Categoria: Opinião

  • Da pandemia aos incêndios: o mesmo país, a mesma gestão política, o mesmo bode expiatório, o mesmo desastre

    Da pandemia aos incêndios: o mesmo país, a mesma gestão política, o mesmo bode expiatório, o mesmo desastre


    Fossem os nossos políticos tão exímios em implementar políticas públicas eficazes como em encontrar bodes expiatórios, e Portugal seria um país exemplar. Assim não sendo, espera-nos o inferno. Ontem, como hoje; agora como no futuro, se não atalharmos caminho.

    Sabemos hoje como foram os dois últimos anos. Há duas semanas, o próprio presidente do Tribunal Constitucional (TC) elencava que, a pretexto da pandemia, Portugal conheceu “15 declarações do estado de emergência, 11 declarações de situação de alerta, 11 declarações de situação de calamidade, duas declarações de situação de calamidade, contingência e alerta, três declarações de situação de contingência e alerta e três declarações de situação de contingência”.

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    Tamanha “barbaridade constitucional” (as aspas são minhas), que até surpreendeu o responsável máximo pela defesa dos nossos direitos constitucionais, não teve como escopo principal criar (ou contribuir para criar) condições para se ser mais eficaz e eficiente nas medidas de controlo da covid-19, de uma forma equilibrada dentro das políticas de Saúde Pública.

    Foram sobretudo aplicadas pensando em dois objectivos. O primeiro, o próprio presidente do TC refere: fomentar o medo.

    Tem lógica, foi assim mesmo, e sabemos. Alimentando o medo (de morte, neste caso), os políticos invocaram para si o papel protector do Estado perante uma agressão externa sobre-humana, retirando de si a responsabilidade de solucionar o problema, e ademais justificando a possibilidade de exigirem, como exigiram, aos seus cidadãos uma subordinação às suas ordens – e levá-los a que eles mansamente as aceitassem e controlassem os “insurrectos”.

    O segundo objectivo foi criar uma conjuntura no ambiente social – o medo colectivo instigado pelos interesses dos media mainstream – que lhe garantisse um resultado do tipo win-win.

    Ou seja, se por circunstâncias diversas, e exteriores ao Governo, a pandemia amainasse – por exemplo, pela natural evolução para uma fase endémica, como a que vivemos –, a “vitória” teria um dono. Ainda mais gloriosa porque a imprensa garantiria o selo.

    red and white UNKs restaurant

    Caso o Governo falhasse – como falhou no controlo da pandemia, em determinada fase (Janeiro e Fevereiro de 2021) e sobretudo na gestão do Sistema Nacional de Saúde (como se constatou ao longo do tempo, e mais ainda agora, para cúmplice silêncio da imprensa mainstream –, nunca se lhes poderia, supostamente, assacar culpas.

    Com efeito, como assacar responsabilidades a um Governo que, parafraseando o presidente do TC, decretou “15 declarações do estado de emergência, 11 declarações de situação de alerta, 11 declarações de situação de calamidade, duas declarações de situação de calamidade, contingência e alerta, três declarações de situação de contingência e alerta e três declarações de situação de contingência”?

    Não estiveram eles, o Governo, a trabalhar incansavelmente, sempre a aparecer, sempre a parecer que faziam coisas? Como se pode, nestas circunstâncias, responsabilizar o Governo português pelo imparável excesso de mortes nos últimos 53 meses? Se tal houve foi porque o “monstro” da pandemia não permitiu mais. Era inevitável, e mais: até seria pior se não fossem as tais 15 declarações do estado de emergência, & etc.

    Para que esta narrativa fosse politicamente bem-sucedida – como foi durante a pandemia –, o controlo da informação mostrou-se essencial. O Governo esteve sempre na crista da onda mediática, a legislar – esteve e está na moda as Resoluções de Conselho de Ministros, que, do ponto de vista legislativo, valem quase nada –, a dar ordens, a comentar, a inundar a comunicação social de suposta informação (muita dela filtrada e manipulada, porque nunca se divulgam dados em bruto para evitar surpresas).

    Misture-se isto com um presidente da República, um primeiro-ministro, uma ministra e directores-gerais sem independência partidária a debitarem opiniões e a fazerem comentários sobre uma estratégia de combate a uma calamidade, e nunca ninguém poderá apontar-lhes que são eles uma calamidade – que foram eles a contribuir para a calamidade.

    silhouette of trees on smoke covered forest

    Esta estratégia de diabolizar ameaças, hiperbolizando problemas – como sucedeu com a covid-19 –, não é, na verdade, inédita. Tal sucedeu sempre nos incêndios rurais. Em 2003 foi assim, quando arderam mais de 400 mil hectares; em 2005 também, quando arderam 350 mil hectares; em 2017, idem, quando arderam 540 mil hectares e morreram mais de 100 pessoas em dois eventos catastróficos, em Junho e em Outubro.

    Nada disto foi culpa de qualquer Governo, claro! Foi tudo culpa de um “monstro” externo – o fogo, “primo” mais antigo do SARS-CoV-2 como bode expiatório – nunca das políticas públicas desastrosas.

    Nada será, portanto, culpa do actual Governo se os próximos dias transformarem o país em chamas. Já vi esse passa-culpas muitas vezes, já escrevi muito sobre isso: mais de 400 páginas há 15 anos, com Portugal: o vermelho e o negro.

    Com a pandemia ainda morna, vejo-me assim perante um déjà vu, agora que se está na iminência de mais um desastre num quente e seco no Verão, como se fosse anormal tempo quente e seco no Verão.

    Tenho para mim – que acompanho essa temática, na função de jornalista, desde os anos 90 – como certo que as alterações climáticas são uma evidência, independentemente de alguns desconfiarem que não são de origem humana (erradamente, na minha opinião). Porém, estou muito longe de aceitar que, a pretexto de uns dias mais quentes de Verão – e é bom recordar que no ano passado Julho foi “fresco” –, se venha, logo, invocar as alterações climáticas com o objectivo de fomentar, desde logo, um “clima” de imprevisibilidade nas consequências.

    Portugal é o único país da Europa mediterrânica que, desde 1980, aumentou a sua área ardida em termos absolutos. Desde o início do presente século, só dois países registaram anos com uma área ardida superior a 1% do respectivo território: Grécia e Portugal. Mas enquanto a Grécia viu isso suceder apenas duas vezes (2000 e 2007; um pouco menos de 2% de área afectada), tal já sucedeu por 17 vezes em Portugal, das quais 10 vezes no presente século, com um pico de 6% em 2017.

    Variação da área ardida por ano nos países mediterrânicos europeus (JRC, 2010-2019)

    Foi isto culpa das alterações climáticas? Foi, se se considerar que seria lícito armarmo-nos as Forças Armadas de arco e flecha em pleno século XXI para enfrentarmos uma eventual invasão estrangeira…

    Ou foi a culpa será antes das políticas de desinvestimento agrícola? E das políticas de promoção da desertificação do interior (porque o interior não dá votos)? E das erradas estratégias florestais que não se adaptaram face às alterações climáticas e as mudanças sociais-culturais do mundo rural? E da criminosa manutenção de um modelo de prevenção e de combate aos incêndios florestais assente em pseudo-voluntarismo em detrimento de um modelo profissional holístico (gestão, prevenção e combate) e responsável?

