Categoria: Opinião

  • O best-seller: o popular e o kitsch do objecto literário

    O best-seller: o popular e o kitsch do objecto literário


    A questão é incómoda e só com algum atrevimento nos é possível abordar a escandalosa coincidência, no plano do consumo, de, por exemplo, um romance de Morris West, Jacqueline Susan ou Leon Uris com o Ulysses de Joyce; contudo, a abordagem do best-seller, a menos que se entrincheire no diminuto reduto das certezas da arte literária para atingir com a suspeita a qualidade duvidosa dos não eleitos, tem de passar antes de mais pela constatação de um fenómeno: há livros que, por obra de uma publicidade mais ou menos deliberada, do activar engenhoso dos interesses informativos do público, atingem uma dimensão de venda que os tornam notáveis, mais do que outros que fazem parte da cultura mas que ficam esquecidos como objectos imediatos de leitura ou, pelo menos, de compra.

    Em consequência disso, e de se indicar o seu alto índice de compra, tornam-se ainda mais vendidos, transformando-se numa referência que, num determinado momento, se tornam uma espécie de moda. Tais fenómenos de mercado são chamados, numa designação que ultrapassa as barreiras da teoria literária, da genologia e da análise morfológica, best-sellers.

    Ulisses, de James Joyce, um clássico publicado originalmente em 1922 em Paris. Um exemplar da primeira edição pode valer cerca de 20 mil eiuros no mercado.

    Tanto quanto a memória nos diz, esse termo data de meados do século XX, proveniente do mercado livreiro americano, e aparece como uma informação de claros propósitos persuasivos, tendente a criar uma frase exortativa do tipo “toda a gente já leu – porque é que você não faz o mesmo?”

    Não pretendendo ser esse o nosso objectivo, aqui, não podemos deixar de pensar que seria bem interessante determinar o facto com verdadeiro rigor ou seja, o momento em que a expressão deixa de ter funções adjectivas, para se torna uma designação substantiva, um conceito com valor quase genológico.

    Resignando-nos com a falta de uma investigação satisfatória sobre o esclarecimento de tal matéria, o que nos resta fazer, de momento, é lançar algumas conjecturas e apreciações sobre mecanismo de selecção accionado, partindo dos elementos do mecanismo com os quais temos contacto mais directo.

    O primeiro elemento desse mecanismo de activação de interesse, venda e leitura, cuja existência postulamos, assemelha-se à formulação entimémica: o que é massivamente procurado pode ser índice da qualidade presumível do que se anuncia, arrastando, como causa ou antecedente “lógico”, a hipótese de que o que já agradou a muita gente por certo será do agrado de toda a gente.

    As reservas são, normalmente, de uma estirpe de maçadores armados em elite que, por vezes, teimam em não alinhar com as maiorias. É evidente que esses seres bisonhos existem, olham para tudo o que não está rotulado com as legendas canónicas de literário ou até de clássico, com ar de suspeita e lançam a dúvida, muitas vezes injustamente, sobre a qualidade do que é popular no sentido que o termo tem nas sociedades modernas: lido por “toda a gente” sem qualquer critério sólido de selecção.

    Não nos é possível desfazer e tornar claro todo este novelo de questões que tocam, como o leitor mais experto notará, em alguns dos problemas de fundo da literatura e da arte em geral: selecção, literatura, qualidade, capacidade de critério estético, popularidade, elitismo, etc., numa infinitude de vias e argumentos que nos deixam tontos. Porém, alguma coisa se pode fazer.

    Antes de mais, constatar que, por exemplo,  facto registado como motivo de grande surpresa,  a edição portuguesa de Ulisses de James Joyce – obra que ainda se pode considerar muito difícil, de leitura muito complexa não só pela sua elaboração textual, pela complexidade da sua gramática narrativa, mas até pelo sistema referencial de toda a cultura ocidental e irlandesa (pela sua hipertextualidade disseminada e inquieta, enfim) que nela é posto a funcionar, a cintilar – tenha atingido o sucesso livreiro que atingiu, tendo sido considerado um best-seller.

    Pressentimos que o mecanismo posto a funcionar, na operação de marketing efectuada por editor e livreiros, é o do kitsch, com as implicações que ele impõe: retirar ao objecto a sua funcionalidade primeira, reduzi-lo a objecto de mostruário, colocando como primordial a sua perceptibilidade mais imediata, tornando-o ícone ostentável da sua função primordial de origem que deve ser indicada mas não activada.

    Uma obra cimeira da literatura e da legibilidade literária, conotada com a problemática poética da própria legibilidade/ilegibilidade/escritibilidade, fica, assim, notabilizada pelos seus aspectos culturalmente mais frágeis: a intensificação da reprodutibilidade do produto editorial, a iconografia do seu nome, e a valorização visual do volume-livro.    

    No entanto, e apesar da realidade recente que funda a etimologia, não é ao fenómeno de mercado, na sua pureza sócio-económica, que nos referimos, quando falamos de livros pertencentes a um género, intuitivamente reconhecido por todos (notar-se-á, também neste caso, como em toda a genologia, o esforço é para abordarmos noções arquitextuais – difusas, como não pode deixar de ser – em tom de elaboração teórica, como se nos aproximássemos de conceitos estabilizados, a partir de noções intuitivamente reconhecidas) como best-seller.

    Na sua conotação depreciativa, que é também a genológica, best-seller designa um conjunto de obras que enfileiram em certas colecções, ou que constituem a produção de um autor, que são bastante conhecidas e às vezes estão na origem de filmes (no caso mais frequente é o que acontece  ao romance best-seller) ou de programas televisivos, mas que todos reconhecem pelos seus traços fundamentais implícitos – mesmo quando difíceis de enumerar na totalidade, ainda que possam ser resumidos em três ou quatro tópicos: a pobreza ideológica pela banalização dos valores, a recorrência dos motivos temáticos, a popularidade dos seus elementos e situações bem como o conformismo estético-cultural.

    A cultura como informação

    O trilho habitualmente seguido pelo sistema do best-seller, seja qual for o género “canónico” em que se inscreva por semelhanças estruturais do discurso, aponta, antes de mais, para uma problemática de informação. Há uma espécie de desejo compulsivo de cultura, de saber sobre o “mundo postulado como real” que caracteriza o público consumidor desse material bibliográfico.

    O best-seller é, na maioria esmagadora dos casos, uma obra que fala sobre um tema candente, uma problemática apaixonante, um acontecimento capaz de comover amplas camadas sociais. Como muita da outra produção literária normalmente assumida como marginal, de amplas edições e alto consumo em certas épocas e em certos momentos de moda (há ou houve a do policial, a da FC, a do fantástico, a do romance cor-de-rosa) o best-seller emerge como resposta a um ambiente informacional favorável, seguindo de perto, de maneira mais ou menos evidente, o tema que na comunicação social se encontra mais agitado.

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    Não é possível determinar todos os meandros desta influência nem detectar exactamente como se engrenam os assuntos do dia. Pode a activação de um imaginário ser desencadeada por um programa particularmente feliz de TV, ou pelo eco que determinado acontecimento atingiu no noticiário. Os chamados dramas humanos, aqueles que apresentam uma vítima da desgraça, a tragédia de alguém dividido entre um dever transcendente e o sentimento mais banal (amor filial, paixão não correspondida ou contrariada pelo dever), a catástrofe colectiva que tenha por motor um dado irracional (a etnia perseguida pelas convicções religiosas – os judeus, por exemplo) tudo o que assente, enfim, em axiologias implicadas por inquestionáveis tradições já enraizadas em determinados universos culturais e civilizacionais, serve de tema privilegiado para o livro best-seller.

    De certo modo, atrás do apelo mórbido de uma temática da fatalidade (duas doxas que se opõem, cindindo tragicamente um ou vários protagonistas ou colocando-os diante de um problema de consciência), há um apelo informativo directamente entendido pelo leitor do género: ele quer e procura saber mais, informar-se, conhecer mais profundamente o caso através do romance inspirado por ou lendo o relato, a série de entrevistas, a biografia ou a autobiografia ou mesmo a monografia ensaística que aborda o tema em questão.

