Categoria: Opinião

  • Brasil, preso entre o passado e o futuro… e, já agora, Portugal também

    Brasil, preso entre o passado e o futuro… e, já agora, Portugal também


    No Palácio de Queluz, nos arredores de Lisboa, há um quarto muito especial. É decorado com cenas do livro D. Quixote, do espanhol Miguel Cervantes, e é esse o nome daquela habitação real. Foi aí que nasceu e morreu o rei D. Pedro IV de Portugal, primeiro Imperador do Brasil, cujos 200 anos de Independência hoje se comemoram. Apenas 36 anos separam as datas do seu nascimento – 12 de Outubro de 1798 – da sua morte – 24 de Setembro de 1834 -, mas este rei e imperador teve uma vida tão preenchida cujos efeitos ainda hoje se fazem sentir em ambos lados do Atlântico.

    Faltavam dois anos para a invasão de Portugal pelas tropas de Junot quando, esse mesmo Junot chegou a Portugal para servir como embaixador do governo de Napoleão. Em 1805, o homem que alcançara o posto de general francês durante a campanha do Egipto, apresentou-se na corte portuguesa, perante o príncipe regente, D. João VI, trajando o seu uniforme de coronel general dos hussardos. Branco e azul, as mesmas cores do Portugal de então.

    Pormenor do quarto D. Quixote, Palácio Nacional de Queluz

    As cicatrizes no rosto do francês compunham a imagem militar e o pequeno D. Pedro, presente ao lado do pai, não deixou de ficar impressionado. Mal sabia que, dentro de dois anos, aquele mesmo homem iria dar início a uma invasão de Portugal que marcaria a história do mundo. E da qual ele também faria parte de forma preponderante.

    Dizem as crónicas da época – registadas nas memórias de Laura, mulher de Junot – que dois dias depois da apresentação das credenciais do embaixador francês, um criado de D. João VI foi pedir o uniforme hussardo para que se fizesse uma cópia para uma versão de adulto e outra para uma criança. A criança que o vestiria depois era D. Pedro, aquele que ficaria conhecido para a história como “Rei Soldado”.

    Este pequeno episódio da infância de D. Pedro poderá ajudar a explicar o sentimento militar que esteve presente durante a vida de D. Pedro e levou a vários episódios que marcaram as relações entre Portugal e Brasil, países irmãos, com história comum, mas que parecem estar cada vez mais afastados, sobretudo quando a política brasileira surge polarizada nas eleições marcadas para Outubro.

    D.Pedro I do Brasil, e IV de Portugal, quando infante.

    Se antes havia um fluxo migratório de Portugal para o Brasil – país imenso e com uma capacidade de fixação mais ampla -, agora o polo inverteu-se e Portugal tem de receber os irmãos falantes de português, procurando integrar hábitos e costumes próprios da geografia livre e tropical do que da soturna e fria cultura europeia.

    O processo da Independência do Brasil já foi sobejamente descrito. Não faltaram recentemente obras sobre a questão e revistas nacionais dedicaram páginas e páginas ao assunto. O coração de D. Pedro, depositado na Igreja da Lapa, no Porto, viajou de avião da força aérea do Brasil, com o presidente da Câmara do Porto a bordo, para levar a relíquia até às antigas terras de Vera Cruz.

    Faltou, no entanto, frisar que a ideia de exibir o coração do Imperador no Brasil partiu de um descendente brasileiro de D. Pedro, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, que tem a particularidade de, ao contrário do que sucede com grande parte da família, exercer actividade política desde 2005. O descendente do rei português é actualmente deputado federal por S. Paulo, representando o Partido Liberal, do qual também faz parte o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro.

    Por cá, podemos lembrar que também temos um descendente de D. Pedro na política: é Francisco Pinto Balsemão, militante número 1 do PSD e empresário de Comunicação Social.

    As comemorações dos 200 anos da Independência do Brasil acontecem num país que organizou um referendo em 1993 para poder decidir se queria um regime republicano ou monárquico. A maioria optou pela forma republicana, mas o referendo não ficou livre das acusações de anti-democrático pelo facto dos membros da família real terem sido proibidos de participar nas campanhas do lado monárquico. Em Portugal, República desde 1910, nunca houve esse referendo, sendo que o regime é imposto ao povo sem qualquer escrutínio.

    Os 200 anos da Independência do Brasil são apenas um episódio num caminho cujos primeiros capítulos começaram em 2008, quando o presidente português, Aníbal Cavaco Silva, fez uma visita de Estado ao Brasil, entre 6 e 9 de Março, para celebrar os 200 anos da chegada da Corte portuguesa após a invasão das tropas de Napoleão, comandadas por Junot. Entre as várias cerimónias públicas, Cavaco jantou, no Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, com o então presidente Lula. De destacar que o actual primeiro-ministro português, António Costa, também fez parte da comitiva oficial que se deslocou ao Rio de Janeiro com Cavaco Silva, indo então na qualidade de presidente da Câmara de Lisboa.

    Coração de D. Pedro IV em exposição. (Foto: D.R.)

    Eram tempos diferentes: Lula, que é agora candidato contra Bolsonaro, ainda não tinha sido julgado e preso na sequência do caso “Lava-Jato”. O nome de Jair Bolsonaro não surgia nas notícias como o de um adversário político de relevo.

    Entre 2008 e o presente ano de 2022, podemos ainda evocar a data que, em 2015, registou os 200 anos da criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Foi a 16 de Dezembro de 1815 que Portugal se tornou numa imensa Nação transatlântica, com capital no Rio de Janeiro. A bandeira passou a incluir uma esfera armilar – a mesma que está ainda hoje na bandeira da República portuguesa.

    Só que, dois anos depois, houve a revolta liberal no Porto. O 24 de Agosto, data que faz parte da toponímia da cidade Invicta e que teve os seus 200 anos assinalados com relevo. O rei teve de regressar a Lisboa e D. Pedro disse: “Eu fico”! Mas nunca se explicou bem porque falhou a ideia da capital de Portugal ficar no Brasil. Isso seria uma boa ideia para se discutir nos próximos anos, sobretudo quando parece que a capital do Brasil começa a ser Lisboa.

    Lula da Silva, presidente do Brasil aquando da visita de Cavaco Silva, então presidente da República Portuguesa, ao “país irmão” em 2008.

    A história escreve-se com mais datas, perdidas nas ruas das cidades, sem que dediquemos muito mais tempo à sua origem e ao que podem representar para o nosso futuro.

    Ainda vamos a tempo de celebrar mais datas que vão atingir a idade redonda de 200 anos nos próximos tempos. Ou então continuar a esquecer, a negar a sua origem e a perder mais futuro.

    Lembremos então que, daqui a 10 anos, vamos ter os 200 anos da Lutas Liberais e que a Avenida 24 de Julho, em Lisboa, evocará os 200 anos da Libertação da cidade. Durante muitos anos era o equivalente ao 25 de Abril de 1974.

    Lembremos ainda que D. Pedro IV cruzou o oceano Atlântico três vezes: a primeira, em criança, quando foi para o Brasil. A segunda, em 1832, quando veio lutar contra o irmão. E a terceira, em 1972, há 50 anos, quando o Brasil celebrou os 150 anos da Independência e o seu corpo foi enviado para o panteão em S. Paulo.

    Agora, viajou o seu coração, a parte do corpo que faltava. Uma quarta viagem à qual, espera-se, somar-se-á uma quinta: quando o coração regressar ao Porto, a cidade que se diz “Invicta” por ter sido aí que D. Pedro resistiu, vitorioso, ao cerco das tropas absolutistas do seu irmão.

    Pormenor do convite da exposição comemorativa dos 200 anos da deslocação da Corte Portuguesa para o Brasil, inauguradano Rio de Janeiro.

    D. Pedro pode ter nascido e morrido no quarto do Palácio de Queluz, mas o corpo está hoje no Brasil. Entretanto, em Lisboa, no Panteão dos Bragança, no Mosteiro de S. Vicente de Fora, está o corpo de D. Miguel. O irmão derrotado nas lutas liberais mas reabilitado pela Ditadura. Foi exumado na Áustria em 1967 e trazido para Portugal, um ano antes de Salazar cair da cadeira.

