Categoria: Opinião

  • Hoje pode ser que não mates ninguém

    Hoje pode ser que não mates ninguém


    A comunicação é a chave da sobrevivência.

    As células comunicam, os órgãos comunicam, os animais comunicam; aliás, a própria Natureza é um complexo sistema comunicante.

    Num olhar sobre a História da Humanidade, percebemos de que forma a comunicação tem funcionado como catalisador do pensamento racional – particularidade que favoreceu o pensamento crítico, capaz de julgar, relacionar e decidir em consciência e liberdade.

    minimalist photography of three crank phones

    A propósito da Era Global em que vivemos, onde a informação se difunde a alta velocidade ligando todos os pontos do globo em poucos segundos, gostava de vos falar um pouco sobre uma regra pela qual pautamos a nossa comunicação.

    Se, por um lado, podemos afirmar que evoluímos, retirando das novas tecnologias o melhor partido, também é verdade que aos poucos criámos uma dependência, quiçá doentia, em torno desta mesma conexão que, fazendo-nos sentir tão acompanhados, nos deixa tão sós.

    Recordemos: “O homem age e o animal reage”.

    Esta é uma verdade quando nos referimos ao estado normal da consciência humana; porém, quanto mais dependemos das tecnologias mais parecemos não ser capazes de pensar sobre o que nos rodeia, tomando por vezes decisões irracionais até na luta pela sobrevivência, conscientes de que a Humanidade tende a viver em comunidade e, assim, só é capaz de vingar através de sistemas interligados que potenciam todas as ideias e vontades em torno da construção de um mundo melhor, mais justo, pacífico e tolerante.

    Por isso, acreditar nesta ideia é também entender que somos parte activa e responsável na transformação histórica desde que a Internet surgiu para ligar pessoas umas às outras. Internet que é, sem dúvida alguma, a maior reserva de informação que alguma vez existiu e uma via a infinitas possibilidades de conteúdos.

    purple and blue light digital wallpaper

    Por tudo isto, podemos entendê-la como um psicoactivo que gera sensações de novidade, imprevisibilidade e euforia, comunicando e consumindo-se instantaneamente, prestando-se ainda à evasão do quotidiano, das gentes e dos lugares envoltos numa névoa de sentimentos penosos.

    Ainda assim, a Internet parece ser um espaço democrático: todos a ela acedem em condições de igualdade, em certa medida. Neste mundo paralelo, todos temos espaço para dizer algo, mesmo que disfarçados com nomes, perfis ou avatares virtuais, acreditando, contudo, que estamos a influenciar o real – e influenciamos.

    Entretanto, na realidade virtual podemos ter mil caras, mil opiniões, milhões de certezas. Dominemos ou não o conhecimento, opinamos, julgamos, defendemos, manipulamos… É este outro dos grandes riscos: arruinar a capacidade de ser. Somos o que fazemos, o que dizemos, o que pensamos.

    Navegando pela Internet, assumimos responsabilidades profissionais, temos acesso à cultura, ao lazer, ao consumo, a diálogos e a monólogos, encontros e desencontros. A vida virtual também é real e por isso é um espelho daquilo que somos. Usamos, abusamos. Vivemos, vadiamos. Fingimos. Mentimos, desmentimos. Traficamos. Ameaçamos, asfixiamos. Matamos. Ou não.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Balanços no mercado terrorista

    Balanços no mercado terrorista


    Não sei se já tentaram acompanhar as movimentações no “mercado de terroristas”. É um hobby algo estranho, concedo, mas um excelente exercício às capacidades interpretativas e até de memória.

    Antigamente, acompanhava as movimentações no mundo do futebol, tentava perceber qual dos 30 nomes anunciados diariamente para o Benfica vinha, de facto, embora este divertimento acabou por me aborrecer. No fim chegava sempre apenas um refugo qualquer do Atlético de Madrid, e a coisa perdeu a piada.

    Já no “mercado de terroristas” a complexidade é outra e as movimentações difusas. É como jogar xadrez contra um robot que muda as regras a cada cinco minutos. Pensas que estás a perceber e, de repente, zás, começas do princípio.

    O caso mais famoso no mundo terrorista será o dos afegãos, o clássico dos Mujahideen: um povo bravo classificado como “combatentes da liberdade” no final do século XX e que, no início do século XXI, passou a terrorista.

    À partida pode ser estranha esta mudança com o virar do milénio, mas não: até é simples de perceber. Na década de 80 do século passado, os afegãos combatiam a invasão russa, logo, eram classificados pelos americanos como freedom fighters. Já em 2001, foram os próprios americanos a invadir o Afeganistão e, obviamente, a classificar os invadidos como terroristas.

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    Nada mais simples e lógico. Depois da derrota dos talibãs – lembrem-se, terroristas afegãos –, seguiram-se 20 anos de presença americana na região e dois presidentes escolhidos a dedo. Em 2021 os talibãs, agora novamente fora da lista de terroristas, negociaram a retirada americana e assumiram as rédeas do país. E quem quiser que feche a porta.

    O cartão de membro dos Talibãs já deve permitir, por esta altura, a resposta “é complicado” no menu das actividades terroristas.

    A polémica mais recente do mercado adensou-se ontem, em Madrid, na cimeira da NATO. A Turquia de Erdogan exigia que a Suécia e a Finlândia deportassem membros do PKK (Kurdistan Workers Party) e que deixassem de dar asilo, ou qualquer tipo de apoio a esta (e outras organizações) curdas.

    No fundo, o que Erdogan queria era carta branca para perseguir os curdos até onde bem lhe apetecesse dentro do espaço europeu.

    O PKK é a parte visível de um conflito com mais de 40 anos entre curdos e turcos pela separação (ou autonomia) de um território no sudeste da Turquia, junto à fronteira com a Síria e Iraque, onde se concentra a maioria curda.

    Logicamente, o conflito já tem algumas chacinas, de parte a parte, e o PKK surge classificado como uma organização terrorista pela Turquia, Estados Unidos, Reino Unido e maior parte dos países da União Europeia. Ou seja, por todos os membros da NATO.

    Note-se aqui a suprema ironia nesta classificação pelas potências ocidentais: os curdos são terroristas quando querem criar fronteiras onde, de facto, vivem. Os kosovares tinham direito a um país porque eram a maioria no sul da Sérvia. Os russófonos do Donbass são nazis e, por isso, não podem pedir autonomia. Os chechenos tinham direito à sua terra, no início do presente século, porque estavam lá há 200 anos – hoje, porém, em princípio já não, porque combatem ao lado dos russos na Ucrânia.

    Como disse ali em cima, é um mercado muito volátil e a interpretação mostra-se difícil. Quero sempre torcer pelos bons, mas, neste caso, fico baralhado no meio das histórias. Viram mais que um argumento do Hitchcock. Mas recomendo para as férias, é mais entusiasmante do que o sudoku.

    Quando os EUA pensavam que Bashar Al-Assad ia cair na guerra civil da Síria, meteram-se ao barulho e apoiaram as forças curdas que combatiam o regime. A principal frente era mantida pelo YPG (People Protection Units), uma unidade curda, conhecida por ser a extensão do PKK em território sírio.

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    Foram eles – a solo ou integrados nas forças democráticas sírias (SDF) – que combateram Al-Assad e o ISIS. Como de costume, os curdos foram à frente e deram o corpo ao manifesto para combater uma ameaça que era global: o Estado Islâmico.

