Categoria: Opinião

  • Pobre democracia podre: a Administração Pública nos “tempos da borracha”

    Pobre democracia podre: a Administração Pública nos “tempos da borracha”


    Desde Abril, o PÁGINA UM, apresentou já nove processos de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões.

    Em paralelo, desde Janeiro, mais de uma dezena de pareceres foram elaborados pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), sob pedido do PÁGINA UM, devido à recusa de diversas entidades públicas em satisfazer pedidos para consulta de processos.

    clear glass bottles on white background

    Bem sei haver por aí entidades e pessoas – a começar por aquelas que regulam o sector da comunicação social e jornalistas – que tentam “vender” a ideia de que tantas demandas do PÁGINA UM – recorrendo agora, por sistema, aos tribunais – é sinal de uma postura “belicista”.

    Manobras de diversão. Areia para os olhos.

    O problema – verdadeiramente chocante numa democracia a caminho do meio século de existência – não é a (suposta) estratégia conflituosa do PÁGINA UM; é sim a postura de intransigente obscurantismo da Administração Pública.

    A borracha da IGAS passou por aqui…

    Qualquer jornalista que se preze, e detenha ainda memória e princípios, sabe ser normal uma certa renitência da Administração Pública em ceder dados sensíveis ou que permitam uma avaliação crítica ao seu desempenho.

    Não é bem a Administração Pública, que é um ente abstracto; são as pessoas que circunstancialmente a integram, zelosas dos seus (pequenos ou grandes) poderes, e que resistem a ingerências externas, sobretudo pelos jornalistas.

    Até um certo nível, isso é compreensível. Mas agora, nos tempos que correm, a resistência passou para um perfeito e absoluto bloqueio.

    Hoje, qualquer informação é considerada comprometedora, de acesso obstaculizado. Bases de dados públicas, antes disponíveis, são apagadas ou mutiladas. Tudo serve para não ceder. Ou porque é demasiada informação, ou porque o jornalista tem de justificar o fim da consulta dos documentos – como defende, hélas, o próprio Conselho Superior da Magistratura – ou porque os documentos contêm dados nominativos sob reserva.

    A interpretação abusiva – e se não fosse abusiva e grave, seria então apenas risível e patética – de até os simples nomes, incluindo de funcionários públicos no exercício de funções, deverem ser protegidos está, entretanto, a fazer “escola” dentro da Administração Pública.

    O princípio é falacioso: qualquer cidadão tem direito de privacidade; porém, também todo o cidadão tem direito a sindicar o que os outros cidadãos que exercem funções públicas andam a fazer no exercício dessas mesmas funções, incluindo a sua identificação.

    E porquê? Ora, porque, de contrário, a coberto do anonimato de uma suposta justa defesa da privacidade, um funcionário público, um dirigente da Administração Pública, um político (em última análise) jamais poderia ser identificado pelos demais. Todos os seus actos legais e ilegais ficariam no limbo, escondidos para todo o sempre.

    No limite do absurdo, não poderíamos sequer conhecer o nome do primeiro-ministro, o nome de qualquer ministro, o nome de qualquer secretário de Estado, o nome de um director-geral ou de um presidente de um instituto público, nem o nome de qualquer funcionário, donde jamais se conheceriam o que fizeram, de bem ou de mal. Tudo secreto, tudo obscuro.

    Dou aqui um exemplo paradigmático.

    … e por aqui…

    O PÁGINA UM solicitou à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) um conjunto de documentos relacionados com processos de fiscalização. A IGAS não os enviou numa primeira fase; não os cedeu de imediato após um parecer da CADA – e, portanto, o PÁGINA UM remeteu um pedido de intimação para o Tribunal Administrativo de Lisboa no passado dia 1 de Agosto, processo que está em curso.

    Ontem, recebi um telefonema da IGAS, informando que os documentos seriam enviados por e-mail. E foram. Só que têm um “problema”: tudo o que era nomes e mesmo funções foram literalmente apagados. Centenas ou milhares de páginas, de algumas dezenas de processos, foram expurgadas de elementos essenciais. Para não parecer tão mal, não se usou rasura a negro; foi a branco.

    Peguemos num exemplo: o Processo de Fiscalização 0020/2018-FIS teve como objecto a “verificação do cumprimento da legalidade dos procedimentos sobre a aplicação do regime jurídico das incompatibilidades”. O processo tem 154 páginas.

    Logo na primeira página consta um espaço sobre a Entidade.

    Qual? Não se sabe. Foi apagada pela borracha da IGAS.

    Segue-se o nome do instrutor/a.

    Quem foi? Não se sabe. Foi nome apagado pela borracha da IGAS.

    Houve um secretário/a?

    Talvez, mas aparentemente o nome também foi apagado pela borracha da IGAS.

    Vá lá: não apagaram a data da instauração do processo: 31-07-2018.

    Na página 2 consta a Ordem de Serviço nº 81/2018.

    Sobre qual entidade? Não se sabe. Foi apagada pela borracha da IGAS.

    Nome do chefe de equipa, dos dois inspectores e da inspectora-geral? Nada. Apagado.

    E assim se segue na página 3, com pelo menos quatro nomes apagados.

    … e por aqui… e por mais centenas e muitas mais centenas de páginas.

    Na página 4 terão sido apagados 10 nomes de entidades.

    E por aí fora.

    Por exemplo, na página 20 do processo, fica-se a saber que alguém cujo nome foi apagado enviou às 14:47 horas de 2 de Outubro de 2018 um e-mail para a Exma. Senhora Presidente do Conselho Directivo APAGADO a informar do adiamento de uma acção de fiscalização “por motivos ponderosos de última hora”.

    Nas páginas 25 e 26 são apagados todos os nomes dos membros dos júris de concursos de dispositivos médicos num hospital desconhecido porque também foi apagado pela borracha da IGAS.

