Categoria: Opinião

  • Incêndios rurais: o obsceno manto dos desculpabilizantes mitos

    Incêndios rurais: o obsceno manto dos desculpabilizantes mitos


    O tonto do Luís Osório escreve, para gáudio das senhoras que suspiram com as suas palavras – ui, tão duras mas ternurentas – e para agradecimento dos (ir)responsáveis políticos, garantindo que estamos numa “tempestade perfeita, quase 50 graus, vento e uns filhos da puta que mandam incendiar florestas para conseguir ganhar mais dinheiro”.

    E vai ele ainda mais longe nas acusações: “Dinheiro, ganhar dinheiro, engordar cartéis que lucram com os incêndios porque têm produtos ou serviços para vender, por que querem despojar as florestas ou pela maldade pura que também existe como um abcesso humano.”

    people walking near fire

    De permeio, muitos elogios à abnegação dos bombeiros, “muitas centenas (…) extenuados”, onde “há os que enganam o corpo com fugas para a frente, com mais uma chama para apagar, com mais uma pessoa para proteger, mais uma casa, mais um animal. Há também os que já não conseguem mais, os que desmaiaram de cansaço ou que tombaram com a cabeça às voltas pelo fumo, pelo cheiro de queimado, pela pressão.”

    Por sua vez, o pusilânime director do Público, Manuel Carvalho, surge com a lengalenga agora habitual de que nada pode ser politicamente feito porque, enfim, tudo ou quase tudo se restringe ao aquecimento global, e que isto “na floresta não se resolve com mangueiras ou roçadoras de mato, mas com o controlo de emissões de carbono”, desresponsabilizando o Governo pelas tragédias.

    Por fim, temos o primeiro-ministro António Costa – que já assistiu, como líder do Governo ou como ministro da Administração Interna a duas catástrofes florestais (2005, com 350 mil hectares, e 2017, com 540 mil hectares e mais de uma centena de mortes) – a dizer que tudo é ”mãozinha humana” e que o fraccionamento fundiário (o minifúndio) é a causa estrutural na base dos incêndios rurais.

    Podia continuar com a compilação de boutades e/ ou fazer uma antologia dos disparates. Canso-me.

    Após ter escrito um livro de 472 páginas em 2006 – vão já longos 16 anos e mais de 1.700.000 hectares ardidos –, causa-me algum enfado fazer arder no queimado.

    Portugal viveu e sempre viverá sob o manto irresponsável dos mitos.

    O mito de ser um país de vocação florestal, quando sempre tivemos mais jeito para dar cabo das árvores. Portugal foi, durante praticamente a sua origem, um país escalvado, de charnecas, até quase finais do século XIX. Somente por condições políticas (não muito elogiáveis) e sociais (população maioritariamente rural e com o interior ocupado) se conseguiu, sobretudo na I República e no Estado Novo, fazer surgir uma floresta “artificial” e economicamente rentável.

    O mito de ser um país que sofre as agruras dos incêndios por causa do excessivo fraccionamento das propriedades rurais, ou seja, do minifúndio. É de uma atroz ignorância histórica dizer que o minifúndio é um fenómeno recente. Particularmente na região a norte do Tejo, intensificou entre a Monarquia Constitucional, a partir dos anos 30 do século XIX, até um pouco antes da instauração da República.

    Entre 1877 e 1909, o número de prédios rústicos mais que duplicou, passando de 5,06 milhões para 10,48 milhões, mantendo depois um crescimento muito moderado, inferior a 0,2% ao ano. No início dos anos 40 do século XX, atingiu-se um pico de 11,1 milhões de prédios rústicos, registando-se depois variações negativas numa primeira fase, até 1970, e positivas numa segunda fase, posterior a esse ano, cifrando-se actualmente em cerca de 11,6 milhões de prédios rústicos. Portanto, não houve uma mudança relevante nas últimas décadas em termos de estrutura fundiária, quando os incêndios se intensificaram.

    Na verdade, o grande problema advém da redução populacional do interior e sobretudo do êxodo rural e do abandono das culturas agrícolas. Abandonando-se os espaços agrícolas, perdem-se as zonas tampão para “estancar” ou controlar os incêndios nas suas fases iniciais. Além disso, sem pessoas a trabalhar a terra também se deixa de ter vigilantes activos dos espaços florestais. No interior, agora, pode-se vaguear quilómetros a fio sem ver vivalma.

    Temos ainda depois o mito das alterações climáticas, ou seja, de que os incêndios florestais derivam do aquecimento global e do aumento na frequência dos eventos meteorológicos que aumentam o risco de grandes incêndios. Sendo certo, e sendo uma evidência para mim, com base em estudos científicos, que o risco de incêndio aumentou nos últimos anos, também é certo que a tendência observada em Portugal – periódicos anos de catástrofe autêntica -seguido de anos de alguma acalmia – não se observa nos outros países.

    green grass field under blue sky during daytime

    Nas últimas duas décadas, Portugal já teve três anos com áreas ardidas superiores a 3% do seu território: em 2003, em 2005 e em 2017. Neste último ano, foram 6%. Nenhum outro país mediterrâneo, “sofrendo” do mesmo clima, apresenta tal estado de destruição. Ao invés, em média arde agora menos na Espanha do que nos anos 80 do século passado, o mesmo se verificando na França, Itália e Grécia.

    O grande problema, nesta parte, é que Portugal não tem apostado de forma inteligente numa estratégia que tenha em conta um “inimigo” que se pode tornar mais perigosos nas actuais condições climáticas. Uma política ausente durante anos, que se resume a despejar dinheiro, com uma estrutura sempre em contínua mudança (para pior) – os serviços florestais foram completamente desmembrados – não vislumbra qualquer solução. Não houve nenhuma mudança perceptível desde 2017 que nos garanta que não se repita tudo.

    Até porque está sempre omnipresente um outro mito: o dos incendiários, que foi sempre aquele que sempre me suscitou maior compaixão. Existem incendiários? Claro que sim. Mas serão eles, e apenas eles, que justificam a actual situação, ou o que sucedeu em 2017, ou em 2005 ou em 2003? Serão os incendiários desses anos terríveis diferentes daqueles que “actuam” nos anos em que arde pouco? Haverá algum factor que faça com que uma ignição causada por um incendiário seja diferente daquela que foi causada por actos de negligência? Vai um fogo mais depressa se for metido por um incendiário?

    brown and black concrete floor

    Além disto tudo, a tese de os grupos de incendiários contratarem bêbedos e pessoas com atrasos mentais para atear fogos é risível. Luís Osório, enfim, até lamenta, no seu lamentável texto, que “quem são presos são os pobres diabos que se vendem por uma grade de minis. Os mentalmente perturbados, os indigentes, os que podem ser carne para canhão.”

    Vamos lá ver: imaginem uma corporação de malfeitores, pessoas que, vamos assumir, são estrategas, pensam para benefício próprio. Ora, alguma vez, na iminência de chorudos lucros por uma actividade criminosa – e, portanto, com risco –, eles contratariam “pobres diabos que se vendem por uma grade de minis”? Ou pessoas perturbadas? Claro que não! Seria estúpido. Nem o Luís Osório eles contratariam. Na verdade, sempre acreditei que se houvesse mesmo um grupo criminoso para fazer arder o país todo, ele já teria ardido todo. Como não há, assim “só” arde quase todo.

    De facto, independentemente da estupidez do mito dos incendiários, o problema está sobretudo na ausência de acções preventivas eficazes ou eficientes. Ninguém deixa valores elevados num carro para depois culpar um ladrão. Um banco tem mecanismos de segurança e de gestão de valores para minimizar um eventual assalto. Uma cidade decente tem um corpo policial e políticas de integração para evitar um recrudescimento da criminalidade. As cidades japonesas infra-estruturaram-se para aguentar agora terramotos.

    silhouette of man holding fire torch

    Ou seja, o impacte do dano não depende somente do agente que o pode eventualmente causar, mas sim de factores com intervenção directa do Estado. Se há uma vaga de crimes, ou até de acidentes rodoviários por excesso de velocidade ou de álcool, a culpa não é apenas de quem o pratica, mas também do Estado que não cumpre a sua função de tornar uma sociedade regulada.

    Por fim, temos ainda o mito que mais estragos tem causado à protecção da florestal: o mito dos salvadores bombeiros voluntários.

    Recordo aqui, quando falo em bombeiros voluntários, sempre a luta de Miguel Bombarda, no início do século XX, quando quis que o sistema de saúde tivesse enfermeiras profissionais, que substituíssem as freiras que, com amor e carinho, mas também com fracos conhecimentos e treino, mais depressa enviavam almas para o outro mundo do que ajudavam os corpos a manterem-se neste.

    O lobby dos bombeiros voluntários – que não são assim tão voluntários, e subsiste desde que os serviços florestais se desmembraram – tem sido a principal acendalha para a manutenção do frequente desastre dos incêndios rurais.

    two firefighters walking on burned trees covered with smoke

    Não está aqui em causa a abnegação e o amor ao próximo desses bombeiros voluntários – embora eu acredite que um profissional possa e deva ter essas características. E acredito que muitos bombeiros voluntários até preferissem ser profissionais, recebendo melhor treino, estarem sempre disponíveis e receberem uma remuneração compatível com a sua excepcional tarefa. E não terem de descansar ao relento, na berma da estrada ou em cima de bancos de jardim – imagens mediáticas, empolgantes, que demonstram sobretudo uma péssima logística dos serviços estatais e municipais de protecção civil.

    Em Portugal sempre se confundiu conceitos: amor e amadorismo são palavras antagónicas quando o tema é incêncios rurais. Julga-se que onde há amor pela vida das pessoas e pelos seus bens, que se deve usar o voluntariado, porque esse amadorismo é mais genuíno a essas causas. Uma parvoíce. Se eu amo uma causa não devo fazer o que posso, mas devo fazer o que devo. E isso, no caso dos incêndios rurais, consegue-se melhor com profissionais do que com supostos voluntários, até porque uma parte destes segundos até recebe dinheiro.

