Categoria: Opinião

  • Num futuro perto de si

    Num futuro perto de si


    Um homem jazia no centro da sala prateada com eléctrodos na cabeça que comunicavam com um computador. A tela exibia o cérebro com várias cores.

    — Com um simples toque no botão, conseguimos eliminar as memórias traumáticas, as maiores tristezas, os maiores medos. Sairá daqui um ser renovado. Esta criatura apegou-se à religião, a psicólogos, a psiquiatras. Em segundos, sairá liberto de todos os seus problemas.

    Os dois continuaram a caminhar.           

    — Está a ver esta mulher?               

    — Sim.

    — A mãe repudiou-a, o pai abusou dela sexualmente… Viveu na pobreza material e emocional, o seu companheiro batia-lhe, foi prostituta, drogada, alcoólica. Está a ver o grau de dor que esta senhora transportou nos últimos anos? Veja bem — o seu dedo indicava uns gráficos numa tela. — Uma dor intolerável. Mutilava-se para deslocar a dor. Acha isso agradável? Só não recorreu ao suicídio por causa da ideia bacoca da fé. Converteu-se ao veneno da religião, porque nada mais lhe restava. Com esta máquina, vamos inocular no seu cérebro cargas de fx47 até que se recomponha. Ela pediu que não removêssemos memória…

    — Pessoas de palavra.

    — Deixe lá a palavra e o valor da palavra… Por higiene, dispenso ouvir a tralha dos «valores». O importante é maximizar a utilidade. Os valores cegam a capacidade de ver o real, enquanto os resultados são objectivos e verificáveis. Este método tem uma eficiência menor do que o primeiro. Se isto não funcionar, se isto não funcionasse, quero eu dizer, teríamos de remover memória. 

    — Já têm casos de êxito?

    — Meu Bom Deus da Tecnologia! Quantos!

    — Mas li um estudo há duas semanas…

    — Duas semanas! Homem, na sociedade tecnológica, duas semanas são uma eternidade! Isso já não tem validade nenhuma. Isso é para arqueólogos!

    — Que lhe garante então que as verdades provisórias de hoje não sejam as mentiras de amanhã?

    — Você é um homem de museus, já percebi. Não quer ou não consegue acompanhar a velocidade do progresso. Os próximos milagres a que irá assistir talvez lhe dêem a dimensão…

    Uma porta abriu-se.

    — Viu? A porta respondeu ao meu desejo. Nesta sala, estamos a trabalhar no sentido de que os objectos respondam automaticamente a apetites do cérebro. A fé move montanhas aqui! Desejo, logo tenho.

    — Se tiver o dinheiro para isso.

    — Isto é apenas o princípio do princípio. Já imaginou o que será quando cada humano tiver o que deseja mal o desejo nasça?

    — Parece-me que a estrada natural é interrompida: definição do objectivo, esforço, concretização do objectivo, satisfação. Levando ao limite: conseguir tudo o que se quer sem fazer nada por isso pode ser quase tão desmotivador no longo prazo como não conseguir quase nada do que se quer fazendo tudo por isso. Ponderaram as consequências disto e de como o cérebro dos humanos deixará de ser um músculo exercitado?

    — Lá vem a cantilena das cavernas… Para já, humano é um conceito em transição. Nós não ponderamos, homem, nós andamos a reboque da tecnologia… Mas ouça: se preferir ir a pé para outro continente a usar tecnologia… vá! Entendeu?

    Andaram mais uns passos.

    — Conhece esta cara, certamente…

    — Este é o sujeito que anda a ser procurado…

    — Exactamente! Os robopolícias apanharam-no. Este indivíduo é… ou era… extremamente violento. Um agressor. Teve de ser internado aqui. Veja ali — apontava para um gráfico. — Os nossos aparelhos já diminuíram 873 tmy do seu índice de agressividade. Está um doce. Mas ainda queremos fazer mais. Muito mais. Bem, deixe-me mostrar-lhe uma coisa.

    Com o comando, desligou uma máquina.

    — Levanta-te.

    O homem levantou-se e sorriu.

    — Tu és um cabrão de merda! Vai para o caralho! A tua mãezinha chupa a minha pila como ninguém.

    O homem continuou sorrindo.

    — Toma, seu filho de puta! — disse, enquanto lhe dava uma vigorosa chapada na cara.

    O sorriso permanecia.

    — E agora só para ti…

    Um grande escarro acertou na cara do outro.

    O homem limpou-se, balbuciando palavras de repreensão.

    — Senta-te! Imediatamente!

    O sujeito obedeceu.

    — Temos de continuar a trabalhar nele. Ainda mostra sinais de rebeldia. Se tivesse vindo para cá mais cedo, não teria matado ninguém.

    — Se isto é um homem…

    — Já não era um homem antes! Era um monstro! Agora… é um monstrinho inócuo.

    — Mas…

    — Você é o homem do «mas»! Já sei, já sei! O discurso do Homem Fossilizado… Os velhos preconceitos: contra naturam, a identidade, a autonomia, o livre-arbítrio, o domínio da mente por forças exógenas, blá-blá-blá. Isso é uma visão de fora. Uma abstracção típica de quem está preso à canga dos filósofos, dos poetas. Mas vou adaptar-me ao seu linguajar. Deve gostar de conceitos arcaicos como liberdade e justiça. À luz dessas obsolescências, tente entender que a tecnologia também é boa. Somos todos escravos: do sítio em que nascemos, da família, da idade, dos genes. Pois bem, é dessa escravatura que nos estamos a libertar. Da dupla escravatura do Homem e da sua circunstância. Repare na idade: a degenerescência, a falência dos órgãos. Essa escravatura está a ser contrariada. Estamos a transplantar cérebros para corpos autónomos. Poderemos chegar muito longe. Acha a lotaria dos genes algo justo e libertador? Pois também essa escravatura está a ser corrigida. Bem, vamos para a próxima sala.

    Entraram na sala com maior número de imagens e sons.

    — Sala das Evasões… Esta sala sozinha tem aguentado o sistema… enquanto as outras não avançam significativamente… Estamos a trabalhar em filmes, músicas, vídeos, jogos, produtos de consumo, publicidade de produtos e ideias. Isto é uma parafernália. Estamos a trabalhar nos bastidores do entretenimento, do cozinhado perfeito das emoções induzidas… Num estádio mais avançado, esses próprios instrumentos serão desnecessários. Passo a explicar: se uma pessoa sente uma ou duas emoções fortes com um filme ou um livro, porque não tocar directamente na corda dessas emoções num instante, em vez de se perder tempo com poemas, enredo, personagens, essa treta toda? Queremos conhecer o cérebro até o dominar completamente.

    — Se esse poder cair em mãos…

    — O seu preconceito pessimista crónico… Coitado de si! Que infeliz!

    — Quem legitimou esse poder? Quem vos deu esse direito de enganar e manipular as pessoas?

    — Largue a posição de provocador e ponha-se na de aprendiz. Talvez lhe entre algo na massa encefálica… O senhor não mentiria para salvar a sua filha de ser morta? Temos mais informações sobre a sua filha do que o ela tem sobre si própria, fique sabendo. Cale-se e não ponha a verdade acima da felicidade. A coisa passa-se assim… Quer sentir calma? Sentirá. Quer sentir excitação? Sentirá. Não quer, mas precisa de sentir para não pôr em perigo outros nem alimentar ideias anti-sistema? Sentirá também. Melhor ainda: quer sentir-se anti-sistema? Nós damos-lhes mecanismos para alimentar essa ilusão.

    — Nem lhe pergunto se quem toca na corda de pôr o outro feliz, artificialmente feliz na minha estreita e obsoleta cabecinha, não poderá igualmente tocar na corda do sofrimento e provocar os maiores horrores. Tirando este senão de pessimista…

    — Homem, isso será útil para a tortura mais apurada. Você é amigo de algum terrorista? Se não é, não percebo a sua reserva. Mas o caminho que trilhamos, ou que queremos trilhar, não é o da repressão, é o da diversão.

    — Permita-me apenas fazer-lhe notar que essa bela ilha, não lhe chamarei de estupidificação para não lhe causar melindre, essa bela ilha de diversão ou de alienação que me apresenta, essa fuga sem a qual os humanos não suportariam viver na sociedade hodierna, afasta o ser humano da sabedoria, da procura interior, das coisas que o elevam… Isto não tem uma base técnica e, por isso, não percebe.

    — Não pessoalize. Não é de mim ou de si que se trata. É de algo colossal, do qual assumo orgulhosamente a minha condição de servo.

    — Nem é perceber… é sentir. Há coisas verdadeiramente importantes que não têm necessariamente justificação ou base técnica, como os direitos humanos, a liberdade, a poesia lato sensu.

    — Homem, as pessoas não querem ser sábias nem comem abstracções; querem ser felizes. Temos aí uma caterva de arruinados cerebralmente que estamos a recuperar por causa da «procura interior». E, além disso, você nem enxerga o paradoxo criado pelo seu caos mental quando fala da «sabedoria»: nós aqui laboramos no sentido do conhecimento do cérebro!

    — Para que as pessoas sejam plasticina nas vossas mãos.