    Ou seja, os Estados Unidos, através da NATO, consideravam o PKK uma organização terrorista e, em simultâneo, aliavam-se ao “PKK da Síria” para terem o trabalhinho sujo feito. Erdogan não gostou, mas comeu sem calar. No fim, como de costume, os curdos foram abandonados à sua sorte contra nova chacina turca que aproveitou a guerra civil síria para resolver assuntos internos.

    Portanto, os curdos conseguiram ser terroristas e combatentes da liberdade no mesmo dia. E abandonados no seguinte. Não é para todos.

    Agora, em Madrid, Erdogan conseguiu que a Suécia e a Finlândia não só considerassem o PKK como uma organização terrorista como os obrigou a terminar o embargo de armas para a Turquia. A Suécia é um dos maiores fabricantes de armas a nível europeu e a NATO aludiu a essa mais-valia com a entrada do novo membro.

    A partir de agora, não só acaba o asilo para os curdos como, sempre que Erdogan quiser, a Suécia tem de lhe fornecer armas, ao abrigo dos protocolos da Aliança, para que ele possa arrasar mais umas vilas no Curdistão.

    De uma assentada, a Suécia cria um problema interno – o óbvio descontentamento da enorme comunidade curda – e passa a contribuir directamente para mais uma guerra. Cessa o apoio à maior população do Mundo sem território (30 milhões) e passa a fornecer armas a um país não-democrático.

    Nada mau para uma terça-feira de manhã nos escritórios da NATO.

    Só não vislumbra a paz, aqui, quem estiver provido de “óbvia” má vontade.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Saber quantas Agudas existem em Portugal ou o aborto nos Estados Unidos

    Saber quantas Agudas existem em Portugal ou o aborto nos Estados Unidos


    São, pelo menos, três: a praia da Aguda, em Arcozelo, no concelho de Gaia, onde descobri o cheiro a maresia na infância; a praia da Aguda, em Sintra, de onde um amigo me mandou a cor das ondas; e a freguesia da Aguda, em Figueiró dos Vinhos, que descobri porque perguntei ao maravilhoso mundo da Internet.

    Sempre me fascinou encontrar os meus sítios noutros sítios. Entender o porquê de se multiplicarem por este jardim Atlântico, se foi falta de imaginação ou se existe uma razão (geográfica, que seja) para tantas Canelas em Portugal (acho que são bem mais do que três Agudas, e fazem-me sempre pensar em pontapés). Talvez seja reflexo de colonizações, invasões ou contágio.

    É desta maneira que sempre julgo ter a prova cabal que tudo aquilo que alguém pensa hoje, neste preciso momento, algures numa Aguda, alguém certamente já terá pensado antes, ou até no mesmo momento; talvez num espanto cósmico de interferência mística! Ou então, podemos convir que nada disto é novo, que há dilemas eternos, barreiras evolutivas do pensamento, eventualmente cristalizadas no seu entorno, e que sempre, sempre, passam por uma ascensão civilizacional e culminam com a sua queda.

    Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.

    O dilema eterno do valor da vida humana, quando começa, quando termina, quem pode dispor dela, continua a inflamar as gentes deste mundo. Seria até de esperar que numa década tão furiosamente dominada por Cientismo, e em sociedades que clamaram por mandatos sanitários sem pruridos éticos, não houvesse agora uma bandeira de alarme hasteada em continente americano.

    O direito de acesso ao aborto nos Estados Unidos ficou consagrado há umas boas décadas, mas manco: usava do princípio da constitucionalidade – não descrita na Constituição – da privacidade.

    Agora, está aparentemente perdido e, para alguns, é motivo de gáudio; para outros é motivo para pensar que, se existir uma Aguda repetida, porventura alguém pensará igual.

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    Pesa ainda todo um novelo de moralidade e instituições religiosas – conhecidos baluartes de emancipação feminina (consultar no dicionário: sarcasmo) – a alardearem furiosamente a propaganda da sua mensagem.

    A verdade simples é que talvez o direito nunca tenha existido, não pelas razões que pelo menos muitas pessoas defenderiam. Talvez esse direito só tenha sido garantido enquanto o mercado – esse outro baluarte – queria acomodar as mulheres. Agora, com o monstro da recessão a bater à porta as sociedades, apressam-se em sacar os grilhões. Profilaxia.

    A verdade simples é que a preocupação do planeamento familiar cai sempre nos ombros da mulher: as consequências de ter ou não ter uma gravidez, um parto e um pós-parto; as consequências de uma pílula; as consequências de um DIU; os riscos de outros métodos mais naturais. Somos a baliza e temos de arranjar guarda-redes.

    A verdade aguda é que assim que se começou a desenvolver uma pílula masculina os primeiros estudos foram rapidamente interrompidos porque os participantes se queixaram de efeitos adversos. Alguns eram acne, diminuição da libido e variações de humor. Foi considerado que estes incómodos não compensavam em comparação com o estudo da eficácia desta pílula.

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    Quem é mulher lê isto e não deixa de pensar, seja lá qual for a sua posição sobre o resto – e lembrando que quase todas nós sabemos que a posição é muito perigosa de ser escrita em pedra, que, pois claro, a mulher resolve. A pílula feminina “só” tem efeitos adversos como: ansiedade, depressão, flutuação de peso, cefaleia, náusea, redução da libido e até coágulos sanguíneos, entre outros.

    A verdade triste é que, neste momento, em alguns estados americanos, até as apps de monitorização de ciclos menstruais podem ser intimadas por um tribunal para fornecer dados privados sobre os ciclos das utilizadoras, para verificar se poderá ter ocorrido um aborto clandestino ou não, em caso de denúncia. Assim, à semelhança do gado.

    Importante é que se salve aquela gestação, mesmo que seja para viver na miséria, mesmo que seja fruto de violação, mesmo que a mãe seja uma criança de 11 anos – como ocorreu também agora no Brasil, e empataram a decisão até a gravidez ter sete meses. Seria, por certo, outra Aguda mais a sul.

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    A verdade muito aguda é que isto afecta e destrói sempre as vidas mais pobres, mais desprotegidas, mais infelizes. E não falo dos bebés. Falo das mães.

    A verdade obtusa é que andam a debater crenças morais quando a ética deveria falar mais alto, e lembrar que o direito à autodeterminação sobre o próprio corpo e actos médicos realizados é absoluto.

    Resta saber quantas Agudas existem no Mundo, e se estamos mesmo a ver a perda de direitos de controlo reprodutivo, em nome de fervores morais e agendas políticas que atribuem poderes de uma sociedade ditar o que podemos individualmente fazer com o nosso corpo. Nada que não esteja a ser ensaiado e aplaudido há algum tempo.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sobre esta coisa chamada opinião

    Sobre esta coisa chamada opinião


    Antes de emigrar para a Suécia costumava ter acesos debates com um amigo “passista”. Tínhamos visões absolutamente distintas do mundo e percursos de vida completamente antagónicos. Certo dia, durante um almoço perto do mar, com aquele sol bem luso e um peixe grelhado com mestria, ele abre os braços e diz-me: “Tiago, percebes agora porque não emigro? Como é que se vive sem isto?”.

    Eu ouvi, respirei e disse: “os teus pais, depois de te pagarem os estudos em universidades estrangeiras, ofereceram-te uma casa e, ao dia de hoje, usas o teu salário para as contas do Pingo-Doce e da EDP. Percebes agora porque não emigras?”

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    Os nossos caminhos deixaram de se cruzar e imagino que, entretanto, se tenha tornado liberal. Tinha tudo para ser um forte apoiante dos mercados. Mas, por mais que as opiniões dele me irritassem, eu adorava debater com o sujeito. Não só era inteligente na defesa dos seus argumentos, como o fazia de forma convicta, educada e racional. Nas estuchas que eu tinha que levar nos convívios com aquela malta, o choque de opiniões com aquele indivíduo era a única coisa que me cativava.

