Categoria: Opinião

  • A caminho do Árctico: dia 4, a bordo do PolarGirl

    A caminho do Árctico: dia 4, a bordo do PolarGirl

    Neste “Diário de Bordo”, o quarto dia fica registado como o dia em que atravessei o Árctico a bordo do PolarGirl. Depois da euforia do dia anterior, chegou a altura de dar um passeio calmo e relaxante pelas paisagens geladas, rumo a Barentsburg, pelos fiordes, glaciares e icebergues.


    A manhã na Guest House era sempre divertida e uma oportunidade para trocar experiências, despedirmo-nos dos viajantes que partem e para preparar o novo dia.

    Neste dia, o Peter iria embora. Falei-lhe dos ursos e desejei-lhe um bom regresso a casa. “Casa… Nunca volto a casa”, retorquiu ele. Pensei que era bom lema de vida. Percorrer o mundo sem parar. Confesso que estou muito longe deste desapego. Adoro sair, ver, explorar, desafiar limites e descobrir, mas também é indescritivelmente bom o regresso a casa. (Mas, Peter, tomei nota. Não é nada má a possibilidade. No seu caso, do calor do México, veio parar ao Ártico.)

    Marcha, a simpática russa que me veio buscar para a tour, espalhou calor e a hospitalidade russa (e levou-me a recordar os dias fantásticos que passei na Rússia em 2016).

    Chegámos ao barco. Foram dadas as instruções de segurança e cada um escolheu o seu lugar. Escolhi o meu no bar, à janela, onde me sentia na primeira fila do concerto dos Coldplay.

    Entre o fiorde Isfjoren, o glaciar Esmark e icebergues, seguíamos para o nosso destino de visita a Barentsburg. Aqui, a vida selvagem também é muito abundante. Avistam-se focas, morsas, e até um urso polar.

    Durante a viagem serviram um almoço muito saboroso. Perguntei a Marcha que carne saborosa era aquela. “É baleia. Não dizemos, pois as pessoas antes de comerem acham estranho mas depois de experimentarem adoram”, disse ela. Confirmo e aprovo.

    Durante a viagem, tive a oportunidade de conhecer Jon “small Svalvard”, que foi o amigo de Matt que o avisou do local onde estavam os ursos, na véspera.

    Era muito simpático e conhecedor da vida animal, em especial do Rei do Ártico. Falou de Elsa, a ursa que avistei com os filhos, e que tinha um irmão, Frozie, um urso que foi abatido após ter invadido a tenda de um alemão. A história não acabou bem, nem para o alemão, nem para Frozie, que acabou por cair morto a poucos metros do aeroporto.

    Jon contou que, por vezes, as pessoas arriscam, fazem churrascos e dormem em tendas. Um urso cheira um churrasco a quilómetros de distância. Explicou também como funcionam os ursos quando nascem: a mãe foge com eles e protege-os até chegarem à idade adulta. Assim que pode, separa-os para não correrem o risco de se matarem e, mais ainda se outro macho se aproxima, pois, matará as crias para poder engravidar a ursa e deixar os seus genes nas novas crias.

    Enfim, um admirável mundo novo, a vida dos ursos e a sua capacidade de adaptação ao degelo e ao desaparecimento do seu habitat, como o conheciam. “Eles sobreviverão sempre”, disse Jon, falando sobre a extinção da espécie do urso polar.

    Chegámos a Barentsburg, a segunda maior cidade de Svalbard, onde russos e ucranianos vivem em paz e tranquilos, exercendo as suas diversas profissões.

    A nossa guia, Iryna, de Moscovo, a viver na cidade desde 2017, contou como é viver numa cidade que pode ser percorrida a pé numa manhã. Mas também explicou como os mineiros, desde o momento que entram na mina até que chegam ao local de mineração, perdem o mesmo tempo de viagem que um morador na gigantesca Moscovo.

    Iryna falou-nos da vida na cidade e mostrou-nos os lugares de destaque, desde o anfiteatro de cinema, cujo filme é a paisagem do Ártico, passando pela casa onde mora, a antiga casa do governador e a única com varanda, os correios, o restaurante bar, o hotel, a fábrica de artesanato e as casas mais antigas. Vimos os poucos sinais que restam do comunismo e duas cabeças de Lenine.

    Aproximámo-nos da Estação de Pesquisa Russa, a zona mais interessante, para mim. Parecia que estávamos num filme de James Bond e que, a qualquer momento, teríamos de fugir dali. Mas verdade é que os cientistas com quem me cruzo param para dizer olá. Eram simpáticos. A envolvente visual poderia ser a Lua, não estivessem ali veados a pastar. “Aqui são como vacas nos Alpes”, disse Iryna.

    Regressámos ao Polar Charter a caminho da capital e dois chineses, a residirem no Canadá, juntaram-se à viagem e decidem mostrar o vídeo de um urso gigante que encontraram a pé. “Que medo”, pensei eu. “Estávamos armados, mas sentimos medo. Acho que o urso também. Além de bem alimentado, são espertos já sabem que se estamos ali temos armas. Entrou no mar e seguiu a sua vida e nós também”, explicaram. O vídeo era impressionante!

    Chegámos a Longyearbyen. Era tempo de ir buscar a minha bicicleta e ir jantar ao Mary Ann’s Polarrigg, um hotel com restaurante muito exótico e local e mais original.

    Ali repeti o “trio árctico”, que inclui baleia, foca e rena, o bacalhau fresco selvagem e, de sobremesa, o crumble do dia de frutos vermelhos e para acompanhar um Riesling alemão.

    Findo o jantar, ganhei coragem para voltar de bicicleta para casa e apreciar a minha última noite branca em Svalbard.

    Cheguei à Guest House onde encontro Jérémie, o francês que nos chamou para ver a raposa do Árctico, e falámos sobre as histórias dos ursos… Jérémie, que estava a pensar ir até à cidade ver uns amigos, assumiu estar a ficar com medo. Ao lado faziam um churrasco e até parecia que estava a escurecer. Uma galhofa e só falávamos dos pesadelos que íamos ter com os ursos a entrar pelo dormitório.

    O serão chegou ao fim e, olhando pela janela, vejo a raposa do Árctico. Terá vindo despedir-se? Vou acreditar que sim. A nossa vida é um sonho e podemos acreditar no que quisermos.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • Lambadas em inocentes

    Lambadas em inocentes


    Por mais que se discuta sobre a violência doméstica, este tema não permite esgotar-se, infelizmente.

    Doutos conhecedores tecem considerações, apresentam números e duras críticas ao sistema. Brincam com dados, mais ou menos tendenciosos, que continuam a depender de quem encomenda os estudos. Assim, por mais que se discuta na praça pública a questão, continuamos sem encontrar soluções.

    A violência doméstica está presente em diferentes lares, não conhecendo idade, estrato social ou nível de literacia. Pratica-se violência contra mulheres, contra homens, contra crianças, contra idosos… Não devia ser assim. Assusta-me assistir ao esgrimir do tema pelos meios de comunicação. O assunto vende, e por isso lá vão aparecendo exemplos, contados na primeira pessoa, que nos tocam no coração. Lamento que haja um aproveitamento do tema e não uma verdadeira luta para erradicar este mal.

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    A solução encontra-se enraizada na educação. Na resposta integral para a construção de uma sociedade evoluída moralmente. Falta, por isso, ganhar consciência do sentido da vida. Assim, resolvendo o problema na raiz, não será necessário apontar os erros nas respostas às denúncias ou nos processos judiciais. As utopias ainda fazem sentido. Sabemos para onde queremos caminhar e temos a certeza de onde não queremos permanecer.