    — Liberte-se do poder das palavras dos Fossilizados… Faça esse favor a si próprio! Não fique no triste papel do último resistente. As intenções não contam, contam os resultados. Se discorda, responda a si próprio: preferiria que um bem-intencionado ajudasse a atravessar a velhinha sua mãe na estrada e isso tivesse como corolário o atropelamento da sua progenitora ou que alguém que a tentasse matar não conseguisse sequer arranhá-la? Aquele jogo ali, homem — apontava com o olhar e o dedo indicador —, vai ser a maior droga que já existiu! Irá, aliás, benemeritamente substituir muitas drogas que matam e arruínam lares. Veja os olhos esbugalhados daquele indivíduo. Não pensa em mais nada! Só no jogo! Mas ainda estamos a aprimorar a necessidade de dependência e a capacidade de alheamento que o produto provoca.

    — Mas o vício não é prazer, requer obediência e mata a liberdade.

    — Veja se percebe… Se não há uma fracção de segundo para o desprazer durante o jogo e se o jogador consegue estar sempre imerso no jogo, um mínimo de lógica dir-lhe-á que ele é feliz a tempo inteiro.

    — No próprio jogo, suponho que tenha de haver desprazer para depois haver prazer. Ganhar sempre tornaria o jogo bocejante mais dia, menos dia. Mas vejo que temos conceitos diferentes de felicidade… Felicidade, no meu pobre espírito, não é maximizar o prazer, é o tom de fundo, a paz, a satisfação interior para lá dos bons e maus momentos. O que me mostra são apenas poderosas drogas que criam um mundo virtual, mas, ainda assim, nos interstícios, quando o indivíduo volta ao real, quando se olha ao espelho…

    — Está tudo pensado. O jogo é tão viciante, que quase não haverá interstícios. Até porque não os queremos a causar distúrbios. Quanto ao mais, temos comprimidos para os interstícios. Homem, veja o que está à sua volta e deixe a realidade destruir os pedregulhos do seu cérebro. Eles estão deliciados, não se queixam, mas você quer que eles se queixem de coisas etéreas, de conceitos que o aprisionam a si, educado, rigidamente educado que foi na velha escola caduca dos líricos. O seu ódio da teologia do lirismo cega-o! Isto é útil para o jogador e, não menos importante do que isso, mais seguro para todos.

    — A vossa utopia reside em o Homem, ou um arremedo dele, passar a adaptar-se totalmente às necessidades do sistema tecnológico. Apesar de ser beato da tecnologia, sendo a sua condição a de humano, pergunto-lhe se considera a hipótese de um dia os próprios humanos serem dispensáveis em certo estádio tecnológico?

    — Dormi a meio da sua prédica… Você insiste em querer suscitar problemas… Que dizer? Um asno é mais inteligente do que você. Vejamos, então, à luz do Homem, como é que as coisas se passam, meu caríssimo poeta. Olhe para eles, olhe para eles… Eles não nos ouvem. Os jogadores conseguem esquecer-se dos problemas individuais, dos problemas da sociedade, e os outros deixam de ser prejudicados por eles. É difícil para si entender que todos ganham?

    — Uma maravilha, ainda que isto talvez não seja atacar o problema pela raiz. Nem me atreverei a aventar que o sistema estará a ter cada vez mais casos de inadaptados, de pessoas que não conseguem sobreviver mentalmente nele e que aquilo que me mostra são apenas as formas que o sistema tem de garantir a sua preservação e expansão. Observo apenas que o sábado deixa de ser feito para o Homem; o Homem volta a ser feito para o sábado. Digo-lhe ainda que, por incapacidade minha certamente, tenho alguma dificuldade até, imagine!, em aderir a propostas que resolvam todos os problemas de toda a gente.

    — Ora aí está o lastro da pequenez mental… São milénios de provincianismo a falar na sua cabeça. Tente não pensar e observe. Areje os neurónios… Veja a cara de entusiasmo dos jogadores, estão possessos pelos deuses! Veja, veja, veja — gesticulava num frenesi — e deixe-se de uma vez por todas de observações idiotas. Venha agora conhecer os nossos geneticistas…

    — Sim…

    — Está a ver? O gene do crime, de uma série de doenças físicas e mentais, da própria fealdade… Caminharemos para erradicar tudo isso com o corrector dos genes!

    — O crime, por exemplo. Se alguns pais que saibam precocemente não quiserem…

    — Você tem um problema mental estrutural! — interrompeu-o. — Só se concentra no acessório em detrimento do miraculoso. Tenho outra visita a seguir. Não tenho muito mais tempo para si. Queria só mostrar-lhe a Sala Eros. A textura e o olfacto são finalmente equiparáveis à audição e à visão. As pessoas podem tocar-se e cheirar-se a qualquer distância. Iremos dar um salto quântico. Todas as fantasias poderão ser realizadas. Ainda não temos autómatas e autómatos perfeitamente confundíveis com os humanos, mas as similitudes são cada vez maiores. O humano já conversa com o autómato, já se excita. Acha justo um homem ou uma mulher ou qualquer outro género não poder ter uma vida sexualmente cheia por ser menos atraente, seja por que motivos for? E as parafilias? Não acha mais saudável para todas as partes as parafilias poderem ser vividas sem causar dor a outro? As criaturas que vê não sentem. Esta sala tem diminuído as neuroses. E de que maneira!

    — Muito bem, então. Estou convertido. Está na hora…

    — Pois está… Ninguém é infinitamente estúpido, não é verdade? — disse, fazendo que os seus olhares se cruzassem. — Que achou disto tudo?, diga lá.

    — Não sei se é um inferno paradisíaco ou um paraíso infernal. Estava a pensar no seguinte: um homem tirano tem uma propriedade em que trabalham quinhentos trabalhadores de manhã à noite. Com as vossas drogas, eléctrodos, implantes, comprimidos, eles são totalmente obedientes, produtivos e, note bem, felizes. Mas pergunto-lhe: deixam de ser escravos?

    — Não precisava de dizer nada. Ah, ah, ah. A sua actividade cerebral foi captada. Esteve sempre em tensão, sempre dominado pela raiva e pela repulsa. Provavelmente, quereria sair daqui e pôr uma bomba nisto tudo. Deve julgar que andamos a dormir.

    Umas correntes nasceram do chão e imobilizaram o homem.

    — Não sairá daqui… Tem duas hipóteses: ou morre, ou é lavado e enxaguado cerebralmente, passando a integrar esta casa como funcionário exemplar.

    — Escolho a primeira hipótese.

    — Seja feita a sua vontade.

    Passados uns segundos, atirou:

    — Nunca houve senão segunda hipótese. Ah, ah, ah. Sossegue, a sua memória não guardará um átomo das suas obtusas convicções.

    O chão cindiu-se e o futuro funcionário exemplar foi arrastado para uma sala de maquinaria.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Jeff Bezos diz ‘Ka-ma-lá e pára o baile’

    Jeff Bezos diz ‘Ka-ma-lá e pára o baile’


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 10º episódio, analisa-se o apoio do magnata e dono do Washington Post, Jeff Bezos, ao anúncio do jornal de que não vai recomendar o voto em nenhum dos candidatos na corrida à Casa Branca. Isto num cenário em que a maioria dos media mainstream faz propaganda aberta e descarada a Kamala Harris, que tem exercido o cargo de vice-presidente na Administração Biden.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • A vida sem likes

    A vida sem likes

    Aquele centro comercial dos anos 80, edificado num período em que o futuro parecia ter futuro, só tinha cinco lojas a funcionar. As demais pareciam ser para arrumações ou estavam simplesmente fechadas a sete chaves. A covid-19 e a respectiva crise encerraram alguns espaços que depois não voltaram a abrir. Chovia no átrio, e pouca gente entrava nos estabelecimentos abertos que ainda mantinham actividade.

    Um cabeleireiro, uma esteticista, um oculista e um estranho e sinistro consultório de um suposto médico homeopata mantinham o centro comercial de dois andares meio morto, ou meio vivo para quem gosta de pensar na imagem do copo, enfim, em estado quase zombie.

    Foto: Ruy Otero

    Mas uma galeria vocacionada para a arte era a última novidade do centro comercial e a esperança, quiçá ingénua, dos lojistas de um rejuvenescimento pulsante do lugar.

    A esteticista, de quando em vez, e porque o processo de construção do novo espaço fora demorado, ia até à galeria em obras e divagava sobre arte abstracta que via em feiras de antiguidades, e fazia declarações alucinadas, por exemplo que o Citröen Xsara Picasso havia sido desenhado pelo próprio artista espanhol. Estava convencida de que Matisse estava vivo e aparecia na ¡Hola! , confundindo certamente o artista com algum socialite e mantinha que Marlon Brando morrera num acidente de automóvel com vinte e poucos anos. O alegado homeopata reforçava-lhe as crenças, garantindo-lhe que Matisse (que não era ninguém) não só era habitué da ¡Hola! como era graças a si que ele ainda podia andar e conservava aquele fantástico aspecto. Coisa de loucos mas que chegava a ser divertido.

    A galeria iria abrir no mês seguinte, e, num dia em que um dos artistas estava com a porta aberta, uma senhora, na casa dos quarenta, rompeu pelo átrio adentro e dirigiu-se à porta da galeria. Explicou ao jovem artista que estava muito curiosa quanto à recente loja, ou lá o que era, que parecia ir abrir. Fez ainda referência a um grupo ao qual pertencia que gostava muito de eventos e que certamente iriam ser clientes da loja, ou do que aquilo viesse a ser. Com um timbre quase formal, acrescentou:

    — Desculpe, posso entrar para resolver o mistério?