    E isso nunca mudou.

    Sempre preferi estar no meio de correntes diversas de opinião em vez de me situar, apenas, entre aqueles que pensam como eu. É a única forma que conheço de evoluir, aprender e até de formar a raiz do pensamento. Se falarmos apenas com pessoas que votam como nós, apoiam o nosso clube e adoram a mesma zona balnear, dificilmente saíamos da bolha a que as redes sociais e a manipulação de informação dos dias de hoje nos condenam.

    Portanto, partindo desta base de pensamento, do respeito pelas diversas opiniões e do facto de expor a minha opinião publicamente há algum tempo, estou habituado a receber críticas constantes ao que escrevo. Faz parte e até agradeço.

    Aliás, incentivo.

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    Alguns dos reparos que me fazem ajudam-me a melhorar a escrita e até a ver as coisas de outra forma. Por outro lado, se há crítica é porque há leitores – e esse é sempre o primeiro objectivo de quem quer escrever.

    Aqui há uns anos, 2019 julgo, escrevi um texto sobre a TAP e as reclamações constantes dos portugueses aos seus serviços (não me lembro se nessa altura ainda pertencia aos privados a quem o Passos a ofereceu).

    Pelo meio fiz uma piada sobre glúten, que, como se percebe, não era o foco do texto. A coisa acabou por ter mais de mil partilhas, e eu passei os meses seguintes a ser insultado por algumas mães ofendidas, cujas intolerâncias próprias ou dos filhos, tinham sido mortalmente ofendidas com essa piada. Não é que eu tivesse matado alguém, mas, a avaliar por algumas reacções, poder-se-ia pensar que sim.

    Foi mais ou menos por esta altura que deixei de ler comentários ao que escrevo. Sejam elogiosos ou não, prefiro passar sem ver, porque tenho sempre a tendência para entrar em debate. Especialmente quando leio coisas mais disparatadas ou insultuosas. Um dos fenómenos que nunca perceberei é dos anónimos, sentados em frente a um teclado, e que dedicam boa parte do seu dia a insultarem outros anónimos, por divergência de opinião.

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    Pode ser um golo em fora-de-jogo, o resultado de uma eleição, a obrigatoriedade de uma máscara ou uma brasileira a abanar as nádegas no Rock in Rio. Tudo, mas absolutamente tudo, serve para insultar o desconhecido do lado, se este não corroborar a nossa opinião. Ora, eu acho esse movimento ligeiramente deprimente e, com a vossa licença, prefiro não entrar nele.

    Quando fui convidado para escrever colunas de opinião no PÁGINA UM, a minha pena estava mais do que identificada: emigrante, benfiquista, eleitor de esquerda, área de Ciências, contra os sucessivos confinamentos e pouco amante da histeria em volta da covid-19, sem nunca negar que o vírus existe, e nada fã de teorias da conspiração.

    Em princípio, não serei parte de nenhuma minoria escondida… vam’lá a ver: benfiquista e eleitor de esquerda, dizem os números, é onde se situa a maioria da nossa população. E pelo andar da carroça, não tarda, e também seremos mais na condição de emigrantes do que os residentes neste cantinho de bom sol e fresca sardinha.

    Portanto, quando escrevo opinião neste jornal – e isto poderá ser surpreendente –, escrevo a minha. Não a do partido A ou B, do clube Z ou Y. Pego nos temas da actualidade, e dou, sobre eles, a minha opinião. Critico o que tenho que criticar, elogio o que tenho que elogiar. Como qualquer um de nós.

    Depois das legislativas, repeti que Jerónimo de Sousa estava a afundar o PCP (e fui criticado por comunistas), que Rio não tinha qualquer ideia original e fazia a melhor oposição que Costa podia pedir. Disse que Cotrim de Figueiredo vendia um ideal que não se podia aplicar em Portugal e, mesmo assim, era constantemente apanhado em contradições na tentativa de explicar o liberalismo pensado para a nossa realidade. Valeu-me críticas da malta dos sapatos de vela. Disse que o Ventura não tinha conteúdo para mais do que dois ou três debates de seis minutos, como se provou nos 36 das últimas eleições onde chegou a ser penoso vê-lo.

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    Critiquei Jorge Jesus desde o malfadado dia em que abandonou o Flamengo. Critiquei as escutas do YouTube que não foram usadas como prova no Apito Dourado. Critiquei Bruno de Carvalho por todo o ódio em que empestou o Sporting.

    Durante o confinamento, critiquei muito o Governo português, e escrevi, noutro jornal, sobre a experiência sueca onde a vida seguiu com menos limitações e restrições à liberdade individual. Alguns votantes de esquerda chamaram-me “negacionista” e votantes de direita, nomeadamente liberais ou apoiantes do Chega, sentiram-se mais representados nesse tema.

    No entanto, quando o assunto passou a ser eleitoral, os mesmos que elogiavam, passaram a insultar-me. Portanto, é normal que todos cruzemos opiniões algures na vida e que, aqui e ali, concordemos em temas.

    Aquilo que quero dizer com isto é que a minha opinião não é partidária ou ideológica. É minha. Segue apenas aquilo que a minha cabeça dita em cada momento.

    Ontem, abri uma pequena excepção, e fui ler alguns comentários ao meu texto sobre o festival do Chega. Era uma paródia, pouco mais do que isso.

    Vi que alguns leitores decidiam deixar de apoiar o jornal porque o seu partido era satirizado nestas páginas. Houve até quem pedisse mais isenção. Ora… é aqui que eu queria ser bem claro nas linhas escritas: a opinião não é isenta, a opinião nunca pode ser isenta, porque se o for, então não é opinião. É outra coisa qualquer, mas não opinião. 

    As notícias do PÁGINA UM é que são, e devem ser, isentas.

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    O facto deste jornal ser apoiado pelos leitores e não ter qualquer patrocínio de entidades privadas ou públicas, significa que nunca será pressionado para não dar a notícia A ou alterar um pouco o conteúdo da notícia B. É isso que marca a isenção do PÁGINA UM, e é isso que o torna diferente e único no panorama nacional.

    Quem espera colunas de opinião que reflictam única e exclusivamente o seu pensamento, não está verdadeiramente interessado em “opinião”, mas sim numa extensão da sua bolha informativa.

    Em todos os jornais, eu tenho colunistas que gosto muito e outros que não suporto. O mesmo nas televisões. O que faço, quando fala ou escreve algum daqueles que me dá voltas ao estômago, não é partir a televisão ou fechar o jornal. Simplesmente mudo de canal, ou folheio as páginas.

    Já se encontrar algum órgão de comunicação social que reflicta apenas aquilo que penso, bom, nesse dia deixo mesmo de o seguir. Para espelho já basta o que tenho em casa.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Chega: só há uma “festa” como esta!

    Chega: só há uma “festa” como esta!


    O meu timing de entrada nos temas que circundam o Chega é quase sempre péssimo. Tenho a sensação que corro para a paragem e só vejo o escape do autocarro. Mas não é fácil, não é fácil, embora eu tenha tentado perceber este fenómeno da extrema-direita desde o início da aventura do nosso André.

    Um dia estava ele na CMTV a discutir centímetros dum penalti com aquele advogado que, alegadamente, recebia umas massas do Rui Pinto; e, no dia seguinte, aparecia ele em frente à Assembleia da República aos gritos contra o sistema.