    A nossa integração social vive de uma resposta constante à lei do mais apto. Desde cedo apercebemo-nos de que necessitamos de esquemas e artimanhas para alcançar o que pretendemos. Entre choros e gracinhas, os mais pequeninos lá nos levam a ceder às suas vontades. Conforme crescemos simplesmente vamos apurando este nosso lado profundamente humano.

    O despertar para uma moral alicerçada numa consciência ética, está em entender o que é o homem. Não perceber isto é não entender o que é a vida. Podemos discutir política ou até mesmo religião, mas há uma inclinação natural para o bem comum que, mais que discutir devemos viver. Nem todos têm o mesmo grau de desenvolvimento intelectual; nem todos têm a capacidade de discernir profundamente os assuntos e, por isso, compete a quem é capaz de o fazer, ajudar a transformar o mundo em que vivemos num mundo melhor.

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    É nossa obrigação denunciar a violência doméstica do nosso vizinho, mas o mais importante é não sermos violentos no nosso lar. Pensar o mundo só faz sentido se formos capazes de acolher a educação moral. A violência faz parte da natureza humana. Basta atentar na nossa História para percebermos como boa parte dela se desenrolou à lei da pancadaria. Lutar contra esta tendência é inverter a nossa natureza. Qual pedra bruta, devemos deixar que o escultor nos possa talhar. Mas, há sempre uma pergunta que se impõe: que mãos é que nos vão moldar?

    Quando era criança ouvia a música Lambada, um ritmo brasileiro que escutava enquanto sonhava com o dia em que haveria de dançar com uma morena linda e bem agarradinho. Recorda-me a frescura do amor inocente. Na altura, tinha seis anos e não sabia que havia por aí outras “lambadas”…

  • A caminho do Árctico: dia 3, entre glaciares, montanhas e vida

    A caminho do Árctico: dia 3, entre glaciares, montanhas e vida

    Prestes a realizar um dos meus sonhos, de ver ursos polares no seu habitat natural, passei o dia a caminhar no meio de paisagens deslumbrantes. O frio não esmoreceu a minha vontade de ainda ir “espreitar” o cofre global de sementes. Nem de realizar o meu sonho (mais ao final do dia).


    Glaciares e montanhas. Era o que me esperava na caminhada de seis horas programada para o início do meu terceiro dia de viagem ao Árctico.

    Acordei sem despertador. Na sala do pequeno-almoço só se falava dos ursos avistados no caminho para Pyramiden, um povoado soviético abandonado junto a uma mina de carvão, tornado atração turística. Optei por não fazer essa tour, pela falta de tempo e por ser a mais turística. Por momentos, passou-me no pensamento que talvez me pudesse arrepender de não ter ido. Mas recentrei os pensamentos. Acreditava que os guias iriam dar o seu melhor para conseguirmos avistar o rei do Árctico.

    Às 9h30, os guias apanharam-me para caminhada de Sarkofagen, entre montanhas e glaciares. Eram o Frederik e o Pete, um sueco e um geólogo norueguês que está em Svalbard a estagiar. Recolhemos entretanto outros montanhistas, incluindo Roman, um lituano que está a visitar Svalbard e que depois permanece por mais duas semanas pelo norte da ilha, passando pela Islândia e Gronelândia. Sobram os dois casais sexagenários, que me fizeram recordar que é possível envelhecer em forma e saudável.

    Depois de nos mostrarem no mapa o trajeto que iríamos fazer, seguimos para o local de início da subida da montanha, que fica mesmo por detrás da Guest House. Adormecia e acordava a olhar para ela.

    Começámos a subida por um trilho com pedras muito grandes e caminhámos uns 30 metros, até termos a primeira grande subida. Olhando para trás, víamos a cidade cada vez mais longe e uma vista deslumbrante.

    As montanhas pareciam ter rostos de guardiões. Durante mais 2h30, subimos até ao miradouro, com neve e muitos pássaros. Fizemos pausa para almoço e Frederik ofereceu um chá com xarope de morango, muito doce e muito aconchegante. Estava um frio de rachar lá em cima – zero graus – e esta bebida soube muito bem, acompanhada por umas bolachas suecas também oferecidas pelo guia.

    (Pensei que era engraçado, que quando estamos longe de casa procuramos os sabores que nos confortam. Comemos o pacote todo.)

    Começou a descida até ao glaciar e, quando chegámos, colocámos a proteção nas botas para descermos o glaciar a pé. É uma sensação boa. Vamos vendo as cavernas de gelo. Frederik reconhece algumas onde já dormiu no Inverno.

    Quando chegámos a terra firme, começámos a procurar fósseis, o que tornou a tour ainda mais interessante pois, nunca tinha visto fósseis na mão e ainda podemos levar para casa.

    Conversando com Frederik, perguntei-lhe se achava boa ideia eu ir buscar uma bicicleta ao posto de turismo – que as emprestam gratuitamente por três dias – e ir até ao cofre global de sementes. Esta maravilha, que contempla todas as sementes do mundo inteiro plantadas pelo homem, encontra-se fora da zona de segurança, mas não tenho tempo de fazer a tour que leva os viajantes até a esta Arca de Noé da actualidade. Disse-me para ir e que, durante o dia, com os carros e o barulho das obras da estrada, os ursos não se aproximam.

    No final da tour, deixaram-me no posto de turismo para ir buscar a bicicleta e comecei a minha nova aventura, a pedalar como se não houvesse amanhã (nem ursos polares por perto). São 30 minutos até ao cofre global de sementes onde apenas vemos a entrada. Mas é uma experiência que recomendo, pois é a esperança de um recomeço em caso de catástrofe global.

    Quando me aproximei do cofre, tive a sensação de ter viajado para o futuro e de ter encontrado algo deixado por uma civilização que não conheci. Algo de valor. E mesmo que não soubesse do que se trata, perceberia que, lá dentro, está guardado um presente. Mas o que vejo é apenas a entrada.

    Para chegar às sementes, é preciso atravessar um túnel de 120 metros com cinco portas à prova de explosões, atravessando o interior da montanha até chegarmos a três salas com 880.000 sementes de 5.403 espécies vegetais, vindas de todos os lugares do mundo. O cofre fica trancado 350 dias por ano e só é aberto para inspeções ou para receber sementes. Em 2015, aconteceu a primeira e, até hoje, única retirada do cofre. Devastada pela guerra, a Síria tirou 38.000 espécies de sementes do Oriente Médio. Mas os criadores do bunker dizem que foi uma vez sem exemplo, pois este cofre foi construído para não ser usado.

    Regressei à Guest House na “super” bike (sendo que seria ainda mais super se fosse elétrica), numa subida de 30 minutos. Tinha 15 minutos para iniciar o percurso pelo qual tanto ansiava desde que comecei a organizar esta viagem: a possibilidade de ver ursos polares.

    Às 18 horas chegou o capitão do barco, Matt, um sueco, a quem cumprimentei. “Então, Matt, preparado para me mostrar pelo menos um urso polar? Disseram-me que esta é a melhor tour, não espero menos que isso”. Matt, um calmeirão simpático, riu-se: “Ver os ursos é todos querem, mas é muito difícil”.

    Chegámos ao barco. Éramos 12 passageiros. A guia mostrou-nos os mapas e deu duas opções de trajeto. As possibilidades eram: Pyramiden ou aos fiordes. Instantaneamente, indiquei que o destino seria Pyramiden e tentar encontrar os ursos avistados por lá. A guia perguntou-me se eu tinha ouvido algo. É que há três dias que são avistados três ursos: mãe ursa e dois pequenos de dois anos.

    Começámos a viagem. Não havia vento. O mar estava calmo. Começámos a ver golfinhos, depois baleias pequenas e ainda baleias maiores. No barco, respirava-se alegria e estava uma energia incrível.

    Senti que estava tudo a acontecer como preparativo para a aparição do Rei do Ártico. Sabia que iria ver os ursos. Sei que é estranho, mas sempre soube.

