Categoria: Opinião

  • Os benefícios dos programas de vacinação contra a COVID-19 em crianças podem não superar os riscos

    Os benefícios dos programas de vacinação contra a COVID-19 em crianças podem não superar os riscos

    Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Acta Pædiatrica: nurturing the child, uma revista científica mensal com peer-review (revisão pelos pares), editada pela Wiley Online Library, sob o título The benefits of COVID-19 vaccination programmes for children may not outweigh the risks. O PÁGINA UM obteve autorização expressa do autor e da revista para a sua publicação integral. A tradução foi realizada por Pedro Almeida Vieira com revisão do autor.


    As vacinas salvaram milhões de vidas, e entre estas incluem-se as vacinas contra o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2), que foram desenvolvidas em tempo recorde. Em Maio de 2021, a Food and Drug Administration [a entidade reguladora norte-americana dos medicamentos] e a Agência Europeia dos Medicamentos (EMA) autorizou o uso da vacina Comirnaty (Pfizer-BioNTech) para crianças entre os 12 e os 15 anos. Em 25 de Novembro de 2021, a EMA estendeu essa autorização para as crianças com idades entre os 5 e os 11 anos.

    A decisão de vacinar as crianças coloca muitos desafios, uma vez que a COVID-19 é uma doença muito mais ligeira nessa faixa etária, tornando o rácio de risco-benefício menos evidente.

    Primeira página do artigo original de Francisco Abecasis na revista científica Acta Pædiatrica: nurturing the child

    Relatos de eventos adversos graves logo após a introdução da vacina em larga escala foram documentados. A suspeita de que as vacinas de ácido ribonucleico mensageiro (RNA mensageiro) podem provocar miocardite e pericardite, especialmente em adolescentes e adultos jovens, foi logo confirmada por estudos clínicos correctamente desenhados.1,2

    quatro pontos-chave que necessitam de uma abordagem sobre a vacinação de crianças.

    O primeiro são os benefícios potenciais para as crianças. As vacinas foram desenvolvidas para prevenir a infecção por SARS-CoV-2, a COVID-19 grave e a mortalidade. Devemos avaliar a gravidade da doença em crianças para compreender os reais benefícios da vacinação. O risco de ser hospitalizado devido a COVID-19 grave é extremamente baixo em crianças. Um estudo inglês de âmbito nacional, que incluiu todas as crianças hospitalizadas com COVID-19 durante o primeiro ano da pandemia, mostrou que 229/251 (91%) dos internados em unidades de cuidados intensivos pediátricos (UCIPs) tinham condições subjacentes ou comorbilidades.3

    Esta situação ocorreu antes da disponibilidade de vacinas e quando a variante Alfa era dominante. Houve também 312 internamentos em UCIPs devidos a síndrome inflamatória multissistémica em crianças (MIS-C). Globalmente, hospitalizações em UCIPs relacionadas com COVID-19 ou MIS-C abrangeram 0,005% da população com idade pediátrica na Inglaterra, constituída por 12,02 milhões de pessoas.3

    Desde o início da pandemia, até Março de 2022, as crianças e adolescentes com menos de 20 anos que testaram positivo para SARS-CoV-2 representaram 0,1% do total de mortes relacionadas com a pandemia em países de rendimento elevado.

    Segundo a UNICEF, cerca de 75% das mortes de crianças e adolescentes até aos 19 anos ocorreu naqueles que tinham comorbilidades. O risco de miocardite, desenvolvida entre 1 e 28 dias após a infecção pelo SARS-CoV-2, foi avaliado por um estudo envolvendo mais de 3 milhões de participantes com idade mínima de 16 anos, tendo-se apurado um risco de 10 casos por milhão (com intervalo de confiança de 95% de 7-11) na população exposta abaixo dos 40 anos de idade.2

    Do nosso conhecimento, não existem dados que comprovem que as actuais vacinas previnem a miocardite associada à infecção por SARS-CoV-2. Os únicos dois casos de miocardite associados ao SARS-CoV-2 que observámos foram em adolescentes totalmente vacinados.

    Até agora, os dados sugerem que o principal risco associado à infecção por SARS-CoV-2 em crianças saudáveis ​​é a MIS-C. As vacinas podem evitar esta complicação?

    Francisco Abecasis, pediatra do Hospital de Santa Maria (Lisboa) e professor auxiliar convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

    Dois estudos demonstraram que a incidência de MIS-C foi cerca de 90% menor em crianças vacinadas do que em não-vacinadas.4,5 No entanto, é importante considerar o momento e o desenho dos estudos. Como esses estudos foram realizados imediatamente após a vacinação, esperava-se que o número de infecções por SARS-CoV-2 fosse muito menor no grupo vacinado.

    Embora esses resultados sejam promissores, a suposição de que a vacina previne a MIS-C deve ser avaliada comparando as taxas de MIS-C em crianças vacinadas e não-vacinadas que foram infectadas com SARS-CoV-2. Esses estudos também revelaram que sete crianças totalmente vacinadas desenvolveram MIS-C. 4,5 Estudos anteriores já tinham apontado que a MIS-C pode desenvolver-se em crianças vacinadas.

    Outro argumento potencial para vacinar crianças é a melhoria no impacte social e psicológico da pandemia. Como médicos, devemos lembrar que uma vacina é uma intervenção médica para prevenir uma doença e nunca deve ser usada para evitar restrições impostas pelas autoridades de saúde ou governamentais.

    O segundo ponto são os benefícios potenciais para terceiros. As vacinas têm sido usadas ​​para erradicar doenças através da imunidade de grupo e também foram usadas ​​para proteger membros da família ou indivíduos vulneráveis ​numa determinada comunidade.

    A imunidade de grupo ocorre quando uma grande parte da população desenvolve imunidade a uma doença, tornando improvável a sua disseminação de pessoa para pessoa, protegendo-se assim toda a comunidade, e não apenas os vacinados. A imunidade de grupo varia de doença para doença, dependendo do nível de infecciosidade. Deve-se salientar que a imunidade de grupo só é possível se os indivíduos imunes não forem infectados ou não transmitirem a doença.

    Sabemos agora que este não é o caso do SARS-CoV-2, e que tanto os indivíduos anteriormente infectados como os vacinados podem infectar-se e transmitir a doença, impossibilitando assim a imunidade de grupo. Apesar disso, o risco de infecção é menor após a vacinação, e a vacinação de uma criança pode ser justificada em casos específicos se, por exemplo, um membro da sua família tiver uma condição clínica que impeça a sua vacinação.

    Por outro lado, se todos os membros adultos de uma família estiverem totalmente vacinados, então há menos lógica em vacinar crianças para proteger os adultos vacinados.

    girl getting vaccine

    O terceiro ponto são os riscos potenciais associados às vacinas de mRNA. A principal preocupação de segurança com vacinas de mRNA é o risco de miocardite, que foi bem estabelecido em adolescentes que receberam a vacina SARS-CoV-2. 1,6

    Um estudo mostrou que este risco foi maior após a segunda dose, afectando 390 adolescentes do sexo masculino e 49 adolescentes do sexo feminino por milhão de segundas doses administradas.7

    A incidência reportada de miocardite foi menor em crianças com idade entre os 5 e os 11 anos, afetando 4,3 rapazes e 2,0 raparigas por milhão de doses administradas. Isto era ainda significativamente superior ao risco background de miocardite naquela faixa etária [risco de base ou incidência não-devida à exposição].

    Embora a maioria dos casos de miocardite pós-vacinal tenha sido leve, e os pacientes recuperaram, houve casos graves de choque cardiogénico e, pelo menos, cinco mortes relatadas, incluindo dois adolescentes e um jovem adulto de 22 anos.6,8 As complicações a médio e longo prazos da vacina permanecem desconhecidas, e pacientes com miocardite podem desenvolver cardiomiopatia dilatada, possivelmente anos mais tarde.

    Esses dados indicam que os riscos não são os mesmos para todas as crianças, e o risco da vacina pode superar os benefícios, especialmente para um adolescente saudável do sexo masculino.

    man in blue crew neck shirt wearing white face mask

    O quarto ponto diz respeito à variante Ómicron. Os estudos citados neste trabalho foram realizados antes do surgimento da variante Ómicron, que parece ter um curso de doença mais leve do que as anteriores variantes de preocupação.

    O rácio risco-benefício para a variante Ómicron parece apoiar a suspensão da vacinação em crianças, tendo em conta a possibilidade de evasão vacinal demonstrada por múltiplos estudos de neutralização de anticorpos.9

    Um artigo de Fevereiro de 2022 do Departamento de Saúde do Estado de Nova Iorque estudou a eficácia da vacina entre crianças antes e após o surgimento da Ómicron, tendo sido mostrada uma redução acentuada na eficácia da vacina contra essa nova variante de 66% para 51% nas crianças dos 12 aos 17 anos, e de 68% para 12% nas crianças dos 5 aos 11 anos. A eficácia da vacina contra a hospitalização também caiu de 85% para 73% e de 100% para 48% respectivamente.10

    Portugal tem a quarta maior taxa de vacinação do Mundo, com mais de 90% da sua população totalmente vacinada. Apesar disso, registou 1,25 milhões de novas infecções por SARS-CoV-2 em Janeiro de 2022, sendo os indivíduos vacinados a maioria desses casos.

    Estes quatro pontos-chave demonstram que a decisão de fornecer vacinação universal para evitar que crianças saudáveis ​​sejam infectadas com SARS-CoV-2 não é simples.

    four children standing on dirt during daytime

    A actual dominância mundial da variante Ómicron sugere que os benefícios podem não superar os riscos associados às vacinas de mRNA.