    Chegam a ser listadas, neste processo, diversas declarações de inexistência de incompatibilidades. De quem? Não se sabe. A IGAS meteu-lhe borracha.

    Enfim, poupemos os leitores. Já basta. Não ficou nem um nome esquecido. Foi trabalho meticuloso. Moroso, acredito. Até porque em todas as outras dezenas de processos o modus operandi foi similar.

    Limparam tudo. Muito bem. E agora, de certeza, vai ainda a descarada IGAS “vender” ao Tribunal Administrativo de Lisboa que já deu a informação ao PÁGINA UM toda a informação, alegando assim uma “inutilidade superveniente da lide” para se furtarem da transparência. Mandaram sim uma montanha de vergonhosa inutilidade.

    Agora, já compreendem os leitores do PÁGINA UM a importância da intervenção dos tribunais para arejar a Democracia? Se não forem os juízes, esta nossa pobre Democracia apodrecerá.

    São eles, agora, os juízes, como foram os militares em 1974, que podem salvar-nos de um regime vicioso, que não merecemos. Ou merecemos, se continuarmos impavidamente a aceitar o que certos senhores nos querem fazer.


    N.D. Os leitores que desejem conhecer o exemplo aqui exposto, o Processo de Fiscalização 0020/2018-FIS, para conferir o aqui exposto, pode solicitar o seu envio para o e-mail geral@paginaum.pt. O ficheiro tem cerca de 91.544 KB.

  • Os juízes, as crianças e os diabos de Bosch

    Os juízes, as crianças e os diabos de Bosch


    Há juízes portugueses iguais aos diabos do pintor Hieronymus Bosch, e andam à solta nos Tribunais de Família.

    O caso do menino de oito anos que prefere morrer a ser internado num orfanato, por decisão de um juiz, é agora mais um exemplo.

    Esse juiz devia ser posto no olho-da-rua de imediato! Lá porque os pais do menino não se entendem, o juiz do Tribunal de Família de Maia… zás! espeta com a criança num orfanato?!

    O caso foi chapado há dias nos jornais. E é igual ao caso de Maria de Fronteira, uma menina de sete anos internada num lar evangélico apenas por se recusar a ver o pai – uma estúpida decisão do então juiz-estagiário Nuno Bravo Negrão. Dizia ele: para “ser reestruturada mentalmente”.

    Há 12 anos fiz esta reportagem de 30 minutos na RTP, no Linha da Frente: “Filha Roubada“. E desde então tenho sido um jornalista perseguido por este sistema que tem raízes no Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Onde pontuou o ex-juiz Armando Leandro e o ex-ministro Laborinho Lúcio.

    Voltarei a Tribunal dentro de dias. Agora porque o ex-juiz Armando Leandro se queixa da reportagem “Quanto Custa Criar“, onde diz, logo no início, que não é “um negócio”. Parecendo dar a entender que é.  Mas não é, eu ouvi!

    four children standing on dirt during daytime

    O ex-juiz disse o que quis. Mas vêm agora afirmar que… disse, mas não disse!

    E nem viu incompatibilidade em ser, em simultâneo, presidente da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJR do Estado para a retirada de menores)… e ser presidente da CrescerSer, uma instituição privada com oito lares de acolhimento fundada por juízes, onde Joana Marques Vidal esteve metida.

    O ex-juiz Armando Leandro tinha 70 anos e acumulou funções até aos 82 anos. É obra!

    A Segurança Social e os Tribunais de Família têm enfiado muitas crianças em lares. Mas a lei é clara sobre as medidas de proteção a aplicar (artigo 35 da Lei de Proteção de Menores em Risco) ao impor uma ordem de preferência.

    Ex-juiz Armando Leandro, em 2017, quando o programa Linha da Frente, da RTP, abordou os processos de institucionalização de menores.

    Primeiro, começa-se pelo apoio junto dos pais, depois passa-se ao apoio junto de familiares e, não sendo possível nenhuma destas medidas, segue a entrega do menor a pessoa idónea ou de confiança.

    E aqui vem uma pergunta muito incómoda: enfiam-se as crianças logo numa instituição de acolhimento, porquê?

    Bem, talvez o juiz do Tribunal de Família da Maia seja primo dos diabos de Hieronymus Bosch.

    Caramba, está atrasado 506 anos!

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Gente que sai à rua

    Gente que sai à rua


    Quando li a notícia de que os sindicatos da Função Pública iam exigir, para 2023, aumentos que acompanhassem a inflação, imaginei a reacção popular.

    Sabemos que há um certo atrito na opinião pública (e publicada) contra a Administração Pública. Começando nos professores, passando nos funcionários das diferentes repartições e terminando nas forças de segurança. Há, enfim, aquele velho estigma associado aos mandriões com bons salários e empregos para a vida.

    A realidade é ligeiramente diferente. Um emprego para a vida não sei se é algo assim tão fantástico; pessoalmente não conseguiria fazer a mesma coisa durante 40 anos. E os bons salários só mesmo se tivermos como bitola a miséria reinante em Portugal, onde quem recebe 1.000 euros por mês passa por classe média. 

    Entre nós, trabalhadores portugueses, escasseia a solidariedade.

    Queremos nivelar quase sempre por baixo. Se eu estou a dois passos da escravidão, a luta do meu vizinho deve ser inglória para que não me sinta tão mal.

    A intenção dos sindicatos peca por humilde, mas, ainda assim, está condenada ao fracasso.

    Com a inflação a chegar aos dois dígitos, seria necessário um milagre na Concertação Social para o Governo ceder a tal valor.

    Contudo, esta é a parte engraçada da história: mesmo que cedesse, ainda assim seria um mau negócio para a Administração Pública.

    10 and 20 banknotes on concrete surface

    Para quem tem as carreiras congeladas há mais de 10 anos, e que, consequentemente, já perdeu muito poder de compra, um acerto com a inflação deste ano não compensa tudo o que foi perdido. Pior, deixa-os a pagar, quase sozinhos, por crises que não provocaram e guerras que não escolheram.

