Categoria: Opinião

  • A traficância de elogios: os ‘spin doctors’ e o caso exemplar da demógrafa Maria João Valente Rosa

    A traficância de elogios: os ‘spin doctors’ e o caso exemplar da demógrafa Maria João Valente Rosa


    Existem guiões, e os spin doctors sabem bem da poda. Durante meses, o Ministério da Saúde andou a esconder vergonhosamente o caos do Serviço Nacional de Saúde, não se importando em manipular informação, mutilar bases de dados e recusar documentos administrativos. O PÁGINA UM tem já vastíssima experiência nesta matéria. Tem lutado praticamente sozinho. Tem apresentado processos de intimação no Tribunal Administrativo para contrariar este estado de coisas.

    Nesta linha, o PÁGINA UM esteve na linha da frente para denunciar o absurdo excesso de mortalidade deste ano. Com base em análises rigorosas, foi o primeiro órgão de comunicação social a apontar para a inédita sequência mensal de óbitos sempre acima dos 10.000 desde Novembro, com recordes absolutos em Maio, Junho e Julho. Mas também a denunciar que esse morticínio atingia proporções inconcebíveis no grupo etário mais idoso – um autêntico e criminoso gerontocídio – e que apresentava uma “consistência” não compatível com eventos climáticos ou circunstanciais.

    leafless tree on green grass field

    Durante demasiado tempo, assobiou-se para o ar.

    E só de mansinho, quando o silêncio se mostrava ensurdecedor, veio a comunicação social dita mainstream abordar a temática, mas numa primeira fase sem citar o PÁGINA UM. Dedo dos spin doctors. A razão não se deveu apenas à falta de ética jornalística – existe uma regra de “convivência” na imprensa que “obriga” a citar o primeiro que destaca um tema fruto de investigação. De facto, ignorar a investigação do PÁGINA UM – que, desde o início, apelou para a realização de uma investigação que não ouvisse a “raposa sobre como morreu a galinha” –, serviu também para formar e consolidar uma “narrativa oficial”.

    Por “narrativa oficial”, leia-se dissertações e especulações da Direcção-Geral da Saúde e de “peritos de serviço” – estes últimos predispondo-se a usarem as suas universidades como “cátedra” e o seu estatuto de cientistas como “bengala” para distribuírem bitaites convenientes ao Governo (porque nunca sustentados em dados mas apenas em meras opiniões, por vezes absurdas).

    Lamentavelmente, os dois últimos anos vieram politizar e mercantilizar a Ciência – e um bom (no sentido de mau) exemplo encontramos no presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. Perante tantas evidências da existência de um mastodôntico elefante – excesso grotesco de mortalidade – veio Fernando Almeida em auxílio do obscurantismo do Governo defender que esse excesso de mortalidade não se pode fazer “comparado apenas números” e avisando que “é impossível fazer uma análise séria e cientificamente consistente em dois ou três meses”.

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    Claro que pode. E não só pode, como deve. Basta começar olhar, com transparência e rigor, para as causas de morte no Sistema de Informação dos Certificados (SICO). Está lá tudo, diariamente, semanalmente, anualmente. Pode-se fazer comparações, analisar com detalhe os desvios mais relevantes das causas das mortes, detectar em que faixas etárias tal sucede, que regiões ou mesmo concelhos se observam os casos anómalos. Pode-se fazer tudo isto, com tecnologia informática e especialistas independentes (e que querem mesmo saber e não esconder), em muito pouco tempo.

    Mas o tempo – esse escultor e esse julgador – é o grande problema para os políticos. Num país que ainda nem sequer disponibilizou estatísticas decentes e rigorosas sobre as causas de morte em 2020 (aquilo que está disponível no INE é uma vergonha, e a Doutora Graça Freitas tratou há cerca de um ano de eliminar uma base de dados criada em 2019, a Plataforma da Mortalidade, cujo “cadáver” jaz aqui), tem-se horror à informação hoje, porque pode sempre ser comprometedora.

    Deixe-se morrer hoje pessoas, que amanhã lamentaremos estatísticas – parece ser esse o lema do Governo. Mas não deveria ser auxiliado por cientistas.

    Mas há quem se disponibilize sempre para tais tarefas. Por isso, haverá sempre quem, nas universidades, apoie o Governo a furtar-se ao escrutínio da sociedade, conseguir duas coisas: garantir o controlo absoluto sobre uma suposta investigação e definindo a priori o seu timing.

    Marta Temido, ministra da Saúde, ao centro.

    Nos tempos que correm, o Governo consegue sistematicamente atingir esse objecto com recursos a dois “instrumentos”: uma imprensa mainstream fofinha (que não questiona demasiado) e o suporte de peritos supostamente independentes, mas que estão, na verdade, comprometidos até ao tutano.

    Nos últimos dias, tivemos mais um destes “pratos” servido: o Ministério da Saúde anunciou na sexta-feira passada, pela noitinha, ao sempre disponível Público (que, entretanto, teve a “amabilidade” de corrigir o seu texto original, passando agora a citar o PÁGINA UM) a realização de um “estudo aprofundado” sobre “os excessos de mortalidade mais recentes”, nomeadamente “os que coincidem com a maior intensidade epidémica da covid-19 e do calor”.

    Spin doctors a trabalhar: dois dias depois, novo anúncio, no mesmo Público, dizia-se que o relatório só ficaria concluído em 2023. Para as calendas, portanto.

    Não tugiu nem mugiu a imprensa. Nem investigadores contra esta descarada estratégia do Ministério da Saúde: o anúncio de um estudo que serve exactamente para não se estudar nada de forma independente e rápida. Morra-se hoje para se lamentar nos livros de História.

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    Os spin doctors ainda fizeram mais: em artigo à parte, sempre no Público, arranjaram uma especialista de confiança para consolidar esta estratégia. E assim assistimos à conceituada demógrafa, Maria João Valente Rosa – professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e ex-directora do Pordata – a congratular-se com este “estudo” (chamemos-lhe assim).

    Cito o Público: “O estudo ‘aprofundado’ sobre ‘os factores determinantes da mortalidade’ e sobre os ‘excessos de mortalidade’ observados desde o início da pandemia – que sexta-feira foi anunciado pelo Ministério da Saúde – merece os aplausos da demógrafa Maria João Valente Rosa. ‘Finalmente‘ vai ser dada ‘maior atenção às causas de morte’, reage a professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.” Mais adiante, refere a especialista que “há aqui [no excesso de mortalidade] uma responsabilidade social que não importa descartar”.

    Nem mais: um elogio, para começar, seguida de uma dica para descartar responsabilidades – e logo por uma conceituadíssima especialista, créditos firmados… e independente.

    Claro que sim.

    Somos todos independentes, e uns mais (in)dependentes do que outros.

    Na verdade, começa a encanitar-me observar especialistas travestidos de independentes que, na verdade, deveriam pensar duas vezes antes de prestar declarações, ou avisar os jornalistas dos seus conflitos de interesses.

    Maria João Valente Rosa, demógrafa, professora da Universidade Nova de Lisboa e sócia da Koali e VR&DC Consulting, com relações comerciais com a Direcção-Geral da Saúde.

    Com efeito, não está aqui – como em muitos outros casos que se passaram durante a pandemia – questões legais, mas éticas e de transparência.

    Ao elogiar o anúncio de um estudo político sobre um excesso de mortalidade que poderá ter (ou terá mesmo) causas relacionadas com política governamental – acabando também por anuir no prazo da sua conclusão e indicando até hipóteses para dar a culpa a todos e a ninguém em particular –, Maria João Valente Rosa sabe que não é uma demógrafa, embora lhe interesse que a sua mensagem soe como uma demógrafa independente.

    Mas ela não é só, perante o Ministério da Saúde, apenas uma demógrafa; é também uma empresária, sócia com familiares (inclusive com uma filha, que se apresenta ainda como consultora da DGS) da Koaki (que tem como marca a Social Data Lab) e da VR&DC Consulting.