    Seria mais sensato recomendar que apenas crianças específicas sejam vacinadas, incluindo crianças com factores de risco que as tornam mais susceptíveis à COVID-19 grave e aquelas que estão em contacto próximo com familiares vulneráveis ​​que não podem ser vacinados.

    Quando tomamos decisões sobre vacinas durante a pandemia em curso, devemos lembrar que as crianças não são adultos pequenos e que temos a obrigação de primeiro não causar danos.

    Francisco Abecasis é pediatra na Unidade de Cuidados Intensivos no Hospital de Santa Maria (Lisboa) e professor auxiliar convidado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa


    Bibliografia

    1. Oster ME, Shay DK, Su JR, et al. Myocarditis cases reported after mRNA-based COVID-19 vaccination in the US From December 2020 to August 2021. JAMA. 2022;327(4):331-340. doi:10.1001/jama.2021.24110

    2. Patone M, Mei XW, Handunnetthi L, et al. Risks of myocarditis, pericarditis, and cardiac arrhythmias associated with COVID-19 vaccination or SARS-CoV-2 infection. Nat Med. 2021;28:410-422. doi:10.1038/s41591-021-01630-0

    3. Ward JL, Harwood R, Smith C, et al. Risk factors for PICU admission and death among children and young people hospitalized with COVID-19 and PIMS-TS in England during the first pandemic year. Nat Med. 2022;28(1):193-200. doi:10.1038/s41591-021-01627-9

    4. Zambrano LD, Newhams MM, Olson SM, et al. Effectiveness of BNT162b2 (Pfizer-BioNTech) mRNA vaccination against multisystem inflammatory syndrome in children among persons aged 12–18 Years — United States, July–December 2021. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2022;71(2):52-58. doi:10.15585/mmwr.mm7102e1

    5. Levy M, Recher M, Hubert H, et al. Multisystem inflammatory syndrome in children by COVID-19 vaccination status of adolescents in France. JAMA. 2022;327(3):281-282. doi:10.1136/bmj.n1087

    6. Mevorach D, Anis E, Cedar N, et al. Myocarditis after BNT162b2 mRNA vaccine against COVID-19 in Israel. N Engl J Med. 2021;385(23):2140-2149. doi:10.1056/NEJMoa2109730

    7. Li X, Lai FTT, Chua GT, et al. Myocarditis following COVID-19 BNT162b2 vaccination among adolescents in Hong Kong. JAMA Pediatr. Published online February 25, 2022. doi:10.1001/jamapediatrics.2022.0101. Online ahead of print.

    8. Gill JR, Tashjian R, Duncanson E. Autopsy histopathologic cardiac findings in two adolescents following the second COVID-19 vaccine dose. Arch Pathol Lab Med. Published online February 14, 2022. doi:10.5858/arpa.2021-0435-SA. Online ahead of print.

    9. Wolter N, Jassat W, Walaza S, et al. Early assessment of the clinical severity of the SARS-CoV-2 omicron variant in South Africa: a data linkage study. Lancet. 2022;399(10323):437-446. doi:10.1016/S0140-6736(22)00017-4

    10. Dorabawila V, Hoefer D, Bauer UE, Bassett MT, Lutterloh E, Rosenberg ES. Effectiveness of the BNT162b2 vaccine among children 5–11 and 12–17 years in New York after the emergence of the omicron variant. medRxiv. Published online February 28, 2022. doi:10.1101/2022.02.25.22271454. Online ahead of print.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Tiro ao médico? Não e não

    Tiro ao médico? Não e não


    Sempre que um grupo de trabalhadores do sector público luta por direitos laborais, levanta-se a turba dos indignados. Reparem no pormenor de eu dizer “sector público”. Não há luta no sector privado, há resignação.

    Mas dizia eu: levantam-se vozes, normalmente com os mais estapafúrdios dos argumentos, contra as classes profissionais que se organizam para lutarem pelos seus direitos. Os alvos desta semana são os médicos.

    doctor holding red stethoscope

    Devo dizer-vos uma coisa para início de conversa. Se pensarmos que andamos há 35 anos a receber subsídios europeus e que continuamos pobres, e com auto-estradas de luxo, é mais do que natural que constantemente assistamos a lutas laborais. Assim de repente só me lembro de três ou quatro classes profissionais que têm salários comparáveis aos parceiros europeus mais desenvolvidos.

    Portanto, estranho seria se não víssemos greves e lutas, quando o nível salarial é, na generalidade, o maior problema português.

    Isso aplica-se a um professor, a um enfermeiro, a um médico ou a qualquer funcionário público que não seja autarca, deputado, vereador ou secretário de Estado. Ou ministro.

    De entre as acusações com que os médicos foram brindados – com o “gananciosos” à cabeça –, houve uma que me saltou à vista: a de terem a obrigação de devolver o dinheiro que o país investiu neles, nas suas longas e caríssimas formações, trabalhando em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). E acrescento: as horas necessárias por semana e pelo salário que a tutela quiser.

    Ou seja, para alguns de nós, um médico deve trabalhar 10 horas por dia, fazer urgências e ganhar menos do que um qualquer assessor de secretário de Estado – daqueles que entram e saltam de um Executivo sem darmos por eles, sem terem qualquer formação para lá do networking dos papás.

    Eu não sei se já perderam algum tempo a perceber como funciona o ensino público, mas, na base, todo e qualquer curso universitário numa instituição não-privada é quase integralmente financiado pelo Estado. Seguindo essa lógica da dívida de gratidão, um professor tem que dar aulas 10 anos em bairros sociais, um engenheiro civil tem que fazer as primeiras duas pontes de borla e um advogado tem que defender criminosos pro bono durante cinco anos. Pelo caminho, tornam-se vegetarianos e comem a relva do Monsanto.

    É exactamente pelo custo da formação de um médico, pela duração dos cursos e das especialidades, que o Governo deveria proteger o investimento, dando a estes profissionais salários dignos. Já não digo comparáveis aos seus colegas europeus do Norte, mas, pelo menos, suficientes para o grau de importância que esta profissão tem em qualquer sociedade.

    O risco é que, obviamente, depois de 10 anos de formação, os médicos escolham uma compensação financeira fora do SNS ou, ainda pior, fora de Portugal.

    Não sei se conhecem muitos países com excesso de médicos. Eu não me lembro de nenhum, é uma daquelas profissões sempre em falta, talvez tirando o exemplo cubano que, a dada altura da História, trocavam médicos por petróleo – tema para outro dia.

    Portanto, a questão é simples: sabendo os médicos que podem vender a sua força de trabalho por valores muito mais altos, porque devem eles jurar fidelidade ao SNS e aos salários baixos?

    Esperam que alguém que dedica 20 anos da sua vida a estudar, depois aceite salvar vidas por um salário inferior ao de qualquer boy do PS ou PSD, com experiências profissionais na área da distribuição de sacos de pano e canetas com logótipos de dois em dois anos nas arruadas? Tenham dó!

    Eu espero que os médicos, ou qualquer classe profissional, lute pela dignidade das carreiras e pela justa valorização do trabalho. E isso, meus amigos, num mundo capitalista, começa no salário.

    Ninguém trabalha por caridade e no nosso caso em concreto, se conseguimos andar a salvar Salgados e Rendeiros, e a sustentar uma corja de políticos com zero impacto na sociedade, podemos certamente pagar salários de Primeiro Mundo a quem nos mantém nele mais tempo.

    person sitting while using laptop computer and green stethoscope near

    Um dos nossos problemas enquanto sociedade revela-se a cada greve, a cada discussão com o patronato. Há sempre alguém que diz “eu vivo com 600 euros e tu não consegues com 2.000?”. É esta a raiz dos males: o pensamento que coloca sempre a fasquia no chão. Se eu estou na miséria, não quero sair dela, quero é que tu venhas para onde estou.

    600 euros não é um salário na Europa: é uma esmola, uma afronta, uma exploração. E 2000 euros, depois de cortados os impostos, também não foge muito disso. É aquilo a que nos países civilizados se chama “subsídio de estudante”.

    Nós – ou vá, a maioria de nós – que trabalhamos por conta de outrem, tudo o que temos para trocar é a nossa força de trabalho. Para quem não nasceu em berço de ouro, e depende, em exclusivo, do seu trabalho para viver, é a forma como fazemos essa troca que nos atribui uma vida de qualidade ou de sofrimento.

    E é por isso que não podemos apedrejar quem luta pelos seus direitos laborais e procura a justa compensação pela venda da sua força de trabalho. Devemos é juntar-nos a eles.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lembram-se do Cisne Negro? Cheira que está perto…

    Lembram-se do Cisne Negro? Cheira que está perto…


    Primeiro, era “temporário”:

    • A 27 de Maio de 2021, a Secretária do Tesouro norte-americano e ex-presidente do Banco Central norte-americano, Janel Yellen, afirmava: “Segundo a minha opinião, a recente inflação que estamos a sentir será temporária. É algo não endémico…”;
    • No final de Agosto de 2021, o presidente do Banco Central norte-americano, Jerome Powell, dizia que a recente subida da inflação era um fenómeno transitório;
    • A 28 de Outubro de 2021, a presidente do Banco Central europeu, Christine Lagarde, comentava que “… a recente subida da inflação na zona Euro acima da meta de 2% é temporária e espera que as pressões inflacionistas diminuam no próximo ano”.
    black swan on water

    Depois, de “temporário” passou para “afinal, veio para ficar”:

    • No final de 2021, a Secretária do Tesouro norte-americano e ex-presidente do Banco Central norte-americano, Janel Yellen, alterou o discurso: o processo inflacionário tinha deixado de ser temporário;
    • Em Março de 2022, o presidente do Banco Central norte-americano, Jerome Powell, reconheceu que a inflação era um problema que necessitava de medidas drásticas;
    • No início do presente mês, a secretária do tesouro norte-americano e ex-presidente do Banco Central norte-americano, Janet Yellen, admitia que estava errada acerca da inflação.