    [Disseram-me que com a muleta do “alegadamente”, antes do verbo, podemos disparar toda e qualquer bojarda sem aquele risco incómodo de ir parar a um tribunal português. Ninguém tem 10 anos de vida para desperdiçar num processo na justiça lusa. De modo que, alegadamente, disparemos…]

    André Ventura, líder do Chega.

    Quando fui ver que ruído era aquele, e porque razão o gajo dos penaltis andava na rua a vociferar contra os poderes instalados, cheguei atrasado umas semanas. Já havia um partido político formado e com um segundo nome. O “Basta!” durou pouco e eu já só vivenciei mais a sério a experiência “Chegana”. Ainda dei ali o benefício da dúvida, porque, convenhamos, quem é que não corrige os temperos a meio do guisado? “Basta” era mais queque; “Chega” parecia mais do povo. Estavam afinados e prontos para partir.

    Nome bem acutilante, e grito de guerra “vergonha” a postos, faltavam as ideias. Ouço por um amigo: “ouve lá, este Ventura é que diz as verdades!”. Fui ver as verdades a meio de uma campanha legislativa e, novamente, cheguei tarde.

    Havia um programa político que previa o fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e da escola pública, mas, segundo consta, deu reclamações em barda. Foi alterado, e quando lá apareci já só vi a versão 2.0, mais difusa e macia, de forma a agradar às hostes. Pensei: “ora aqui está uma originalidade política, programas à la carte!”. Gostei e percebi de imediato que iam longe.

    A legislatura foi mais fraca em termos de trabalho feito. Metade do tempo fora das votações e todo o poder de fogo colocado em vídeos do YouTube de dois minutos com bocas ao primeiro-ministro. O homem das verdades conseguia ainda assim trilhar o seu caminho. Continuei à espera das ideias, nem que viessem numa terceira versão do programa, mas, essencialmente, a coisa resumiu-se a cascar nos beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) e nos ciganos, em geral, sem qualquer ordem em particular.

    Lá por fora, o Chega colou-se aos outros partidos de extrema-direita – da Le Pen ao Salvini –, o que levou alguns ingratos a apelidarem-nos de racistas. Quando fui escrever sobre o tema, já o assunto estava, novamente, fora de prazo. Ventura, Parrachita e alguns incógnitos apoiantes desfilavam pela Avenida da Liberdade, em Lisboa, empunhando tarjas com o slogan: “Portugal não é racista”. Fiquei informado sobre a nova posição e até me senti aliviado. Era o Portugal que eu queria também.

    André Ventura durante encontro do grupo político do Parlamento Europeu (direita e extrema-direita) Identidade e Democracia em 23 de Junho em Antuérpia (Bélgica).

    Tentei então dizer qualquer coisa sobre o tema, mas, de repente, um deputado do Chega afirmou, na Assembleia da República, que só não tinha sido eleito vice-presidente por causa da sua cor de pele, ou seja, por discriminação racial. Fiquei fora de jogo – e sem hipótese de ir ao VAR, tema que o André tanto gostava de debater, antes de se meter nestas andanças.

    Enfim, eu quero comentar a actualidade do Chega, mas torna-se incompatível com um horário de trabalho normal. Entre o tempo que começo a escrever e a pausa para o café, já o Ventura mudou de opinião três vezes. Aliás, nem estou a ser original, ele de facto mudou a intenção de voto três vezes no mesmo dia numa votação parlamentar. Não sei se o editor do PÁGINA UM aceita podcasts, mas, com palavra escrita, não há pai para a velocidade do Ventura.

    Há uns meses ouvi uma intervenção de alguém do Chega que falava nos boys dos aparelhos partidários. Alegadamente do Carlos César que, alegadamente, tem metade da árvore genealógica encaixada em cargos públicos.

    Muito bem, de repente senti um ponto de encontro e finalmente ia dar uma palmadinha nas costas por escrito. Porém, a meio do meu texto já se tinha descoberto que o pai de um deputado qualquer do Chega era agora assessor do Chega na Assembleia da República.

    Não quero imaginar o drama de combinar um jantar com um gajo destes. Sugerem a tasca do Avillez, 20 minutos antes do repasto dizem que é mesmo na tasca, mas do Zé e em Alfama. Trinta minutos depois da hora ligam a perguntar se sabemos onde fica a roulotte da Sónia, ali por baixo da Segunda Circular, mesmo na saída do Campo Grande. É gente que não se decide. Ou que estuda pouco e navega às sortes. Também pode ser isso.

    Antes do Verão, quando recebemos todos ordem de soltura da covid-19, o Ventura anunciou que o Chega faria a maior festa de Portugal, um festival algures em Julho, com comes e bebes, boa música e muita diversão. Pensei que seria uma forma de, por exemplo, arrasarem com o Avante.

    Imagino que seja fácil: se um partido moribundo, que nos juram estar a dar os últimos passos (há décadas), consegue juntar uns milhares há quatro décadas durante três dias, certamente que o Chega consegue juntar muito mais.

    A expectativa era alta até ter saído o cartaz do festival. E uso aqui a palavra “cartaz”, porque “programa” seria um exagero. Em termos de artistas, não sei se podem ser encaixados nessa categoria profissional: confirmados, estarão lá o Rui Bandeira e o Jaimão.

    Lembro-me que o primeiro cantava o “que venha um alien divino e nos leve para lá, aqui já não dá!”; e o segundo, julgo ser um camarada que aposta numas rimas à Quim Barreiros, mas com menos classe na métrica. Não sei se chegam para o “maior festival de Verão português”, mas darão uns bons três minutos de Youtube. Com o enquadramento certo e apresentação do Tilly, até poderá ser equiparado ao Rock in Rio na ChegaTV.

    Devo, contudo, manifestar-vos a minha surpresa com a forma de preenchimento de linhas no cartaz. Nunca tinha visto a referência a música ambiente num evento deste tipo. É quase como anunciar uma lista do Spotify ou avisar que o recinto terá urinóis. Parece aqueles relatórios de electrónica, que eu fazia, depois das madrugadas no Bairro Alto, em Times New Roman 16, só para conseguir ter mais do que uma folha atrás do título do trabalho. 

    Rui Bandeira, cabeça de cartaz da Chega Fest Batalha.

    Noto também a astúcia na pesquisa de trabalhadores. O Chega pede por voluntários, e depois diz-lhes que terão que passar por uma selecção. É o equivalente à experiência de trabalho voluntário na WebSummit, mas na companhia de pessoas que não terminaram a escolaridade obrigatória.

    Em suma, o Chega gosta da voracidade dos mercados, do indivíduo que se sobrepõe ao todo e, sempre que possível, do desvio de dinheiro público para lucros de uma minoria privada, mas, no seu quintal, opta pela camaradagem do trabalho gratuito em prol do bem comum. Ahh…o sol ainda nascerá para todos eles. 

    Quando comecei a escrever isto colocava, sem ironia, todas as esperanças musicais deste festival na banda de tributo aos Queen. Não há forma de correr mal quando se tocam os clássicos. “I want it all, I want it all, and I want it noooooow!”

    Um pouco antes de enviar o texto, vou olhar para o cartaz de novo para ver se não me esqueci de nada, e vejo que a banda anunciou ter sido colocada no programa da festa por engano e, como tal, não marcará presença. Estes gajos não têm descanso. Devem andar a calmantes com o carrossel que a vida lhes proporciona.

    Provam ainda assim que tenho duplamente razão: a banda deve de facto ser boa, e não há maneira de uma verdade chegana durar o tempo de cozedura de um texto.