    A actriz bela assassinada, a prostituta que ganha muito dinheiro e é feliz, o padre que se divide entre os deveres da ordem e os apelos do amor, ou da família, ou do grupo racial ou da nação, são esquemas que, por assim dizer, entroncam no apelo romântico do caso como tema – ou, mais correctamente, no apelo romanesco-sentimental do caso como singularidade e como excepção. É claro que o aspecto informativa busca menos na casuística “romântica” o apelo ao leitor, fazendo incidir antes o interesse no desfilar de coisas extraordinárias ainda que “verosímeis” que são apresentadas.

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    O caso da obra “crua”, reveladora de uma “realidade” social sórdida e inevitável, a demonstração cabal de que as classes altas vivem nos mais “abomináveis costumes”, a confirmação de que na vida só se triunfa pela baixeza e pela infâmia, parece-nos ser revelador dessa apetência de uma massa leitora pelo “realismo”, que fornece a dose doentiamente esperada de desagrado (perante uma formulação ética normalmente hipócrita que vacila como um fascínio denegativo numa expressão do tipo: “como eu gostava de ter participado daquele horror! – mas sem ser tocado pelas suas consequências…até porque não devo!”) que confirma como os princípios da crença são a única protecção contra as tentações do mal – mas como a experiência fantasiosa dele é necessária para a catarse.

    Desejo de informação e apelo do conhecimento que está na moda, vontade de estar em dia com o que se diz por esse mundo fora, parecem ser motivações para um terceiro aspecto característico dos best-sellers, talvez o mais fascinante de entre ele: a busca de resposta para as grandes temáticas antropológicas. Daí, entre esta casta genológica que procuramos embaraçadamente delinear, resulta que aparecem livros sobre astrofísica, ciências naturais e humanas que atingem altas procuras no mercado e que são parcialmente (até um ponto de insuportável rotura) devorados pelos leitores desprevenidos.

    Formulações sensacionalistas que apregoam, sobre um livro, que ele dá respostas a questões tão importantes como o problema da morte, do destino da humanidade, das origens da vida, fazem de imediato incidir sobre tal texto as atenções doentias. Ao lado das obras como Um Pouco mais de Azul, de Hubert Reeves, que parece responder ao desejo fundamental de conhecer os limites do universo, vêm, depois, enfileirar-se tratados práticos sobre a forma de obter o prazer sexual utilizando o yoga, ou respostas aos desejos de felicidade pelo domínio da ciência do karma… o aparato retórico e científico fornecido pelo modelo reverte em favor de todas as especulações oportunistas e, por vezes, assumindo o modelo argumentativo do senso comum, evocam os benefícios da mais crassa candura – que lembra a estupidez.

    A retórica do realismo

    Apesar de todos os casos acima se poderem incluir no “género best-seller, ainda que pertencentes a variados tipos de discurso, o que aqui nos importa, como zona específica (até porque típica) do conjunto é o do género literária tradicional, clássico, privilegiado como modelo, num horizonte que participa da aspiração cultural e da interiorização das regras da boa leitura: o romance “clássico”, ou seja, que cumpre certas regras que uma determinada tradição “culta e escolarizada” considera “boas”.

    Mesmo quando não se pode perceber, pelo apelo do saber na moda, como Joyce atingiu o lugar, nos escaparates, do best-seller, dado que a moda nada tem a ver com as suas características específicas, podemos pontualmente aceitar que ele se tornou muito falado e vendável porque e escreveu um “romance” – e é um “clássico”, pelo que o saber trivial divulga.   

    Narrativa bem “regulada”, forma de discurso capaz de veicular informação segundo modelos antropologicamente fortes pelos traços de representação, vigorosamente actuantes desde o mito até ao romance moderno pelos valores amplamente difundidos de que são emblemáticos, a ficção típica do best-seller assenta, de facto, a sua legibilidade, sobretudo, nos traços mais notórios de um género tornado clássico, no Ocidente: o romance realista.

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    Por abstracção desse modelo, que poderia ir do romance de costumes ao de aprendizagem, o que vigora, em grandes linhas é o conto alongado de um (ou vários) protagonista que se defronta com o mundo, busca nela resposta, uma ciência da vida. Normalmente, uma sabedoria do trivial que transporta um provérbio de monótono bom senso para uma atribulada deambulação pelo mundo dos enganos constitui o tema esquemático privilegiado.

    A grande ciência, a última, a suma teleológica do género assenta na máxima do saber viver com mais ou menos custo, com mais ou menos atribulações. A visão antropológica pícaro-realista é a grande fonte de inspiração, depois de expurgada e desproblematizada. A banalização de desvendamento do naturalismo é a pedra de toque para a produção controlada de todo o dizível e, portanto, de todo o visível.

    O uso da elipse sensata nas perigosas revelações da sexualidade, o uso do provérbio na reflexão sobre a existência, os modelos reconfortantes da narração centrada num saber omnisciente, uma confiança na lógica da temporalidade e uma hábil gestão das técnicas de focalização, apresentando os mecanismos narrativos mais usuais, são condições para uma boa recepção, ou seja, garantia de que a peça fabricada atinge o alvo com segurança.

    Mas, sobretudo, o verosímil, a conformidade com um real altamente codificado enquanto percepção tem de estar claramente formulado. Daí, talvez, o best-seller de matriz realista ter dificuldade em sobreviver muitas gerações. A alteração dos costumes, das crenças banais, tem de ser calculada em cada momento.

    Uma apaixonada suicida em nome da honra não seria motivo de aceitação nesta visão do mundo adaptada aos dias de hoje. Um herói que pusesse os princípios acima do desejo de sucesso social seria encarado como um idiota inverosímil. O que constitui o arrojo nas regras do jogo no romance de Balzac, torna-se a banalização triunfalista do oportunista do herói aceitável dos nossos dias.

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    É por isso que a revelação desmesurada na visão do mundo do texto balzaquiano se reduz a uma receita do “dar a ver” realista que encanta no romance de sucesso popular dos nossos dias. O mecanismo artificioso é como que esquecido; para o leitor apressado, mais em busca do esquecimento do que da interrogação, do saber do que da pergunta, interessa sobretudo a redundância do conformismo enquanto tal, a todos os níveis.

    O mecanismo em causa é de tal forma poderoso que, mesmo em circunstâncias em que o sucesso (presume-se) não é procurado pela via da facilidade, ele funciona na mesma. No seu Poetics of postmodernism (Routledge, New York) Linda Hutcheon afirma sobre a duplicidade paródica da ficção pós-moderna:

    “De certo modo, como já argumentei, o novo romance (nouveau roman) é, consequentemente, muito mais radical em forma do que qualquer romance pós-moderno. Aquele assume que o seu leitor conhece as convenções da narrativa realista e por isso procura subvertê-las – mas sem fazer como o pós-moderno, que as inscreve. Ambos procuram mostrar a natureza convencional dos processos vulgares de construção dos mundos romanescos, mas a metaficção historiográfica confirma e depois sabota esses mundos e a sua construção. Talvez isso explique porque razão muitos romances pós-modernos têm sido best-sellers” (1988: 202)

    A transtextualidade: as regras da imitação e as condições da crença.

    O que o best-seller nos vem mostrar, se o que sobre ele dissemos tem algum fundamento, é que ao lado de uma literatura de evasão (às vezes buscando no fait-divers apenas uma pequena parcela de caução de verosimilhança, como acontece com o policial em relação à imprensa “criminal”) que aponta claramente para os mecanismos do fantástico como apelo primordial, onde o acto de contar se compromete com a aspiração irrecalcável do universo do devaneio, do “seria tão bom que…”, existe uma outra via de integração nos gostos generalizados que parece paradoxalmente a sua antítese, apelando para o desnudamento realista.

    Só aparentemente existe tal contradição, pois o que a técnica do best-seller nos dá é uma movimentação da crença, só que assumida a um outro nível. Se a crença infantil e popular é irreverente, desmesurada e inconformista, os seus monstros estão perto em aspecto dos grandes fantasmas do fascínio e do medo, a crença do leitor moderno é acomodada no interior de uma vulgata positivista e cientista que faz do real, do exorbitantemente real, um centro de apelo irreprimível.