    E, por fim, de “afinal, veio para ficar” veio o “pânico”:

    • Na manhã de 15 de Junho, antes da efectivação da subida das taxas de juro pelo Banco Central norte-americano, o Conselho do BCE reunia-se de emergência, anunciando uma nova ferramenta, denominada: “anti-fragmentação”. Traduzindo: o BCE passará a imprimir dinheiro e a comprar obrigações apenas para os estados em apuros;
    • Na tarde de 15 de Junho, o Banco Central norte-americano subiu a sua taxa directora em 0,75% (75 pontos base), a maior subida desde 1994!

    Cheira, portanto, a fim de festa.

    Tal como escrevi em artigo anterior, no passado dia 19 de Abril, a visita de um Cisne Negro poderia ocorrer a qualquer momento. Isto não é uma surpresa. As afirmações dos responsáveis pela situação a que chegámos é a surpresa. Como podia ser uma surpresa?

    O que esperavam do resultado de imprimir dinheiro como se não houvesse amanhã?

    O principal Banco Central do mundo, a Reserva Federal norte-americana, imprimiu 4,75 biliões de Dólares norte-americanos (USD) desde o final de 2019, o equivalente a 22 vezes o Produto Interno Bruto (PIB) português (0,22 biliões de USD) e cerca de 20% do PIB norte-americano (23,5 biliões de USD).

    Ao mesmo tempo, obrigava-se a sociedade a ficar em casa, sem nada produzir, distribuindo cheques e pagando todas as necessidades com dinheiro proveniente da impressora de notas. Anunciava-se então um final feliz: “tudo ia acabar bem”!

    Evolução dos activos totais (em biliões de USD) do balanço da Reserva Federal norte-americana entre o final de 2019 e Junho de 2022. Fonte: St. Louis Fed. Análise do autor.

    Os sinais de fim de festa são agora evidentes.

    No último dia 10 de Junho, para o mês de Maio, a inflação nos Estados Unidos situou-se em 8,6%, um máximo de 40 anos. Na Zona Euro, para o mesmo mês, a inflação foi de 8,1%.

    Entretanto, apesar das minúsculas subidas de juros por parte dos Bancos Centrais, o mercado de dívida pública começa a dar sinais de pânico.

    A rendibilidade implícita das obrigações emitidas pelo Estado Federal norte-americano com maturidade a 10 anos rompeu o máximo de 2018, um pouco acima de 3%. Agora, situa-se em 3,3%, um máximo de 11 anos. Importa notar que esta subida foi muito rápida: em pouco mais de 2 anos subiu de 0,4% para 3,3%.

    Evolução da taxa de juro implícita (%) das obrigações norte-americanas com maturidade a 10 anos negociadas no mercado secundário entre Janeiro de 2008 e Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Este é um dos grandes problemas que se depara aos Bancos Centrais: continuar a manipular, no sentido descendente, as taxas de juro pela compra massiva de obrigações com dinheiro de monopólio pode gerar uma inflação sem precedentes.

    Esta subida também afectou os países do sul da Europa, os denominados PIGS (Portugal, Itália, Grécia e Espanha). Agora, assistem à queda do preço das suas obrigações negociadas no mercado secundário, elevando o juro implícito e tornando incomportável o custo de futuras emissões.

    Durante o último dia 14 de Junho, as obrigações gregas e italianas com maturidade a 10 anos chegaram a ser negociadas a 4,7% e 4,2% respectivamente, um máximo de mais de 10 anos.

    Evolução da taxa de juro implícita (%) das obrigações italianas com maturidade a 10 anos negociadas no mercado secundário entre Janeiro de 2008 e Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    No final de 2021, a Grécia era o país mais endividado da Zona Euro, com um rácio de dívida pública vs. PIB de 193%, seguido da Itália, com 151%, e de Portugal, com 127%.

    A título de exemplo, com um dívida próxima de 300 mil milhões de Euros, em caso de uma subida de 1%, Portugal sofre um acréscimo de 3 mil milhões de Euros de encargos com juros, cerca de 25% do custo do Serviço Nacional de Saúde.

    No caso do Japão, este rácio encontra-se agora em 266%, sendo talvez o maior sinal de alarme do desastre que está a acontecer no mercado de dívida pública. Recordemo-nos que o Japão leva quase oito anos de avanço com este tipo de políticas monetárias, tendo iniciado a compra de activos financeiros por emissão de dinheiro em 2000.

    Em face de uma dívida tão elevada, o Banco Central japonês determinou que o juro implícito das obrigações com maturidade a 10 anos não podia superar, imagine-se, os 0,25%! Hoje é praticamente o único comprador destes títulos de dívida pública.

    Com esta política está a destruir o Iene japonês. Em 2022, cai 13% frente ao USD e encontra-se num mínimo de mais de 20 anos!

    Evolução de Iene japonês (JPY) cotado em Dólares norte-americanos (USD) entre Janeiro de 1998 e Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Esta é a situação que irão enfrentar em breve os dois principais Bancos Centrais, o norte-americano (Reserva Federal) e o europeu (BCE): ou combatem a inflação seriamente ou tornam os estados e os bancos comerciais insolventes, destruindo, ao mesmo tempo, a moeda e o poder de compra dos cidadãos – precisamente o que os japoneses agora enfrentam, em que compram do exterior tudo mais caro, em resultado da depreciação do Iene japonês.

    Apesar da nova crise de dívida soberana – capaz de destruir o sistema monetário que surgiu com o final dos acordos de Bretton Woods (1971) –, a imprensa tem-se dedicado a anunciar o “desastre” que se abateu sobre as Criptomoedas. A correcção de mais de 60% do Bitcoin faz notícia todos os dias.

    Parece que perdemos a perspectiva das coisas. Esta loucura monetária iniciou-se no início de 2020, em que a maioria dos activos financeiros subiu à boleia de uma impressão de dinheiro sem limites.

    Medido em USD, entre o final de 2019 e o último dia 15 de Junho, as duas principais Criptomoedas – o Ethereum e o Bitcoin – subiram 851% e 214% respectivamente. Foram seguidas pelo Petróleo, com 89%, e pelo Nasdaq 100, com 33%. Para o mesmo período, o Euro perdeu 7% e o Iene 20%!

    Variação (%) de oito activos financeiros, medidos em Dólares norte-americanos, entre finais de 2019 e 15 de Janeiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    É assim alguma surpresa que as Criptomoedas sejam os activos financeiros que mais corrigem?

    Continuo a prever que em caso de descontrolo do mercado de dívida pública norte-americana – isto é, caso ocorra uma subida vertiginosa da taxa de juro implícita (maturidade a 10 anos), por exemplo, de 4,3% para 5% em poucas sessões –, os mercados de acções e de obrigações poderão sofrer um autêntico cataclismo. Algo a que nunca assistimos.

    Como é óbvio para todos, o dinheiro não desaparece. Quando começar a sair dos mercados de dívida e de acções, em caso de pânico, os investidores vão dar-se conta que o Bitcoin é a verdadeira reserva de valor, pois não tem risco de contraparte.

    Na verdade, quando alguém tem um Bitcoin numa carteira digital, este activo é seu, não depende da solvência de nenhuma entidade, seja um banco comercial, um Banco Central ou um estado. Quando o pânico se instalar, podemos assistir a subidas vertiginosas no mercado de Criptomoedas e de Matérias-Primas, o refúgio do dinheiro em fuga.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Números que (nos) governam

    Números que (nos) governam


    Habituámo-nos aos números. São símbolos, mas também das principais formas de nos exprimirmos, de comunicar, de entender. Basta ligar o rádio, a televisão ou simplesmente navegar pela internet para perceber como aqueles invadem o nosso pensamento e nos revelam, e nivelam, o interesse pelos acontecimentos.

    Aparentemente, tudo se resume a algarismos, e o domínio destes revela-se um dos primeiros sinais da entrada na vida adulta – quando passamos a saber de cor, por exemplo, o nosso número de contribuinte.

    Alguns adultos são até tão adultos que decoram também o número do cartão de cidadão, o número da segurança social, o número da conta bancária – e tantos outros números que chega a ser possível igualá-los a uma verdadeira máquina registadora.

    person in white shirt and blue denim shorts standing on black and white floor

    Este estado de sedução, a que hoje me refiro; é compreensível; afinal, são os números que respondem às perguntas consideradas fundamentais, que nos apresentam e distinguem: a data de nascimento, o número de irmãos, a média das notas da licenciatura, o tempo de serviço, quanto pesamos, quanto medimos, quanto ganhamos, enfim…

    Porque a mediocridade tomou conta do coração de muitos, perdemos, ainda que aos poucos, o verdadeiro sentido destes aliados simbólicos.

    Pitágoras, um homem sábio, sobre quem pouco se sabe, nada escreveu, e por isso ninguém pode afirmar em absoluto aquilo que por ele terá sido dito. Aliás, aqui está uma curiosa característica comum aos que alcançam o nível mais profundo de conhecimento: nada escrevem (excepção feita para cronistas…).

    Diz a tradição que tanto Pitágoras como os seus alunos mantinham um silêncio pouco habitual. Julga-se saber que este mestre viajou por muitos lugares, não sentindo, ainda assim, a necessidade de registar essas experiências – o que hoje corresponderia à publicação de fotografias e vídeos, numa qualquer rede social. Mesmo assim, o filósofo e matemático concluiu que tudo no universo segue regras e proporções matemáticas.