    Ora, no caso da Koaki, desde 2020, estabeleceu já três contratos com a DGS no valor total de 91.280 euros, a que acrescente um contrato já este ano com o INEM no valor de 39.450 euros, e mais um com a Lusa, no valor de 12.000 euros.

    No caso da VR&DC Consulting há ainda um contrato com a DGS no valor de 15.00 euros (em 2019), mas mantém fortes relações comerciais com a Lusa (três contratos no valor total de 36.000 euros desde 2019) e com o AICEP (quatro contratos no valor de 193.127 euros).

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    Todos os contratos foram por ajuste directo ou por mera consulta prévia.

    Sendo legítimo que especialistas possam explorar e manter relações comerciais com entidades da Administração Pública, talvez comece a ser hora de reflectirmos se podem eles “vestir” a pele de professores universitários independentes para dissertarem sobre temas delicados, sem que se saiba se os comentários são isentos ou afinal comprometidos. Se estão a fazer Ciência ou afinal acções de marketing, piscando o olho a futuros contratos.


    N.D. Sobre esta matéria, coloquei questões à Professora Maria João Valente Rosa, que me respondeu. Porque se considera relevante para a reflexão que aqui se propõe, tomo a liberdade de colocar, na íntegra, tanto as perguntas como a resposta.

    Exma. Senhora Professora Maria João Valente Rosa:

    Sou jornalista e director do jornal digital PÁGINA UM.

    Tendo lido as suas declarações de elogio à Direcção-Geral da Saúde pela realização de um estudo sobre a causa do excesso de mortes, mas que, ao contrário daquilo que seria expectável (até pela informação que existentes nos dados discriminados do SICO), só deverá ser conhecido em 2023, gostaria de ter a sua opinião sobre se considera que esse prazo é razoável ou se poderiam ser conhecidos resultados mais rapidamente.

    Por outro lado, gostaria de saber se alguma das duas empresas de que é sócia foram contactadas pela DGS ou outra qualquer entidade no sentido de integrarem o estudo anunciado, tanto assim que em outras oportunidades tanto a Koaki como a VR&DC Consulting já tiveram contratos com a DGS.

    Por outro lado, gostaria que me dissesse se, quando contactada pelos jornalistas, referiu (ou eles tinham conhecimento) das suas relações comerciais com a DGS.

    Ficando a aguardar uma resposta, e estando disponível para receber outros quaisquer esclarecimentos, queira aceitar os melhores cumprimentos.

    Pedro Almeida Vieira

    15 de Agosto de 2022


    Muito boa tarde.

    Em resposta ao seu email, informo que, enquanto cientista e investigadora na área da população/demografia, respondi a uma jornalista do jornal Público a respeito de uma notícia que dizia que o Ministério da Saúde tinha decidido avançar com “um estudo aprofundado” sobre “os excessos de mortalidade mais recentes”, nomeadamente “os que coincidem com a maior intensidade epidémica da covid-19 e do calor”. Na qualidade de demógrafa, considero muito importante a produção de conhecimento acerca do que se está a passar sobre as mortes em Portugal. Como tal, todas as análises ou estudos que contribuam para o efeito são de saudar, neste contexto.

    Quanto às relações comerciais das empresas, não faço comentários sobre os clientes Koaki ou VR&DC Consulting.

    Cumprimentos,

    Maria João Valente Rosa

    Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa

    16 de Agosto de 2022

  • O Sérgio e a pasta ‘se fores apanhado, usa esta’

    O Sérgio e a pasta ‘se fores apanhado, usa esta’


    O trabalho está a dar-me gastura. Não sei bem o que significa esta palavra, mas a minha avó, sempre que a usava, franzia os olhos e massajava a barriga para ilustrar. Sei sim que é mais ou menos a sensação que tenho quando penso na minha equipa da “apanha da azeitona”.

    Estimo que 75% é formada por pessoas que gerem cenas e organizam coisas; os outros 25% são aqueles que fazem, de facto, essas coisas. Somos quatro. Eu tenho gastura, portanto. Deixo as contas para os Antunes desta vida.

    Sérgio Figueiredo

    Penso muito naquela imagem das obras, com nove gajos em redor do buraco a olhar e dar indicações e um outro com a picareta nas mãos a bulir. Mas, enfim, menos queixume, porque sou eu que me meto nestes comboios.

    A parte que realmente quero trazer para aqui é que isto: do ponto de vista de gestão, tudo isto é uma péssima utilização de recursos. Gasta-se dinheiro a mais e produz-se a menos. Contudo, como é investimento privado (e chinês, já agora) ninguém está interessado em poupanças. Por mim, tudo bem, que não sou de grandes complicações. Desde que a Pelosi deixe de chatear e a China não tenha que investir em canhões de longo alcance, em princípio, os outros 75% da minha equipa podem continuar a esfregar a micose nos PowerPoint.

    Agora, com o Sérgio Figueiredo, já não é bem assim.

    Hiiiiii… cá ganda volta foste dar migaaaaa!!

    Exacto. Eu não gosto de ir directo ao assunto, e umas flores no ramalhete nunca ficaram mal.

    Fernando Medina, ao centro, ministro das Finanças.

    O Sérgio Figueiredo é o novo ofendido da Praça Pública, e, por isso mesmo, defendeu-se com um longo texto no Jornal de Negócios, anunciando que desistia do contrato de consultoria arranjado com o Medina para o Ministério das Finanças.

    E porque pia mais fino o enredo do Sérgio, quando comparado com o desperdício dos meus amigos chineses? Por causa dos mercados, fiéis amigos, para o bem e para o mal. O Sérgio não estava inserido neles, seria pago com dinheiro público e, portanto, está sujeito ao escrutínio dos pobres.

    A prosa de defesa, feita pelo próprio, é retirada de uma minuta disponível em todas as Secretarias de Estado e arquivada nos servidores do Governo dentro da pasta “se fores apanhado, usa esta”.

    Começa com “não aguento mais as calúnias, acusações e difamações”; continua com “blá, blá, blá“; pelo meio há sempre um “injustiças e poderes instalados”; e termina-se com “por isso abdico” e “na defesa do meu bom nome”. Assina-se. E está feito.

    O Ministério das Finanças anunciou a contratação de Sérgio Figueiredo para a função de consultor na área da avaliação das políticas públicas, com um salário de 140 mil euros por dois anos de contrato. Cerca de 5.800 euros por mês, mais do que o salário do próprio ministro.

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    Como o Governo já tinha criado um centro de competências para as políticas públicas (chamado PlanApp), o pagode ficou ligeiramente desconfiado de Medina contratar um consultor, durante dois anos, e dar-lhe um salário de piloto, para fazer essencialmente o que um centro inteiro já fazia.

    Claro que, a partir daqui, o Ministério das Finanças apressou-se a justificar a diferença de trabalho que Sérgio, jornalista de carreira sem experiência em políticas públicas, faria, quando comparado com os demais ocupantes desses lugares no PlanApp. Aparentemente, ou melhor, alegadamente, não faria nada porque não percebia da poda.

    E foi aí que a pobretada que sabe ler se indignou e pensou: “tu queres ver que isto é o Medina a pagar favores pelo palanque que teve na TVI?”

    O barulho ficou ensurdecedor e o desgraçado do Sérgio lá teve que abdicar do cargo, mostrando ao mundo aquela ponta de dignidade só ao alcance dos ilustres que são apanhados entre maroscas colossais.

    Isto vai um pouco na linha do turista espacial, que nos pedia orgulho por ter feito uma excursão de luxo enquanto carpia por 40 milhões de euros de ajuda ao erário público, e que depois, também ofendido, lá acabou por desistir de nos sugar mais uns cobres.

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    Sebastian Maniscalco, um comediante que aprecio, dizia um dia sobre a nova moda em Hollywood com os centros de reabilitação para homens viciados em sexo: “não existem viciados nesses sítios, só maridos que foram apanhados”.