    Que venha a FEST. Vai ser porreira, pá!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Dois processos num mês: a ocultação de dados pelo Ministério da Saúde “joga-se” agora nos tribunais. E pode haver terceiro…

    Dois processos num mês: a ocultação de dados pelo Ministério da Saúde “joga-se” agora nos tribunais. E pode haver terceiro…


    Em Portugal, apesar de vivermos em democracia há quase 50 anos – e de o Absolutismo há muito ser um período enterrado nos anais da História –, está enraizada em muitos dos nossos governantes a ideia de que o País, um Estado é propriedade de um Governo; sendo o Governo, formado por políticos que se comportam, acima dos demais, como senhores feudais, mandatados, com cheque em branco, pelos servis cidadãos através de uns papéis enfiados por uma ranhura de tempos em tempos, e sobre os quais exercem o poder em vez de lhes prestarem um serviço público.

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    Num país democrático decente, um Governo – como circunstancial mandatário do povo – deveria prestar continua e activamente contas à sociedade. Jamais ocultaria conscientemente qualquer informação – ou mesmo dados em bruto para que qualquer pessoa pudesse confirmar a validade dessa informação oficial. E, se por distração, e por não previsão de interesse, um qualquer cidadão se lembrasse de solicitar alguma informação que não fora activamente divulgada, logo esta, dentro de uma razoabilidade definida prévia e claramente por lei, lhe seria entregue dentro de um determinado prazo.

    Mais ainda, no caso desse pedido ser feito por um jornalista, não por este ser um cidadão acima dos outros, mas por a sua função, consagrada pela Constituição e pelas leis, lhe conceder especiais tarefas de watchdog ao serviço da sociedade.

    Ora, sobretudo nos últimos dois anos – e constituiu um agravamento do passado –, o país assistiu à mais nefasta estratégia de controlo da informação e de manipulação da opinião pública, sobretudo pela máquina mediática usada pelo Governo, que se soube aproveitar das fragilidades económicas dos media mainstream e de um conjunto de responsáveis editoriais que passaram a ser mais gestores de interesses políticos e financeiros do que jornalistas.

    Marta Temido, ministra da Saúde. Durante dois anos, ninguém insistiu para disponibilizar informação.

    Habituados que ficaram com o laxismo e a mansidão da imprensa, o Governo de António Costa pôde alimentar uma narrativa onde nada lhes era questionado; nada era pedido para se confirmar; nada lhe era solicitado para ser analisado de forma independente.

    O PÁGINA UM nasceu num período em que o jornalismo em Portugal nem ladrava, e muito menos mordia canelas. Nem latia. Lambia.

    Durante meses, o PÁGINA UM fez insistentes pedidos à Direcção-Geral da Saúde para obtenção de documentos administrativos. Foi necessário intentar-se um processo de intimação no passado dia 27 de Maio (1438/22.8BELSB) contra o Ministério da Saúde junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para haver uma reacção em processo que corre ainda os seus trâmites.

    E qual foi a reacção? Para já, a senhora directora-geral da Saúde, Graça Freitas, enviou ao PÁGINA UM competente ofício, após meses de silêncio, a recusar o acesso a diversos documentos administrativos, incluindo base de dados, porque, por exemplo, “se torna impossível até à data de hoje, prever a sua finalização (…), porquanto os referidos dados estão em permanente alteração no decurso diário dos trabalhos”.

    E foi este documento enviado ao Tribunal Administrativo, com outra argumentação ainda mais absurda – recomenda-se mesmo uma leitura, com o desafio difícil para se manter sempre a boca fechada –, numa tentativa (que se espera vã) de convencer um juiz de que não pode ser disponibilizada mais qualquer informação para além daquele que a outra imprensa tem (com gosto) deglutido.

    A vingar esta tese da DGS, sob os auspícios do Ministério da Saúde e do próprio Governo, no limite nunca um cidadão português poderia obter documentos administrativos do Estado português, a menos que o Estado português fosse finalmente extinto, porquanto só assim ficaria patente a todos que os trabalhos do Estado português, antes perpetuamente em curso, estavam finalmente finalizados.

    Extracto do ofício da DGS com as estapafúrdias justificações para recusar acesso a documentos administrativos, mesmo em casos já analisados pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

    Esta luta do PÁGINA UM por uma maior transparência, que na verdade é uma tarefa que deveria ser normal e corriqueira no jornalismo, não acabará por aqui. Os tempos têm de mudar. Para o Governo e para a imprensa.

    Por esse motivo – e porque ao longo de seis meses de existência foram escassíssimas as respostas do Ministério da Saúde e de entidades por si tuteladas –, o PÁGINA UM solicitou no passado dia 2 de Junho que fosse disponibilizado o acesso a todo o seu arquivo – com documentos todos eles administrativos, logo de acesso público –, desde 2020, tendo elencado um vasto leque de entidades remetentes e destinatárias de ofícios, pareceres e relatórios.

    Numa primeira fase, em 7 de Junho, a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde consideraria este pedido do PÁGINA UM como “manifestamente excessivo [e] abusivo”, mas depois reconsiderou, após se ter replicado ser temerário que o gabinete da ministra Marta Temido considerasse abusivos os pedidos de um órgão de comunicação social, e pediu esclarecimentos à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

    Lista de processos já intentados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa por recusa de acesso a documentos administrativos.

    Não há, porém, motivos para dúvidas nem para procrastinações. E assim, no final da passada semana, o PÁGINA UM intentou um novo processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra o Ministério da Saúde. Este novo processo (1779/22.4BELSB) foi já distribuído na sexta-feira passada à juíza Dinamene de Freitas, que terá, ao analisar este processo, a indirecta oportunidade de responder se Portugal é uma verdadeira democracia. Ou seja, será que os cidadãos podem saber o que, nas estreitas competências que lhe foram atribuídas por eleições, os governantes fazem e escrevem?

    Mas, como não há duas sem três – e haverá certamente mais, se necessário for –, o PÁGINA UM tomou mais medidas após o escandaloso “apagão” da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar que constava no Portal da Transparência do SNS, sobre a qual a generalidade da imprensa mainstream nada disse.

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    Também na passada semana, o PÁGINA UM solicitou a quatro entidades que, ao abrigo da lei, fosse(m) disponibilizado(s) o(s) eventual(is) documento(s) administrativo(s) que estivessem nos seus arquivos com a ordem para que fosse excluída a dita base de dados – que, como se sabe, permitiu ao PÁGINA UM, com dados até Janeiro de 2022, desenvolver um dossier de jornalismo de investigação bastante comprometedor.

    Essas entidades são as seguintes, e divulgamos as cartas: Ministério da Saúde, DGS, Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Caso estas entidades não tenham esses documentos, porque não existem, a lei determina que informem da sua não existência.

    Ou seja, o PÁGINA UM quer saber se a ordem foi escrita – e se foi, por quem, e ficando assim a saber-se a fundamentação – ou se estamos perante uma ordem política feita “por boca”. E então aí teremos de questionar se isso é legal. Se um governante ou alguém por si mandatado pode “eclipsar” uma base de dados pública apenas porque contém potencial informação comprometedora.

    Como é óbvio, se não houver respostas, ou estas não forem aceitáveis em democracia, o caminho será o Tribunal Administrativo.

    Enquanto o PÁGINA UM existir, e houver o apoio dos leitores, esta será sempre a postura, a estratégia e o modus operandi deste (vosso) jornal. Pelo menos enquanto Portugal for uma democracia…


    Os processos judiciais do PÁGINA UM são financiados pelo FUNDO JURÍDICO, proveniente dos apoios dos leitores através da plataforma MIGHTYCAUSE, tendo já sido recolhidos 6.810 euros. Além de outros custos, a taxa de justiça inicial é de 306 euros por cada um dos 7 processos já apresentados. Estão em preparação outros processos em áreas distintas.