    Portanto, se entendermos as relações numéricas e matemáticas conseguimos entender o cosmos. E, por isso, a Matemática tornou-se o modelo básico do pensamento humano, levando-nos, por sua vez, a afirmar que “os números governam as ideias”. Comprova-se na Música, na Geometria, na Arquitectura, na Física, na Química e em tantas outras áreas do saber.

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    A ideia de falar sobre números e sobre Pitágoras surgiu-me a propósito da época de exames nacionais. Havemos de falar de números, de muitos números, sejam sobre a quantidade de alunos, a relação das médias nacionais, as percentagens, o ranking.

    Aliás, ainda a propósito da ideia de se avaliar segundo cálculos matemáticos, a qualidade da aprendizagem reduz-se hoje a partir da posição que ocupa cada estabelecimento de ensino numa lista de médias nacionais.  

    Contudo, há um pormenor a reter: por um algarismo, uma virgula ou um sinal, o cálculo matemático erra um resultado. A Matemática é rigorosa. Talvez seja isso que nela nos assusta; afinal, geralmente não somos bons a Matemática – dizem-nos, ironicamente, as estatísticas. Explica-se assim porque somos maus a pensar e, consequentemente, péssimos com as ideias.

    Porém, nem tudo está perdido – caso saibamos assumir a postura de eternos estudantes, reaprendendo a contar (verdades), a somar (qualidades), a subtrair (defeitos), a multiplicar (amabilidades) e a dividir (com todos).


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ouvir a raposa sobre como morreu a galinha? Chamem é a polícia!

    Ouvir a raposa sobre como morreu a galinha? Chamem é a polícia!


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tomou recentemente uma magna deliberação contra a Rádio Campanário porque copiou integralmente uma notícia da Rádio Portalegre sem citar a origem da informação.

    O PÁGINA UM não irá queixar-se à ERC sobre as “campanices” de diversos órgãos de comunicação social mainstream, como a RTP, o Jornal i, o Sol, o Público ou a CNN Portugal que, sem nunca citarem o PÁGINA UM, “acordaram” estremunhados para o excesso de mortalidade em Junho.

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    Nunca citarem o PÁGINA UM, mas irem depois atrás das suas notícias, ainda há-de ser um must. Um dever cívico para qualquer jornalista que se preze.

    Mas passemos à frente.

    Na verdade, até tenho o inconfessável desejo de que a imprensa mainstream me siga. E, por exemplo, em vez de irem os jornalistas a correr falar com “especialistas”, passem a clamar sim por maior  transparência – será que alguém se chocará com o “apagão” da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar denunciado ontem pelo PÁGINA UM? – e ou chamem a polícia, ou seja, a Procuradoria-Geral da República.

    Vamos ser claros.

    Primeira notícia do PÁGINA UM sobre o excesso de mortalidade total de Junho em domingo passado. Seria publicada nova análise no dia 14. A partir daí sucederam-se as notícias na imprensa mainstream.

    A situação da mortalidade total perfeitamente absurda em Junho – e já tinha sido em Abril e em Maio, sobretudo nos mais idosos – não é questão para especulação. É para investigação. Já.

    Mostra-se, por isso, perfeitamente patético que jornais como o Público peçam ao matemático Óscar Felgueiras que explique este excesso, e ele se “socorra” dos supostos 40 óbitos diários por covid-19 e da “temperatura”.

    Pouco vale recolher as dissertações – no bom sentido do termo – da demógrafa Maria João Valente Rosa, que até avisa, e muito bem, que o chamado “efeito colheita” não justifica os excessos de mortalidade em Abril, Maio e primeira metade de Junho. Aquilo que ela faz é teorizar e deduzir, mas não é com isto que se descobre a verdade.

    Mas mesmo pior é ouvir e reportar acriticamente a posição da Direcção-Geral da Saúde (DGS) sobre esta matéria.

    Segundo o Público, a DGS “junta o ‘aumento da mortalidade específica’ por covid-19 ao ‘aumento da temperatura média do ar’”, acrescentando ainda que esta entidade relembra “que este indicador tem estado ‘acima do normal para esta época do ano’”.

    A comunicação social não serve para construir “cortinas de fumo”, baralhar e contribuir para criar “falsas narrativas” justificativas.

    Mas é aquilo que muita imprensa mainstream nos tem habituado.

    Bem sei que, provavelmente, serei criticado por criticar, mais uma vez, o jornal Público, mas não pode um órgão de comunicação social com o seu histórico continuar a usar jornalistas impreparados ou agradar a “narrativa oficial”.

    No caso em concreto – e é extensível aos outros media –, o jornal Público nunca deveria destacar o argumento de uma mortalidade excessiva por via directa da covid-19 – cujos valores já são muito duvidosos, como já apontei, por estarmos em finais de Primavera e sermos um dos países com maior taxa de imunidade vacinal e natural – e de um pretenso aumento da temperatura média do ar, sem sequer qualquer posterior avaliação. E contribuindo para a manipulação da opinião pública. Fazendo desinformação.

    Notícia do Público de hoje que especula sobre as causas da mortalidade em Junho

    Por exemplo, escrever que “o último mês de Maio foi o mais quente dos últimos 92 anos” é induzir o leitor a pensar que um mês de Maio quente é altamente mortífero. Não é, pelo contrário.

    Um Maio quente não é o mesmo que um Agosto quente.

    Um Maio quente será sempre mais frio do que um Agosto frio.

    Um Agosto frio será sempre mais quente do que um Maio quente.

    Entendem?

    Vejamos então. Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, durante o mês de Maio passado, o valor médio da temperatura média foi de 19,19 graus centígrados, uma anomalia de 3,47 graus, e o valor médio da temperatura máxima foi de 25,87 graus.

    As temperaturas de Maio deste ano são, afinal, mais baixas do que um Setembro médio, que é o mês do ano geralmente com a mortalidade total mais baixa!

    Aliás, basta ver que a evolução da mortalidade diária ao longo do último Maio não teve um padrão típico da ocorrência de ondas de calor (uma subida repentina, seguida de uma descida para números normais).

    Teve sim um evidente e sustentado acréscimo face aos anos anteriores. Foi um problema “estrutural”; não meteorológico.

    Aliás, se o Público quisesse confirmar esta argumentação estapafúrdia da DGS deveria ter então consultado o Índice Ícaro – ainda disponível no Portal da Transparência, não sei até quando –, que mede o risco potencial que as temperaturas ambientais elevadas têm para a saúde da população, podendo levar ao óbito.

    Notem: o supostamente tórrido Maio de 2022 teve todos os dias com o valor de 0,00. Significa que as temperaturas terão contribuído com zero mortes.

    Aliás, mesmo agora em Junho, apenas em oito dos 17 dias o valor do Índice Ícaro esteve acima de 0,00, sendo que o máximo foi no dia 13, mas apenas com 0,11.

    Evolução da mortalidade diária em Maio de 2022 e no período 2017-2021 (média móvel de 7 dias). Fonte: SICO.

    Se fosse verdade que um Índice Ícaro de 0,11 justificasse um contributo por mínimo que fosse para se chegar a 403 mortes de pessoas (como sucedeu na segunda-feira passada), nem quero imaginar então o que acontecerá se, por exemplo, no próximo mês de Julho (onde ser um mês mais quente do que o habitual é já outra “fruta”), se repetirem os valores registados em Julho de 2020 (23 dias com Índice Ícaro acima de 0,11, com o máximo a atingir 1,17).

    Aliás, se houver mesmo uma onda de calor, à séria, neste Verão, encomendem já não ventiladores à China mas sim caixões.

    Mas, na verdade, o busílis da questão – e a minha irritação sobre a postura da imprensa face à DGS – é que o Ministério da Saúde e o Governo, se assim quisessem – e não quisessem apenas “salvar o coiro” –, poderiam encontrar já, em tempo real, em cinco minutos, as causas directas de tamanho morticínio.

    Bastava que fossem transparentes e permitissem o acesso aos dados em bruto (anonimizados, claro) das causas das mortes diárias registadas no Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO).

    Esta ferramenta permite até, por exemplo, saber qual a causa da morte sancionada hoje por um médico legista que registou o óbito há cinco minutos.

    Evolução da mortalidade diária (média móvel de 7 dias) em Julho de 2020, marcada por uma onda de calor. Fonte: SICO.

    Por maioria de razão, pode a DGS saber quais foram as causas de morte ao longo de 2022, comparar essas causas, de forma estratificada, com a média de outros anos, cruzar informação por região ou concelho, e daí apurar quais os desvios mais significativos para cada doença.

    Aliás, com o acesso aberto ao SICO ficava-se a saber se o número de mortes por covid-19 anunciado pela DGS é mesmo verdadeiro, se as mortes por cancros estão a aumentar ou não, se há mais ataques cardíacos ou AVC, ou até quantas mortes houve pelas vacinas (porque têm um subcódigo próprio, segundo a terminologia da OMS, o U12.9).

    Acaba-se assim, quaisquer que fossem as perspectivas e as sensibilidades, com as especulações, as cortinas de fumo, as desinformações, as tiragens de cavalinhos da chuvas e as mortes a falecerem solteiras.   

    Mas a DGS nunca fará isso de motu proprio. Nem o Ministério da Saúde quer. E muito menos o Governo e António Costa.

    Por tudo isto, espero mesmo que um dia, a imprensa mainstream me copie mais uma vez e clame, como eu já faço agora: chamem a polícia. Ou seja, meta-se a Procuradoria-Geral da República a investigar isto, porque já estamos na fase do crime.