    De cada vez que um Sérgio ficar ofendido e largar a teta do erário público, nós, sociedade civil, cumprimos o nosso papel.

    Mas aquilo que me continua a aborrecer, e fazer pensar, enquanto agarro na minha picareta, são os milhares de Sérgios que vão passando entre os pingos da chuva.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • PSP: ordem pública ou “esquadrão da porrada”?

    PSP: ordem pública ou “esquadrão da porrada”?


    Volta que não volta, zás! Lá temos um vídeo da Polícia de Segurança Pública (PSP) a “malhar à farta” em alguém, e desta vez é um homem negro, imobilizado à bastonada e a pontapé, e com um joelho em cima do pescoço.

    O vídeo circula na internet e o comando da PSP publicou já um blá blá para enrolar as imagens brutais. Parece estarmos de volta aos execráveis “quadrilheiros” de D. Fernando I. Pouco mais de 20 criminosos arregimentados no fatídico ano de 1383, para “assegurar a ordem”.

    Muitos dos elementos da PSP não perceberam que são funcionários de um departamento do Ministério da Administração Interna (MAI)… do Governo eleito por portugueses de todas as cores.

    Ainda estão frescas as imagens da PSP a “malhar” num homem que não queria sair do comboio.

    Ou de uma jovem com a cara rebentada num autocarro à frente da filha por três polícias em Janeiro de 2020 na Amadora por causa de um mero título de transporte.

    Também não esquecemos o rol de polícias que foram a tribunal por causa da “malhação” no bairro da Cova da Moura.

    Ou a carga policial Rua Garret acima em 2012.

    Ou do pai espancado à frente ao filho menor, perto de um campo de futebol.

    Ou a sexagenária puxada do meio da manifestação pacífica de apoio ao juiz anti-vacinas para levar uns valentes tabefes de exemplo!

    Fiquemos por aqui. Temos visto isto tudo graças às TVs e aos telemovéis.

    Há uns anos fiz “Casos de Polícia”, na RTP. Vi a forma agressiva como cidadãos menos favorecidos eram tratados por alguns polícias. E deixei o programa.

    Esta gente mancha a honra de milhares de elementos da PSP, que é um dos garantes da segurança e respeito dos cidadãos.

    A PSP é uma direção do MAI, é bom sublinhar. E foi criada para manter a ordem pública e executar ordens de tribunal. Não é um “esquadrão da porrada”. Ponto final.

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Jornalismo ‘zombie’: o grande drama

    Jornalismo ‘zombie’: o grande drama


    Em tempos, os jornalistas eram temidos pela sua tenacidade em investigar e expor os corruptos. Hoje, são os jornalistas, em geral, que têm medo. Estão reféns do medo e manietados por um corporativismo tóxico e por uma cultura bafienta do “só se critica em privado”. E assim não se investiga nada, e evita-se também resolver os problemas, limpar o sector dos media dos interesses e personagens que o tolhem.

    O medo é um dos fatores que hoje em dia mais reduz jornalistas a meros agentes de comunicação ao serviço de governantes e empresa. Há vários medos.

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    Houve e há jornalistas com medo (pânico mesmo) de apanhar covid-19. Então, por causa disso, esquecem o que é ser jornalista. Noticiavam e noticiam apenas e somente o que diz a Direcção-Geral da Saúde (DGS), a Organização Mundial de Saúde (OMS), Graça de Freitas, Marta Temido e os “especialistas autorizados” (na maioria, consultores a lucrar com serviços a farmacêuticas e entidades públicas do sector da saúde).

    Reduzem a sua atividade a espalharem a linha de comunicação das farmacêuticas, ávidas de vender produtos aos Estados e à população, e de quem tem ligações a esta indústria. Recusam investigar. Recusam fazer perguntas inteligentes e de interesse para a população.

    Uma colega jornalista em pânico de apanhar covid-19 chegou mesmo a dizer-me que “nós precisamos praticar um Jornalismo responsável”, que, na visão dela, corresponde a espalhar propaganda de entidades públicas e farmacêuticas. A espalhar também desinformação que tem sido veiculada sob o disfarce de “política de saúde”, “combate à pandemia” e medidas que visam “o bem comum”.

    Jornalistas dominados pelas emoções, pelo medo, deveriam ter suspendido a carteira profissional enquanto não voltassem a ser jornalistas de verdade, com domínio das emoções e usando a lógica, o raciocínio como ferramentas. Sem usar a lógica, o raciocínio, aquilo que resulta é um Jornalismo zombie que se alimenta de sucessivos atropelos ao Código Deontológico e ao Estatuto do Jornalista.

    Destes jornalistas dominados pelo pânico, houve mesmo alguns que, sempre que podiam, espalharam o ódio e defenderam a perseguição criminosa de todos os portugueses e famílias que compreenderam melhor do que eles a real situação em que temos vivido. Uma realidade dominada por medidas sem qualquer fundamentação científica, medidas absurdas, irracionais, ilegais, inconstitucionais. E medidas que provocaram o caos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e levaram à deterioração da saúde, não só dos mais vulneráveis, como também das crianças e jovens.

    Os resultados estão à vista no número elevadíssimo de casos positivos em Portugal (apesar da campanha agressiva de vacinação) e nas mortes em excesso por todas as causas, sem explicação até hoje e sem uma investigação independente no horizonte.

    A cultura de censura e pensamento único que se instalou nas redações contribuiu para deixar o Jornalismo moribundo, em coma, durante dois anos. Naturalmente, houve jornalistas que ficaram em silêncio e pactuaram com a legião de fanáticos e zombies da propaganda sobre covid/vacinação, com medo de serem chamados de negacionistas e serem alvo de segregação. Ficaram calados, mesmo quando os meios onde trabalham publicaram disparates, notícias falsas e de incentivo ao ódio.

    Estes jornalistas ficaram com medo de perderem o emprego, se falassem, se fizessem Jornalismo. Ficaram com medo de serem mal vistos, de ficarem à parte. De não serem promovidos. De deixarem de ser convidados para almoços, jantares. Para ir tomar café. Para ir fumar o cigarro.

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    Estes jornalistas ficaram com medo de não terem como pagar a renovação da cozinha. De pagar as prestações da casa. De não conseguir cumprir com a pensão de alimentos. De não conseguirem manter os filhos em colégios/universidades caros. De não conseguirem construir a piscina na casa de campo.  De perderem “o respeito” nas redações e os amigos jornalistas que viraram zombies na pandemia.

    Ter medo é normal. Mas, ser jornalista é conseguir viver e trabalhar tendo medo de todas essas coisas. Ter medo de apanhar covid-19. Ter medo de ser posto de lado. Ter medo de ser enxovalhado por colegas ignorantes, incompetentes e que viraram fanáticos da propaganda de “especialistas” (e de “estudos” pagos por empresas que lucraram como nunca desde 2020) e também da propaganda de governantes – que viram na pandemia uma oportunidade para fazerem novas leis e reforçarem o seu poder de forma inadmissível em democracia (como tentar eliminar o direito à liberdade de expressão e de manifestação).

    Ser jornalista é poder ter medo – e, ainda assim, fazer perguntas. É investigar, mesmo quando estamos perante uma epidemia. Quem diz uma epidemia, diz uma guerra. Uma crise financeira. Uma crise energética. Uma crise climática.

    Portugal tem excelentes jornalistas, como tem outros menos bons. Mas tem hoje, sobretudo, jornalistas desmoralizados. Tem jornalistas com medo. Medo de falar nas redações. Medo de falar em público. Medo de questionar, de criticar, de “levantar ondas”.