    — De que mistério se trata?

    — É que eu já passei várias vezes ali na rua e vi que vocês têm nas montras uns televisores… Quer dizer, às vezes, noutros dias têm uns bonecos de madeira, umas máscaras e até umas roupas dispostas de uma forma tão estranha, sempre em mutação, e isso estimulou a minha curiosidade por isso finalmente decidi entrar para saber de que loja estamos a falar. Você é o dono, certo?

    — Isto é mais uma associação. Não há donos.

    — Mas é uma loja vintage? De fora, parece.

    — Não. Isto é uma galeria de arte que vai abrir em breve com exposições.

    — Ai sim? Posso entrar para ver? Se não me levar a mal…

    — Ainda não tem muita coisa. Tem só umas experiências que estamos a fazer para perceber que tipo de luz vamos instalar e para perceber melhor a disposição.

    Foto: Ruy Otero

    A senhora entrou sem pedir licença e deu uma breve vista de olhos ao espaço. Estava desconfiada.

    — Pois. Vejo que sim. Vocês têm isto nas redes sociais? Facebook, Instagram…

    — Sim. Tem aí na montra a morada.

    A senhora deu um passo curioso até à montra e tirou o smartphone da mala.

    — Sim. Aqui estão os links, muito bem. Estou a ver.

    Olhou para o seu smartphone com um ar intrigado e ao mesmo tempo ia dando uns esgares bastante estranhos para alguns pormenores que faziam parte da galeria. Fixou o olhar numa zona onde se acumularam umas infiltrações, ao que o rapaz, tendo reparado no olhar atento da senhora, disse que já estava previsto o arranjo. E depois de forma simpática ainda rematou:

    — Tem aí já alguma informação acerca do que iremos apresentar. Sobretudo no Instagram. Está para breve a inauguração.

    Foto: Ruy Otero

    — Sim, sim. Estou a ver. Não usam o Tik-Tok?

    —Por enquanto não.

    —Estou a ver. Sim senhor.

    Ao fim de uns segundos, comentou com um rosto que oscilava entre a desilusão e o desdém:

    — Mas vocês só têm vinte e um likes aqui.

    — Por enquanto, sim.

    — Só?

    — Sim.

    — E nem stories têm.

    — Não se pode ter tudo.

    Ainda gracejou o rapaz  com um sorriso nervoso.

    — Vinte e um! Como é que se pode ter só vinte e um likes? E só têm cinquenta seguidores! E depois querem o quê! Eu até gostei de algumas coisas e até comprava mas com vinte e um likes… Não.

    O rapaz já nem respondeu.

    Foto: Ruy Otero

    A senhora apressou-se a sair pelas escadas que davam para a saída do primeiro andar, totalmente incrédula. Enquanto subia, ainda olhava para a porta da galeria, e o jovem continuava a ouvir a sua voz.

    — Vinte e um! Tch! Vinte e um. Vinte e um likes?! Como é que é possível… Tch! Cinquenta seguidores até o meu sobrinho de oito anos tem. Não quero acreditar. Vinte e um likes… Ridículo!

    O jovem artista, até então entusiasmadíssimo com a galeria, teve um clarão: valia um 0,0000001 do que valia a Cristina Ferreira e 0,0000000000000000000001 do que valia o Ronaldo. Entrou numa espiral de pensamentos negativos, com ressonâncias de versos pessoanos.

    «Não sou nada, nunca serei nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo, mas quase nenhum like. Vinte e um likes? E só temos cinquenta seguidores. Cinquenta! Que sentido tem isto? Que sentido tem a minha vida? O que é uma vida sem likes

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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  • A primeira caricatura portuguesa sobre cerveja

    A primeira caricatura portuguesa sobre cerveja


    Introdução

    Quem, naquela 4ª feira, dia 3 de setembro de 1902 olhasse atentamente para os quiosques dos jornais poderia ver, ao lado dos respeitáveis O Século e O Diário de Notícias, uma curiosa caricatura a toda a primeira página no jornal humorístico A Paródia. A caricatura intitulava-se Os Direitos da Cerveja e era da autoria de um jovem desenhador chamado Celso Hermínio.

    E quem, naquele dia de fim de verão de 1902, comprasse esse jornal humorístico mais famoso da história do nosso jornalismo, decerto sorriria com a sátira que nesse cartoon se manifestava. Depois, talvez metesse o jornal debaixo do braço ou o fosse folheando ao caminhar para o Chiado onde iria tomar um café, uma orchata ou um capilé na Brazileira, ao mesmo tempo que olharia de soslaio para as elegantes que pululavam a rua Garrett com saquinhos de compras da loja Paris em Lisboa. Contudo, de um pormenor é que o nosso leitor não desconfiaria: é que aquele desenho era a primeira caricatura portuguesa sobre cerveja. E assim o nosso eventual leitor iria bebericando o seu cafezinho e comentando as novidades, desconhecendo que teria na sua posse um documento histórico.

    Ora é a história dessa caricatura e do seu contexto que iremos aqui esboçar…

    Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905)

    O jornal

    Comecemos por falar do jornal no qual a célebre caricatura ocupava toda a primeira página. Diga-se que não se trata de um jornal qualquer. Estamos perante o mais célebre jornal humorístico da história multissecular da imprensa portuguesa e que ainda hoje é amiúde estudado nos nossos cursos superiores de comunicação social.

    O jornal humorístico A Paródia começou a ser publicado em 1900. Era o quarto jornal satírico de grande referência publicado entre nós pelo célebre artista, escritor, jornalista e desenhador Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), cujo retrato aqui mostramos.

    Depois de A Lanterna Mágica (1875), o António Maria (1879-1898) e Os Pontos dos is (1885-1891), A Paródia era um semanário de referência que, sob a direção de Bordalo, fazia as delícias dos burgueses e o temor dos políticos que se viam retratados nas caricaturas sem grande piedade. O periódico inspirava-se nos jornais satíricos que estavam em voga por essa Europa fora, como o inglês Punch ou o francês Charivari. Todavia, deve-se dizer que em nada ficava atrás daqueles dois famosos jornais. O nosso A Paródia era tão bom como os melhores de lá de fora… E só para se ter uma ideia da sua qualidade e atualidade basta passar os olhos pela primeira página do primeiro número (17 de janeiro de 1900), no qual a política era representada por… uma grande porca.

    O jornal A Paródia iria ser descontinuado em 1907. Contudo entrara já em lenta agonia após a morte do seu mentor e fundador, em 1905. Nos anos de 1906 e 1907 o periódico seria dirigido por Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, filho de Rafael Bordalo Pinheiro. Deve ser referido que o jornal A Paródia está disponível online no site da hemeroteca de Lisboa que em baixo indicamos.

    Pelas páginas de A Paródia passaram vários caricaturistas portugueses. Desde logo, claro, o incontornável Rafael Bordalo Pinheiro. Depois, o seu próprio filho, o já referido Manuel Gustavo. Em seguida, uma série de caricaturistas de que não ficou grande fama. A maior parte deles cumpria a sua função com eficácia e profissionalismo, mas não tinham o talento do seu diretor, valha a verdade. Um desses caricaturistas menos conhecidos, porém, prometia muito. Era um jovem em quem se vislumbrava algum talento e que o mestre Rafael resgatou do anonimato, empregando-o no seu jornal. Chamava-se Celso Hermínio e foi ele o autor da caricatura histórica de que aqui falamos.

    O autor

    No universo dos caricaturistas nacionais do início do século XX o nome de Celso Hermínio não aparece ao lado dos mais famosos, como Rafael Bordalo Pinheiro, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, Stuart Carvalhais ou Leal da Câmara. Mas essa ausência não se deve a falta de talento, pois desde cedo que o rapaz mostrou ao que vinha. O problema é que Celso Hermínio faleceu ainda novo, com 33 anos, vitimado por uma pneumonia, maleita fatal ao tempo. Falemos um pouco do homem que nos deu a primeira caricatura portuguesa sobre cerveja e cujo retrato aqui reproduzimos

    Celso Hermínio (1871-1904)

    Celso Hermínio era filho de um militar, o general Gaudêncio Carneiro (também ele um homem de letras) pelo que a sua aprendizagem fez-se um pouco por todo o país, ao ritmo das colocações castrenses do seu pai. Foi em Ponta Delgada que o seu precoce talento desabrochou, fazendo as suas primeiras caricaturas num pequeno jornalito familiar chamado A Mosca. Mas como em Portugal as artes não davam (e não dão) para sustentar a vida, Celso prosseguiu as pisadas paternas e seguiu a carreira militar, ao mesmo tempo que frequentava o curso preparatório da Escola Politécnica de Lisboa.