  • Um apagão ‘decretado’ a uma base de dados pública comprometedora: a resposta do Ministério de Marta Temido às investigações do PÁGINA UM

    Um apagão ‘decretado’ a uma base de dados pública comprometedora: a resposta do Ministério de Marta Temido às investigações do PÁGINA UM


    O PÁGINA UM nasceu em Dezembro de 2021.

    Pequeno, mas totalmente independente. Assim independente, porque assim pode definir a sua agenda, fazer perguntas incómodas e requerimentos – mesmo se o silêncio do lado da Administração é, tantas vezes, a resposta.

    O PÁGINA UM busca a verdade num mundo paradoxalmente cada vez mais fechado à informação fidedigna.

    Nunca o PÁGINA UM escreveu, até agora, uma notícia desmentida, falsa ou manipulatória, mesmo se o seu estilo assenta na denúncia, na crítica – mesmo até, hélas, a colegas de profissão –, na acutilância. Mas também sempre na seriedade e no rigor.

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    Não tendo germinado num ambiente propício, o PÁGINA UM nunca teve a sua vida facilitada, mas hoje, quase seis meses após o seu parto, e com uma redacção minúscula e com escassos meios financeiros, tem demonstrado ser capaz de fazer aquilo que outros órgãos de comunicação nunca fizeram até agora: analisar em detalhe a situação da Saúde Pública, procurando sempre, nessa tarefa, escalpelizar dados oficiais, mesmo quando estes não são activamente divulgados. Não por acaso, o PÁGINA UM tem já seis processos de intimação no Tribunal Administrativo.

    No mês passado, o PÁGINA UM decidiu debruçar-se sobre uma base de dados pública fundamental: Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, existente no Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma iniciativa Open Data do Ministério da Saúde, que disponibiliza, há já alguns anos, cerca de uma centena e meia de bases de dados (umas melhores do que outras, com maior ou menor actualização).

    No caso específico da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, esta foi criada em 2018, sendo um sistema de informação de suporte à monitorização do desempenho dos hospitais do SNS.

    Em concreto, este sistema recolhe dados administrativos, incluindo codificação clínica, permitindo apurar a evolução mensal, desde Janeiro de 2017, de episódios de internamentos, ambulatório e óbitos por capítulo de diagnóstico (por grande grupo de doença) em cada hospital ou centro hospitalar, por grupo etário e sexo. Tem também a particularidade de conseguir identificar a evolução dos internamentos e desfechos da covid-19, uma vez que, neste caso concreto, esta é a única doença do grupo denominado “Códigos para fins especiais”.

    Printscreen da lista inicial actual (por ordem alfabética) das bases de dados do Portal da Transparência do SNS.

    Ora, no mês passado, o PÁGINA UM descarregou a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar – em formato de folha de cálculo Excel – para fazer uma exaustiva e detalhada análise do SNS no contexto da pandemia, confrontando também com o período pré-pandemia. Os dados estavam então actualizados a Janeiro de 2022.

    Para se ter uma ideia do potencial informativo desta base de dados salienta-se que o ficheiro de Excel, contendo dados entre Janeiro de 2017 e Janeiro de 2022 (61 meses), envolvendo 62 unidades do SNS, desagregados por sexo (dois) e por grupo etário (sete), contava 440.036 linhas.

    Embora as abordagens potenciais desta base de dados permitisse a obtenção de informação para um conjunto infindável de notícias relevantes, o PÁGINA UM “apenas” fez um dossier específico de oito artigos, entre 13 de Maio e 1 de Junho, que a seguir se expõem (detalhando o número de gráficos e tabelas incluídas):

    Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, agora “apagada”.

    13 de Maio (com quatro gráficos)

    Dois anos de pandemia: afinal, menos óbitos em hospitais. E um em cada três mortos por covid-19 sem certificado de óbito em unidades de saúde

    14 de Maio (com dois gráficos)

    Pandemia fez descer mortes por cancros em meio hospitalar para níveis atípicos: parodoxo ou embuste?

    18 de Maio (14 gráficos)

    Elevada pressão nos hospitais durante a pandemia, disseram-nos. Afinal, foi mentira…

    19 de Maio (dois gráficos e uma tabela)

    Paradoxos da pandemia: covid-19 internou 57 mil pessoas em 2020 e 2021, mas ‘tirou’ quase 280 mil doentes dos hospitais

    22 de Maio (três gráficos)

    Nos hospitais portugueses, durante a pandemia, a taxa de mortalidade da covid-19 foi 30% superior à das doenças respiratórias

    23 de Maio (quatro gráficos e uma tabela)

    Pandemia trouxe “pandemónio” aos hospitais mesmo nas alas não-covid. Janeiro de 2021 foi uma catástrofe em tudo

    30 de Maio (três gráficos e duas tabelas)

    Em Portugal, Omicron tem indicadores menos ‘agressivos’ do que a gripe

    1 de Junho

    Covid-19: afinal, internado n.º 1 em Portugal foi em Fevereiro de 2020 (e não em Março), era uma mulher de mais de 65 anos e esteve em hospital de Lisboa

    Apenas pelos títulos se pode aquilatar o quão dissonante esta investigação jornalística, usando dados oficiais, estava com a narrativa das autoridades de Saúde ao longo da pandemia. Os conteúdos, sobre os quais se recomenda a leitura, ainda mais revelavam e denunciavam situações a merecer um aprofundamento por entidades independentes.

    Note-se: este trabalho de investigação jornalística do PÁGINA UM nunca foi contestado nem desmentido. Nem em um número sequer. Se não teve eco na outra imprensa, ignoram-se os motivos. E, aliás, já tinha sido utilizada pelo PÁGINA UM, por exemplo, em Fevereiro passado, quando revelámos que a covid-19 era menos agressiva para os jovens do que as doenças respiratórias pré-pandemia do SARS-CoV-2.

    Certo é que, pretendendo o PÁGINA UM actualizar os dados (passando a incluir Fevereiro de 2022), até para desenvolver outra perspectiva de investigação jornalística – neste caso, sobre os internamentos em idade pediátrica –, confrontámo-nos com a pura, singela e abjecta eliminação da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar do Portal da Transparência do SNS. Desapareceu. Quem quiser agora, pela primeira vez, aceder aos dados, pura e simplesmente nem o sítio lá encontra. Não consegue “sacar” os dados (outrora de acesso público) nem de Janeiro de 2022, nem os de Dezembro de 2021, nem os de Novembro de 2021, nem os de… por aí fora, até Janeiro de 2017. Foi “limpeza” completa.

    Google ainda tem “memória”, listando as ligações (agora inactivadas) quando se pesquisa pela base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, entretanto “apagada” pelo Ministério da Saúde.

    Atenção: o Portal da Transparência continua online. Tem agora 149 bases de dados. Mas onde antes surgia a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar depois da base de dados da Monitorização Ambiental de Legionella, não há nada: passa-se de imediato para a base de dados da Mortalidade por AVC Isquémico e Hemorrágico.

    Mas vamos ser Advocatus diaboli – o famoso Advogado do Diabo, criado pela própria Igreja Católica para os processos de canonização: essa base de dados existiu mesmo?

    Ora, o Google tem memória disso.

    Pesquisando por “Morbilidade e Mortalidade Hospitalar” e “SNS”, surge, ainda hoje, a ligação directa por duas vias: pelo próprio site do Portal da Transparência e pelo Portal de Dados Abertos da Administração Pública.

    Porém, nenhum concede acesso à base de dados. Desapareceu. Apagou-se. Foi apagada.

    A Internet tem memória, e por isso, aqui pode-se ver um “retrato” (já “esbatido”), através de um snapshot do Internet Archive.

    Portanto, apresentadas as provas da sua outrora existência – se não bastasse a palavra de um jornalista que iniciou a sua actividade em meados da década de 90 do século passado – ainda se poderia admitir que, enfim, alguém tivesse, nos serviços tutelados pela ministra Marta Temido, escorregado e “desligado” inopinadamente a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar.

    E daí, o PÁGINA UM contactou por e-mail o gabinete de imprensa do Ministério da Saúde questionando sobre os motivos do “apagão”. O último contacto foi hoje.

    Printscreen da mensagem de erro após se digitar o antigo endereço da ligação directa à base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar do Portal da Transparência do SNS.

    Não houve qualquer reacção. Ontem, tentou-se um contacto telefónico para a assessoria de imprensa da ministra Marta Temido. Ninguém atendeu nem devolveu a chamada. Ninguém do Governo acha que se deve justificar depois de uma “canalhice” deste quilate contra dois direitos fundamentais (supostamente) consagrados na Constituição da República: o direito à informação e o direito de acesso à informação por parte dos jornalistas.

    Isto é uma Democracia? Ou é uma anedota patética de Democracia?

    Ou é uma “coisa” um pouco melhor do que uma Ditadura, apenas porque o Governo, enfim, lá prefere “apagar” uma base de dados pública incómoda em vez de “apagar” um jornalista incómodo. Menos mal, no que à (minha) vida me diz respeito, mas igualmente horrível para uma sociedade em pleno século XXI.

    Nota: Para obter a base de dados em formato de folha de cálculo da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar até Janeiro de 2022, antes do “apagão” promovido pelo Ministério da Saúde, pode descarregar o ficheiro Excel, AQUI, no servidor do PÁGINA UM.

  • Alma e corpo de emigrante

    Alma e corpo de emigrante


    Estamos a jogar ping-pong, e ele, enquanto me tenta perturbar o nervo a cada batida – introduzimos mind games há muito na disputa de qualquer ponto, seja xadrez ou raquetadas, pois há que moer a cabeça do adversário –, vai dizendo: “ya pai, tens bué sorte, tipo nessas chouriçadas“.