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    Nos últimos dois anos, procurei expor a desinformação e as campanhas anti-jornalismo e anti-democracia que vários media passaram para o público em geral. “És a ovelha negra do Jornalismo em Portugal”, disse-me um dia um profissional de comunicação. Pois, talvez. Certo é que recebi também mensagens de incentivo de colegas jornalistas e ex-jornalistas. Recebi telefonemas de alguns que estavam (e estão) simplesmente em choque com tudo o que se passou desde 2020. O clima de medo que se instalou. O clima de censura que se instalou.

    O problema do Jornalismo não é a sua morte. É o seu suicídio. Está a ser morto por dentro. Pelo corporativismo. Pelos jornalistas fanáticos e zombies. Pela cultura portuguesa do “fala, mas só entre amigos”. Pelo facto de o sector viver numa bolha e de braços dados com políticos e empresas. Pelo baixo nível de literacia sobre Saúde, Ciência e análise de dados – que ficou evidente desde 2020 nas notícias pavorosas e falsas que foram divulgadas.

    Também pelas chamadas “parcerias comerciais” entre empresas, Governo e grupos de media.  Há uns anos, ouvi numa redacção um colega a queixar-se do facto de os conteúdos “patrocinados” estarem a roubar cada vez mais espaço aos trabalhos dos jornalistas. Prontamente, o diretor respondeu: “Podem não gostar desses conteúdos, mas são eles que pagam os salários”.

    Pois, mas estão também a contribuir para matar o Jornalismo.

    Não seria preferível deixar as empresas de media fecharem do que matar o Jornalismo e ter jornalistas a viver desanimados dia após dia? Além disso, convém dizer que este discurso de “poupança” não engloba as avenças chorudas pagas a amigos comentadores e os salários e condições principescas de alguns dirigentes.

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    Assisti a jornalistas a ganhar perto do salário mínimo, a recibos verdes, a dividirem minúsculos apartamentos com os amigos. Enquanto isso, eram contratados novos quadros e comentadores, pagos a peso de ouro, e que, no final, nada acrescentaram, nem trouxeram mais leitores nem mais qualidade ao meio.

    E, sim, mesmo no sector dos media há “tachos” para amigos do partido A ou B. Do amigo C ou D.

    É assim.

    Os jornalistas perderam o seu poder.

    Em parte, porque se renderam aos medos.

    Em parte, porque esqueceram o que é ser jornalista.

    Em parte, porque se calam perante as desigualdades salariais e os gastos excessivos com alguns quadros e comentadores.

    Em parte, porque alguns se venderam ao poder e ao dinheiro.

    E, em parte, porque alguns se tornaram fanáticos defensores de uma religião anti-ciência que nasceu em 2020, que se baseia em premissas falsas, sem qualquer fundamentação na ciência verdadeira – a que não obedece a interesses políticos ou de empresas. 

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    E devido a tudo isto junto, no global, na soma, está-se a matar o Jornalismo.

    Junta-se a este cenário, o silêncio e inacção da Comissão Profissional da Carteira de Jornalista (CCPJ), sobretudo perante a atitude indigna daqueles que promoveram e incentivaram o ódio e fizeram manchetes /aberturas falsas de telejornais e jornais.

    Nem mesmo quando a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) enviou à CCPJ casos de jornalistas da CNN que divulgaram uma notícia falsa e difamatória para eventual abertura de um processo pela Comissão, a CCPJ quis logo actuar. Ficou, de forma cobarde, em silêncio e recusou, por agora, abrir processos.

    Esta atitude integra-se no corporativismo tóxico e nefasto existente no sector. Entidades como a CCPJ integram a “bolha” em que muitos jornalistas vivem – alheios ao dever de informar, noticiar a verdade, de forma objetiva e rigorosa. A CCPJ partilha da cultura dos “bons costumes”, da cultura que confunde crítica fundamentada com o acto de “falar mal” de alguém ou de uma entidade. A cultura do “todos precisam proteger-se uns aos outros”, mesmo que isso esteja a matar o Jornalismo. Porque tudo isto é veneno para o Jornalismo e os jornalistas.

    Sobra o Sindicato de Jornalistas, que tem procurado actuar para a melhoria das condições no sector e para recomendar boas práticas. Mas tem muito a fazer, nomeadamente no escândalo que envolve as chamadas “parcerias comerciais” – em que jornalistas lucram para participar em eventos de natureza comercial.

    Foto do encontro entre Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República, e membros da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista em 14 de Julho de 2022.

    Também poderia ter-se manifestado de forma mais assertiva perante as notícias falsas e incentivo ao ódio que foi promovido por diversos jornalistas e vários órgãos de comunicação social desde 2020, nomeadamente através do tempo antena que deram a personalidades apresentadas como médicos ou especialistas, mas que na prática escondiam interesses pessoais e profissionais.

    O seu silêncio quanto à praga das notícias recicladas – sobretudo com origem na agência Lusa – é preocupante. Quando o jornalismo está a afundar, a CCPJ pode até dormir, mas o Sindicato, estando mais desperto, não pode deixar de defender o bom jornalismo. Mesmo que doa a muita gente no sector.

    Sobre a ERC, o seu actual Conselho Regulador tomou posições favoráveis ao bom jornalismo. Mas falhou rotundamente – e soube que falhou – quando tomou, recentemente, uma decisão baseada em premissas falsas, numa denúncia que visou apenas condicionar as investigações de um jornalista. A ERC tomou a decisão a favor da vingança do denunciante sem ouvir de forma justa e isenta o jornalista cujas notícias levaram à abertura de um processo de contra-ordenação contra o visado pelas notícias, e que foi afastado da função de consultor pelo Infarmed.

    Contribui ainda para o estado vegetativo em que se encontra o jornalismo, os sucessivos “congressos de jornalistas”, que debatem os desafios do sector. Porém, com poucas ou nenhumas consequências práticas para uma maior justiça salarial, igualdade do género, boas práticas e o fim das contratações de amigos comentadores com remunerações chorudas completamente desadequadas para um sector “em crise” eterna. 

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    Se há uma crise no Jornalismo em Portugal, como a que atravessamos hoje, deve-se falar dela, sim. E em público. Para que se possam resolver os problemas e permitir que os jornalistas ganhem autoestima e tenham consciência do seu verdadeiro poder para noticiar a verdade e investigar os que lucram à custa do bem-estar da população. À custa de enganar a população.

    Os jornalistas devem manifestar-se nas redações, e publicamente, e baterem-se por melhores condições de trabalho e maior investimento em jornalismo verdadeiro, que investiga.

    Voltar a ganhar paixão pela profissão.

    Os jornalistas não precisam ser temidos por fazerem o seu trabalho. Mas precisam voltar a ser respeitados.  Para isso, terão de ajudar os media a limparem-se e a livrarem-se dos hábitos e das más práticas que se infiltraram de forma nefasta no sector – no sector onde quem manda hoje são interesses políticos e os “clientes” das “parcerias comerciais”. E os medos.

  • Um café Figueiredo servido pelo ‘garçon’ Medina ou a democracia apodrecida

    Um café Figueiredo servido pelo ‘garçon’ Medina ou a democracia apodrecida


    Em Abril de 2016, após João Soares, então ministro da Cultura, ter ameaçado dois colunistas do Público (Augusto M. Seabra e Vasco Pulido Valente) com queirosianas “salutares bofetadas”, veio de imediato o primeiro-ministro anunciar ao país que os ministros “nem à mesa do café podem deixar de se lembrar que são membros do Governo”.

    Por causa da polémica, João Soares pediria a demissão, aceite “naturalmente” pelo primeiro-ministro.

    coffee beans beside coffee powder on brown wooden board

    Os tempos são outros, e ficámos agora a saber que as bofetadas alegóricas já podem até ser dadas – não em dois cidadãos, mas em 10 milhões de portugueses; e não doendo na face, moem a democracia.

    O episódio do “convite” de Fernando Medina a Sérgio Figueiredo para o assessorar – leia-se, um pagamento de favores, que já vêm de longe –, à falta de enquadramento criminal suficiente, deveria constituir um evidente caso para se aplicar a máxima de há seis anos proferida por António Costa: “nem à mesa do café podem [os ministros] deixar de se lembrar que são membros do Governo”.