    Aquilo que verdadeiramente está em causa é a existência de uma estrutura corporativista, mal preparada e mal localizada (o risco diferenciado de incêndio não se compadece com a distribuição geográficas das corporações), e que se recusa a se profissionalizar, porque, dessa forma, não é regulada, não é convenientemente monitorizada nem sequer é responsabilizada quando algo corre mal. E corre muitas vezes mal.

    silhouette of trees on smoke covered forest

    Não existe,na sociedade portuguesa, nenhuma outra tarefa vitar que não seja exercida por profissionais. Temos militares profissionais. Temos médicos profissionais. Temos – e Miguel Bombarda haveria de gostar de saber – enfermeiros profissionais. Temos professores profissionais. Temos polícias profissionais. Temos cobradores de impostos profissionais. Temos tudo profissionalizado. Até políticos profissionais… Que motivos temos para contnuar com bombeiros denomiados voluntários? Ninguém questiona a quem interessa este status quo?

    Já escrevi e repito: no dia em que – como, aliás, se fez na Andaluzia, por exemplo – se decidir colocar os bombeiros voluntários apenas a proteger os perímetros urbanos e casas (onde podem dar largas às mangueiras), e se constituir uma estrutura fortemente equipada e treinada de sapadores florestais – com funções de prevenção (criação de faixas de protecção, etc.), vigilância e combate – teremos a primeira batalha ganha desta guerra.

    Se isso não suceder, continuaremos a ter de ler e ouvir pessoas como Luís Osório, Manuel Carvalho e António Costa a explicarem-nos que a culpa é disto e daquilo, menos dos políticos. E tudo seguirá o seu curso, com o país a ir variando do vermelho ao negro, entremeado por um efémero verde que se esfuma de tempos em tempos.

  • ERC?! Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Para que serve isso?

    ERC?! Entidade Reguladora para a Comunicação Social? Para que serve isso?


    O problema de ler um acórdão é que, quando se dá por ela, estamos a ler outro, ou uma coisa parecida. Desta vez mais simples e com linguagem que se percebe à primeira: uma deliberação, embora o senhor que é responsável seja um juiz, e logo juiz conselheiro.

    Falo da ERC – que é, como quem diz, da Entidade Reguladora para a Comunicação Social –, que divulgou na quinta-feira a tal deliberação que se foca numa queixa feita pelo Partido Comunista Português (PCP) contra a SIC, a propósito de uma peça transmitida na edição de 6 de Março do “Jornal da Noite” sobre o comício dos 100 anos realizado no Campo Pequeno.

    Comício do PCP no Campo Pequeno, em Lisboa, no passado dia 6 de Março.

    Antes de ir à deliberação, deveria dizer-vos em que jornal li sobre isto, para não pensarem que passo o dia a fazer refresh no site da ERC. Confesso: li em nenhum jornal.

    Então?! Vi num rodapé da CNN? Também não.

    Terá sido numa discussão de jornalistas indignados no Facebook? Epá!… também não.

    Foi mesmo a “vastíssima” equipa do PÁGINA UM que me alertou. Fora isso, ninguém, absolutamente ninguém referiu o assunto.

    Enfim, sabemos que há um sentimento mais ou menos generalizado sobre o PCP e o espaço mediático. São dos que mais pancada apanham e, até ver, a sua presença na antena dos comentadores ou mesmo no espaço informativo é muito reduzida.

    Senão vejamos. A Marktest publica mensalmente uma tabela com as 10 personalidades com mais tempo de antena nos telejornais dos canais públicos e generalistas privados. Fui, por curiosidade, ver essas tabelas no período desde que começou a invasão da Ucrânia, ou seja, desde Fevereiro de 2022.

    Num espaço de cinco meses – repito, cinco meses –, o PCP teve pouco mais de um hora de intervenção nas televisões portuguesas. Aparece neste ranking apenas no mês de Fevereiro e em nono lugar.

    Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, durante o comício no Campo Pequeno.

    Para se ter uma noção das proporções, no mesmo período André Ventura tem mais de oito horas de antena, Sérgio Conceição cerca de 3,5 horas, Augusto Santos Silva um pouco mais de seis horas, Inês Sousa Real, do PAN, mais de quatro horas, tal como Catarina Martins do Bloco de Esquerda. Por sua vez, Rui Tavares tem 2,5 horas e até Fernando Santos, o treinador dos cinco trincos, tem mais de duas horas.

    O espaço reservado para membros do PS ou PSD ultrapassa sempre as 10 horas mensais.

    Portanto, não é preciso um estudo exaustivo para provar o óbvio: o PCP é o partido mais atacado pela comunicação social e, em simultâneo, aquele a quem é dado o menor tempo de antena para que se defenda.

    Não é assim de estranhar que a deliberação da ERC passe absolutamente despercebida. É que, para além de dar razão à queixa feita pelo PCP, arrasa a SIC na sua tentativa de misturar informação com opinião, neste caso, pejorativa.

    Eis os pontos que interessam reter:

     – A referência aos 101 anos do Partido «como idade suficiente para dizer sempre a mesma coisa», assim como a referência à «cartilha» assentam numa avaliação pessoal e preconcebida do jornalista sobre as posições do PCP. 

     – Estando em causa uma notícia, não deve ficar patente a visão subjetiva do seu autor, nos moldes ocorridos no caso em apreço. O registo opinativo não deve constar de peças jornalísticas, devendo ser relegado para os espaços de comentário, devidamente identificados.

     (aqui, acrescento eu, a SIC não se contenta com a dúzia de comentadores que já tem a desancar o PCP, precisa que os jornalistas façam as reportagens e induzam os espectadores à sua opinião sobre os factos relatados)

     – Refira-se, por último, que a SIC apenas aparentemente está a dar voz às posições do PCP e a garantir o pluralismo político-partidário, uma vez que os elementos opinativos presentes na peça jornalística conferem um sentido negativo à informação noticiada. 

    –  Assim, a peça jornalística não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela integração de elementos opinativos no discurso do jornalista, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista

    Conclui a ERC, dizendo:

     a)  Considerar que a peça jornalística, ao ter um registo opinativo, que desvaloriza e ridiculariza a posição do PCP, não observa o rigor informativo, pelo incumprimento da necessária isenção e pela não demarcação entre informação e opinião, ao arrepio do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º do Estatuto do Jornalista;

    b) Instar a SIC a assegurar a difusão de uma informação que respeite o pluralismo, o rigor e a isenção, nos termos previstos no artigo 34.º, n.º 2, alínea b), da Lei da Televisão e dos Serviços Audiovisuais a Pedido.

    Ora, trocado para miúdos, o que significa isto? Significa que a SIC fez uma peça jornalística onde tentava influenciar a opinião dos espectadores de forma negativa sobre o PCP e, como consequência desse jornalismo encapotado, vai ter que… NADA.

    Vai ter que ler esta deliberação aqui, cheia de tau-taus e consequências zero. 

    Peça da SIC, não identificada mas com locução do jornalista Pedro Coelho, de 6 de Março passado.

    Isto é o equivalente daquelas passagens de infância pelo Pingo Doce para roubar Toblerones onde, depois de apanhados pelo segurança, se ouvia um raspanete e depois só nos deixavam levar os Twix sem pagar… Quer dizer, alegadamente; ouvi dizer. 

    Portanto, a primeira questão que coloco é para que serve uma entidade reguladora que não regula?

    Depois, se cada grupo editorial tiver a sua linha de acção bem definida e “informar” sem rigor e a favor de uma agenda, que estímulo terão para parar?

    Para além do brio profissional (ou código deontológico) que, espero eu, norteie os jornalistas, quem é que mete algumas regras nesta selva da informação e da manipulação de factos?

    É que convenhamos, hoje (e ontem, vá), o alvo do ataque é o PCP. Quem é de direita não se incomoda, quem é de extrema-direita vibra.

    Mas se a agenda mudar e o fogo cerrado cair noutras cores, certamente os desagradados serão outros.

    É, na verdade, o princípio que está errado. Não há pluralidade no comentário com a opinião representada; basta pensar que Portugal é governado à esquerda há muitos anos e o espaço de comentário é largamente dominado, em todas as televisões, por pessoas de direita. E se a isso juntarmos notícias com agendas ideológicas, bom, sobra-nos pouco espaço para recolher informação e acreditar nas notícias.

    O perigo é sempre o mesmo. Uma sociedade mal informada, é uma sociedade que não pensa e dificilmente reage. Em suma, uma sociedade mais dócil para quem comanda. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Roma ou a nova queda de um império

    Roma ou a nova queda de um império


    Em férias, aproveito para ler o livro The failure of the “New Economics”: an analysis of the Keynesian fallacies, de Henry Hazlitt. Como sabem,Keynes foi o “economista” que mais justificou o estado omnipresente e omnipotente do Estado.

    O Estado Social, com um peso na Economia sem precedentes, teve a sua justificação “académica” com Keynes. Obviamente, para os poderes instalados, as suas “receitas económicas” foram como música celestial. A estrada para um poder estatal sem limites estava aberta.

    Para além de um investidor de bolsa fracassado, Keynes era um estatístico que nunca estudou verdadeiramente Economia; só assim se justifica a quantidade de disparates que escreveu ao longo da vida. Apesar disso, o seu livro Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, objecto de análise no livro de Henry Hazlitt, foi elevado ao estatuto de fundador da Macroeconomia!

    John Maynard Keynes (1883-1946)

    Para Keynes, o mais importante era o nível de despesa da sociedade: denominado de despesa agregada. Se gasta muito, os produtores são incentivados a produzir mais, empregando, desta forma, mais trabalhadores e promovendo o pleno emprego. Se a despesa total subir demasiado, para além do pleno emprego, ocorre uma subida do nível geral dos preços, i.e., inflação.

    A recessão é o processo ao contrário: a sociedade gasta pouco, os produtores reduzem a produção, gerando desemprego e queda dos preços. Nunca pode haver desemprego com inflação.

    Segundo Keynes, a despesa é uma espécie de acelerador da Economia: se vai a fundo, temos pleno emprego e inflação; se vai a meio gás, fantástico, temos pleno emprego sem inflação; se não se acelera, temos recessão e desemprego. Cabe ao Estado acelerar e desacelerar: é simples!

