O novo presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, esteve muito bem quando, no dia 8 de Abril, passado interrompeu um habitual discurso xenófobo de André Ventura contra os ciganos, para lhe dizer: “Permita-me que o interrompa para lhe dizer que não há atribuições coletivas de culpa em Portugal e, portanto, solicito-lhe que continue livremente a sua intervenção, como tem direito, mas respeitando este princípio.”
Perante o ar escandalizado do líder do Chega por esta inusitada interrupção, Augusto Santos Silva justificou-a com o n.º 3 do artigo 89º do Regimento do nosso Parlamento: “O orador é advertido pelo Presidente da Assembleia da República quando se desvie do assunto em discussão ou quando o discurso se torne injurioso ou ofensivo, podendo retirar-lhe a palavra”.
Augusto Santos Silva no passado dia 8 de Abril, enquanto repreendia André Ventura.
Há, porém, um detalhe neste artigo que, em democracia, estando previsto, acaba por ser um abuso se usado. Com efeito, nenhumas dúvidas sequer éticas ou morais assistem a que Ventura, ou outro qualquer deputado de qualquer partido, seja advertido pelo Presidente da Assembleia da República “quando o discurso se torne injurioso” – como, e muito bem, repita-se, fez Augusto Santos Silva. Porém, se o presidente do Parlamento avançar com a parte final do artigo – “podendo retirar-lhe a palavra” –, já consubstancia, mesmo se previsto no regimento, uma “possibilidade” de abuso.
Eu acho que Ventura deve ser advertido e contestado as vezes que forem necessárias. E serão muitas. E muitos outros também devem ser advertidos se for caso disso. Mas, numa democracia, retirar a palavra, impor o silêncio, ainda mais num Parlamento, é algo contra-natura; aí “derrotam-se” ideias ou argumentos com palavras; não com imposições de silêncio.
Julgar que se derrotam ideias, mesmo se más ou nefastas, com silêncio em vez de ser com palavras é um erro.
Numa sociedade democrática jamais se pode impor ideias ou argumentos restringindo a liberdade de expressão e de opinião. Isso fazem as ditaduras. A diferença entre uma ditadura e uma democracia não se estabelece apenas pela questão do sufrágio; isso é quase um pormenor.
Por isso mesmo, fico extremamente preocupado perante uma pergunta “retórica”– mas não ingénua – do mesmo Augusto Santos Silva, anteontem num encontro com jovens, em que abordou a velha questão da “desinformação”. Disse ele, passo a citar: “A pergunta que se coloca hoje é saber se o nível de ódio, de desinformação e até de violência que assaltou as redes sociais nos obriga ou não a ser um pouco menos minimalistas e um pouco mais avançados nesta regulação dos conteúdos das redes sociais”.
Já aqui defendi que a “desinformação” é uma externalidade negativa da existência da democracia; e que se uma democracia anunciar o fim da “desinformação” por decreto – passando a definir o que é verdade, podendo transformar as “verdades incómodas” em “desinformação” –, então passa a ser uma ditadura. Sem tirar nem pôr.
Ora, numa democracia pouco sólida – o mesmo se aplicando a uma ditadura –, facilmente se cai no abuso de rotular “desinformação” uma simples opinião minoritária, não necessariamente errada. Uma democracia pouco sólida tende assim a decretar o fim da “desinformação” usando, mesmo que eufemisticamente, as mesmas armas das ditaduras para controlar a liberdade de expressão: a censura e o silenciamento, através de leis ou comissões.
Ao invés, numa democracia sólida, a “desinformação” é auto-regulada – se for mesmo sinónimo de “falsa informação” –, e tende a ser reduzida ou eliminada pelo debate de ideias e pela liberdade de expressão. E sucede através de um processo pacífico – e não político ou governamental –, porque a sociedade tem, per si, e de forma inculcada na esmagadora maioria das pessoas, elevados padrões de Educação e de Cultura. E de convivência democrática, passe o pleonasmo.
Assim, quanto mais bem-sucedidas tiverem sido as políticas públicas de um país na área da Educação e da Cultura, menor será a probabilidade de proliferação de “desinformação”, e maior será a probabilidade de termos debates de ideias onde até as opiniões minoritárias tenham oportunidade de dirimir argumentos – e serem justamente sublimadas como verdades, ou eliminadas como falsidades.
Ora, nem de propósito, o senhor Professor Doutor Augusto Santos Silva – com um impressionante currículo académico e político – já foi tanto ministro da Educação (2000-2001) como ministro da Cultura (2001-2002). Pertenceu a Governos durante 14 anos.
Os seus Governos, e ele, falharam em incutir melhores padrões de Educação e de Cultura. Não conseguiu ele, por essa via, reduzir (ou eliminar) a “desinformação”.
A pergunta retórica do presidente da Assembleia da República só demonstra o quão débil se encontra a nossa democracia.
Não queiramos, não permitamos que ele, Augusto Santos Silva, por eventualmente se sentir um falhado político como membro de tantos Governos, queira acertar agora como presidente da Assembleia da República promovendo a eliminação da “desinformação” por decreto. E deitando fora, nesse nefasto processo, os princípios democráticos, e brindando-nos com uma ditadura. Sem tirar nem pôr.
Estou, em todo o caso, esperançoso que Augusto Santos Silva – com a sua proposta de controlar a “desinformação” através de uma alteração da Constituição da República – tenha tido apenas uma má ideia no sítio certo, na Assembleia da República. Afinal, lembremo-nos das suas palavras no passado dia 29 de Março, aquando da sua tomada de posse: “Todas as ideias podem ser trazidas, mesmo as que contestam a democracia. Essa é a mais óbvia vantagem da democracia sobre a ditadura”. Touché.
Dizia a responsável de uma empresa de extracção de granito, em Pinhel, no distrito da Guarda, que as pessoas deviam pensar um pouco mais no interior. Há falta de mão-de-obra, todos fogem para o litoral.
É um facto, não há muito a dizer sobre isso. Há um êxodo, de décadas, para o litoral do país. Dizem-nos que a principal razão se prende com a concentração do mercado de trabalho nas cinturas de Porto e Lisboa.
Pessoalmente, acho que a escolha de deixar o interior não acaba nas oportunidades laborais, mas sim na ilusão de estarmos no sítio onde tudo acontece. Em Portugal, isso resume-se a Lisboa e, de quando em vez, ao Porto.
E digo ilusão porque, depois de ter mudado de casa 30 vezes, vivido em subúrbios bons e maus, vilas e cidades, capitais e periferias, passando ainda por uma ilha com apenas cinco mil habitantes, considero hoje que se vive melhor fora dos grandes centros.
Obras, trânsito, especulação imobiliária. Três coisas que gosto de evitar na minha vida, e que me fazem passar na minha Lisboa natal sempre em rotação para outro sítio qualquer.
Gosto de estar no centro de tudo…Londres, Paris, Nova Iorque, Lisboa, Berlim, Amsterdão, Tóquio, Istambul ou Rio de Janeiro estão entre os sítios onde me sinto melhor. Mas, no fim, no fim de tudo, gosto de regressar à paz do mar, do silêncio, das caras conhecidas e da ausência de conflitos na estrada. Gosto da guerra urbana por uns dias, não por uma vida.
O problema, pelo menos em Portugal, é como transformar o interior num sítio apelativo. Na Suécia é relativamente simples. Tanto as fábricas como as empresas ou serviços do Estado estão espalhadas pelo país. Claro que há mais oportunidades nas três principais cidades – Estocolmo, Gotemburgo e Malmö –, mas ninguém tem que sair da sua aldeia se não quiser. Há sempre emprego por perto.
Em Portugal não será bem assim. Empresas que abrem no interior são notícia. Casos raros. Exemplos de coragem e de quebra de barreiras. Mas poucos querem ir para lá viver. A qualidade de vida difere de análise para análise e, pessoalmente, sempre que tenho esta conversa com conhecidos o que mais ouço é “o que vou eu fazer numa aldeia do Alentejo?”.
Isto dito por quem vive na Arrentela, famosa pelos seus museus, restaurantes de grelhados, bailados, orquestras sinfónicas e arranha-céus com vista para o Monsanto. Quem nunca viu o Lago dos Cisnes na Torre da Marinha, que atire a primeira pedra.