    De todas as facções discordantes na discussão dos aumentos, a minha preferida é a da ala liberal, que exige que estes estejam indexados à produtividade. É uma narrativa antiga e recorrente do patronato para adiar, para a calendas, qualquer hipótese de aumento digno para os trabalhadores de base.

    Note-se que estas exigências raramente apanham gestores, políticos ou directores – a faixa de onde, por mais galopante que seja a inflação ou por mais crises que o FMI nos traga, se conseguem sempre dividir prémios de gestão. Pensem também nos subsídios dos deputados que nunca sofrem ajustes, ou nos gestores do BES que dividiam lucros pelos accionistas quando a arraia-miúda os sustentava com impostos.

    A história da produtividade é uma falácia. Quem a mede, quem a quantifica e quem faz a sua relação para o valor acrescentado do que se produz?

    Lembrei-me assim de repente de uma empresa dinamarquesa, um dos líderes mundiais na produção de eólicas, que instalou um centro de engenharia ali para os lados de Matosinhos.

    pen om paper

    Pelo mesmo trabalho feito, e a mesmíssima produtividade, pagam a um engenheiro português cerca de 25% do que pagam a um dinamarquês, nos escritórios de Copenhaga. Portanto, quem paga tenta fazê-lo com trocos de forma a aumentar os lucros e, dentro e fora de portas, o nosso país não se livra do selo de mão de obra competente e barata.

    É por isso que tudo o que não seja um aumento digno, a cada ano que passa, é uma falácia. O dinheiro existe, a produção também. A divisão é que é feita de forma diferente. E o lucro, hoje e sempre, construído em cima de baixos salários.

    Se os argumentos da produtividade na discussão salarial já era uma história da carochinha no mundo pré-covid e pré-Ucrânia, hoje então passou a ser um episódio de Narnia.

    Com uma crise totalmente criada pelos decisores mundiais, seja de quem invade ou de quem decide apoiar esforços de guerra, com sanções que provocaram escassez na oferta e aumentos de preços… faz algum sentido castigar quem trabalha e depende do seu salário, exigindo-lhe que perca poder de compra?

    Ou, no caso dos funcionários públicos, uma década depois, que CONTINUEM a perder poder de compra, mas agora em doses maiores?

    close-up photo of assorted coins

    É aqui que devemos parar para pensar no que está a acontecer no Reino Unido. Um país rico onde o primeiro-ministro, antes de ser corrido, anunciou que dinheiro e armas não faltariam para a Ucrânia. E a Suécia também, caso o Putin se aborrecesse da embrulhada em que está.

    Curiosamente, enquanto procurava o seu lugar triste na história, Boris Johnson não teve tempo de reparar que as sanções estavam a empobrecer o povo inglês que, como se sabe, não está habituado a ser pobre. Uma coisa é ser português, espanhol ou grego na União Europeia – já estamos habituados a viver com migalhas. Outra coisa é ser-se inglês e perceber que, de repente, o dinheiro já não chega para três rondas no pub e umas voltas pelo Algarve.

    De modo que resolveram parar.

    O Reino Unido enfrenta hoje, por causa da inflação causada pelas sanções à Rússia, as piores greves dos últimos 30 anos. Caminhos-de-ferro, portos, transportes em geral. O país paralisou e não mexe por menos do que um aumento que acompanhe a inflação. O mesmo que a nossa Função Pública pede, embora se aguardem resultados diferentes.

    A força dos trabalhadores é perfeitamente demonstrada nestes movimentos solidários. Só os decisores podem escolher guerras, canalizar dinheiro ou aumentar taxas. Mas não são os únicos que conseguem criar movimentos de bloqueio.

    crowd of people standing outdoors

    Da mesma forma que escolheram bloquear economicamente a Rússia, deixando os seus povos à mercê da escassez da oferta e subida de preços, ficaram também dependentes das reacções dos trabalhadores que, entre pagar a solidariedade com outro povo, ou sustentar a sua família, optam pela segunda. 

    E isto não quer dizer que quem luta pelos seus direitos não queira ver o invasor fora da Ucrânia. Só não quer é ter que pagar ou empobrecer por isso. É aborrecido, mas é a lei humana. Quem decide, pede esforços, mas não os pratica.

    Acabamos sempre no velho e bafiento carrossel em que as elites nos dizem como devemos sofrer, continuando os seus dias na serenidade de quem não abala com os dramas do Mundo. De vez em quando, os trabalhadores juntam-se, e dizem já chega. Não há movimento mais belo do que esse. A força de quem trabalha nas ruas. A força de quem realmente constrói um país na luta por uma vida melhor.

    Que pena vermos esses movimentos, nós portugueses, quase sempre pela televisão, e tardarmos em perceber que, lá como cá, quem manda é quem trabalha.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Cuidado com a ideologia

    Cuidado com a ideologia


    As bandeiras de hoje são a banalização do aborto – a prevenção é que devia ser a política –; a eutanásia – o envelhecimento saudável é que deve ser a alternativa –; o ambientalismo radical – a defesa de uma alimentação com mais plantas e menos carne e peixe é que é o caminho –; a política de género nas escolas – a baralhar crianças e a desconstruir as prioridades. Enquanto isso, temos o excesso de entretenimento para docilizar as gerações que assim vão dependendo dum Estado que “trata”, que “protege”, mas evita prevenir, reduzir, corrigir os erros, porque esta é a estratégia do negócio!

    As bandeiras cegam a racionalidade e obnubilam as decisões e o pensamento. Querem uma medicina totalmente vinculada a linhas de orientação e protocolos.

    woman in black tank top sitting on concrete floor

    Isto viola um dos pés da equação – a individualidade, a particularidade. Concordo com que a exposição frequente melhora a performance, mas nem toda a medicina é massificável.