    As recessões são causadas por quedas abruptas no nível de despesa agregada. Keynes nunca nos explicou as razões por detrás das mesmas, utilizando apenas o esmorecimento dos “animals spirits” como argumento. Ao longo do século XX, e ainda hoje, os seus discípulos continuam a tentar explicar as razões por detrás desse esmorecimento. Até hoje, sem grandes resultados.

    low-angle photography of high rise building

    Sempre que há uma recessão e subida do desemprego, qual a solução? O Governo tem de estimular a despesa agregada. Keynes propôs três soluções: (i) inflação, imprimindo moeda; (ii) subida da despesa pública, com o agravamento do défice orçamental; (iii) e redução de impostos.

    A terceira hipótese nunca foi verdadeiramente considerada por Keynes. A redução de impostos significa mais dinheiro no bolso dos contribuintes; imaginem se decidem poupar esse dinheiro em lugar de o gastar? Sacrilégio, funesto. Poupar é algo terrível, gerador de um cataclismo económico.

    Tais disparates são compreensíveis. Keynes, herdeiro de uma enorme fortuna, nunca trabalhou verdadeiramente na vida; nunca compreendeu, ou não quis, que a poupança é civilização, prosperidade e progresso. Sem poupança, ainda hoje, estaríamos a viver na Idade da Pedra.

    Os factores originais que Deus colocou na terra foram: (i) a força de trabalho dos homens; (ii) e a terra, incluindo os seus recursos naturais, como o petróleo, a água, as árvores de fruto…Nada mais. Um náufrago que tenha conseguido sobreviver a nado para uma ilha deserta encontrar-se-á nesse estado: sem bens de capital. O que são? Não satisfazem directamente uma necessidade humana, mas permitem uma enorme expansão da capacidade produtivas, ou seja, da riqueza.

    Uma cana de pesca não mata a fome, mas ajuda a incrementar a produtividade de quem tenta pescar; com as próprias mãos seria uma tarefa bem mais complicada! Um barco de pesca é igualmente um bem que não satisfaz qualquer necessidade humana, mas incrementa substancialmente a produtividade de um pescador. Ambos são bens de capital.

    pink pig coin bank on brown wooden table

    Para produzir um bem de capital, esse náufrago irá ter de restringir o consumo para se dedicar a construir uma cana de pesca. Se trabalha durante seis horas a recolher frutos para a sua subsistência, tem duas opções para obter um bem de capital: (i) aumenta as horas de trabalho, por exemplo, para oito horas, com o propósito de obter uma maior quantidade de frutos, não consumido uma parte que servirá para o alimentar na construção da cana de pesca; (ii) diminui as horas dedicadas a recolher frutos, aceitando comer menos durante o tempo que demora a construir a cana de pesca.

    Não há milagres. A poupança implica sempre um sacrifício do consumo presente. Não podemos trabalhar mais de 24 horas e os recursos na Natureza são escassos. Para obtermos bens de capital, aquilo que nos irá permitir obter um maior número de bens e serviços por hora de trabalho, necessitamos de poupar.

    A poupança é aplicada a criar bens de capital, aquilo que designamos por investimento, como construir uma cana de pesca. O investimento acarreta riscos, apesar de muitos burocratas terem estabelecido que tal não existia – seguro de depósitos bancários é um bom exemplo.

    Que riscos podem existir no nosso exemplo? A cana de pesca pode não funcionar; alguém que viveu anteriormente na ilha pode ter deixado uma cana de pesca já construída, deitando a perder as horas de trabalho.

    Essa é precisamente a função do empreendedor, utilizar as suas poupanças num negócio, correndo sempre o risco de as perder, mas com a possibilidade de lucros enormes, caso a iniciativa seja um sucesso. Que riscos podem ser? Eis alguns exemplos: a procura que pensava ter pode não aparecer; as preferências do consumidor podem alterar-se, afectando a procura pelos seus produtos.

    person standing near the stairs

    Um trabalhador corre riscos, pois as poupanças do empreendedor são utilizadas para o pagamento do seu salário mensal. Os eventuais lucros ou perdas são sempre imputados ao empreendedor, é assim que deverá funcionar um mercado livre.

    Em conclusão, a teoria keynesiana do “paradoxo da poupança” é, pois, um completo disparate, porque, para esta corrente económica, a poupança agrava uma recessão!

    As outras duas vias para o estímulo da despesa agregada são o aumento da despesa ou a impressão de moeda. Ambas, com um impacto muito negativo a longo prazo, como seguidamente explicarei. Para Keynes tal não importa, pois no “no futuro estaremos todos mortos”.

    Não interessa que a impressão de moeda significa a redistribuição de riqueza a favor de uma casta de privilegiados junto da impressora de notas; isto sem ocorrer a produção adicional de um carro, de um prego, de nada, apenas uma fatia maior do mesmo bolo a favor de uma casta de privilegiados.

    Também não interessa que o aumento da despesa fiscal signifique um agravamento do défice público e, por conseguinte, incremento da dívida pública. No futuro alguém irá pagar a conta com maiores impostos; afinal, estaremos todos mortos!

    Do lado “oposto” a esta corrente económica, temos uma espécie de oposição controlada, fundada por esse paladino do “mercado livre”, Milton Friedman. Esta é designada por escola monetarista ou escola de Chicago.

    Milton Friedman (1912-2006)

    Milton Friedman, esse arauto do “mercado livre”, foi o inventor das retenções na fonte – por exemplo, as retenções de IRS (podemos imaginar a nossa reacção se a conta fosse apresentada de uma única vez!?) – e conselheiro de Richard Nixon, presidente norte-americano que terminou em 1971 com a convertibilidade do Dólar norte-americano em ouro.

    Segundo os monetaristas, o problema do desemprego resolve-se pelo ajuste dos salários. A livre interacção entre a procura e oferta resolve o problema. Desta forma, bastará uma descida dos salários e as empresas voltam a contratar, fazendo desaparecer o desemprego.

    O grande temor dos monetaristas é a descida do nível dos preços: a deflação. Ai Jesus, se tal acontece – tal conclusão, sempre me espanta, dado que beneficia os mais pobres, pois adquirem mais por menos!

    Tal como os Keynesianos, para as monetaristas a despesa agregada não pode cair, dado que provoca deflação. Se tal ocorre, as pessoas irão diferir consumo e acentuar a recessão. Segundo a teoria, o Banco Central tem de aparecer e imprimir dinheiro para que tal não aconteça. O confisco da população, em particular dos mais pobres, é justificado em nome de um benefício colectivo: evitar uma recessão!

    Qual o suporte teórico para tudo isto? No livro Monetary history of the United States, 1867–1960, Milton Friedman e Anna J. Schwartz analisam a História Monetária dos Estados Unidos. Nesse livro de factos estatísticos, com quase 900 páginas, não dedicam uma linha à enorme inflação criada pela Reserva Federal, o Banco Central norte-americano, durante os anos 20 do século transacto.

    U.S. American flags under clear sky

    Depois da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra voltou ao padrão-ouro, tentando regressar ao rácio de conversão pré-guerra, mesma depois de ter impresso Libras Esterlinas sem respaldo por ouro, para financiar a guerra. Desta forma, havia o risco de vários países europeus solicitarem a conversão das Libras Esterlinas em Ouro, nesse momento a moeda reserva do Mundo, colocando a nu a inflação criada pelo Banco de Inglaterra durante a guerra.

    Quem apoiou o Banco Central inglês? O Banco Central norte-americano, imprimindo enormes quantidades de Dólares norte-americanos, para posterior venda por contrapartida de Libras Esterlinas, evitando a sua queda nos mercados internacionais. Apesar do nível geral dos preços nos Estados Unidos não ter subido durante esses anos, a massa monetária criada pela Reserva Federal canalizou-se para o imobiliário e mercado de acções, onde se sentiu a inflação… Onde já vimos isto?

    Milton Friedman nunca nos explicou as razões para a grande depressão que se iniciou em 1929, em particular a impressão massiva de dinheiro e as políticas intervencionistas que agravaram a recessão – impostos sobre o comércio internacional, subsídios, proibição de ajustes salariais e regulação sobre os negócios. Para ele e a co-autora, a Reserva Federal não tinha impresso moeda em quantidades suficientes, deixando esse diabo à solta chamado deflação!

    concrete statues near wall

    No livro também não nos fala da recessão no início da década de 20 do século transacto, que se iniciou com piores indicadores que a Grande Depressão dos anos 30, mas que foi resolvida por redução de despesa e subida de juros (contracção da massa monetária) por parte da Reserva Federal. Nunca as comparou, tornando evidente o erro das políticas económicas – oculta-se quando não interessa.

    Temos agora duas correntes oficiais de teoria económica, ambas suportam intervenções estatais de todo o género, incluindo a impressão massiva de dinheiro em caso de recessão.

    Tais teorias económicas, apesar de serem um falhanço completo, são as únicas hoje ensinadas na maioria das faculdades do Mundo Ocidental. Apenas existem e são possíveis pela existência de dinheiro estatal, que pode ser criado em quantidades infinitas e com custos praticamente nulos – basta o apertar de um botão.

    As intervenções são sempre em nome do interesse colectivo: para “salvar o Euro”, para “evitar uma recessão pandémica”, para evitar a “fragmentação”.

    Quem não se recorda dos falhanços estrondosos destas teorias. Nos anos 70, tínhamos um fenómeno em total contradição com a teoria Keynesiana: inflação e desemprego. Um dos discípulos de Keynes, Paul Samuelson, autor do principal manual de Economia durante décadas desde a Segunda Guerra Mundial, louvava a Economia soviética, mesmo depois do seu colapso no final da década de 80 do século XX.

    close-up photo of assorted coins

    Quem não se recorda do nosso engenheiro das bancarrotas, quando o mandaram gastar sem freio após a crise do subprime em 2008? Sabemos como terminou a experiência Keynesiana: o Estado português esteve em risco de suspender pagamentos caso não aparecesse uma mão salvífica – o empréstimo do FMI e da União Europeia por contrapartida da emissão massiva de dinheiro.

    E a recente inflação, fruto das enormes quantidades impressas de moeda – que irá gerar uma recessão sem precedentes, em nome da necessidade de atingir um objectivo de 2% para a subida do nível geral de preços –, onde já lá vai o objectivo!?

    Em nome de recursos inimagináveis a favor do Estado, por forma a intervir de acordo com as “orientações oficiais” das duas correntes económicas, estamos a destruir a poupança, a fonte da prosperidade e do progresso humano.