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    Claro que, se para o folclore e para a criança os ogres e os lobos emergem como figuras da inquietação e da desinquietação, para o moderno leitor adulto essas figuras do medo têm de emergir investidas de factores de aquietação, tranquilizantes. O seu mundo é um real verosímil onde as grandes ameaças estão domesticadas ou então têm nomes que asseguram o controlo das forças hostis, mas manobráveis: são marginais, ou loucos, ou comunistas, ou bandos subversivos de direita ou esquerda ou fundamentalistas islâmicos desaçaimados.

    Se o monstro tiver o perfil de Hitler, ou os tiques de um nazi actuando para a KGB, a fábula assume as proporções de uma informação realista, o possível torna-se apaziguante e o sonho mau passa como um relato carregado de informações sobra a última grande guerra ou a guerra-fria. Mesmo que a guerra seja santa e o alvo sob mira se revele muito mais como moderna gesta de cavalaria em direcção a uma Jerusalém a “libertar”, do que como relato objectivo do retorno sionista à Palestina.

    O sentimento da verdade histórica fica assegurado se meia dúzia de nomes controversos se erguer como um punhado de heróis da reconquista, tendo por detrás a documentação dos periódicos reconhecidos como equilibrados, desde os anos 40 e 50 até hoje.

    Cabendo claramente dentro da relação transtextual do hipertexto com o hipotexto de valor genérico, ou seja com o arquitexto, de que nos fala Genette em Palimpsestes (Seuil, Paris, 1982, p. 60-61), o best-seller canónico, de tipo romanesco de imitação, tem objectivos sérios e veste roupagens de adaptação aos mais severos rigores de um grau zero da escrita da actualidade – ao contrário dos casos mais conseguidos da paródia moderna (ou pós-moderna, como querem alguns). 

    A rejeição frequente, mesmo por leitores apaixonados de best-sellers, dos que foram consumidos pela geração anterior, com uma velocidade que ronda a da mudança na moda do traje, talvez encontre justificação na seriedade dos valores que nele se imprimem. De certo modo, a busca cuidada do autor de sucessos, contrariamente à busca do escritor que se empenha na revolução que cada obra procura ser, nos processos de desautomatização ou de estranhamento de que nos fala o  formalismo russo, é uma busca de automatismos de escrita, de identificações e de identidades, de utilizações e de lugares-comuns que, sob a estrutura novelesca do realismo, faz o efeito do segundo guia para leitor que, sendo supostamente desprevenido, é, além disso, tomado como próximo da estupidez e da ignorância.

    Se muitos textos de grande público piscam o olho ao leitor de cultura cosmopolita, a maior parte deles não se arrisca e, mesmo que tenha como assunto um tema de sucesso na comunicação social, na maior parte dos casos parafraseia e explica redundantemente para que a mensagem não escape.

    Restaria talvez acrescentar um reparo a estas notas sobre terreno que, cremos, nunca foi razoavelmente explorado. A tendência do best-seller é para a redundância dos mecanismos de reconhecimento. Não desenvolve apenas o recurso ao género, que poderia ser um saudável trabalho sobre o arquitexto, como sugere Hutcheon.

    Nem sequer aos modelos canónicos autorais, o que poderia activar uma saudável relação hipertextual. São os próprios universos ficcionais recriados que se evocam a traços largos, para os leitores não se perderem na escolha. 

    Para citarmos um caso nacional, Manuel Arouca produziu a hipertextualidade à segunda potência quando, com Os Filhos da Costa do Sol,parafraseava o título do best-seller de James Michener Filhos de Torremolinos.

    Isso vem provar que não é preciso sugerir que se inventa ou se busca um universo estranho ou populoso onde o excepcional pode acontecer, para ser sucesso editorial fácil. Basta dar com a receita local e com o verosímil que se aceita numa certa fase histórica – mesmo que os horizontes sejam estreitos.

    A receita, entre nós, tem dado frutos que mostram claramente os limites do género – buscando o geral na mediania, e o reconhecível no fenómeno estritamente local, temos o sucesso editorial no cavaqueio de todos os dias. Se o grande acontecimento é a notícia e o notável é “colunável”, o best-seller inclina-se para o encanto onde o grande acontecimento é ser notícia e o fenómeno digno de registo é surgir na fotografia ou na imagem do noticiário ou do programa com máximo de audiência. Teríamos aqui o modelo de um certo sucesso de escrita – não do eterno retorno, mas da porca giratória, ou da batedeira

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Genette, Gérard, 1982, Palimpsestes, Seuil, Paris

    Hutcheon, Linda, Poetics of postmodernism, 1988, Routledge, New York


    Texto originalmente publicado na revista Vértice, n.º 23, 1990

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  • Os meus (indesculpáveis?) erros, por um lado; e a aselhice do fact-checking, por outro

    Os meus (indesculpáveis?) erros, por um lado; e a aselhice do fact-checking, por outro


    Muitas vezes – ainda hoje, por sinal –, detecto pequenos erros ou imprecisões naquilo que escrevo. Por exemplo, constatei que há uma semana escrevi um artigo intitulado: “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior de sempre”. Errado. E o artigo foi corrigido passando agora a intitular-se “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980”. Está 100% correcto – e, aliás, acertarei a minha previsão. E está um título escrito com prudência, porque, na verdade, talvez seja desde 1970 ou até desde um ano anterior, mas assim excluo o “sempre”, porque não era verdade.

    De facto, é sempre arriscado escrever “sempre” num artigo; por mais aliciante que seja, é um perigo.

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    Embora os meus detractores não me desculpem – embora tenha sido eu a apanhar o erro –, confesso que este adveio de um excesso de confiança nos meus conhecimentos. Por vezes, dá maus resultados, mesmo se não estamos perante uma situação que altere a gravidade daquilo que se denunciou: um excesso de mortalidade desde Fevereiro de 2022, inexplicável e intolerável nos tempos modernos.

    Com efeito, para escrever “sempre”, baseei-me nos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Pordata desde 1980 (o ano a partir do qual existe uma base de dados de fácil consulta). Ora, sabendo eu que, nos tempos modernos, os Verões são muito menos mortíferos do que os meses de Inverno, extrapolei abusivamente que, para uma população menor em décadas passadas, não encontraria tanta mortandade em meses estivais, como Agosto.

    Não é bem assim. Ou melhor, não era bem assim. Deu-me para procurar dados nos relatórios da Estatística do Movimento Fisiológico de Portugal do INE dos anos 20 e 30. Trabalho árduo e demorado, mas que acabou por ser a merecida penitência para os meus erros.

    De facto, embora sejamos agora uma população mais envelhecida e maior do que nas primeiras décadas do século passado, houve vários anos em que se morreu mais. Por exemplo, em 1918 – o ano da gripe espanhola – morreram cerca de 248 mil pessoas, o que dá uma média mensal de 20 mil pessoas. Diga-se, contudo, que “apenas” cerca de 9% foram por gripe espanhola – voltarei, aliás, a este tema muito em breve.

    Portanto, embora não tenha encontrado valores mensais disponíveis para aquele ano, de certeza absoluta que na Primavera e Verão de 1918 terão morrido muito mais do que 10 mil pessoas em cada mês.

    Mas mesmo depois da gripe espanhola – que atacou Portugal quase em exclusivo no ano de 1918 – houve anos de maior mortalidade. Verifico agora a raiz do meu erro: não considerei a dimensão da mortalidade infantil sobretudo até à primeira metade do século XX.

    De facto, a mortalidade total estava muitíssimo dependente da taxa de mortalidade infantil, que atingia proporções inauditas, completamente assombrosas, sobretudo por diarreias, enterites e outras doenças profundamente letais nos primeiros anos de vida. Além disso, a mortalidade por malformações era também elevadíssima. Natural, na verdade – ao contrário do que se diz agora – era ver-se pais a enterrar filhos.