    O aborto é um mau acontecimento e não deve ser uma bandeira. Deve estar disponível como solução, mas sempre em desfavor da prevenção. As mulheres devem exigir a contracepção masculina e têm ao dispor de modo livre e gratuito mecanismo de contracepção feminina.

    A eutanásia deve estar disponível, mas não pode ser a bandeira. Os princípios e as clamações devem ser por coisas positivas e boas. Devemos lutar por energias menos poluentes, mas não podemos dar passos vigaristas como o encerrar das centrais de carvão e acreditar que as eólicas só têm virtudes. Não podemos achar normal as barragens portuguesas estarem nas mãos de franceses ou chineses.

    As bandeiras estão a cegar a ideologia porque se tornaram fúteis e simplistas.

    Os portugueses sabem pouco sobre as realidades que depois se exibem. Somos o país com menos crimes da Europa e dos que mais presos tem per capita. Somos o país que mais pede detenções e prende indefinidamente em preventiva por perigo de fuga.

    flags on green grass field near brown concrete building during daytime

    Não acredito que Vieira quisesse fugir, e Sócrates veio ter com o Ministério Público pelo que nunca estaria em fuga. O problema desta formatação acrítica é que os cidadãos esquecem que a Justiça é para todos, e, portanto, o que se faz mal ao Bernardo Santos Sócrates é o mesmo que nos podem fazer a nós em circunstâncias improváveis amanhã.

    A sociedade dos canais temáticos, das aplicações com algoritmos de viciação, da construção de não-assuntos que sobem à ribalta da informação, a força da rede social como canal de apagamento do jornalismo, afoga-nos em sofás com televisões defronte. Como tontos levantamos a bandeira e o dedo da indignação sem cuidar de nos informar.

    Os fogos trazem a prevenção que não é negócio, por parente pobre do tratamento que é uma mina de ouro. Há lucros secundários no arder e, por isso, houve políticas que conduziram à desertificação, ao abandono da pastorícia, à delapidação da agricultura portuguesa.

    Se estiverem atentos verão o que se passa na Holanda onde os agricultores explodem de raiva e se manifestam, sem qualquer referência nos nossos canais monopartidários.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • Globalismo: a nova tirania

    Globalismo: a nova tirania


    A revolução luterana de há 500 anos não trouxe apenas o Estado Absoluto, também demoliu a visão comum que mantinha a sociedade unida. Cada indivíduo era agora capaz de interpretar as Sagradas Escrituras, em lugar de um intermediário que passava anos a estudar, enquadrada por uma instituição milenar. Cada um tinha agora uma opinião sobre a sociedade: a ideologia.  

    Eu não me adapto à realidade, onde existem fraquezas humanas, como o vício do jogo, a miséria moral ou a assimetria de informação – por exemplo, a relação entre um médico e um paciente, onde nem sempre o segundo questiona sobre os medicamentos receitados pelo primeiro –, a realidade é que tem de adaptar-se à minha visão sobre a sociedade.  

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    Tudo isto foi ajudado por uma revolução no pensamento. Tivemos Descartes que afirmou: “tudo que vemos, sentimos, tocamos, pode ser fruto de nossa imaginação, não existindo realmente. Apenas o pensamento tem força e prova de verdade”. Aquilo que está dentro da cabeça do homem é de alguma forma mais verdadeiro do que a sua percepção da realidade.  

    Um século depois, Kant reforçou a revolução mental original de Descartes, afirmando que, embora não possamos ter certeza se temos dois braços, ou se é frio ou quente, escuro ou ensolarado fora de nossa mente, a Razão é universal; isto é, se as pessoas pensarem bastante em qualquer coisa, chegarão às mesmas conclusões. As ideias tornaram-se mais verdadeiras do que a vida real. A era das ideologias tinha começado.  

    As ideologias são por natureza projectos universais. Todos os homens devem ter uma igual condição económica (Marx); Os melhores devem governar as massas (tecnocracia). Apenas há lugar na sociedade para determinadas raças (Nacional Socialismo); A sociedade deve abandonar os carros (Globalismo); Não há lugar na nossa sociedade para não vacinados (Covidismo). 

    Todos os homens têm o seu lugar na sociedade e têm que chegar lá para que as coisas funcionem tal como prescrito pela realidade ideológica, mesmo que o “lugar apropriado” de algumas pessoas seja o Gulag, Auschwitz ou mesmo um campo de “concentração para não vacinados na Austrália”.  

    Pode parecer que a revolução individualista foi desfeita pela chegada do pensamento ideológico universalizante; a visão de mundo comum que orientou a nossa civilização foi abalada pelo individualismo da primeira Modernidade, apenas para ser substituída por um novo universalismo ideológico.  

    Para São Tomás de Aquino, a bondade é a verdade, e a verdade significa que o que está dentro das nossas cabeças (ideias, noções, percepções) coincide com o que está fora (a própria realidade). Para qualquer ideólogo é o contrário: a “bondade” é ter a própria realidade de acordo com o que está dentro da cabeça, a ideologia que ele adopta.  

    Em lugar de testar sua percepção contra a realidade, os ideólogos julgam a realidade contra a sua ideologia, “mais verdadeira que a própria realidade”. Ao lidar com qualquer fenómeno social, partem sempre das premissas da sua ideologia.  

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    Todas as ciências foram tocadas pela ideologia, até a Economia. Tivemos Keynes, um estatístico que inventou a macroeconomia, inaugurando a gestão de agregados – o consumo agregado, a despesa agregada, o investimento agregado – e retirando a acção humana individual da equação. Todas as mentiras e dissonâncias são possíveis, facilitando a propaganda de Estado e abrindo caminho a uma enorme burocracia encarregue de forçar a ideologia sobre a sociedade. 