    O sistema bancário controlado pelo Estado através do seu Banco Central impõe juros 0% ou mesmo negativos, enquanto a inflação oficial situa-se em torno de 10%. Esta inflação, criada em nome do “bem”, justificada pelas correntes económicas oficiais, apenas é possível porque existe dinheiro estatal, sem quaisquer restrições à sua emissão.

    Temos de voltar a possuir dinheiro sem controlo estatal, onde a taxa de juro seja determinada pela oferta e procura por poupança e que seja escassa, por forma a garantir o seu poder aquisitivo no futuro – uma verdadeira reserva de valor. Para se poupar tem de existir confiança de que essa moeda irá ter um valor estável nos próximos anos, décadas ou mesmo séculos. Caso contrário é uma sociedade que apenas pensa no amanhã e não programa a longo prazo.

    A queda de Roma deveu-se ao deboche dos imperadores – que retiravam o conteúdo de prata ao Denarius ou o ouro ao Áureo criado por Júlio César. Constantinopla sobreviveu mais 1.000 anos, em resultado da reforma monetária do imperador Constantino, que impôs seriedade à cunhagem, não ocorrendo qualquer desvalorização do Soldo durante quase 700 anos. Só assim, as pessoas podem poupar: se confiam na escassez da moeda.

    Com dinheiro estatal tal nunca será possível, por essa razão, o Bitcoin é a alternativa que se irá impor após a crise financeira que se avizinha. É escasso – apenas 21 milhões –, a sua mineração torna-se extremamente cara à medida que nos aproximamos dos 21 milhões, ou seja, não é possível expandir a oferta em resultado da subida do preço, como acontece com outros bens. E, por outro lado, não é controlado pelo Governo, a razão para a desgraça do Ouro, pois quando existem substitutos – notas e depósitos bancários -, torna-se possível a existência de reservas fraccionadas.

    Por fim, outra questão: quase todos os economistas das correntes mainstream detestam o Bitcoin. É um bom sinal!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Afinal não ficou tudo bem

    Afinal não ficou tudo bem


    Não está tudo bem. Não ficará tudo bem.

    Creio que uma das principais diferenças entre o passado e o presente é o facto de estarmos a viver na Idade Global – e não na Antiguidade, nem na Idade Média, nem na Idade Moderna, nem na Idade Contemporânea.

    Uma Idade Global em que quase tudo se espalha pelo planeta num espaço de 24 horas – e em que a comunicação real demora menos de um minuto para dar a volta ao globo terreste. Aliás, somente na velocidade do conhecimento e da transmissão, a pandemia foi (ou está a ser) diferente de qualquer uma das anteriores. E hoje, tal como foi ontem, temos economias destruídas e perturbações no quotidiano. Mas, ainda assim, a todas as pandemias os seres humanos sobreviveram e, de quase todas, se vão esquecendo.

    red and black car in tilt shift lens

    Pode parecer irónico falar de esquecimento quando estamos a viver na primeira pessoa, conscientes de que, possivelmente, ainda não passou a pior parte. Agora, depois do medo a que fomos sujeitos, o pior está para vir – principalmente quando soubermos a verdade, quando tivermos acesso a outros ângulos de uma mesma verdade, quando estivermos informados.

    Mas, sem querer dispersar, recordo que logo que surgiram arco-íris às janelas escrevi uma crónica no Jornal i que intitulei “Não vai ficar tudo bem” – e não ficou.

    Continuo a acreditar que a pandemia, sendo uma porta para a mudança, não é por si um ponto de viragem radical. Exemplo disso foi o infeliz aumento de casos de violência.

    Nos lares, onde deveria imperar o amor, houve espaço para a contradição. Contradição que se estende de casa em casa, de rua em rua, de cidade em cidade. A humanidade pode estar à beira da extinção, mas parece que ninguém deu por isso.

    A preocupação é, e sempre foi, com a economia, com o dinheiro, com o poder, com a supremacia. A ordem continua a ser: consumir! O sonho continua a ser pautado pela ideia de prosperidade. A receita é simples: acreditar no que nos dizem e seguir em frente. Ordeiros. Sem fazer perguntas. Condicionados.

    Mesmo assim, em relação ao passado, temos mais liberdade, melhores condições de vida, mais oportunidades a todos os níveis.

    man sleeping on bench in the middle of the street

    Mas, em troca, tornámo-nos escravos do dinheiro, obcecados, doentes, desequilibrados. Sim, estamos doentes e ainda por cima, além de não reconhecermos isso, não aceitamos o remédio. É como se soubéssemos onde residem as células malignas que nos matam e não estivéssemos dispostos a sofrer para as arrancar.

    Pelo contrário, deixamo-nos levar pelo sofrimento não dando espaço ao amor. E sim, é de amor que devemos falar. Amor que tudo suporta e que tudo supera. Amor que, segundo a nossa natureza animal não nos conduz a uma vida isolada e fechada sobre si, mas antes a uma experiência de comunidade. Neste ponto o amor estende-se ao próximo na forma de caridade, solidariedade ou em última análise de fraternidade.

    Refiro-me ao amor que, por ser amor não é egoísta, nem mentiroso, nem manipulador. Um amor que não nos prende ou engana como os espelhos ainda que ao ver o nosso próprio reflexo num objeto seja fascinante. Este gesto habitual pode trazer consigo uma inquietação em torno da pergunta filosófica: “quem sou?”. Por princípio, podemos afirmar que o espelho não mente, já que nos revela a verdade que se apresenta diante de si.

    Em tom de conclusão, relembremos a história da Branca de Neve. Nela, a bruxa pergunta ao espelho: “espelho meu espelho meu, há alguém mais bela do que eu?” Sim – respondeu-lhe o espelho deixando-a devastada. É aterrador quando nos dão a resposta errada. Errada, na medida em que não era aquela que desejávamos ouvir.

    person holding clear glass ball

    Já alguma vez vos aconteceu chegar a casa, olharem-se ao espelho e perceber que afinal uma certa peça de roupa não fica assim tão bem? É justamente aqui que reside o ponto. Há espelhos que nos mentem. As lojas de roupa ou os ginásios que o digam, são autênticas máquinas de distorção da realidade.

    Ainda sou do tempo da diversão da casa dos espelhos na Feira Popular. Lá, todos os espelhos eram assumidamente mentirosos e apesar de tudo, divertíamo-nos muito com isso. Talvez pelo descaramento da mentira. A quem não se recorda ou nunca conheceu este divertimento, explique-se que era um circuito labiríntico de pequenas salas de espelhos que brincavam com as nossas formas, faziam-nos gordos, magros, cabeçudos, anões ou gigantes… Riamo-nos das mentiras que nos contavam. Sabíamos que lá no fundo tudo aquilo era ilusão.

    O problema surge quando olhamos para os espelhos mentirosos e acreditamos que aquilo que estamos a ver é verdade. Em última análise, não é o espelho que nos julga, mas a nossa consciência. A mesma consciência que nos acompanha e pressiona a cada decisão. A mesma consciência que nos obriga a seguir os padrões de beleza e de verdade que alguns cretinos tiveram a liberdade de definir.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O teatro das operações: um espectáculo!

    O teatro das operações: um espectáculo!


    Sentado perto da minha janela, vejo o pior verão da História: frio, vento, chuva e, julgo, três horas de praia em três semanas. É assim que, a apenas duas horas de Lisboa, numa ilha dos Açores, de casaco vestido, acompanho o inferno que assola o território continental português.

    Como é mais ou menos óbvio para quem me vai lendo, e ao contrário da maioria dos portugueses, eu não percebo nada de árvores. De floresta, muito menos. Nem sei o que arde melhor, o que deveria ser plantado ou se o eucalipto é que dá cabo disto tudo. Não sei se o fogo é posto por malucos, e nem sei sequer se posso usar o termo “malucos”. Estou certo de que existirá uma expressão associada a uma doença qualquer que eu deveria aplicar nesta frase. Mas fica mesmo assim. O PÁGINA UM não é o Facebook…

    stage light front of audience

    Também não entendo bem a lógica do fogo posto para vender depois a área ardida, ou a eterna conversa dos matos por limpar. Sei apenas que não me lembro do último ano em que o Verão não fosse significado de intermináveis directos do “teatro de operacões”, e fico sempre espantado como é que, num país tão pequeno e com tantos hectares ardidos, há sempre material para o ano seguinte. E sempre, mas sempre, todos parecem apanhados de surpresa.

    Ou são os meios aéreos que não estavam preparados e vão a correr alugar Canadairs a Espanha e Marrocos, ou são as matas que envolvem as aldeias que não foram limpas, novamente, na Primavera.

    Até os bombeiros, cujo estatuto de voluntário não se percebe na realidade portuguesa, repetem a cada Verão as péssimas condições de trabalho sem que algo verdadeiramente mude para o ano seguinte. Parece que apreciamos este filme, repetido, entre festivais de Verão, a cada Julho ou Agosto.

    Assim, as minhas dúvidas, também repetidas, resumem-se a três questões:

     Por que não têm os bombeiros o estatuto de profissionais dada a sua importância para a segurança das populações?

     Por que razão não se legisla de forma a punir severamente o fogo posto? (ou a proibir a venda de área ardida)

     Por que razão não se vigia a limpeza das matas, sejam elas públicas ou privadas?

    silhouette of trees during sunset

    Compreendo que não seja fácil controlar a manta verde do país, mas tenho a impressão de que nada é feito no lado da prevenção. E se temos cheias no Inverno com as sarjetas entupidas como não ter fogos no Verão com as florestas sujas. E como se pode ser sempre apanhado de surpresa por isto?

    Sobre a razão do eucaliptal como matéria de lucro e fogo rápido, deixo a discussão, que vai ardente, para quem a saberá fazer melhor. Uma vez mais, tal como no tema dos aeroportos, acho que menos diretos inúteis e mais debate sobre este tema, ajudariam a esclarecer a população.

    Também entendo que, nos dias que correm, quanto mais sangue se transmitir maior a possibilidade de aguentar o espectador preso do outro lado, embalado no drama relatado pelo jornalista. Mas, ainda assim, parece-me que a concorrência é tal que estamos a atingir um ponto de puro espectáculo e venda de angústias em directo.