    Pedi os binóculos. Vi um barco mais pequeno junto às rochas. Era um bom sinal. Aproximámo-nos e vi algo bege nas rochas: eram três ursos. Que emoção! Estava a vê-los como sonhei, no seu habitat natural. Olhei à volta e estavam todos em êxtase.

    Vi um dos passageiros indianos ao telefone, com os olhos a brilhar. Desligou o telefone. Perguntei se estava telefonar a alguém importante. “Sim, liguei à minha mãe”, disse ele. “Estava a dormir. Na Índia, é muito tarde mas era com ela que gostava de partilhar o momento”, explicou. Fiquei emocionada a pensar que, talvez um dia, o meu filho também me ligue de um lugar qualquer do mundo, a partilhar essa maravilha que está a ver.

    Matt abriu uma garrafa de champanhe. Aplaudimos todos o seu excelente trabalho e ficámos a degustar uma maravilhosa sopa goulash, um pão delicioso e, de sobremesa, um brownie óptimo. Tudo tão simples, mas parecia o melhor de sempre.

    (Mais um sonho tornado realidade. Obrigada, Universo, por permitires que eu viva estes momentos. É o que se levamos desta vida, o que vivemos. Tudo mais fica cá.)

    Regressámos a Longyearbyen – a capital do arquipélago de Svalbard – com uma escolta de golfinhos a surfarem as ondas do barco. Um dia em cheio. Vivenciei muito mais do que podia sonhar.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • A PIDE nos bancos

    A PIDE nos bancos


    Parece que todos os políticos portugueses estão sob suspeita. Basta ir a uma agência bancária – como eu fui, para abrir uma conta de condomínio – para constatar esse facto.

    Aconteceu-me quando me perguntaram, entre muitas coisas, se exercia cargos políticos. E justificaram o interrogatório com a simples frase: somos obrigados a sabê-lo. E como não respondi, a conta do condomínio não foi aberta.

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    As perguntas feitas pelas entidades bancárias são intrusivas. Querem também saber o estado civil dos administradores do condomínio, se há filhos, qual a composição do agregado, a situação profissional, os rendimentos, as propriedades e por aí fora. Como se o dinheiro fosse deles.

    Os Bancos ficam assim com uma base de dados, cujo objetivo não se descortina. Onde está afinal a Comissão Nacional de Proteção de Dados?

    Um português é identificado plenamente com seu cartão de cidadão – que tem gravado os números do dito, da identificação fiscal e da Segurança Social e do Utente de Saúde. Ainda se quis juntar o número da carta de condução, mas isso foi chumbado. No limite poderia ter a indicação do tipo de sangue.

    As perguntas que se fazem numa agência bancária não têm qualquer paralelo à identificação pedida por um juiz no início de um julgamento, seja ele qual for.

    Esta fúria abusiva já se espalhou a simples consultórios médicos. Num deles queriam até saber a empresa onde eu trabalhava e o cargo que exercia.

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    A questão da abertura [de conta] leva cerca de duas horas como me foi dito. Por causa das perguntas, com confirmações e reconfirmações.

    Fiquei cinco minutos, para me despedir do funcionário bancário e dos meus companheiros de administração do condomínio.

    Em rigor, esta prática, para além de abusiva, é até absurda. Se tivermos em conta a escandaleira dos banqueiros que deram sumiço, nos últimos anos, a largas dezenas de milhões de euros.

    Esses sim, andavam com a mão na massa dos portugueses.

    Já agora quais foram as perguntas feitas a esses senhores?

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A caminho do Árctico: dia 2, em Svalbard, a cidade do fim do Mundo

    A caminho do Árctico: dia 2, em Svalbard, a cidade do fim do Mundo

    A paisagem é bela, como esperava. Parece que estamos em outro planeta. A chegada ao Árctico emocionou-me. E este segundo dia da viagem, que me levou a um dos meus destinos de sonho, terminou com um avistamento inesperado.


    Duas horas de voo separam Oslo e Tromsø – a capital das Auroras Boreais. O meu voo partia muito cedo e encontrei um aeroporto com um pouco mais de movimento do que no dia em que aterrei na capital norueguesa – Oslo – vinda de Lisboa. Uma distração minha na ida para a porta de embarque, “desviou-me” para uma loja de brinquedos e recordações. A compra de última hora de um urso polar ‘Papá’ para o meu filho quase me custou o voo. Ainda consegui embarcar – depois de ouvir a última chamada para os passageiros atrasados para o embarque.

    Nesta altura do ano nunca fica escuro em Tromsø. Ao sair do avião temos de para mostrar o passaporte. (Para entrar na Noruega o cartão de cidadão é suficiente mas para entrar em Svalbard é preciso ter o passaporte com a habitual validade de seis meses). Pedi ao agente se era possível juntar um carimbo à coleção que já tenho no passaporte. Riu-se: “vou ver o que posso fazer desde que não o venda”.

    Embarquei então para mais duas horas de voo para o meu destino final. Quando o comandante anunciou a descida para a aterragem, olhei pela janela e vi Árctico e Svalbard. Não contive uma lágrima perante a beleza da paisagem dramática do Árctico. Senti que tinha chegado a outro planeta.

    Svalbard, é a cidade do “fim do Mundo”. Depois daqui, não há mais nada a não ser glaciares e gelo. Aqui acaba a civilização (e é também onde talvez um dia possa recomeçar, mas sobre isto falarei no dia em que visitarei o Banco de Sementes Global).

    Na chegada ao aeroporto, somos “recebidos” por um “urso polar”, o símbolo do Árctico (o que considerei ser um sinal auspicioso para o meu sonho maior de ver ursos polares no seu habitat – irei precisar de muita sorte para que aconteça).

    Um autocarro leva os passageiros ao centro onde estão os alojamentos. Na minha Guest House (número 102), o dormitório é compartilhado por quatro pessoas. A minha única experiência do género foi, por engano, no Vietname, onde éramos 12. Não é o ideal, mas é a opção mais económica para quem viaja sozinho. As pessoas que optam por este tipo de estadia são muito simpáticas, civilizadas, e de todas as idades. Conheci o Peter, um sexagenário holandês, o Mike, um americano na casa dos trinta, e a Martha, de Israel, que é um pouco mais velha do que eu.

    Depois de me acomodar, era só aguardar pelo guia que me iria levar na primeira tour. Na sala de espera, havia café, chá e chocolate à discrição. Do lado de fora das janelas, o que se vê é uma paisagem bonita: montanhas e, na base, casas de madeira coloridas.

    Chegou o Nick, um holandês a viver em Svalbard há pouco mais de três anos. Seria o guia da tour de trenó puxado por cães. Comigo iriam também um casal holandês e os seus dois filhos e um casal de americanos que visitam Svalbard pela terceira vez. (Fiquei feliz por não ser a única a repetir viagens para os lugares de que gosto).

    O grupo participou na colocação dos cães no trenó, que pareciam estar contentes. Aparentemente, gostam do passeio (sabem que vão ter três paragens para comida e bebida).

    A paisagem é surrealista e as cores de outro mundo. Com o Ártico a perder de vista, senti a energia especial do Grande Norte.

    Depois de uma hora ao longo da costa, entre deserto e lagoas, fomos conhecer o complexo onde vivem os cães. É grande e cuidado. Todos os cães têm nome e estão sempre prontos para os passeios. Há um abrigo de madeira, uma pequena casa muito quentinha, onde comemos waffles acompanhado por um chocolate quente. Tudo o que precisava para me ajudar a habituar aos três graus de temperatura.