    Nada disto conta? É tudo culpa de um bode expiatório, de uma força incontrolável, sobre-humana? Culpa de todos em geral, e nunca do Governo em particular, que pode livremente puxar-nos as orelhas, porque por detrás de cada português estará um transmissor de SARS-CoV-2 como está também um incendiário?

    Suspiro, por isso, ao ver agora a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil dizer que estamos perante uma “meteorologia quase inédita” (confesso que não sei o que é um “quase” ineditismo), ao ver o Governo a decretar mais um “estado de contingência”, ao ver o Presidente da República a dissertar sobre fases dos incêndios como se estivesse com comentários no final dos jogos de futebol da Selecção Nacional, e ao ver o reitor do Santuário de Fátima a apelar para que se reze pelo fim dos fogos.

    Este país está condenado.

  • Terra do Sol Nascente

    Terra do Sol Nascente


    Desde os primórdios da Humanidade, as diferentes civilizações têm olhado o sol tecendo considerações religiosas, filosóficas e científicas. Se é graças à sua luz e calor que há vida na Terra, é também por sua causa que a vida um dia se extinguirá.

    Este astro começa por ser uma bola de hidrogénio, que se vai apertando e aquecendo até atingir cerca de dez milhões de graus centígrados. Depois, entra numa reação com a fusão do hidrogénio e vive cerca de vinte milhões de anos neste estado. Até ao presente, estima-se que tenha atingido aproximadamente metade da sua vida e, por isso, terá em média mais dez milhões de anos pela frente até que se consumam os elementos químicos que o compõem.

    Mais tarde vai dilatar-se, depois de ter arrefecido e contraído, fase essa em que se transformará num gigante vermelho. É algures neste o momento que se espera o fim da Terra.

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    Não deixa de ser curioso que os textos sagrados do Antigo Testamento tenham escolhido a luz como primeiro acto da criação e expressão da vontade de ordenar o Mundo. Este princípio criador, que vai do caos à ordem, arrola a necessidade de conferir lógica à Vida – aliás, ideia presente noutros textos, noutras religiões, noutras tradições filosóficas que se reflectem em símbolos e sinais.

    Num mundo perturbado, a palavra ordem pode assustar. Associa-se frequentemente a palavra ordem a ditaduras e a tiranos, mas a ordem é muito mais. Por ordem entenda-se dispor as “coisas” no seu devido lugar. Não simplesmente porque uma vontade isolada o queira, mas porque a natureza e a vida se encarregam de dar um lugar para todo o existencial.

    Graças à ordem, o que se encontra em potência pode tornar-se Acto. Imagine-se uma árvore que se encontra em potência numa semente. Dir-se-á que está em potência porque ainda não é uma árvore. Mas, se a semente for deitada à terra no tempo próprio, se for regada e se não for destruída, poderá chegar ao acto – ser uma árvore.

    Parece-me oportuno relembrar que toda a criação guarda, além de um ritmo próprio, segredos de funcionamento que nos compete descodificar e descobrir.

    Podemos chamar Conhecimento – que é e deve ser libertador, pois só o ignorante conserva tantos medos e preconceitos; somente aquele que ainda não recebeu a luz continua a viver às escuras.

    Por tudo isto, educar pode significar, precisamente, transmitir conhecimento às gerações futuras, de tal forma que estas possam, depois de o enriquecer, dar continuidade à sua transmissão.

    A História isto nos ensina – não há sociedades perfeitas, ninguém guarda o saber absoluto, ninguém se reduz ao exemplo. Para sermos “hoje melhores do que ontem e amanhã melhores do que hoje”, precisamos mudar, crescer, aprender, pensar.

    E, porque somos dotados de inteligência, é sempre oportuno recordar que assim como sol, todos temos o nosso tempo de vida e por isso, dado que tudo tem uma Ordem, nenhum ser humano tem o direito de tirar a vida a outro ser humano, uma vez que a vida não é uma luz que se pode apagar por vontade de alguém – é um Acto pleno em torno do qual todos giramos.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Emigração: um estudo sobre água molhada

    Emigração: um estudo sobre água molhada


    Segundo um inquérito/estudo feito pela SEDES a 300 emigrantes – será uma amostra representativa? –, 70% queriam regressar a Portugal. Este era o título da notícia que me chamou a atenção em vários jornais. Isto significa que 210 portugueses, entre as três centenas que foram ouvidos, queriam voltar ao país de origem. E se tivessem perguntado a 301, e eu fosse um deles, então seriam 211.

    Depois do cabeçalho, fui ler o corpo da notícia para perceber como é que a matemática funcionava para aqueles meus 210 conterrâneos. É que, como perceberão, a maior parte dos emigrantes gostaria de não o ser. Bem sei que há quem vire costas para não mais voltar, mas julgo que, arriscarei pouco, se disser que a maior parte desejaria o sol português com o salário do estrangeiro.

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    O mistério esfumou-se em poucos segundos de leitura. Querem voltar, sim, mas na reforma ou daqui a um par de anos. Ou seja, a matemática do emigrante ainda é aquela prova dos nove que nos afasta de casa.

    Este é um dos fados absolutamente insuportáveis da condição de emigrante português.

    Quem se habitua a viver fora de Portugal, compensa as amarguras dessa condição com a melhoria das condições de vida. E acaba por ficar prisioneiro delas. Todos, ou quase, acabamos em mesas redondas de balanços de vida. É agora que voltamos? Há condições? Conseguimos pagar as contas? Os familiares estão a ficar mais velhos? Temos que estar mais presentes? Os amigos ainda se lembram de nós? Dá para aguentar mais três anos?

    Para mim é fatal como o destino que, a cada fim de Verão, me candidate a vagas em empresas portuguesas, ou a recrutar em Portugal. É uma espécie do renovar da esperança de que algo tenha mudado desde a última conversa. Entenda-se, desde o último Setembro.

    Sempre, ou quase sempre, interrompo as entrevistas para colocar um fim ao processo de selecção. E faço-o sem grandes justificações ou sequer sem mostrar metade da frustração que sinto. A culpa não é, nunca foi, de quem do outro lado da linha fala comigo e apresenta propostas de trabalho relativamente semelhantes às que ouvia em 2006, antes de ter decidido emigrar.

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    A culpa é de um tecido empresarial que ainda procura o lucro através de baixos salários, de um regime fiscal pesadíssimo – quase sem retorno para quem o paga – e do constante atraso nas políticas salariais que tornam o país atractivo para os tubarões multinacionais, que recebem força de trabalho altamente especializada, a troco de amendoins.

    De modo que, a cada Setembro, me interrogo se consigo pagar um apartamento em Lisboa com 25% do salário actual. Não, não consigo.

    E no Miratejo? Aí já consigo. Então é melhor ficar quieto.

    Quando me dizem que dinheiro não é tudo na vida, eu sou o primeiro a concordar.

    Normalmente quem o diz não tem casa para pagar, mas isso, são detalhes. Os baixos salários portugueses não seriam problema se as rendas, os empréstimos, o imobiliário e os restantes custos do quotidiano se adequassem. Se uma casa em Lisboa custasse 50 euros por mês, um salário de 700 euros seria óptimo. O problema é que a despesa cresce como na Europa civilizada, mas a receita, de cada um de nós, cresce ao ritmo do Congo. Alegadamente e sem ofender os nossos camaradas congoleses.