    Esquecer o legado liberal de D. Pedro e não compreender que Portugal e Brasil já foram um Reino Unido é condenar-nos a perder mais 200 anos de História. A não ser que se o plano seja celebrar, com grande pompa e circunstância, daqui a quatro anos, os 100 anos do 28 de Maio.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Tudo é consequência de um certo nascer ali

    Tudo é consequência de um certo nascer ali


    Carlos Drummond de Andrade, poeta das Minas Gerais, nos revela: Os morros, empalidecidos no entrecerrar-se da tarde,/ pareciam me dizer que não se pode voltar/ porque tudo é consequência de um certo nascer ali. Depois de duzentos anos de uma independência bastante duvidosa – tanto pensando no evento em si, quanto nos muitos significados que o termo pode assumir, seguimos perplexos e desgovernados.

    Atuei como médico do trabalho do maior hospital do Brasil, durante a pandemia de covid-19, uma instituição de 25.000 funcionários (muito mais que a população de muitas cidades ao longo do mundo), onde pudemos oferecer aos que ali se dedicavam a cuidar dos enfermos, tentando-os devolver a suas famílias – sem saber se voltaríamos intactos para as nossas –, um atendimento digno e um pronto-atendimento voltado às queixas respiratórias, que acredito que poucas empresas puderam proporcionar com tamanha eficácia.

    cityscape during daytime

    O hospital é ligado à Secretaria de Estado da Saúde, de São Paulo, e por contingências e malabarismos políticos, pôde atuar independente da desastrosa condução da pandemia capitaneada pelo Ministério da Saúde do Brasil. Enquanto muitos viveram isolados, com medo do vírus, minha profissão – não por opção, acredito, mas por questão de ofício – projetou-me diretamente no olho do furacão da peste e das mazelas perpetradas pelo poder público.

    O conceito de independência contrasta com a forma como a vida de quase 700.000 brasileiros foram entregues à doença. Os que morreram por falta de oxigênio, por falta de vacinas e por mensagens confusas incentivando a utilização de medicamentos ineficazes, não tiveram opção. Os desmandos criminosos nos fazem pensar que, talvez, vivemos sob um poder ditatorial cuja empatia pela vida inexistiu. Uma sociedade inteira refém de um psicopata que continua ofendendo mulheres, desprezando a fome, rindo desbragadamente da dor alheia, em cadeia nacional.

    Não sou historiador e tenho dificuldades de analisar os últimos duzentos anos; porém os cinquenta mais recentes, que completo em poucos dias, parecem mais próximos para um olhar, ao menos, testemunhal. Acredito que a última vez que o Brasil teve alguma chance de se tornar algo menos triste ocorreu no início dos anos 1960, até a marcha rumo a um futuro promissor ser interrompida por um golpe militar financiado pela política econômica expansionista dos Estados Unidos da América.

    Christ the Redeemer, Brazil

    Com o que se chamou de redemocratização, em 1985, interesses e manobras políticas foram solidificando uma forma paralela de poder, que recentemente se intensificou com o que foi chamado de Emendas do Relator, no Congresso Nacional do país, oferecendo bilhões de reais a políticos inescrupulosos, em nome de uma frágil manutenção do poder da atual administração. Enquanto esse tipo de arranjo perdurar, vejo muito pouca esperança na construção de uma sociedade menos desigual, com chances reais de acesso a meios educacionais para a grande massa de desvalidos, que geração após geração, arrasta-se em miseráveis esforços de sobrevivência.

    Somos famosos pela beleza da nossa música, pela força da nossa literatura, por uma falsa alegria do nosso povo (somos vistos como bobos-alegres, que gostam de futebol carnaval e festejos), porém os últimos anos só escancararam o que João Guimarães Rosa, no longínquo ano de 1956, expôs em seu magistral romance Grande sertão: veredas.

    Neste ano, Juscelino Kubitschek, o presidente bossa-nova, falava de desenvolvimentismos enquanto as entranhas da nação corroíam-se em chacinas. Somos um povo bruto, vingativo, violentamente cruel. O homem cordial, termo equivocadamente interpretado, tirado de contexto, da obra de Sérgio Buarque de Holanda, é uma peça de marketing mal-torneada, que não existe.

    child and parent hands photography

    Tenho duas filhas pequenas, e vejo-me obrigado a pensar num futuro um pouco mais iluminado para elas, mesmo diante de tanta tristeza. Como em qualquer lugar do mundo, o caminho está em maciços investimentos em educação, saúde, saneamento, segurança – pública e alimentar. Não vejo medidas a curto, médio ou longo prazo em direção a tal reforma. Cabe a nós mostrar às filhas que o respeito às individualidades e o amor são os valores que podem nos redimir, se não como país, pelo menos como seres humanos.

    Diante da barbárie, ressaltamos os gestos de ternura. E isto já é bastante, frente aos desafios imensos que há pela frente. Nos próximos meses, aproximam-se eleições – o Brasil é pobre na cultura do voto, somos pouco versados na arte do debate, escolhemos sem critérios, somos reiteradamente maus-eleitores. Porém, caso consigamos extirpar da presidência da república o cancro que nos envergonha internacionalmente, já seria um bom primeiro passo para os próximos duzentos anos de história.

    Moacyr Godoy Moreira é médico, escritor e crítico literário, tendo publicado os livros de ficção Soalho de tábua, República das bicicletas, Ruídos urbanos e Soalho de tábua. Vive em São Paulo.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A celebração do que ainda nos falta

    A celebração do que ainda nos falta


    Jorge Luís Borges dizia que quem acreditava em casualidade, não sabia das leis da causalidade. De fato, não foi por casualidade que li pelo menos três obras que falam diretamente e indiretamente do bicentenário de Independência do Brasil.

    A primeira foi a alentada, mas quase rococó, biografia amorosa da Marquesa de Santos, Domitila de Castro Canto Melo, a rumorosa e mal falada amante de Dom Pedro I (IV em Portugal), de autoria de um colega, Sérgio Buarque de Gusmão; a segunda foi um enredo póstumo do meu mui querido amigo, José Antônio Severo, que eu ilustrei, transformado num ensaio quase romântico, sobre as guerras de Independência que se seguiram ao famoso Grito do Ipiranga (no nordeste); e, por fim, a alentada biografia de Dom Pedro IV, de Eugénio dos Santos, professor de Ciências da Comunicação, da Universidade do Porto.

    Desenho de ©Enio Squeff

    Nada casual, mas também nada intencional. Os livros me chegaram, naturalmente, como de encomenda.

    Não é  o caso de comentá-los muito. O professor Eugénio dos Santos, trata o homem que tornou o Brasil independente de Portugal e que venceu o absolutista Dom Miguel no famoso Cerco do Porto, como um herói. E ele o foi: quando abdicou da coroa do Brasil em 1831, ninguém acreditava que venceria as forças de seu irmão Dom Miguel, em Portugal, muito mais numerosas. Mas saiu vitorioso e impôs a monarquia constitucional, com sua filha Maria da Glória, como soberana.

    Está aí o defeito do livro do professor Eugénio, pelo menos para os brasileiros: ele se demora sobre as dificuldades de governar um país em ebulição, como o Brasil – mas logra deixar seu filho, que se tornará Pedro II. E então se demora sobre o picante caso amoroso do Imperador com a Marquesa de Santos. O tema é bem conhecido dos brasileiros.

    Uma pena, pois a guerra civil portuguesa, a descrição de suas manobras seria muito mais interessante e o título de herói, o que supõe a coragem e a determinação, algo que quase não se divulga sobre Dom Pedro, seria plenamente confirmada.

    Dom Pedro I ou IV, ainda é um dilema para os brasileiros. O antimonarquismo do Brasil, fruto de uma propaganda muito bem urdida quando os militares deram o golpe que derrubou Dom Pedro II, nunca facilitou uma visão crítica da República, que se seguiu, e que foi oligárquica até quando os militares puderam garantir. Claro que ninguém pode reivindicar o retorno à monarquia. E Dom Pedro foi o fundador da monarquia que tornou o Brasil independente, algo meio paradoxal.