    A conversa debruçou-se sobre a vida em Svalbard, sobretudo no Inverno, a altura mais difícil, pois é noite 24 horas por dia, durante seis meses. Os guias dormem metade do tempo na cidade, metade no complexo dos cães. Há também duas famílias com crianças e o complexo tem um parque infantil. Mas não têm água para banhos. Têm uma parceria com um ginásio onde tomam banho. (Imagino os Invernos e a preguiça de saírem de casa para ir tomar banho).

    Vivem em Svalbard pessoas de 64 nacionalidades, por isso, parece de todos e de ninguém. Talvez seja um dos encantos para quem escolhe viver neste lugar remoto.

    De regresso aos alojamentos, optei por jantar uns noodles na Guest House. Liguei ao meu filho e mostrei-lhe o vídeo do passeio de trenó: “mamã, também quero andar com os cães”.

    Um hóspede correu até à sala e perguntou: “queres ver uma raposa do Árctico?”. Da janela do seu quarto avistava-se o animal, que já tinha mudado o pelo para o Inverno. Descia a montanha curioso.

    O tempo voo e era altura de repor as energias. Esperava-me um longo dia com muita aventura e alguns desafios.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • Um editorial que não deveria ter de existir

    Um editorial que não deveria ter de existir


    Hoje, pelas 19:30 horas, o PÁGINA UM publicará uma entrevista em exclusivo a Rui Fonseca e Castro, actual advogado e antigo juiz (expulso por decisão unânime do Conselho Superior da Magistratura), conduzida pelo jornalista Nuno André.

    Anunciar-se esta entrevista com antecipação não é acto que, num ambiente normal e num país de liberdade de expressão, devesse ocupar o espaço de um editorial, mesmo se estivesse em causa entrevistar quer o mais santo ser humano à face da Terra quer o mais facinoroso humanóide.

    Rui Fonseca e Castro

    Numa situação normal, um qualquer órgão de comunicação social publica as notícias dentro das suas capacidades e linha editorial, e sobretudo apresenta as entrevistas a pessoas que aceitam ser entrevistadas e que considera relevantes para os seus leitores.

    Até há algum tempo, existia um claro entendimento que uma entrevista ou um artigo de opinião de um colunista não emparelhava um órgão de comunicação social, embora até fosse aceitável, e por vezes assumido do ponto de vista editorial, uma influência ideológica.

    Isso mudou desde a pandemia. E prolongou-se com a guerra da Ucrânia.

    Hoje, o politicamente correcto, o wokismo, o jornalismo missionário – aquele tipo onde o pivot de um telejornal se vê no direito de dar raspanetes aos espectadores e de censurar hipotéticos comportamentos – inundaram a imprensa. Segue-se uma narrativa, cria-se um unanimismo, nada se faz que possa sequer abalar os alicerces das “convicções” jornalísticas. Não se arrisca, não se colocam geralmente ideias em confronto, e nas raras vezes que sucede é para meter uma das parte no pelourinho. Secam-se opiniões discordantes. Os resistentes são apelidados de extremistas, porque se eliminou pela ameaça e o medo as vozes moderadas e razoáveis. O resistentes moderados são ostracizados, perseguidos.

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    O PÁGINA UM sofreu – embora ripostando sempre – desde o seu nascimento com este novo estilo de “fazer informação”.

    Esse labéu que nos tentaram colar – e que advém, em grande medida, das minhas posições desde 2020 – não tem, neste “novo mundo” da informação qualquer antídoto. Os ataques sobre o PÁGINA UM da própria Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas são um exemplo paradigmático. A falta de solidariedade da classe contra os ataques da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, idem.

    Os rótulos são, aliás, confortáveis para quem os coloca, porque não precisam de ser justificados. Colam-se e já está. O PÁGINA UM sabe disso. E o PÁGINA UM também sabe que continuará a ser – apesar das acusações explícitas e implícitas, na praça pública ou nos bastidores; e apesar da sua (ainda) pequena dimensão – o único órgão de comunicação social a pressionar o Ministério da Saúde e as entidades por si tuteladas a divulgarem informação sobre a pandemia e o estado caótico do SNS, e as promiscuidades de certos médicos com as farmacêuticas.

    Rui Fonseca e Castro entrevistado pelo jornalista Nuno André

    Tem sido o PÁGINA UM o paladino da luta por uma maior transparência da Administração Pública, desde o Conselho Superior da Magistratura até ao Banco de Portugal, passando pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Mas, apesar de tudo, o labéu mantém-se e manter-se-á. O sectarismo enraizou-se na sociedade, ainda mais na comunicação social. E não tenho, como director do PÁGINA UM, quaisquer dúvidas de que a entrevista que hoje publicaremos de Rui Fonseca e Castro constituirá, para os detractores do jornalismo independente, mais uma “prova indelével” para justificar rótulos.

    Por isso, de pouco valerá dizer que, pessoalmente, há muitas mais coisas que me afastam de Rui Fonseca e Castro do que aquelas que me aproximam, mas isso não é relevante. Relevante sim é ler (ou ver) a entrevista.

    Na verdade, este editorial nem deveria existir.

  • A caminho do Árctico: dia 1, em Oslo

    A caminho do Árctico: dia 1, em Oslo

    Prestes a conhecer um dos meus destinos de sonho, partilho, neste ‘Diário de Bordo’, os passos de uma viagem até ao Árctico. A primeira paragem é Oslo, onde a temperatura amena, de 23 graus, convida a um passeio de bicicleta pela capital norueguesa.


    É a verdadeira realização de um sonho. De mochila às costas, parto para uma viagem para o Árctico. As expetativas são muitas. O entusiasmo também.

    Desta vez, viajo sozinha. Como sempre faço, também esta viagem foi planeada por mim, ao pormenor, num itinerário que começa em Lisboa e que tem como primeira paragem Oslo, capital da Noruega e estrela das minhas primeiras linhas escritas neste Diário de Bordo, para o PÁGINA UM. É o começo de uma viagem de seis dias, que terminará em Helsínquia, na Finlândia.

    Assim que cheguei ao aeroporto Oslo Gardermoen, senti que tinha acabado de fazer uma viagem no tempo, para uma cidade no futuro.  A capital da Noruega é uma cidade moderna, famosa pela sua arquitetura. A maior cidade do país – sendo seguida por Bergen -, Oslo é uma cidade que nos fascina.

    Tudo funciona bem: o comboio, o metro, o elétrico, os autocarros. Os noruegueses são simpáticos e prestáveis. Respiro civilização.  

    Já no comboio, não consigo deixar de notar, o que há muito já sabia. Não há uma máscara, não há restrições covid. O tema não é assunto (e nunca assumiu, nem de longe nem de perto, as gigantescas proporções que assumiu em Portugal). Em todo o dia, apenas vi uma família de máscara (e quando começaram a falar, eram portugueses) e, no final do dia, vi um grupo de chineses, também de máscara. (Fiquei a pensar o que teremos em comum com os chineses! Nem franceses, nem espanhóis, nem italianos! Portugueses e Asiáticos de máscara. Porque será?)

    Saí do comboio na Estação do Teatro Nacional, onde aluguei um espaço no interior de um restaurante, para deixar a mochila e o meu casaco de Inverno. Dali, segui para o Porto e vi o bairro de Aker Brygge e os Fiordes de Oslo. Segui numa caminhada de 20 minutos até ao ponto de partida para a minha ‘Oslo Viking Biking’, que prometia passar pelos principais pontos da cidade que já tinha visitado na minha primeira visita à Noruega. É uma forma diferente de revisitar estes lugares. 

    Habitualmente, reservo tudo mas, como não tinha certeza se o avião chegaria a tempo a Oslo, optei por não reservar e, se tivesse tempo, arriscaria o passeio de bicicleta. Arrisquei e, quando cheguei, a tour estava completa; Mas devo ter feito uma cara de desiludida porque o rapaz disse para aguardar: “às vezes falta alguém e, se assim for podes vir”.