    No fundo, a dúvida é se devemos continuar a sofrer longe ou se queremos passar a sofrer mais perto. Normalmente vence a casa aquecida e a facilidade de não andar a fazer contas a meio do mês. Depois, em cima disto, ainda aparecem as vantagens de sistemas políticos mais justos, menos corrupção, sociedades que funcionam de forma simples e pouco burocrática, saúde gratuita, educação universal.

    Aposta-se em mais um ano e pensamos, à Sporting: “para o ano é que é!”.

    E assim acabamos a engrossar a lista de quase três milhões de emigrantes espalhados pelo Mundo, números oficiais, embora se estimem muitos mais. E a contribuir para a famosa lista das remessas que, dizia Clara Ferreira Alves um dia destes, já não são significativas.

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    Segundo dados do Observatório da Emigração, em 2020 foram enviados cerca de 3 mil milhões de euros para Portugal pelos emigrantes, quase 2% do PIB do país – ou seja, uma Autoeuropa. Adorava ler o dicionário da Clara Ferreira Alves e perceber o que é significativo.

    Quando discuto este tema, até com outros emigrantes, observo as reacções de desprezo a um possível regresso. A vida em sociedades mais evoluídas – perdoem-me o termo, mas a comparação e todas estatísticas europeias o provam – dá-nos outra visão do nosso próprio país.

    Eu compreendo as queixas e até o facto de alguns não quererem voltar para o nosso cantinho, mas não é a minha. Não conseguir regressar, deixa-me frustrado, não me faz sentir melhor por estar num país rico ou até num sistema político mais limpo. Nós somos o que somos, para o bem e para o mal. Se a vida dos meus filhos não sofresse com essa mudança, eu preferia encerrar o período de emigração e abdicar das facilidades sociais proporcionadas longe daqui, e até de um conforto que em Portugal nunca tive.

    Aquilo que não consigo aceitar é que, por causa de décadas de escolhas erradas do ponto de vista político, de fundos europeus mal gastos ou da gigantesca corrupção que tudo leva, eu tenha que me sujeitar, ao fim de 20 anos de trabalho, a receber um salário miserável e a viver num subúrbio qualquer, porque, entretanto, a cidade onde nasci me ficou vedada.

    red green and yellow flag

    Depois de 35 anos na União Europeia, com uma dependência enorme dos subsídios, Portugal tem a melhor rede de estradas da Europa e as Parcerias Público-Privadas (PPP) mais absurdas. Mas não tem uma rede de creches públicas em condições, ensino universal e totalmente gratuito, cuidados para cidadãos em fim de vida (despejar velhos em lares ilegais é de Terceiro Mundo) e até o SNS, antiga jóia da Coroa, já teve melhores dias. As casas boas e centrais são para estrangeiros, aos portugueses de classe média resta o subúrbio e um encolher de ombros perante a voracidade da especulação descontrolada.

    Chegamos ao ponto de formar engenheiros para lhes pagar 800 euros ou implorar por trabalhadores para o turismo a troco do salário mínimo. Caminhamos para sermos uma República Dominicana europeia onde o investimento público na Educação se converte em mão-de-obra para outros parceiros europeus. É obra. Da estupidez, é certo, mas ainda assim obra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As missangas do século XXI

    As missangas do século XXI


    De férias, aproveito para ler. Desde sempre, a História e a Teoria do Dinheiro foram temas que me fascinaram. Revejo o livro que mais me marcou a este respeito: The theory of money and credit, do economista Ludwig von Mises, publicado em 1912 em alemão.

    Hoje, a maioria dos estudantes de Economia não compreende o funcionamento do presente sistema monetário, nem tão pouco estudou ou se debruçou sobre o tema. São coisas esotéricas para muitos. Não podemos atribuir-lhes qualquer culpa, pois o ensino dá pouca importância a estas matérias, talvez porque interessa manter a ignorância generalizada.

    man in red and white plaid shirt wearing white scarf

    Eu próprio fui uma vítima deste sistema de ensino: poucas disciplinas tive sobre estes temas no meu tempo de faculdade; mas salvei-me: apesar de tudo, a experiência profissional e a minha curiosidade ajudaram-me a reconhecer a importância do dinheiro no aparecimento de sociedades prósperas e dinâmicas.

    Dentro desta temática, sempre me fascinou um episódio da nossa História: a troca de missangas por ouro e escravos, que os descobridores portugueses realizavam na costa africana. A pergunta que sempre subsistiu na minha cabeça foi a seguinte: qual a razão para uma troca voluntária aparentemente tão desfavorável para os africanos?

    Não devia ser desfavorável. E passo a explicar. As missangas eram pulseiras, podendo ser adaptadas para colares ou braceletes, construídas com pedaços de vidro. Tornaram-se preciosas na África subsariana, porque a tecnologia do vidro era então cara e pouco comum naquela região. Desta forma, tornaram-se dinheiro, ou seja, um meio de troca e uma reserva de valor.

    Os europeus – detentores de tecnologia capaz de produzir vidro em enormes quantidades – foram assim capazes de produzir missangas em enormes quantidades, utilizando-as como meio de pagamento para obter escravos e ouro. Saiu-lhes barato, e acabou por dar cabo das missangas como reserva de valor em África.

    gold and silver round coins

    O colapso do valor das missangas em África, em resultado das enormes quantidades introduzidas pelos europeus, acabou por ser uma tragédia para os proprietários das missangas originais. Os comerciantes europeus, capazes de as produzir em enorme quantidade e a baixo custo, operaram assim uma enorme transferência da riqueza para si.

    Para ser reserva de valor, o dinheiro tem que ser imune à putrefacção, corrosão, e outras formas de deterioração. Por isso, se alguém pensar em acumular riqueza sob a forma de maçãs, peixes ou laranjas, não se dará bem: no futuro, não será capaz de vender estes bens no mercado porque apodreceram ou perderam qualidades com uma eventual congelação – além de que o congelamento teria um custo que depreciaria o valor. Ou seja, devemos utilizar como reserva de valor algo que possua as mesmas características ao longo de anos, ou mesmo séculos, com baixo ou nenhum custo.

    Deste modo, para além de não se poder deteriorar, a reserva de valor exige também que o “dinheiro” seleccionado se mantenha escasso ao longo do tempo. Para tal, é necessário que a emissão do “dinheiro” não aumente de forma drástica ao longo do tempo; caso contrário, o seu valor de mercado irá diminuir drasticamente.

    Ora, as missangas funcionaram bem durante séculos, pois cumpriam os dois critérios: por um lado não eram deterioráveis e, por outro, a sua escassez estava garantida, atendendo à dificuldade em emitir drasticamente novas missangas. Em conclusão: antes da chegada dos europeus, a emissão drástica não era possível.

    Assim, para medirmos a força monetária do dinheiro devemos atender a dois aspectos: (i) o inventário, que consiste em tudo o que foi produzido no passado e deduzido do que foi consumido, e (ii) a produção que irá ocorrer no período temporal seguinte. O rácio entre a quantidade e a produção define a força monetária do dinheiro.

    O ouro transformou-se assim em dinheiro, durante longo tempo, fundamentalmente por possuir uma elevada força monetária, ou seja, a produção de um dado período tem pouco ou nenhum impacto no inventário existente.