    Bué, ya, tipo… desde quando falas assim?”, acrescento eu. E ele, sabendo que estamos a dias de ir para casa, diz-me, “estou já a treinar para falar com os primos”

    Continuei concentrado na bola porque, de momento, já não lhe posso dar borlas, sob pena de perder o título de campeão da casa, mas fiquei com a frase ali a bater-me na parte de trás do crânio.

    Recuei duas décadas e lembrei-me de um miúdo que orientei durante um estágio na Autoeuropa. Tinha nascido em Tomsk, na Sibéria, e crescido na Alemanha, para onde os pais tinham emigrado, algures à sombra da fábrica mãe da VW.

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    Andámos uns meses por Setúbal onde, entre outras coisas, lhe tentei explicar que a praia se chamava Albarquel e não Albarcuel.

    Ele dizia-me, várias vezes, que em lado nenhum se sentia um local.

    Na Sibéria era alemão e, em Wolfsburg, passava por russo.

    Desde que me mudei para a Suécia conheci mais N histórias destas, muitas com o denominador comum da Bósnia. Crianças que de lá saíram na década de 90 a fugir da guerra e que hoje, quando voltam, já lá não pertencem. Mas aqui, numa sociedade absolutamente catalogada, nunca chegaram também a suecos. Portanto, ficam ali no limbo eterno.

    O meu filho está precisamente nesse limbo, e eu, por alguma razão, sinto uma enorme dúvida em todo o processo e escolhas de vida. Como perceber o que é mais certo ou até importante, antes de acontecer?

    Até eu, que saí de Portugal com 28 anos, perfeitamente criado e enraizado, já sinto algumas dificuldades quando estou aí, e vejo (e ouço) coisas que para mim, hoje em dia, não fazem qualquer sentido e são perfeitas aberrações.

    Não digo que sejam erradas. Digo apenas que chocam, e muito, com aquilo que vejo em meu redor há 16 anos. Não sinto dificuldades com a língua, mas sinto dificuldade com a mentalidade. Já não me encaixo numa série de coisas que, antigamente, eram parte integrante do meu quotidiano.

    O Diogo refere-se aos suecos como “suecos”. Aos portugueses como “nós”. Portanto, ele identifica-se e sente-se como estrangeiro. Quando aqui está, fala um sueco perfeito, mas não tem cabelo louro. A pergunta primeira, a ele ou qualquer não louro é, “de onde vens?”

    Quando está em Portugal parece-se com qualquer um de nós; porém, fala com erros, com sotaque, com traduções de estruturas gramaticais suecas que não existem em português. Toda e qualquer criança, mal o conhece, pergunta ao fim de dois minutos: “de onde vens?”

    Portanto, esteja onde estiver, Lisboa ou Gotemburgo, de imediato assumem que ele não é dali.

    Abordo o assunto com desvelo, mas sei que ele não se sente confortável com isso. Ainda assim não desanima. Basta chegar a uma praia qualquer e ver uns putos aos chutos numa bola e mete conversa. Aliás, vale-lhe (e a mim também) o espírito aberto de não se encolher perante a adversidade; caso contrário, seria um problema ir a casa.

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    É já agora um problema recorrente entre emigrantes de segunda geração. O desconforto no contacto em cada regresso a casa e um progressivo afastamento. Desde que ele nasceu que falamos português única e exclusivamente para garantir que esse corte nunca chegará. Mas vão-se tropeçando numas pedras pelo caminho – e, ao contrário da frase fofa, não servem para fazer castelos.

    Em tempos, num jogo de futebol entre miúdos, onde eu também participava, um dos putos foi bastante desagradável e começou a gozar com uma palavra mal pronunciada pelo Diogo. Ele não ligou, eu fingi que não ouvi – e na jogada seguinte dei uma sarrafada no miúdo.

    Eu sei, a falha é minha, mas não consegui.

    Eu vejo o esforço que o Diogo faz para ser entendido, hoje em dia em três línguas, e tenho tentado, da minha parte, corrigir todas as falhas gramaticais. Não há dia que não corrija palavras ou frases. É uma luta diária, mas não consigo substituir 12 anos de escola. E a culpa de ele não andar numa escola portuguesa não é dele, é minha. Fui eu que escolhi emigrar, e fui eu que o “condenei” a crescer na Suécia, na escola pública onde ele é a minoria.

    A culpa de ele se sentir diferente, na Suécia ou em Portugal, também é minha. É um peso que carregarei sempre com a desculpa de achar que, aqui, ele terá mais oportunidades de vida e acesso a um ensino universal de educação melhor. Digo a mim mesmo, talvez para acalmar a consciência, que a vida dele será mais fácil por crescer na Escandinávia.

    bowl of food beside wine glass

    Apesar de tudo, ainda acho que não me enganei. Ainda acho que crescer num país desenhado para se ser criança é um privilégio. Ter ciclovias, um campo de futebol em cada bairro, amigos ao lado de casa, horários de trabalho que permitem horas de parentalidade diárias, salários que permitem ver qualquer canto sonhado do mundo e ensino universal, para além da liberdade que a segurança e a organização de cada bairro permitem, não deixam de ser luxos nos dias que correm.

    Restam alguns verões, páscoas e natais, até que ele decida se fica por aqui com a Johanna ou, em alternativa, volta às origens levando consigo a Mari Cruz. Imagino sempre uma chilena a entrar na família, não sei bem porquê.

    Ainda acho que um dia iremos juntos para Portugal. E por aí ficaremos, não sei bem a fazer o quê. Mas nunca deixaremos de ser emigrantes, isso é garantido. Seja no pensamento ou na conjugação do verbo IR.

    Pode ser que isso seja, quiçá, bué de fixe. Vi får se

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Da vergonha ou pelas ruas da amargura da (má) Ciência e do (mau) Jornalismo

    Da vergonha ou pelas ruas da amargura da (má) Ciência e do (mau) Jornalismo


    Na semana em que sucedem os relatos de problemas nas urgências de vários hospitais e nos serviços de Obstetrícia, foi divulgado hoje, pelo jornal Público, a publicação de um artigo na Acta Médica Portuguesa, uma putativa revista científica da Ordem dos Médicos.

    Ler o suposto artigo científico e ler o correspondente artigo jornalístico que o divulga é ter um em dois: comprova-se o deplorável estado de validação da Ciência em Portugal e o lastimável percurso do Jornalismo, que deixou de ser o watchdog da sociedade para assumir a ignóbil tarefa de criar narrativas de marketing.

    O (suposto) artigo científico da revista da Ordem dos Médicos, saído em Maio deste ano, intitula-se Um ano de covid-19 na gravidez: um estudo colaborativo nacional – ou One year of covid-19 in pregnancy: a national wide collaborative study, na sua tradução para inglês, língua em que surge escrito, com excepção de resumos em português. E é assinado por 28 autoras  – todas mulheres, devido à especialidade –, sendo 26 médicas de serviços de obstetrícia e ginecologia de hospitais portugueses, uma investigadora da Universidade Nova de Lisboa e uma técnica da Direcção-Geral da Saúde.

    closeup photography of pregnant woman wearing blue panty

    Infelizmente, nenhuma teve a lucidez de achar que, com aqueles dados, e com a informação recolhida do tratamento dos dados, não tinha ali nada de científico, e muito menos para se retirar a seguinte conclusão: “A infeção pelo SARS-COV-2 na gravidez pode acarretar riscos aumentados para as grávidas e fetos. Recomenda-se uma vigilância individualizada nestes casos e a profilaxia desta população com a vacinação.” E sobretudo a segunda frase.

    Mas fizeram, e todas assinaram pomposamente o artigo, e irão listá-lo nos respectivos currículos. Hipócrates, entretanto, dá voltas no túmulo. Alberto Magno dá piruetas para a esquerda. Francis Bacon para a direita.

    E mais grave do que isso, os editores da Acta Médica Portuguesa, nos quais se destaca o editor-chefe Tiago Villanueva (médico de família na Unidade de Saúde Familiar Reynaldo Santos, na Póvoa de Santa Iria), permitiram que fosse publicado, assim como foi, o dito “estudo”. Vergonha alheia.

    Não se diga que não tiveram tempo de reflexão. O artigo foi recebido na Ordem dos Médicos em 17 de Maio do ano passado, foi aceite em 27 de Outubro, até esteve publicado online (sem qualquer relevo) desde 11 de Fevereiro, e saiu na revista em 2 de Maio.

    O Público lembrou-se agora, e não vou discutir critérios e timings editoriais, em dar-lhe parangonas de destaque, sob o título “Covid-19 pode implicar risco acrescido em grávidas e fetos”, fazendo eco das conclusões das autoras do estudo no sentido de se fazer “uma vigilância individualizada nestes casos” de infecção pelo SARS-CoV-2 (uma recomendação óbvia, aplicável a todas as doenças, presumo eu que nem sou médico).

    E acrescentando ainda a mensagem central: recomenda-se “a profilaxia desta população [de grávidas] com a vacinação”

    Sejamos claros.

    Usar a Ciência, para tomar decisões políticas, é meritório.

    Abusar da Ciência, manipulando-a, para tomar decisões políticas, é vergonhoso, ainda mais quando a Comunicação Social serve de instrumento.

    Este estudo é uma anedota. Porque sendo um mero estudo observacional é meramente descritivo e, portanto, serve para pouca coisa, e nunca para conclusões daquela jaez. Não é um estudo de coorte, nem pode ser de caso-controle, nem é transversal nem ecológico, nem nada que se pareça com um estudo epidemiológico.