    Passaram 10 minutos do horário e faltavam duas pessoas. Fui ao escritório pagar e, quando saiu o talão do terminal de pagamentos, chegaram as duas pessoas. Fui literalmente salva pelo “Multibanco”, porque, depois de ter pago, deixaram-me seguir com um dos grupos. Tive muita sorte! 

    Rebeca era nossa líder da tour. Não deve ter mais de 30 anos, é consultora legal e aos sábados tem este part-time. “É uma forma de fazer exercício, ganhar mais algum dinheiro e conhecer pessoas”. Lembrei-me de uma época em que trabalhava a tempo inteiro e tive também um part-time ao sábado mas, em Portugal, é muito raro. Há uma cultura em que parece que as pessoas têm vergonha de trabalhar em áreas fora das suas habilitações académicas. Há uma preocupação com as aparências e, muitas vezes, um ciclo vicioso que não nos deixa viver em pleno e sermos nós próprios. 

    A Noruega é um país muito rico: o seu Produto Interno Bruto per capita é duas vezes o do Japão e duas vezes o de França. Mas, ao mesmo tempo, no essencial, os noruegueses são pessoas simples e levam muito a sério o lema “ninguém é melhor do que ninguém”. Ao nível dos costumes, ao contrário de alguns países, aqui as pessoas não se diferenciam pela maneira como se vestem. A Noruega é também um país que lidera em termos de igualdade de género, entre homens e mulheres. 

    Começamos a tour pela fortaleza e castelo, onde ficam o Ministério da Defesa e o Museu da Defesa. Muitos casais casam e também a tradição do casamento é muito diferente da Europa do Sul. As noivas vestem-se a rigor, os convidados vestem os trajes tradicionais da Noruega (que são lindos) e, ao contrário de Portugal, os convidados são apenas os pais, padrinhos, família próxima e seis amigos de cada lado. O casamento é um momento caloroso e desmistifica a ideia que os nórdicos são frios. 

    Da fortaleza, seguimos para o Palácio Real, passeamos pelos seus jardins e, no caminho, passámos pelo Grand Hotel de Oslo, o Teatro Nacional e o centro histórico.

    Visitar a Noruega no Verão é maravilhoso. Além de encontrarmos dias solarengos e bonitos, vemos todos os jardins em flor, o que faz com que a cidade tenha ainda mais encanto. Nada de flores secas, nem de um calor abrasador, apenas o habitual Verão norueguês, com 23 graus. 

    A paragem seguinte foi o Parque Vigeland, onde encontramos o maior museu aberto de esculturas do artista norueguês Gustav Vigeland, As suas esculturas mostram os vários momentos da vida e, em particular, da paternidade (talvez em jeito autobiográfico, digo eu).

    Tive ainda tempo de provar um gelado norueguês com brownies e caramelo para retemperar energias. 
    O café do parque também é muito bonito, com uma grande esplanada, e um ponto de encontro de famílias e amigos neste lugar único no mundo. 

    O regresso ao ponto de partida levou-nos pelas zonas nobres residenciais, com os seus bistros e cafés, e por Aker Brygge.

    Segui depois a pé até à Ópera e ao Museu Munch, e confirmei que os nórdicos aproveitam qualquer local junto à água para fazer praia. Há ali também plataformas e barcos, que grupos de amigos alugam, com bebidas, e de onde dão mergulhos para o mar.

    Fui procurar o terminal de autocarros, para apanhar o 34, para me levar até Damstredet, uma zona pitoresca, onde ainda se podem ver as típicas e antigas casas norueguesas. 


    Não foi fácil encontrar a paragem. Já sentada no autocarro, fechei os olhos. O motorista árabe ouvia as orações. Naqueles instantes, senti-me a ser transportada para a Turquia ou um qualquer país muçulmano.

    Cheguei à minha paragem e segui em direção a Damstredet, que corresponde às expectativas. Casas coloridas muito bonitas, numa zona tranquila de Oslo, com espaços verdes e um cemitério que entra para o top dos cemitérios mais bonitos que visitei (não estava no programa, mas deixo sempre espaço para o inesperado), depois do cemitério americano na Normandia, que considero ser o mais bonito. 

    Voltei a pé para o centro, mas antes parei para um aperol (um aperitivo italiano) na Vulkan, a área hipster de Oslo. Trata-se de uma zona residencial em forma de vulcão, com muitos restaurantes e bares. 


    O caminho até ao Teatro Nacional demorou 30 minutos. Em cena, está “Hamlet”, de Shakespeare, em inglês, com atores noruegueses. 

    Antes, jantei no lindo Café do Teatro. Estava lotado (pensámos todos o mesmo: jantar antes do teatro). Muitos casais, uma mesa de amigas, algumas de amigos mais velhos. Como estava sozinha, jantei ao balcão. Gosto muito da cozinha norueguesa, mas, o melhor de tudo foi ter estes minutos a imaginar como seria a vida daquelas pessoas que, como eu, iam ver “Hamlet” no Teatro Nacional.

    Saindo do teatro, são apenas 2 minutos até onde deixei a mochila – um restaurante de turcos. Os empregados eram os mesmos que encontrei de manhã. Comentei que trabalham muito, ao que me respondeu o dono: “10 ou 12 horas mas se fosse na Turquia seriam 16 horas”. 

    Segui para a estação, onde apanhei o comboio de regresso ao aeroporto junto ao qual se situa o meu hotel. Amanhã, a viagem para o Ártico começa cedo e assim já estou ao lado do aeroporto. 

    Sentada no comboio, doíam-se as pernas e um pouco os ombros e as costas. Um dia, ganharei coragem para revisitar os mesmos locais no longo Inverno, pois, neste Verão que não acaba, tudo parece fácil e certo. 

    O dia termina com uma chamada para o meu filho que, em casa, espera que lhe leve um ursinho polar. Vou dar o meu melhor, que é o mais importante. O “saldo” da viagem, esse já é positivo. Agora, é só viver o momento, guardar as memórias, as imagens, paisagens e os lugares… 

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.


    Dicas:

    A melhor altura para se viajar para a Noruega é entre Junho a Agosto. Em Junho, podem ver-se as noites brancas (nunca fica de noite). 

    Para quem procura assistir às auroras boreais, terá de viajar em Novembro ou Fevereiro. O ideal é comprar a viagem mais em cima da hora e verificar no site Northern Lights in Norway quando é boa altura para ir. Isto, para aventureiros last minute. A aplicação também tem os melhores lugares para ver as auroras boreais, se bem que Tromsø é a “capital” das “luzes do Norte”.

  • O t(r)emido legado da Marta

    O t(r)emido legado da Marta


    A demissão de Marta Temido tem vários ângulos de discussão e substitui, na prioridade da informação nacional, os directos das filas para compra de bilhetes para os Coldplay. Só por aí já ficámos a ganhar, e voltámos assim às discussões que interessam.

    É impossível, num texto só, abordar tudo o que já foi dito sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a demissão da senhora e o seu (e o nosso) futuro, e como tal, tentarei dividir a minha opinião por “zonas de reacção”. Não sendo propriamente um ás na arte da síntese, tentarei, ainda assim, não aborrecer o leitor.

    Marta Temido, ao centro.

    A ponta do iceberg

    Marta Temido decidiu sair depois de mais um escândalo no SNS. Sim, escândalo. Quando uma grávida morre numa ambulância estamos a caminhar a passos largos para o Terceiro Mundo. Quando uma mulher grávida é transferida, com um quadro clínico complicado, por falta de incubadoras no maior hospital do país, estamos a assistir à falência do sistema.

    A conferência de imprensa dada hoje pelos clínicos do Santa Maria, apesar das boas intenções, foi um tiro nos pés. Dizer que a mulher era estrangeira, que não se expressava em inglês ou português, e que não tinha sido admitida no hospital (mas que simplesmente aparecera lá), são argumentos absolutamente infelizes.