    Praticamente todo o ouro extraído da natureza até à data encontra-se na posse de alguém, seja de um particular ou de um Banco Central. Por outro lado, a produção anual de ouro não supera os 2% do inventário, atendendo que a mineração é cara e difícil.

    Diga-se que outros metais não possuem esta força monetária, como, por exemplo, o ferro. Num dado ano, a produção é praticamente consumida, havendo, por conseguinte, pouco inventário; por outro lado, afectando capital e recursos humanos à sua produção, esta pode ser drasticamente incrementada, algo que não acontece com o ouro.

    O sucesso deste metal levou a que Bancos Centrais, governos e bancos centralizassem a sua propriedade. Hoje, estima-se que apenas os Bancos Centrais possam deter mais de 30% do inventário existente.

    grey concrete building

    Tal concentração de propriedade permite a emissão de substitutos, como notas ou cheques, deixando de existir a necessidade de transportar o ouro para realizar o pagamento, bastando a compensação junto do banco, movendo-se a propriedade do mesmo de um cliente para outro.

    Esta capacidade de emitir substitutos permitiu aos governos manipular o inventário do ouro. Para financiar a guerra do Vietname, os Estados Unidos emitiram uma enorme quantidade de notas de dólar sem qualquer respaldo em ouro. E, deste modo, a manipulação do seu inventário levou ao fim do ouro como dinheiro.

    Actualmente, estamos a viver o mesmo drama dos proprietários das missangas. A produção de nova moeda é quase infinita: Euros e Dólares norte-americanos podem ser produzidos com um simples apertador de um botão de computador, praticamente sem quaisquer custos. Isso gera uma transferência de riqueza a favor dos produtores de dinheiro: Bancos Centrais, governos, bancos e apaniguados, em detrimento dos produtores de bens e serviços.

    A força monetária das actuais moedas é mínima, pelo que a sua viabilidade a longo prazo é inexistente. Por outro lado, a alternativa proposta, a moeda digital dos Bancos Centrais mantém o mesmo problema: a sua produção pode ser aumentada drasticamente e sem custos.

    A razão de afirmar, vezes sem conta, que o Bitcoin é uma excelente reserva de valor deriva das suas características, que resolvem os problemas já anteriormente indicados.

    aerial photography of dump trucks

    Primeiro, a sua produção está limitada a 21 milhões de tokens; a emissão é muito cara, pois consome imensa energia, pelo que a produção está fortemente condicionada. Assim, a sua força monetária está assegurada.

    Segundo, a tecnologia em que assenta – o blockchain – elimina por completo a centralização. Cada node pode operar de forma individual e não é possível controlar mais de 50% dos nodes da rede. Em resumo, dispensa uma autoridade central e funciona de forma descentralizada.

    Por fim, ao contrário do ouro – que pode ser manipulado o seu inventário através de substitutos, i.e., o fenómeno das reservas fraccionadas –, o valor de Bitcoins total, e a quem pertence, pode ser auditado com uma simples ligação à Internet, impossibilitando tal prática.

    Isto para concluir, embora seja suspeito por estar nesta área, e mais ainda de férias, que continuo a pensar que a acumulação de riqueza em Bitcoins será altamente compensadora no futuro. Mais do que a moeda fiduciária dos Bancos Centrais, que se transformou nas “missangas do século XXI”.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As gotas e o oceano, a vida e a morte, Davos e o que devemos a Assange

    As gotas e o oceano, a vida e a morte, Davos e o que devemos a Assange


    Tempo quente faz pensar em tempo – tempo de assimilação, de cura ou de memória. E no tempo de cura, como no de assimilação, nada tem real significado se for rápido, enquanto o tempo da memória pode ser um acaso fugaz, um aroma, um pestanejar. Ou toda uma História.

    Na memória do mundo, com mais ou menos floreados e contos com pontos, está inscrita uma história partilhada por todos que informa (e em forma) o presente e o pensamento. E eis uma:

    No mar Egeu, embrulhado no Mediterrâneo, pequenina partícula do arquipélago grego das Cíclades, a ilha de Delos surge árida e divina.

    aerial photography of body of water

    Inundada pelo sol desde o amanhecer ao anoitecer, Delos, na mitologia grega, julga-se ter sido dada a Leto para que esta tivesse onde dar à luz os gémeos Apolo e Artemísia, perseguida pelo desdém de Hera – mulher de Zeus – que, ao vê-la engravidar de Dionísio, quis garantir que Gaia não a deixaria parir em lugar algum na terra. Poseidon apiedou-se de Leto e fez emergir Delos do mar.

    Parece talvez confuso? Tantos nomes, parentescos, intrigas e tragédias, que sempre me causaram aflição por não abarcar tudo o que se passava atrás da cortina. Segredo dos deuses e nós, meros mortais, espectadores na melhor das hipóteses.

    Delos foi talvez o primeiro local a receber purificação, pelo menos no nosso berço civilizacional, onde se declarou ser proibido morrer (e nascer também). Atenas declarou a exumação de todos os cadáveres na ilha, movendo-os para uma ilha vizinha, para garantir a limpeza do local para culto divino do casal de deuses.

    Claro que nascer ou morrer são os pontos mais importantes e sagrados de uma vida, por isso a nossa perplexidade se vemos os dois tocarem-se. Atenas podia declarar que a razão era religiosa, mas, acima de tudo, a preocupação era se poderia haver clamores de direitos de propriedade e herança sobre o local, se estes pontos tão essenciais da vida e da morte se inscrevessem naquela morada. Havia que manter o local neutro comercialmente.

    (Ai, a moeda!)

    Portugal sabe uma coisa ou duas sobre proibição de morrer (e nascer também). Ou talvez seja a língua portuguesa.

    No Brasil também tentaram passar esta lei em 2005 (vêem como isto não é só antigo), porque, alegadamente (devido crédito ao titular recente da expressão nesta casa), a população cuidava muito mal da sua saúde e não haveria mais espaço para sepultar os falecidos, por razões ambientais.

    Por cá vemos os mortos serem usados como arma de arremesso há mais de dois anos e, agora, que tantos partem, já ninguém faz boletim diário, já ninguém apresenta gráficos.

    (Excepção feita aqui, nesta morada.)

    Talvez haja proibição de morrer em Portugal (e de nascer também).

    Outra história:

    Davos é uma comuna suíça junto aos Alpes onde, tanto quanto sei, é possível morrer, nascer e reunir globalistas muito pertinentes ao destino de cada um de nós.

    Local anfitrião do World Economic Forum – esta pequena estância de boa saúde alpina e ar puro acolhe todos os anos gente que é gente no mundo. (Não nós, meros mortais, na melhor das hipóteses espectadores.) São já cerca de 50 anos de reuniões auspiciosas.

    Nestas reuniões já passaram toda uma série de líderes internacionais essenciais à cena mundial que sempre assistimos. Guerras são traçadas ou evitadas, os tempos de régua e esquadro sobre o atlas vão-se mantendo. Nos últimos anos, principalmente, tem havido muito interesse em conversarem por lá em transhumanismo, emergência climática e, claro, pandemia.