Nos grandes centros urbanos, as deslocações tornaram-se um pesadelo – julgo que ouço a conversa da fila na segunda ponte do Feijó desde que nasci – e, com a especulação imparável no centro, a tendência é que os subúrbios não parem de receber gente, futuros clientes do caos no trânsito.
Ainda assim, quem quer deixar este inferno – para mim, isto é um cenário de Dante –, que hipótese de emprego tem no interior?
Esqueçamos a oferta cultural, as actividades, a ocupação dos tempos livres, ou tudo aquilo que achamos imperdível numa cidade. Que empregos esperam estas pessoas em Pinhel, por exemplo, nas palavras da senhora que se queixava ao jornalista de serviço?
Dizia ela que as pessoas normalmente só querem empregos de escritório, como em Lisboa. E que tinham que procurar também outras coisas, porque o interior precisava. Só a referência a um emprego de escritório como algo bom faz-me logo lembrar a bitola da minha avó, quando falava de uma neta ou filha de uma amiga qualquer na sua pequena aldeia do Alentejo: “Olha, ela até conseguiu um emprego muito bom. Num escritório. Não sei o que fazia, mas era num escritório”.
Eu sorrio sempre com as avaliações à vida feitas pela minha avó. Ela nasceu em 1927. Nas décadas seguintes, os escritórios estariam reservados para umas elites e, portanto, tudo aquilo faz sentido na cabeça dela. Já ouvir esse discurso numa empresária do granito neste século, enfim, ajuda um pouco a perceber a falta de mão-de-obra.
O problema, em última análise, é o “arame”, como lhe chamava Mário Soares. À pergunta sobre o nível salarial feita pela jornalista, respondeu a empresária, ligeiramente envergonhada: “Bom, isso depende do trabalhador”. Seguiu-se a insistência da entrevistadora, na tentativa de sacar um número: “Mas qual é a base? Está ao nível do salário mínimo?”. Aí a entrevistada já se soltou um pouco mais. “Sim, sim. Começam todos pelo salário mínimo, e depois vão evoluindo por aí fora”.
Ui…por aí fora. Eu imagino as reuniões com análises de produtividade, aumentos salariais correspondentes, e acordos com os sindicatos para as evoluções da carreira da extracção da pedra. Por outro lado, se começam todos pelo salário mínimo, lá se vai aquela narrativa do “depende do trabalhador”.
Portanto, em resumo, oferece-se um salário mínimo para acartar pedra a norte da Guarda. Progressões de carreira “por aí fora” e actividade ao ar livre – boa para evitar as bronquites causadas pelo ar condicionado dos escritórios. Garante-se um frio de rachar penicos durante os meses de Inverno, que só fortalece os ossos, e gasolina mais barata, uma vez que Espanha dista pouco mais de 30 quilómetros.
Visto assim, também não percebo a dificuldade em arranjar trabalhadores. Ou colaboradores, como se diz agora.
Eu gosto muito do interior de Portugal, mas infelizmente, tal como no litoral, o tecido empresarial ainda se rege pela exploração da força de trabalho, confundindo essa prática com o que, levianamente, costumam apelidar de “oferta de emprego”.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O meu dia começa invariavelmente a olhar para um mapa. Diz quem me conhece que só estou bem onde não estou. Todos os dias planeio uma viagem diferente. Todos os dias encontro problemas no destino.
Ou, na minha meninice, era o Mundo mais simpático, ou era eu que consultava menos mapas.
Por estes dias, olho bastante para Chisinau e para a região separatista em redor de Tiraspol. Há mais de 10 anos que penso lá ir, desde que vi um documentário narrado pelo Michael Palin, dos Monty Python. Não sei se daqui a uns meses ainda existirá como caso único no mundo, ou se, em alternativa, como novo território nos domínios de Putin.
Dramas reais à parte, isto lembra-me uma máxima de um antigo marinheiro e colega na Autoeuropa que diz haver “duas coisas que nunca se trocam ou adiam na vida: aumentos salariais e viagens”.
O velho lobo-do-mar sabia que sem um dificilmente aconteceria o outro.
De Tiraspol, desloco-me 650 quilómetros para leste, com um simples click, e estou em Mariupol, a cidade mártir da invasão russa. Começam aqui algumas das minhas dúvidas sobre este conflito, e a diferença entre aquilo que nos contam e o que, efectivamente, é a realidade.
Durante várias semanas, ouvi glorificações ao batalhão Azov (ou Combatentes da Liberdade). Desde a direita portuguesa a Inês Pedrosa, passando por dirigentes europeus e, obviamente, Zelensky, que tentou transformar uma milícia nazi numa feroz unidade de combate patriota. Confesso que nunca percebi a razão de tal esforço.
Escrevi aqui, neste jornal, há umas semanas, que, por mim, se estivesse num teatro de guerra com soldados ao meu lado, tornar-se-ia absolutamente irrelevante saber em quem votariam nas próximas eleições. Interessar-me-ia, isso sim, perceber se tinham boa mira ou se faziam bombas com um elástico, pastilha e um sumo de laranja, tal como o MacGyver. O resto, meus amigos, é política de sofá.
É por isso mais ou menos óbvio para todos, hoje, que o grupo nazi que entrou em combate com os separatistas em 2014, e que, segundo Rodrigo Moita de Deus, “já venceu os russos duas vezes e por isso é que não gostam deles”, foi normalizado enquanto parte do exército ucraniano. E repito o que disse antes, para não deixar dúvidas: acho normal.
Só vê aqui algo estranho quem nunca precisou do maior rufia da turma para se safar. Os ucranianos têm nazis nas suas fileiras. Os russos também. O eterno esforço de encontrar aqui meninos de coro, bombas pela paz ou violações razoáveis, é algo que me deixa doente. As regras de bom comportamento são para as salas de aula, ou um jantar em casa da Bobone; não para um teatro de guerra.
A minha dúvida começa, contudo, hoje, depois de ouvir as declarações dos civis, que foram libertados de Azovstal, e, principalmente, do pedido de ajuda desesperado de um comandante do batalhão Azov.
Desde já parece que a viagem de António Guterres, apesar do escárnio a que foi sujeito pelos especialistas nacionais em postura vertical nas cadeiras do Kremlin, teve algum efeito positivo e abriu um corredor para a saída de civis.
Relatos de alguns desses civis indicam que eram ameaçados dentro da fábrica por elementos do batalhão, e que não os deixavam sair. A ser verdade, indica duas coisas. Que, de facto, estavam a ser usados como escudos humanos, e que a narrativa de os invasores não permitirem a saída era falsa. Mas, enfim, o que sabemos nós sobre a verdade num cenário daqueles?
Porém, são as declarações do comandante do batalhão Azov, e o seu pedido de ajuda, que me deixa mais surpreso. Zelensky anda a dizer há semanas que Mariupol resistirá até ao último homem, sabendo de antemão que esse homem será do glorificado batalhão Azov.
Contudo, os homens dentro da fábrica, e agora sem civis para trocar, parecem relatar um abandono das autoridades ucranianas. Apelam aos líderes europeus, ao governo ucraniano, às Nações Unidas. Os homens que estavam dispostos a morrer pela pátria, segundo Zelensky, afinal parecem que têm onde estar para a semana, e não estão muito interessados em contribuir com os respectivos corpos para a fertilização do solo agrícola.
Não os posso condenar. Não sei bem como pensa um nazi, mas quando toca a morrer somos todos muito pouco católicos: ninguém tem pressa para confirmar se o Paraíso tem aquelas cores que nos vendem na Sentinela.
Alguns analistas defendem que o presidente ucraniano pretende livrar-se de um problema (nazis), transformando-os em mártires de guerra, num combate que sabe estar perdido (Mariupol).
Esta explicação é ligeiramente hedionda. Faz-me lembrar um pouco aquela de que os suecos queriam matar velhinhos com a covid-19 para pouparem nas pensões da Segurança Social. Mas lá que eu gostava de saber quais os planos da Ucrânia para os encurralados de Azovstal, isso gostava. Aliás, é nestas alturas que todos precisamos de um amigo como Rogeiro que fala por interposta pessoa com Zelensky.
Com o cerco russo e abandonados pelo seu governo, o batalhão Azov parece ter os dias contados. Zelensky fez um vídeo poderoso – muito bem feito, diga-se – para relembrar o dia da vitória aliada. Falou longos minutos sobre a destruição nas cidades ucranianas, o heroísmo do povo ucraniano, a contribuição da Ucrânia na II Guerra Mundial e as vidas que deu para combater as forças de Hitler.