    Um ser humano aparece na urgência do maior hospital de um país que há 35 anos faz parte da zona mais civilizada do planeta, e até pode ser muda e paralítica… atende-se logo e não se pode mandá-la para outro lado porque há falta disto ou daquilo. É simples. Ou seria, se o SNS não andasse a ser desmantelado há anos. A culpa não é, obviamente, dos médicos, que fazem milagres com o que vai sobrando.

    photo of iceberg

    A reacção de Marta Temido

    A morte da mulher de origem indiana, grávida e de férias em Portugal, terá sido a gota de água que explica, publicamente, o caos que todos sabemos existir no SNS.

    A ministra não será certamente a única culpada, mas é a cabeça que tem de rolar. A falta de pessoal de Obstetrícia, que marcou o Verão, foi outro dos problemas que Temido carregava há alguns meses. Tal como os dois anos de pandemia em que o SNS ficou absolutamente sobrecarregado, por decisões políticas erradas, passando as demais doenças para segundo plano.

    O Governo português tomava as decisões com base numa equipa de especialistas (onde andarão eles agora?) e os hospitais privados, não sei se se lembram, decidiram ficar de fora do esforço nacional, a não ser que 13.000 euros por doente lhes fossem doados. Marta Temido foi, apesar de tudo, uma cara que tentou defender o SNS, mesmo se, aqui e ali, tenha cometido umas gaffes, como a famosa resiliência.

    Acho que foi vítima de alguma ingenuidade, e não me parece que seja a maior responsável na catástrofe em que se tornou o SNS, onde a maior parte das decisões que contam são tomadas no Ministério das Finanças. Marta Temido é a cara da política que nos trouxe aqui, não é a responsável principal.

    pregnant woman holding her tummy during daytime

    A reacção da Oposição

    A Oposição precisava desta demissão como de pão para a boca. A frase que mais ouvi foi “demite-se tarde” – e, por acaso, concordo. Por razões diferentes, mas concordo. Marta Temido devia ter batido com a porta mais cedo, mostrando que não legitimava as políticas do governo para o SNS, que, como alguma esquerda disse, “assistia passivamente ao desmantelamento do SNS”.

    Entre as diferentes tipologias de declarações do dia que ouvi, uma pareceu-me mais perigosa:  a ânsia de saber quem seria o substituto de Marta Temido e se estaria preparado para mudar radicalmente o SNS.

    E o que será mudar radicalmente o SNS? Será perceber que os “tempos são outros”, e que a Medicina mudou, e que os privados passaram a investir na Saúde de uma forma que não deixaria nada como era há 40 anos.

    Ou seja, para alguma Oposição de direita, o próximo ministro deve reconhecer que o SNS deve fornecer serviços básicos de Saúde, especialmente aos mais desfavorecidos, e deixar que os privados tomem o seu lugar e complementem a oferta do SNS. Traduzindo para português corrente: cartões de seguro para toda a gente e SNS apenas para passar receitas de aspirinas.

    Partidos como o Chega benzeram-se com esta crise, porque deixaram de falar nas sessões de pugilismo internas e aproveitaram para pedir a demissão de António Costa, também.

    O PSD, responsável pelo início desta caminhada no SNS, também culpa Marta Temido pelo caos no SNS e espera que o Governo encontre um ministro que seja fã das parcerias público-privadas (PPPs) da saúde.

    Já à esquerda, Bloco de Esquerda e PCP, dizem que é tempo de voltar a investir a sério e fixar médicos no SNS.

    Notei que foi pedida também uma reacção a Nuno Melo (CDS). Confesso que não percebi porquê.

    A reacção dos profissionais

    Entre as várias que passaram nos três canais informativos, destaco uma que me pareceu mais assertiva.

    Dizia uma profissional, com mais de 40 anos de experiência, que a debandada no SNS começou nos tempos da troika. Este parece-me um dado importante. Não é que não seja óbvio, mas é bom lembrar que a pandemia só mascarou um problema que já vinha de trás.

    Explicava esta profissional que os médicos que começaram a sair nessa altura (para fora do país ou para os privados) são a geração que hoje estaria nos 40/50 anos sendo que essa é a fatia que mais falta no SNS.

    Ou seja, há muitos jovens (no internato) e muitos médicos em fim de carreira. Faltam aqueles que, hoje, fariam a geração de transição. E esse é que é o cerne da questão.

    O SNS está preso por arames há muito e a culpa não é de Marta Temido. É de todos os governos que decidiram meter dinheiro em estradas, no BES, nas exigências para lá da troika, nos esforços de guerra, nas PPP’s e em todos os arranjinhos que, neste país, fazem de sorvedouro de dinheiros públicos. Tal como os professores, os médicos e enfermeiros andam a ver a degradação das suas carreiras há mais de uma década.

    Quando os liberais usam frases-chavão, e afirmam que não podemos despejar dinheiro no SNS porque o problema é de gestão, o que eles verdadeiramente querem dizer é que não podemos despejar dinheiro no SNS porque devemos fazê-lo na direcção dos grupos privados de saúde.

    Claro que o problema é de investimento. Os profissionais não abandonam o SNS se tiverem boas condições de trabalho. Não são diferentes de qualquer um de nós.

    man in white thobe standing

    A reacção da sociedade civil

    Quando todos os dias nos queixamos nas redes sociais, ao vizinho do lado ou no trabalho, sobre os problemas que enfrentamos no SNS, especialmente com as filas de espera, temos a inquestionável habilidade de nos esquecermos que, há pouco mais de um ano, andávamos a bater palmas aos médicos nas varandas e a agradecer por estarmos todos em casa a ignorar 99,9% das doenças do mundo.

    Ora, essa decisão governamental, apoiada pela maioria da população (bem sei que hoje já se esqueceram, mas há que aguentar), não só sobrecarregou os profissionais naquele momento como, os repetidos adiamentos, deslocaram a sobrecarga para outras especialidades mais à frente no tempo.

    Em parte, é isso que todos estamos a viver hoje: o ruir da última parede do edifício do SNS. Contudo, enquanto milhões de pessoas saudáveis ficavam em casa e pessoas doentes (sem covid) não eram assistidas, (quase) todos achávamos que seguíamos no caminho para ficar tudo bem.

    O dinheiro que aí se gastou, nomeadamente com o pagamento de layoffs e no trabalho extraordinário dos médicos, daria, provavelmente, para reforçar em permanência os quadros do SNS.

    A Suécia – ainda se lembram do país que “matava velhinhos” – não seguiu a política da maioria (Portugal incluído), não esgotou o seu SNS, não esbanjou dinheiro para que pessoas saudáveis ficassem em casa. Era possível ter feito diferente.

    timelapse photo of people passing the street

    Conclusão

    Marta Temido fará as parangonas de hoje e amanhã. É a cara de uma política que falhou. Não é, nem de perto nem de longe, a principal responsável pelo actual estado do SNS. Nem parece que quem vier, se vier com as mesmas ideias, faça este estado de coisas mudar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Pedro na ERC, Anita no circo ou Portugal na ditadura

    Pedro na ERC, Anita no circo ou Portugal na ditadura


    No passado dia 9 de Agosto, nas instalações da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC), com autorização superior para consultar processos administrativos por parte do senhor juiz conselheiro Sebastião Póvoas, circunstancial presidente daquele regulador – previsto na Constituição da República para defesa da liberdade de imprensa –, cometi um suposto “crime de lesa-majestade”: saquei do telemóvel e comecei a tirar fotografias às páginas.