    Claro também é que este ano a Rússia faltou, pela primeira vez desde 1991. Um pequeno sinal de transformação de desígnios.

    person standing on cliff during golden hour

    Quem fala desta reunião, ou concílio, pode também falar da reunião do G7, dos BRICS, do FMI, ou da OMS. Muitas salas extravagantemente decoradas, bem servidas de excesso (de comes e bebes, cereais, talvez até de bacalhau à Brás).

    E porquê falar de Davos? Porque ao contrário de Delos e o seu controlo sobre nascer e morrer, em Davos podemos considerar que é operado um controlo muito eficaz sobre viver. (“… Entre uma e outra todos os dias são meus…”, serão?)

    Mas são nossos os dias se são passados em domínios filtrados e curados pelos senhores, ou seus algoritmos, destas reuniões? São nossos os dias e os pensamentos se nos são alimentados por outras pessoas ou ecrãs?

    O meio sempre manipulou a mensagem, percebeu-se isso rápido, daí que a invenção da Imprensa seja o acontecimento mais importante do nosso passado colectivo. O acesso generalizado à informação permite às gotas no oceano saberem que cor tem o céu.

    Em princípio quase todos nós podemos ir confirmar uma informação, mas nem sempre podemos ter a certeza da sua veracidade, fora o próprio viés da leitura. Mais grave ainda é ver como a informação nos é oferecida sem procura, sugestões (inofensivas), prioridade em resultados de buscas, conteúdo misteriosamente desaparecido.

    E isto é verdade desde as sugestões Google, às sugestões Facebook, às sugestões Netflix. Mesmo para quem se tenta ausentar dos meios de comunicação tradicionais, tudo está embrenhado numa enorme teia que nos conhece intimamente, projecta e prevê o nosso futuro e extrapola o nosso passado como uma espécie de engenharia invertida.

    Sabemos se, por entre sugestões e previsões, não estamos subtilmente a ser empurrados?

    Ora, a acção da Wikileaks, conduzida por Julian Assange, registou um dos maiores impactos que o jornalismo de investigação alguma vez teve.

    Em 2019, ano de grandes viragens, Assange perdeu o direito de asilo político na Embaixada do Equador em Londres, onde se refugiava há muitos anos, e foi preso, estando na iminência de extradição para os Estados Unidos e de ser julgado por conspiração. Já foi privado da sua liberdade anos a fio; agora arrisca a pena de morte.

    A Wikileaks empurrou o público a ver a verdade, com provas, sobre, por exemplo, aquilo que os Estados Unidos fizeram no Iraque. Assange foi o outro lado da balança para encontrarmos equilíbrio entre o que o poder nos alimenta, as nossas crenças e a realidade. As gotas e o oceano.

    Mas Julian Assange está agora sozinho no mundo, onde a Imprensa alterna entre definhar e borbulhar.

    O que poderíamos saber desde 2019 se ele não tivesse sido preso?

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O socialismo está a vencer…

    O socialismo está a vencer…


    Ao fim de vários anos, decido gozar um período de férias com a minha família. Regressámos ao princípio dos anos 90: metemo-nos num carro e partimos por essa Europa fora.

    Mas, apesar de tudo, os tempos já são outros. Viajar de carro tornou-se um luxo extremo. A gasolina nunca esteve tão cara. Aproximámo-nos dos míticos 500 escudos por litro (2,5 Euros), algo impensável há três décadas.

    Primeira paragem, a cidade onde vivemos quase 10 anos, onde os meus filhos frequentaram o infantário, a primária e parte do secundário: Barcelona.

    Em dois dias, com uma paragem num hotel de estrada à entrada de Madrid, chegámos. Apenas em Portugal nos cobraram portagem. O litro de gasóleo em Espanha, depois de aplicado o desconto de 20 cêntimos, situa-se agora em torno de 1,85 euros. Em Portugal, está em 2,2 euros. Algo que, enfim, não nos devia espantar, pois, como todos sabem, somos sumamente mais ricos que os nossos vizinhos espanhóis. Talvez seja esta a razão para ninguém levantar um dedo em protesto.

    Em Barcelona, estivemos três dias a rever amigos. Apesar de todos os ataques, a sociabilidade com outros seres humanos é das melhores coisas que levamos desta vida. A esta distância, e depois de voltar a viver em Portugal desde 2019, o que mais me surpreendeu foram os empregos das pessoas, algo que nunca tinha dado a devida atenção.

    Na capital da Catalunha, o grande desejo de qualquer pessoa é ter um negócio ou singrar numa grande empresa – sócio de uma grande sociedade de advogados ou de consultoria, sócio de uma auditora internacional… A burguesia catalã sempre me surpreendeu pela sua riqueza, aptidão para os negócios e obsessão com a educação dos seus filhos. Talvez isso explique a enorme diferença com Portugal: com uma população de apenas 7 milhões (70% da nossa), o seu PIB é superior ao de Portugal.

    Sagrada Famiglia cathedral during daytime

    Para minha surpresa, os tempos parecem estar a mudar. Uma das minhas amigas, que tem um negócio de promoções em jornais, é uma grande proprietária de imóveis em Barcelona. Segundo me explicou, durante a putativa pandemia, o governo de Espanha decidiu impor um tecto às rendas praticadas em determinadas áreas da cidade.

    Esta medida foi “vendida” como uma forma de “partir os dentes à especulação desenfreada” – já ouvimos isto algures… nunca compreendi a obsessão pela fixação de preços, pois nunca resultou. Ninguém se pergunta se, por exemplo, a 800 euros existem inquilinos disponíveis; se sim, por que razão o proprietário é obrigado a cobrar apenas 650 euros? Tem de realizar caridade em nome de quem?

    Por outro lado, muitos inquilinos protestam agora contra o possível aumento de 10% ou mais das rendas no final do presente ano, em virtude de uma taxa de inflação em dois dígitos. É sempre surpreendente que nunca se acuse o Governo de ser o principal responsável dessa mesma inflação, vertida directamente da impressora de notas do seu Banco Central. Ao Governo pede-se o confisco puro e simples dos proprietários.

    Parece que Espanha regressa ao Portugal pós-revolucionário, em que os proprietários se viram impossibilitados de aumentar as rendas em linha com a inflação. Qual foi o resultado? Um parque imobiliário completamente decrépito, em particular nas cidades de Lisboa e Porto.

    A ténue liberalização das rendas e o sucesso do alojamento local fizeram reverter parcialmente esta desgraça. Não será por muitos anos: o socialismo, entranhado nos nossos dirigentes, encarregar-se-á de reverter os ventos favoráveis que se registaram neste sector nos últimos anos.

    No barco para a Sardenha, aproveito para dar uma olhada na imprensa nacional e internacional. Nada de novo. O representante máximo da República, que pisa há mais de dois anos a Constituição que jurou defender, decide ir de férias ao Brasil e visitar um candidato pouco recomendável, em lugar de realizar a visita oficial. A imprensa mainstream, como previsível, rejubilou com o mergulho na praia de Copacabana. Parece que foi o melhor momento da visita: o tronco nu, os calções de banho, a pele e o cabelo molhado.

    Leio, também, que vários aeroportos europeus se encontram perto da ruptura: caos, filas e cancelamentos de voos parecem ser a norma em pleno período de férias. É sempre enternecedor verificar que a imprensa mainstream nunca aponta o dedo aos confinamentos a pretexto de um vírus com uma taxa de sobrevivência superior a 99%. A culpa parece ser do SEF, os que matam ucranianos à pancada, e da falta de funcionários.