  • Os pais do Simba

    Os pais do Simba


    Nos meus tempos de teenager, durante os verões alentejanos, um amigo mais eufórico depois daqueles jantares regados com uva das adegas locais, gritava: “sou filho do meu pai e da minha mãe, não pago e não tenho medo de ninguém!”.

    Quando a conta chegava, enfim, como todos nós, ele pagava. Mas durante cinco minutos sentia-se o pai do Simba, com o sangue ali a circular mais depressa entre as veias. E tudo bem, entre teenagers com aquele grau de idiotice mais próprio da idade, não há problema.

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    Até porque, quando eu era gaiato, não existiam telefones com câmara ou lives no Facebook. A vida era reservada ao que a nossa memória guardava, e isso, meus amigos, valia ouro. Sorte a do meu amigo que eu não me esqueci dos números de Rei da Selva…

    Dizia eu – quando perdi o foco, como é habitual – que a idiotice é natural em jovens imberbes. Mas isso torna-se mais preocupante em adultos, especialmente se esses adultos forem líderes de países democráticos.

    Recentemente a Estónia veio bater à porta da NATO, porque um helicóptero russo passou no seu espaço aéreo.

    Na Finlândia, o líder das Forças Armadas afirmou que estão prontos para combater com os russos.

    Já na Lituânia, as autoridades decidiram bloquear o acesso dos comboios russos de mercadorias ao enclave de Kaliningrado.

    Vejo aqui vários candidatos a pais do Simba – alguns Reis da Selva e poucos cérebros em funcionamento.

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    Os russos já avisaram que responderão à Lituânia caso o bloqueio não termine. Seja ou não um membro da NATO, note-se.

    Vou ouvindo e lendo que a Rússia está de rastos, que não aguenta nova frente de batalha e que não são perigo para ninguém – excluindo para os ucranianos, deduzo. É uma teoria assente no desgaste que estão a sofrer em território ucraniano, e na frase que se repete: “se nem com a Ucrânia podem, quanto mais com a NATO”.

    Permitam-me discordar aqui um pouco antes de chegarmos ao fundamental desta questão.

    Os russos estão certamente desgastados, mas julgo que, por esta altura, já ninguém se atreve a dizer que esta é uma guerra entre dois países. Os mortos são de facto maioritariamente de dois países, mas há um envolvimento directo do chamado Ocidente na contenda.

    Sem o dinheiro e armas despejados pela União Europeia, NATO, Estados Unidos e Reino Unido, a Ucrânia já teria capitulado há muito. Portanto, é justo dizer-se que os russos combatem contra uma coligação.

    É certo que o Ocidente incentiva os ucranianos a continuarem e a doar a carne para o churrasco, mas o carvão, as acendalhas e as minis são oferecidas por nós.

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    O envolvimento da NATO nesta guerra é mais do que assumido; portanto, tenhamos pelo menos esse dado em conta e não continuemos a fingir que os ucranianos estão sós. Sós estavam os georgianos e duraram cinco dias. Sós estão os palestinianos que vivem em prisões a céu aberto.

    Portanto, voltando ao ponto inicial: quando vejo simulacros de pai do Simba, imagino que todos, agora na União Europeia, vejam os russos debilitados e em ponto de rebuçado para levarem mais umas vergastadas.

    E a minha pergunta aqui é: porquê? Mesmo que estejam desgastados, cansados e debilitados, quem é que ganha com o alargar do confronto para a Zona Euro? Se um touro de 500 quilos andar às voltas num praça durante uma hora, passa a ser um acto de inteligência correr contra ele só porque já exercitou um pouco a musculatura? Os 500 quilos de peso doem menos e provocam menos danos no nosso esqueleto?

    É que nem essa teoria dos russos estarem de gatas, caso fosse mesmo essencial alargar o conflito, parece ter base firme.

    Televisões ocidentais, portuguesas incluídas – portanto, não foi a RT –, anunciaram que os lucros no último trimestre aumentaram mais de 30% na Rússia. A principal razão continua a ser a venda de energia, neste caso, com a China e a Índia – entre outros BRICS – a adquiriram o excedente que deixou de ser vendido para a Zona Euro.

    Ou seja, as potências emergentes dizem, pela vertente comercial, que não se importam de financiar a invasão russa, e ainda aproveitam para fazer negócio, refinando a matéria-prima e voltando a vendê-la aos europeus.

    Ao mesmo tempo, Xi Jinping, líder chinês, afirmou que as sanções impostas à Rússia seriam um tiro nos pés dos europeus e, cedo ou tarde, se virariam contra o próprio povo.

    Como se percebe pelo custo dos combustíveis, redução de salários e aumentos das taxas de juro, ele está certo. Mais não seja, porque a continuação da guerra e as restrições impostas, dá às petrolíferas e às financeiras a desculpa perfeita para os aumentos desejados – sejam ou não realmente afectadas. 

    Por outro lado, as relações comerciais entre a Rússia e os BRICS – que são potências emergentes –, com China e Índia à cabeça, mostram-nos qual foi o lado que estes exércitos escolheram no conflito. Ou seja, o touro exaurido e com a língua de fora parece ter amigos do tamanho da NATO.

    Neste cenário, queremos mesmo ver três países – Estónia, Finlândia e Lituânia –, cujas populações somadas não chegam à portuguesa, a encherem o peito em nosso nome em frente à Rússia?

    Estamos assim tão confiantes que os Estados Unidos e a NATO se vão meter nisto, numa altura em que Joe Biden já assumiu que, cedo ou tarde, Zelinsky terá de se sentar e chegar a um acordo?

    Pessoalmente, preferia que a malta do Báltico se acalmasse, aproveitasse o Verão – que são sempre os melhores quatro dias do ano – e, se possível, que tentassem contribuir para uma conclusão do conflito.

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    Gente com gasolina ao redor da fogueira, já temos em demasia. Agora, aquilo que precisamos é de sair disto rapidamente, e usar a política para o que ela realmente serve: sossegar os egos dos líderes.

    Venham acordos de paz, com ou sem território, com mais ou menos dinheiro, com ou sem entradas na União Europeia. Façam lá as promessas que precisam de fazer para todos saírem desta guerra vencendo qualquer coisa.

    Acabem é com a carnificina de russos e ucranianos no terreno, e ainda com o empobrecimento generalizado da população europeia. O desgaste russo assumido pelos americanos é, na realidade, o desgaste de toda a Europa. Eu sou aquele que confiou nos avisos dos serviços secretos britânicos que, em Fevereiro passado, julgo, afirmavam que a guerra estaria terminada em Maio. Enfim, nunca mais foram os mesmos depois da morte do James Bond – spoiler alert.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A “ciência contrafactual” é uma treta ou como se salvam cientistas patetas

    A “ciência contrafactual” é uma treta ou como se salvam cientistas patetas


    Se a minha avó tivesse rodas era um camião – este dichote, bem conhecido, tem sido usado amiúde por treinadores da bola perante perguntas parvas de jornalistas.

    Nesta senda, surge agora em força uma modalidade de fazer-se Ciência: a aplicação de modelos matemáticos para simular uma contrafactualidade. É a Ciencia do Se… É a Ciência do “imaginemos que era assim como queríamos”…

    white bird on brown wood

    Por oposição dos modelos preditivos, em que se estabelecem premissas e assumpções, partindo daí para uma previsão que poderá depois ser verificada – e permitindo-se assim, à posteriori uma avaliação da precisão do dito modelo –, nos modelos matemáticos contrafactuais pode-se logo “gabar cestos” sem perigo de desmentido.