    Ou seja, numa democracia amadurecida (mas não podre), com valores de decência, o convite a Sérgio Figueiredo deveria ter levado à imediata demissão de Fernando Medina.

    Mas não levou, como sabemos. E não levou porque António Costa já pensa que tem o país no bolso, o que constitui um prenúncio que o seu “regime” está decrépito de valores e de ética, perdeu a cultura democrática.

    Jamais pode um ministro – ainda por cima um que ainda há meses recebeu um inusitado “prémio” por ter sido o pior presidente da autarquia de Lisboa, ainda por cima no melhor período económico da capital (aumento das receitas do Imposto Municipal sobre Imovéis por via da actualização do valor patrimonial e boom turístico) – contornar as normas da contratação do seu gabinete para, de forma descarada, dar a “mão” – e o dinheiro dos contribuintes – a um ex-jornalista, que o foi apoiando quando director de informação da TVI.

    O caso Sérgio Figueiredo parece, aliás, combinação feita “à mesa do café” entre si e o seu amigo Medina. E António Costa não pode fazer de conta que não lhe diz respeito.

    Diz respeito – e muito –, porque podem os amigos combinar, entre si, os negócios que bem lhe aprouverem.

    Porém, não um ministro. Não um ministro do seu Governo.

    E não pode parecer, como efectivamente é (qual o currículo de Figueiredo para aquelas funções?!), um negócio de amigos, um pagamento de favores.

    Ainda mais envolvendo um antigo jornalista com as responsabilidades na TVI que Sérgio Figueiredo teve – director de informação entre Janeiro de 2015 e Julho de 2021.

    Aliás, Sérgio Figueiredo – que sempre mostrou uma promiscuidade imprópria de um jornalista isento, com passagens na direcção de jornais económicos e na TVI em permeio com cargos executivos na EDP e outras sinecuras – acaba, ao aceitar este cargo, por dar mais uma estocada na já fraca credibilidade da imprensa mainstream, embora não o esteja a ver demasiado preocupado com esse efeito.

    A partir de agora, poderemos sempre tentar adivinhar qual será o próximo director de um jornal, de uma rádio ou de uma televisão que seguirá para um cargo especial governamental a ganhar cinco mil euros sem exclusividade e sem horário.

    E ainda, depois deste impune caso Sérgio Figueiredo, podemos passar a ler os editoriais ou a linha editorial de um órgão de comunicação social mainstream tentando perscrutar se não estará ali alguém, por detrás da pena, mais preocupado em salvaguardar o seu futuro do que em informar os leitores.

    Confirmado está também o óbito da máxima de António Costa. Agora, tudo se mostra possível. À mesa do café. Ou noutro qualquer lado. O povo já aguenta tudo, não é? A democracia apodrecida é isto mesmo: já tanto se nos faz.

  • Ucrânia: um rodapé do Pontal

    Ucrânia: um rodapé do Pontal


    Entendo que Zelensky não pode deixar que os holofotes se apaguem. O pior que pode acontecer ao povo ucraniano, depois da guerra que não se evitou, é serem esquecidos. No fundo, o pior que podemos fazer ao povo ucraniano é fazermos, essencialmente, o que fazemos a todos os outros povos: passar ao drama seguinte quando o sangue se torna velho.

    Assim que a cortina se fechar, os russos terão palco e espaço para agirem como bem lhes apetecer. A velha teoria de o tempo ser ainda o maior aliado do exército russo.

    Não tenho qualquer opinião formada sobre Zelensky, para lá de um rapaz que foi apanhado nos Panama Papers e que era governante de uma democracia pouco saudável quando os verdadeiros donos do Mundo resolveram usar o quintal dele.

    E antes que me apareçam os puritanos da ordem, asseguro que Putin só não está nos Panama Papers porque não precisa deles para nada: esconde o dinheiro que rouba na Sibéria. O Panamá é para totós que ainda não a sabem fazer bem feita.

    Noto o desinteresse na causa ucraniana a cada dia que passa. Já não é novidade, já não é tão dramático, já nem dá tantos directos. Na verdade, ainda é mais dramático, mas quem não vê é como quem não sente. A História do Mundo Ocidental.

    Pelo meio, Zelensky vai dando uns tiros nos pés como, por exemplo, exigir que todos os cidadãos russos sejam bloqueados onde quer que vão. O Zé e a Maria de Vladivostok, que nem sabem onde fica o Panamá, não podem ir ao Intermarché de Tóquio, que fica mais em caminho do que o Pingo Doce de Moscovo.

    Uma guerra feita por velhos ditadores que Zelensky, amigo dos cancelamentos de partidos, quer que seja culpa de populares.

    Até os mais acérrimos defensores da guerra começam, paulatinamente, a assinalar as vezes em que Zelensy mete água. Na Vogue, nos cancelamentos, nos pedidos de mais sanções.

    Diga-se que, ainda assim, eu concordo com ele: é preciso que não se deixe arrefecer o assunto e que se vá discutindo a causa. Venha de onde vier o tema, o que importa é não deixar cair no esquecimento.

    Mas, deste lado, as sanções já pesam. A malta das bandeirinhas também se aborrece com a inflação, com os juros, com os impostos, com o custo da energia. A Ucrânia começa a ter costas muito largas para a comoção diária que nos exige.

    É preciso lembrar que a nossa natureza é não querer saber. É olhar para o umbigo. É largar um “coitados”, e depois fazer scroll down.

    Ontem, enquanto Luís Delgado – o homem das análises se chove-molha – falava na SIC sobre a festa do Pontal, os apelos de Zelensky apareciam em rodapé. Mais sanções e exigências, ali a 200 à hora no fundo da televisão, e apareciam imagens em loop com Montenegro de camisa branca e dois dedos no ar.

    Quando algo já só surge em rodapé, ao mesmo tempo que se mostra a Festa do Pontal – que é tão relevante para o país como a Festa da Nossa Senhora da Aparição da Nazaré –, é porque já atingiu o estatuto de refugo noticioso.

    Como disse inicialmente, interessa-me pouco Zelensky ou os seus gritos. Como ainda menos me interessa Putin e as suas certezas ou loucuras imperialistas. Tenho é pena dos mesmos que, desde Fevereiro, vão perdendo casas, vidas, amigos e familiares, em nome de uma guerra que nunca foi sua.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Uma apologia à couve… e não só

    Uma apologia à couve… e não só


    É verde, é resistente ao frio, é de folha grande e caule forte.

    A couve portuguesa é um alimento que nos pode transportar ao estrelato da nutrição. Tem propriedades anti-inflamatórias e tem apresentado, em estudos de laboratório, capacidade de aumentar a produção de anticorpos.

    A couve portuguesa usava-se para acompanhar o bacalhau cozido do Natal e é um alimento rico em inúmeras funções. O seu ferro é de fácil absorção, os seus componentes antioxidantes melhoram a resposta aos tóxicos que ingerimos em excesso e aos que nos expomos em quantidades astronómicas. As fibras dão saciedade e melhoram a obstipação que hoje afecta muita gente.

    Couve selvagem (Brassica oleracea var. oleracea), a base de uma grande variedade de couves usadas na alimentação humana.

    Além de minerais e vitaminas, a couve portuguesa tem um conteúdo baixíssimo de açúcares (hidratos de carbono) e tem a particularidade de não perder propriedades quando cozinhada. Em batidos detox, em pratos gourmet, em tabernas, e à mesa das famílias, devíamos promover a couve e o seu primo brócolo.

    Recentemente, a Ordem dos Médicos e alguns arautos do cientificamente correcto, apedrejaram o médico Manuel Pinto Coelho – quase sugeriam a sua cremação pública, e até a destruição do seu bom nome.

    Em boa verdade Pinto Coelho transporta para o espaço português ideias também divulgadas por Michael Greger, que é um comunicador fora de série.