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    Acresce que, nas décadas de 20 e 30, a fertilidade era elevada. Por ano, era habitual nascerem cerca de 200 mil crianças numa população de 6 milhões de habitantes. Agora, que somos 10 milhões de habitantes, nascem cerca de 80 mil crianças por ano.

    Porém, nas primeiras décadas do século XX, as doenças até aos cinco anos de idade dizimavam uma grande parte dessas esperanças de vida. Para se ter uma ideia, em 1918 morreram 77.550 crianças com menos de cinco anos. Destas, estão incluídas 11.370 falecidas antes de completarem dois anos por causa de diarreias e enterites, e mais 5.862 por “debilidade congénitas”.

    Meia década mais tarde, em 1923, num ano já sem resquícios da gripe espanhola – a gripe endémica causou então “apenas” 2.000 (exactos) óbitos –, a mortalidade infantil cifrou-se em 56.933 óbitos, sendo que 12.719 se deveram a diarreias e enterites, enquanto as “debilidades congénitas” causaram 5.764 mortes infantis.

    Se considerarmos, que em 1923, a mortalidade total foi de 141.775 óbitos, conclui-se então que a morte de crianças com menos de cinco anos representou 40% do total!

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    Nos anos antecedentes e posteriores, durante algumas décadas, este foi o peso relativo das fatalidades infantis, que tinham um maior peso nos meses de Verão, período onde certas doenças infecciosas – muito por via da falta de saneamento – incidiam.

    Portanto, o meu erro foi subestimar a elevadíssima mortalidade infantil nos primórdios do século XX. O “sempre” estava ali a mais, porque bastaria, para aquilatar da gravidade do que se está a passar agora, dizer que a situação é a pior dos últimos 10 ou 20 anos, porque é esse o contexto histórico que nos deve guiar sempre.

    Ora, mas daqui quero passar – e não é por acaso que se faz referência ao ano de 1923 – para um outro tipo de erros, muitíssimo mais grave, cometido pela comunicação social mainstream, sobretudo aquela que se presta ao fact-checking.

    Neste aspecto, peguemos então no paradigmático exemplo de um fact-checking do Observador sobre se “estamos perante a maior mortalidade de sempre em Portugal”. A “análise” conclui, entre outros aspectos, que a “mortalidade geral não é maior de sempre em Portugal: houve mais óbitos em 1923, revelam dados do INE”.

    Fact-check do Observador sobre se 2022 apresenta a maior mortalidade de sempre e a falta de contextualização

    Ora, na linha do que disse anteriormente, um fact checking desta natureza não pode jamais olhar para os números de forma estática. Há um “dinamismo” social que deve entrar na equação. Temos de saber o que estamos a comparar e como devemos comparar. E sobretudo qual o objectivo dessa comparação.

    Um fact-checking não deve ser uma mera análise quantitativa. Na verdade, saber se a mortalidade de um Verão assume ou não o valor mais elevado de sempre – desde que Portugal é um país – mostra-se irrelevante. É uma curiosidade histórica.  

    Em Saúde Pública devemos olhar sim para uma série longa de indicadores apenas aferir as melhorias tecnológicas e dos cuidados médicos. Mas não serve para identificar, numa perspectiva de uma ou duas ou três décadas, anomalias graves num sistema de Saúde.

    Por isso, não faz sentido algum andar à procura de um ano como o de 1923, tão para trás, para mostrar que a situação de 2022 não está a ser assim tão má. Para concluir que, afinal, houve um ano pior do que o presente está a ser. É um disparate. É uma irresponsabilidade. Não é jornalismo. É um péssimo trabalho de fact-checking.

    Este é o caso do fact-checking do Observador no caso em apreço. Diz isso quem acabou de confessar um erro, que se penitenciou e que o explicou.

    E digo isto do fact-checking do Observador, e de tantos outros, porque, neste caso, desde logo é uma rotunda aselhice comparar um ano (1923) em que a mortalidade infantil representava 40% da mortalidade total com outro ano (2022) em que a mortalidade infantil representa apenas 0,23% (até 27 de Agosto houve 194 mortes de menores de cinco anos, entre os 82.868 óbitos registados)

    Não podemos comparar dois anos (1923 e 2022) – e os anos intermédios – sem enquadrar a evolução na esperança média de vida, no tratamento de doenças, em tudo e mais alguma coisa.

    Se um jornalista não souber sequer fazer uma contextualização, daqui a nada ficaremos satisfeitos por nos tirarem todos os direitos conquistados em 25 de Abril de 1974, porque afinal um fact-checking surge a concluir que, mesmo assim, estamos melhor com o regresso aos tempos da Outra Senhora do que estavam os nossos antepassados no tempo do Feudalismo.

  • Animais de estimação

    Animais de estimação


    Não vou falar da Márcia e da Né. Elas adoram animais – e, se todos fossem como elas, era uma alegria para mim e uma melhoria para o Mundo. Animais carecem de tempo, disponibilidade, interligação, compromisso. Elas são 20 valores.

    Falo dos outros. Ter cães que não passeiam está errado. Ter animais que se deixam ao deus dará é um desastre social e ecológico. Ter animais por esterilizar ou por educar é contra um mundo melhor. Os gatos são predadores naturais e definem seus territórios de caça onde matam sem quartel. Não ficam ninhos, não sobrevivem insectos grandes, ratos e outra fauna.

    Se uma cidade como Coimbra tiver trinta mil gatos, os pássaros vão fugir daqui. A Nova Zelândia descobriu como os gatos abandonados dizimavam os papagaios e teve de tomar medidas importantes.

    Ter animais de estimação é uma responsabilidade social e não “uma coisa fixe” ou uma tonteira para alegrar dois ou três meninos que não os passeiam, não os lavam, não lhes dão de comer. Cão e gato, coelho ou cobra, ou mesmo iguana, carecem de uma regulamentação para que fiquem em casa, sejam domésticos e não selvagens.

    Para serem felizes carecem de espaço, carecem de companhia, são exigentes na dedicação. Os animais são relógios de rotinas. Todos os animais sabem as suas horas de comer, de sair, de entrada dos donos. As vacas têm de ser mungidas à mesma hora, encontrar a palha no mesmo lugar, repetir os mesmos gestos todos os dias. Este compromisso com o tempo é mandatório a quem deseja ter pets.

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    Se o teu cão passa a vida a latir, algo está errado. Se o teu cão deixa fezes na minha porta, és tu quem tem culpa. Se o teu pet fede, é porque és um porco e um preguiçoso, a não ser que tenhas adoptado uma doninha. Se há tantos cães e gatos mortos nas estradas, a culpa é tua que libertas o bicho para ir de férias. É uma questão também de ética.

    O que é brutal hoje é que um discurso crítico ao negócio do amor de estimação é silenciado pelo poder das empresas que controlam a alimentação, os produtos infinitos para mimosear os bichos de casa, as associações defensoras dos animais. Dizer que os animais de estimação têm um custo ecológico elevado, são mais uma fonte de poluição e de morte é uma brutalidade para os fanáticos.

    Infelizmente, os supermercados estão a encher-se de secções de negócio animal, comida mais cara que a ração dos esfomeados de África, mais dispendiosa que a diária das penitenciárias. 

    Se formos ao Google vemos milhares de virtudes em ter estima por animais, encontramos resmas de discursos que potenciam o negócio. Mas, claro, nem todos podem criar animais de estimação – tem de haver regras. Os gatos e cães devem estar esterilizados nas vossas casas. Para serem domesticados sofrem uma contracção da sua essência, e por essa razão há uma grande discussão sobre este tema.

    selective focus photography of brown hamster

    Depois há animais que são donos de objectos com patas e os levam para cenários violentos, os transportam para jogos de morte e de diversão com barbaridade acrescida. Tudo isto carece de observação, legislação abrangente e sobretudo vertida de uma discussão aberta, sem filtros, culta, informada por técnicos e cientistas.

    Não fosse a Márcia e a Né, eu defenderia que os pets fossem proibidos, sem ser em condições excepcionais, mas elas demonstraram-me à saciedade como posso não ter razão e concordaram comigo em muito do que disse atrás.

