Categoria: Opinião

  • O “energético” senhor Macron

    O “energético” senhor Macron


    Levámos com um guardanapo encharcado na cara atirado pelo presidente francês Macron. Diz ele que afinal já não precisa de um gasoduto português para nada.

    Temos recebido de braços abertos os franceses reformados e ricos, que não pagam cheta de impostos em Portugal. Que compram todas as casas do Bairro Azul e dos outros sítios chiques, e voilà.

    De troco, Macron não considera prioritário um gasoduto com origem em Portugal, que receba os navios gigantescos de gás no porto de Sines.

    factories with smoke under cloudy sky

    Macron risca também Espanha, que tem 33% da capacidade de armazenagem de gás da Europa. E está ligada à Argélia, um dos maiores produtores mundiais.

    O senhor Macron prefere reactivar 27 centrais nucleares francesas, há muito fora de uso.

    Ele quer uma França imperial, ao estilo de Napoleão – que foi precursor de Hitler, que até fez um pacto germânico-soviético.

    Em 2022, sem a Grã-Bretanha, este é afinal o caldo da actual Europa.

    A atitude do presidente francês é uma enorme asneirada estratégica. É um retrocesso político estúpido. Pior, só à política da alemã Merkel, que pôs a Europa totalmente dependente da energia de Putin, durante os últimos 16 anos. Até parece de propósito.

    Esta decisão de Macron é também uma forte machadada na intelectualidade portuguesa, ainda muito magoada com as três invasões dos exércitos napoleónicos. Nunca esquecidas, e que foram autênticos pilha-galinhas, em roubos escandalosos e arrasos.

    Emmanuel Macron, presidente da França.

    Nem sequer deixaram de pé quem lhes perguntou pelo país-paraíso da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.

    Já se percebeu há muito que a nossa salvação energética está do outro lado do Mediterrâneo, na Europa Romana. Onde poderia reinar o progresso e a harmonia, sem tantos afogados que inundam a nossa consciência.

    Que raio de Europa é esta, que se diz cristã?

    Que deixa morrer milhares de homens, mulheres e crianças no nosso querido Mediterrâneo…

    Será que a França ainda não digeriu os “pieds-noir” e continua com a mania dos impérios?

    Ó senhor Macron, a história do Rei-Sol teve um final infeliz. Não aprendeu na escola?

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Por uma lágrima tua

    Por uma lágrima tua


    Querido Pedro

    Soube agora da morte do teu Pai.

    Até parei de escrever, numa parálise de pura tristeza.

    O que é que nós podemos fazer? Mandar-te um beijo muito carinhoso e muito solidário, desde já. Mas claro que não chega. Eu já não tenho nem Pai nem Mãe[1], e sei perfeitamente que nunca estamos “preparados“: no dia em que eles se vão embora, na nossa vida há sempre um terramoto.

    gray scale photo of angel statue

    Eu já perdi praticamente toda essa geração da minha família, todos os tios biológicos e todos os tios que eram os amigos dos meus Pais, e que me ajudaram a crescer em tudo aquilo em que os meus Pais não podiam ajudar.

    Ofereço-te a morte que me tocou a mim esta semana, só para te fazer companhia.

    Ontem morreu a Joana Bénard da Costa, uma tia que estava sempre a dar-me descomposturas por eu não me vestir “normalmente“, por pôr as maminhas de fora na praia, por não disciplinar minimamente aquela minha enorme cascata de caracóis, e sobretudo por “fazer demasiadas coisas”:

    PÁRA! PÁRA! Não tens necessidade nenhuma de ser jornalista, estudar biologia, cantar num coro, e fazer teatro, tudo ao mesmo tempo. Já fizeste mais em vinte anos do que um africano faz na vida inteira! Assim nunca terás tempo para pensar!” – tudo isto com imenso humor, e com um gozo mesmo cáustico, que foi sobretudo brilhante quando eu me casei com o Meguinha (AKA António Mega Ferreira):

    Armindo Duarte Vieira (n. 15/12/1938; m. 09/09/2022)

    Então agora vais resolver os teus problemas armando-te em madame? Ó Clarinha, não é assim que os problemas se resolvem. Ainda bem que agora já há divórcio, porque tu não vais aguentar um papel desses. Dou-te dois anos de senhoreca, e já vais com sorte.”

    Por acaso aguentei sete, se bem que nos últimos dois já estivesse sozinha em Buffalo.

    Ontem a Joana morreu.

    Nos últimos anos, já no lar mas perfeitamente lúcida, passava a vida  a telefonar-me porque queria estar comigo. Há vinte anos que não sabia nada de mim, nem tinha percebido nada do que me fizera desaparecer, nem sabia o que é que eu andava para aí a fazer agora.

    Olhe, Joana, Saturei-me de Lisboa, sabe? Saturei-me completamente. Achei que ia morrer se continuasse lá. Então olhe, vim viver para Estremoz, e…

    Para Estremoz? Foste ter com o Zé Filipe?

    Ó Joana, então? O Zé Filipe é casado e tem filhos!