    Os brócolos, investigados na Universidade de Aveiro por bioquímicos, deram doutoramentos sobre defesa imunitária e também sobre a produção de bioplástico. Estes produtos fabricados a partir de uma biomassa de amido de milho ou batata podem tornar-se muito mais resistentes e elásticos com a adição de substâncias identificadas no brócolo.

    A investigadora Sónia Ferreira, ao centro, concluiu em 2021 um doutoramento sobre as extraordinárias capacidades dos brócolos.

    A Brassica oleracea é uma hortícola com muitas variedades, de talos carnudos, podendo atingir até 90 centímetros de altura, e plantava-se em todos os quintais do Alto Minho na minha infância.

    E então, olhando para aquilo que o Dr. Pinto Coelho tem dito, porque desperta ele tantos ódios e até nas páginas do jornal Expresso? Porque chegou com ar novo a idoso? A Inveja? Porque sabe imenso de dietas? Os Ignorantes?

    A verdade é um cubo de que não conhecemos todas as faces, e portanto fiquei sempre surpreso das razões de tantos se empertigarem contra a informação que Pinto Coelho defende e aborda.

    Não se preocupam com as dietas falhadas que persistem em hospitais, a quantidade de hidratos de carbono que são fornecidos a doentes, a fraca presença de couve portuguesa no Serviço Nacional de Saúde, a falta de apoio à produção, venda e investigação, de um produto que carrega a nossa identidade.

    Manuel Pinto Coelho

    Não se preocupam com a insanidade dos hidratos de carbono que proliferam na alimentação dos portugueses, não fazem cartas nem recomendações contra a comida de plástico, a porcaria que se converteu em negócio dos cinemas.

    As salas de espera cheias, a simpatia e o sucesso de Pinto Coelho incomoda e intoxica alguns, e sobretudo move esse tratado da inépcia e da falta de coerência em que se tem convertido a Ordem dos Médicos.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Infarmed e a “arte” dos três E: esconder, enviesar e enganar

    Infarmed e a “arte” dos três E: esconder, enviesar e enganar

    O PÁGINA UM apresenta hoje uma análise detalhada ao recente relatório do Infarmed da farmacovigilância das vacinas contra a covid-19. Além da fé em estudos com mais de um ano, o relatório com dados até final de Julho esconde muito, interpreta de forma enviesada e tenta fabricar uma narrativa. Com esta análise, o PÁGINA UM não pretende afirmar que as vacinas contra a covid-19 são inseguras; exige sim que a informação seja disponibilizada para análise independente e que o Infarmed mostre uma efectiva transparência, defendendo os interesses da Saúde Pública.


    Com dados referentes a 31 de Julho, o Infarmed acaba de publicar mais um relatório de farmacovigilância sobre a monitorização da segurança das vacinas contra a covid-19 em Portugal.

    Antes de debater o estilo deste relatório do Infarmed, diga-se que não disfarça ao que vem: logo na primeira página da Introdução, à terceira frase, dispara-se: “A vacinação contra a COVID-19 é a intervenção de saúde pública mais efetiva para reduzir o número de casos de doença grave e morte originados pela infeção pelo SARS-CoV-2. Diversos estudos comprovam que as vacinas contra a COVID-19 são seguras e efetivas.”

    Mostra-se muito curioso observar um “árbitro”, que ainda por cima tem como função a defesa da saúde pública, fazer essa declaração de princípios. Pode-se dizer que, na verdade, remete para a existência de “diversos estudos”, e até os cita.

    person holding white ballpoint pen

    Fomos ver.

    Descontando a referência ao INFOMED (Base de dados de medicamentos de uso humano) e a relatórios do Public Health England, o Infarmed remete os “comprovativos” de que as vacinas contra a covid-19 para cinco estudos em concreto, presumindo-se que fossem as últimas actualizações com dados científicos independentes e inquestionáveis.

    Desenganem-se já.

    O primeiro intitula-se “Effectiveness of Pfizer-BioNTech and Moderna Vaccines Against COVID-19 Among Hospitalized Adults Aged ≥65 Years” – e, portanto, abrange apenas população com mais de 65 anos – e foi publicado como relatório do United States Department of Health and Human Services em Maio de 2021. Portanto, há 15 meses.

    Refere-se este artigo a dados recolhidos, portanto, numa fase muito prévia da vacinação – ou seja, sem se poder aferir de efeitos a médio e longo prazo. Além disso, este relatório integra quatro investigadores com ligações à Pfizer. Daqui se compreende, desde já, a necessidade de uma regulação independente em termos de farmacovigilância, e que o Infarmed não pode nem deve assumir que este estudo (não inteiramente independente) constitui uma garantia da eficácia e da segurança das vacinas.

    O segundo estudo intitula-se “Effectiveness of BNT162b2 mRNA Vaccine Against Infection and COVID-19 Vaccine Coverage in Healthcare Workers in England, Multicentre Prospective Cohort Study (the SIREN Study)”, e ainda se mostra mais fraco como argumento científico para o Infarmed. Aconselho mesmo que seja retirado de um próximo relatório.

    Capa do último relatório do Infarmed. São 13 páginas com parca e enviesada informação.

    Integrando investigadores associados à vacina da AstraZeneca, este artigo está a “marinar” desde 22 de Fevereiro de 2021 num portal como Preprint. Passaram mais de 17 meses desde a pré-publicação e custa a ser validado pelos seus pares. Formalmente, ainda não é um artigo científico e os 17 meses de espera não são uma boa notícia.

    O terceiro estudo intitula-se “Vaccine side-effects and SARS-CoV-2 infection after vaccination in users of the COVID Symptom Study app in the UK: a prospective observational study”; e este sim está já publicado na revista científica The Lancet Infectious Diseases. Porém, foi publicado em Julho de 2021.

    Como facilmente se compreende aborda apenas os efeitos de curto prazo das vacinas, ainda mais numa fase em que ainda não se tinha decidido politicamente dar doses de reforço (terceira e quarta toma). Basta, aliás, citar a parte final das conclusões deste estudo para perceber que utilizá-lo, como faz o Infarmed, como garantia da eficácia e da segurança das vacinas é perfeitamente abusivo:

    In conclusion, short-term adverse effects of both vaccines are moderate in frequency, mild in severity, and short-lived. Adverse effects are more frequently reported in younger individuals, women, and among those who previously had COVID-19. The post-vaccine symptoms (both systemic and local) often last 1–2 days from the injection. Our data could be used to inform people on the likelihood of side-effects on the basis of their age and sex and the type of vaccine being administered. Furthermore, our data support results from randomised controlled trials in a large community-based scenario showing evidence of reduction in infection after 12 days and substantial protection after 3 weeks.”

    Na verdade, estudos desta natureza mostram, sim, a necessidade de uma farmacovigilância independente – e que analise a informação recolhida ao longo do tempo (e não apenas de curto prazo) sem estar com uma postura pré-concebida de que um medicamento é seguro porque… há estudos.

    Mas avancemos. O quarto estudo citado pelo Infarmed intitula-se “BNT162b2 mRNA Covid-19 Vaccine in a Nationwide Mass Vaccination Setting”. Digamos que “sofre” do mesmo problema do anterior.

    Publicado em 24 de Fevereiro de 2021 no New England Journal of Medicine, mostra bem os “estranhos tempos” da Ciência em tempos de pandemia: o artigo científico aborda a eficácia da vacinação com base na recolha de dados entre 20 de Dezembro de 2020 e 1 de Fevereiro de 2021, e foi logo aceite menos de um mês após ser encerrado. Turbo-ciência. Além disso, estamos perante um estudo da primeira fase da vacinação, e nem sequer se debruça sobre eventuais efeitos secundários. Também não abrangeu população com idade inferior a 16 anos nem população com infecção prévia do SARS-CoV-2.

    Não sei se vale a pena referir que os valores apontados de eficácia das vacinas neste estudo – numa altura em que a variante Ómicron ainda não surgira – são hoje pouco realistas.