    Afinal, eu gosto dos bichos e eles espantosamente, aproximam-se despudoradamente de mim.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As lágrimas de Sanna Marin, a hipocrisia… e, já agora, os curdos

    As lágrimas de Sanna Marin, a hipocrisia… e, já agora, os curdos


    Não sei se já tiveram a oportunidade de passear as ancas numa discoteca finlandesa. Aviso já que é um trabalho árduo que requer alguma perícia e que nos obriga, com destreza, a acompanhar dezenas de pessoas que dançam uma música imaginária enquanto o dj nos oferece outra.

    Se Deus alguma vez existiu, esqueceu-se do Norte da Europa na altura de dotar os esqueletos de ritmo. Começando por aí, fiquei logo um pouco mais fã de Sanna Marin, a primeira-ministra mais nova do Planeta, residente num país onde, pelo que vi, deverá ser a mais profícua dançarina. Mais do que isso, conseguiu estar num espaço onde mais do que quatro finlandeses se riam em simultâneo. Isso, sim, é uma proeza. Quem não se lembra da alegria gélida com que Kimi Räikkönen festejava (com o semblante fechado) cada vitória na F1.

    Sanna Marin, primeira-ministra da Finlândia. Foto: ©Laura Kotila 

    Portanto, ter uma política destacada, nova, que se consegue divertir entre um grupo de amigos, como qualquer um de nós, é uma excelente notícia.

    Tudo o que se segue nesta história é uma pura desgraça que explica, em poucas passagens, a sociedade em que vivemos.

    Por que razão aparece um vídeo de uma festa privada nos jornais? É o primeiro ponto a discutir nesta sociedade em que escolhemos deixar de viver para gravar. Não vemos, não ouvimos, não sentimos. Gravamos para mais tarde mostrar a alguém.

    Sanna Marin apareceu em lágrimas a pedir desculpa pelas fotos que foram reveladas e até se sujeitou à suprema humilhação de fazer um teste de drogas. Imagino que para a maioria dos finlandeses a alegria e a euforia ainda seja algo artificialmente conseguido, entre umas Lapin Kulta e uns comprimidos de ecstasy.

    Passaria um destacado político, homem, por tamanho insulto ou perseguição?

    Eu acho que não. Boris Johnson, (ainda) primeiro-ministro inglês, foi apanhado a participar em várias festas [comparando as imagens da farra, a de Sanna ficaria na categoria de enterro], na residência oficial durante um período de confinamento decretado pelo próprio. Uma espécie de poker das trapalhadas. Demorou dois anos até ser corrido do cargo que ocupava.

    Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido. Foto:  ©Crown Copyright

    E note-se: sempre defendi que os confinamentos não faziam sentido, mas, se um Governo os impõe, não podem ser os próprios membros do Governo a furá-los. Aí esperava-se um exemplo. No caso da festa privada entre amigos, estamos num momento absolutamente irrelevante para a profissão desempenhada por Sanna Marin.

    Alguém imagina que um ministro, presidente ou secretário-geral, quando sai do seu horário de trabalho, se recolhe junto à lareira a escrever as memórias ou a pintar paisagens campestres?

    Na verdade, sejamos claros: Marin nunca passaria por este escrutínio se fosse um homem. E suceder o que sucedeu numa das sociedades onde a diferença de “tratamento” entre homens e mulheres é menor, mostra que o desnível ainda é real e muito grande.

    Notem que Silvio Berlusconi organizava orgias, mas, entre escândalos e prostitutas, foi primeiro-ministro italiano durante nove anos, o mais duradouro no poder desde a II Guerra Mundial.

    Enquanto isso, Sanna Marin vê uma foto sua, com quatro ou cinco amigos sorridentes numa noite de copos na casa de um deles, e de imediato tem de vir a público, de lágrimas nos olhos, dizer que é uma pessoa comum com 36 anos, que não faltou um dia ao trabalho e que também precisa de se divertir.

    Este é que é o drama real da hipocrisia que assalta os meios de comunicação social num mundo, ainda, profundamente machista.

    A lavagem que fazem perante escândalos masculinos, uns atrás dos outros, de proporções bíblicas (ou talvez mais romanas), e o empolamento que dão a uma mão cheia de nada, se a visada for uma mulher. Percebo que a oposição política use tudo na guerra dos votos, mas já não entendo que a imprensa e a sociedade os sigam. Se isto acontece num dos países mais avançados do Mundo, o que se diria num daqueles mais plantado à beira-mar, se é que me compreendem?

    Na verdade, eu acho que se deveria discutir não os dotes artísticos da jovem primeira-ministra finlandesa, na ocupacão dos seus tempos livres; mas outra coisa bem diferente, mais política. Como, por exemplo, perguntar-lhe como se atinge aquele nível de alegria depois de se aceitar entregar curdos ao Erdogan em nome da entrada na NATO.

    Bem sei que para um governante foi apenas mais um dia no escritório, e uma decisão em mil, mas, se era para a deixar em lágrimas e encher telejornais, podiam ter-lhe perguntado o preço de uma vida curda neste mercado de Verão. Sempre aprendíamos qualquer coisa.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Da inteligência e da honestidade

    Da inteligência e da honestidade


    A propósito de uma notícia curiosa sobre uma estrambólica fraude em Itália, ocorreu-me falar sobre honestidade. Honestidade que é inerente ao carácter e que está implícita na nossa forma de pensar, de agir, de ser.

     Se por um lado a vida parece ensinar-nos que “quanto mais esperto melhor”, o tempo revela que a esperteza – característica dos fracos – nada pode contra a sabedoria. Aliás, a esperteza revela ser a maior fraqueza dos que se julgam fortes.

    person using laptop computers

    Mas se enganar os outros é em si uma tarefa desonesta, enganar-se a si próprio é ainda mais corrosivo, lamentável, deplorável.

    Porque os políticos também nos contam “histórias”, há um em particular – Teófilo Braga – de quem me recordo. Presidente da República, num curto período (1915), foi ele também um profícuo ficcionista, ensaísta e etnógrafo, imortalizando diversas pérolas da tradição popular portuguesa, como a do cego e o mealheiro, integrada no segundo volume dos Contos Tradicionais do Povo Português, originalmente publicado em 1883 :

    Era uma vez um cego que tinha ajuntado no peditório uma boa quantia de moedas. Para que ninguém lhas roubasse, tinha-as metido dentro de uma panela, que guardava enterrada no quintal, debaixo de uma figueira. Ele lá sabia o lugar e quando ajuntava outra boa maquia, desenterrava a panela, contava tudo e tornava a esconder o seu tesouro. Um vizinho espreitou-o e, vendo onde é que ele enterrava a panela, foi lá e roubou tudo. Quando o cego deu pela falta do dinheiro ficou calado, mas começou a dar voltas ao miolo para ver se arranjava uma estratégia para reaver o seu dinheiro. Pôs-se a considerar quem seria o ladrão e achou lá para si que era por força o vizinho. Tratou de ir à fala e disse-lhe:

    — Olhe, meu amigo, quero-lhe dizer uma coisa muito em particular, que ninguém nos oiça.

    — Então que é, senhor vizinho?

    brown round coins on brown wooden surface

    — Eu ando doente e isto há viver e morrer. Por isso, quero dar-lhe uma parte de algumas moedas que tenho enterradas no quintal, dentro de uma panela, mesmo debaixo da figueira. Já se sabe, como não tenho parentes, há de ficar tudo para vossemecê, que sempre tem sido um bom vizinho e me tem tratado bem. Ainda tenho aí, num buraco, mais umas moedas de ouro e quero guardar tudo junto, para o que der e vier.

    O vizinho, ao ouvir aquilo, agradeceu-lhe muito a intenção. Naquela noite tratou logo de ir enterrar outra vez a panela de dinheiro onde ela estava, com a intenção de apanhar o resto do tesouro.

    Quando bem o entendeu, o cego foi ao sítio, encontrou a panela e trouxe-a para casa e então é que se pôs a fazer uma grande caramunha ao vizinho, dizendo: — Roubaram-me tudo! Roubaram-me tudo senhor vizinho.