    Além disso, quando houve ocasião de comemorar o translado dos restos de Dom Pedro para o Brasil, como agora em que se celebra o bicentenário da sua independência, haverá quem se lembre de que o Segundo Império foi escravagista, como o Primeiro, embora nunca se releve que Dom Pedro era contra a escravatura.

    Nos vários artigos que escreveu sob pseudônimo em alguns jornais que circulavam no Rio de Janeiro, Dom Pedro defendia claramente o fim da escravidão, algo impensável para os oligarcas que comandavam a Economia, à época e que dependiam da mão de obra escrava para a monocultura que então se praticava no Brasil, nomeadamente da cana de açúcar, do café, do algodão e mais modernamente da soja.

    Quanto ao mais, sabe-se, Dom Pedro foi um femeeiro renitente. E o povo do Rio, que tinha a Imperatriz austríaca, dona Leopoldina, em alta conta, nunca lhe perdoou ter colocado a sua amante no Paço Imperial.

    No entanto, ninguém acusa Dom Pedro de assassínios facinorosos, a não ser a suspeita pela morte de um republicano italiano, Libero Badaró, que vivia em São Paulo, e que hoje é nome de uma fundação paulistana e de muitas ruas brasileiras.

    Islet near city during daytime

    Acresce-se a isso uma espécie de maldição histórica. Quando a Independência brasileira fez 150 anos, quem a comemorou foi um ditador, o general presidente, Garrastazu Médici, um dos mais sangrentos ditadores que chegara ao poder depois do golpe militar de 1964.

    Tudo nos conformes, digamos: dona Leopoldina e dona Amélia repousam, com seus restos mortais ao lado do marido. Agora, porém, no bicentenário da Independência, quem celebra a visita do coração, saído do Porto, do primeiro imperador brasileiro, é Jair Bolsonaro, talvez o pior presidente que o Brasil já teve depois da redemocratização.

    Com tudo isso, o que sobra é o bicentenário. A batida frase de Samuel Johnson, de que “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”, está sendo amplamente praticada pelo ex-capitão Bolsonaro. Em nome das cores verde-amarelas e do bicentenário que deve realmente ser comemorado, sua turba fascista brandirá as cores do Brasil para rememorar o ato de Dom Pedro.

    Mas há uma falácia para a grande maioria do povo brasileiro, que hoje vota em Lula para presidente. E que está liderando a corrida presidencial com mais de 40% dos votos, muito próximo de vencer o atual mandatário já no primeiro turno, pois no cômputo geral, faltam-lhe apenas alguns pontos para chegar a essa condição.

    É que o Brasil de depois da independência tem uma grande imprensa definitivamente alinhada com interesses que querem reconduzir o Brasil quase à condição de colônia. Para isso, conta não só com os neoliberais que hoje se agrupam aos neofascistas brasileiros.

    Há uma escumalha do exército, generais saídos diretamente da ditadura, que se alinhavam ao lado de Sylvio Frota, um dos generais que sempre defendeu a tortura e que legou vários lugares-tenentes nas pessoas de oficiais hoje ao redor do atual presidente; e que mais uma vez se valerão dos símbolos da Independência para se aliar ao capital que quer o petróleo do pré-sal.

    E que incentiva as queimadas na Amazônia, no Pantanal, nos Pampas, a invasão de terras indígenas, tudo enfim, que interessa às empresas estrangeiras que aspiram  explorar o rico solo brasileiro.

    Dom Pedro I nunca se alinharia a eles. No entanto, a celebração de seu coração, emprestado ao Brasil pela cidade do Porto, se presta a todas as canalhices que o patriotismo encobre. O falso patriotismo, diria. Assim é que Dom Pedro não pode ser ajuizado historicamente como mereceria,

    Lembro, muito a propósito, que Pedro, o Grande da Rússia, o homem que moldou o grande território eslavo, mas um assassino assumido, um déspota na acepção da palavra, nunca teve seus gigantescos monumentos ameaçados, nem mesmo pelos bolcheviques, que tomaram o poder durante certo tempo na ex-URSS.

    Dom Pedro podia ser mulherengo e tratou realmente muito mal a Imperatriz Leopoldina, e muito bem a Marquesa de Santos. Mas nunca trocaria seu coração brasileiro (ou português) pela dinheirama que rendeu aos generais alinhados com o Jair Bolsonaro, o pior que um militar pode angariar: a pusilanimidade, prêmios polpudos e entreguismo.

    Enfim, no bicentenário do Independência, o que ainda nos falta é justamente a independência total, algo que não entra na cabeça da soldadesca superior – hoje resolutamente tomados pela ideologia neoliberal. Serão derrotados pelas urnas, mas não se sabe até onde irão suportar um país que há dois séculos era declarado independente por um potentado português.

    Independência bicentenária sim, mas claramente ameaçada e não por qualquer monarca, mas por um ex-capitão condenado, por terrorismo, mas logo absolvido pelo exército. E que talvez sonhe em ser um déspota como os muitos ditadores fantoches que até ontem assombravam a América Latina.

    Enio Squeff é jornalista e artista plástico brasileiro, que vive em São Paulo


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!

    Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!


    Se há alguma novidade na relação entre Brasil e Portugal nesses últimos duzentos anos – depois que aquele jovem fidalgo dado a aventuras galantes resolveu criar uma nova nação – é a inversão do fluxo dos viajantes.

    Desde a incursão pioneira de Pedro Álvares Cabral, os lusitanos nunca deixaram de viajar à Terra de Santa Cruz. Vieram aos milhões. As últimas levas significativas talvez sejam as decorrentes da descolonização da África no começos dos anos 1970.  

    Porém, o que se nota agora, nos últimos dez ou vinte anos, é a alteração radical da corrente migratória.

    Existem números provando isso.

    As cidadanias lusitanas concedidas a brasileiros pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros nos últimos anos são somadas em dezenas de milhares.

    Todo ano, incontáveis jovens brasileiros chegam a Portugal em busca de empregos melhor remunerados – e olha que os salários por aí, sabemos todos, não são lá essa maravilha!

    Também desembarcam aposentados que recebem pensões que, mesmo depois de transformadas em euros, ainda podem ser consideradas razoáveis.

    Por fim, aparecem os casais com filhos em idade escolar que pensam economizar um belo dinheirinho todo mês se colocarem os filhos nas escolas públicas portuguesas.

    Para certos brasileiros, em especial os de classe média que perdem renda, ser obrigado a matricular as crianças em colégios do Governo é algo tão assustador quanto cair na malha fina do Imposto de Renda.

    Pois bem, arrematando: estimativas apontam que os brasileiros residentes em Portugal, atualmente, seriam entre 180 e 200 mil.

    O direito de ir e vir

    São muitas as explicações para essa nossa hoje fortíssima inclinação por voltar à viver na Terrinha dos ancestrais. Uma delas, bastante singela, é o fato de que em Portugal se pode sair à noite sem medo de ser assaltado ou assassinado.

    Em Lisboa ou no Porto, brasileiros oriundos de grandes e médias cidades podem desfrutar de um valor que perderam nos anos 1960: o simples, velho e bom direito de ir e vir após a queda do sol.

    Mas onde, como e por quais motivos a coisa começou a desandar para esta nação gigantesca que, nos diziam orgulhosos os professores primários dos anos 1950 e 60, logo seria o país do futuro?

    São muitas as razões, sejam elas alevantadas por acadêmicos de capelo e beca ou por cachaceiros de botequim. Vejamos umas poucas.

    white and red passenger plane on airport during daytime

    População

    Comecemos pela explosão demográfica.

    A população brasileira saltou de 70 milhões no final da década de 1960 para 143 milhões em 1991. Mais que duplicou em três décadas, fato que certamente não se repetiu em nenhum outro país.

    Diante da grandiosidade desse número só resta perguntar em português claro e direto: Foi possível construir escolas e hospitais para tanta gente em tão curto espaço de tempo?