    Há pouca informação relevante e muito corre-corre ofegante.

    Se no início da guerra da Ucrânia tínhamos jornalistas em Kiev, com o capacete posto, a falarem sobre mísseis disparados a 1.000 quilómetros – que, tal como nós, tinham visto na televisão –, agora temos jornalistas que se metem a inalar fumo para tossirem em directo.

    Ontem, na SIC, algures no Centro do país, a jornalista descrevia o horror com as chamas ali ao lado. Pelo meio, achou boa ideia ir entrevistar um bombeiro que, aflito, corria para apagar o fogo. Ele, meio ofegante, ainda lhe disse de forma educada que tinham que tirar a carrinha da frente porque estavam a estorvar, ao que ela, sempre com a magia do momento no pensamento respondeu, “claro, tiraremos logo que possível, assim que acabarmos o directo”.

    two firefighters walking on burned trees covered with smoke

    Acho bem. Que o Senhor nos livre de perdermos um minuto do avanço das chamas. Aliás, quanto mais se atrasar a passagem do camião dos bombeiros, mais se garante material para novos directos. Absolutamente brilhante.

    Já ali perto de Aveiro, numa auto-estrada em chamas, um jornalista da TSF achou boa ideia ir a conduzir e a filmar com o telemóvel. De repente, sem que estivesse à espera, foi apanhado por uma zona de intenso fumo onde as chamas cobriam toda a auto-estrada.

    O que fez ele num sítio sem qualquer visibilidade? Continuou a filmar. Aquilo que era apenas uma acção ilegal, passou a ser uma acção ilegal e incrivelmente estúpida. Tão estúpida e inconsciente que, obviamente, se tornou viral depois de reproduzida por diversos jornais. E porquê? Porque a aflição do momento e a angústia do perigo vendem mesmo que contenham 0% de informação. Provavelmente até venderão mais sem informação, porque esta, ainda assim, dá algum trabalho a compreender.

    O país já sabia que a zona de Aveiro estava em chamas e que a auto-estrada estava prestes a ser fechada. Assim, pergunto: que ganhámos ao ver um condutor a filmar esse mesmo incêndio visto de dentro? É como meter a cabeça na boca de um leão para provar que ele não tem cáries.

    Os festivais de música já mudam de sítio, nos Olivais, em Lisboa, encerram os parques infantis, sítios que, como todos e todas sabem, são altamente propícios a fogos, não é? Passeios em bosques nem pensar, porque os sapatos podem fazer faísca entre as pedras, e churrascadas dão logo direito a multa. Mas se quiserem conduzir às escuras por dentro de um incêndio e filmar, já está tudo bem.

    purple and orange galaxy photo

    Estamos agora sempre em modo histeria, repetindo tudo o que se fez nos últimos anos. Seja covid-19, seja Ucrânia, seja aeroportos, tudo neste país se discute aos berros, em directo, com muita alma, espectáculo e “Últimas Horas”. Um desgastante e interminável rolo compressor de imagens repetidas, notícias requentadas e dramas vendidos à peça. Uma e outra vez, sem qualquer atenção ao que realmente importa: informar.

    Chego a desligar tudo e a ficar completamente imune às histórias reais que passam despercebidas no meio do espectáculo e da batalha pelos clicks. Gostava, por exemplo, que num Setembro qualquer, depois dos bombeiros conseguirem ter uma semana de descanso, que alguém se sentasse a discutir o estatuto de carreira desta gente.

    E gostava de ver notícias sobre isso.

    Até compreendo a lógica de, por exemplo, os bombeiros serem voluntários na Gronelândia. Devem ter um fogo para apagar de três em três anos. Agora, e em Portugal? Um país que arde todo a cada Agosto e renasce em Dezembro, precisa mais de bombeiros profissionais do que de… deixe-me ver… submarinos. Lembrei-me agora desta.

    Mas venham de lá os clicks que logo se pensa no resto.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Acordem para o Tribunal ‘negacionista’ Constitucional

    Acordem para o Tribunal ‘negacionista’ Constitucional


    Não sei se já leram um acórdão de um tribunal: é coisa mais chata do que ouvir um discurso do 10 de Junho sem os desmaios do Cavaco – que, parecendo que não, sempre dão outra animação à coisa.

    Faço, por isso, tudo o que posso para não ver nada decidido por um tribunal, porque, em geral, os juízes dão duas dezenas de voltas à semântica para dizerem que sim ou que não. Uma pessoa precisa de ler a mesma estucha cinco vezes até perceber se lhe deram razão ou não.

    Dito isto, enfim, fui ler o douto Acórdão nº 464/2022 do Tribunal Constitucional.

    E por que razão me interessou em particular? Porque alguém me disse que o dito declarava inconstitucionais os confinamentos fora dos Estados de Emergência.

    Como fiquei na dúvida, depois de o ler só quatro vezes, fui então ver a imprensa nacional sobre o tema. E vi que já fazia notícia de capa, nomeadamente no Diário de Notícias, a inconstitucionalidade da coisa. Assim sendo, partindo do princípio que estamos todos no mesmo barco da compreensão, resta a pergunta que conta: e agora?

    Bem sei que já ninguém quer saber da covid-19. E ainda bem, acrescento. O Froes ainda aparece de quando em vez a falar na 38ª vaga e a tentar vender umas vacinas e uns antivirais, mas está com pouca saída. A malta prefere o Zelensky, os aeroportos e o rapaz que carregou a ovelha em Leiria. Mesmo assim eu gostava de trazer o assunto à mesa, mesmo por apenas uns minutos. Depois esquecemos esta conversa e vamos refrescar na praia. Vocês. Eu continuo no inverno açoriano.

    Primeiro, convém recordar que quem se revoltou contra os confinamentos de gente saudável foi, carinhosamente, apelidada de negacionista.

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    Isto porque, em teoria, devíamos abdicar da liberdade individual a troco de nos protegermos uns aos outros. Lembram-se?

    Quem não se fechava em casa de livre vontade estava a infectar o vizinho. Isto mesmo se o vizinho fosse todos os dias para o trabalho no comboio a abarrotar da linha de Sintra. Aquilo que não podia acontecer era cruzarmo-nos num restaurante ou até, quiçá, sentarmo-nos no mesmo banco de jardim. Ou até fazer tudo isto sozinho.

    De igual forma, todos achavam normal mandar uma turma inteira para casa, porque um aluno estava infectado. Quem não concordasse era, logicamente, um assassino. Isto apesar da taxa de mortalidade nas crianças ter andado – deixa-me cá ver os papéis – nos 0%.

    As deslocações de e para Portugal passaram a ser um inferno. Quarentena obrigatória e coisas do género. Quem não obedecesse à restrição dos movimentos injustificados era multado. E tachado de negacionista, também.

    Eis agora, portanto, que aparece o Tribunal Constitucional, essa entidade negacionista também, presumo, a declarar a inconstitucionalidade de tais imposições fora do Estado de Emergência. De modo que, voltando à questão, e agora?

    Quem é que se responsabiliza pelo tempo de aulas perdido?

    woman sitting on land

    A quem é que se vão pedir as indeminizações pelos dias em confinamento sem possibilidade de trabalhar ou de ter um salário?

    Com quem é que falamos sobre o tempo que perdemos com ente-queridos ou até as despedidas que não fizemos e que já não poderemos fazer?

    O tempo que passámos enfiados em casa, saudáveis – que agora se traduziram numa factura gigante e, para alguns, no fim de um emprego –, cairão sobre as costas de quem?

    As exigências para voar – que, na prática, impediam a vinda a Portugal dos emigrantes por períodos curtos – ficam em que gaveta de reclamações?

    No fundo, quem é que vai indemnizar os “negacionistas” que repetiram, até à exaustão, que o confinamento, além de ilegal, não resolvia absolutamente nada? E não resolvia nada, porque a maior parte da população – o tal sector produtivo e dos serviços essenciais – continuava activo e a deslocar-se nos transportes públicos, e a cruzar-se uns com os outros e a regressar a casa para o seio familiar.

    Imagino que ninguém. Ninguém. Chegámos ao ponto de ter de concluir que, durante um período da nossa História, andou-se a restringir a liberdade de movimentos à população só porque sim. E insultámos quem não concordou. 

    white arrow painted on brick wall

    Quem achava que o confinamento era uma obrigação moral e que, sem isso, não “ficaríamos todos bem”, deve questionar-se agora como é que as vagas de covid-19 não terminaram – e, pior, como é que o Tribunal Constitucional reverteu os “doutos conselhos” dos Froes, dos Antunes e dos Coronas desta vida.

    Agora, enfim, fica mesmo assim: fechamos este capítulo e quem gritava “assassinos” aos contestatários dos confinamentos, reza por uns rodapés discretos deste acórdão. Tudo muito discreto, nada que levante demasiadas ondas, nada que os faça compreender onde estava o lado certo da História.

    Partamos, sim, calma e ordeiramente para o abuso seguinte. Esqueçamos já que a histeria raramente é boa conselheira da Ciência… e da Política.     

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Conselho Superior da Magistratura após dois revezes na Justiça: a ânsia de um Golias em derrotar a Democracia

    O Conselho Superior da Magistratura após dois revezes na Justiça: a ânsia de um Golias em derrotar a Democracia

    Previsível: o Conselho Superior da Magistratura (CSM) recorreu da sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que determinou a obrigatoriedade em conceder ao PÁGINA UM o acesso aos documentos do inquérito à distribuição da Operação Marquês em 2014.

    O recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, que pode ser aqui lido na íntegra, foi apresentado no passado 4 de Julho, e o PÁGINA UM tem agora 15 dias para contra-argumentar.

    Mais trabalho e despesa para um David – cuja funda se funda somente no apoio dos seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO, e do trabalho abnegado do advogado Rui Amores – contra verdadeiros Golias, ainda mais contra um gigante como o Gabinete do Vice-Presidente do CSM, que tem em mãos este processo, contando com quatro juízas como adjuntas e mais três assessores a tempo inteiro e demais apoios e mordomias, tudo bem pago com dinheiros do Estado.