Disse, entre outras coisas, que o never again tinha que perder o never, já que, hoje, a Ucrânia era novamente vítima do nazismo e das forças de ocupação. Hoje, como antes, disse-nos Zelensky, a Ucrânia voltará a derrotar o totalitarismo.
Ficou foi por esclarecer se a empreitada começaria por Azovstal.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Em meados de Março, depois de uma série de sanções, a Rússia anunciou que os “países inimigos” – leia-se, as empresas dos “países inimigos” – seriam obrigados a pagar as suas importações em Rublos ou Ouro, com o rácio fixo de 5.000 Rublos por uma grama de Ouro. Isso aplicava-se, por exemplo, às grandes quantidades de gás e petróleo que todos os dias continuam a sair daquele país para toda a Europa.
Ou seja, os russos “decretaram” que Dólares norte-americanos (USD) ou Euros (EUR), mesmo se fossem as moedas nos contratos, deixavam de ser aceites.
Esta “exigência”, no contexto da Guerra na Ucrânia, advém da escalada de sanções mútuas, que incluiu o “congelamento” pelos Estados Unidos de cerca de 300 mil milhões de dólares em activos russos em ouro e várias moedas. Os países da União Europeia fizeram o mesmo, suspendendo o acesso a 35 mil milhões de euros de activos russos, com a França a encabeçar a lista (23,5 mil milhões de euros).
Os efeitos colaterais destas medidas, pouco faladas, é a crise de confiança que introduziu nos mercados financeiros. O facto de os Estados Unidos, ou os países da União Europeia, poderem usar o poder político para condicionar o sistema financeiro dos circunstanciais inimigos em tempo de guerra não augura nada de bom para os tempos de paz. A desconfiança não costuma ser boa para a estabilidade dos mercados.
Muitos analistas começam mesmo a anunciar uma mudança de paradigma que poderá representar o início do fim do USD como a moeda reserva do Mundo.
Não será o fim do Mundo, nem algo inimaginável, nem sequer inédito.
Na verdade, a moeda dos Estados Unidos só beneficia do estatuto de “moeda reserva do Mundo” desde a II Guerra Mundial, tendo sido precedidos pelas moedas de cinco países: Inglaterra, França, Holanda, Espanha e… Portugal.
A duração média do domínio desses países, ao longo dos séculos, foi de apenas 100 anos. E o domínio do USD dura há aproximadamente 80 anos.
Moedas reservas do Mundo desde o século XV. Fonte: BTCM Research (análise do autor)
Para se tornar moeda reserva do Mundo, um dado país tem que ter um papel determinante no comércio internacional para que, desta forma, a maioria dos países eleja essa divisa para realizar pagamentos internacionais.
Vejamos o caso, por exemplo, de uma empresa angolana nos tempos que correm. Terá ela todo o interesse em receber em USD para as exportações que realiza. E porquê? Porque sabe que nos meses seguintes, ou mesmo anos, poderá sempre usar esses USD para realizar compras, porque serão aceites em qualquer lado e em qualquer circunstância. O USD é assim uma moeda de confiança, para além do seu valor intrínseco.
Nem sempre foi assim.
Durante séculos e séculos, o estatuto de dinheiro da Humanidade esteve sempre associado ao Ouro. Qualquer comerciante ou homem de negócios, independentemente da sua naturalidade ou residência, podia realizar ou receber pagamentos em Ouro, dado que qualquer entidade ou pessoa o aceitava como meio de pagamento.
No princípio, para além do peso no comércio internacional, a diferença para um país emitir uma moeda reserva do Mundo, também tinha de dispor de uma cunhagem confiável e quantidades de metal precioso assinaláveis.
Um país que respeitasse a quantidade de metal precioso nas moedas por si cunhadas obtinha assim maior procura pela sua moeda.
Este foi o caso do Soldo – Numisma, em grego, daí numismática –, uma moeda com 4,5 gramas de Ouro, emitida pelo Império Bizantino durante séculos, e utilizada na maioria das trocas comerciais do Mediterrâneo. Nunca sofreu qualquer desvalorização durante mais de 600 anos, desde a sua introdução no ano de 312, desde o reinado do imperador romano Constantino I até ao reinado do imperador bizantino Nicéforo II Focas (963–969).
O caso português apresentou características semelhantes: o nosso país controlou, durante a segunda metade do século XV e uma parte do século XVI, o comércio das especiarias – a matéria-prima de maior valor naquele período – e dispunha de quantidades de Ouro importantes para cunhagem, proveniente de São Jorge da Mina, actual Gana.
No caso dos Estados Unidos, o seu domínio veio da II Guerra Mundial, quando registavam com 21.770 toneladas de reservas de Ouro, o equivalente hoje a 1,32 biliões de USD – aproximadamente 6% do PIB deste país – e possuíam a maior capacidade produtiva do Mundo, provada durante o conflito: construiu 141 porta-aviões (de todos os tipos), 203 submarinos, 62 mil bombardeiros, 88 mil tanques e quatro bombas atómicas.
Assim, em 1945, o USD substituiu a Libra Esterlina do Reino Unido como moeda reserva do Mundo.
Para selar este estatuto, foram estabelecidos os acordos de Bretton Woods: o USD tornou-se a única moeda convertível em Ouro, com o seguinte rácio: 35 USD por uma onça de ouro (31,103 gramas), ou seja, 1,13 USD por um grama de Ouro.
Com o envolvimento dos Estados em vários conflitos militares, em particular no Vietname, de imediato o seu Governo iniciou a impressão de moeda sem qualquer respaldo em Ouro.
Por outro lado, os défices comerciais da Economia norte-americana durante os anos 60 do século passado também provocaram a erosão expressiva das suas reservas de Ouro. Em 1971, já eram inferiores a 10 mil toneladas, uma queda superior a 50% desde o final da II Guerra Mundial.
Em 1971, Nixon terminou então com a convertibilidade do USD em Ouro. Para salvar a sua moeda, convenceu os dirigentes da Arábia Saudita, o maior produtor de Petróleo de então, a cotar os barris de crude apenas em USD. Em troca, os sauditas obtiveram a protecção do exército norte-americano.
Foi assim criado o mercado dos Petrodólares, em que todos os negócios do Ouro Negro passaram a ser realizados em USD. Sabemos o destino de Saddam Hussein e de Gaddafi por terem desafiado este monopólio.
Com os acordos de Bretton Woods, em 1971, qual foi a evolução do USD face ao Ouro? Ora, perdeu aproximadamente 98% do seu valor.
Evolução do preço de uma onça (31,1 gramas) de Ouro entre 1950 e 2022 em USD (escala invertida). Fonte: Yahoo Finance (análise do autor).
Fica, por tudo isto, evidente que este monopólio monetário, desfrutado pelos Estados Unidos, é agora artificial e está a permitir vários abusos.
O primeiro refere-se aos défices comerciais. Se um determinado país regista importações superiores a exportações, como é o caso dos Estados Unidos, significa que as vendas de USD são superiores às compras de USD no mercado de divisas. Ou seja, ocorre uma pressão vendedora. Vamos utilizar um exemplo para ilustrá-lo melhor:
Quando um importador norte-americano adquire bens à China, vende por exemplo 2.000 USD e compra bens chineses no valor de 2.000 USD; o exportador chinês vende os Dólares (USD) ao seu Banco Central e compra Iuanes (CHY);
Quando um exportador norte-americano vende bens à China, recebe por exemplo 1.000 USD e vende os bens norte-americanos no valor de 1.000 USD; para pagar ao exportador norte-americano, o importador chinês compra Dólares (USD) e vende Iuanes (CHY);
Se a pressão vendedora (2.000 USD) supera a pressão compradora (1.000 USD), o USD tende a depreciar-se nos mercados internacionais.
Ou seja, um défice comercial para um dado país, por regra, coloca pressão vendedora no mercado para a sua moeda. No entanto, este não é o caso do USD, dada esta ser a divisa reserva do Mundo.
Isso explica a “despreocupação” dos Estados Unidos com o maior défice da sua balança comercial de sempre, que ocorreu em 2021: 859,1 mil milhões de USDs; e com o maior défice comercial para apenas um mês (109,8 mil milhões de USD), que ocorreu no passado mês de Março.