    Entretanto, os meus olhos passam por um panegírico, num estilo canino, ao ministro das Infra-estruturas, o tal que enterrou mais de 4 mil milhões de euros na bancarroteira nacional. Parece que foi assinado por alguém que se diz jornalista.

    Por fim, a revolta dos agricultores holandeses, em protesto contra o fecho de 30%, ou mesmo mais, de explorações agrícolas decretado pelo Governo holandês. Parece que o objectivo é reduzir as emissões de poluentes, como os óxidos de azoto, em 50% até 2030. O socialismo continua a prosperar: planeadores centrais decidem quanto e quem pode produzir, em nome do combate às alterações climáticas que ainda ninguém provou que seja um fenómeno ou mesmo causado pelo Homem.

    Tal como na revolta dos camionistas no Canadá, noto a total ausência desta revolta na imprensa mainstream, sempre do lado dos facínoras e aspirantes a tiranos.

    Chego a uma conclusão: é melhor nem ler notícias. Fico-me pelos livros.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O círculo perfeito da opinião pública

    O círculo perfeito da opinião pública


    Ouvi uma análise que me pareceu realista sobre o actual momento da guerra na Ucrânia. Referia o cansaço da opinião pública sobre o tema e a prova dos nove na solidariedade com o povo ucraniano, agora que a vida dos europeus começa a ficar caótica por causa da subida das taxas de juro e o aumento galopante da inflação.

    Uma coisa é estarmos sentados no sofá a pedir mais sanções contra os russos; outra, bem diferente, é quando nos dizem que, afinal, nos vão levar o sofá. É mais ou menos nesse ponto que estamos.

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    Um presidente de uma confederação de sindicatos alemães avisou, ontem, que a quebra de fornecimento de matérias-primas russas estava a colocar toda a indústria germânica em risco. O colapso pode estar iminente e uns milhões de empregos também. A Alemanha é o motor da Europa: se espirram os outros constipam-se.

    Aquele sentimento de empatia que os europeus dispensaram a um povo que sofre, aqui ao lado, começa a ficar para segundo plano quando, por causa dessa guerra, o nosso próprio modo de vida está ameaçado. No fundo, assim que a solidariedade nos custou mais do que simples bandeiras no Facebook, resolvemos tratar da vidinha.

    Começa, pois, a fase mais “palestiniana” para os invadidos no Donbass: a malta sente a vossa dor e temos pena que tenham ficado sem casa, mas a Lagarde disse-nos que também quer ficar com a nossa. De modo que é altura de fazer contas à vida.

    Isto leva-nos a duas conclusões simples.

    A primeira é que a solidariedade com os povos é bonita, mas apenas quando não nos sai da pele.

    A segunda é que, agora, a mesma guerra que nos levou a “defender” os invadidos nas redes sociais, serve como desculpa para os deixar de mãos a abanar.

    No nosso dia-a-dia, a cada subida de preços de serviços, não há quem não use esta guerra como justificação.

    person raising both hands with handwritten text on palm

    Já perdi a conta aos aumentos estapafúrdios com base na invasão russa. Pedreiros que aumentam o preço hora; jardineiros que dobram o seu custo; empresas familiares (ou não), com os mesmíssimos salários e custos, sobem 50% o preço do seu trabalho por causa da gasolina mais cara. A própria gasolina que “NÃO VEM DA RÚSSIA” atinge preços incríveis com a desculpa da Ucrânia. Empresas de software que cobram mais sem que se perceba porquê. Onde é que uma licença de software sofre por causa de uma guerra?

    Ou seja, o cenário está criado e as empresas aproveitam para aumentarem os lucros, muito para lá da compensação exigida pela inflação. No topo de tudo isto, aparecem os bancos com carta branca para fazerem o que bem lhes apetecer. No caso nacional, ainda com a particularidade de serem instituições privadas quando escolhem o lucro, mas públicas na altura de serem salvas. De facto, só mangas e jacas não crescem no meu país, de resto tudo se dá.

    O engraçado desta história é o círculo perfeito da opinião pública e publicada. Quando os governos europeus decidiram as sanções à Rússia e o fornecimento de armas à Ucrânia, a maioria concordou. Poucos, pouquíssimos, nos jornais e televisões disseram que a paz não se alcança com mais armas.

    Lembro-me de, na altura, ter pensado (e escrito) para onde queriam os nossos governantes ir? Derrotar a Rússia? Envolver a NATO? Combater até ao último ucraniano? Nunca entendi que fim esperavam os países da União Europeia com esse apoio. Dos Estados Unidos percebi, aliás, eles explicaram: desgastar a Rússia. Tudo bem. Para eles.

    blue and yellow striped country flag

    Agora nós, europeus, que saída tínhamos de não empobrecer com isto sem que chegássemos a uma mesa de negociações? Nenhuma. E quanto mais tarde lá chegássemos, pior.

    Inicialmente, eram só os combustíveis. Um clássico da extorsão, a malta ainda aguenta. Depois foi a inflação, os salários, as greves, a perda do poder de compra e a machadada final dada pelo Banco Comercial Europeu (BCE), as taxas de juro. Julho chegou e os aumentos nas prestações estão aí. Num país pobre, como o nosso, é isto uma sentença de morte e uma bomba-relógio social.

    Enfim, começou a arrefecer a solidariedade e a chegar o nervoso miudinho. Como é que vamos pagar a casa com juros a 4%? Nas televisões já falam no ponto de viragem e da onda de choque trazida pela guerra que, quatro meses depois, chega finalmente ao nosso quotidiano com força destruidora.

    Nos jornais já nos perguntam o que fazer com todo o arsenal que ficará na Ucrânia depois da guerra. Os comentadores já se dividem entre o “continuar a enviar armas” e o “dificilmente não teremos negociações e cedência de território”.

    Ninguém o quer dizer alto porque pensa “e se fôssemos nós?”, mas depois recebem o aviso do banco com a nova prestação situada 300 euros acima “por causa da guerra”, e já só querem que os ucranianos desistam do Donbass. E isto mesmo que o Donbass seja apenas a desculpa que o banco utilizou para nos sacar mais dinheiro. O mercado, o eterno mercado que ninguém percebe e que mesmo assim segue.

    E fecha-se o círculo: de exaltados apoiantes de sofá a envergonhados ausentes… carregados de dívidas.

    Pobres ucranianos.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Preparem mais caixões

    Preparem mais caixões


    Enquanto se andou entretido com o monkeypox, obstetras, aeroporto e outras coisas de similar relevância, a imprensa mainstream não tugiu nem mugiu com os 10.000 óbitos em Junho. O Governo agradeceu.

    Para eles não teve qualquer importância. Os directores da nossa imprensa têm coisas mais relevantes a tratar, muitas conferências a organizar, conteúdos comerciais a escrever para farmacêuticas, bancos, consultoras e para o que der dinheiro, as férias a organizar, a praia a esperar, as banhocas a tomar. Merecem porque se têm portado muito bem.

    man in white robe standing beside concrete statue

    Anuncia-se, entretanto, temperaturas elevadas para os próximos dias com um pico junto ao fim-de-semana. Pela amostra do calamitoso estado de saúde dos mais idosos, e daquilo que se passou em muitos dias de Junho, anuncia-se novo morticínio.

