiol, Ciclosporina, Tacrolímus, Everolímus, Lomitapida, Avanafil, Sildenafil, Tadalafil, Vardenafil, Clorazepato, Diazepam, Estazolam, Flurazepam, Midazolam, Triazolam, Petidina, Metabolito da norpetidina, Alprazolam, Buspirona, Zolpidem, Bupropiom, Propionato de fluticasona, Budesonida, Triamcinolona, Dexametasona, Prednisolona e Levotiroxina.

    Venha o Doutor Filipe Froes dizer-nos quantos medicamentos com consumo em ambulatório têm tamanha quantidade de contra-indicações. E venha dizer-nos ele – na verdade, deveria ser o Infarmed, ou a DGS, ou melhor mesmo a ministra da Saúde, Marta Temido – quem prescreverá estes fármacos pagos a preço de ouro pelo Estado (porque vai ser o Estado a pagar), quem os avia, quem confere se os doentes não estão a tomar quaisquer daqueles medicamentos com possíveis interações graves.

    Ah, já agora, atenção: o RCM do Paxlovid diz que os atrás referidos medicamentos listados “servem de referência e não são considerados uma lista exaustiva de todos os possíveis medicamentos que são contraindicados ou que podem interagir” (sic) com o Plaxovid. Mas que interessa isso ao Doutor Filipe Froes?

    Dele, do Doutor Filipe Froes, só ouviremos loas e ditirambos, hosanas e panegíricos em honra das supostas benesses de antivrais e anticorpos monoclonais para uso extensivo – como previsto na norma da DGS – em “doentes” com sintomas leves ou moderados.

    girl covering her face with both hands

    Qual a razão de tamanha pressa na compra de fármacos que arriscam a dar mais problemas do que vantagens, quando nem sequer se permitiu ainda realizar estudos carcinogénicos nem sobre a gravidez nem sobre a fertilidade nem sobre muitos outros aspectos vitais.

    Mesmo sendo escrito pela própria farmacêutica, a leitura do RCM do Paxlovid – mesmo dizendo pouco – mostra bem, aliás, como a prudência é deitada às malvas por pessoas como o Doutor Filipe Froes. Por exemplo, lá se escreve que “não existem dados sobre a utilização de Paxlovid em mulheres grávidas”, pelo que se recomenda que “as mulheres com potencial para engravidar devem evitar engravidar durante o tratamento com Paxlovid e, como medida de precaução, durante 7 dias após a conclusão da terapêutica com Paxlovid”. Contudo, mais adiante acrescenta-se que um dos fármacos que integram o Paxlovid (ritonavir) “poderá reduzir a eficácia de contraceptivos hormonais combinados”. Se isto não fosse grave, seria cómico.

    Enfim, por vezes me pergunto, muitas vezes, perante médicos como o Doutor Filipe Froes: o que os move?

    Os princípios de Hipócrates não são, certamente. E se ele os invoca – em vão –, então a sua atitude entra, clara e etiologicamente falando, na esfera da Hipocrisia. Temos um Hipócrita que todos os dias “mata” Hipócrates.