Esta pressão vendedora de USD não ocorre, porque, na verdade, os grandes países exportadores para os Estados Unidos não convertem os USD que recebem para a sua divisa. Ao receberem os USD dos importadores norte-americanos, através do seu Banco Central, aplicam-nos em instrumentos financeiros denominados em USD, como obrigações do tesouro norte-americano (financiando os défices públicos) ou acções de empresas cotadas em bolsa – como é caso do Banco Central Suíço, um dos maiores accionistas da Apple. Ou seja, nestes casos não há pressão vendedora de USD.
Por outro lado, muitos destes países exportadores também optam por acumular os USD das suas exportações junto do seu Banco Central, pois consideram-nos reservas, dada a sua enorme liquidez no mercado – todos o aceitam.
Por exemplo, países como o Brasil, quando exportam soja para os Estados Unidos, recebem USD; e, em lugar de os vender no mercado, deixam-nos à guarda do seu Banco Central sem colocar pressão vendedora no mercado.
Na sua óptica, caso a sua divisa seja atacada em crises financeiras, como acontece com a Argentina muitas vezes, o seu Banco Central desata a vender USD – utilizando as referidas reservas – e a comprar Pesos argentinos no mercado, apreciando, desta forma, a sua divisa ou evitando a sua queda abrupta nos mercados.
Quando existem crises financeiras, como a de 2008, atendendo que a maioria dos instrumentos financeiros negociados em bolsa estão denominados em USD (matérias primas, como Petróleo), conduzem à inevitável liquidação, ou seja, a uma venda a qualquer preço, visando obter liquidez.
Consiste isto na venda desse instrumento e na compra de USD, colocando, mais uma vez, pressão compradora sobre a divisa norte-americana. Ou seja, quando ocorrem quedas nas cotações na maioria dos activos financeiros, os investidores fogem para os “braços” do USD.
A maioria dos países do dito Terceiro Mundo emite dívida denominada em USD, atendendo que os seus mercados nacionais não possuem poupanças e liquidez para satisfazer a sua oferta de obrigações. Assim, no momento em que emitem empréstimos em USD, não os convertem na sua divisa local, realizando pagamentos internacionais com esses USD.
No futuro, quando ocorre o pagamento de capital e juros, estes países convertem a sua moeda local em USD, ou seja, vendem a divisa local e compram USD para poder pagar aos credores internacionais – apenas aceitam receber em USD. Atendendo que a dívida é crescente, existirá sempre procura por USD nos mercados para proceder a estes pagamentos.
O último abuso – e talvez o mais importante no período que vivemos –, resulta da dimensão dos seus mercados de capitais. Muitos investidores internacionais procuram elevadas rendibilidades, num contexto de taxas de juro 0%, comprando todo o tipo de instrumentos financeiros (acções, obrigações, ETFs, matérias-primas, derivados, etc.), apenas nos mercados norte-americanos, que proporcionam estas oportunidades de investimento. Para tal investimento, os investidores internacionais são obrigados a vender a sua divisa e a adquirir USD para negociarem nessas bolsas de valores.
Estas são as principais razões para que o USD não se afunde nos mercados. A sua situação de moeda reserva do Mundo tem mantido os norte-americanos com um nível de vida que não corresponde à sua produção.
O conflito na Ucrânia parece voltar a confirmar esta teoria. Em crises, os investidores correm para a moeda reserva do Mundo, vendendo activos financeiros e convertendo-os em USD. Todas as principais moedas do mundo ocidental perderam valor frente ao Rublo desde o início do ano, mas, no entanto, o USD foi o que menos perdeu: “apenas” 14%, que confronta com uma queda de 20% no caso do EUR.
Apetece, aliás, perguntar: afinal as sanções foram para a Rússia ou para nós?!
Evolução do preço das principais divisas mundiais entre o final de 2021 e 4 de Maio de 2022 face ao Rublo. Fonte: Yahoo Finance (análise do autor)
Um aspecto crucial na Guerra da Ucrânia está a suceder, aliás. No passado, o lançamento de sanções sobre um dado país, regra geral, levava à ruína da sua divisa.
Isso não parece estar a acontecer com o Rublo russo.
No início do conflito, o USD frente ao Rublo valorizou-se consideravelmente, tendo chegado a atingir os 139 Rublos por 1 USD; mas desde então, o USD caiu mais de 50% frente ao Rublo, tendo cotado na passada quinta-feira no mínimo do ano, em torno de 64 Rublos por 1 USD.
Mas este modelo ocidental, dominado pelos Estados Unidos, em que um dado país paga as suas contas com a “impressora”, parece estar a chegar ao fim, pois a Rússia e a China – ambos grandes exportadores, a primeira de matérias-primas, o segundo de bens de consumo – já não parecem aceitar o USD como moeda reserva do Mundo.
Por um lado, não estão já interessados em acumular USD – veja-se o caso da Rússia, que vendeu todas as obrigações emitidas pelo tesouro norte-americano. Por outro, a China deixou de incrementar substancialmente as suas reservas de USD.
Em conclusão, parece já não ser possível aos Estados Unidos “exportarem” a sua inflação para a China.
Esta dura nova realidade terá agora de ser enfrentada por consumidores norte-americanos e europeus. Em Março último, a inflação situou-se em 8,5% nos Estados Unidos, um máximo desde o início dos anos 80 do século passado.
Fica assim claro que uma nova moeda reserva do Mundo terá que emergir desta crise.
Evolução do USD medido em Rublos entre o final de 2021 e 4 de Maio de 2022. Fonte: Yahoo Finance (análise do autor).
Julgo que três cenários podem colocar-se:
A emergência do Bitcoin como moeda reserva do Mundo (já irei explicar as razões);
A emergência de uma moeda respaldada por Ouro ou uma combinação de matérias-primas relevantes para a Economia mundial;
A emergência do Iuane chinês como moeda reserva do Mundo, substituindo o USD.
No caso da segunda e terceira opções, estas estariam sempre sujeitas aos “caprichos” e corrupção dos humanos: o imperialismo, os gastos sem fim, as guerras, os défices, provocariam, certamente, a sua queda – por essa razão, o estatuto de moeda reserva durou em média 100 anos. Existe sempre a tentação de abusar da emissão para financiar gastos através da inflação.
Esse não é o caso do Bitcoin.
A emissão em circulação de Bitcoin não depende de nenhum Governo, estando limitada a 21 milhões de tokens em termos absolutos – foi assim que se concebeu, por algoritmo, como oposição ao regabofe dos bancos centrais que imprimem sem limite. Por outro lado, o blockchain está hoje preparado para processar milhões de transferências em curtos espaços de tempo; a rede funciona 24 horas sobre 24 horas, e pode ser acessível a qualquer pessoa ou entidade a todo o tempo, algo impossível nas redes que suportam as moedas fiat.
Por fim, importa ter em mente que emitir novos Bitcoin implica um custo e um “esforço”, ao contrário do Banco Central norte-americano, que apenas tem de carregar num botão para criar nova massa monetária, isto é, sem qualquer custo.
Em suma, os próximos anos serão disruptivos. E a supremacia futura do sistema monetário é, por agora, uma incógnita.
Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Portugal entrou numa tourada sem fim à vista. Será uma metáfora simplória, reconheço, mas andamos todos a marrar no vermelho. Não sei se o editor vai deixar passar a palavra “marrar” [N.D.: deixou], mas convenhamos, não há melhor sinónimo para a situação actual. Evitemos discussões sobre o VAR, uma distância de dois centímetros e os 400 penaltis do Taremi, e foquemo-nos no outro vermelho que o país tenta abater.
Não entendo, na verdade, o destaque dado ao presidente de uma associação ucraniana, residente há 20 anos em Portugal, que disse não perceber como é que um país da União Europeia, como Portugal, ainda tinha um partido comunista.
Segundo a mesma notícia (SIC), este senhor fez o ensino secundário e universitário em Portugal. A avaliar pela questão deixada aos microfones das televisões, assumo que tenha estudado qualquer coisa ligada às ciências. Malta dos números é sempre mais trapalhona com o conhecimento e percepção da História. Ou então, frequentava muito a zona dos matraquilhos enquanto a professora se esforçava para explicar o que foi o Estado Novo em Portugal e o papel do PCP no combate à ditadura.
Ainda assim, sem grandes teorias, a resposta mais simples para esta questão é: Portugal tem um partido comunista por que é uma democracia. É só isso.