    Mas a arte estava-lhe no sangue. Por isso começou a frequentar as tertúlias artísticas de Lisboa, dando nas vistas pela sua verve radical e panfletária a que se sucediam, segundo os testemunhos do tempo, alguns períodos de langor e de preguiça. O seu feitio, arisco e difícil, afastava-o das modas e apartava-o das multidões. Todavia, todos lhe elogiavam o traço e o humor, destacando-se os seus retratos satíricos que ao tempo se chamavam portrait-charge. Desse tempo dizia-se que o lápis do Celso não era um lápis, era uma moca

                A sua arte não passou despercebida ao olhar sábio de Bordalo Pinheiro, que o convidou para desenhador regular de A Paródia. Era um passo em frente, depois de anos a desenhar para jornais menores e pasquins de ocasião. E durante quatro anos Celso Hermínio publicou os seus desenhos naquele periódico, lado a lado com o seu amigo e diretor.

    No dia 8 de março de 1904, apenas um ano e seis meses depois de publicar a primeira caricatura nacional relativa à cerveja, Celso Hermínio pereceu, vítima de uma pneumonia dupla. Nas páginas de A Paródia escreveu-se: A morte prematura de Celso Hermínio privou a arte da Caricatura em Portugal de um dos seus cultores mais jovens, mas mais talentosos e fecundos. Graças a uma real aptidão e a um esforço incessante. Celso Hermínio, tendo feito uma carreira rápida e brilhante, alcançara já um lugar indispensável entre os humoristas do lápis, no nosso país. Era um bom caricaturista, com um grande poder crítico e uma technica absolutamente original…

    Mais comovedor foi o testemunho de um outro mestre das letras nacionais, Raul Brandão, que nas suas Memórias escreveu: O Celso morreu ha um mez n’um dia de chuva como este. Mas, quando o caixão chegou ao pé da cova, luziu o sol no alto. O ar parecia novo e no vasto campo dos túmulos agitaram-se as cabeças amarellas dos malmequeres. Os pássaros começaram a cantar. E viu-se logo o Brito Aranha, de pera branca, dar um passo em frente e fazer um discurso:—O amigo… o camarada… descança em paz.—Depois o Cunha e Costa falou na nossa decadência, e por fim o Carneiro de Moura mastigou também uma banalidade… Sentia-se que tudo aquilo era postiço. Mas os pássaros não cessavam de cantar—e a meu lado o D. João da Camara suspirou baixinho: —Quem me dera que quando eu morrer só o saibam meia dúzia de amigos!…

    Enfim, o autor da primeira caricatura portuguesa sobre cerveja não foi um qualquer. Nem sequer foi alguém que poderia ter sido, mesmo se é verdade que poderia ter sido mais conhecido e bem maior do que foi. É o destino. Mas ficou a obra. Como a caricatura de que agora iremos falar.


    A caricatura e o seu contexto

    Desaparecido o homem, temos a sua obra. Vejamos então a caricatura que saiu naquela 4ª feira, dia 3 de setembro de 1902 e que ocupou a primeira página de A Paródia:

    A caricatura intitula-se Os Direitos da Cerveja e exibe duas garrafas ricamente vestidas de damas finas. Nos rótulos as palavras Jansen e Pilsener são bem visíveis. As garrafas passeiam-se altivas e vão distribuindo dinheirinho a cinco guardas municipais (os antecessores da PSP e da GNR) e a dois cavalheiros bem vestidos. No canto inferior direito, temos a assinatura de Celso Hermínio. Em baixo, à laia de legenda, lê-se: Direitos que se entortam.

    Assim, sem mais nem menos, a caricatura pouco diz. Mas o próprio cabeçalho do desenho parece remeter para um artigo em páginas interiores. Folheemos então o jornal. Nas páginas 6 e 7 (que abaixo reproduzimos) temos então um pequeno artigo chamado A cerveja e a farinha e da autoria de Celso Hermínio. O artigo rezava assim (reproduzido segundo a grafia do tempo):

    A semana finda deu logar, depois da revelação do caso da farinha de trigo, à revelação do caso da cerveja.

    O caso da farinha de trigo era o caso da fraude contra o contribuinte.

    O caso da cerveja era a fraude contra o Fisco.

    Dizer que entre o fabricante de farinha e o fabricante de cerveja, o nosso coração hesita, é faltar impudentemente à verdade.

    Não! O nosso coração não hesita. – Elle vae todo para o fabricante de cerveja. 

    Por isso –porque não dizel-o?- as providências pomposas  adoptadas contra a fraude da cerveja chocaram o nosso animo, abalado precisamente pela ausência de providências contra a fraude da farinha, e quando se tornou publico que o dualismo Inspecção Geral dos Impostos e Juizo de Instrucção Criminal, se encontravam em conflicto, por motivo das referidas providências, nós regosijamos-nos e fizemos todos os nossos votos pela cerveja que é o Fisco, contra a Farinha, que é o contribuinte.

    Se estes votos podem implicar qualquer género de perseguições judiciaes, que ellas venham! Iremos perante a justiça do sr. Jeronymo de Vasconcellos declarar com hombridade e descaro que sim senhor, que nos são eminentemente sympathicos os fabricantes de cerveja e absolutamente odiosos os fabricantes de farinha.

    A terminar o delicioso texto de Celso Hermínio, à laia de rodapé, temos um pequenino desenho a preto e branco onde pode ver um popular a abraçar um criado que tem uma caneca de cerveja na mão, ao lado de outro popular que premeia um panificador com um redondo pontapé no traseiro.

    E logo mais abaixo, ainda nessa página 7, Celso Hermínio presenteia-nos com uma nova pequena pérola. Uma outra caricatura mais simples, intitulada Caras e Caretas, ocupa cerca de um quarto de página e exibe, a preto e branco, um homem gorducho claramente etilizado que, agarrado a um gradeamento, balbucia: É esquisito que tendo a cerveja tantos direitos, eu fique tão torto quando a bebo!

    (Nota: se bem que não venha ao caso e possa parecer espúrio, esta última caricatura lembra muito a célebre rábula de Vasco Santana embriagado a falar para um candeeiro no filme O Pátio das Cantigas, que seria realizado 40 anos mais tarde).

    Duas caricaturas e um pequeno desenho de rodapé referentes a cerveja no mesmo número de um jornal de 1902. É obra, pela raridade…

    A caricatura da capa e o pequeno artigo merecem um enquadramento histórico. O início do século XX vê acentuar-se a crise da monarquia liberal portuguesa. O rotativismo entre os dois principais partidos monárquicos (o Progressista de Luciano de Castro e o Regenerador de Hintze Ribeiro) revelava-se cada vez mais esgotado, o Partido Republicano crescia em influência e em verve, o ambiente político, social e económico deteriorava-se. A opinião pública lusa, macerada pelas crises, pelo não muito distante Ultimatum Inglês e pelo suicídio recente de um desiludido Mouzinho de Albuquerque, assistia estupefacta a vários escândalos, como as recorrentes falsificações da farinha com cal, gesso ou ferradura –facto que aliás A Paródia satirizava com frequência e a que também se refere Celso Hermínio no seu artigo-, as irregularidades financeiras, as trafulhices na banca, nas moagens ou nos tabacos, que por esses anos se desencadearam. E se decerto essas irregularidades são de todos os tempos, mais visíveis e doloridas se tornam em tempo de crise. Como naquele ano de 1902.

    Mas a que irregularidades se referirá Celso Hermínio? Segundo as notícias que até nós chegaram alguns fabricantes de cerveja teriam burlado o fisco, prejudicando assim o Estado português. Disso se faz eco Celso Hermínio, comparando jocosamente a irregularidade cervejeira com as irregularidades moageiras. Com uma diferença, todavia. As fraudes das farinhas prejudicavam sobretudo o consumidor, pois ao falsificar as farinhas para maximizar os lucros alguns moageiros e panificadores prejudicavam a saúde e a higiene públicas, ao passo que as irregularidades fiscais de algumas cervejeiras prejudicavam o Estado. Entre as duas fraudes, o coração do português não hesitava. As cervejas prejudicaram o Fisco? Abençoadas! As farinhas prejudicavam a população? Danadas!

    Um derradeiro apontamento para explicar brevemente o que era o panorama cervejeiro português no dealbar do século XX. Nessa altura existia, pujante e fornecedora da Casa Real, a Fábrica de Cervejas da Trindade, estabelecida na Rua Nova da Trindade em 1836, num antigo convento de frades trinitários (daí o nome) e que em 1935 integrou a recém-fundada Sociedade Central de Cervejas. Ainda em Lisboa existiam as cervejeiras Jansen (desde 1855) e a Leão (desde 1878). No Porto tínhamos a Companhia União Fabril Portuense, fundada em 1890 após a fusão de pequenas cervejeiras. Nas ilhas tínhamos a madeirense Empresa de Cervejas da Madeira (desde 1872) e a açoriana Melo Abreu (desde 1892), que aliás ainda existem.

    A qualidade das cervejas portuguesas já não era má, segundo um estudo publicado em 1900: Os donos das duas maiores cervejarias de Lisboa mandaram vir do estrangeiro mestres e desde então produzem cerveja que pode competir com a importada. São de facto boas e ligeiras as cervejas hoje fabricadas sobressaindo (…) a Pilsener da cervejaria Jansen e a Bohemia da cervejaria Trindade.” (Estudo de Carvalho Talone, em 1900 – adaptado).

    Foi deste restrito universo cervejeiro que saiu a fraude fiscal registada com arte (e com mal disfarçado carinho) pelo lápis e pela pena do malogrado Celso Hermínio.