    Desde que os smartphones se vulgarizaram, não conheço, como jornalista, meio mais corriqueiro de consulta, mais eficiente pela rapidez e mais ecológico pela poupança de recursos. Em meia dúzia de minutos, capta-se os elementos estritamente necessários, evitando-se ocupar tempo a todos, e cada um segue caminho. Que venha o primeiro jornalista dizer que nunca usou, de forma descontraída e sem pressão, um telemóvel para fotografar papéis.

    Porém, em 9 de Agosto, a ERC quis fabricar um “incidente”, e procurou proibir-me ilegalmente de usar um meio legítimo de reprodução de documentos, previsto na Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA). Um pedido para a PSP tomar conta desta ocorrência, transformou-se de repente num distúrbio (artificial), que culminou não apenas em um, mas logo em dois comunicados da ERC, o segundo da própria Comissão de Trabalhadores.

    Os dois comunicados difamantes – divulgados na imprensa, em que chegava a colocar em dúvida a minha actividade de jornalista e me atribuía supostos insultos aos membros do Conselho Regulador e uma alegada “atitude invulgar e abusiva”, pretendia criar uma “cortina de fumo” nas investigações do PÁGINA UM sobre a ERC.

    Fachada da ERC, na Avenida 24 de Julho, em Lisboa, fotografada hoje de manhã.

    Com efeito, o PÁGINA UM tem procurado saber como tem sido a intervenção do regulador na gestão dos pedidos de confidencialidade de grupos empresariais de media relacionado com a transparência de dados económicos, e também conhecer se haverá intervenção sobre estranhos contratos entre diversos grupos empresariais de media e entidades da Administração Pública que resultam em ingerências editoriais.

    Ora, mas o PÁGINA UM não se deixa amedrontar com estas “manobras de diversão”. Nas últimas semanas, além de instaurar um processo de intimação contra a ERC por negar a consulta de documentos sobre a transparência dos media, fui insistentemente solicitando a remarcação da consulta dos processos inopinadamente interrompida em 9 de Agosto. Por três vezes se fez o pedido. Apenas no passado dia 24 de Agosto houve uma reacção da ERC, marcando nova consulta para hoje, dia 30, mas com a imposição de regras, entre as quais a proibição de fotografias.

    Reacção: novo protesto, queixa na Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA), indicação de que estaria presente na companhia de advogado e que não se aceitaria aquelas regras arbitrariamente impostas pelo Conselho Regulador da ERC, mesmo se ditadas por um juiz conselheiro que, na verdade, ali, assumia apenas o papel de presidente do regulador e não de qualquer tribunal.

    Intolerável coacção sobre a ERC por um cidadão inoportuno?

    Ou antes uma intransigente defesa de direitos por um jornalista incómodo?

    Os leitores que decidam. Os cidadãos que escolham a perspectiva e, como a sua decisão, queiram aceitar o tipo de democracia que mais apreciam.

    Ao fundo, advogado João Pedro César Machado, à entrada da ERC, que acompanhou o director do PÁGINA UM na consulta dos processos, aos quais se tiraram fotografias.

    Em função desse protesto, enfim veio nova reacção da ERC: “excepcionalmente”, o presidente do Conselho Regulador autorizou ontem que a consulta de hoje pudesse ser feita com reprodução de fotografias dos processos – algo que, aliás, já eu fizera em outras oportunidades antes do dia 9.

    E lá estive hoje, eu, Pedro na ERC, a consultar seis processos, na companhia do advogado João Pedro César Machado, na mesmíssima sala do dia 9 de Agosto, munido de telemóvel a fotografar páginas e a escrever seis requerimentos. Numa exacta hora e meia, despachei tudo: consulta, fotografias e requerimentos.

    E onde está a “Anita no circo”? Talvez no facto de ter, durante esta corriqueira consulta, a “escoltar-me” o chefe de gabinete do presidente da ERC, acompanhada por mais uma jurista.

    E, entretanto, lá em baixo, a guardar a porta, fiel, um agente da Polícia de Segurança Pública, convenientemente requisitado pela ERC, por certo.

    Nunca antes, nas minhas diversas visitas à ERC, tinha visto à porta um agente da PSP. E foram várias. Nunca antes de 9 de Agosto esteve ali um agente. E não há coincidência. Há coacção sobre os jornalistas, agora olhados como Inimigos Públicos se saírem da bitola da “cordialidade” e do “respeitinho”.

    Alguém da ERC achou que eu constituiria um perigo e requereu previamente presença policial; e alguém na hierarquia da PSP achou por bem destacar recursos públicos – um agente – para proteger não sei quem de um jornalista que, enfim, só ali entrou para exercer a sua actividade como jornalista, munido de telefone e caneta, e que dali saiu pacifica e livremente, mas a pensar se ainda se vive numa democracia.

    Ou se já se está num circo.

    Ou, mesmo já, numa ditadura.

  • Terrorismo: ser ou não ser, depende?

    Terrorismo: ser ou não ser, depende?


    Tomámos conhecimento este mês, pelos órgãos noticiosos, do comunicado conjunto dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros de nove países europeus (onde Portugal não figura) de que o Governo de Israel ocupou, encerrou e expulsou fisicamente das sedes respectivas seis organizações não-governamentais (ONG) na Cisjordânia, acusando-as de terrorismo, de serem associadas da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP).

    Esta acção vem na sequência da designação pelo mesmo Governo, já a 22 de Outubro de 2021, dessas mesmas organizações enquanto entidades terroristas, concretamente do desvio de fundos a favor dos guerrilheiros.

    blue and gray binoculars on top of the building

    Ora, sucede que, apesar de serem compreensíveis, de um ponto de vista lógico-argumentativo, os interesses que orientam estas acções do Estado de Israel (bastando para tal ler ou ouvir um qualquer teórico israelita hodierno sobre estas matérias, como seja Boaz Ganor) – com as quais, de resto, discordamos –, já diz a vox populi que se tudo for algo, então nada o é.

    Existe, por isso, um problema definitório, conceptual, quanto ao Terrorismo, “palavrão” tantas vezes usado, a maioria delas errónea ou imprecisamente.

    Havendo mais de uma centena de definições deste conceito, em termos doutrinários as Nações Unidas adoptaram a formulação académica do holandês Alex P. Schmid (1984) no seu Political Terrorism: A Research Guide to Concepts, Theories, Date Bases and Literature (apud Bessa, 2016), considerando o Terrorismo como um método “de reiterada acção violenta inspirada na angústia, utilizado por pessoas, grupos ou Estados de forma clandestina, por razões idiossincrásicas, criminosas ou políticas, por meio das quais – a diferencia do assassinato – o objectivo imediato da violência não é o objectivo final.

    Esta abordagem é prosseguida por diversos autores, menos e mais actuais, sendo que perfilamos uma visão distinta (de elevado impacto em termos práticos), onde se distingue “terror” de “terrorismo”, com o vector decisivo deste último ser a alteração política: “(…) the fundamental aim of the terrorist’s violence is ultimately to change ‘the system’ (…)” (Hoffman, 1998), o que redunda na circunstância de se considerar o terrorismo como “(…) the deliberate creation and exploitation of fear through violence or the threat of violence in the pursuit of political change” (Hoffman, 1998). Na prática, o que as instituições nacionais e internacionais que nos regem optaram por fazer, confrontadas que foram com este problema de falta de acordo universal para a definição desta realidade, foi contorná-lo, descrevendo e definindo as acções, os agentes, as consequências do terrorismo, e mesmo por referência às intenções de actos já criminalizados, utilizando até uma técnica jurídica remissiva não só confusa como pouco eficiente, pensamos.

    blue and white flag on pole

    Numa perspectiva não-Ocidental, a Convenção Árabe do Terrorismo que foi levada a efeito no Cairo em Abril de 1998, preconiza este fenómeno como “[q]ualquer acto ou ameaça de violência, quaisquer que sejam os seus motivos ou propósitos, que surjam por iniciativa própria ou colectiva, procurando semear o pânico entre os povos causando-lhes danos, ou colocando as suas vidas, liberdades ou segu­rança em risco, ou procurando causar prejuízos no ambiente, instalações públicas ou privadas, ou ocupando ou apoderar, ou procurando expor ao perigo recursos nacionais.” (Bessa, 2016).