Todas as correntes políticas que não vão contra a Constituição são legais, aceites e debatidas. Não é assim em todos os países, de facto, e talvez daí a confusão do nosso interlocutor. Por exemplo, na sua Ucrânia natal já se passou uma esponja sobre os partidos de esquerda.
Estas declarações originaram uma série de manifestações xenófobas, que se poderiam resumir ao “vai mandar bocas para a tua terra”.
Ora, isso também não é grande coisa, vista do nosso lado, pois não? Julgo que foi Raquel Varela quem melhor resumiu a polémica. O que este senhor disse é um problema, apenas e só, por ser uma declaração profundamente anti-democrática.
O facto de um ucraniano comentar a vida política portuguesa é absolutamente irrelevante. A democracia acolhe todas as asneiras sem olhar para o passaporte. E assim é que deve ser.
O PCP não faz grande falta à Ucrânia. E as suas posições contra qualquer guerra, império, aliança, invasor ou governo pouco democrático, são isso mesmo, opiniões. Não afectam o teatro de operações. Já um jovem em idade de combater parece-me ser mais útil em Kiev do que no Terreiro do Paço a sugerir o fim de um partido secular.
Não o estou a mandar para a terra dele, que fique claro; só a dar sugestões de como usar melhor o tempo na defesa da causa.
Depois de Benfica e PCP, boa parte do país vai marrando também no vermelho do sangue. Querem mais. Ainda não chega. Crescem, florescem e multiplicam-se as opiniões de que a NATO deve entrar (ainda mais) nesta guerra.
A última voz foi a de Inês Pedrosa que a cada semana vai ficando mais bélica. Já não chega armar, pagar, devemos agora entrar na guerra e ganhá-la. Disse ela: “A NATO deve entrar nesta guerra e ganhá-la”.
Fico impávido e estarrecido a ver sexagenárias clamando pelo sangue alheio. A teoria é simples. Se a NATO não entrar, depois da Ucrânia, o Putin não parará. Quem sabe que país invadirá a seguir?
Já se a NATO começar a bombardear Moscovo, relembrando os sucessos de Belgrado ou Tripoli, Putin certamente baterá em retirada para a sua datcha na Sibéria. Em princípio, não usará aqueles mísseis nucleares que tem lá na garrafeira, ao lado das reservas de Dão.
A leveza com que as pessoas discutem ataques bélicos, é inversamente proporcional à probabilidade de lá irem parar.
Portugal já envia ajuda para a Ucrânia, dinheiro, equipamento, bens de primeira necessidade. Proponho que os nossos pensantes e opinadores públicos contribuíssem antes para a resolução de problemas mais simples e próximos. Por exemplo, discutir como ajudar os refugiados ucranianos depois das luzes das televisões se desligarem. É que segundo relato dos próprios, ter acesso às ajudas depois de aqui chegarem é um mar de burocracia sem fim, e o relançamento das vidas mostra-se extraordinariamente difícil.
Português algum desconfia destas palavras. Burocracia é a nossa forma de estar na vida. A dar conferências de imprensa com medidas e acções em PowerPoint, somos uns ases. A fazer cabeçalhos com boas intenções, também. Já a simplificar a vida das pessoas, quando a poeira assenta, nem tanto.
Começo eu, para não dizerem que é só conversa. Sugiro que pintem a burocracia de vermelho.
Depois é só esperar que vão marrar no sítio certo.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Cinquenta dias depois de uma deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, e 132 dias após um pedido formal, ao abrigo da Lei da Imprensa, a CNN Portugal publicou finalmente, ontem, o meu direito de resposta em reacção ao seu artigo difamante de 23 de Dezembro do ano passado em que acusou o PÁGINA UM de ser uma “página negacionista”. Em causa estava um isento, rigoroso e irrepreensível artigo de investigação jornalística do PÁGINA UM sobre o verdadeiro impacte da pandemia nas crianças, usando dados oficiais mas anonimizados.
Se a notícia ultrajante da CNN Portugal tivesse sido obra parida apenas pela verve de um desastrado e imberbe jornalista-estagiário, de seu nome Henrique Magalhães Claudino, ainda eu admitiria que, enfim, estaríamos apenas perante um futuro mau jornalista, o resultado sinérgico de uma inadequada supervisão e de evidentes deficiências estruturais de formação ética e deontológica.
Apenas 50 dias após a deliberação da ERC, a CNN Portugal publicou direito de resposta do PÁGINA UM.
Mas, comportando-se a CNN Portugal como se comportou, não podemos ser ingénuos: foi a direcção editorial que usou um jornalista-estagiário para fazer o “jogo sujo”, um frete, uma tentativa de assassinato de carácter do PÁGINA UM, de um órgão de comunicação social que nascera com um cunho de inquebrável e inquebrantável independência. E que já então estava a incomodar, e mais incomodou ao longo dos últimos meses, uma certa clique da imprensa mainstream e do sector médico (que, aliás, profusamente debitou ataques à investigação do PÁGINA UM).
A CNN Portugal – que tem, na sua direcção tripartida, três jornalista que não nasceram ontem: Nuno Santos, Frederico Roque de Pinho e Pedro Santos Guerreiro – portou-se, neste lamentável episódio, com uma inqualificável arrogância, com a arrogância parola de um franchise televisivo falho e falhado de valores éticos e deontológicos.
Recusaram, primeiro, a publicação voluntária do direito de resposta em finais de Dezembro do ano passado.
Recusaram assumir que difamaram um colega de profissão e nem esboçaram um pedido de desculpas nem arrependimento nem vergonha.
Mantiveram uma postura lastimável no processo levantado pela ERC ao longo dos primeiros meses deste ano de 2022.
Os directores da CNN Portugal: Frederico Roque de Pinho, Nuno Santos e Pedro Santos Guerreiro.
Borrifaram-se durante 50 longos dias na deliberação da ERC, conhecida em 13 de Março passado, mesmo sob o risco de pagarem uma multa de 500 euros diários.
E só agora publicam o direito de resposta, após o PÁGINA UM pressionar a ERC para que fizesse cumprir a sua deliberação de Março passado.
Todo este episódio é lamentavelmente revelador do estado da imprensa mainstream.
Esta gente conspurca uma nobre profissão.
Uma democracia não os merece. Uma democracia amadurecida não deveria suportar tê-los.
O PÁGINA UM nasceu também por causa deste tipo de jornalismo, deste jornalismo da CNN Portugal. Porque uma má imprensa é o escalracho da Democracia: é erva daninha que, parecendo viçosa, a infesta; e deve ser arrancada para que possamos ambicionar melhores ares, uma melhor paisagem.
TEXTO INTEGRAL DO DIREITO DE RESPOSTA PUBLICADO PELA CNN PORTUGAL EM 4 DE MAIO DE 2022
Publicado por determinação da Deliberação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social n.º ERC/2022/78 (DR-TV), adotada em 9 de março de 2022, nos termos do disposto no art.º 69.º da Lei n.º 27/2007, de 30 de julho
Apesar de ostensivamente ser omitido na notícia da CNN Portugal “Covid-19: dados confidenciais de crianças internadas em UCI partilhados em página negacionista”, da autoria do jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino, alvo posteriormente de comentários/entrevista de um médico em antena a partir das 9:12 horas no dia 23 de Dezembro de 2021, em causa está um trabalho jornalístico da minha autoria — jornalista com carteira profissional (CP 1786) — publicado num órgão de comunicação social registado na Entidade Reguladora para a Comunicação Social sob o número 127661. O site do PÁGINA UM encontra-se no sítio https://srv700518.hstgr.cloud, e o artigo em causa está no seguinte endereço: https://srv700518.hstgr.cloud/2021/12/10/covid-19-em-criancas-zero-mortes/. O PÁGINA UM, como outros órgãos de comunicação social, possui uma página específica na rede social Facebook.
Como jornalista trabalhei em órgãos de comunicação social como o semanário Expresso e Grande Reportagem, além de colaborações regulares no Diário de Notícias. Embora com um interregno de 10 anos, que agora reactivei, sempre pautei a minha actividade jornalística pelos mais elevados padrões éticos e deontológicas, e de isenção e rigor. O PÁGINA UM pauta-se por estritas regras deontológicas e de independência, tendo publicado no seu site um Código de Princípios e uma Declaração de Transparência. Possuo, além disso, e para além de formação académica diferenciada (três licenciaturas e um mestrado), formação na área em apreço, sendo até sócio aceite pela Associação Portuguesa de Epidemiologia.