    Olha que na tua geração, pelo que eu vejo por aí… Vá lá, ainda por cima com o Zé Filipe… Temos mesmo que falar!

    E eu completamente tesa, frequentemente doente, tudo tão difícil. Eu e os meus amigos com quem cresci bem tentámos trazer a Joana a Estremoz, mas por uma razão ou por outra nunca foi possível. Essa tal última conversa que ainda íamos ter, a conversa em que eu lhe explicava tudo e depois lhe contava tudo do que andava a fazer, e de caminho esclarecia que não andava a fazer nada com o Zé Filipe[2]… a conversa em que ela havia de ser cáustica e irónica como sempre, e fazer-me acordar para o facto óbvio de que nenhuma mulher de 62 anos se veste assim…

    … Pois é, íamos sempre a tempo, mas agora o tempo acabou.

    Ontem, durante a noite chorei, chorei, chorei, agarrada ao lince de peluche da WWF sonegado ao neto da Didi, que é um purista e da WWF só queria pandas[3], pelo que não ligou nenhuma ao meu lince e eu foi género,

    Ai o menino não quer? Então olhe, quer a tia, quando não estiver ninguém a ver – ou acha que um lince tão lindo ficava aqui para ir para porcos?[4]

    Agora é todo o grupo da minha idade, todos os putos com quem passeei pelas praias, cantei, tive conversas complicadas, vivi aos dezoito anos a minha primeira grande paixão[5] que por acaso era daqui de Estremoz[6] —  somos nós, todos os que cresceram com o sarcasmo perfeito da Joana, quem tem pela frente a tarefa hercúlea de ser tão bom perante a vida como os seus pais e como os amigos deles.

    man walking on hallway

    Tudo isto para te dizer que estou à disposição, absolutamente, se puder ser útil nalguma coisa. É óbvio que uma expressão tão brutal como the confort of strangers nunca poderia ter sido cunhada ao acaso. Foi cunhada porque os desconhecidos, exactamente porque nada os mancha no nosso passado, nos confortam mesmo. Eu já senti isso na pele centenas de vezes. Passo eternidades em salas de espera relativas a coisas tristes e perigosas.

    E, em termos de suavizar as dores de pessoas,  eu até sei ser coach, sei fazer Reiki, e sei dar massagens terapêuticas[7]. Recuso-me a dar ou receber Shiatsu, porque não há técnica que deixe uma pobre desgraçada que já estava toda partida ainda mais completamente partida[8]. No Feng Shui, por favor não me peçam que acredite. E a porcaria do Pilates… quando quiseres rir pede-me que te conte a história da minha inesquecível sessão de Pilates, ministrada por uma fufa americana.

    Clara Pinto Correia

    Estremoz, 12 de Setembro de 2022


    [1] …e, como continuava a canção que começava com “É tão bom ser pequenino/ Ter Pai, Ter Mãe, Ter Avós” – a quadra fecha com “Ter confiança no Destino/ E ter quem goste de nós”. Esta última parte ainda é mais difícil de engolir do que a primeira. Por muito que nos custe, sabemos que Pais e Avós hão de ir-se embora. Mas descobrirmos que eles nos mentiram… que é perigosíssimo ter confiança no destino e que não há assim tanta gente como isso que goste mesmo de nós… Ah, caracóis! Isso dói!

    [2] Já estou há quase dois anos em Estremoz e nunca mais o vi. Claro que tenho pena. Mas não propriamente pelos motivos que a Joana pensava.

    [3] Símbolo da WWF, como se sabe. Mas é verdade, eles agora até já fazem linces, e são lindos! Fica a sugestão para quem tiver netos, ou netos de amigos, menos autistas do que o da Didi.

    [4] Há que ver que eu pertenço à geração da Faculdade de Ciências que lançou a Campanha SALVEMOS O LINCE E A SERRA DA MALCATA. E que fui a primeira jornalista portuguesa a escrever prontamente duas páginas sobre o assunto, já que, nos anos 80, o pessoal nem sequer sabia o que era um ecossistema. À minha frente ninguém brinca com o lince. Nem os netinhos fundamentalistas.

    [5] O tal Zé Filipe, só podia.

    [6] Mais propriamente, dos Arcos. Mas íamos e vínhamos a pé. E foi assim que começaram os meus longos amores com Estremoz, já timidamente iniciados aos 16 anos, com colónias de férias na Serra de Portalegre.

    [7] É verdade. Fiz estes cursos em Harvard, para lidar melhor com a dor crónica.

    [8] Depois da minha última experiência com o Shiatsu tive que tomar uma daquelas bombas americanas para as dores que têm mais morfina do que qualquer outro componente. Foi o que valeu. Mas, francamente – não é para depois ter que se encharcar em opioides que um gajo vai à massagem!