    A ocupação das cidades

    Paralelamente à bomba demográfica, Pindorama registrou outro fenômeno social igualmente devastador e também de dimensões bíblicas: a urbanização acelerada.

    A população vivendo nas cidades brasileiras, que era de apenas 12 milhões de almas (31 por cento do total) em 1940, saltou para cerca de 137 milhões (81 por cento da soma) no ano 2000. Para simplificar, decuplicou em sessenta anos.

    Logo, imensos círculos de moradias precárias se estreitaram em redor das metrópoles regionais e das cidades de médio porte, estrangulando-as.

    Daí decorreram, dizem os estudiosos, a desorganização das cidades, o trânsito caótico, a poluição da água e do solo e a violência desembestada.

    De novo, aqui, podemos indagar: Conseguiriam os nossos governantes, mesmo que dotados de poderes mágicos, acomodar a avalanche humana que nos chegava dos campos?

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    Corrupção e incompetência

    A bomba demográfica e a urbanização descontrolada, como vimos, podem ser dimensionadas. Há, porém, outros fenômenos que não podem ser exatamente delimitados porque ocorrem nas brechas e desvãos da administração pública. Como, por exemplo, corrupção e incompetência.

    Nós, brasileiros, sempre críticos, temos a tendência de achar que a nossa corrupção é a maior e a mais sofisticada do mundo – ler noticiário recente – e que a nossa incompetência gerencial não têm similares no vasto universo.

    Pode ser que sim, pode ser que não.

    Os portugueses, por exemplo, em tempos remotos, conheceram muito bem a corrupção, quando ela grassava à solta nas muitas colônias daquele império que se estendia por quase todo o globo.

    O voo da penosa

    Dizem os economistas brasileiros que há cerca de meio século o país não cresce de forma sustentada. A nossa atividade econômica caracteriza-se pelos voos de galinha. Ou seja, decola por um aninho ou dois para aterrissar logo a seguir, dando com o bico no chão e perdendo penas, em mais uma recessão.

    Isso quando a penosa não voa para trás.

    Detalhe sórdido: esses voos galináceos não são propriedade de um só grupo político, não. Ocorreram tanto nos desgovernos de direita quanto nos de esquerda.

    Mas será mesmo que o Brasil deu efetivamente com os burros na água? Há exemplos internacionais mostrando isso?

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    Espanha e Coreia

    Para demonstrar o nosso insucesso econômico nos últimos 50 anos, alguns analistas recorrem aos exemplos de Espanha e Coreia do Sul.

    Em meados da década de 1970, cidadãos do Brasil, Coreia e Espanha tinham rendas médias semelhantes. Hoje, coreanos e espanhóis dispõem de ingressos duas ou três vezes maiores que o nosso.

    Ações governamentais concretas explicariam essas diferentes performances. A Coreia, por exemplo, revolucionou seu sistema de ensino e criou grandes grupos industriais que hoje atuam – em dimensão planetária – na fronteira tecnológica.

    Já a Espanha ingressou na endinheirada Comunidade Europeia e, com os generosos fundos comunitários, renovou sua infraestrutura e melhorou todos os seus indicadores sociais. Como fez Portugal.

    O Brasil, isolado numa América Latinha que parece ter feito uma opção preferencial pela imobilidade, continuou a correr. Mas parado no mesmo lugar.

    É por isso que, hoje, comentam economistas impiedosos, exporta um transatlântico carregado com soja em troca de uma canoinha com computadores.

    Que falem os imigrantes

    Mais interessante que debater tema tão surrado – por que o gigante permanece deitado no berço esplêndido? –, seria tentar adivinhar o que diriam os milhões de portugueses que, nesses séculos todos, se transferiram para o Brasil.

    O que nos contariam os mais modestos participantes – quase sempre muitos jovens – dessa epopeia?

    O que esperavam encontrar na imensa terra selvagem e desconhecida para onde seguiam?

    Como era viajar mais de um mês – vendo só água e horizonte – sobre o mar do solerte Ulisses?

    O que mais afligia aqueles que se viam obrigados a deixar a terra áspera e dura que os partejou, a língua de todo o dia e os parentes amados?

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    Alfredo e Henriqueta

    No meio desse povo retirante, estavam meus avós maternos: Alfredo e Henriqueta, nascidos na aldeia de Santiago de Piães, no Concelho de Cinfães.

    Na primeira década de 1900, separadamente, eles desembarcaram em uma cidade do extremo Sul brasileiro, então muito rica e industrializada, chamada Pelotas, que hoje tem 300 mil habitantes.

    Lá, ajudados por conterrâneos já instalados, deram início à vidinha. Trabalhavam duro. Meu avô era padeiro, tarefa que lhe consumia grande parte da noite, mas também mantinha uma grande horta onde – durante o dia – plantava hortaliças para o consumo da família e para venda aos vizinhos. Minha avó, considerada florista de boa mão, enfeitava casamentos e batizados para reforçar o caixa da família.

    Com rédeas curtas e pancadas, educaram os rebentos para que não se tornassem vadios ou debochados. As recriminações e advertências, obviamente, vinham no mavioso linguajar dos lusos. Criaram seis filhotes. Outros três morreram na infância, como era comum na época.

    As crianças só conseguiram atravessar as cinco séries do Curso Primário, mas paralelamente tiveram aulas de Mecânica, Contabilidade e Corte e Costura. Tornaram-se mecânicos, costureiras, comerciárias e operárias.

    Alguns dos netos chegariam à Universidade nos 1970.

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    O silêncio

    Eram gente de pouco palavrório.

    Minha avó só relatava às filhas brasileiras, para assustá-las, o medo imenso que sentia, quando pequenina, caminhava sozinha por escarpas nevadas ouvindo bem próximos os uivos dos lobos.

    Nem ela nem meu avô falavam dos parentes que haviam abandonado na Terrinha. Vô Alfredo deixou para trás mãe e três irmãs.

    Uma só frase

    Minha avó portuguesa ficou paralítica aos 47 anos e penou por mais de duas décadas sobre cadeiras e camas até que a bondosa Velha-com-a-foice veio resgatá-la deste Vale.

    Meu avô português, de bigodes de pontas retorcidas, olhos verdes e vasta e lustrosa careca, morreu aos 57 anos, meses antes do meu nascimento.

    Da cantante língua lusitana só me ficou uma frase, dita e repetida por minha avó.

    Na penumbrosa saleta da casinha de madeira onde morava, presa à cadeira de balanço, vó Henriqueta não podia me impedir – guri irrequieto de seis ou sete anos – de dar incontáveis saltos mortais no sofá de molas arrebentadas.

    walking boy wearing blue denim jacket under the bridge

    Contrariada, porque era uma velha muito brava, que nunca fizera um só carinho nos seus filhos machos ou beijado suas filhas fêmeas, resmungava:

    – Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!

    Assim, neste momento, enquanto rabisco sobre esses tais duzentos anos, a imagem mais forte que me vem à mente é a da minha avó aleijada, com a mão esquerda torcida como a garra de um pássaro contra o peito seco, me mirando com seus frios olhos cinzentos e resmungando com o sotaque de Maria Lionça:

    – Deixa estar! Deixa estar, miúdo, que vou contar ao teu pai!

    Lourenço Cazarré é jornalista e escritor, sendo autor, entre outros, dos romances Kzar Alexander, o louco de Pelotas, A misteriosa morte de Miguela de Alcazar e A longa migração do temível tubarão branco


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O desamor na barra dos tribunais

    O desamor na barra dos tribunais


    Os Tribunais de Família necessitam de ser fiscalizados e com urgência. A ideia parece polémica. Mas as crianças são mais importantes.

    Uma mãe não pode perder a sua filha apenas porque um juiz de Sintra quis demonstrar “que os famosos também podem ser repreendidos pela justiça”, mesmo sem razão.

    Nem uma criança pode ser “reestruturada mentalmente” apenas porque não quer ver um progenitor, como foi lavrado em Fronteira.

    two children standing near cliff watching on ocean at daytime

    Nem uma mãe pode perder a guarda de um filho, mas ficar com a guarda do outro, de idades idênticas e em circunstâncias iguais, como foi ordenado por um juiz em Mafra.