Qualquer acusação, explícita ou implícita, de eu e/ou o PÁGINA UM seguirmos movimentos ou grupos ditos de negacionismo em redor da pandemia é profundamente difamatório e lesivo do meu nome e do jornalismo independente.
Fui, aliás, membro eleito no Sindicato dos Jornalista para o seu Conselho Deontológico no biénio 2007-2008. Conheço, reconheço e sempre coloquei em prática, com escrúpulo, todas as regras deontológicas e éticas, seguindo o interesse público. As informações que transmiti no artigo noticioso em causa são manifestamente de interesse público numa democracia.
A CNN Portugal, através do seu jornalista-estagiário Henrique Magalhães Claudino (TP886), contactou-me ontem pelo meu e-mail profissional pavieira@paginaum.pt, não podendo assim ignorar que o texto em causa era de um jornalista e de um órgão de comunicação social (PÁGINA UM), e jamais poderia, de forma difamatória e ultrajante, rotulá-la de “página negacionista”. Não lhe fiz declarações formais.
A seu pedido, a jornalista da CNN Portugal Catarina Guerreiro teve também acesso, por um intermediário (que é jornalista), ao meu contacto telefónico, sabendo assim ela também que eu sou jornalista. Apesar disso, esta jornalista da CNN Portugal nunca me contactou.
Não há memória, na História recente da Imprensa Portuguesa, de um órgão de comunicação social claramente independente (sem publicidade e sem parecerias comerciais) ser atacado de forma tão vil, e apelidado de “página negacionista” por um órgão de comunicação social de um importante grupo empresarial. E ser ainda acusado de propalar alegada informação falsa, ademais omitindo, intencionalmente, elementos essenciais.
Como jornalista, a informação que revelei na notícia publicada agora no site do jornal PÁGINA UM é factual e fidedigna, anonimizada, cumprindo os preceitos de interesse público e de reserva da vida privada, cumprindo escrupulosamente o código deontológico dos jornalistas. Ademais, a própria Comissão Nacional de Protecção de Dados já admitiu, na notícia da CNN, que “a informação, embora detalhada do ponto de vista clínico, não parece de per si permitir identificar os titulares dos dados.” Aliás, os dados em causa são oficiais, e chegaram-me já anonimizados, podendo (e devendo até) ser divulgados publicamente, por constituírem uma base de dados, cujo acesso é previsto pela Lei de Acesso aos Documentos Administrativos.
A notícia da CNN destaca a opinião de cinco médicos que criticam a divulgação dos dados pelo PÁGINA UM, mesmo se anonimizados, entre os quais um dirigente da Ordem dos Médicos. Saliente-se que o PÁGINA UM está, neste momento, com uma queixa na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos perante a recusa da Ordem dos Médicos em ceder informação sobre um donativo da farmacêutica Merck no valor de 380.000 euros. O PÁGINA UM tem estado, também, a preparar a publicação de uma investigação sobre o financiamento de mais de seis dezenas de sociedades médicas, sendo que todas o sabem, porquanto foram atempadamente contactadas para esclarecimentos.
O PÁGINA UM considera estranho que nenhum outro órgão de comunicação social, nem a Ordem dos Médicos, tenha criticado a Direcção-Geral da Saúde por revelar, na passada semana, dados clínicos sigilosos (situação vacinal) de uma jovem de Braga, esta sim perfeitamente identificada pelo nome, que sofreria de síndrome de Dravet, e que morreu com covid-19. Isso sim foi uma revelação de dados clínicos sigilosos por uma entidade estatal. O PÁGINA UM nunca revelou qualquer nome nem local de residência de crianças internadas em cuidados intensivos.
Informo ainda que irei entrar com processos de difamação — crime neste caso agravado por ser cometido através da Imprensa — contra o senhor Henrique Magalhães Claudino, jornalista-estagiário da CNN Portugal, e contra os directores de informação da CNN Portugal, senhores Nuno Santos, Pedro Santos Guerreiro e Frederico Roque de Pinho.
Alerto ainda que qualquer órgão de comunicação social e/ou pessoa que divulgue os artigos acima referidos, ou que faça referências difamatórias contra mim e/ou contra o PÁGINA UM — numa tentativa vergonhosa de condicionar a liberdade de imprensa constitucionalmente defendida —, colocando em causa a minha honra e bom nome, poderá vir a ser alvo de similares processos judiciais.
Lisboa, 23 de dezembro de 2021 Pedro Almeida Vieira Diretor do PÁGINA UM
Não sei se vocês acompanham as sessões no plenário da Assembleia da República, mas por cá, enquanto penso num algoritmo, gosto de ter aquilo em som de fundo. Há sempre qualquer coisa que me alegra o dia. É quase como ir ao Jardim Zoológico dar a moeda ao elefante: magia e depressão no mesmo minuto.
O debate do Orçamento do Estado foi particularmente interessante – no que a serrar presunto diz respeito, porque, quanto à votação, teremos quatro anos de aborrecida maioria e resultados combinados. Quase como os jogos da Liga Portuguesa, embora sem aquela chatice de nos sentarmos à chuva ou das filas e apalpões da entrada e da saída.
Há, nesta legislatura, uma enorme novidade no movimento “caixa de ressonância” na bancada do Chega. O movimento “caixa de ressonância”, para quem não sabe, é aquele habitual apoio, registado competentemente em Diário da Assembleia da República, do colega de bancada que, por cima da voz do orador, vai dando umas palmadas no ego. “Muito bem”. “Isso mesmo”. “Dá-lhe”. E ainda outros guiões que também se encontram em filmes porno produzidos numas caves da Damaia.
O CDS era muito bom neste movimento. PS e PSD também não se saem mal. E agora devo reconhecer que, ao contrário do que eu imaginava, os três ou quatro parlamentares do Chega, que ouvi, conseguem discursar com alguma fluidez. Porém, a receita é a do Ventura, o estilo também, os temas são escolhidos a dedo para polémica. A busca ainda é pelos dois minutos para seguir até ao canal de YouTube da ChegaTV, apresentada como “A Voz dos Portugueses de Bem”.
Acredito que o Ventura faça uns workshops na sede do partido onde explica como misturar o ar indignado, de combatente contra o poder, com alguma dose de homem do povo.
Ainda assim, ao fim de poucas semanas, começam a surgir as primeiras calinadas, o que me leva a pensar que nem todos estavam atentos nas aulas. Um dos deputados já empregou um familiar como assessor, algo que, para quem leu as nove páginas do programa, sabe que esbarra logo naquela alínea do “vamos fazer tremer o sistema”.
Depois, durante o debate, enquanto se falava na distribuição das casas de renda social, disse um dos deputados do Chega que era preciso que estas fossem parar a quem delas precisa, e não aos do costume. E cito, aqueles “que não querem trabalhar, mas têm Mercedes, Porsches e Ferraris à porta de casa”.
Aqui sou obrigado a deixar uma nota até porque vivi vários anos a 10 metros de um bairro social. Ferraris? Uma pessoa já deu de borla os Mercedes. Depois ainda fizemos aquele esforço de imaginação para visualizar um Porsche Cayenne no Laranjeiro. Mas um Ferrari?
Quer dizer, ou começamos todos a ir para Nárnia ouvir as palestras do Chega, ou então, neste mundo em que vivemos, temos que pensar que, para as ovelhas do pastor, um bairro social é aquilo que, nós, as pessoas mais simples, chamamos de Quinta da Marinha.
Antes, já um outro parlamentar do Chega, Mithá Ribeiro (este consegui decorar o nome), tinha dito que apenas o racismo reinante o impedira de ter sido eleito vice-presidente da Assembleia da República. Curiosamente, o mesmo Mithá, antes da campanha eleitoral, era conhecido por ter decretado o fim do racismo e, tal como o seu partido, afirmar que não existia racismo em Portugal.
Bem sei que isto ainda agora começou, mas este novo Chega, versão “agora é que o sistema vai tremer”, promete muito. Só pelo trailer já deu para perceber que, no fim, o mordomo acaba com eles.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O meu filho, com 13 anos feitos há dois meses, tem uma concepção do mundo do trabalho relativamente simples e prática. O plano dele é ir para uma universidade nos Estados Unidos e, em paralelo, trabalhar entre os 20 e os 25 anos, de forma a conseguir ficar milionário. Em seguida, palavras dele, quer aproveitar a vida, porque é mais fácil fazê-lo sendo milionário.