    Os bancos centrais emitem dinheiro para estimular a economia. Um indivíduo falsifica dinheiro. Os primeiros actuam em nome do bem, da ideologia. O segundo tem como destino o calabouço. 

    Os bancos centrais compram obrigações soberanas para reduzir os encargos com juros dos governos, provocando a redução dos juros e a subida do preço dessas obrigações. Como tem informação privilegiada, um indivíduo compra acções da empresa XYZ, dado que tem conhecimento de uma iminente subida do seu preço em bolsa. Os primeiros estão a ajudar o governo a realizar um estímulo fiscal. O segundo está a manipular preços, devendo ser detido pela prática de “inside trading”. 

    O Estado encerra um restaurante em nome do combate a uma pandemia com uma taxa de sobrevivência de 99%, está a evitar a “morte de milhões”. O segundo deverá ir à ruína e esperar em casa por uma esmola, se alguma vez chegar. 

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    O principal problema do pensamento ideológico é que ele é literalmente a adoração de uma fantasia. As fantasias são coisas que não existem no mundo real, apenas existem dentro das nossas mentes; acreditar no que está dentro da cabeça ao invés de sentidos mentirosos é o ponto de partida do pensamento ideológico.  

    O seu segundo problema é que as ideologias não permitem o elemento mais essencial na sociedade humana, a natureza humana. Se lermos uma história escrita há centenas ou milhares de anos, veremos os homens a agir tal como agem hoje, sofrendo pelas mesmas causas, buscando os mesmos prazeres, caindo nas mesmas tentações – o vício do jogo, por exemplo – e assim por diante. O homem não muda e, embora cada homem seja diferente de todos os outros, em certo nível todos os homens são iguais. 

    Aos estarmos cegos para a natureza humana, os ideólogos sempre caem na mesma armadilha universalizante. Eles podem ser ideólogos de visão única, como neoliberais ou comunistas, ou podem acreditar que os não vacinados são seres inferiores, que merecem ser ostracizados pela sociedade; no final, todos eles tratam toda ou pelo menos grandes áreas da Humanidade como se todos os homens fossem clones do que eles vêem no espelho. 

    Eles estão sempre optimistas sobre como as pessoas se vão comportar, eles sempre assumem que todos querem e valorizam exactamente as mesmas coisas que eles.  

    woman in black and white tank top leaning on wall

    Regra geral, estes “loucos” necessitam da violência de Estado para imporem a sua versão da realidade aos demais. Ou detêm poder efectivo sobre o Estado ou conseguem influenciar quem o detém.  

    Estamos agora na etapa final da revolução protestante: uma ideologia global imposta sobre toda a humanidade, imposta através de instituições globais, como a OMS e os Bancos Centrais. Os “loucos” não se importam com a realidade, afinal apenas querem o nosso bem, até dizem: “Não terás nada e serás feliz!” 

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • A solidão

    A solidão


    Continuamos sem saber porque morrem, porque razão estão a morrer tantos portugueses nos últimos meses. Mas há uma certeza: muitos lisboetas morrem sozinhos.

    Há anos, Santana Lopes era provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e disse-me numa entrevista: “em Lisboa, vive-se e morre-se sozinho”. Em casa ou no lar, acrescentamos.

    Quem passa pelas ruas de Lisboa, ao anoitecer, não vê luzes acesas. E só vê gente idosa à janela… gente sozinha.

    Da sociedade inebriada com o 25 de Abril de 1974, chegámos aqui: temos uma das maiores taxas de divórcio da Europa – a razão divórcios/casamentos não para de crescer – e habitamos em casas de cidades semeadas ao vento.

    Na Grande Lisboa, temos uma mancha urbana que vai de Cascais a Vila Franca, de Bucelas a Palmela, mas apenas com 2,8 milhões de habitantes. Muitos sozinhos. Incomparavelmente maior que a mancha urbana de Barcelona com 3,3 milhões de habitantes. Basta ir ao Google Earth e ver o céu à noite na Península Ibérica.

    Não aproveitámos os Descobrimentos, desbaratámos o ouro do Brasil, queimámos as notas do volfrâmio, espatifámos os fundos sociais europeus e iremos estourar a bazuca dos 15 mil milhões de euros.

    As nossas casas não deviam ter sofás, só cadeiras. Para não ficarmos colados. Para sairmos à rua e falarmos, como os povos da Espanha… porque é a falar que nos entendemos. E podemos ser felizes.

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Não por ser mulher, mas por ser boa

    Não por ser mulher, mas por ser boa


    Posso sentir-me tentado a afirmar que as crianças de hoje vivem num mundo mais justo. Um mundo onde as oportunidades tendem a ser igualmente distribuídas e desprovidas de preconceitos. Porém, esta afirmação exige uma leitura atenta, esclarecida, porque tende a ser verdade em poucas partes do planeta. Infelizmente.

    Acredito que a simpatia, e a atenção, que tenho merecido por parte de quem lê, é sem dúvida um reflexo do profundo respeito que tenho por quem me lê – mas também pela Humanidade. Leio os comentários, as opiniões, os contributos… é justo que gaste tempo a fazê-lo. Estou grato.

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    Sublinho que não escrevo para ganhar prémios ou para agradar a uma classe, muito menos almejo qualquer retribuição que não seja a edificação de um mundo mais iluminado, mais esclarecido e assim mais tolerante. Por isso, no que toca a direitos e deveres defendo a igualdade.

    Defender a igualdade não significa o esvaziamento ou a redução da pessoa à ideia plástica de que somos todos iguais – até porque a ideia de igualdade não se esgota na tentativa de reduzir os elementos de possível comparação à ausência de diferenças. Igualdade é indiscutivelmente muito mais do que isso.

    Assusta-me que alguns oportunistas sobrevivam ao lado da defesa dos direitos humanos.

    Aterroriza-me que haja quem ouse evocar a questão da igualdade para alcançar aquilo que por mérito não alcançou.