    Daí em diante guardou o seu dinheiro num lugar onde ninguém, por mais pintado que fosse, conseguiria dar com ele.

    Assim, concluímos que enquanto formos espertos, facilmente encontraremos quem o seja mais do que nós. Já falar de sabedoria é outra história.

  • António Costa sorri porquê?

    António Costa sorri porquê?


    É verdade! Apanhei de trombas com o primeiro-ministro António Costa a sorrir de férias… satisfeito não sei porquê.

    Ele está na capa de uma revista cor-de-rosa, e de um jornal de escândalos que alegadamente muito batalhou para o encontrar. Como se alguém acreditasse!

    António Costa não devia deixar-se fotografar em férias, porque é assunto da sua vida privada e, sobretudo, porque a maioria dos portugueses não têm népia de férias.

    O primeiro-ministro também não devia sorrir, porque tem nas mãos o maior caos de que há memória no Serviço Nacional de Saúde, com os serviços de obstetrícia fechados em vários hospitais. E pior! Em dias previstos, o que é uma vergonha!

    Vem tudo nos jornais e passa nas TV’s, onde se revela que a maioria dos portugueses ganha menos de 800 euros por mês.

    E que as grávidas não podem ter os filhos neste e naquele hospital, como se fosse um facto normal.

    Ou ainda, por exemplo, que as famílias estão a apertar o cinto, e os supermercados a ficarem desertos por causa da inflação descontrolada.

    Ou que o Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) estava para ser dirigido por uma pessoa alegadamente com um perfil duvidoso, que, entretanto, já se demitiu ou foi demitida.

    A vida do País corre muito mal. Por exemplo, com o ministro das Finanças, Fernando Medina, metido no imbróglio do Caso Sérgio Figueiredo, depois de ter deixado Lisboa na mão de especuladores imobiliários e repleta de centenas de prédios em ruínas e milhares de apartamentos desabitados.

    Infelizmente, os jornalistas estão a piar menos e entregam-se agora ao “jornalismo de precaução”, como já previa Baptista Bastos (BB), que andou a mendigar um trabalho no fim da sua brilhante carreira.  Quem não se recorda do seu livro de crónicas “As Palavras dos Outros”?

    Balsemão, antigo camarada de trabalho no Diário Popular, deu-lhe uma pequena tribuna na SIC, onde BB voltou a brilhar com a célebre pergunta: ” Onde é que estava no 25 de Abril?”

    Já ninguém quer saber dessa data histórica (com quase 50 anos) que nos devolveu à Europa democrática e moderna, mas que nos afogou em fundos comunitários que engordaram algumas pessoas, como se disse a boca cheia.

    A satisfação de António Costa em férias é pior que Cavaco Silva a comer bolo-rei de boca aberta.

    As senhoras e os senhores lembram-se?

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As (minhas) sete Maravilhas do Mundo

    As (minhas) sete Maravilhas do Mundo

    Após mais de uma década de viagens, que incluíram visitas às sete Maravilhas do Mundo, selecionei os destinos que são, para mim, autênticos “tesouros”. É com esta seleção que inicio esta rubrica sobre as minhas viagens, aqui no PÁGINA UM: com uma “espreitadela” às “minhas” sete Maravilhas do Mundo. De seguida, inicio um ciclo de artigos, mais concretamente um Diário de Bordo. O destino? Um dos meus destinos de sonho: Árctico.


    Foram os serões em família, à volta de um globo terrestre, e as conversas sobre as Maravilhas do Mundo, que me levaram a ter sempre estes lugares no pensamento.  

    Falámos em Maravilhas do Mundo e, inevitavelmente, lembrámos Marco Polo e as suas aventuras a caminho do Oriente. Mas não foram estas as maravilhas que despertaram a minha atenção de criança curiosa. Foram os Jardins suspensos da Babilónia. Olhava deslumbrada para o livrinho ilustrado destes lugares e não conseguia imaginar maior beleza.  

    Egipto

    A grande pirâmide do Egipto – mais do que ser uma obra magistral de engenharia – está envolta em todo o mistério relacionado com a sua construção e utilidade.  

    O Colosso de Rodes! Tive alguns pesadelos, imaginando a grande estátua a ganhar vida quando chegava perto dela. Foram muitas as viagens imaginárias que fiz até estes lugares em criança. Quando já adulta, a vontade de viajar me invadiu (sim, as viagens invadem não pedem licença e não conseguimos dizer que não), defini um início, um caminho para as minhas viagens: conhecer as sete maravilhas do Mundo Moderno.  

    Foi em 2009 que comecei a minha epopeia com a visita ao Corcovado, no Rio de Janeiro. É a Maravilha que nos protege, que nos esmaga com o seu símbolo de fé.  

    Em 2010, visitei o Coliseu de Roma, a Maravilha que nos dá um murro no estômago quando visualizamos as arenas, o derramar sangue e o tirar vidas por pura diversão. Em 2012, cheguei a Chichen itzá, a Maravilha que simboliza a força do império Maya, e o seu El Castillo, a perfeição de um calendário.  

    Em 2015, cheguei, pela primeira vez a Petra, a rainha das sete Maravilhas, a cidade Rosa que nos permite viajar no tempo.  

    Petra, Jordânia

    Em 2016, cheguei à Grande Muralha da China. Milhares de quilómetros fazem desta a maior muralha existente neste Mundo. É a Maravilha que simboliza o esforço e o trabalho de tantas pessoas que ergueram esta muralha sem fim. Também em 2016, perdi o fôlego com a beleza do Taj Mahal, na Índia, a Maravilha que simboliza o amor, a beleza e a riqueza. Em 2017, cheguei ao topo de Machu Pichu, um lugar místico do Império Inca, que nos invade com uma paz e tranquilidade sem igual.   

    São sete Maravilhas porque o número sete simboliza a totalidade, a perfeição, a consciência, o sagrado e a espiritualidade, os elementos presentes em todos, e em cada um, destes sete incríveis lugares espalhados pelo Mundo.  

    Findo este projeto, de visitar as sete Maravilhas do Mundo Moderno eleitas, decidi visitar a única maravilha que restava das Maravilhas do Mundo Antigo: a Grande Pirâmide do Egipto, onde cheguei em 2019.  

    Acredito que está longe do seu aspeto deslumbrante de outrora, mas é, sem dúvida, uma maravilha que tem de ser contemplada num percurso completo dos lugares a visitar neste mundo. Egito é um portal de energia sagrada.  

    Jaipur, capital do Rajastão, Índia

    Em 2020, com meio mundo percorrido decidi, compilar as minhas 7 Maravilhas do Mundo, por ordem de deslumbramento:  

    1 – Petra na Jordânia

    2 – Machu Pichu no Peru;  

    3 – Bagan no Myanmar;  

    4 – Rajastão na Índia;  

    5 – As Pirâmides do Egito;  

    6 – Angkor Wat e os templos do Camboja;  

    7 – A Ilha de Kalsoy nas Ilhas Faroé;  

    Hoje, com uns intensivos 10 anos de viajante, continuo a deslumbrar-me com quase tudo o que visito e com as maravilhas que vou conhecendo, ficando sempre grata por cada viagem que concretizo, pois, o importante é ir ver o Mundo, viajar, explorar e descobrir. Regressamos sempre mais ricos do que quando partimos.  

    Para se visitar as 7 Maravilhas do Mundo – ou qualquer outro destino – convém estar-se informado sobre quais as melhores alturas do ano para o fazer.

    Para visitar o Corcovado, a melhor altura é entre Abril e Novembro, enquanto que para se conhecer Petra, é melhor apontar para o período entre Abril e Maio.   

    No caso de Chichén Itzá, deve marcar-se a viagem para o período Dezembro e Março.

    Os meses de Setembro e Outubro são os ideais para se visitar três maravilhas: Machu Pichu, Coliseu de Roma e Taj Mahal. Para conhecer esta terceira maravilha, pode ainda optar pelos meses de Março e Abril.