Pessoalmente encontro várias falhas no plano. Desde logo, onde está o financiamento inicial para se tornar milionário? Na Suécia, onde ele nasceu e cresceu, a universidade é gratuita. Nos Estados Unidos custa um rim – europeu; se for afegão custa uns sete.
O TikTok mostra-lhe os self made billionaires, como o Elon Musk na Land of Opportunities, sem lhe contar o arranque inicial com a mina de esmeraldas do papá.
Mas tudo bem, não sou progenitor de estragar os sonhos. Também eu quero muito ir à Polinésia Francesa, e não admito que me digam o contrário.
A discussão que verdadeiramente me interessa são os porquês.
Qual a razão de se querer ser milionário e de ter dinheiro que não se consegue gastar em tempo algum de vida? Ou melhor, sabendo que quando o dinheiro se concentra num sítio é porque desapareceu de vários, qual é o desejo de acumular tanto?
Contei-lhe a história de Mino Raiola, um predador de contratos de jogadores de futebol que gravitava em torno deles, conseguindo comissões absolutamente obscenas e uma fortuna acumulada sem nunca ter dado um pontapé numa bola. Representava tudo o que de errado e ganancioso existia no mundo dos empresários de futebol. Morreu esta semana, milionário, com pouco mais de 50 anos.
Esta conversa surgiu no Dia do Trabalhador, e desenvolveu-se para a realidade do mundo laboral e dos self made billionaires como Bezos ou Musk. Nós, sociedade em geral, partimos quase sempre do princípio que é legítimo uma empresa acumular os lucros que conseguir e distribuí-los como bem entender.
Pois eu não acho.
A razão por que Bezos tem dinheiro de sobra para ir ao espaço, numa nave em forma de falo, é, entre outras, os salários e condições de trabalho que proporciona em muitos dos seus armazéns. O mesmo se passa entre os milionários portugueses, sejam eles donos da Jerónimo Martins ou da Sonae. A acumulação de lucro é feita nas e às costas dos trabalhadores e dos seus baixos salários.
Há algum problema com o lucro? Não.
Deve uma empresa ser gerida para a bancarrota? Não, claro que não.
Mas torna-se pornográfico quando entre o CEO e o trabalhador de base vão centenas de salários mínimos de diferença.
Qual é a vergonha de dizer isto? Qual é o problema de exigir uma justa divisão da riqueza gerada?
Por acaso os produtos do Continente criam-se e vendem-se por ordem divina? Não são resultado do trabalho de milhares de pessoas? Então que sentido faz a CEO ser aumentada em quase meio milhão de euros e a funcionária de caixa receber 700 ou 800 euros?
No fim da história é, hoje e sempre, uma questão de opção. Em 2008 trabalhei numa empresa onde o chefe de departamento, graças ao trabalho de 160 como eu, recebeu um bónus enorme. Ele, que poderia ter comprado uma casa ou um barco, pegou no bónus e levou-me, com os outros 159, para um fim de semana em Budapeste com tudo pago.
Teria ficado mais rico com aquele bónus? Certamente. Mas faria isso uma enorme diferença numa vida onde toda a base da pirâmide e das necessidades básicas está mais do que preenchida? Provavelmente não.
É esta parte que decididamente não compreendo. A facilidade com que aceitamos ser explorados e nos resignamos ao “pouco é melhor do que nada”.
Em 2017 disse, ao meu chefe de então, que estava cansado de trabalhar para deixar na empresa mais de metade do lucro produzido. Exigi fatia justa daquilo que era gerado por mim. No meu ramo de actividade tudo isso é facilmente quantificável, porque os nossos serviços são vendidos a um preço por hora [bem, dito assim até parece que o escritório é na recta de Coina; enfim, o pessoal da margem sul entenderá].
Andei uns bons 10 anos a encher a mala a multinacionais sem que o esforço de estar longe de casa fosse verdadeiramente compensador. Fartei-me e despedi-me. O meu empregador de então ainda me ameaçou com um processo em tribunal por perder o contrato com o cliente da altura (Volvo), uma vez que eu me recusava a continuar a trabalhar para ele.
Curiosamente, de tudo o que tentou para me manter a trabalhar, entre tribunais e listas negras em empresas de engenharia, nunca pensou em dividir o bolo das receitas. Os custos operacionais, o carro dele, o escritório dele, o cartão de crédito dele, o salário dele, tudo o que mantinha o CEO como CEO era mais importante do que a restante ralé, onde obviamente eu me incluía, já na casa dos 40 anos.
Quando me vim embora – aliviado, mas um pouco sem saber o que fazer –, acabei por me juntar a uma empresa muito pequena, gerida por um amigo de longa data que escolheu entrar no ramo por conta própria. Optou por um modelo de gestão onde 80% dos lucros gerados vão para os trabalhadores. Não ficou rico, mas saiu do pior bairro de Gotemburgo, onde vivia, e mudou-se para uma zona boa da cidade.
Todos os que ali trabalham ganharam a liberdade de negociar a venda da sua força de trabalho, e todos, sem excepção, melhoraram as suas condições de vida. Em jeito de brincadeira, digo-lhe sempre que, para quem chegou aqui num C130 a fugir à guerra, não está mau.
Portanto, sim, é uma opção, a de querer ser milionário à custa do trabalho dos outros – ou a de, sempre que possível, contribuir para o aumento da classe média.
A ganância da concentração de recursos em meia-dúzia de pessoas é que destrói a sociedade, não é um trabalhador querer viver de forma confortável com o resultado do que produz. Perceber isto é metade do caminho. A outra metade é parar. Parar tudo. Até que se perceba que é o trabalhador que gera lucro, e não o contrário. Pode ser que aí possamos aspirar a essa utopia de uma classe média para todos.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Tem-me sido questionado se o diploma que instituiu o primeiro Estado de Calamidade em 13 de Março de 2020 (Decreto-Lei nº 10-A/2020) está ou não está em vigor. E, consequentemente, quais os efeitos de todas as resoluções do Conselho de Ministros, bem como de todos os decretos-lei publicados e promulgados pelo Presidente da República desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021.
E inclui-se aqui, também, a validade do Decreto-Lei 30-E/2022, do passado dia 21 de Abril, que aboliu o uso das máscaras em alguns espaços.
Desde já afirmo que, para além de material e organicamente inconstitucionais, todos os diplomas que foram sendo publicados assentam no Decreto-Lei nº 10-A/2020, que, na minha opinião, já há muito deixou de vigorar, e desde o fim do Estado de Emergência, ou seja, em Abril de 2021.
Tentando usar uma linguagem o mais simples possível – sendo certo que, nesta matéria, afigura-se um pouco mais difícil, uma vez que se trata de conceitos algo técnicos –, tudo o que afirmo assenta em suporte legal, como sempre tenho feito.
As Resoluções do Conselho de Ministros que, desde 1 de Maio de 2021, têm servido para impor normas ao abrigo do Estado de Calamidade, vão buscar a sua legitimidade ao Decreto-Lei n.º 10-A/2020.
Sucede, todavia, que:
Esse Decreto-Lei n.º 10-A/2020 teve de ser ratificado pela Assembleia da República, através das Lei nº 1-A/2020, publicada em 19 de Março de 2020, que impôs o primeiro Estado de Emergência. Não deixo de estranhar e de sublinhar que uma Lei apenas dispõe para o futuro, e nunca retroactivamente, como foi o caso desta, que fez retroagir a produção dos seus efeitos, para seis dias atrás!
Apenas a Lei Penal tem efeitos retroativos, quando descriminaliza ou despenaliza condutas, o que bem se compreende.
O Governo não tem competência para poder dispor inovatoriamente em matérias que incidem sobre direitos, liberdades e garantias, em situação de calamidade, como tinha feito através desse Decreto-lei. Assim, à data em que o mesmo foi exarado, padecia de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 165º e do nº 1 do artigo 19º da Constituição da República Portuguesa.
Reparem, tentando simplificar o discurso: o Decreto-Lei nº 10-A/2020 decreta o primeiro Estado de Calamidade. A Lei nº 1-A/2020 decreta o primeiro Estado de Emergência, ratificando o Decreto-Lei promulgado seis dias antes.