    Eu até compreendo a atitude dos membros do CSM: do alto da sua Torre de Marfim, alheados das preocupações terrenas – como sejam a democraticidade de uma sociedade e a transparência da Administração Pública –, eles rangem agora dentes e brandem argumentos para não perderem uma causa contra um simples cidadão, contra um singelo jornalista. Custou-lhes perder na primeira instância, eu sei. Até porque não saíram nada bem na fotografia da sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que, para bom entendedor, lhes chamou obscurantistas e mentirosos.

    Conselho Superior da Magistratura continua a lutar para não ceder documentos administrativos, depois de um parecer da CADA e uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Lutam eles agora como ciclopes, apenas a vitória é o seu objectivo, vençam como vencerem, sejam quais forem as consequências, até porque, como sabemos, a Justiça é dos Homens, e não da Verdade; e eles, julgando-se serem o corpo da Justiça, têm a justa esperança, pelo poder que os assiste, em moldar a dita justiça aos seus intentos. Custe o que custar, mesmo que nos custe a Democracia.

    Em Novembro do ano passado, o PÁGINA UM – ou eu, como seu director – quis conhecer o inquérito arquivado, sem qualquer acusação, à distribuição do processo da Operação Marquês. Nada de mais natural e normal: são documentos administrativos, sem qualquer margem para dúvida, e o seu interesse público parece-me inquestionável, tanto mais que, oito anos depois, continuamos sem conhecer detalhes sobre aquilo que se passou para a Operação Marquês ter ido parar às mãos do juiz Carlos Alexandre.

    Apesar disso, e apesar do próprio José Sócrates ter andado em similar “guerra” para a obtenção desses documentos, o CSM recusou o acesso ao PÁGINA UM, com argumentos estapafúrdios. A primeira vez em Dezembro do ano passado. Recusou uma segunda vez após a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), presidida por um juiz conselheiro (Alberto Oliveira), ter dado um parecer favorável aos direitos do PÁGINA UM em finais de Janeiro passado. E quer agora recusar uma terceira vez, por esse motivo recorreu da sentença histórica do Tribunal Administrativo de Lisboa conhecida no final do mês passado.

    O CSM e os seus membros têm todo o direito de esbanjar recursos financeiros, porque o Estado lhes dá essa possibilidade, e têm legitimidade para recorrerem sucessivamente aos tribunais superiores, mesmo quando um parecer da CADA, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e uma leitura atenta da Constituição da República Portuguesa e da Lei da Imprensa lhes recomenda outra via: a simples entrega de um inquérito para um escrutínio jornalístico à sua acção.

    Mas essa via – a da transparência –, eles parecem não querer percorrer. É um “calvário” que os horroriza.

    Primeira página do recurso do Conselho Superior da Magistratura ao Tribunal Administrativo Central Sul.

    Certamente, pensarão os membros do CSM, que podem encontrar num tribunal superior alguém mais simpático com as suas teses e argumentos, ao contrário do que sucedeu com a CADA, com o Tribunal Administrativo de Lisboa e com o poder legislativo que aprovou, hélas, a Constituição da República Portuguesa e a Lei da Imprensa.

    A CSM tem, quiçá, a esperança de vencer a causa.

    E isto, saliente-se, mesmo quando o próprio juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, exigindo que o CSM lhe enviasse os documentos em causa, confirmou, com os seus próprios olhos, que não se estava perante dados nominativos.

    A Justiça em Portugal transformou-se numa lotaria. E, por isso mesmo, o CSM estará esperançoso de vencer ainda a causa – e dessa forma continuar a recusar o acesso aos documentos administrativos ao PÁGINA UM.

    E, por isso, recorreu, o que desde já tem uma função mui pedagógica: recomenda já que todas as outras entidades que perderem causas contra o PÁGINA UM também recorram, donde resulta isto que desejam também vencer pelo cansaço, pelo dispêndio de energia, até porque o dinheiro e meios para dirimir questiúnculas em tribunais superiores são, para essas entidades, inesgotáveis, porquanto provêm dos impostos dos portugueses.

    Sucede, porém, que se o CSM vencer a causa, não é apenas a mim que me derrota.

    A vencer, o CSM derrotará toda a Imprensa, toda a Sociedade, porque vencerão teses anti-democráticas a favor do obscurantismo.

    Os argumentos do recurso do CSM junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa são aterradores – e diria que constituem um libelo contra a Democracia, porque mostram uma magistral mas perigosa apologia ao obscurantismo. E é esse o motivo pelo qual, sendo uma parte interessada no processo, mas sabendo ser eu um pequeno David contra um colossal Golias, me vejo na obrigação moral e ética de denunciar um ataque à Democracia.

    É certo que podem julgar ser demasiada presunção assumir-me como defensor da Democracia perante uns supostos malvados. Concedo: não sou então um defensor da Democracia, nem o CSM é um antro de malvados.

    Mas não sendo o CSM um antro de malvados anti-democráticos, vejamos então os seus argumentos para – contrariando o que defenderam já duas entidades: CADA e Tribunal Administrativo de Lisboa – evitar que um jornalista de uma Democracia, com direitos consagrados na Constituição, tenha direito de acesso a documentos administrativos.

    man sitting on bench reading newspaper

    Comecemos pela página 5 do recurso para o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa. Aí, o CSM defende que os documentos em causa integram “o conceito de documentos nominativos, [somente] por conter múltiplos dados pessoais designadamente os nomes de juízes de direito e de funcionários judiciais (alguns dos quais não são, tão-pouco, visados nos processos de averiguações e de inquérito em causa), bem como os números dos processos (através dos quais é possível identificar as respetivas partes).”

    Atenção: fala-se apenas em nomes e funções de funcionários públicos, bem como das suas acções como funcionários públicos. Nada mais. Não está em causa saber a morada nem detalhes da vida pessoal nem íntima.

    Mas qual a razão desta postura? Ora, enviesando o que está previsto no Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD), o CSM quer que se considere que todo e qualquer documento em sua posse seja visto como contendo dados nominativos, bastando até simplesmente a assinatura de alguém. E nem precisava de provar. Alargando-se isto a toda a Administração Pública, passariam a ser documentos com dados nominativos todos aqueles que tivessem pelo menos o nome de um ministro, de um secretário de Estado, de um presidente de instituto, de um director-geral, de um presidente da Câmara, de um presidente de autarquia, de um técnico, ou de toda e qualquer pessoa ou entidade aí referidos.

    E porquê? Porque assim pode-se aplicar um regime mais restritivo de acesso, pois apenas as pessoas titulares “de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante” podem aceder a documentos com dados nominativos.

    Ora, mas, por norma, e pela Constituição, os jornalistas são legítimos detentores desses direitos. E podem assim aceder a esses documentos, com excepção de informação médica, documentos classificados (em condições muito concretas) ou integrados em processos em curso. Uma chatice! Isso é demasiado, pensarão os membros do CSM, que andarão certamente esquecidos de que com mais um par de anos e estamos com meio século em Democracia.

    red and white no smoking sign

    Porém, o CSM considera que esse direito dos jornalistas não é legítimo por lei; tem de ser legitimado caso-a-caso. E por quem e quando? Na página 7 do seu recurso, o CSM responde: compete “à entidade pública [requerida] apurar a necessidade de vedar ou permitir o acesso, segundo critérios de proporcionalidade”.

    Acrescenta ainda que “deverá ser analisada a possível afetação do direito à privacidade do titular dos dados, devendo a informação a fornecer cingir-se ao estritamente necessário no âmbito da finalidade invocada, podendo ser objeto de comunicação parcial ou expurgando-se os dados pessoais que não relevem para essa finalidade.”

    Ou seja, para o CSM deve ser a entidade requerida, geralmente pouco atreita a dar documentos a jornalistas, que deve analisar se deve ou não dar o acesso que não quer dar. Fantástico! Ou então que o requerente sistematicamente recorra aos tribunais, com a rapidez que se lhes reconhece.

    Mas ainda mais temerário, por causar tremores nos alicerces da Democracia, é a tese do CSM sobre a necessidade de se exigir aos jornalistas que confessem a finalidade da consulta requerida. Por outras palavras, o CSM quer que se pergunte sempre a um jornalista: “para que raio quer, vossemecê, ver documentos públicos? Vai escrever alguma coisa? É apenas para leituras de desfastio? Quer ter juízo ou ir a juízo?” Tudo esclarecimentos necessários, e obrigatórios, a Bem da Nação, certamente.

    De facto, como se pode admitir (vd. página 13 do recurso) que um jornalista, no Portugal do ano da graça de 2022, pretenda “a consulta, sem critério e sem concretização de qualquer finalidade específica, do acervo de informação contida em decisão de averiguações de natureza disciplinar, a qual (…) contém apreciações, juízos e valorações acerca de pessoas concretas, as quais assumem a natureza de dados pessoais à luz do RGPD, que não são de acesso público e que se encontram arquivados no CSM”? Era o que faltava! Agora vivemos em Democracia e os jornalistas fazem o que querem, é?

    Qual cereja em cima de bolorento bolo – que julgávamos colocado na lixeira em Abril de 1974 –, ainda consegue o recurso do CSM, na página 21, criticar a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa ao dizer que “mal andou, pois, a Sentença recorrida, ao não efetuar um juízo de proporcionalidade suscetível de conciliar o princípio da transparência e da administração aberta, com o princípio da proteção de dados.”

    sand pathway surrounding grass

    Portanto, para o CSM, proteger simples pessoas de serem identificadas pelo nome – imaginemos, impossibilitando assim a identificação de pessoas que causam dano à res publica – é mais relevante do que a existência de uma administração aberta, daquela que permite aos cidadãos e sobretudo aos jornalistas escrutinarem a acção de políticos e de magistrados.

    Se as teses, se esta argumentação do CSM – na sua ânsia de não perder a causa e a face – vingar num qualquer tribunal superior, saibam que não serei o único derrotado.

    Saibam sobretudo que caminhamos para um insanável precipício de obscuridade, em que os Senhores da Torre de Marfim nem sequer aceitarão, certo dia, que lhe conheçamos nomes e funções. Viveremos sob as suas ordens, sob os seus caprichos.

    Por isso, no dia em que os cidadãos de uma Democracia deixarem de poder sindicar a Administração, e se os jornalistas deixarem de ter o poder de aceder à informação pública, façam um requiem pela Democracia.