    Por exemplo, basta pegar numa medida ou acção previamente tomada e avaliar a sua eficácia à posterior, sem ter em consideração qualquer outra variável. E depois atribuir à medida toda a responsabilidade (boa) do diferencial obtido.

    Imagine-se, por absurdo, que se atribuía ao assobiar nas ruas uma hipotética redução dos atropelamentos em 90%, e se avaliava depois, passado um ano, a eficácia dessa medida sem, por exemplo, incorporar as campanhas de sensibilização dos condutores, a maior concentração de passadeiras ou semáforos e uma diminuição da velocidade máxima dos automóveis. Ora, alguém sensato poderia acreditar que havendo mesmo uma redução em 90% nos atropelamentos tal se devia exclusivamente aos assobios?

    Dos seis autores do artigo da The Lancet Infectious Diseases, três estiveram na equipa de Neil Ferguson que apresentou previsões catastrofistas em Março de 2020, que estiveram longe de ocorrerem.

    Ora, nos últimos dois dias muito se tem falado de um estudo, publicado na revista científica The Lancet Infectious Diseases por investigadores do Imperial College de Londres sobre a eficácia das vacinas contra a covid-19, atribuindo-lhe a “responsabilidade” de terem salvado cerca de 20 milhões de vidas em todo o Mundo. Em Portugal, segundo as declarações de um dos autores dessa análise (Oliver Watson) ao jornal Público, estimaram que se tenham evitado 135.900 mortes até 8 de Dezembro de 2021, com “uma incerteza entre 126.700 e 179.300 mortes”.

    Esse estudo tem quatro problemas básicos e graves.

    Primeiro problema, estamos perante um estudo contrafactual: pressupõe que tenha sido apenas a vacina o único contribuinte para a evidente descida da mortalidade absoluta e da taxa de letalidade, ignorando, ou pretendendo ignorar, que a covid-19 de hoje, sobretudo com a variante Ómicron agora dominante, é menos letal independentemente da vacinação, e que a população já não é naïve – ou seja, a imunidade natural tem uma relevância significativa não desprezável.

    Segundo problema: o estudo apresenta pressupostos que enviesam à partida os resultados, permitindo que o “cesto se gabe”. Com efeito, em vez de confrontar a letalidade (e mortalidade) dos vacinados com a dos não-vacinados e com a dos infectados recuperados, o estudo aproveitou apenas as referências de uns poucos estudos, alguns ainda não revisados, e até mesmo um comunicado de imprensa de uma das farmacêuticas. Por outro lado, a análise matemática usa tantas estimativas e pressupostos que, enfim, por mais que o modelo matemático seja extraordinário e os cientistas uns estupendos génios da Matemática, não conseguem fazer mais do que uma porcaria embelezada.

    Terceiro problema: uma parte dos cientistas autores deste panegírico às vacinas tem um grave conflito de interesses. Não tanto por este estudo ter sido financiado pela Bill & Melinda Gates Foundation, pela Organização Mundial da Saúde, pela GAVI e pelo The Vaccine Alliance.

    O grande conflito de interesses advém, sim, de três dos seis autores – Oliver J. Watson, Peter Winskill e Azra C. Ghani – terem sido co-autores da célebre estimativa do Imperial College feita em Março de 2020 que espoletou todo o alarme mundial em redor da pandemia.

    Estudo catastrofista do Imperial College previa um morticínio sem medidas não-farmacológicas, e justificou lockdowns e máscaras, cuja eficácia nunca se comprovou. Três dos autores dizem agora que as vacinas é que salvaram milhões.

    Recorde-se que esse estudo – publicado no inicio da pandemia à Europa, em 26 de Março de 2020, e tendo Neil Ferguson como cabeça de cartaz – estimava que, sem medidas, a covid-19 poderia fazer 7 mil milhões de infectados e 40 milhões de mortes.

    Ora, para apagar este colossal e vergonhoso erro de previsão – um exemplo paradigmático da má Ciência ao serviço do alarmismo –, nada melhor do que um outro pseudo-estudo onde as vacinas surgem – como sucedeu com muitas das absurdas medidas não farmacológicas – como o ente salvador. Mas salvador sobretudo da lamentável credibilidade de certos investigadores.

    Em suma, com este suposto estudo glorificador das salvíficas vacinas, a par das tais medidas não farmacológicas, a absurda estimativa de Março de 2020 estará sempre certificada. Pelo próprios que a fizeram.

    Quarto problema: não vale a pena olhar para a razoabilidade das estimativas mundiais quando os autores nem sequer acertam com a realidade de um país. O caso de Portugal, por exemplo.

    Com efeito, atribuir às vacinas contra a covid-19 o condão de salvar entre finais de Dezembro de 2020 (quando se iniciou o programa de vacinação) e 8 de Dezembro de 2021 um total de 135.900 pessoas é um absurdo.

    Não por representar mais mortes do que as que são causadas por todas as outras doenças (a covid-19 não é a gripe espanhola), mas sim por ser uma impossibilidade.

    De facto, se analisarmos a taxa de letalidade da covid-19 antes da introdução das vacinas, observamos que, em 27 de Dezembro de 2020 (dia da inoculação da primeira), a taxa de letalidade desta doença era de 1,77% (6.693 mortes em 378.395 casos positivos).

    Ora, entre 27 de Dezembro de 2020 e 8 de Dezembro de 2021, registaram-se em Portugal 802.923 casos positivos, que resultaram em mais 11.917 óbitos, o que significa que, no primeiro ano com vacinação, a taxa de letalidade foi de 1,48%.

    Ou seja, com a introdução da vacina, a taxa de letalidade apenas baixou de 1,77% para 1,48%, algo que jamais poderia implicar um tão grande contributo das vacinas na redução da mortalidade.

    Mesmo que, por absurdo, toda a população tivesse sido infectada (cerca de 10,2 milhões de pessoas), a redução da taxa de letalidade global em apenas 0,29 pontos percentuais significava que teriam sido poupadas apenas 29.580 pessoas. Mas notem: tinha de ser infectada TODA a população no espaço de UM ano. Até agora, em dois anos e quase quatro meses foi infectada, segundo dados oficiais, cerca de metade da população (5,120,970 casos positivos, até hoje).

    Na verdade, o game changer da covid-19 não foram as vacinas, mas sim o surgimento da Ómicron, por muito que Governos, farmacêuticas e certos investigadores inescrupulosos queiram convencer-nos do contrário.

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    Com efeito, veja-se como mudou a taxa de letalidade em 2022 em Portugal com a dominância da Ómicron, de muito menor agressividade: desde Janeiro até 22 de Junho registaram-se 3.693.100 casos positivos que resultaram em 5.022 óbitos atribuídos à covid-19. Isto significa que a taxa de letalidade – que, recorde-se, era de 1,48% no primeiro ano de vacinação – se cifrou em apenas 0,14%, o que está ao nível das pneumonias.

    Querer atribuir às vacinas – e não à menor agressividade da Ómicron, que foi, para nossa fortuna, o que fez cessar a pandemia – a maior fatia desta enorme redução da letalidade do SARS-CoV-2 é, no mínimo, desonesto. E nenhum cientista o pode ser, porque a desonestidade é inimiga da Ciência, e é um defeito  moral independente das capacidade cognitivas.    

    Em suma, tal como o estudo preditivo do Imperial College de Março de 2020, também este estudo contrafactual de Junho de 2022 do mesmo Imperial College deveria ficar nos anais da má Ciência. Tanto um como o outro nem para limpar o rabo servem.