Terminado o Estado de Emergência, no final de Abril de 2021, tal decreto deixou de vigorar na ordem jurídica portuguesa, não só porque caducou com o termo das leis de emergência que o ratificaram, como porque não pode subsistir autonomamente, por incompetência orgânica do Governo para a sua produção original.
Assim, todas as Resoluções do Conselho de Ministros que têm vindo a ser publicadas, por lhes faltar qualquer arrimo normativo, padecem de inconstitucionalidade orgânica, mas como também são violadoras de direitos fundamentais, faz-me considerá-las também como materialmente inconstitucionais
Acresce que, nessas Resoluções, tem vindo o Governo a criar normas inovatórias, o que não se mostra por lei abrangido no âmbito de Resoluções do Conselho de Ministros, mas tão-somente no de decretos-lei.
Os decretos-leis inserem-se na área legislativa do Governo, permitindo-lhe assim impor novas regras; isto é, fazer surgir no ordenamento jurídico, novas normas e conteúdos normativos (embora também possam, estes decretos-lei, ter conteúdo regulamentador).
Por outro lado, as Resoluções do Conselho de Ministros inserem-se na área administrativa do Governo e destinam-se a regulamentar o que de inovatório foi determinado por lei; isto é, regulam os conteúdos definidos através de decreto-lei, que se reportam a decisões político-normativas primárias.
No caso, as Resoluções de Conselho de Ministros, porque diplomas de carácter administrativo, não poderiam nem conter normas inovatórias na ordem jurídica diversas das estabelecidas por decreto-lei que visassem regulamentar nem, no caso, existia sequer, vigente na ordem jurídica, decreto-lei que legitimasse e carecesse de tal regulamentação.
Estamos pois perante diplomas inconstitucionais (todas as ditas Resoluções), quer por violação do princípio da precedência da lei, decorrente designadamente dos nº 1, 6 e 7 do artigo 112º, da alínea c) do artigo 199º, e também por violação da alínea a) do nº 1 do artigo 198º, todos da Constituição da República Portuguesa (no que concerne ao uso de Resoluções não para prover à boa execução de leis, mas para criação, inovatória, de deveres e de restrições); quer por inconstitucionalidade orgânica (no que se refere à restrição de direitos, liberdades e garantias, por via governamental, em matéria para a qual a Constituição não lhe confere competência para tal), por violação do disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 198º e alíneas c) e d) do artigo 161º, alínea b) do nº 1 do artigo 165º e ainda nº 1 do artigo 200º, todos da Constituição da República Portuguesa.
CONCLUSÃO: Todos os Decretos-Lei publicados e promulgados desde o fim do Estado de Emergência em Abril de 2021 e que têm como base no Decreto-Lei nº 10-A/2020, para além de serem todos organicamente inconstitucionais, “usam” como suporte um diploma que deixou de existir no ordenamento jurídico português.
Em consequência, o (novo) Decreto-Lei nº 30-E/2022 de 21 de Abril – que terminou com o uso de máscaras em alguns locais, procedendo à trigésima norma ou quadragésima alteração do artigo 13º B, (aquele artigo que estabelece quais os locais em que as máscaras são obrigatórias, para mais fácil compreensão do leitor) – tem como base um diploma que, desde finais de Abril de 2021, com o fim do Estado de Emergência, deixou de vigorar na nossa ordem jurídica.
João Pedro César Machado é advogado
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Estava a preparar um texto do Primeiro de Maio, a pensar no Elon Musk, enquanto dois comentadores debatiam na CNN Portugal os próximos passos nas relações com a Rússia.
Não conheço nenhum, nem os seus nomes me parecem aqui relevantes, mas senti magia nas palavras de ambos. Um dizia que tinha sido um erro a União Europeia ter criado uma dependência energética da Rússia. Acrescentou que “pensámos que, com as relações comerciais, a Rússia se tornaria numa democracia, mas estávamos errados. Temos que escolher parceiros mais fiáveis para o futuro”.
Há aqui uma verdade absoluta. Dependência energética é má, concordo. Seja de quem for. E pela quantidade de fichas que metemos nos carros eléctricos significa que, em princípio, continuamos sem perceber o essencial.
Mas gostei da parte onde perceberam que a democracia na Rússia afinal é fraquita. Quando distribuíamos Vistos Gold, a torto e a direito, pelos russos, correndo com os lisboetas para Corroios, o Kremlin era uma Assembleia Grega. Se a coisa avança e os chineses vêm em auxílio do Vladimir, ainda arriscamos ver algum quadro da EDP a dizer: “mas então, esta democracia não era das nossas?”
Melhor ainda foi a frase de “temos que ir atrás de parceiros mais confiáveis”. É que a União Europeia virou-se entretanto para a Arábia Saudita e para o Qatar. Alguém sabe que partido ganhou as últimas autárquicas em Doha? Fiquei com a sensação que tinha sido o Al-Mesmo-de-Sempre, mas não sigo com acuidade a política do Golfo Pérsico. Já em Riade julgo que o novo presidente da autarquia também não gosta de bicicletas: parece que o chicote que leva à cintura prende-se nos raios.
Gosto desta conversa das democracias à la carte. Os mujahidins foram, na década de 80, para a Time, uns freedom fighters – esta, por acaso, dava para aprender no Rambo III. Já no início do século XX passaram a terroristas.
A Ucrânia era, até há uns meses, um estado corrupto sem os mínimos para sequer se candidatar à União Europeia. Hoje, já é uma democracia sólida. A Rússia largou o comunismo há várias dezenas de anos – há quem defenda que já vai em quase um século –, mas é hoje o invasor comunista.
A Líbia era uma ditadura, e quando o petróleo passou para mãos francesas deixou de existir nas notícias, apesar de viver numa anarquia há uma década.
O que eu não percebo nestas análises é o porquê de termos que reescrever a História para justificar as nossas análises. Putin sempre foi um extremista que alimentou os fascistas europeus. Não é comunista, nunca foi. Não quer democracias. Terá sonhos imperialistas, acredito. E sempre foi isto. Quando sorria ao lado da Merkel, quando apertava a mão do Obama, ou quando fazia investimentos por toda a Europa e África.
Então, ninguém queria saber se Putin roubava os recursos do seu próprio país a favor dos oligarcas, desde que, lá está!, o gás corresse para o lado certo. Ninguém apontou o dedo, ninguém questionou a democracia.
Portanto, façam lá o favor, agora, de não serem uma cambada de hipócritas. Putin já foi isto na Geórgia, na Chechénia, na Crimeia. E ninguém quis saber. Não suporto virgens ofendidas consoante o drama do momento.
Há nesta guerra um invasor e um invadido. Não há dúvida disso. Mas façam-me o favor de não criarem uma realidade que nunca existiu, na Rússia ou na Ucrânia. Na RTP3, ouvi Inês Pedrosa afirmar que o Batalhão Azov não era uma milícia nazi. Quer dizer, para negarmos a narrativa de Putin – que a Ucrânia é governada por nazis, o que é obviamente falso –, caímos no outro extremo que é o de transformarmos nazis em freedom fighters. E eu já disse que não me choca ver nazis na defesa de um país. Em tempo de guerra não se limpam armas. Mas por favor, parem de pintar quadros alternativos. Torna-se insuportável.
A outra senhora que comentava na CNN Portugal dizia, por sua vez, que, como prioridade, tínhamos que avançar para o armamento dos países europeus. A ideia é a de nos prepararmos para o que aí vem. Já com a Suécia e a Finlândia no grupo e, a propósito, depois de caças russos terem passado aqui por casa hoje.
Pergunto a esta senhora, até apelando à sempre discutida igualdade entre os sexos: vestirá ela um colete, empunhará uma arma e virá, com todos os restantes, homens em idade de combater, afundar-se nas trincheiras e dar o corpo às balas?
Ouço todo o santo dia conversas de “vamos a eles” que me arrepiam, tal é a facilidade de lidar com balas, morteiros, mísseis e, quiçá, um ou outro cogumelo atómico. Eu não sei se andam a aprender história no Rambo III, ou como sobreviver a bombas nucleares com frigoríficos no Indiana Jones IV, mas acreditem que, neste caso, o filme não acaba no Air Force One com o Harrison Ford a esmurrar o árabe e a bradar, triunfantemente, get out of my plane. Será coisa para aleijar um pouco mais, garanto-vos.
Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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