    Não se duvide que se joga aqui mais do que um simples processo de acesso a documentos administrativos. Joga-se à Democracia na barra dos tribunais, infelizmente apenas por entre papéis que andam por aqui e por ali, porque se trata de um Tribunal Administrativo.

    Na verdade, nem sequer podemos olhar, olhos nos olhos, os senhores e as senhoras do CSM, e dizer-lhes: “Tenham vergonha!, não foi para estes vossos lastimáveis procedimentos que se fez o 25 de Abril”.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso sete processos administrativos e mais dois em preparação.

  • Da fé nos milhões: a promoção do Paxlovid na TSF e as ilegalidades da Sociedade Portuguesa de Pneumologia

    Da fé nos milhões: a promoção do Paxlovid na TSF e as ilegalidades da Sociedade Portuguesa de Pneumologia


    Li hoje uma notícia da TSF – inicialmente intitulada: “É algo que nos preocupa.” Fármaco Paxlovid só foi prescrito a um doente com Covid-19 em Portugal – em que surgia o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) a promover um medicamento específico de uma farmacêutica (Pfizer), e perguntei-me por onde anda a vergonha.

    E li ainda o lead, onde se dizia que a SPP “acredita que a mortalidade associada à doença podia ser muito menor se o país apostasse mais neste medicamento [Paxlovid]”, e questionei-me por onde anda a Ciência. Acredita? Isto agora já é uma questão de Fé. Ou antes de fé no dinheiro? E o Infarmed, perante esta descarada publicidade, onde anda? E a Ordem dos Médicos, perante esta prostituição, onde anda? E a Imprensa? Ainda ouve esta gente, ainda lhe dá créditos?

    Paxlovid: mais do que usar o antiviral, seria útil investigar os meandros da sua aquisição pelo Estado português.

    O título da notícia da TSF foi depois alterada – para um menos comprometedor “Combate à Covid. Pneumologistas querem maior aposta em comprimido antiviral” –, mas a mensagem está feita: a SPP e muitos pneumologistas estão ao serviço das farmacêuticas, mesmo, ou sobretudo, com o “fim da festa”, em que há muito para esclarecer sobre os rios de dinheiros que andaram de mão em mão, e sobre os atropelos contra a Saúde Pública e contra a Democracia que se cometeram.

    Nunca neguei a perigosidade da pandemia, tanto assim que esta doença foi a primeira, tirando talvez a tosse convulsa poucos meses após o meu nascimento, que colocou em risco (bem real) a minha própria vida. Mas sempre soube distinguir o caso pessoal (e as particularidades dos riscos distintos da doença em função das comorbilidades, da idade e do acaso) e a forma como governos, farmacêuticas e muitos médicos empolaram uma pandemia em prol do negócio e do poder.

    Durante a pandemia, agudizou-se um problema ético entre muitos médicos que se transformaram, fomentando o medo, em porta-estandartes das farmacêuticas. Os milhões de euros – sim, são milhões de euros – que passaram das mãos das farmacêuticas para os bolsos de médicos que falaram mais a pensar nas suas finanças do que na saúde dos seus doentes, deveriam merecer investigação judicial.

    Mais ainda porque o Portal da Transparência do Infarmed é uma anedota, uma vez que ninguém controla nem valida essa base de dados de registo dos apoios e patrocínios. Pouco ou nada se fiscaliza. Aprofundarei o tema muito em breve. E isto assumindo que não existem pagamentos por debaixo de uma TAC.

    Primeiro título da notícia da TSF

    Sobre os novos antivirais, e sobretudo sobre o Paxlovid, já aqui escrevi, e volto a escrever: Filipe Froes é o expoente da promiscuidade médica que apenas se justifica porque a nossa imprensa – que se vendeu também às maravilhas dos eventos pagos pelas farmacêuticas – deixou de ser pilar do Quarto Poder. Arruinou-se, auto-mutilou-se, já nem uma ruína é.

    Na Primavera passada, Froes andou como “delegado de propaganda médica” a vender à imprensa o Paxlovid, da Pfizer, e um outro antiviral, para que, dessa forma, fossem comprados milhões de euros de um fármaco, pelo Estado português, que está longe de provar alguma utilidade. Froes ajudou a justificar a sua aquisição, integrando a equipa de peritos da Direcção-Geral da Saúde que elabora as normas terapêuticas. Aliás, a mesma equipa manteve o remdesivir – um outro antiviral sobre o qual o Infarmed continua a querer esconder dados sobre os efeitos adversos – como terapêutica anti-covid. E Froes continua ser membro da comissão consultiva da Gilead (que bem lhe paga), que vendeu o remdesivir.

    Mas não tem sido ele o único.

    A SPP, com o seu presidente à cabeça – e que está supostamente a ser alvo de um processo (também ainda sem resultados não revelados) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde –, mostra agora um despudorado empenho em vender produtos da Pfizer. Já nem esconde. Quase arrisco sugerir que a Pfizer desinvista no seu departamento de marketing em Portugal. Para que servirão marketeers quando se tem médicos tão bons para essa função, que chegam tão facilmente à imprensa e ao poder?

    Esta sofreguidão em vender o Paxlovid mostra como este último negócio da Pfizer não está a correr nada bem. Apenas nos Estados Unidos, a Administração Biden se rendeu ao medicamento, que é agora dado livremente a quem tenha teste positivo, mesmo se a lista de contra-indicações é imensa, embora o valor monetário despendido seja pornográfico para os fracos desempenhos.

    Título definitivo (depois de alterado) da notícia da TSF

    Mas como nem todos os países podem livremente imprimir dólares, em muitos outros países os médicos têm sido cautelosos, pelo que os novos antivirais contra a covid-19 não estão a merecer a mesma adesão, o que coloca a Pfizer – e seus marketeers – com nervoso miudinho.

    Aliás, em cada novo estudo, surge um novo desapontamento. A Pfizer, que previa uma facturação, com este medicamento, de 20 mil milhões de dólares até ao fim do ano, já anda a fazer contas à vida e a mudar de estratégia. Agora, é vender e vender, vender à fartazana, quilos e paletes, até que já não se consiga mais esconder que aquilo não vale um chavo. Ou pior: que faz mais mal do que bem.

    A estratégia para vender mais Paxlovid passou por arranjar uns “vendilhões do templo” vestidos de bata branca a elogiar o uso de “banha da cobra” a preço de caviar.

    Perante a fraca prescrição pelos médicos do Paxlovid – que é fármaco demasiado caro, de eficácia ainda muito duvidosa, com um vasto conjunto de contra-indicações e somente se aplica na fase inicial (muito curta) da infecção em doentes com sintomas ligeiros –, não surpreende assim ver saltar, como pulgas sedentas de sangue, diversos pneumologistas a perorar sobre a necessidade de se salvarem mais vidas tiradas pela covid-19. E a promover que se use mais Paxlovid. Mais Paxlovid. Mais Paxlovid.

    Eu acho é que se deveria mesmo investigar a razão de estarem a morrer tantos idosos com mais de 85 anos após a toma da terceira e quarta dose da vacina. Ninguém quer saber? É tabu ou heresia colocar sequer a hipótese de estarem associadas a efeitos adversos de tantos boosters contra a covid-19?

    person holding orange and white plastic bottle

    Curioso também, para mim, tem sido ver que, com a saturação mediática de Froes, surge agora um médico do Hospital de São João do Porto, João Carlos Winck, a fazer as maiores “despesas da casa”, cantando loas e ditirambos aos antivirais, sobretudo ao Paxlovid. Nos dois artigos que li, não consta qualquer referência aos seus proveitos vindos da Pfizer quer na sua actividade em Portugal quer na European Respiratory Society. Esta gente nunca revela conflitos de interesse.

    Certo é que nada é por acaso. Ontem, Marques Mendes, no seu espaço na SIC, cita João Carlos Winck e ajuda o marketing da Pfizer. E hoje surgiu António Morais, o presidente da SPP, a prostituir a associação científica que preside desde 2019, em clara violação do regime de incompatibilidades, em acção de descarada e ilegal promoção de um fármaco específico (Paxlovid) num órgão de comunicação social (TSF).

    Ilegal, por três motivos: os médicos não podem fazer promoção pública de um medicamento, uma sociedade médica também não, e uma farmacêutica não pode fazer publicidade a um medicamento com prescrição médica. E até a TSF, que deveria saber que não pode fazer, numa notícia, publicidade específica a um medicamento. Ainda mais nas circunstâncias que envolvem o Paxlovid, um medicamento que teve uma aprovação de rapidez inaudita pelos reguladores.

    Mas, no país da falta de vergonha, tudo fica impune, tudo se esquece. Ou se calhar, não: por exemplo, eu ainda me arrisco a um processo judicial. Desavergonhados para me meterem um processo andam por aí uns quantos.

  • Há quanto tempo não muda de cuecas?

    Há quanto tempo não muda de cuecas?


    A frase “hoje foram cancelados X voos” entrou nas redacções, em força, para substituir a outra, já mais gasta por esta altura: “o número de infectados por covid-19 subiu para Y”.

    Entendo que os canais informativos, especialmente os que precisam de 24 horas diárias de assunto, vão atrás de qualquer gota de sangue. Ainda assim, existem temas que se esgotam rapidamente. Aos habituais directos dos “teatros de operações”, que saem sempre muito bem nesta época do ano, juntou-se a azáfama dos aeroportos e das filas intermináveis.

    Nunca percebi o valor informativo de um directo para observar um regimento de bombeiros em acção, e ainda tenho mais dificuldade em perceber o que ganhamos nós, espectadores, com aquele simulacro informativo, diário, em directo da Portela.

    Interessa a 99,9% da população saber o número de voos cancelados hoje? Por acaso iam voar?  Quão deprimente é ver uma jornalista a chatear passageiros, que desesperam em filas de quatro horas, com perguntas do género: “acha que se vai resolver?”

    Se nem os funcionários do balcão de cada companhia aérea sabem para onde a coisa vai, quanto mais os desgraçados que andam a contar os dias de férias que sobram depois desta empreitada.