    Estes são alguns exemplos da situação chocante que se vive nos tribunais de família, onde alguns juízes, ao abrigo do segredo sobre a identidade das crianças, fazem o que muito bem entendem – de forma contrária ao bom senso e os bons costumes.

    Nem tão pouco um jornalista pode ser prejudicado no Tribunal de Família por tratar de casos de retirada violenta de crianças a progenitores, sem razões. Antes da reportagem, o juiz do Tribunal de Família sentenciava num sentido. Depois da emissão da reportagem as sentenças lavradas foram exatamente o contrário.

    Tenho pena de ver Assunção Esteves ter-se marimbado há anos no seu projeto de verificação pela sociedade civil de instituições fechadas, incluindo orfanatos, para abraçar o lugar de deputada e presidente da Assembleia da República.

    Os Tribunais de Família são caixotes selados e constituem uma peça importante no triste sistema português, único na Europa: 95% das crianças institucionalizadas estão em lares, só 5% estão em família de acolhimento.

    a boy crying tears for his loss

    Não há paralelo na Europa. Há três anos ainda éramos acompanhados pela Irlanda, que já inverteu a situação. Mas nós continuamos a ter 351 lares a quem o Estado paga anualmente mais de 90 milhões de euros.

    E porquê? “Porque sim!”

    Foi assim que responderam as duas técnicas que vão ser julgadas em Outubro no Tribunal de Cascais, acusadas pelo Ministério Público de terem falseado relatórios para a retirada das filhas de Ana Vilma Maximiano há cinco anos

    Cinco anos, como todos percebemos, é uma eternidade na vida de uma criança! Uma barbárie.

    Abram-se os Tribunais de Família à sociedade civil para ficarmos a saber o que se passa lá dentro. Ou têm medo?

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A caminho do Árctico: dia 5, Longyearbyen e (inesperadamente) Tromsø

    A caminho do Árctico: dia 5, Longyearbyen e (inesperadamente) Tromsø

    Penúltimo dia desta viagem em que realizei o sonho de visitar o Árctico. O dia contou com uma surpresa: conhecer Tromsø.


    Últimas horas em Longyearbyen. A cidade principal de Svalbard tem cerca de 2.000 habitantes, quase todos os habitantes das ilhas. É a sede do Governador das Ilhas Svalbard, sendo assim sede administrativa de todo o arquipélago.

    Ali encontramos os serviços necessários como, aeroporto internacional, hospital, escola e universidade, assim como várias ofertas de alojamento, desde hotéis, Guest Houses e até campismo. Há algumas lojas, restaurantes e três museus. Uma capital, sem dúvida nenhuma!

    Depois de um retemperante pequeno-almoço, de preparar a mochila e fazer o check-out, segui o conselho do Jérémie e levei tudo comigo na descida de bicicleta. Fui pousando a minha bagagem nos cacifos dos museus e assim, na hora de entregar a bicicleta, evitava a subida de 40 metros até à Guest House 102, o último edifício, mesmo junto à base da montanha.

    Na descida, e mesmo sendo manhã, consegue-se apreciar o silêncio, ouvindo apenas o vento com a aceleração da descida. Passei no Husset, o restaurante e Adega mais setentrional do mundo. A lendária adega criada nos anos 90, tem mais de 15.000 garrafas, uma das mais bem abastecidas da Europa.

    Antigamente, era o ponto de encontro de todas as pessoas, desde o Governador aos mineiros e suas famílias. Um lugar de todos e para todos. Hoje, é um dos restaurantes mais sofisticados de Svalbard.

    Continuando a descida, a igreja, um dos edifícios icónicos da cidade, estava em obras pelo que não ficou grande fotografia.

    Chegada ao fim da rua, para a esquerda é o caminho para o aeroporto, que passa pelo porto, de onde saem os barcos e é também o caminho para o Cofre Global de Sementes. Mas virei à direita: a minha paragem era o Museu da Expedição ao Pólo Norte.

    O Museu mostra-nos as histórias das várias expedições ao Pólo Norte, especialmente com dirigíveis, mas também com skis, trenós puxados por cães e barcos. O edifício tem dois andares e tem expostos documentos antigos, jornais, fotografias, filmes originais de expedições, artefactos históricos, cartas e até o barco que seguia no primeiro dirigível, caso caíssem e precisassem sair por água.

    A exposição demonstra o esforço dos exploradores para alcançar o Pólo Norte e os misteriosos horizontes congelados, movidos pela curiosidade, ambições pessoais e pesquisa científica.

    Terminando a visita, que me fez sonhar com uma expedição ao Pólo Norte, continuei na minha bicicleta para o Museu de Svalbard.

    O Museu Árctico da Noruega, mais a Norte, recebeu o Prémio de Museu do Conselho da Europa, em 2008, competindo com 59 museus em toda a Europa. Está muito bem conseguido. Apresenta-nos fragmentos de 400 anos de Svalbard, descrevendo factores que ajudam a sustentar a vida e as atividades que acontecem neste lugar remoto, e revelando a estreita relação entre o mar, a terra, a natureza e a história cultural.

    Terminando estas duas visitas, devolvi a bicicleta ao posto de turismo. Ainda faltavam 3h30 para o meu voo então decidi fazer o caminho a pé, em vez de esperar pelo autocarro. Uma caminhada de 1h15 minutos que me apeteceu, pois passaria o resto do dia entre aviões até chegar a Helsínquia, onde passaria esta última noite.

    O voo atrasou e cheguei a Tromsø atrasada para o voo que me levaria a Oslo e depois a Helsínquia. Não consegui nenhuma ligação que me permitisse chegar a Oslo, a tempo do último voo para Helsínquia. A melhor opção era ficar em Tromsø e, na manhã seguinte, apanhar um voo direto para Helsínquia. Assim foi. Marquei um hotel central em Tromsø e fui aproveitar os imprevistos da vida e passear pela capital das luzes do Norte.

    Chegada ao hotel, pedi um mapa com os principais pontos de interesse da cidade e comecei a visita. A minha primeira paragem era a Biblioteca de Tromsø, num edifício moderno com uma sala de conferências e uma cafetaria muito simpática. Entrei e visitei a Biblioteca. Aprecio muito especialmente ver a organização, sentir o cheiro único dos livros. Tomei um chocolate quente na cafetaria onde uma música de fundo relaxante, conseguia-se ouvir.

    Segui para o porto da cidade, passando pelas ruas comerciais principais, com lojas com muito bom gosto. As ruas são sinuosas. A cidade lembra-me, por um lado, Bergen e, por outro, São Francisco. Uma boa mistura. No porto, estão alguns restaurantes e outro museu do Pólo Norte. Uma mistura do melhor dos dois mundos: as casas antigas nórdicas que são lindas, e a bonita e moderna arquitetura norueguesa.

    Tromsø é conhecida por ser a porta para o Árctico. As ligações passam todas por ali, seja de barco ou avião. Mas a cidade está deserta. Já estamos em Setembro, poucas pessoas estão de férias e, por outro lado, ainda faltam cerca de dois meses para a atração rainha de Tromsø: as auroras boreais.

    A caminho do hotel, fiz uma paragem para jantar no Bistrô Bardus. O menu tem influência dos ingredientes e história culinária do norte da Europa. As renas, alces, caranguejos, peixes frescos e baleias fazem parte dos originais ingredientes que encontramos nos pratos deste bistrô, que recomendo.

    Foi um dia diferente do esperado, mas que acabou por ser bem aproveitado e incluiu Tromsø no roteiro da minha viagem.

    Por vezes, as viagens são assim: inesperadas, mas também no inesperado, na maior parte das vezes, surgem oportunidades. Só as temos de agarrar e ver o lado positivo. Amanhã, estarei em Helsínquia!