    Chega a ser contraditório. Passo a explicar.

    woman holding white mug while standing

    Recentemente, ouvi uma mulher defender a sua candidatura para um determinado lugar de liderança, justificando-se com o facto de ser mulher: “Chegou a hora de ser uma mulher a tomar a dianteira” – afirmou, impiedosa.

    Não. Não chegou.

    Chegou, sim, o momento de os bons tomarem a dianteira – homens ou mulheres. O desejo mais oportuno é pelo tempo dos bons, dos competentes.

    Então, sendo intrinsecamente boa, que nenhuma mulher seja impedida de ocupar um lugar de liderança. Aqui reside, sem dúvida, o direito à igualdade.

    Na mente daqueles que, em primeiro lugar, desejaram a igualdade, estava implícita a diferença entre os estratos sociais – o título, o apelido, o estatuto social – que marcavam as oportunidades de cada um.

    woman sitting in front of desk with computer monitor and keyboard on top

    Somos todos diferentes, sempre fomos. Uns são melhores do que os outros – e isso é assustador. Ora quando ficamos assustados, jogamos ao ataque, destruímos, assumimos o preconceito e esquecemos o quanto é bom sermos todos diferentes.

    Aliás, talvez seja essa uma das grandes oportunidades de não sermos confundidos, pois quando dizemos que alguém marcou a diferença, fazemo-lo no intuito de distinguir o que é positivo. Por isso, parece oportuno mudar o discurso na forma e no conteúdo para que cada mulher possa, de facto, ser diferente e destacar-se pela diferença.

    Chegará o dia em que a luta será pelo direito à diferença – até lá viva a igualdade. Mesmo sabendo que uns serão sempre mais iguais do que outros.

  • Reuters, Roche & Público: a mulher de César que não parece séria, e talvez não seja

    Reuters, Roche & Público: a mulher de César que não parece séria, e talvez não seja


    Regresso ao tema. O Jornalismo não é credível apenas porque grita que é sério e independente. Tem de mostrar, demonstrar, estar acima de qualquer suspeita. Significa isto que, no quotidiano, quando um leitor folheia um jornal, um ouvinte sintoniza o noticiário, um telespectador se senta perante um telejornal, ou um internauta passa os olhos pelo ecrã, não pode jamais desconfiar dos propósitos (directos e indirectos) de um artigo noticioso.

    Aliás, para começar, as pessoas não podem sequer ter a mínima dúvida de que uma notícia feita por um jornalista seja mais do que uma notícia feita por um jornalista.

    Só que começaram. E têm motivos para que a “mínima dúvida” se transmute em “mínima certeza”.

    two people shaking hands

    Para mal dos pecados do Jornalismo, tenho andado cada vez mais a desconfiar do Jornalismo. Não há mal nenhum na desconfiança. Na verdade, é uma das maiores virtudes de um jornalista: olhar para a verdade que se (nos) apresenta(m) e colocar sempre a hipótese de não ser a realidade. Bem sei que um jornalista que coloca dúvidas, que exige comprovativos, que necessita de olhar para os dados em bruto não seja muito popular. Mas, mesmo assim tem de desconfiar.

    Porém, o meu “drama” não é duvidar: é confirmar que tinha motivos para desconfiar, e ainda bem que desconfiei. Lamentavelmente, desconfiar de jornalistas e acertar na desconfiança é péssimo para o Jornalismo.

    Ora, vem isto a propósito de uma notícia publicada no Público na quarta-feira passada intitulada “Porque se tem detectado poliomielite em Londres, Nova Iorque e Jerusalém? E quão perigosa é?”. A notícia destaca os 230 casos de poliomielite no Mundo, explicando as causas e a relevância da vacina.

    Ponto prévio: não há qualquer dúvida, nos dias que correm, que a vacina contra a poliomielite – uma doença incapacitante e letal em crianças, considerada um horror até há meio século – tem contribuído decididamente para a erradicação do vírus, que está quase.

    Notícia do Público não informa os leitores em que circunstâncias o artigo original da Reuters foi produzido.

    Sendo eu um adepto da vacinação em sentido genérico, tal como sou de todos os outros medicamentos, acabo agora sempre a desconfiar dos timings de certas notícias sobre vacinas (já perfeitamente estabilizadas quanto ao perfil de eficácia e de segurança) e das suas encapotadas motivações.

    É certo que a notícia publicada pelo Público sobre a poliomielite está genericamente bem construída, didáctica, rigorosa.

    Mas, tendo já reparado que nas últimas semanas se tem noticiado várias vezes supostos surtos de poliomielite (2.300 casos a nível mundial, o que não é nada), começa sempre a parecer-me que querem vestir o “hábito” de vacinas bem-sucedidas a todas as outras.

    Aliás, todos nós sabemos que o marketing político e das farmacêuticas (arrigementando “peritos”) procurou, ao longo da pandemia, usar a boa fama de outras vacinas – com décadas e décadas de existência, na maior parte dos casos – para a colar às vacinas contra a covid-19, sobre as quais cada vez surgem mais dúvidas relativamente à eficácia e aos efeitos secundários [esconder a informação, como faz o Infarmed em Portugal, convenhamos, não ajuda].

    E, por isso mesmo, quando li a notícia no Público – e a referência à Reuters –, desconfiei. E fui à procura da notícia original daquela agência noticiosa.

    E voilà: o artigo original da Reuters (copiado pelo Público) não é uma notícia “tradicional”; é um conteúdo explicitamente patrocinado [Sponsored] pela farmacêutica Roche.

    É certo que a Roche nem produz vacinas contra a poliomielite. As farmacêuticas que a produzem são a Sanofi Pasteur, a GlaxoSmithKline, a Bilthoven Biologicals e o Staten Serum Institute. É também certo que no artigo patrocinado na Reuters surge o seguinte aviso: “Sponsors are not involved in the creation of this or any other Reuters news articles”.