    Hoje ouvi uma jornalista, julgo que da CNN, a perguntar a uma passageira se tinha sido informada do estado das coisas. É mais ou menos o mesmo que perguntar a um urso polar se já viu gelo. Há alguém neste planeta, mesmo o monge tibetano mais recolhido, que não saiba de cor e salteado quantos aviões não saíram da Portela? Haverá algum pastor numa aldeia dos Himalaias que não saiba por esta hora que, no hub da TAP, a maior parte dos voos cancelados são, curiosamente, dessa mesma TAP?

    orange and grey passenger seats

    Normalmente, quando fazem esta contagem de voos e nos dizem quantos são da TAP, esquecem-se de dizer que no Charles de Gaulle a companhia com mais cancelamentos é a Air France, em Barajas a Iberia, em Heathrow a British Airways, em Frankfurt a Lufthansa e em Arlanda a SAS. É uma informação que, a meu ver, fazia falta para se completar o ramalhete de 10 minutos televisivos a explicar que a água molha. O interesse disto seria zero, ainda assim, mas pelo menos os espectadores percebiam que Lisboa sofre do mesmíssimo problema de qualquer aeroporto europeu (ou mundial) com muito tráfego neste período pós-pandemia. E sempre se enchiam mais uns chouriços.

    Depois de percebermos que o caos no mundo da aviação se generalizou é que poderíamos começar uma discussão interessante e, até quem sabe, responder à pergunta do “acha que isto se vai resolver?”

    Por exemplo, em vez de directos razoavelmente deprimentes, ou perguntas para analfabetos, dirigidas a passageiros que já têm problemas maiores para resolver, poderiam as televisões abrir espaços de debate para debate sobre o problema. Bem sei que ninguém me perguntou nada, mas este mau tempo não me deixa ir para a praia. Um homem tem que ocupar o tempo.

    Se convidassem membros do Governo, especialistas da aviação (companhias aéreas, gestores dos aeroportos, etc.) e alguns economistas, só para termos momentos de filosofia, todos bem sentadinhos num painel de debate, talvez nos conseguissem explicar como é que chegámos aqui.

    white airliner on runway

    Por exemplo, se me deixassem fazer uma pergunta nesse painel, seria esta: “como é que a Segurança Social pagou às empresas para não despedirem os trabalhadores e, mesmo assim, chegamos ao período pós-pandémico com uma imensa falta de trabalhadores?”

    Dados do Governo português, em Maio de 2020, confirmavam o apoio a cerca de 40 mil empresas, num total de 600 mil trabalhadores. Imagino que o número tenha aumentado no ano que se seguiu.

    Porque, como diria o nosso António, vam’lá a ver, esta seria a teoria. Os governos decretaram que nada mexia, aviões incluídos, porque o Mundo estava perto do apocalipse e, em princípio íamos todos morrer. Mesmo ao fim de um ano e números semelhantes aos da pneumonia (mortes), os governos europeus não abrandaram. Tudo quieto, todos em casa e os aviões no chão. Pelo esforço de todos, fomos batendo palmas e, aqui e ali, saltava um arco-íris com a promessa que tudo iria ficar bem.

    Uma das formas encontrada para ficar tudo bem foi, no caso português, aumentar a dívida pública e financiar as empresas para que mantivessem os seus trabalhadores sem produção. No caso da aviação, essa realidade era mais do que óbvia, porque, todos percebemos, as ligações estavam praticamente congeladas. Eu confesso que achei boa ideia na altura e o raciocínio também era simples: se por decisão dos Governos não podíamos trabalhar, seria sua obrigação social (dos Governos) garantir o sustento de cada família, fosse como fosse. Com ou sem engenharia financeira.

    Claro que todos percebíamos que o endividamento viria como factura algures no tempo, mas, em princípio, os postos de trabalho estariam assegurados.

    Depois de dois anos com os movimentos condicionados, os europeus quiseram sair de casa e voltar a viajar. E bem. Porém, agora, de Norte a Sul, Este a Oeste, vão chegando relatos de aeroportos absolutamente entupidos e voos cancelados. Em todos a mesma justificação: falta de pessoal.

    E é aqui que começa a minha curiosidade. Falta de pessoal, porquê? Os empregos não deveriam estar garantidos pelo erário público para que “tudo ficasse bem” depois da pandemia? [Nunca sei se devo dizer “depois da pandemia”. Certamente estarei a ofender algum Antunes que me possa ler]

    Vejo duas hipóteses para o caos actual. A primeira: as empresas usaram o dinheiro para garantir lucros e, pelo caminho, aproveitaram para fazer os despedimentos à mesma – ou restruturações, como lhes chamam os gestores premiados. A segunda, menos rebuscada: o pessoal do sector foi para outras áreas profissionais que não tenham sido tão afectadas. Ou ainda, no caso do pessoal mais especializado (manutenção, pilotos, etc.), aproveitaram para mudar de empregador e fugiram para as Arábias (Emirates), Inglaterra (EasyJet) ou qualquer outro destino onde não lhes cortem os salários em 45%.

    Provavelmente, a junção das duas resultou nisto. Neste caos, nesta falta de pessoal um pouco por todo o lado. A isto juntam-se as greves dos trabalhadores que sobraram. Com a pressão existente sobre as empresas e os atrasos que prometem comprometer o Verão, é natural que os trabalhadores façam valer os seus direitos e tentem recuperar o que perderam durante o confinamento. É a lei do mercado a funcionar a favor de quem trabalha. Não pode servir só para benefício do patronato e dos especuladores, portanto, há que aguentar.

    Em todo o caso, se pouco se pode fazer se um trabalhador mudar de empregador, já sobre uma empresa despedir quando todos lhe pagamos para que não o faca, há mais qualquer coisa a fazer. Nomeadamente, perguntas.

    Há alguém que ande a perguntar ao pessoal da aviação que recebeu as ajudas do lay-off, para onde foram os trabalhadores? Eu tenho alguma curiosidade em saber. Com 10% do tempo diário gasto em directos inúteis no aeroporto de Lisboa, organizava-se um debate para esclarecimento.

    Enfim, quanto a vocês não sei, mas, pessoalmente, não estou muito interessado em saber há quantos dias o senhor que vai para o Recife não muda de cuecas. Já descobrir para onde foram os funcionários da aviação, especialmente aqueles que estavam protegidos pela Seguranca Social, dava-me algum jeito. A mim e à senhora da CNN que pergunta todos os dias se achamos que a coisa se vai resolver.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sardenha: não vi o Ricardo Salgado

    Sardenha: não vi o Ricardo Salgado


    Não podia morrer estúpido: na Sardenha, tinha de conhecer Porto Cervo, o local dos famosos, dos multimilionários e do nosso conhecido ex-banqueiro Ricardo Salgado – há uns anos, como sabemos, foi uma espécie de dono do regime.

    No ano passado, a imprensa lusa fez parangonas sobre as férias de Ricardo Salgado, enquanto decorria o seu julgamento. Beneficiou da lei que permitia aos arguidos com mais de 70 anos não marcarem presença em tribunal devido aos riscos associados à putativa pandemia. Por Porto Cervo, segundo fotografias na imprensa, andava ele descontraído, sem máscara e longe dos tais riscos – o “bicho” por lá não aparecia.

    crystal blue water on white sand beach

    Hospedei-me em Olbia, a cerca de 30 quilómetros de Porto Cervo, onde me foi possível encontrar um local para pernoitar a preços acessíveis. Em Porto Cervo, ou nas redondezas, os preços do alojamento são proibitivos. Acima dos 300 euros por quarto em cada noite.

    As estradas na Sardenha são miseráveis; mais se parecem com as estradas de Portugal nos anos 80, onde para percorrer 30 quilómetros se demora 45 minutos. É o oposto da Madeira – com a população a ganhar na sua maioria menos de 1.000 Euros por mês e governada por um tiranete –, onde existem túneis e estradas de luxo para qualquer lugar.

    O empreendimento de Porto Cervo está impecável, vivendas e apartamentos perfeitamente integrados na paisagem, com lojas de luxo em redor de uma marina, onde cada barco parece disputar a primeira posição em tamanho, esplendor e tripulação. Praticamente não se avistam carros de luxo.

    Não vi Ricardo Salgado. Também não vi o café a 10 Euros anunciado pela imprensa mainstream. Também não ouvi ninguém falar português de Portugal, apenas escutei o sotaque do país irmão: o Brasil. Não espanta, hoje aquele país possui uma das comunidades empresariais mais dinâmicas e numerosas do Mundo.

    Em relação à inexistência de portugueses, não há qualquer assombro: em 48 anos de socialismo, o regime encarregou-se de “abater” os empresários, enquanto elevava o peso do Estado na Economia, de 18% para mais de 50%, levando a dívida pública à estratosfera e destruindo o mercado de capitais. As empresas cotadas chegaram a valer 66% do PIB; valem agora menos de 40%, e o mercado está muito dependente de duas cotadas em mãos chinesas.

    Apesar do pesadelo instituído durante dois anos pelo facínora Mario Draghi, a Itália continua a ser uma das nações mais ricas do Mundo. Em Porto Cervo, as lojas de luxo são, na sua maioria, de marcas italianas. Também se vende iates de luxo por encomenda, igualmente de fabrico italiano. Ou seja, continua a existir um capitalismo vibrante, onde a indústria de luxo tem uma enorme preponderância e há capacidade industrial.

    Olho para a Itália, e à distância recordo Portugal. Fomos em tempos uma das nações mais prósperas do planeta; hoje, estamos a caminho de ser a nação mais pobre da Europa. Talvez esteja relacionado com a forma como nos relacionamos com o capitalismo e a riqueza.

    Continuamos a pensar que é fruto do acaso, da sorte, da vigarice e dos contactos certos, em lugar do esforço, da poupança, do risco, da excelência, do trabalho em equipa e da perseverança. Para nos aliviar a abjecção, não espanta o novo-riquismo com estradas e carros de luxo.

    Aparentemente, o único português que pode aparecer em Porto Cervo de Iate e aí alojar-se é um ex-banqueiro acusado de subornar os próceres do regime. Talvez por lá também apareçam figurões desse mesmo regime, com riqueza obtida à mesa do Orçamento do Estado e fruto do confisco dos demais portugueses.

    Mas, confesso, que não os vi; e também não vi Ricardo Salgado. Estará ele e os outros, por certo, em outras paragens paradisíacas.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.