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • A SIÊNSIA, ou a Nova Ordem Ignorante de regresso a Portugal

    A SIÊNSIA, ou a Nova Ordem Ignorante de regresso a Portugal


    Ouço diversas vezes: “Mas como é que não és covideira?” E ouço isto porque, aparentemente, sou insistente com a lavagem das mãos, o descalçar de sapatos em casa, a troca de roupa…

    Não sou, porém, adepta do álcool-gel; não uso. Aprecio o sabão azul e branco. Gosto de meter as mãos na terra e andar descalça na praia e na relva. Nunca consegui andar no metro ou autocarro sem bilhete válido. Gosto de cumprir regras, tenho os impostos em dia.

    red yellow and blue lego blocks

    Mas se me pedem para seguir regras irracionais, e sem fundamentação, obviamente exijo saber em que bases se decidiu adoptar tais regras. E, na inexistência de resposta ou de fundamentação válida, irei naturalmente optar por não seguir essas “regras” disparatadas.

    (Na minha juventude, cheguei a sair de uma sala de aula em protesto por um professor expulsar injustamente dois alunos.)

    Não sigo palermices nem normas absurdas só porque alguém se lembrou de as adoptar na base do “porque sim”. Viver numa democracia permite-me ser racional e exigir respostas dos decisores e governantes. Em países com regimes totalitários, não é assim. Prevalece o obscurantismo e o irracional. Prevalece o “porque sim”.

    Em geral, o português tem um problema com a lógica, a razão e exigência de transparência e de justificações, normais numa democracia. Demasiados anos de pobreza, fome e ditadura, fizeram erodir a réstia de auto-estima e a sobriedade cívica que teriam sido úteis em 2020.

    O combate à epidemia de covid-19, tanto ou mais do que a doença, foi uma catástrofe em Portugal. Os números provam-no. O excesso de mortalidade recorde também o comprova.

    Ainda assim, é ver portugueses ainda hoje a confiar nas mesmas autoridades e personalidades que conduziram a população para tamanha catástrofe.

    close up photography of blue balls digital wallpaper

    Mas isso pode ter explicação parcial nos milhões distribuídos pelos media convencionais, bloggers, actores, artistas, cantores e micro a médio influencers. Tudo para que passassem propaganda.

    Assim, sem qualquer surpresa, a sempre mal fundamentada Direção-Geral da Saúde (DGS) prepara a chegada do Outono a Portugal. Com ciência, desta vez? Não. Nada disso. A era da SIÊNSIA prossegue, porque floresceu, amadureceu e está pronta nova colheita.

    Neste Outono, a DGS sinaliza o regresso dos mitos, das mistificações, dos amuletos… e da desinformação veiculada com a ajuda (dos sempre prestáveis à vassalagem) media convencionais e dos milhares de mini e médios influencers e bloggers (que se prestam a passar propaganda a troco de uns trocos). A população estará, de novo, entregue aos pobres de espírito, incluindo de espírito científico, para mal dos nossos pecados.

    Pobres tempos de baixo nível (ou nenhum) de literacia em Ciência, em Medicina, em bom senso, em pensamento racional e lógico. Tempos altos para a “ciência” comercial – manipulada e financiada por indústrias e fundos estatais (e dos contribuintes europeus) a soldo de interesses políticos obscuros.

    O facto de as autoridades de saúde, nomeadamente em Portugal, continuarem a esconder dados estatísticos é prova mais do que suficiente da podridão que se vive em termos de Política de Saúde.

    CAPTCHA

    Assim, vejamos os mitos que se prepararam para regressar este Outono. O primeiro, e um dos queridos à DGS: as máscaras, esse amuleto que para a DGS significa “protecção contra esse mal que é a covid-19 e tudo o mais que ande no ar”.

    A Suécia, esse país fervoroso seguidor da “Ciência”, desde logo enterrou esse mito aberrante, perigoso, atroz e bafiento. Por afastar em geral esse e outros mitos amados pela SIÊNSIA seguida pela DGS, a Suécia conseguiu combater eficazmente o vírus SARS-CoV-2, e ficar, de longe, com as melhores estatísticas em matéria de covid-19 e sobretudo de Saúde Pública.

    Outro mito é o dos confinamentos – essa medida perigosa para a saúde que, em geral, a Suécia também recusou adoptar, e bem. Já Portugal, por via da “condução” da DGS – fervorosa seguidora da SIÊNSIA –, está agora nos lugares cimeiros desse trágico pódio em que nenhum país decente quereria estar. Portugal está entre os líderes em mortes em excesso, em casos covid-19 e outras estatísticas não-covid.

    E, como se isso já não fosse péssimo e agoirento, a DGS continua a teimar em conduzir os portugueses, e o país, para as catacumbas da escuridão científica e da Saúde Pública.

    Não lhe bastou publicitar, durante o Verão, esse mito de “a indigestão ser causada por banhos após o almoço”. Não lhe chegou. Também tem de continuar a arrastar o país, e os portugueses, pelos caminhos da sua SIÊNSIA.

    white textile on white table

    Outro objetivo, já anunciado em parangonas pela DGS para este Outono, é vacinar em força as crianças e jovens. Não morrem de covid-19, mas vacina-se à mesma, mesmo se se mostra por demais evidente que a imunidade de grupo foi uma falácia, uma mentira impingida durante meses a fio.

    E os efeitos adversos em crianças e jovens? Não lhes importa o rácio risco/benefício, que cada vez mais aponta para o afastamento dos mais jovens destas vacinas?

    Nada disso interessa a quem segue a religião da SIÊNSIA. O dinheiro a rodos para pagar campanhas nos media convencionais e para pagar a artistas, actores, cantores e todo o tipo de personalidades nas redes sociais e fora delas está garantido, para escoar o produto armazenado e mostrar estatísticas sobre vacinação que colocarão Portugal no topo da percentagem de população vacinada. Se com tudo isto, ou apesar disto, Portugal se mantém no topo das piores estatísticas de Saúde Pública na Europa, já pouco importa.

    E dinheiro para fazer o que a Ciência diz, para se fazerem, por exemplo, testes serológicos na população (para aferir da imunidade natural e da necessidade ou não de vacinação); para isso há? Na realidade, não se sabe, até porque seria preciso que a DGS seguisse a Ciência, e que quisesse estudar e agir com prudência e exactidão.

    Aliás, Ciência é coisa que não importa à DGS – por muito que seja invocada – nem, na verdade, à maior rede social com sistema de créditos, o Facebook. Desde 2020, o Facebook tem sido um dos principais instrumentos para cortar com um dos princípios basilares da Ciência – o debate –, impondo o unanimismo da SIÊNSIA.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Assim, nada de escrever sobre estudos sérios e credíveis não financiados por farmacêuticas, sobre imunidade natural, sobre a inutilidade do uso de máscaras na transmissão do vírus, e muito menos autorizar vozes de cientistas que pedem com urgência a divulgação integral dos dados sobre as vacinas e os seus efeitos adversos.

    Desde 2020, quem tentar efetivamente abordar temas científicos no Facebook, será castigado – como seria na China se falasse sobre violações de direitos humanos e o direito humano à liberdade de expressão e sérias investigações científicas.

    No Facebook, como nos media, continuará a haver espaço apenas para os promotores – a soldo da DGS ou da Comissão Europeia – da SIÊNSIA.

    A SIÊNSIA é hoje o garante de um crescente controlo sobre uma população (à nora e amedrontada); é hoje o garante do aumento das vendas de produtos fármacos (pouco ou nada transparentes quanto à sua eficácia, segurança e necessidade); é o garante da criação de investidores multimilionários; é o garante de mais estados de emergência e de calamidade ilegais (que permitem a governantes alargarem o seu poder de ação e aprovar legislação outrora apenas sonhada e concretizada por ditadores).