    Mas é isto música para os ouvidos: temos aqui a mulher de César a gritar que é séria para evitar que a acusem, pelo seu patente comportamento, que não é séria.

    Caramba!, custa-me a entender por que tem a Roche ou outra qualquer farmacêutica ou outra qualquer empresa de outro qualquer ramo de actividade a necessidade de sponsorizar jornalismo, e depois garantir que jamais influencia, jamais mete um dedo sequer em nada do que seja a linha editorial de um órgão de comunicação social.

    Não lhes bastaria fazer anúncios separados claramente das notícias? Como antigamente?

    Porque têm agora as marcas cada vez maior necessidade de estarem associadas a notícias? Exigem que tal seja feito.

    E qual o motivo de os órgãos de comunicação aceitarem as “novas regras” em que os anunciantes passaram a ser patrocinadores de jornalistas?

    Ninguém entende o perigo para a credibilidade disto para os órgãos de comunicação social?

    Ninguém quer perceber como, de forma, subliminar (ou até explícita) funcionará a prazo este tipo de sponsorizações para a liberdade editorial dos órgãos de comunicação social?

    Ninguém percebe o risco para a independência real e percepcionada dos jornalistas por parte dos cidadãos?

    black and silver stethoscope on brown wooden table

    E como se explica que um artigo da Reuters patrocinado por uma farmacêutica possa viralizar em outros órgãos de comunicação social “transformando-se” num artigo noticioso banal? O Público não sabia que estava a publicar um artigo sponsorizado? Sabia, mas optou por não avisar os seus leitores?

    Não está aqui, repito, o caso concreto do conteúdo deste artigo (poliomielite) patrocinado pela Roche à Reuters, e que acaba como notícia normal no Público, mas sim o actual modus operandi da feitura de muitas notícias sem que os consumidores de notícias se apercebam.

    A dependência económica do Jornalismo perante os seus anunciantes – agora patrocinadores – está a dar cabo da sua credibilidade e independência. E isto, no futuro, não será bom nem para o Jornalismo nem para as empresas.

    Se todos, na imprensa mainstream, continuarem a assobiar para o ar e a bater no peito clamando serem muito independentes, a confiança dos cidadãos continuará a ser minada. E atingirá um nível tão elevado que, um dia, pouco valerá à mulher de César gritar e esbracejar que é séria e que parece séria. Ninguém já nela acreditará, porque, no passado, não pareceu séria, e talvez não tivesse mesmo sido.

  • Um ‘requiem’ pelo jornalismo de investigação?

    Um ‘requiem’ pelo jornalismo de investigação?


    As caras da grande investigação jornalística estão a desaparecer dos grandes ecrãs. A última foi Sandra Felgueiras, que esta semana assina uma muito ilustrativa capa da revista Sábado.

    Em boa verdade, a grande investigação passou agora para os on-line, de que é exemplo o PÁGINA UM. Aderi há pouco, e orgulho-me de ver tamanha resiliência.

    A jornalista Sandra Felgueiras era o rosto televisivo de um último programa de grande impacto, o Sexta às 9. Emigrou descontente da grande terra da liberdade (que ainda é a RTP) para o grupo Cofina – que tem hoje o Correio da Manhã, fundado a 19 março de 1979 por um grupo de 15 jornalistas de que fiz parte.

    Sandra Felgueiras

    Vínhamos de A Luta comandada por Raul Rego e Vítor Direito, contra a asfixia da Imprensa imposta pelo PREC – Processo Revolucionário em Curso. Vítor Direito estivera no Diário de Lisboa (DL) e depois na República e de seguida em A Luta. Era um mago do jornalismo.

    Um dia surpreendeu-me, tristemente, quando não quis reeditar o suplemento literário “A Mosca” do DL, porque era “dar pérolas a porcos” (sic). Ou quando, em Dezembro de 1980, não quis publicar a minha longa entrevista ao dissidente Altino Dias de Oliveira, onde ele denunciava o grupo terrorista PRP-BR de Carlos Antunes e Isabel do Carmo a roubar bancos, sem saber onde ia parar o dinheiro, e a planear o 25 de novembro. O Expresso agarrou e encheu a sua Revista.

    Outros tempos.

    printing machine

    Agora, já desapareceu Felícia Cabrita, Ana Leal e aconteceu parcialmente com Alexandre Borges. Para citar três casos de jornalistas recentes e mediáticos. Mas não esqueçamos José Barata-Feyo [actual provedor do leitor do Público] ou a já falecida Margarida Marante, entre muitos.

    O jornalismo de investigação necessita de leitores e espectadores interessados. Infelizmente, lê-se pouco, jantamos a olhar para as TV’s. E por isso a Imprensa perde financiamento independente.

    Um dia destes ficamos a falar com a parede… do muro que está a cercar a nossa Democracia.

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Jogo sujo: uma queixa-crime da Ordem dos Médicos, um joguete de Guimarães, Froes & Ca. Lda.

    Jogo sujo: uma queixa-crime da Ordem dos Médicos, um joguete de Guimarães, Froes & Ca. Lda.


    A Ordem dos Médicos é uma associação profissional com um activo de mais de 58 milhões de euros, receitas anuais que rondam os 12 milhões de euros e acabou 2021 com um lucro de 2,4 milhões. É um Golias, presidida, conjuntural e efemeramente, pelo urologista Miguel Guimarães.

    Ora, esta associação profissional, está neste momento em litígio no Tribunal Administrativo de Lisboa com o director do PÁGINA UM – jornal digital com um capital social de 10 mil euros e um orçamento mensal de poucos milhares de euros –, por causa do acesso a pareceres técnicos que o bastonário Miguel Guimarães insiste em esconder (já ganho em primeira instância), e à contabilidade de uma campanha de angariação de fundos mal-escrutinada em redor da pandemia.