    Registe-se por fim uma curiosidade. Esta caricatura que aqui historiamos retrata uma bebida ainda relativamente pouco consumida entre nós, ao tempo. Predominante e dominador, era o vinho que imperava. Daí que se percorrermos os jornais satíricos do tempo, se vejam poucas ou nenhumas caricaturas à cerveja. Sobre o pão, a carne, o vinho, o peixe ou os doces, há-as aos montes. Já sobre cerveja… Daí a curiosidade e o interesse desta caricatura em particular. Na verdade, só bem entrados na segunda metade do século é que a cerveja ultrapassaria o consumo de cerveja em Portugal.

    Mas isso já são outros quinhentos…

    Bibliografia sumária

    José-Augusto França, Rafael Bordalo Pinheiro – O português tal e qual, Livros Horizonte

    José Manuel Tengarrinha, História da Imprensa Periódica em Portugal, Ed. Caminho

    Manuel Paquete, A cerveja no mundo e em Portugal, Colares editora

    Raul Brandão, Memórias (vol. 1)

    Jornal A Paródia (1900-1907)

    Humorgrafe: blog de informação sobre humor e cartografia

    Museus de referência

    Museu Rafael Bordalo Pinheiro (Lisboa)

    Museu Nacional da Imprensa (Porto)

    Museu da Cerveja (Lisboa)

    Sérgio Luís de Carvalho é escritor e historiador


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  • Aprende Zelensky, que o Ricardo Salgado não está para durar

    Aprende Zelensky, que o Ricardo Salgado não está para durar


    Volodymyr Zelensky apresentou esta semana o seu ‘Plano de Paz’, também conhecido como ‘Plano de Vitória’. Vemo-lo, de papel na mão, a visitar as cidades dos principais aliados para discutir os detalhes, deixando a generalidade dos comuns, com alguma curiosidade.

    Quando digo curiosidade é, convenhamos, algo mais do que isso. Não se trata da curiosidade face a um acidente na faixa do lado ou a um arrufo no apartamento de cima. A invasão da Ucrânia tem sido pau para toda a obra nas justificações que vão servindo à classe média europeia, enquanto nos vão extorquindo cada euro.

    Se aumenta o combustível que nos chega da Nigéria, a culpa é do que sucede na Ucrânia. Se o leite que vem dos Açores dispara, pois bem, foi da Ucrânia. Se a prestação da casa subiu, a Lagarde avisa que se deve à Ucrânia. Se a EDP aumenta a tarifa – adivinharam! –, é porque o gerador está em Kiev. Até aquela camisolinha da Zara, feita com trabalho infantil no Bangladesh, já sofre com a ‘taxa Donbass’. Antes da guerra, a Ucrânia era o “celeiro da Europa”, depois da invasão passou a ser a loja do chinês de Bruxelas. Aparentemente tudo nos chegava daqueles lados.

    Dizem-me, economistas encartados, que o mercado se aproveitou na crise, em um ou dois sectores, e cavalgou a onda, subindo tudo o que mexia. Adoro mercados. E até economistas – tenho amigos que são, e tudo o mais.

    Isto tudo para dizer que este ‘Plano de Paz-Vitória’ era algo que eu esperava com alguma ansiedade. Depois de o ler, enfim, fiquei com aquela sensação que qualquer benfiquista tinha em todos os Agostos entre 1995 e 2003: a expectativa inicial era grande, na pré-época, mas depois tínhamos de ir para a luta com Marcelos, Nelos, Thomas e Bossios. Ora, este plano do camarada Zelensky foi um pouco esse balão, que rapidamente perdeu o ar.

    Se bem percebi, Zelensky quer convencer a Rússia, e os aliados, a rejeitar qualquer cedência de território e, portanto, nada de ‘congelar’ a linha da frente.

    Do ponto de vista ucraniano, faz algum sentido: Zelensky não quer perder um palmo de terra, e é exactamente isso que deve dizer ao seu povo.

    Neste plano há também uma linha dedicada a forçar a Rússia a ir para a mesa das negociações, depois de a Ucrânia fazer mais avanços no terreno. Como? Muito simples: Zelensky pede à União Europeia e aos Estados Unidos que levantem todas as restrições ao uso de armas de longo alcance.

    Numa parte secreta deste caderno aparece outra linha para introduzir um novo e mais original pedido aos aliados: instalação de medidas estratégicas não-nucleares, em solo ucraniano, para dissuadir os russos. Ao jeito daquele porta-aviões que os americanos deixaram “acampado” no Mar Vermelho para os israelitas poderem arrasar Gaza.

    Aqui também vejo alguma coerência na estratégia ucraniana. Se ao Netanyahu dão tudo, o que é que custa tentar? Até vejo alguma benevolência na adenda. Por mim tirava o “não” em “não-nuclear”. Se é para pedir, que se avance sem medo!

    Ainda assim, parece-me, é nesta parte do plano que deixamos cair definitivamente a parte a ‘paz’ e nos focamos na ‘vitória’. Tudo bem espremido, aquilo que temos neste plano de vitória, que em momento algum é de paz, é uma revisão da matéria dada. É Zelensky a resumir num caderninho aquilo que anda a dizer há dois anos e meio, a saber:

    1 – Mais armas;

    2 – Nem um centímetro cedido à Rússia;

    3 – A Ucrânia vai vencer a guerra;

    4 – Continuem a mandar dinheiro.

    Qual é então o problema nesta história?

    A realidade. Essencialmente isso.

    Há, em regra, duas saídas clássicas para uma guerra: um dos lados perde e aceita aquilo que o vencedor ditar (os alemães tiveram duas experiências mais ou menos recentes e estão bem documentadas); ou, em alternativa, cansam-se os beligerantes de morrer e declaram um empate mediado por alguém que finge ser neutro, e discutem-se as condições.

    A Ucrânia não está em nenhuma dessas situações, mas quer ditar as condições. É uma originalidade, mas enfim, aprecio a criatividade. A Rússia está com o mesmo território ocupado, mais aldeia menos aldeia, desde Maio de 2022. Portanto, gritar que não se cede um palmo de terreno, como condição para o fim da guerra, é de facto meritório para o lado ucraniano. E só falta convencer os russos disso.

    E quem diz os russos pode acrescentar os americanos, os ingleses e os amigões da NATO, que foram tão peremptórios em Fevereiro de 2022, mas que hoje já vão dizendo a Zelensky que é preciso jogar ao monopólio no Donbass.

    Zelensky também sugeriu, neste ‘Plano de Vitória’, que entrar para a NATO era uma boa ideia. Como não? Era o mínimo que podia fazer…

    Tenho uma teoria para esta alucinação que Zelensky andou a passear por Washington e pelas principais capitais europeias. Elevar a fasquia para negociar em alta e ir baixando sem parecer que está em perda. Partindo do princípio de que nenhum aliado se vai enterrar mais neste conflito, muito menos com tropas no terreno, e que a Ucrânia já serviu o seu propósito aos interesses ocidentais, restará a Zelensky trocar umas aldeias russas por qualquer coisa na Ucrânia, receber uns milhões para a reconstrução e aceitar uma zona-tampão no Donbass, que ficará com a Rússia e os Capacetes Azuis nos próximos 20 anos. Depois, quem vier a seguir que feche a porta.

    Infelizmente para a Ucrânia, e para as famílias dos soldados que morreram, o plano de Zelensky não é de paz e muito menos de vitória. É um grito desesperado de um morto, um bluff sem cartas na mão. O Ocidente está, de momento, mais preocupado em defender outro invasor ali para os lados do Médio Oriente. Por outro lado, o alinhamento geoestratégico dos países está a tomar forma enquanto se morre em Gaza, Beirute e Donetsk. A Turquia, a China, o Irão, a Índia e os países da Ásia Central e da África estão do lado russo. Lembram-se de se insistir nos “isolados russos” de 2022?

    Ricardo Salgado, ex-CEO do Banco Espírito Santo, esta semana no início do julgamento no Campus de Justiça, em Lisboa. Foto: captura de imagem a partir de vídeo da SIC Notícias

    Não há saída para o caderno de intenções de Zelensky. Ninguém se vai atravessar, para lá de dinheiro e algumas armas, pelas vidas ucranianas contra o bloco que se formou do lado de lá. Os equilíbrios estão perfeitamente definidos e os ucranianos andam a morrer, tal como os russos, há dois anos, para nada.

    Na verdade, um ‘Plano de Vitória a sério foi aquele feito em Lisboa por Ricardo Salgado. Várias décadas a controlar e delapidar o Estado Português na bela soma de 12 mil milhões de euros. Depois de ser apanhado, enrola o processo com todos os truques permitidos no Código de Processo Penal enquanto vive dos lucros. Dez anos depois, chega finalmente ao tribunal, mas já em estado de saúde debilitado. O antigo banqueiro que tinha ministros no bolso, e a quem toda a elite dizia que sim, aparece sem memória, com uma camisola discreta de velhinho, a dar passos de 10 centímetros, seguro pela mão de uma cuidadora, para não cair. Não se lembra de nada, não sabe de nada, não se consegue defender. Isto, 10 anos depois de ser apanhado e um ano depois de escrever um livro de memórias.