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    Onde está a Ciência e o rigor nos tempos que correm?

    O quinto estudo intitula-se “FDA-authorized mRNA COVID-19 vaccines are effective per real-world evidence synthesized across a multi-state health system” e foi publicado na revista Med em Agosto de 2021. Consiste num estudo feito por uma empresa médica (Mayo Clinic), e considerando a data da sua publicação, fácil se mostra concluir que se aplica às primeiras fases da vacinação e quando se estava perante outras variantes dominantes. As anotações sobre as limitações deste estudo, expostas no próprio artigo, deveriam levar o “nosso” Infarmed a uma maior contenção.

    Dissecar estes estudos “lançados” pelo Infarmed para sustentar uma “tese” – que não lhe cabe fazer, porque a sua função é avaliar, de forma independente, eventuais efeitos adversos não detectados nas fases prévias dos ensaios clínicos – serve para demonstrar a falta de independência do regulador nacional nesta matéria.

    E constitui a antecâmara para mostrar a forma enviesada como o Infarmed apresenta números e os comenta no seu relatório.

    Aliás, como esconde dados e como interpreta de forma enviesada as reacções adversas (e a sua gravidade). E quando se esconde ou se interpreta abusivamente, legitimamente há motivos para desconfiar das motivações.

    Através da leitura deste relatório do Infarmed – e dos anteriores – não se sabe, por exemplo, o número de casos por grupo etário das hospitalizações, risco de vida (e quais as afecções e as eventuais sequelas) e morte decorrentes da vacinação.

    Essa informação é vital, porque não é indiferente o risco em função da idade, tendo em conta uma doença (que a vacina pretende evitar) que apresenta taxas de letalidade (também em função da variante e também da imunidade natural) absolutamente distintas.

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    Quem sai beneficiado por não se saber toda a informação? E quem sai prejudicado?

    Um efeito adverso grave num grupo etário em que a doença é bastante letal não pode ser visto da mesma forma que um efeito adverso grave num grupo etário em que a doença é praticamente benigna. Uma morte causada por uma vacina (medicamento), contra uma doença que tem uma taxa de letalidade de 15% num determinado grupo etário numa certa fase, não pode ser olhada nem analisada da mesma forma que uma morte causada num grupo etário em que a taxa de letalidade seja praticamente de 0,00% numa faixa etária de pessoas jovens e saudáveis. Para o primeiro caso, a decisão de manter o medicamento pode justificar-se; no segundo caso não.

    Aliás, veja-se como reagiram as autoridades de saúde da Dinamarca perante a vacinação de menores de idade por força do (re)conhecimento científico. Aliás, este país escandinavo já deixou de permitir a vacinação de menores de 18 anos.

    Ora, no seu relatório, o Infarmed esconde intencionalmente toda essa informação.

    Por outro lado, o relatório do Infarmed impossibilita também de se saber quais os efeitos adversos de médio e longo prazo sobre as pessoas vacinadas, até porque lança logo um aviso quando se refere às mortes causadas pelas vacinas:

    Estes acontecimentos não podem ser considerados relacionados com uma vacina contra a COVID-19 apenas porque foram notificados de forma espontânea ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. Na grande maioria dos casos notificados em que há informação sobre história clínica e medicação concomitante, um resultado adverso fatal pode ser explicado pelos antecedentes clínicos do doente e/ou outros tratamentos, sendo as causas de morte diversas e sem apresentação de um padrão homogéneo. A vacinação contra a COVID-19 não reduzirá as mortes provocadas por outras causas, por exemplo, problemas de saúde não relacionados com a administração de uma vacina, pelo que durante as campanhas de vacinação é expectável que as mortes por outras causas continuem a ocorrer, por vezes em estreita associação temporal com a vacinação, e sem que necessariamente haja qualquer relação com a vacinação.

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    Estas frases são muito verdadeiras, mas com um “problema”: quando se tratou ou trata da doença propriamente dita – a covid-19 –, as autoridades de saúde nunca tiveram a mesma interpretação.

    Veja-se como ficaria esta passagem do relatório do Infarmed se se aplicasse à covid-19 [marca-se a negrito as partes alteradas do texto original do Infarmed]:

    “Estes acontecimentos não podem ser considerados relacionados com a COVID-19 apenas porque foram notificados de forma espontânea ao Sistema Nacional de Farmacovigilância. Na grande maioria dos casos notificados em que há informação sobre história clínica e medicação concomitante, um resultado adverso fatal pode ser explicado pelos antecedentes clínicos do doente e/ou outros tratamentos, sendo as causas de morte diversas e sem apresentação de um padrão homogéneo. A COVID-19 não reduzirá as mortes provocadas por outras causas, por exemplo, problemas de saúde não relacionados com a esta doença, pelo que durante a pandemia é expectável que as mortes por outras causas continuem a ocorrer, por vezes em estreita associação temporal com a COVID-19, e sem que necessariamente haja qualquer relação com a COVID-19.”

    Parecem lógicas as frases assim, certo?

    womans blonde hair in front of black leather couch
    Quem tem medo da informação? Quem tem medo dos olhares independentes?

    Aliás, há um outro aspecto onde se mostra um enviesamento na análise. Como se sabe, as autoridades andam a inculcar a ideia de existir uma “pandemia” de long-covid – efeitos de longo prazo da covid-19. Porém, se uma parte muito substancial da população que teve covid-19 também foi vacinada, como atribuir cientificamente uma deterioração da saúde a uma causa ou a outra? Ou a outra qualquer?

    Na verdade, está verdadeiramente o Infarmed a considerar os efeitos de longo prazo da vacinação?

    Por outro lado, veja-se o rigor “científico” do Infarmed mesmo quando, escondendo dados essenciais, deixa “rabos de fora”. Na página 6 escreve que “verifica-se que as reações adversas às vacinas contra a COVID-19 são pouco frequentes, com cerca de 1 caso em mil inoculações, um valor estável ao longo do tempo”. Mentira. Falso.

    Fazendo umas contas simples a partir dos quadros disponibilizados, e se compararmos globalmente as vacinas administradas em Abril-Maio de 2022 (441.980 doses) e em Junho-Julho (700.997), verificamos que foram registadas, respectivamente, 480 e 1.204 reacções adversas. Significa que no primeiro período se passou de um registo de 1,08 casos por 1.000 vacinas para 1,72 por 1.000 vacinas no período mais recente. Resultado: temos um incremento de 59% nas reacções adversas que coincidiram com a fase da quarta dose para os mais idosos. Mesmo que existam reportes deferidos (que não é dito), o Infarmed não considera isto relevante?! Não batem as sinetas de alarme?

    E também o Infarmed não considera relevante que, face aos dados de Dezembro de 2021, as reacções adversas da vacinação – contra uma doença que é genericamente benigna para crianças e adolescentes saudáveis – tenham subido de 0,06 casos por 1.000 vacinas para 0,21 na faixa dos 5 aos 11 anos – ou seja, um aumento de 250% –, e tenha incrementado de 0,17 para 0,22 na população dos 12 aos 17 anos (aumento de 25%)? Nada disto conta para o Infarmed?

    Infarmed declara que a “transparência é um [seu] princípio fundamental”, mas luta pelo contrário no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    E depois de tudo isto, ainda tem o Infarmed o descaramento de terminar as suas 13 páginas cheias de coisa nenhuma, e parca e enviesada informação, com a seguinte frase: “A transparência é um princípio fundamental para o Infarmed e para a Agência Europeia do Medicamento”.

    Claro que é! Por isso mesmo, o Infarmed anda a batalhar no Tribunal Administrativo de Lisboa para evitar ser obrigado a entregar os dados anonimizados e em bruto do Portal RAM ao PÁGINA UM. O processo de intimação do PÁGINA UM, recorrendo ao FUNDO JURÍDICO financiado pelos leitores, foi intentado em Maio, aguardando-se nas próximas semanas uma decisão. Fundamental para se saber a verdade.