    Anteontem, o calor de domingo já deu para 341 mortes. Numa situação normal seriam 270-280. Com termómetros acima dos 35 graus e se tivermos várias noites com mais de 20 graus vai ser um “ver se te avias”.

    Não há plano de contingência montado, não há uma estrutura preventiva, os centros de saúde andam às aranhas com falta de médicos, os militares só servem para dar vacinas e vestir camuflados, a DGS não existe, a ministra inexistente, para o calor não serve para nada ter zaragatoas nem testes PCR.

    Nem vacinas, porque não há vacinas contra a incompetência.

    Nem punição para os culpados.

    Importem caixões. Vamos precisar deles durante este mês.

  • Os merckalistas: os novos jornalistas

    Os merckalistas: os novos jornalistas


    Um florescente negócio se tem vindo a desenvolver na imprensa mainstream. É já um novo paradigma onde já não há necessidade de apresentar uma distinção clara entre notícias e anúncios, entre publicidade e informação. Na verdade, os praticantes deste novi-jornalismo  – não confundir com o Novo Jornalismo, onde o jornalista emerge dentro da notícia, dando um cunho literário – são pessoas pragmáticas: afinal, sendo os leitores simultaneamente consumidores, por que não lhes transmitir, em dose única, notícias e publicidade, informação e anúncios?

    Muitos são os exemplos que se poderiam usar, mas para efeitos pedagógicos escolhemos as relações entre o Público e a Merck – uma farmacêutica alemã. Não se deve confundir esta empresa com a norte-americana Merck Sharp & Dohme, que, aliás, também teve recentes relações comerciais com o Público. Aliás, tal como a GlaxoSmithKline, a AstraZeneca, a Boehring Inglheim, Takeda… Nos últimos dois anos, as farmacêuticas têm sido um “ventilador financeiro” da imprensa mainstream.

    Mas peguemos na Merck – até porque, enfim, justifica o título, que não é gralha.

    Merck 1…

    Ora, por valores que estarão sempre no “segredo dos deuses”, porque comerciais, o Público e a Merck selaram um acordo para a produção de conteúdos comerciais. Variados. Sobre saúde, e apenas este ano, já vão quatro, que deram origem a outros tantos textos, a saber:

    Infertilidade: a ciência ao serviço da esperança (30 de Junho de 2022)

    Detecção precoce do cancro da bexiga melhora o prognóstico (31 de Maio de 2022)

    Esclerose Múltipla: como travar a doença e melhorar a qualidade de vida? (30 de Maio de 2022)

    Hipotiroidismo: relação médico-doente é crucial no diagnóstico e tratamento (25 de Maio de 2022)

    Dirão, em sua defesa, que são mesmo conteúdos comerciais. E assim é: encimando e finalizando a página onde surgem os textos, lá consta o nome do “patrocinador”. Sucede, porém, que nem aparece o autor do texto – há muitos ghost writers nas redacções – nem o Público tem a preocupação de fazer a distinção entre esses textos comerciais no Google News.

    … Merck 2…

    Para os internautas, se procurar no Google por “cancro da bexiga” e “Público” na secção das Notícias, lá lhe surgirá escarrapachado conteúdo comercial travestido de notícia. Um equívoco que convém tanto ao Público como ao seu cliente.

    Porém, quem “vende” indirectamente medicamentos – “vendendo” mensagens das farmacêuticas que os vendem directamente –, também vende a imagem da empresa. Ora, o Público, nesta senda do novi-jornalismo, trata também do branding dos seus clientes perante os seus leitores. Por exemplo, acoplando-se, sob a forma de prestação de serviços, à Merck para promoção da sua suposta – que pode ser mesmo efectiva – preocupação em matérias de igualdade de género.

    Porém, uma coisa seria elaborar um artigo independente sobre igualdade de género onde até, concede-se, se poderia destacar o papel inovador da Merck – talvez com uma declaração de interesses por ser um parceiro comercial na área da saúde –; outra coisa, completamente diferente, é o Público promover um debate no dia 19 de Abril passado, que na verdade foi uma prestação de serviços – com a participação da sua editora-executiva Helena Pereira (estava inicialmente prevista a presença do director Manuel Carvalho) e moderação de uma jornalista da RTP – em que há três – repito: três – representantes da Merck a lançar loas e cantar panegíricos à própria empresa.

    Vejamos: Rita Reis, apresentada como head of communications para o Mid Europe e Portugal; Marieta Jiménez, apresentada como senior vice-president Europe; e Pedro Moura, apresentado como managing director, que é o homem que paga as contas.

    … Merck 3…

    Para dar um lado sério, o Público conseguiu, como órgão de comunicação social, “sacar” para o debate, entre outros, a presidente da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, Sandra Ribeiro. E, à boleia, a responsável para a Inclusão da Sonae MC, dona do Público.

    Porém, tudo isto serviu basicamente para apresentar um suposto estudo nada independente, realizado para a Merck por uma empresa de market research ad hoc, a Spirituc, que conta com 22 farmacêuticas na vasta carteira de clientes, servindo assim o Público de veículo de (suposta) credibilidade na transmissão da mensagem para o seu (incauto) público.

    Antes, a ingrata tarefa de “vender” este tipo de mensagens era das agências de comunicação – que se esforçavam, nem sempre com sucesso, em convencer os jornalistas da bondade dessa mensagem –, mas agora é feito directamente por novi-jornalistas. Isto paga ordenados, matando o jornalismo sério.

    Aliás, na verdade, a seriedade de tudo isto é tão pouca que o Público, que recebeu dinheiro para promover o debate, acabou por antecipar as conclusões do estudo encomendado pela Merck, publicando uma notícia (no seu site), mesmo uma notícia (supostamente sem conteúdo comercial) no próprio dia do debate – porém, não escrita por um jornalista da casa, antes recorrendo a um take da Lusa. Perfeito na manipulação.

    … e no próprio dia do debate, por si organizado e pago pela Merck, o Público antecipa os resultados do estudo. Porém, usando um take da Lusa.

    Por fim, a cereja em cima do bolo da promiscuidade: desde o final do mês passado, o Público oferece uma assinatura semestral aos profissionais de saúde, uma campanha denominada P Profissional.

    Na verdade, não é uma oferta: é “uma iniciativa com o apoio da Merck”.

    Leia-se: paga a Merck.

    Esta Merck está agora em todas. Mas poderia ser outra qualquer empresa.

    Mas, aviso já, a conta da farmacêutica arrisca-se a ser choruda no caso de o contrato tiver sido estabelecido em função do número de assinantes cativados pelo Público.

    Campanha de oferta de assinaturas para profissionais de saúde permitem uso generalizado. Paga a Merck.

    De facto, apesar de a campanha se destinar apenas a enfermeiros, farmacêuticos, médicos, médicos dentistas, psicólogos, nutricionistas, técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica e técnicos de emergência pré-hospitalar – o que já daria potencialmente para umas valentes dezenas de milhares de novos assinantes –, não é preciso qualquer comprovativo para se fazer o registo.

    Basta escolher uma qualquer profissão e dar o e-mail: nem é preciso enganar, inventando; pode ser um e-mail profissional. Como aquele que usei esta tarde, o do PÁGINA UM.