    Para visitar a Grande Muralha da China, as melhores alturas do ano são entre Março e Maio e entre Setembro e Novembro.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • Jacob, filho de Sérgio

    Jacob, filho de Sérgio


    O meu filho tem um plano simples: aos 18 pensa ser milionário. Já lhe expliquei que a escolaridade obrigatória na Suécia termina aos 19 (12º ano) pelo que não estou a ver bem a articulação do seu projecto.

    Em todo o caso, também já percebi que ele vai, aqui e ali, pensando em planos B e C, para o caso de o original falhar. De vez em quando, pergunta-me se pode ficar com as residências familiares quando tiver 18 anos.

    Isto leva-me a concluir duas coisas simples: desde logo, ele imagina que o Palácio de Queluz é nosso e ainda – aspecto ligeiramente pior para mim –  que dentro de cinco anos não estarei por cá.

    Sérgio Jacob Ribeiro (à direita), filho de Sérgio Figueiredo.

    Mas eu, como sou optimista, digo não a tudo, embora lhe ofereça ajuda nessa estrada para a fortuna. Aliás, quem é que não quer ser pai de um milionário? E qual é o pai que não ajuda um filho?

    Pelo menos isso sucede na cultura latina, onde somos mais dados à família. Entre os nórdicos já não é bem assim.

    Em tempos, conheci um velhote que mostrava com orgulho uma casa que tinha desde os tempos de estudante e que hoje, já perto da reforma, ainda alugava. Perguntei a quem, e ele, com o sorriso de quem tinha feito um grande negócio, disse-me: “ao meu filho”. Ah, valentes! Cada um por si e Odin por todos!

    Já connosco não é assim. Temos amor para dar e vender. Ajudamos o filho, a nora, o cunhado e a amante do primo. Somos muito da proximidade sanguínea.

    De modo que não entendo o escândalo que agora rebentou a propósito do apoio de 350.000 euros concedido ao filho do Sérgio Figueiredo em 2020, pela Câmara Municipal de Lisboa presidida pelo Fernando Medina, na altura comentador da TVI, canal onde o mesmo Sérgio Figueiredo era director de informação, entretanto convidado para consultor do ministro Medina em 2022 com um salário de cinco mil e qualquer coisa euros.

    Uma pessoa até deveria meter umas dez vírgulas nisto para se perceber o enredo. Não é fácil. Parece aquelas histórias do Jorge Amado que acabavam interpretadas pela Fernanda Montenegro na Globo. Ahhh… bons tempos em que todos víamos a novela da noite porque só havia um canal. Sim pequenada, isto aconteceu. Mas adiante.

    girl holding umbrella on grass field

    Sérgio Jacob, filho de Sérgio, tal como o pai, veio a público defender-se, dizendo que é culpado de ser filho do pai (dele).

    Ora, não querendo ser picuinhas, essa é, na verdade, a única responsabilidade que ele não tem.

    De facto, não tem ele culpa alguma de ser filho do pai dele já que, tecnicamente, não estava presente no momento da escolha. Julgo que podemos pacificamente concordar nesta parte.

    E, provavelmente, também não terá culpa de fazer parte de uma teia de contactos que vale milhões, e que, por acaso, facilita o estabelecimento de uma vida entre aquilo a que decidimos chamar de verdadeira classe média-alta.

    Claro que ele podia escolher o caminho das pedras e trilhar o seu destino, mas, convenhamos, quem é que caminha descalço numa estrada a ferver quando pode ir de Volvo com ar condicionado e o melhor airbag do Mundo?

    A história do Sérgio Jacob não (nos) é estranha porque não é original. É uma entre centenas que não chegam aos jornais. Mas, na verdade, o que é que isso importa? As notícias de hoje serão a forra do caixote do lixo de amanhã. Sim, é verdade: acabei de usar uma passagem do Notting Hill, mas, meus amigos, todos nós vimos aquela história de amor e gostámos. Hoje é que temos vergonha de dizer.

    E a história do Sérgio Jacob é também uma história de amor. A história de um miúdo que, ao contrário de nós, nunca precisou de emigrar, ser rejeitado em entrevistas de emprego ou juntar dinheiro para investir na criação de uma empresa. É alguém que, mal acabou a licenciatura em engenharia das bio-cenas, passou de imediato a cronista de qualquer coisa e, ao fim de um ou dois estágios, já era CEO da sua própria empresa.

    Sérgio Figueiredo

    Nunca precisou de exercer a profissão que estudou e, em menos de três anos, com uma empresa de seis ou sete funcionários, já estava a organizar eventos de três milhões de euros. Segundo o próprio, apoiados em 12% pela Câmara de Lisboa (350.000 euros), mais de 1.000.000 euros vindo do Turismo de Portugal e o restante pela porta da União Europeia, Presidência da República ou Nações Unidas.

    Ou seja, o Sérgio Jacob, filho do Sérgio da TVI, consegue montar um evento de milhões, poucos anos depois de ter saído da universidade, com apoios de instituições públicas onde o comum dos mortais nem sequer sabe onde fica a porta.

    Claro que, ao olho desarmado, uma pessoa fica com a sensação de que a teia de interesses e de devolução de favores entre o Medina e o Sérgio pai pode ter chegado ao filho. Ou até que os contactos de um abrem portas a outro. Mas talvez seja isso mesmo, uma simples sensação. Aquelas coisas que se vêm lá ao longe e se vai dizendo: “parece que é e até cheira… será que é mesmo?”

    E notem: eu queria mesmo acreditar que não. Aliás, os dados que escrevi aí em cima foram-me entregues pelo próprio Sérgio Jacob, na entrevista que deu e no curriculum que escreveu no LinkedIn. Digamos que, um de nós, com o CV do Sérgio não ia longe, talvez, quiçá, em topo de carreira chegássemos ao sector das energias mais verdinhas da EDP. E até dava para um escritório em open space com café gratuito. Mas CEO com três milhões para organizar o “Planetiers World Gathering” já seria mais difícil.

    Antes que comecem já a falar mal, o Planetiers World Gathering, é um certame com três milhões de euros em apoios públicos que se destinam, e cito, “a qualquer pessoa que quer descobrir e aprender mais sobre práticas sustentáveis, startups que procuram investimento para crescer, empresas que estão ávidas por acompanhar as tendências ou liderar a transformação, e empresários que pretendem expandir a sua rede de contactos.”

    Portanto, não é nada. Nem dá para fingir que se anda de unicórnio como na Web Summit.

    Enfim, o meu problema não é tanto a “subida a pulso” dos Sérgios desta vida. É nunca aparecer um gajo, qualquer, vindo de uma aldeia, filho de um pastor, que depois de tirar um curso universitário tenha acesso a investimentos de milhões do erário público na sua empresa. Pode até ser coincidência, mas, quando leio notícias sobre putos da aldeia, é sempre de alguém que usou um machado ou descobriu forma de mastigar sem dentes.

    Donald Trump, outro conhecido empreendedor que subiu a pulso, disse há uns anos, numa entrevista, que tinha “começado do zero, com um empréstimo de um milhão do pai”.

    Ora, o Sérgio Jacob subiu a parada e nem aborreceu o pai: recebeu o seu milhão, não do pai Sérgio, mas de todos nós, assim, sem espinhas e sem nos perguntar se não fazia falta para fechar aquela marquise.

    Empreendedores assim há poucos, o que é pena. Contem comigo para apoiar mais gente com ideias em inglês e pouca vontade de trabalhar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Patrícia Gaspar: com Portugal a arder e ela a falar! 

    Patrícia Gaspar: com Portugal a arder e ela a falar! 


    Milhares de portugueses estão a ser açoitados por pavorosos fogos e ficaram sem saber o que faz Patrícia Gaspar, secretária de Estado da Administração Interna… para os proteger.

    A senhora é uma palavrosa. Não respondeu às simples e pertinentes perguntas do jornalista da SIC.  

    Os portugueses andam açoitados por violentos fogos, em Leiria, Vila Real, Serra da Estrela, aos quais se associam os loucos pirómanos, as alterações climáticas e os interesses económicos.  

    bonfire

    Mas a secretária de Estado da Administração Interna falou, sem dizer nada. Para nosso desespero, que não percebemos a utilidade do Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP), um alegado sistema de interacção de socorro.  