  • Somos o Rohit da União Europeia

    Somos o Rohit da União Europeia


    Sempre que aparecem estatísticas com as desigualdades salariais europeias – da União entenda-se, que isto de acharmos que a Europa começa e acaba em Bruxelas dava um romance –, lembro-me do Rohit.

    Rohit era bom rapaz, um tipo simpático e competente, emigrante indiano, meu colega na Suécia que, durante anos, se sentia indignado com a diferença salarial face aos seus pares.

    Expliquei-lhe, vezes sem conta, como funciona o mercado empresarial, do Primeiro ao Terceiro Mundo, sempre dependente de mão-de-obra barata.

    man in green crew neck t-shirt sitting on black office rolling chair

    Por que razão “importariam” trabalhadores da Índia para lhes pagarem o mesmo que a um trabalhador sueco? Pela mesma razão que na Índia importam mão de obra do Bangladesh.

    O capital não tem fronteiras nem preconceitos. Desde que exista alguém ainda mais miserável, seja onde for, a receita funciona. A cada revisão salarial, sempre que a multinacional sueca onde trabalhávamos lhe perguntava: “o que podemos fazer para te fazer feliz?”, ele respondia “salário”. A mim dizia, “Tiago, eu não nasci rico, tudo o que tenho para vender é a minha força de trabalho e não gosto de fazer caridade”.

    Nunca aconteceu. O Rohit nunca recebeu algo parecido com o salário dos colegas que trabalhavam menos. E que sabiam menos, detalhe importante. Mais do que aqueles que nasceram no sítio certo, com uma tez mais clara. Foi-se embora dois meses depois de mim.

    Na União Europeia, nós somos todos Rohits. Nós, portugueses, claro.

    Entrámos na União Europeia com um salário muito mais baixo – dois terços da média, se não me engano. E hoje, 35 anos depois, a média portuguesa é de metade da média europeia. Não há quem pense nestes números numa União que nos devia equilibrar por um patamar superior?

    Bem sei que os sucessivos governos cometeram erro atrás de erro nas apostas de investimento e desenvolvimento, mas há algo a que dificilmente fugiríamos: numa União Económica, alguém tem que fornecer a mão de obra barata. Para uns terem excedente financeiro, alguém tem que ficar no vermelho. Ou, como diz um amigo meu, economista liberal, o dinheiro é finito: se entra num lado, é porque saiu de outro. Eis a teoria da manta que passeia entre os pés e a cabeça.

    Ora, o nosso papel nesta União Europeia começou por ser o de fornecer fábricas baratas para produção de tudo um pouco. Três décadas depois, e com a população mais formada, passámos a ser poiso de financeiras, multinacionais de engenharia e todo um tecido empresarial que procura cursos universitários a troco de 1.000 euros mensais.

    Um negócio da China se me perguntarem.

    Ao mesmo tempo, as confederações de empresários vão defendendo que, em Portugal, mais salário apenas se vier com mais produtividade. Isto num povo que já é dos que mais horas trabalha na Europa e que vai acreditando que os baixos salários são uma inevitabilidade e, até, culpa de quem trabalha 40 horas por semana.

    Já ninguém acha estranho que a classe dirigente, gestores e administradores, independentemente da sua produtividade, tenham salários europeus de Primeiro Mundo. Aliás, quem não se lembra dos gestores do “BES bom” (Novo Banco) que, quando intervencionados com dinheiros públicos, se arrogavam no direito de distribuir prémios milionários?

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    A União Europeia serviu para nos trazer estradas e impostos de Primeiro Mundo, corrupção e salários de Terceiro. Ao mesmo tempo, cria uma clientela que já não vive sem subsídios europeus.

    O nosso problema nunca foi a falta de conhecimento, como se percebe pela quantidade de cérebros que oferecemos à emigração. E muito menos a falta de trabalho, como dirá qualquer empregador de um português para lá de Badajoz.

    O problema foi, é e será – ontem, hoje e sempre – o silêncio com que combatemos a injustiça e a facilidade com que nos acomodamos a viver com migalhas. Herança da ditadura, dizem uns. Falta de mundo, acho eu.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Estranha forma de vida

    Estranha forma de vida


    A exposição frequente a um determinado estímulo gera tal familiaridade que nos vemos conduzidos a uma mudança de atitudes, na forma de preferências e afectos. Esta preferência é acima de tudo emocional e forma-se ao nível do subconsciente, ou seja, antes de se ter consciência dela.   

    Mas, antes de mais, ilustremos esta ideia com uma breve história.  

    six leafy vegetables

    Um homem muito rico desejou ser eremita e, por isso, foi viver para o deserto. Queria libertar-se do trabalho, das pessoas, da loucura social. Isolado e sem ter onde comprar alimentos, decidiu cozinhar um caldo com diversos tipos de ervas que foi encontrando aqui e acolá.

    Depois de muitas horas de colheita, ferveu a água e acrescentou-lhe os poucos ingredientes que colhera. Finalmente, depois de cozinhado o caldo, ao levantar a tampa para cheirar o paupérrimo manjar, um gafanhoto saltou para dentro da panela. Enojado, apagou as brasas, deitou a sopa fora e, nesse dia, fez jejum.

    No dia seguinte, desejava um caldo e, por isso, repetiu o mesmo cerimonial de recolha e confeção. Mas, cada vez que cozinhava, havia um gafanhoto a invadir-lhe a panela. Certa vez, aborrecido e cansado de desperdiçar a sopa, decidiu retirar o insecto com a concha e mesmo assim comê-la. Aquele gesto passou a ser rotina, pois percebeu que se assim não fosse acabaria por morrer de fome. 

    Pergunto-me se não será isto mesmo que acontece connosco quando crescemos e nos familiarizamos com o que está (e o que acontece) à nossa volta, desde a mais tenra idade. Comparemos, neste contexto, a vida a uma representação teatral.

    red theater curtain

    As pessoas, ou melhor, os “actores”, procuram deixar uma impressão favorável de si mesmos mediante a sua personagem, fazendo a distinção entre aquela que é a zona de cena e os bastidores. Naquela existe um público para quem representamos e de quem esperamos aplausos. Nos bastidores, “desmanchamos” a nossa personagem, andamos sem maquilhagem, sem roupas exuberantes e estamos despreocupados. 

    Para quem já esteve em cena, num palco a sério, sabe o quão exigente pode ser aquela circunstância. O desconforto das luzes que batem nos olhos, a permanente colocação da voz, os movimentos repetidos que não podem ser esquecidos, os textos, os imprevistos e acima de tudo, a expectativa acerca da reação do público.  

    Num exercício rápido e atento sobre o que nos rodeia, percebemos que não somos nós a escrever a peça, que em vez de “actores principais”, somos, na maior parte das vezes, “actores secundários” num espectáculo triste e amargurado por falta de público que aplauda. Percebemos que não há quem encontre o guião e que o palco carece de espaço para que todos brilhem em cena, simultaneamente. 

    Nos bastidores, encontramos gente cabisbaixa, deprimida, frustrada, drogada.  

    gold and black dragon figurine

    Aparentemente, ninguém nos explicou, desde cedo, que não se trata de representação teatral alguma, mas sim de viver uma vida livre e completa. Ninguém nos ensinou o quão bom é sentir cada beijo, cada respiração, cada abraço de forma plena e espontânea.  

    As religiões e a moral são acusadas de serem castradoras da felicidade. Porém, aqueles que nos rodeiam não param de nos gritar que subamos ao palco, que repitamos cenas, uma e outra vez. E de tanto repetir, passamos a acreditar que, de facto, há um público à nossa espera, à espera de que sejamos alguém que ninguém sabe quem é… 

    Voltando à história do eremita: conta-se que este, a partir de certa altura, passou a procurar gafanhotos para com eles fazer sopa, até ao final da sua vida.