    Não faz mal. O mercado manda, porque o mercado paga. A Merck paga aos jornalistas, como outras aos jornalistas pagarão. E se é agora directa, quando antes era indirectamente, por via de uma clara publicidade que não se imiscuía na linha editorial nem usava jornalistas, já pouco lhes importa. A muitos jornalistas, que já desistiram dos seus leitores, preocupa-os somente o rendimento mensal.

    Por isso, os merckalistas não se importarão com este meu pequeno pecadilho com o leitor. Eles não são gente de se preocupar com minudências. Ganham sempre: neste caso, a Merck pagará a minha conta por seis meses, e tudo fica bem. E outras empresas haverá que lhes pagarão outras. E assim sucessivamente… até à morte da Imprensa. Amen.

  • Novo aeroporto?! Lisboa que se mexa!

    Novo aeroporto?! Lisboa que se mexa!


    Há uns anos, numa daquelas conversas de elevador, dizia-me um colega brasileiro que estava a adorar a experiência europeia. Segundo ele, como as distâncias eram tão pequenas, em cada fim-de-semana ia ver um país diferente.

    Achei a prosa um pouco exagerada, mas percebi com o comentário que se seguiu: “é que no tempo da universidade fazia 1.000 quilómetros de autocarro para ir a casa (que ficava noutro Estado) a cada fim-de-semana”.

    Portanto, para este camarada, um Copenhaga-Berlim era já ali; e um Gotemburgo-Londres dava para um cochilo rápido.

    saida-exit signage

    A noção de distância depende, obviamente, dos sítios que percorremos. Na minha ilha, por exemplo, a maior distância por estrada são 22 quilómetros. Uma pessoa que vá levar o filho aos treinos de futebol fica a engonhar duas horas para não andar “para baixo e para cima”, percorrendo a totalidade dos 10 quilómetros. Porquê perder 20 minutos quando podemos perder duas horas? Fazer os cinco quilómetros duas vezes é que não.

    Em Portugal, de uma forma geral, consequência de um país pequeníssimo, embrulhamo-nos em discussões eternas sobre voos ou concertos que existem em Lisboa, e não no Porto; ou estradas que estão no litoral e não no interior.

    Sempre que aqui chego vejo uma auto-estrada nova, mas admiro-me que ainda não exista uma na porta de cada português. Lá chegaremos.

    Até já ouvi reclamações só porque determinado artista/comediante faz um espectáculo em Lisboa ou em Almada, mas não vai a Setúbal. Portugal atravessa-se num dia; porém, nós queremos que o mundo comece e acabe no nosso bairro.

    silhouette of man sitting on bench

    Isto para dizer que esta história do aeroporto de Lisboa é, de momento, pouco mais do que uma paródia.

    A quantidade de estudos, milhões de euros públicos gastos e decisões inócuas, num país de Primeiro Mundo, dariam prisão. Por cá já anunciaram agora três aeroportos: OTA, Portela + 1 e Alcochete. Todos bem estudados, e com as consultoras que gravitam na órbita do Estado, devidamente engordadas. Contar 50 anos de estudos para definir, em definitivo, o local para um aeroporto é uma daquelas coisas que temos vergonha de dizer fora de portas.

    Mas é real. De facto, continuamos sem decidir onde será o novo aeroporto de Lisboa, mesmo sabendo que o actual recebe milhões de pessoas todos os anos, apenas com uma pista de aterragem a funcionar.

    Somos os mestres do desenrascanço. Bastou um avião privado ter um azar – um rebentamento de dois pneus na aterragem – e a Portela voltou para a Idade da Pedra: voos desviados, aeroporto encerrado, partidas canceladas e filas intermináveis de espera com passageiros que desesperavam para chegar a casa. Porquê? Porque a alternativa à pista existente são os autocarros da Barraqueiro. Ou o UBER.

    A cidade engoliu o aeroporto. Lisboa cresceu até tocar na pista de aterragem, e será hoje, julgo, uma das poucas capitais europeias com o aeroporto na sua zona central. Chegámos aqui porque os sucessivos Governos se limitam a estudar e estudar, chutando para mais tarde qualquer decisão.

    Pedro Nuno Santos tentou despachar o assunto e foi arrasado. Juro que li “atitude precipitada”. Importam-se de repetir? Imprudente? Apressado? Depois de 50 anos? Era necessário um pacto de regime com o PSD? Como os restantes que nos trouxeram aqui? Este país ainda adora as comissões de Salazar. Discute-se para dar a impressão de que há movimento apenas para que tudo fique na mesma.

    white passenger plane flying over snow covered mountain during daytime

    Confesso que não percebo o que pode ser tão complicado na decisão de uma obra pública como um aeroporto. Quantas décadas e estudos são necessários mais? A discussão deve ficar ao rubro entre especuladores imobiliários e municípios interessados, compreendo isso.

    Imagino, aliás, os lobbies e a quantidade de boys apertados nestes anos para influenciarem a decisão aqui ou ali. Mas por favor… estamos em Portugal, já sabemos que a obra encherá os bolsos a uns quantos e, portanto, andem lá com isso e facilitem a vida aos viajantes. O dinheiro gasto já dava um terminal internacional. Daqueles onde pensamos que o gin é mais barato, mas depois percebemos que fica mais em conta no Pingo Doce.

    De entre as várias discussões que este tema acarreta, a minha preferida é a da distância. E aqui lembro a conversa inicial do meu amigo brasileiro para quem a conversa de “longe” começa nos 1.000 quilómetros. Li dezenas de indignados que, de uma forma geral, davam a entender que tudo o que não fosse uma pista no Rossio, parecia ser a visão do Apocalipse.

    Montijo e Alcochete são longe de Lisboa. Ota é longíssimo. Beja é noutro planeta.

    São as mesmíssimas pessoas que adoram voar com a Ryanair, e que elogiam a experiência de aterrar no Aeroporto de Frankfurt-Hahn quando compraram um bilhete para Frankfurt, não se importando que fique a 125 quilómetros daquela cidade alemã. Que aterram em Bérgamo quando no site dizia Milão, distando afinal 45 quilómetros. Que chegam a Skavsta, a 100 quilómetros a sul de Estocolmo, quando querem chegar à capital sueca. E que dizer de Charleroi, quando o destino é Bruxelas? Ou Stansted, e afinal vão para Londres?

    people walking on sidewalk near yellow tram during daytime

    Ora, mas uma coisa é passar uma hora num comboio ou autocarro, num destino qualquer europeu, a caminho do centro depois de aterrar a mais de uma centena de quilómetros de distância; outra é fazer isso dentro de portas. Era o que faltava!

    Aterrar do outro lado da ponte? Ou num aeroporto que já está feito (Beja), e que num comboio de alta velocidade nos pode deixar em Lisboa em menos de uma hora? Please: isso não é para nós! Além do mais Beja já está pronto, como é que se pagavam os favores? Não! Vamos com calma procurar um sítio perto, sem flamingos ou pontes.

    E, já agora, eu sugiro uma alternativa: desloque-se antes Lisboa. O aeroporto da Portela fica. Às tantas, em despesas de construção e em pagamento de mordomias, o saldo aumentaria mais; e, portanto, compensaria.

    Estude-se!

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.