    Meramente descreve, e pouco, e de forma agregada, a evolução de um conjunto de 630 grávidas portuguesas com teste positivo à covid-19, sem sequer apresentar comparação com as afecções decorrentes de outras infecções respiratórias em anos anteriores ou com as complicações gerais no decurso das gravidezes e partos; sem sequer comparar com grávidas que estivessem ao longo de 2021 vacinadas; e sem recolher dados que permitisse apontar hipóteses de explicações para os (pouquíssimos) casos graves relacionados com a covid-19.

    O “estudo” é uma inutilidade, uma anedota científica.

    Deveria servir, nas universidades, para duas coisas: ou para ensinar os alunos sobre o que não se deve fazer num estudo; ou chumbar os alunos que fizessem um estudo assim.

    clap board roadside Jakob and Ryan

    Quando muito, este “estudo” deveria merecer de editores científicos mais compaixão do que publicação: as autoras imaginaram mesmo que poderiam fazer um estudo desta natureza (e vê-lo numa revista científica) com base em 630 gravidezes entre Março de 2020 e Março de 2021! Seiscentas e trinta gravidezes! E depois acharam que poderiam retirar conclusões para todo o universo das quase 200.000 gravidezes que já se registaram em Portugal desde o início da pandemia, e também para as 85 mil mulheres que, em cada ano, vierem a engravidar.

    Não há, para as autoras, necessidade sequer de introduzir um singelo grupo de controlo (grávidas sem covid-19, vá lá, tiradas ao calhas) para comparar? Ó céus!

    Publicarem uma coisa destas numa (mesmo que suposta) revista científica com uma amostra deste tamanho, só pode ser porque a revista científica não é científica coisa nenhuma. E também revela a falta de cultura científica nas unidades de saúde portuguesas, a começar pelo desenho dos estudos, pela colecta dos dados e pela análise crítica (ou ausência) dos resultados e até onde se pode ir nas conclusões.

    Mas publicou-se. E ficamos a saber que das 630, nenhuma morreu, quase dois terços estiveram assintomáticas (só souberam que estavam com covid-19 porque fizeram teste) e apenas 10 (1,5%) estiveram em UCI, embora apenas 2 ventiladas (0,3%).

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    Duas mulheres ventiladas em 630: é isto preocupante do ponto de vista de Saúde Pública? Foi só por causa da covid-19 que estas duas em 630 foram ventiladas? As autoras nada dizem, porque não sabem, porque não apresentaram comparações. Na verdade, sabiam bem que o seu “estudo” valia nada do ponto de vista científico, mas arrogam-se no direito de defender: vacinem-se todas as grávidas. E acham que isto é Ciência.

    Não pode bastar-nos que escrevam, na introdução do resumo do artigo, o seguinte: “Apesar do risco da covid-19 na gravidez poder ser acrescido, são necessários estudos em larga escala para o melhor conhecimento do impacto desta infeção nesta população.”

    Porque, na verdade, isto é uma mera confissão: o que fizemos não foi um estudo. Foi uma “coisa”… Mas, com esta “coisa”, recomendam depois “a profilaxia desta população com a vacinação”. Expliquem-me como é que, com “coisa” tão malparida, se afirma peremptoriamente uma coisa destas?

    Aliás, ao longo do “artigo científico” (escrevamos com aspas), nem sequer se quantifica o risco (senhores e senhoras autoras do artigo, um risco tem de ser quantificado) para se retirar qualquer conclusão digna desse nome.

    Ora, mas o objectivo desta “coisa” foi óbvio e claro, mas não-científico: contribuir para a narrativa, dar um argumento supostamente científico na promoção da vacinação das grávidas, sem sequer se apresentar um estudo decente sobre os efeitos benéficos (que poderá haver) e/ou eventualmente prejudiciais (que também poderá haver).

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    Minhas senhoras e meus senhores: só com análises rigorosas e científicas se pode concluir por uma recomendação ou por um desaconselhamento. Não é com uma “coisa” como esta assinada por 28 pessoas, muito doutas, certo, mas sem ética científica.

    Este é, para mim, mais um exemplo paradigmático do estado da Ciência em época pandémica: querendo-se, uma determinada entidade usa o seu prestígio do passado – como a Ordem dos Médicos – para “prostituir” a Ciência, abusando dela para transmitir uma narrativa, bastando que uma Comunicação Social acrítica e/ou colaborativa faça as necessárias parangonas, agora sempre com o famigerado e vergonhoso “PODE” no título.

    Em suma, blá blá blá…, isto é Ciência, e vacinem-se. Uma vergonha.

    Ao longo da pandemia viveu-se, de facto, assim. Com pseudociência e pseudo-jornalismo. E não deveria ser. Não pode ser.

    Enquanto isto, faltam obstetras nos hospitais portugueses. E o Serviço Nacional de Saúde num caos. E isso mata. Tem-se visto.

  • As leis do empobrecimento

    As leis do empobrecimento


    Volto com alguma regularidade ao drama do Ruanda em 1994. Não é que o quotidiano não me preencha a quota de amarguras, mas há, naquele genocídio, uma lição sobre maiorias que, parece-me, vamos esquecendo com o passar das décadas.

    Não quero de forma alguma estabelecer comparações com um período da História de pura barbárie, embora queira aí recuar para pensar na saturação ou no rastilho que deu origem a uma das maiores catástrofes humanitárias do século XX.

    Resumindo uma história complexa: durante gerações, a minoria Tutsi foi utilizada pelos colonos (belgas) para controlar a restante população, maioritariamente Hutu. Uma situação de algum privilégio e acesso aos lugares de poder que se arrastou por décadas, até que a maioria se revoltou.

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    Não há nada que justifique o que ali aconteceu, e hoje o Ruanda não é propriamente um sítio melhor. Os Tutsies recuperaram o poder na guerra civil e, entre eleições fraudulentas e suspeitas de afastamento de opositores, Paul Kagame, antigo líder militar, está há mais de 20 anos na liderança do país.

    Mas a chacina aconteceu. Mais de meio milhão de pessoas foram assassinadas, e o desespero por condições de vida foram o rastilho. É aqui que nos quero transportar para a realidade europeia e, em especial, para a portuguesa.

    Bem sei que todos estes dramas nos passam um pouco ao lado, e dentro do continente europeu estamos habituados a alguma estabilidade. Mas agora, depois de dois anos e meio de absoluta loucura governativa com a covid-19, uma guerra que se alastrou – convém lembrar que a zona Este da Ucrânia está ao som de morteiros desde 2014 – , uma inflação a chegar aos dois dígitos e juros mais altos decididos pelo BCE, é justo de afirmar que boa parte da população portuguesa está em dificuldades.

    Num programa económico, não me lembro agora em que canal, explicava um analista, de forma pedagógica e em tom de conselho à população, o que poderiam fazer para aguentar o embate esperado dos aumentos das taxas de juro decididas pelo BCE (agora em Julho).

    two Euro banknotes

    Em média, para créditos com spread actual a rondar os 1,5% e com os aumentos anunciados por Christine Lagarde, estima-se que por cada 150.000 euros de empréstimo, a prestação suba cerca de 100 euros.

    Não sendo economista, tento perceber, junto de quem sabe, o porquê destas medidas. Para mim, um simples e anónimo português, a pergunta que importa é esta: com um salário médio de 1.000 euros e 85% a levarem para casa menos de 900 euros líquidos, como é que se aguentam aumentos de centenas nas prestações bancárias?

    É esta a matemática simples que eu tento compreender.

    Normalmente levo com teorias do género “são as leias básicas da Economia, pá!”. Quais? Bom… se a inflação aumenta, tem de se aumentar também o juro para que fique menos dinheiro disponível para o consumo e, dessa forma, se reduza a inflação. Mas, pergunta minha, se a inflação (preços dos bens de consumo) aumenta, as pessoas não consomem menos porque perdem poder de compra?

    Em teoria sim, diz-me quem percebe disto, mas em Portugal está-se a verificar um fenómeno contrário, porque as pessoas acumularam algum dinheiro durante a pandemia.

    Por outro lado, acrescenta quem foi à escola ouvir falar disto, o banco não pode receber menos do que te emprestou e hoje o dinheiro vale menos. A forma de compensar é com a subida dos juros.

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    Volto ao meu bloco de notas e abro as estatísticas do Instituto Nacional de Estatística (INE). Mesmo que os portugueses tenham gastado menos daqueles fabulosos 900 euros mensais ao longo de um ou dois anos, quanto é que poderão ter poupado? O suficiente para umas férias? Mais jantares com bifes proibidos pela Jonet? Ou estão todos a comprar iates no Mónaco?

    De que nível de poupança estamos a falar? Com este nível de rendimentos não me parece que sejam sacos e mais sacos de arame, como lhe chamava Mário Soares.

    E sobre o dinheiro valer menos hoje, e a banca ter que ser compensada, confesso que começo a sentir algum fumo no emissor do meu transístor por onde passa a corrente. É que, vam’lá a ver, a banca portuguesa recebe dinheiro desviado dos impostos há mais de uma década. Pega nesse dinheiro e empresta-nos com juro. Portanto, nós pagamos duas vezes a mesma coisa, ou três, se contarmos com os prémios de gestão ao fim do ano. E agora, numa altura de óbvio embate, somos nós que voltamos a meter a pele.

    Eu compreendo o cenário de catástrofe: dois anos de pandemia, com o Governo a endividar-se para pagar confinamentos, layoffs e até vacinas em barda a farmacêuticas que, lembrem-se, nunca abriram as patentes. Portanto, a factura da covid-19 – depois dos lucros pornográficos dos laboratórios, farmacêuticas e empresas de bens de primeira necessidade/entregas online –, chegou e será entregue a quem as costuma pagar: os trabalhadores por conta de outrem.