    Infelizmente, Portugal não é o único país seguidor da SIÊNSIA. Até mesmo o Brasil de Bolsonaro, veja-se, acompanha já também essa religião. E não é por causa da questão da hidroxicloroquina, ou sequer por o ainda presidente brasileiro ter dito que a covid-19 era uma gripezinha.

    pair of pink boxing gloves

    Na verdade, poucos sabem, mas, actualmente, um brasileiro ou estrangeiro adulto não-residente só pode entrar no Brasil se tiver tomado as doses exigidas de vacina contra a covid-19. Teste negativo ou certificado de recuperação não valem. Mas se for um brasileiro ou estrangeiro residente no país a entrar, estejam à vontade. Podem entrar no Brasil aviões cheios de pessoas com covid-19, e assim espalhar o vírus no Brasil? Sim, mas esses infectados têm é de estar vacinados! Podem entrar no Brasil aviões cheios de brasileiros e estrangeiros residentes no país sem todas as doses da vacina e sem covid-19? Sim. E sem todas as doses da vacina e com covid-19? Também podem.

    Tudo isto é SIÊNSIA. Aceite e propagada como se fosse Ciência.

    O objectivo não tem já nada a ver com travar uma epidemia e um vírus. O objetivo é já só educar “o povo” sobre quem manda, e sobre o que acontece ao “povo” que não obedece a ordens, independentemente de serem irracionais e de até acarretarem potenciais problemas graves do ponto de vista da Saúde Pública, da Economia e do bem-estar.

    Restará aos portugueses racionais e agnósticos, que resistem a esta religião dita SIÊNSIA – que só na aparência ecoa como a (antiga) Ciência –, prosseguirem com as suas vidas, mas também lutarem contra o avanço desta Nova Ordem Ignorante.

  • De quem são os rios?

    De quem são os rios?


    Habituamo-nos a ver que as águas correm e que só temos de saber navegar o barco. Habituamo-nos que as águas sequem e comecem a rarear, ou que venham em bátegas e a turbulência nos impeça de atravessar em segurança. Por instinto gravado nas nossas células, é um hábito acharmos que tudo o que vivemos é natural.

    É relativamente simples separarmos as águas do hoje, caso o barulho pareça por vezes demasiado: existe, hoje, mais que nunca, o mundo real e o mundo irreal.

    man and woman standing on river

    Podemos chamar virtual ao irreal, como se ainda houvesse algo de virtuoso ou potente, como o seu étimo nos conta, mas o facto é que não deixa de ser aquilo que é: irreal, o contrário da realidade.

    Pessoas que aplicariam boas maneiras no trato umas com as outras, de repente perseguem-se por ruas e passeios irreais. Caminham, umas atrás das outras, com agressividade, e tentam rasteirar para que tombem de dentes contra o lancil de cimento (irreal). Proíbe-se o piropo no mundo (real), e vociferam-se discussões entre estranhos nas praças mais públicas deste mundo (irreal).

    Ideias que não passariam de desabafos, suspiros, degraus num caminho, passam a ser uma comunidade, pesada e enorme como um paquiderme enraivecido a bramir a tromba na direcção de quem se atravesse na procissão.

    O decoro perde-se. Jornalistas, homens (hominídeos) de letras, a quem entregamos a vigília da isenção, da transparência e da legitimidade, acham que podem, aparentemente sem ordem do pai tirano (será?), perseguir e borrar a pintura de colegas das artes e cultura. Zurram “zorro!”, levanta-se a condenação pública da multidão, mas como diz a má-língua: embrulha-se o peixe no dia seguinte com essa folha de jornal (mas isso é no mundo real).

    pink leafed tree under the blue sky

    Os que sobram no rio, afogam-se em torvelinhos. Podem falar que não se os ouve. Podem gritar que não se lhes admite. Podem calar, para prevenir. O exemplo fica dado: calem-se todos, cumpram as regras, serão felizes. De quem são os rios, afinal?

    No meio da propaganda há sempre algumas verdades. Propaganda não tem de ser mentira. Tem apenas de ser uma poda eficiente. Um tesourar nas expectativas, um tesourar no movimento. O ser humano está construído à semelhança da restante natureza, no seu crescimento e na sua necessidade de movimento. O sistema cardiovascular, como rios, o cérebro como uma noz, o ar a entrar dentro dos nossos alvéolos pulmonares como um brócolo, braços a estenderem-se como árvores.

    Mas a propaganda decidiu discordar disso, dessa relação absoluta (e real) do ser humano com o seu mundo natural, mesmo que na sua natureza esteja a imposição, a manipulação e a selecção artificial. Será problema antigo, talvez, a desconexão, ainda mais advinda da revolução industrial, entre o homem e a Natureza, não falta prosa e ciência (a antiga) sobre o tema. Não faltam sequer religiões – por alguma razão é muito comum que assentem muitas na ideia da expulsão de um jardim. Meu conhecimento por uma maçã, minha alma por um beijo, meu pecado por meus filhos.

    Mas a propaganda pegou nessa ideia, juntou umas observações, notou outras ideias. E, como provavelmente sempre acontece, alguém reparou que era uma óptima oportunidade de negócio.

    De que forma poderiam branquear manchas de óleo negro, aumentar lucros e criar uma histeria transgeracional? Uma simples ideia, que nem é mentira, basta ser podada como uma verdade conveniente: a pegada ecológica.

    Por exemplo, o conceito da pegada ecológica foi criado pela British Petroleum (BP).

    Essa mesmo.

    A pegada ecológica pode ser uma mera ferramenta de medição de tudo. Um único morcego na Amazónia tem uma pegada ecológica apocalíptica para as populações de mosquitos. (E que jeitinho me fazia um, um morcego, agora aqui, em Aveiro.)

    Num golpe de mestre, que conduziu a narrativa até aos dias de hoje, de repente a poluição atmosférica não era culpa “deles”. Era nossa, porque andávamos de carro (movidos a petróleo) e ainda por cima vivíamos longe do nosso trabalho (alimentado a petróleo).

    brown sand with heart shaped print

    O continente de lixo, que flutua no Oceano Pacífico, não era culpa das frotas pesqueiras industriais (movidas a petróleo), que monopolizaram o mar e largam toneladas de redes de nylon (feitas de petróleo) em cada rota. Era nossa, porque usávamos objectos de plástico (feitos de petróleo).

    O transporte, abate e desrespeito pela vida animal (derivado do petróleo), após uma horrível vida de clausura, abuso e medicação forçada, não era culpa de uma indústria sanguinária que trabalhou sempre para criar excesso de oferta, excesso de procura, excesso de lucro e excesso, excesso, excesso. Era nossa, porque comemos carne, e tivemos filhos, e fizemos férias, e lavámos os dentes com uma escova de plástico colorido.

    E a nossa camarada British Petroleum mudou as cores, para verde e amarelo, apresentou-se de cara lavadinha, de novi-bíblia debaixo do braço, e a frase “já pensou no Jesus das eólicas hoje?” Mostrou-nos a sua calculadora da nossa culpa, mediu-nos a pegada ecológica, e quantos planetas eram necessários só para nós, sozinhos!

    ten birds sits on wire

    Não contentes, como em todos os cultos, outros Golias seguiram o exemplo. Começou até a vir o brinquedo no happy meal e nas nossas escolas, e em breve uma geração, hoje adulta, aprendeu a regurgitar sem contestar, a vestir o molde sem pensar. Sem virar a capa do jornal e ver a quem pertencem os rios. Porque, simplesmente, a terra é assim, foi assim que lhes disseram que a terra era. Plana.

    Mas, como os rios correm para o mar, quem é dono dos rios sabe que eventualmente a água se salga, a ferramenta é novamente usada para cavalgar o empreendedorismo e voluntarismo desta nova geração. Adoráveis e dóceis herbívoros que inovaram a indústria, os produtos, as soluções. Um sem fim de artigos, sistemas, estilos de vida que voltam a reconectar-nos com a Natureza, reduzem a nossa pegada e garantem que salvamos o mundo a tempo!…

    E como sempre, alguém vê uma oportunidade de negócio, antes da terra ficar salgada como Cartágo.

    people walking on sidewalk pathway beside road with vehicles and high-rise buildings during daytime

    Agora, que populações histéricas, sob doses incríveis e nunca antes vistas de flúor, ansiolíticos, PLV e glúten, com o acesso mágico e transcendente ao tão desejado mundo irreal, estão na presença de um embate imenso entre impérios, agitam-se as bandeiras, quando na verdade, e digo-o numa angústia profunda de mãe, o resultado será sempre a tirania. Como em todos os rescaldos de um grande cisma.