    O PÁGINA UM é, assim, um David – que tem como “funda” os seus leitores.

    Ana Paula Martins, antiga bastonária da Ordem dos Farmacêuticos (que trabalha agora para a Gilead), e Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos (na entrega dos Prémios Almofariz 2020), recusaram acesso a documentos administrativos de campanha milionária

    Apesar dessa diferença de escala financeira, o PÁGINA UM – e particularmente eu – tem incomodado alguns senhores doutores que, desde 2020, foram cirandando pelos corredores do poder, dos hospitais e da imprensa, vendendo alegadas “opiniões independentes”, enquanto também se “vendiam” (ou vendiam os seus conhecimentos) às farmacêuticas e ao Governo.

    O PÁGINA UM nasceu para ser um jornal independente e fazer jornalismo de âmbito nacional e genérico. Mas não esquece parte da sua motivação inicial. Durante dois anos, muitos calaram-se ou foram calados. Agora, com a acutilância de um jornalismo isento e sem cedências, queremos respostas, saber o que os mobilizou, saber como foram “alimentando” uma narrativa, conhecer os motivos para terem sido tão lestos a criar pânico e tão lentos a reivindicarem soluções para os verdadeiros problemas de Saúde Pública do país.

    O PÁGINA UM não quer que se repita 2020 e 2021. Não quer que 2022 seja um sucedâneo, nem que o futuro confirme a perda de direitos e o crescimento do obscurantismo e falta de transparência. Por isso, fazemos este tipo de jornalismo, que vai até às últimas consequências legais.

    Até ao Tribunal Administrativo.

    Mas jogamos de forma limpa e com ética. Para fomentar a transparência não é necessário criar inimigos; mas não nos importamos de os ter se para tal for necessário. E consideramos que os tribunais são o palco para dirimir as questões, mas usando “armas” limpas.

    Surge este editorial porque, enfim, no meio da sua defesa num dos processos administrativos envolvendo a Ordem dos Médicos (e também a Ordem dos Farmacêuticos) – o acesso aos documentos da campanha Todos por Quem Cuida –, ficámos ontem a saber que foram “depositadas”, como argumento (chamemos assim) da dita Ordem dos Médicos, 42 páginas de uma suposta queixa-crime por difamação contra mim.

    Esta alegada queixa-crime terá sido apresentada no DIAP em 16 de Fevereiro passado, tendo como queixosos a própria Ordem dos Médicos, o bastonário Miguel Guimarães, o pediatra Luís Varandas e o pneumologista Filipe Froes.

    [Filipe Froes ser um queixoso é piada que se faz sozinha]

    Note-se: até ontem, esta queixa era completamente desconhecida tanto por mim como pelo meu advogado.

    Nunca fui notificado para prestar declarações.

    Não sou arguido.

    António Guterres depôs em campanha que a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos insistem em esconder de escrutínio.

    Pela leitura do arrazoado, aquela queixa tem, num país democrático que (espero) preza a liberdade de expressão, tem tantas pernas para andar como as de um caracol.

    Mas, perguntem-me: que faz uma queixa-crime num processo administrativo?

    Nada. Juridicamente, não serve para nada. Deve ser desentranhado. Nunca sequer deveria apresentado.

    Porém, o senhor urologista Miguel Guimarães decidiu que aquilo era uma boa “arma” para tentar convencer uma juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa a não conceder-me o direito de escrutinar as contas e as operações de uma campanha de angariação de fundos de 1,4 milhões de euros, rodeada de muitos secretismos.

    Foi jogo sujo, simples e lamentável.

    Não vou aqui sequer explanar sobre esta queixa-crime em concreto que, aparentemente, sobre mim pende – patrocinada pelas quotas da mais de meia centena de milhar de médicos do país.

    Até porque ainda acho que, num país decente e que preza a liberdade de expressão (ainda mais quando se questionam aspectos éticos e de promiscuidade com farmacêuticas, suportados em dados da Plataforma da Transparência e Publicidade do Infarmed), esta queixa-crime tem menos pernas para andar do que as de um caracol.

    Mas devo lamentar, e de forma veemente, este jogo sujo do bastonário, porque esta queixa quis servir um único propósito: influenciar uma juíza através de uma “manobra de diversão”, colocando a Ordem dos Médicos (e médicos) como “vítimas” de um alegado difamador.

    Mas isto também mostra um sinal de aflição da Ordem dos Médicos.

    Para Miguel Guimarães já vale tudo para influenciar a decisão num processo administrativo, onde apenas está em causa a aplicação da lei e de direitos de cidadãos.

    woman holding pistol

    Qual é afinal o temor de Miguel Guimarães?

    Teme a transparência?

    Teme que esta juíza lhe conceda uma segunda derrota na primeira instância do Tribunal Administrativo, obrigando-o a divulgar como foi feita a gestão de 1,4 milhões de euros de uma campanha de angariação de fundos?

    Teme que não consiga silenciar um jornalista como conseguiu silenciar muitos médicos com processos disciplinares?

    Quem é este senhor, afinal, que assume a Ordem dos Médicos como seu feudo, para seu uso e dos apaniguados?

    Em que página da História querem os médicos que fique os mandatos do senhor Miguel Guimarães? E a democracia, em que sítio o que colocar?


    N.D. Sejamos, porém, pragmáticos, o PÁGINA UM está consciente do risco de vir a sofrer de SLAPP – acrónimo, que faz lembrar estalo (slap), para Strategic Lawsuit Against Public Participation. A denúncia destes casos, ainda mais quando está em causa um projecto de jornalismo completamente independente, mostra-se fundamental. Embora com meios incomensuravelmente menores, o PÁGINA UM não vergará na sua luta em prol da transparência e do acesso à informação. No caso dos processos judiciais, os apoios podem ser concedidos ao FUNDO JURÍDICO. Para o apoio ao trabalho jornalístico, podem apoiar através de várias modalidades.