  • Cão que morde também ladra

    Cão que morde também ladra


    Um lugar sagrado evoca muito mais do que o respeito pelo religioso; e, por isso, dependendo de cada cultura religiosa, somos levados a viajar pelos símbolos, pelos efeitos, pelas regras da geometria, da acústica, da óptica. O espaço sagrado torna-se, portanto, uma dimensão pela qual o ser humano viaja para se conhecer e se encontrar com o Divino.

    Despertado pelos sentidos, pelas emoções e sensações provocadas por cada símbolo, por cada forma, pelo silêncio, pela luz, pelas sombras, pela presença e pela ausência, a Humanidade sacraliza o que está fora para depois despertar o que se encontra dentro.

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    Num ritmo que nos leva a uma permanente linguagem simbólica pela qual os sinais sensíveis dos mistérios inteligíveis constituem, para a Humanidade, um caminho ousado, misterioso e desafiante, que nos segreda, passo a passo, em cada pista, em cada sentido, em cada forma.

    Também por isso, muito antes da maioria de nós saber ler e escrever, as histórias são fixadas pela pintura, pelos vitrais, pelos azulejos, pela arte. Não fosse a fraqueza humana e tudo pareceria perfeito.

    Assentemos agora os pés na terra e recordemos a imagem do cão – símbolo de fidelidade, proteção, vigilância. Representação animal que, do Egipto Antigo à Grécia, atravessando tantas outras culturas e civilizações, se mantém transversal no significado e na proximidade aos humanos.

    Diz o povo que: “Cão que ladra não morde” – um provérbio popular que se refere aos que muito falam, pouco fazem, confundem, perturbam, se intrometem, mas não são consequentes. Ora, durante os últimos seis meses, viu-se isso contra o jornal PÁGINA UM – nenhum ousou e conseguiu morder. Verificou-se o ditado.

    Estratégia diferente adoptou o jornal de onde vos falo: ladrou e tem mordido, nem sempre por esta ordem. Tem deixado marcas. Muitas e diversas.

    Mas, ainda a propósito dos cães e do jornalismo, gostava de recordar as velhas lutas mortíferas – que são, muitas vezes perversamente manipuladas pelos humanos ao cortarem as caudas dos cães para evitar a desistência – já que é metendo a cauda entre as patas que o animal manifesta o medo e a derrota.

    Acto desumano, esse, o de amputar um membro que pode manifestar alegria ou medo. Perdoem-me a correcção – gesto, quiçá, demasiado humano.

    Mas gostava de acrescentar algo mais à crónica de hoje. Durante muito tempo associou-se à língua daquele ser vivo a ideia de cura.

    Julgou-se que as feridas saravam mais facilmente quando eram lambidas por um cão do que sendo simplesmente lavadas com água que tudo lava – benditas as línguas destes pequenotes que, deixando-se comprar por biscoitos e afagos, continuam fiéis companheiros.

    Ora, assim se conclui facilmente que o comportamento canino é um franco resultado de uma relação e de uma tensão entre o estado selvagem e instintivo e a estreita ligação aos humanos. Somos todos muito parecidos, pena que a língua humana não seja tão eficaz a sarar como eficaz é a ferir.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A tempestade perfeita

    A tempestade perfeita


    Estranhei ver uma casa à venda na minha da rua. Nos últimos quatros anos, que me lembre, que ninguém vende nada por ali. Estranhei ainda mais que o preço de venda fosse abaixo do valor de “mercado”. Note-se que este é um dos meus termos favoritos. Mercado. Essa entidade abstracta que se auto-regula, e que nos convence daquela verdade absolutamente idiota: “se alguém pagou, é porque vale”.

    Perdi a conta ao número de vezes que discuti isto com os mais variados entusiastas dos mercados. Um T2 em Arroios não vale 500.000 euros. Um T4 no Seixal não vale 800.000 euros. Uma casa de madeira na minha rua não vale 600.000 euros. Ponto final.

    white wooden house between trees

    Podem dizer que se venderam, que alguém pagou, que um norueguês achava barato. O bem adquirido NÃO VALE ESSE VALOR. Ponto final. Quem o vendeu é que lucrou mais do que lucraria sem especulação pornográfica.

    Repeti esta discussão vezes sem conta, terminando sempre da mesma forma: como ficarão as coisas no dia em que o último comprador, depois de anos de vendas especulativas, ficar com um bem nas mãos que vale menos do que o crédito que contraiu por ele? Por outras palavras: o que acontece quando quisermos vender uma casa que o mercado nos diz, agora, valer menos do que pagámos por ela? Ficamos assustados e vendemos ao melhor preço. E depois os outros apercebem-se que o mesmo lhes sucederá, e vendem ao melhor preço, que rapidamente tende a ser cada vez mais baixo… Ou seja, rebenta a bolha.

    Há uma bebedeira colectiva em que todos fomos culpados. Nós, privados, que aceitámos que os mercados nos dissessem que um Fiat valia o preço de um Ferrari, e os bancos, que avalizaram créditos para Ferraris tendo Fiats como garantia.

    Finalmente, sempre com a guerra na Ucrânia, as sanções e a escalada dos preços em pano de fundo, aparecem os aumentos das taxas de juro do Banco Central Europeu (BCE) que, obviamente, vão trazer à vida aquelas páginas do fim da resma que nos entregam quando fazemos um crédito hipotecário – e que, claro está, ninguém lê. “Se a Euribor passar para 2%, então a sua prestação será X”.

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    Em Gotemburgo, onde um apartamento no pior bairro custa perto de 200.000 euros, as famílias estão endividadas até ao osso. Meio milhão de euros por um apartamento é hoje algo perfeitamente banal na cidade. Uma realidade parecida com a de Lisboa, eu diria, onde qualquer apartamento fora da Amadora começa nesses valores.

    Os bancos suecos começaram a avisar os clientes das constantes subidas das taxas – deduzo que em Portugal se esteja a fazer o mesmo – e para quem tinha créditos variáveis, os mínimos a um ano passaram para 4%. Isto significa, grosso modo, que as famílias dobrarão os seus custos com a habitação.

    Portanto, não só os salários diminuíram com a inflação como, por conta do aumento das taxas de juro no crédito hipotecário, ficarão muitas famílias numa situação de aperto até aqui inimaginável. O mercado vai-se encher de casas, os preços vão baixar, alguns não vão conseguir pagar os créditos ou vão trabalhar até rebentar apenas para pagar contas.

    Pergunto: era assim tão difícil perceber que dizer “o mercado diz que” é, na verdade, apenas uma forma imunda de justificar lucros disparatados num reduzido espaço de tempo? Não é mais ou menos óbvio que não, um T1 numa colina de Lisboa com uma janela de 10 cm de vista para o Tejo, não valerá nunca, por mais franceses que o queiram, 350.000 euros?

    Se a situação na Suécia, onde o nível salarial e de poupanças são altos, caminha para um nível assustador, eu não quero imaginar o que vai acontecer em Portugal.

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    Mas quero muito que me voltem a explicar as vantagens do mercado desregulado, do envio de dinheiro e armas para uma guerra, das sanções que estão a rebentar com os russos e de como os aumentos do BCE nos ajudam a controlar a despesa.

    Quero também entender, com muita vontade, por que razão a banca é pública na altura de ser salva, mas totalmente privada e autónoma na altura de decidir o tamanho dos seus lucros.

    As pessoas vão perder casas e os créditos dos palheiros transformados em mansões vão acabar na dívida pública. No fim, o único culpado, será o gajo que tentou sair de casa dos pais quando percebeu que já tinha 35 anos.

    Entrámos num comboio há anos que só anda em círculos e, por mais paragens que se repitam, ainda acreditamos que seguimos em linha recta.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.