    Isto é que é um ‘Plano de Vitória’, Volodymyr. Aprende, que o Ricardo não parece estar para durar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Um roubo de mais de oito mil milhões de euros

    Um roubo de mais de oito mil milhões de euros


    Foi com grande alarde que o tão esperado Orçamento do Estado finalmente viu a luz do dia, após meses de uma discussão incessante sobre um documento que até então ninguém havia lido. Surpreendente, não? Afinal, é sempre uma façanha discutir o desconhecido com tal fervor.

    Promessas não faltaram: IRS jovem, redução do IRC, um alívio generalizado da carga fiscal…enfim, uma epopeia de bênçãos prestes a ser derramada sobre o cidadão comum. Todos esperávamos presenciar o Estado finalmente aliviar a mão que há tanto tempo nos rouba o bolso. Mas, qual não foi o espanto, ao descobrirmos que, longe de uma redenção fiscal, fomos brindados com um assalto ainda maior: 8 mil milhões de Euros a mais. Sim, podemos ver o verdadeiro roubo em grande escala que nos aguarda.

    Evolução das receitas do Estado entre 1999, início do Euro, e 2025; Unidade: milhares de milhões de Euros; Fonte: Banco de Portugal e Orçamento do Estado (2025)

    É com uma dose de generosidade que o nosso estimado Estado nos concede o privilégio de assistir à invasão de uma horda de terceiro mundo, empurrando a população residente para os 10,6 milhões, após anos de estabilidade em torno dos 10,3 milhões. O que isso significa para 2025? Ora, segundo o brilhante plano deste Orçamento, o leviatã estatal irá extorquir cerca de 12,5 mil euros a cada alma residente em solo luso, o que, numa família de quatro pessoas, soma a módica quantia de 50 mil euros por ano!

    Eis o tão aclamado Estado Social em todo o seu esplendor, que, para funcionar, exige um generoso tributo de 45,5% do que produzimos, ou seja, 134 mil milhões de euros retirados de um PIB de 294 mil milhões Euros – valor do PIB para 2025, segundo o Orçamento do Estado.

    Notem bem, desde 1999, o assalto ao nosso bolso aumentou uns estonteantes 183%; enquanto isso, a nossa carteira, personificada pelo PIB (2025: 294 mil milhões € vs. 1999: 120 mil milhões €), cresceu apenas uns módicos 146%. Para piorar, em 1999, as “receitas” do Estado representavam 39,5% do PIB (47 mil milhões de euros vs. 120 mil milhões de euros), mas em 2025 saltarão para 45,5%, um incremento de 6 pontos percentuais! Este “simpático” aumento roubará nada menos que 1.600 euros do bolso de cada português, gentilmente extorquidos pelo Estado!

    Vamos lá dissecar como se processará o assalto ao nosso bolso em 2025, conforme ditado pelo Orçamento do Estado. Uns simpáticos 73 mil milhões de euros serão extorquidos via tributação, seja através de impostos directos (IRS, IRC, etc.) ou indirectos (IVA, ISP, etc.). Comparado com 2024, teremos um crescimento de 3,3% (72,6 vs. 70,3 mil milhões), o que equivale a uns módicos 6.900 euros por cada residente em Portugal!

    Desagregação das receitas do Estado em 2025, segundo o Orçamento do Estado; Unidade: milhares de milhões de Euros; Fonte: Orçamento de Estado (2025)

    Em segundo lugar, temos as “contribuições sociais”, uns míseros 38 mil milhões de euros, extorquidos sob o pretexto dos tão famigerados “descontos” para o esquema piramidal conhecido como Segurança Social, que, ironicamente, é mantido à tona pelos trabalhadores e pelas entidades empregadoras.

    Mesmo assim, vejam só, não chegam para sustentar o insaciável monstro do Estado Social. Então, o que se faz? Transferem-se mais uns módicos 11 mil milhões de euros em impostos (página 132 do Orçamento do Estado, para os mais curiosos) e, claro, uns simpáticos dois mil milhões vindos dos fundos europeus – cortesia da impressora mágica do BCE. Porque, sejamos francos, sem estas injecções milagrosas, o dito “sistema de solidariedade” já se teria desmoronado há tempos, como o castelo de cartas que sempre foi.

    Em terceiro lugar, temos as “Vendas”, que somam uns modestos nove mil milhões de euros. Estas “receitas” são, naturalmente, obtidas sob o confortável regime de monopólio — algo que, curiosamente, é anátema no sector privado. Mas quando o Estado põe a mão, tudo é permitido; certo?

    money, banknotes, euro

    A interminável lista de bens e serviços públicos à “venda” é quase infindável: desde a alienação de propriedades “públicas” até à extorsão em forma de taxas administrativas (quem nunca pagou para renovar o cartão de cidadão ou obter uma simples licença de construção?), sem esquecer as célebres propinas das universidades “públicas”, as insuportáveis taxas moderadoras e até os passes de transportes públicos.

    Em quarto lugar, temos as “receitas” de capital, uns modestos seis mil milhões de euros, porque, afinal, o nosso querido Estado também veste o chapéu de capitalista. Essas “receitas” podem vir de várias fontes: desde a venda de participações em empresas, até à emissão de dívida pública, sem esquecer, claro, os fundos europeus, generosamente impressos pelo BCE. Tudo isso, como sempre, com fins absolutamente nobres: construção de estradas, hospitais, escolas, etc. Curiosamente, podíamos contratar tudo isto directamente, mas preferimos entregar ao grande parasita, para que os ilustres bandidos e amigos que o comandam façam essas contratações a entidades privadas, igualmente amigas do poder.

    Finalmente, chegamos às “Outras Receitas”, uns meros oito mil milhões de euros, fruto de multas, coimas e penalidades — porque, convenhamos, usar as estradas neste país é um assalto a céu aberto! —, além dos rendimentos de propriedade (concessões, dividendos de participações, arrendamento de imóveis…), doações e legados, receitas de lotarias e jogos, rendimentos bancários (juros de depósitos, garantias…) e até de propriedade intelectual (patentes, marcas, etc.). Ou seja, a criatividade na extorsão é verdadeiramente inesgotável e multifacetada!

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    Os salteadores organizados em partidos, divididos em dois grandes grupos mafiosos, iguais na sua natureza, controlam há 50 anos esta colossal máquina de extorsão. Utilizam este gigantesco saque para doutrinar a população através da “escola pública” e “universidades públicas”, e, claro, manipulá-la com a mais insidiosa propaganda.

    Recentemente, vimos os “lucros” proporcionados pela invasão de terceiro mundo, que tem lugar há anos. Os seus “descontos” para o esquema em pirâmide, conhecido por Segurança Social, não vão para um simpático porquinho que um dia lhes pagará a reforma, mas sim para os bandidos que mantêm artificialmente a Dona Branca do Estado, aquela que lhes compra precisamente os votos dos idosos. Caso seja necessário, entram mais uns milhões para salvarem o esquema em pirâmide que lhes garante a reeleição.

    Também contamos com uma série de eufemismos elegantes para suavizar a ideia de roubo, conferindo-lhe o título pomposo de “custo” ou “favorecimento”: “IVA da electricidade custa 110 milhões de euros”, “Novo IRS Jovem…favorece salários de 2.000 euros”, “Residentes não habituais custaram 1.360 milhões…”. Seria hilariante se não tivéssemos a falar de uma extorsão com recurso à mais vil propaganda, recheada de mentiras e manipulações.

    Lembram-se daquela célebre pérola proferida por estes parasitas há décadas: “se todos pagassem, todos pagariam menos”? Pois bem, agora que a máquina de extorsão não permite fugas, note-se como a expressão “evasão fiscal” — eufemismo para descrever a resistência a um assalto — desapareceu do discurso destes senhores.

    Em 2025, preparam-se para nos arrancar mais oito mil milhões de euros — porque, claro, o roubo é sempre para mais, nunca para menos. Esta será a terceira maior subida, perdendo apenas para 2023 (um espectacular aumento de 15,4 mil milhões de euros e para 2022 (mais 10,4 mil milhões de euros) — graças à inflação patrocinada pelo BCE e à pandemia inventada.

    Esses foram os anos em que, recordemos, nos trancaram em casa, obrigaram-nos a andar com uma fralda facial e ainda nos coagiram a tomar uma substância experimental, tudo em nome do “bem comum”; enquanto isso, o BCE imprimia dinheiro como se o amanhã fosse uma lenda, garantindo que os diferentes estados europeus arrecadassem como nunca antes tinham arrecadado.

    Por fim, atentemos ao último golpe: com um grão de areia desse colossal bolo de 133 mil milhões de euros — cerca de 55 milhões de euros —, estes salteadores mantêm os órgãos de propaganda absolutamente controlados e manietados, tratando-os com o mais absoluto desdém e prepotência. Notem bem, com uns míseros tostões, conseguem manipular toda a população. Para os mais difíceis, aqueles que não se deixam assaltar por este perverso Leviatã, mais conhecido como Estado, há sempre a ameaça de prisão e ruína financeira.