    Compreensivamente abrangente e laica esta formulação, determinada a expurgar preconceitos de ordem religiosa.

    Qual a solução, então? Conhecimento e compreensão, com rigor. “Classificar um ato, um grupo, uma pessoa, mesmo um Estado ou uma entidade supranacional, como terrorista, depende do contexto, de quem classifica, de quem interpreta e da época histórica (os terroristas de uns podem ser os combatentes da liberdade para outros).” (Lemos Pires, 2017), ou seja, falamos da perspectiva.

    O terrorismo depende da perspectiva. Depende do olhar de quem se debruça sobre esta temática, depende da compreensão de que este jogo de realidades nunca é apenas preto ou branco, mas sim de diversos matizes de cinzento – a “[z]ona cinzenta (…) onde encontraremos o terrorismo”, nas palavras de Townshend (2006) – que carecem de entendimento. É sobretudo uma questão de perspectiva, sobre quem olha para uma determinada realidade e sente medo (consequência) ou, por outro lado, desejo de iniciativa para alterar essa realidade, estando (normalmente) subjacente a isto um sentimento de injustiça.

    Injustiça percebida esta, muitas vezes, na base de processos de radicalização, mesmo com ausência de um input radicalizador externo, o que aumenta a exposição societária a retóricas de extremismos violentos. Para mais, hodiernamente, potenciados pelas TIC.

    people gathered near pole

    Para este desiderato, sustentamos que o terror (e não o terrorismo) é que pode ser considerado simplesmente um método, como ensina o politólogo Sunil Khilnani (citado por Townshend, 2006), sendo que, tendo presente que o terrorismo não se reconduz apenas àquele denominado jihadista, concebemo-lo com as seguintes características:

    1. Existência ou ameaça de violência;
    2. Acção voluntária, individual ou grupal, organizada ou não;
    3. Contra pessoas ou alvos indiscriminados ou com representação simbólica;
    4. Para atingir um objectivo secundário de condicionar uma acção ou abstenção duma entidade com poder, normalmente estatal, ou de perturbar os termos do «nexo sinalagmático» de uma sociedade;
    5. Orientada por uma arquitectura ética que o(s) autor(es) considera(m) legítima;
    6. Cujas consequências ou impacto potencial serão graves ou danosas;
    7.  Este estado de coisas seja passível de difundir uma mensagem ou sentimento generalizado, seja apelativo/cativante ou negativo (como o medo), condizente com a ética legitimadora subjacente.

    Identificamos também, mesmo no dia-a-dia, imprecisões conceptuais (sendo o conceito de jihad um caso paradigmático) que prejudicam uma boa construção dogmática das tipologias de terrorismo (conscientes de que existe mais do que uma categorização admissível), sendo fundamental, a nosso ver, compreender que aquilo que está em causa é o extremismo violento, tendo por base uma ideologia (normalmente) política.

    soldiers in green and brown camouflage uniform standing on gray concrete floor during daytime

    Se algumas destas imprecisões fossem ultrapassadas, alçando-nos em maior conhecimento, seria possível não se promoverem sentimentos de rejeição sem causa, afastando-se uma certa terminologia não só errónea como contraproducente, bastando atentar no caso do termo “terrorismo islâmico”. Apreenderíamos, destarte, que organizações como o ISIS (e outras semelhantes) não são organizações políticas que praticam violência, mas grupos armados que racionalizam politicamente as suas acções violentas.

    Estas conclusões convocam, como pretendemos demonstrar mais demoradamente noutros escritos, uma resposta contra-terrorista com base na investigação criminal preventiva (e proactiva) do terrorismo, não só por imperativos de acção, mas de princípios fundacionais do nosso ordenamento jurídico, como os direitos fundamentais, a legalidade democrática ou a separação de poderes.

    Daqui resultam aspectos de análise que poucas atenções têm obtido até agora, em termos de doutrina portuguesa, como sejam o ‘crime-terror nexus’ ou o estudo das ‘root causes’ do terrorismo. Rectius, compreender as razões de aparecimento de grupos, neste domínio, como os da aliança HTS (onde se inclui a Jabhat Fateh al-Sham, anteriormente Jabhat al-Nusra), na Síria, ou a da AQMI, al-Mourabitoun, Frente de Libertação de Macina e Ansar Dine (denominada JNIM), no Sahel, são de singular importância.

    No mesmo sentido, as especificidades ciber, nas suas vertentes do ciberterrorismo e da dimensão ciber do terrorismo, por serem realidades criminógenas distintas, exigem um tratamento diferenciado, mesmo tecnicamente. Em oposição, uma resposta meramente securitária (ou militarista) não alcançará os efeitos pretendidos a longo prazo: “[m]ore sophisticated technology and increased military force will not end terrorism in the longterm.” (Moghaddam, 2005).

    in flight dove

    Após aturado discorrer, concluímos pela indissociabilidade e interdependência do trinómio Segurança-IC-Intelligence no âmbito CT, o qual, na verdade, é uma disciplina que lida com um fenómeno criminal, simultaneamente prosseguindo fins securitários, com recurso a produção de informações, onde a garantia do conteúdo substantivo da segurança interna é inerente à defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos. Decorre daqui, ainda, a desnecessidade dos serviços de informações internos, pelo menos no que ao campo CT diz respeito, o que advogámos.

    De um ponto de vista hermenêutico, o terrorismo, considerado holisticamente, para além de ser um fenómeno hodierno político-social, é, sem margem para dúvida, um fenómeno criminal. Não só é criminal ao nível do combate e das respostas que as nossas sociedades lhe encontram (neocriminalização de comportamentos normais num determinado contexto, cf. nº 11 do artigo 4º da Lei nº 52/2003), uma vez que contende com bens jurídicos que elegemos com a maior dignidade jurídica (nomeadamente a constitucional e a do direito natural), mas é também criminal ontologicamente.

    Na sua origem identificámos dois níveis. Um, porquanto as acções de que lança mão, ab initio, são em si já tipificadas ou genericamente consideradas como crime, com especial manifestação no ciberespaço (designadamente na utilização da darknet, etc.). Outro, visto as motivações subjacentes à actividade terrorista, mesmo na sua vertente ciber, serem muitas vezes, em primeira linha, mas ocultas, razões mais orientadas para a obtenção de vantagens ilícitas individuais, com um mero “aparente” radicalismo ideológico.

    Inspector da Polícia Judiciária, licenciado em Direito e mestre em Direito e Segurança

    Autor do livro Contra-Terrorismo – Tópicos Essenciais e a Unidade CT “Ideal”


    BIBLIOGRFIA

    BESSA, João Manuel de Andrade Pinto – “As Nações Unidas e o Terrorismo”. Revista Militar n.º 2458 – Ano III, Novembro de 2016.

    HOFFMAN, Bruce – Inside Terrorism. 1.ª Ed. London, 1998, ISBN: 0575065095.

    LEMOS PIRES, Nuno – “As plataformas cibernéticas para a exponenciação do terrorismo transnacional”. Revista CYBERLAW (CIJIC). ISSN: 2183-729. N.º III (2017), p. 80-92.

    MOGHADDAM, Fathali M. – The Staircase to Terrorism: A Psychological Exploration. American Psychologist. Ano LX, n.º 2 (Feb./Mar. 2005), p. 161-169.

    TOWNSHEND, Charles (2002) – O Terrorismo. 1.ª Ed. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2006. ISBN: 989-552-189-8.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.