    Foi Daniel Sanches, ministro de Santana Lopes (depois de ser diretor SIS, acompanhado de José Pestana, o homem da imagem da Polícia Judiciária, na altura), que nos meteu numa “aventura” de 540 milhões de euros. A ideia era coordenar as polícias e o socorro, mas não resultou em Pedrógão Grande, onde morreram, de forma estúpida, dezenas de pessoas. O SIRESP ardeu ali, não funcionou.  

    Depois de António Costa se tornar braço direito de José Sócrates – então primeiro-ministro –, torceu o nariz ao SIRESP, mas a coisa lá continuou.  

    Durante muitos anos, o SIRESP foi uma parceria público-privada conturbada. E ainda, em 2018, tinha como estrutura accionista a Motorola, com 14,90% (propriedade da Google!), a Esegur, com 12% (ex BES), a Datacompt, com 9,55% (ex-BPN), a Galilei, com 33% (ex-BPN) e a Portugal Telecom Participações (PT), com 30,55%.  

    Não se descobria aqui o Estado português, a não ser através da Parvalorem.  

    A dada altura, a Altice comprou a PT, que estava falida, e exerceu direitos de preferência. Portugal ficou, então, com apenas 33% de controlo do seu sistema de comunicações de segurança. A Google abocanhou 14,90%, através da Motorola, e 52,1% ficaram na mão da Altice, liderada por um português emigrante e um israelita, ao que consta ligado à Mossad, serviço secreto israelita.  

    As coisas mudaram em 2019, quando Portugal adquiriu o capital privado e transformou o SIRESP em empresa pública, com um presidente a ganhar mais de sete mil euros por mês e uma Assembleia Geral a lucrar 500 euros de senha de presença em cada reunião. Para trás, ficou a pergunta óbvia: quem lucrou com anos de sociedade anónima? Que negócio foi este?  

    A pergunta hoje é outra, que se arrasta aliás no tempo: porque razão o SIRESP continua a falhar estrondosamente?  

    Num teste realizado há dias, o SIRESP chamou a Imprensa para demonstrar a sua eficácia. Mas quem estava numa cave demorou sete longos minutos até conseguir comunicar com quem esperava no 10º andar.  

    Com tudo isto, a senhora secretária de Administração Interna, Patrícia Gaspar, bem pode falar para o boneco! Porque o País precisa de quem faça!  

    Palavras levam-nas as chamas.  

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Faltam obstetras no Verão? Ora, proíba-se o “truca-truca” entre Outubro e Janeiro

    Faltam obstetras no Verão? Ora, proíba-se o “truca-truca” entre Outubro e Janeiro


    Durante a pandemia, os apelos directos para desopilar dos hospitais, de sorte a salvar os doentes-covid, tiveram consequências ainda hoje não mensuradas. Só em 2020, foram suprimidas 700 mil cirurgias programadas e 50 mil urgentes, de acordo com o Conselho Nacional da Saúde, que só acordou para o assunto este ano.

    Embora não tenha havido uma proibição expressa, a censura social e o medo levaram também muitas pessoas a fugirem dos únicos locais que lhes poderiam salvar a vida em casos mais extremos.

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    Mas houve muitas proibições desde 2020. Lockdowns, restrições às actividades económicas sociais, permissões após com base num documento administrativo, tudo imposto à generalidade da população sem critério científico. Tudo se endossou, em termos de responsabilidades e “culpas”, aos cidadãos, obrigando-os a pagar a fava: era o povo que deveria salvar o SNS da pandemia; não o SNS a salvar o povo dos efeitos da pandemia.

    Esta postura, entre o paternalista – em que disciplina o menino mal-comportado – e o indolente – o Estado esquece-se de que serve a sociedade, e não é a sociedade a servir os políticos –, foi ganhando escola. Está tão enraizada, que já se encontra quase universalmente aceite. Numa democracia, veja-se.

    Agora, proíbe-se genérica e cegamente, sem sequer ser necessário uma justificação técnica e política. Basta comunicar, decretar, uma Resolução de Conselho de Ministros serve perfeitamente, que a acrítica imprensa mainstream facilita a tarefa.

    Neste momento, uma proibição – que passe pela retirada de direitos adquiridos – constitui uma eficaz “arma política” de desresponsabilização.

    Por um lado, o Governo assume que só proíbe porque está em causa o bem comum – logo, ele é o lado bom.

    stack of jigsaw puzzle pieces

    Por outro, coloca o “problema” num patamar de nível gigantesco, sobre-humano; logo, se falhar, falha apenas porque… exacto, o problema era de nível gigantesco.

    Além disso, a proibição é sempre entendida como uma acção: o Governo age. E, com a proibição, mostra o “músculo”: coerção e censura social, pelo menos.

    Mostra-se autoritário contra os “faltosos” e contra aqueles que os criticam. Melhor ainda assim. Se houver contestatários, tanto melhor: serão transformados em “óptimos” bodes expiatórios. Lembrem-se dos tão “úteis negacionistas” (para onde se “chutaram” até as vozes incómodas e sensatas para forçar o unanimismo). E lembrem-se da epidemia dos não-vacinados…

    Passada a pandemia (será?), temos agora nova onda de proibições com o intuito de resolver problemas políticos do Governo.

    A floresta está mal gerida e o sistema de combate é obsoleto, e à conta disso os incêndios podem assumir um risco catastrófico? Cria-se uma “onda de calor” (antes mesmo de se assumir que se está perante uma), decreta-se uma situação de alerta (ou quejanda) para todo o país e generaliza-se uma proibição até ao absurdo, incluindo encerramento de monumentos. Depois inventa-se um algoritmo para dizer o impensável: podia ser pior se não fosse o Governo.

    people walking near fire

    Os Governos europeus geriram estupidamente a “guerra financeira” contra a Rússia em consequência da Guerra da Ucrânia? Pois bem, imponha-se “proibições e limitações na climatização e iluminação de espaços comerciais e públicos”, sem critério nem análise de benefícios (antecipar fecho de lojas para poupar energia terá um balanço positivo, tendo em conta que as pessoas assim vão para casa?). E não se fale na ineficaz política de eficiência energética em Portugal, nem na crónica fraca aposta na ferrovia nem nos projectos de mobilidade de fazer de conta.

    Temo que o Governo não pare por aqui na arte do proibicionismo endossando culpas para a sociedade, que assim merece castigo.

    Por exemplo, para “solucionar” a falta de obstetras em Julho, Agosto e Setembro, a arte do proibicionismo pode ser aplicada. Bem sei que, antes da pandemia, já havia queixas nesta época do ano. Em 2019. Em 2018. Em 2017. Em 2016. E por aí fora.

    Ora, mas o Governo pode bem convencer-nos que a culpa não é das fracas condições dadas aos obstetras e ginecologistas no Serviço Nacional de Saúde – e que migram assim para os privados. Nem se deve ao facto de ser habitual que se concentrem as férias no período estival, levando a uma redução no número de médicos disponíveis em todas as especialidades (bem nos avisa a Dra. Graça Freitas).

    Número médio de nascimentos por mês (período: Janeiro de 2011 a Maio de 2022). Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Na verdade, o Governo pode agora “culpar” as grávidas, que, enfim, concentram os partos no Verão e no início do Outono. Podem culpar o timing dos casais que, sem noção das consequências nove meses depois, engravidam entre Outubro e Janeiro.

    Donde, na nova “escola de fazer política”, a solução está à mão: proíba-se o truca-truca em Outubro, Novembro, Dezembro e Janeiro. E, com esse singelo acto, em Resolução de Conselho de Ministros eficazmente transmitida pela Lusa e “viralizada” pela imprensa mainstream, conseguir-se-á a paz absoluta durante o Verão em todas as maternidades e urgências de Obstetrícia.

    Ah!, e temos bodes expiatórios. Quem não tiver espírito de missão, pelo bem comum, saiba que o “objecto” do crime será detectado. E sem contemplações, os agentes nocivos da sociedade serão multados convenientemente pelo Estado (por antipatrióticos e egoístas) e censurados e ostracizados pela sociedade como párias. Amen.