    Demos vivas à Democracia e ao Estado Social!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • As ‘amantes’ dos Governos precisam de ‘apoios’

    As ‘amantes’ dos Governos precisam de ‘apoios’


    Alterações Mediáticas, o podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No novo episódio, analisa-se o fenómeno dos ‘subsídios’ encapotados que já têm sido dados por Governos a grandes empresas de media, ao permitir, por exemplo, que alguns acumulem dívidas de milhões de euros ao Fisco e à Segurança Social ao longo de anos e anos, distorcendo assim o mercado, lesando os contribuintes e colocando em perigo a independência jornalística.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • O saldo das eleições municipais e o desafio político brasileiro

    O saldo das eleições municipais e o desafio político brasileiro


    Tratar das eleições municipais no Brasil pode parecer, para o leitor português, franca atitude de desperdício de tempo. A uma, porque o sistema brasileiro difere em grau e em forma do sistema político-eleitoral lusitano. A duas, porque, salvo raríssimas exceções (caso da eleição do ano 2000), não é possível inferir das eleições locais qualquer repercussão na eleição federal, que se passa dois anos depois. Apenas para exemplificar o quão estatisticamente desprezível é projectar o resultado das eleições gerais com base no das eleições municipais, basta dizer que, em 2020, o PT não conseguiu eleger um candidato seu em nenhuma prefeitura em capitais, feito inédito desde a redemocratização. Um biênio depois, Lula recebia do povo seu terceiro mandato como Presidente da República.

    Se a estatística não favorece a projecção de tendências do eleitorado, observar a fundo as particularidades de cada pleito, ao revés, pode ao menos oferecer pistas de para onde caminha o país. E este pleito de 2024 está cheio delas.

    landscape photography of mountains

    À partida, tem-se o óbvio: a esquerda perdeu, e perdeu feio. Somados, todos os partidos da ala jacobina do espectro político não alcançaram sequer 1/5 dos votos depositados nas urnas. Trata-se do mais baixo patamar da história. Enquanto isso, partidos da direita e do chamado “Centrão” (que também é maioritariamente de direita) alcançaram mais de 80% dos votos. Esse percentual é superior, por exemplo, aos melhores dias da Arena (Aliança Renovadora Nacional), o fantoche partidário de apoio à ditadura militar, que se autointitulava na altura “o maior partido do Ocidente”.

    O Brasil, pois, virou à direita?

    Não exactamente.

    Na verdade, desde sempre a população brasileira inclina-se para o conservadorismo. Em toda a República, nunca um governo de esquerda foi eleito à Presidência. João Goulart, o mais próximo que se pode chegar disso, somente ascendeu ao posto máximo da Nação após a renúncia de Jânio Quadros (1961), numa época em que Presidente e Vice concorriam em chapas separadas. Mesmo assim, Jango somente assumiu depois de uma crise militar contra sua posse redundar na chamada “solução parlamentarista”, um arremedo de emenda constitucional que transmudou o sistema de governo para um regime com primeiro-ministro. Quando um plebiscito dois anos depois devolveu-lhe as prerrogativas de Presidente (1963), os militares golpearam-no no ano subsequente (1964).

    A excepção, claro, atende pelo nome de Luiz Inácio Lula da Silva. Forjado no sindicalismo metalúrgico, Lula gradualmente abandonou sua condição de “radical de esquerda” para aninhar-se numa centro-esquerda de viés social-democrata. O desastre económico do segundo governo Fernando Henrique Cardoso, causado em grande parte por uma política cambial insana, certamente ajudou na conjunção astral. Com o país sedento por mudanças, os planetas alinharam-se e o barbudo ex-operário do ABC paulista era eleito presidente.

    Lula da Silva, presidente do Brasil.

    Com a vitória de 2002, Lula deu início a um ciclo de hegemonia política sem precedentes em nossa história democrática. Reeleito em 2006, Lula ganharia ainda outras duas vezes (2010 e 2014) por interposta pessoa (Dilma Rousseff). Preso em 2018, o ex-líder sindical saiu do cárcere para ganhar em nome próprio, pela terceira vez, a Presidência da República. Nenhum outro político brasileiro mandou tanto e por tanto tempo.

    Os anos de sucesso, porém, ficaram no passado. Depois de atingir o auge da expressão no pleito de 2012, quando ganhou até a municipalidade paulistana com Fernando Haddad, o PT tem experimentado um processo de acentuado declínio no eleitorado nacional. Como nenhum outro partido conseguiu desafiar a sua hegemonia nesse lado do espectro, ficamos, pois, numa situação em que “ser de esquerda” praticamente virou sinónimo de “ser petista”. E o fardo desses anos todos de domínio eleitoral parece ter-se tornado demasiado pesado para o partido da estrela vermelha. Daí o desastre eleitoral de 2020, visto como reprise agora, em 2024.

    A direita, contudo, não desempenhou melhor papel. Como o PSDB não quisesse abraçar abertamente as pautas ditas “conservadoras”, o eleitor furibundo com o PT foi paulatinamente jogado para o extremo do espectro político. Quando Jair Bolsonaro lançou-se candidato em 2018 e permitiu à direita “sair do armário”, subitamente foi transformado no estuário de todas as deceções do eleitorado. O eleitor conservador tinha, enfim, um “líder” para chamar de seu.

    Todavia, esse fenómeno foi mal ou pouco compreendido pela imprensa especializada. Não é que Bolsonaro tornara-se o “Lula da Direita”. Ele apenas passou a ocupar o posto de “anti-Lula” de ocasião. Só isso explica como uma personagem caricatural, que jamais concorrera a nenhum cargo maioritário (por absoluta falta de votos), pudesse eleger-se Presidente da República justamente na primeira eleição que disputara. Querer transformar essa triste figura do baixíssimo clero congressual em um líder “popular” e “carismático” foi um dos pratos mais grotescos que o mainstream mediático quis empurrar goela abaixo dos brasileiros.

    gray concrete building under blue sky during daytime

    É essa constatação, aliás, que torna possível explicar – ao menos parcialmente – o fenómeno Pablo Marçal. Autodeclarado “coach”, o sujeito fez fama e fortuna a vender ilusões para o público incauto. Lançando-se praticamente sozinho à prefeitura do maior município do país (São Paulo), Marçal rapidamente conquistou corações e mentes e, por um momento, pareceu comandar uma onda que varreria a eleição e o conduziria à vitória no primeiro turno. Não fosse a bizarra cadeirada que levou de José Luiz Datena em um debate televisivo e a divulgação do infame laudo médico segundo o qual Guilherme Boulos teria sido internado por abuso de cocaína, talvez Marçal tivesse conseguido cavar uma vaga na segunda ronda da capital paulista.

    Bolsonaro, que apoiava o actual prefeito, Ricardo Nunes, quis fazer-lhe frente, mas foi violentamente devolvido à toca pelos mesmos extremistas das redes sociais que ele pensava comandar. Uma vez que, no entender desse eleitorado, Marçal representava “os verdadeiros valores do conservadorismo”, apoiar Nunes seria o mesmo que converter-se ao “comunismo” ou algo do género. Evidenciando a covardia típica de sua acção política, Bolsonaro colocou um pé em cada canoa (Nunes e Marçal) e deixou tudo como estava, para ver como é que ficava.

    Conseguiu, assim, a suprema façanha de sair desprezado por Marçal (que exigiu um pedido público de desculpas para reatar relações) e sem poder comemorar a passagem de Ricardo Nunes ao segundo turno, mesmo tendo indicado o vice de sua chapa. Se essa assombração denominada Pablo Marçal serviu para algo, foi para demonstrar que o eleitorado extremista não tem dono e está pronto a abraçar qualquer alternativa dita “conservadora” que se mostre eleitoralmente viável.

    Pablo Marçal

    O Brasil sai dessa eleição, portanto, com fracturas à esquerda e à direita. À esquerda, porque, com cada vez menos votos, depende cada vez mais de Lula, um septuagenário que, na melhor das hipóteses, disputará apenas mais uma eleição. E à direita porque, com Bolsonaro inelegível e em vias de ser preso, não surgiu ainda outra figura com consistência ideológica que lhe permita afastar-se de seus Marçais e quetais.

    Em resumo, o desafio brasileiro passa pela construção do pós-Lula e do pós-Bolsonaro. Quem melhor souber manejar suas forças de maneira a atrair o eleitorado flutuante do centro ditará os rumos da política brasileira pelos próximos anos.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • Omnipanoptismo

    Omnipanoptismo


    Há muitos estudos hoje que comprovam os benefícios da rede de imagens, quer na aplicação de multas quer no reconhecimento facial, que permite a identificação do prevaricador e a sua detenção em tempos record. O desenvolvimento do sistema de videovigilância pública em Bruxelas, Keersmaecker e Debailleul (2016) foi apresentado num magnífico trabalho, o qual recomendo.

    Logo na introdução, define-se circuito fechado de televisão (CCTV) como “um sistema de TV no qual os sinais não são distribuídos publicamente, mas são monitorados, principalmente para fins de vigilância e segurança”.

    A polémica associada ao CCTV surge das questões muito associadas a um discurso das esquerdas do Maio de 60, que privilegiam a protecção da privacidade. Uma série, que muito me agradou, ‘Sob suspeita’, abordava este tema de modo fascinante, pela acção, pelo suspense, e pelas inúmeras questões associadas ao tema. Lançado em 2013, mostrava então como o reconhecimento facial e a inteligência artificial permitiam antecipar alguns gestos desaconselhados. A ideia de reduzir o erro humano, definindo algoritmos que respondem com aprendizagem por máquinas, que interferem na decisão pessoal, é pelo menos polémica.