    Primeiro aterrorizam. Depois amordaçam. Por fim esfaimam.

    E enquanto estamos nestes debates eternos, com o barquinho no meio do rio, os donos do mundo já têm o livro das revelações escrito, e já falam entre comparsas sobre a inevitabilidade da “restruturação” de tudo isto.

    Agora já é tarde. Sobra enviar estas missivas em garrafas para a água. Esperar que outros náufragos as encontrem. Mesmo que vos calem.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A idade e o senso

    A idade e o senso


    A construção da lei obedece a um negócio entre parceiros que usam esse poder de modo discricionário para se proteger e ajudar os seus amigos e construir necessidades onde constroem os seus negócios. A legislação sobre a idade dos trabalhadores do Estado é um exemplo da incoerência política.

    Por um lado, os sindicatos lutam pela reforma, os trabalhadores descontam a vida toda para a obter, equiparamos o mais possível o valor da pensão ao salário do trabalhador, e vai daí, permitimos que a Administração Pública contrate funcionários para lá da jubilação.

    man and woman sitting on bench facing sea

    Mas quem quer trabalhar depois da reforma? Porque damos lugares a pessoas com setenta e vários anos, na função pública? Na privada é frequente, e há inúmeros cidadãos que mantêm as suas empresas para lá dos oitenta, e alguns gerem os negócios mesmo aos noventa. Sinto-me útil, dirão alguns. Não sei o que fazer se sair – ouvi outras pessoas. O problema desta desconstrução está na imagem que fazemos de nós: sinto-me jovem! 

    A idade não se manifesta na auto-observação e nas nossas circunstâncias. Por esta razão, é difícil ver políticos deixarem a cena de moto próprio. Nunca chegam ao seu fim. Mandela, Gorbachov, o Papa emérito são excepções raríssimas que abdicam.

    Nas carreiras da função pública há inúmeros exemplos que se arrastam durante os últimos seis ou dez anos apenas porque sim. Não arranjaram entretém, não construíram sossego, não são capazes de se tornar associativos, ou ter funções beneméritas, ou ser opinativos. O que me entristece é a sua colocação em lugares de liderança na Administração Pública com salários opíparos.

    red green and yellow flag

    Esta insistência rompe o ciclo da renovação, a exigência da evolução e, sobretudo, prejudica o futuro. Ver homens de oitenta aos saltinhos num palco, convencidos de que são roqueiros surpreende-me as artroses, deixa-me com apertos na próstata.

    Há tanta coisa para ser, tanta realidade para viver. Não sou insensível ao mau gosto e parece-me desapropriado o avô a fingir que tem vinte anos. Também me indigna a parva decotada a visitar igrejas. Sou um conservador, já se vê.

    Por estas razões, não percebo o que fazem tantos reformados na gestão de empresas do Estado. Não percebo porque transitam pela administração os funcionários dos partidos, sem limite e sem vergonha. Presidente da Mesa da Assembleia Geral do SUCH, temos Correia de Campos. Na direcção da ADSE lá está João Proença, um camaleão de todas as funções possíveis. Na Entidade Reguladora da Saúde (ERS), o curriculum de Rogério da Carvalho é típico dum transeunte do poder.

    grayscale photo of person holding glass

    Mas os reformados da Administração Pública pululam em fundações, Santas Casas, entidades financeiras. Há lugares dourados para encaixar inúmeras figuras, num Estado que se multiplicou em instituições que competem nas funções e se anulam na acção.

    Na gestão dos investimentos privados não me meto, mas na gestão de institutos, fundações, IPSS que recebem milhões da governação, acho ilícito que quem se reforma do trabalho público regresse a funções para as quais devíamos ter construído a rotação benéfica e eficiente.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um editorial que existe porque a censura cega e absurda no Facebook ainda prevalece em 2022

    Um editorial que existe porque a censura cega e absurda no Facebook ainda prevalece em 2022


    Este editorial não deveria existir. Esta tarde, pelas 16:21 horas, recebi uma notificação do Facebook: “A tua publicação desrespeita os nossos padrões da Comunidade sobre informações incorrectas sobre vacinas”.

    Que tinha eu feito? Publiquei umas breves notas, com a correspondente ligação, sobre um interessante artigo científico – repito: artigo científico – publicado no dia 31 de Agosto na revista Vaccine da autoria de sete investigadores dos Estados Unidos (cinco), Austrália e Espanha. O artigo tem o sugestivo título: “Serious adverse events of special interest following mRNA COVID-19 vaccination in randomized trials in adults.”

    Alertava apenas para as principais conclusões, e as desconformidades com o que as farmacêuticas apontavam inicialmente e o próprio regulador norte-americano (FDA) em relação às vacinas contra a covid-19, salientando que o artigo surgia com base em dados (ainda não integrais) libertados pela Pfizer e Moderna, após uma carta aberta publicada no início do ano na revista científica BMJ.

    E relembrava também as dificuldades que o Infarmed tem colocado ao PÁGINA UM para aceder aos dados das reacções adversas às vacinas contra a covid-19 em Portugal.

    Este (mais um) caso de censura – que não afectou, por agora, a própria página do PÁGINA UM no Facebook, embora corra o risco de tal suceder, afectando a sua visibilidade – sucede à censura do vídeo da entrevista ao advogado Rui da Fonseca e Castro por parte do YouTube. A censura a um órgão de comunicação social, porventura porque esse órgão de comunicação social decidiu editorialmente entrevistar uma figura polémica (não seguiu a política do cancel) e o deixou falar livremente (mesmo se eu não concordasse com algumas das suas opiniões) sem censurar qualquer parte.

    grayscale photo of person running in panel paintings

    Nestes tempos que correm, a censura cega e absurda, que nem sequer admite o mínimo debate, torna o Mundo cada vez mais pobre e mais próximo de uma Ditadura. Em apenas dois anos e pouco perdemos décadas inteiras de tolerância, civilidade, Democracia e até Civilização.

    Deixo-vos o texto integral censurado pelo Facebook. Não há já muito a dizer, excepto reiterar que se mantivermos a postura obediente e não-reactiva às redes sociais e aos Governos que não os proíbem de instituir censura prévia, acordaremos um dia amordaçados e a praticar o mais castrante dos actos: a auto-censura.


    Texto censurado na página pessoal do Facebook

    (continha printscreens de diversos trechos dos artigos e cartas abertas)

    Em Janeiro, uma carta aberta na conceituada revista científica BMJ, onde pontificava Peter Doshi, clamava pela disponibilização de dados em bruto (raw data) dos testes das vacinas contra a covid-19 da Pfizer e Moderna. O PÁGINA UM abordou esse tema.

    Nem todos foram disponibilizados, mas alguns, o que permitiu uma análise independente agora publicada na revista Vaccine, tendo Peter Doshi como um dos autores.

    Os resultados são preocupantes, não apenas por mostrar que os efeitos adversos são mais frequentes do que os indicados pelas farmacêuticas, mas sobretudo por demonstrarem que a FDA subestimou (intencionalmente?) as suas análises, não exercendo com responsabilidade as suas funções de regulador.

    Tudo isto me faz relembrar que o PÁGINA UM anda, sozinho (com o apoio dos seus leitores, é certo) a exigir que o Infarmed liberte os dados nacionais das reacções adversas às vacinas. Os argumentos dos advogados do Infarmed no Tribunal Administrativo de Lisboa têm sido lastimáveis, e espero sinceramente, para bem da transparência, que não ganhem. Nota-se que têm receio de que se saiba a verdade.

    Entretanto, numa outra carta aberta na BMJ, um conjunto de sete cientistas, a pretexto do artigo da Vaccine, clamam para que a Pfizer e a Moderna libertem mesmo todos os dados, incluindo dados estratificados por idade. Não está aqui em causa a eficácia da vacina em algumas idades, mas sim a necessidade de uma correcta análise de benefícios-efeitos adversos.

    Aliás, ler a carta aberta destes cientistas mostra como a política e os interesses económicos das farmacêuticas sequestraram a Ciência.