    Em cima disto, metemos a guerra na Ucrânia e mais 2% do Orçamento de Estado desviado para políticas belicistas. Somamos o mercado liberal de combustíveis – que, afectado ou não pelo petróleo russo, aproveita para recuperar o que não ganhou quando todos estavam em casa. Aumento esse, no caso português, mesmo com a redução de impostos, o que é algo de extraordinariamente abjecto, e a confirmação do cartel petrolífero que usa e abusa da lei que lhes dá poder para decidirem tudo, sem qualquer regulação governamental.

    Ah… e quase que me esquecia: ainda temos que ter em conta a total desregulação do mercado imobiliário e o elevado endividamento das famílias portuguesas. Isto porque, claro, insistem em não viver debaixo da ponte, o que também não se compreende.

    Portanto, chegados aqui, e com esta bomba-relógio em ponto rebuçado, dizem-nos que temos de aumentar ainda mais o custo de vida. Porquê? Porque é uma lei da Economia, estúpidos. Mesmo sabendo que oito em cada 10 famílias podem vir a passar ainda por mais dificuldades, e muitos terão de entregar casas, mas, caso não percebam, é para o vosso bem.

    Dou comigo a pensar nisto, e a ver o comum português que trabalha de sol a sol para pagar contas, enquanto acumula aquela fortuna que lhe dá direito a 15 dias em Agosto na Quarteira.

    Que culpa tem este gajo dos confinamentos? Ou das ajudas à banca? Ou da invasão da Ucrânia? Ou das sanções impostas pela União Europeia? Algum de nós foi tido ou achado nesta merda que andamos a viver desde 2020? Não.

    O nosso papel é abdicar de liberdades básicas em nome não se sabe bem de quê, ou, em alternativa, pagar a conta.

    persons right hand doing fist gesture

    Temos que andar a reboque e a empobrecer por decisões de uma minoria, algumas comprovadamente erradas e prejudiciais.

    Bem sei que, em democracia, elegemos outros para decidirem por nós, mas tudo tem um limite e, no fim das contas, a resistência de um povo à adversidade imposta pelo poder tem um tempo.

    Se forem três ou quatro que percam este ano a ida à Quarteira, enfim, a coisa faz-se. Se forem umas centenas sem casas, actualiza-se uma tabela de pobres do INE, e vamos para fim-de-semana. Mas se forem uns milhões a caminhar para a pobreza, a entregarem casas e a ficarem ainda mais desesperados, não pode o cenário ficar ligeiramente mais sombrio para quem nos governa?

    É que quando justificamos a pobreza de milhões com leis da economia, eu lembro-me sempre da afirmação de Marcelo Rebelo de Sousa, no jornal da TVI, nos tempos de comentador a propósito da careca descoberta no BES e da primeira intervenção estatal. “Mas está a brincar?”, disse ele para o pivot, “já imaginou o perigo de risco sistémico se não ajudássemos o BES?”. Aí está, outra lei da Economia que em 2008 nos disse o que fazer. Parece-me óbvio, 14 anos depois, que foi bom segui-la.

    Se a história dos nossos dias fosse o capítulo de um livro, com este enredo em que a população perde direitos, liberdades, condições de vida e boa parte do seu sustento no espaço de dois anos e meio, eu esperaria que o capítulo seguinte se iniciasse com uma revolução.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Economia: um mundo ao contrário

    Economia: um mundo ao contrário


    Vivemos num mundo de contradições: a Educação é universal, as sociedades nunca estiveram tão bem preparadas, o Ensino Superior “democratizou-se”, mas, no entanto, as falácias e os sofismas prosperam.

    A desinformação sobre temas económicos e de mercados financeiros nunca foi tão gritante. Aos nossos olhos, uma elite de banqueiros centrais, burocratas e políticos vendem, todos os dias, patranhas sem qualquer contraditório. A sociedade acredita acriticamente em tudo o que lhe dizem, como se fossem dogmas; eles são os novos presbíteros que nos conduzem à salvação.

    Os bancos deixaram de ser bancos. Em lugar de entidades que procuram atrair as nossas poupanças, protegendo ao mesmo tempo a nossa privacidade, são agora gigantescas máquinas de burocratas, directamente ligadas à autoridade tributária. A maioria das suas receitas provém da especulação com títulos de dívida dos Governos, em lugar da tradicional intermediação financeira.

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    Enquanto isso, dizem eles, por exemplo, que as Criptomoedas apenas servem para lavar dinheiro e consomem muita energia. Mas “esquecem”, ao mesmo tempo, de esclarecer que, afinal, com as Criptomoedas todas as transacções são rastreáveis – ao contrário do dinheiro físico – e que o consumo de energia é essencial para um processo de mineração sério, em lugar de um simples apertar do “botão”, que é como os bancos centrais produzem dinheiro.

    Recordemos o charlatão Alves dos Reis, que imprimia notas iguais às do Banco de Portugal, tendo levado, durante algum tempo, uma vida de luxo em Lisboa. Após ter sido descoberto, foi condenado a 20 anos de prisão, dos quais 12 em degredo.

    Contudo, agora, os bancos centrais imprimem moeda sem limites – como se viu, em particular, nos anos de 2020 e 2021 –, algo não possível com o Bitcoin. Mas a “culpa” da inflação, dizem, é da guerra na Ucrânia.

    Dizem-nos também que estão a combater a inflação com juros próximos de 0% e subidas de 0,5%. E com isto, enfim, a inflação já se aproxima dos dois dígitos – ou está mesmo acima em alguns países da União Europeia. Em paralelo, diabolizam as StableCoins – exigindo que sejam ainda mais reguladas –, quando se sabe que estas são usadas em projectos DeFi (finanças descentralizadas) remunerando acima da taxa de inflação.

    Evolução da taxa de inflação (%) na Zona Euro entre Junho de 2021 e Maio de 2022. Fonte: Trading Economics.

    Há dois anos, os “peritos económicos” informavam-nos que a deflação era algo diabólico, trágico mesmo.

    Que argumentos eram utilizados para tal conclusão? As pessoas, quando tal acontece, atrasam o seu consumo, esperando por preços se tornem ainda mais baixos no futuro. Caso tal aconteça, a contracção económica está ao virar da esquina. Funestíssimo! A razão para a loucura monetária que estamos a viver.

    Há muitos anos, quando os computadores não paravam de descer de preço, algum consumidor foi tentado a não comprar algo que necessitava de imediato? Alguém no seu perfeito juízo deixa de comprar um bem ou um serviço porque agora custa 100 e daqui a um ano 95?

    Não será isto, afinal, beneficiar os pobres e desfavorecidos, pois o poder aquisitivo da moeda que têm no bolso incrementa? Não é a subida da produtividade, fruto da acumulação e inovação capitalista, que pode fazer resultar em preços mais baixos para todos? Verdades que desapareceram!

    Na Constituição Portuguesa diz-se também que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte”. Isto é verdade?

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    Vejamos. Os bancos podem utilizar de forma impune o sistema de reservas fraccionadas – ou seja, concedem crédito a particulares e empresas a partir da emissão de moeda a partir do “nada”, diminuindo, desta forma, o poder aquisitivo do dinheiro que temos no bolso.

    Isto é uma óbvia agressão à propriedade privada.

    Não obstante, esta prática está perfeitamente legalizada e é responsável pelas crises financeiras que atravessamos, cada vez mais acentuadas.

    Segundo consta, o fenómeno da inflação resulta da evolução de um índice de preços definido por uma agência governamental:

    Será mesmo assim? Não deveria ser a evolução da massa monetária?

    Se imaginássemos que o Alves dos Reis, com as suas fantásticas notas falsas, decidia comprar maçãs no mercado de Lisboa sem qualquer preocupação em relação preço, o que iria acontecer? Correcto: o preço subia!

    Os vendedores sabiam que Alves dos Reis as compraria mesmo que subissem o preço. E com isto levava que a propriedade privada das outras pessoas fosse afectada, atendendo que, com a mesma quantidade de dinheiro, passariam a comprar cada vez menos maçãs.

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    Na prática, é isto o que está a acontecer com toda a massa monetária emitida nos últimos dois anos pelos Bancos Centrais. Já todos repararam, certamente, na subida do custo de vida dos últimos dois anos: comida, preços das casas. E até nos activos financeiros – excepto as acções dos bancos –, incluindo as Criptomoedas, subiram expressivamente e sem cessar.

    Não será isso uma “prova” de que massa monetária, emitida do ar, “correu” para esses bens, provocando subidas exponenciais do seu preço?

    A título ilustrativo, o Ethereum subiu 1.349% e o Bitcoin 340%. Qualquer cidadão se apercebe que os preços sobem, de forma inexorável com o aumento da massa monetária; mas, todavia, segundo a versão oficial, a inflação é algo temporário e desaparecerá em breve.

    Sabemos ser um consenso que consumir agora é preferível a consumir no futuro. Mas conceder um crédito significa que alguém realiza um sacrifício no presente para consumir no futuro; e por isso exige um preço, por exemplo, de 5% ao ano. Porém, agora só o podem fazer no mundo das Criptomoedas, através de projectos DeFi.

    Variação (%) do preço (em euros) das principais Criptomoedas e das das acções de bancos entre o final de 2019 e 8 de Junho de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Porque na Economia dos Bancos Centrais temos taxas de juro reais negativas – que significa taxas de juro nos bancos inferiores à inflação –, e este é um fenómeno de mercado que veio para ficar, uma nova verdade.

    Ora, não será evidente que esta situação resulta da compra de títulos de dívida, a partir de moeda emitida do “ar”, provocando a descida da rendibilidade desses títulos, inclusive para um valor negativo?

    Mas isto também se passa, em certa medida, com a Segurança Social. Em breve explicarei como…

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.