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    O conceito de panoptimo participativo vem do conceito de panóptico, uma estrutura arquitectónica idealizada pelo filósofo e jurista Jeremy Bentham (1748 -1832), que consistia num dispositivo polivalente da vigilância, permitindo que um único observador conseguisse monitorar várias pessoas simultaneamente. 

    O panoptismo tornou-se uma forma de disciplina e vigilância que tem sido aplicada em várias “instituições de sequestro”, como a fábrica, a escola, o hospital, o quartel e a prisão. Aconselho a leitura de umas reflexões sobre os efeitos da vigilância constante, pelos investigadores brasileiros Rafael Matias de Souza e Edu Silvestre de Albuquerque, em Janeiro de 2024, na revista Contradição – Revista Interdisciplinar de Ciências Humanas e Sociais, onde se levantam questões da monitorização criminal e da sensação subjetiva de segurança nas favelas, onde o crime observa a polícia com seus mecanismos de vídeo, móveis e fixos.

    Para Foucault, o panoptismo é uma forma de poder que se baseia na vigilância constante, que por sua vez induz a conformidade. O poder não é exercido apenas por um indivíduo, mas por toda uma rede de instituições que monitoram e controlam a vida das pessoas.

    Tiago Veloso Nabais escreveu em 2023 para o Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna o artigo ‘Proteção de Espaços Públicos: Sistemas de Videovigilância Inteligentes’ onde refere que “numa era em que cada vez mais a noção de privacidade atinge novas dimensões, ao colaborar-se para a difusão de uma cultura de vigilância, as não cedências de privacidade no âmbito securitário afiguram-se revestir de uma forma de hipocrisia”.

    eye, watch, paper

    O tema debruça-se sobre esta contradição da privacidade com a importância da segurança. Na realidade há um processo “omnipanótico participativo” quando os cidadãos colocam as suas câmaras ao serviço da vigilância sem restrições, quando todos desejamos descobrir o criminoso em curto espaço de tempo, e quando podemos antecipar o crime.

    Há uma contradição entre leis de defesa da privacidade, leis fomentadas pelo discurso psiquiátrico em voga, que legitimam toda a diferença e fomentam toda a inclusão, e a realidade dos crimes que podíamos ter impedido se a segurança se sobrepusesse à liberdade.

    Este é um dos temas essenciais do século XXI a que não podemos estar indiferentes, de que não nos devemos afastar.  

    Diogo Cabrita é médico


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  • O auricular

    O auricular

    Depois de ouvir a conversa entre o director do P1, Pedro Almeida Vieira, e o Manuel Monteiro, cronista do mesmo jornal, fiquei a pensar nas palavras e nos seus significados de fino recorte.

    Confirmei também que a palavra gralhas aparece escrita no texto que anuncia a conversa em áudio com um erro. Em vez de gralhas está gralhar. Uma gralha na gralha. Teriam os dois autores feito de propósito? Ou toda a gente tem direito à sua gralha? Mesmo que nas gralhas?

    O mundo das palavras e da linguagem tanto pode ser formal como rebelde, até pode ser os dois ao mesmo tempo e por isso declaro o meu amor profundo às palavras e a minha amizade enorme pelos dois intervenientes do podcast que tornam a vida mais gramaticalmente correcta, ainda que também mais politicamente incorrecta. É maravilhoso.

    Isto a propósito das palavras usadas pelo primeiro-ministro numa recente conferência em que aproveitou, e já que estava num simpósio cujo título era O Futuro dos Media, organizado pela Plataforma dos Media Privados, para dizer que certos comportamentos dos jornalistas “não valorizam a profissão”, referindo-se ao uso de auriculares por parte dos mesmos e ao facto de receberem perguntas sopradas pelos superiores.

    Deixou assim uma espécie de recado para que os jornalistas fossem mais “tranquilos” e “não tão ofegantes”, palavras suas, na hora de insistirem, por exemplo, com perguntas aos primeiros-ministros.

    Tranquilos e ofegantes…

    Não é que as palavras estejam erradas no contexto, mas…

    Referiu-se também ao facto de muitas vezes terem as perguntas escritas no telemóvel, estando a ler no momento do confronto sem sequer olharem de frente para o visado, deixando a entender que não é uma profissão conhecida por ter grande liberdade, pelo menos pelos soldados todo-o-terreno.

    Luís Montenegro deve saber bem do que fala e está a mentir. Ou a contar uma inverdade como se costuma eufemisticamente dizer nos corredores dos antigos raios catódicos, isto para usar uma liberdade meio digital… vá. Fica sempre bem.

    Toda a gente sabe que os primeiros-ministros gostam é de perguntas originais e incomodativas e até espontâneas vindas dos profissionais da comunicação que estão no plateau. Mas como o primeiro-ministro anda nisto há muito tempo, acha que as perguntas são feitas sempre pelo topo da pirâmide, pirâmide essa que os governos alimentam com dinheiro público.

    Não, Luís Montenegro. És, como diz o Presidente, um saloio que não percebe nada de auriculares (sempre quis tratar por tu um chefe de governo).

    Assim, não serão muitas as vezes que me verão a defender jornalistas, mas é que aqui, coitados deles, que mais uma vez estão a ser tramados pela mentira, ou pelo conceito de pós-verdade a que se sujeitam enquanto profissionais da palavra (senão mesmo da antiga verdade), e já agora, vitimas do ódio destilado pelos primeiros-ministros sempre cheios de medo dessa classe que qualquer dia só terá lugar cativo em Sundance (para quem não sabe, é um festival de cinema independente com actores de Hollywood).

    Para confirmar o que digo, faço um apelo à memória, pedindo para os leitores recordarem a agreste acutilância senão mesmo a severidade generalizada, na hora de os jornalistas questionarem o anterior primeiro-ministro, tanto em estúdio como noutros espaços. Mas quiçá esse estivesse à altura, e até diziam que queria era livrar-se do país, portanto, viessem as balas.

    Toda a gente sabe ou devia saber que é mentira. Os jornalistas são conhecidos pela sua independência e pela imaginação na hora de questionar o Poder. São pagos para isso, doa a quem doer, mesmo que seja para arrasar os donos das empresas às quais pertencem.

    Como prova disso, o jornalista e pivot João Póvoa Marinheiro deixou isso muito claro quando leu um texto ao finalizar o seu telejornal, em que acentuava o carácter independente do jornalismo. Declaração essa, vinda da direcção de informação da CNN, empresa conhecida pela sua liberdade informativa. 

    Estou com o jornalismo e com os jornalistas neste episódio rocambolesco em que o primeiro-ministro devia era ser segundo ou terceiro ministro. 

    Se há coisa à qual os jornalistas ainda não sucumbiram foi à sua singular independência. Há mesmo quem defenda que a classe devia mostrar mais o seu clubismo ou mesmo a sua ideologia, já que falamos também de seres humanos que têm sentimentos e posições políticas em democracia, mas quanto a mim… não.

    Devem continuar como estão. A verdade tem sempre um preço e raramente está em saldos.

    Está bem, nem sempre vestem muito bem, ok.

    Está bem, nem sempre têm a carteira profissional actualizada, ok.

    Nem sempre têm uma boa dicção e dou mesmo de barato que alguns escrevam e falem com muitos erros (isto para fazer raccord com o início do texto), e não articulem muito bem certas palavras, mas se há coisa importante a que devem agarrar-se é à autonomia e imparcialidade sempre difícil de manter também por causa de primeiros-ministros que deviam saber que a liberdade informativa é uma pérola fruto de uma conquista com muito derrame de sangue, suor e lágrimas por parte dos profissionais do sector.

    Como foi frisado em comunicado por várias redacções e direcções entre as quais a da RTP, os primeiros-ministros não percebem nada de trâmites técnicos e este em particular teve de sujeitar-se a uma humilhação com uma explicação técnica à frente de toda a gente no canal público.

    Os auriculares servem para os profissionais perceberem quando estão no ar ou mesmo para ficarem a saber dos atrasos dos primeiros-ministros.

    Servem sobretudo para a gestão da logística.

    Acredito mesmo que haja jornalistas que enquanto esperam pelos primeiros-ministros, façam dos auriculares receptores para ouvirem Vivaldi ou Beethoven antes dos embates que se aproximam.

    Já quanto aos telemóveis, não acredito que tenham lá as perguntas escritas por alguém. De certeza que estão é a informar-se até à última hora, acerca do assunto para o qual foram destacados. 

    Sim, têm muitos defeitos, mas esse não será um deles.

    A Kamala Harris é que tem sempre um brinco para disfarçar a presença de um auricular. E como é que sabemos disso? Claro, pelos jornalistas que não brincam em serviço.

    Está certo, nem sempre os jornalistas estão bem maquilhados… mas o que é que isso importa? Também é verdade que alguns se aventuram em livros de receitas e até em romances cabalísticos, já para não falar de outros que são poetas em horário nobre. Está certo, há um certo abuso provavelmente fruto mais da vaidade do que do conhecimento, mas neste caso estou com eles.

    Concluo esta defesa, propondo que larguem de vez os auriculares para provarem aos primeiros-ministros dos diferentes países que não recebem recados de ninguém.

    Aliás proponho também que tanto primeiros-ministros, como jornalistas, comecem a usar apenas nas suas encenações e conferências, um nariz de palhaço.

    Nada de tecnologia. Polui demais.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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