  • Simplex Ambiental: um embuste a caminho

    Simplex Ambiental: um embuste a caminho


    No país em que a avaliação de impacto ambiental é encarada como uma chatice, ainda por cima, cara, que deve ser ultrapassada por forma a chegar ao licenciamento final;

    No país em que todos os esquemas são usados para fazer aprovar um projecto;

    No país em que há uma completa desconsideração pelo território, pelas suas características e pelas populações que nele habitam;

    group of people beside water

    No país em que temos vastas áreas de território ao puro abandono pelas autoridades que dele deviam cuidar, à mercê de todas aqueles que o querem explorar sem piedade, desconsiderando o passivo ambiental que deixam pelo caminho um passivo ambiental do qual ninguém quer saber;

    No país em que se abatem milhares de árvores em prol da descarbonização;

    No país em que se destrói o montado de sobro em prol da descarbonização;

    No país em que o património agrícola mundial está em vias de ser destruído às mãos da extração do lítio;

    No país em que se limpam ribeiras com glifosato e se acha que limpar uma linha de água é o mesmo que limpar o quintal lá de casa;

    No país em que se assiste a uma completa destruição do solo com vastas zonas de onde é arrancado todo o coberto vegetal, seja para plantação de novas culturas como o abacate, seja para “plantação” de painéis solares;

    two trucks on plant field

    No país em que se espalha a ideia de que a seca é combatida pela construção de uma dessalinizadora;

    É, pois, neste país, em Portugal, que uma legislação, actualmente em consulta pública, sobre simplificação de licenças e procedimentos para empresas na área ambiental deve estar a provocar a abertura de garrafas de champanhe.

    Afinal, a ser aprovada esta nova lei, já não será necessário torcer diplomas, produzir estudos de impacte ambiental que são atentados à inteligência, usar favorecimento pessoal, e principalmente, nessa medida, o “progresso” já terá uma via rápida, sem constrangimentos ambientais.

    Só a título de exemplo – e mesmo só a título de exemplo, já que as canalhices se multiplicam ao longo do diploma –, vejamos algumas das maravilhosas inovações que este diploma oferece aos investidores.

    Antes de mais, o próprio projecto de diploma é ambicioso, e não esconde ao que vem. A dada altura pode ler-se: “Serão futuramente adotadas novas iniciativas legislativas com o mesmo propósito de simplificação e redução dos encargos administrativos para as empresas também noutras áreas, incluindo, em especial, o urbanismo, ordenamento do território, indústria, comércio e serviços e agricultura.”

    black framed eyeglasses on top of white printing paper

    E continua, vincando bem os casos de em que deixa de ser necessário avaliação de impacto ambiental (AI). Este, aliás, aparenta ser o principal objectivo.

    Querem instalar 100 hectares de painéis solares? Não há necessidade de AIA.

    Projectos de loteamento? Deixa de ser necessário AIA.

    Querem transportar energia eléctrica até 15 Km e 110 KV? Não há necessidade de AIA.

    Se determinadas situações já foram analisadas em sede de AIA, já não haverá necessidade de avaliação pelas entidades competentes. Por exemplo, projectos localizados em área de Reserva Ecológica Nacional (REN), já não serão analisados pelas respectivas comissões de coordenação regional (CCDR’s). Projectos de utilização não agrícola de terrenos agrícolas, já não serão objecto de parecer da comissão da Reserva Agrícola Nacional (RAN). O abate de sobreiros e azinheiras já não necessitarão de pareceres prévios e vinculativos por parte do Instituto Nacional de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).

    clear plastic water bottles

    Também há caminho escancarado para a aprovação tácita – ou seja, aprovação por mero decurso do tempo, sem que a autoridade de AIA tenha ponderado sobre o projecto. Uma vergonha, e tenho para mim que esta será a nova moda em termos a aprovação de projectos de avaliação de impacto ambiental.

    E pronto. Está aberto o espaço para a completa desagregação do território, sendo que a técnica é, como em outras ocasiões, tornar legal aquilo que antes era ilegal.

    Mas porquê que este diploma é totalmente ilegal?

    A actual legislação sobre avaliação de impacto ambiental é produto de uma transposição de Directivas europeias, que têm vindo a ser sujeitas a actualizações, mas sempre no contexto de legislação europeia.

    Ora, perante isto, a mera circunstância de vir um decreto-lei do Governo, que não constitui transposição de coisa nenhuma e que só visa alterar (no sentido de facilitar) legislação comunitária, é desde logo ilegal atento o primado do direito europeu sobre o direito nacional.

    Não estou com isto a dizer que, ao nível interno, não possam existir alterações àquilo que está definido em termos de critérios para avaliação de impacto ambiental. O que estou a dizer é que, essas alterações devem fazer-se sempre dentro do espírito da lei europeia e nunca para contorná-la.

    Conforme dito no Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção), de 21 de Março de 2013, Salzburger Flughafen GmbH contra Umweltsenat, a margem de apreciação de que dispõem os Estados Membros, quanto “à fixação dos limiares ou critérios para determinar se um projecto destes deve ser sujeito a uma avaliação de impacto ambiental (…) tem os seus limites na obrigação (… ) e submeter a um estudo do impacte ambiental os projectos susceptíveis de ter efeitos significativos no ambiente, nomeadamente pela sua natureza, dimensões ou localização”. Estas três dimensões, não sendo excludentes de outras são inafastáveis.

    people walking on street during daytime

    Já num outro Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, relativo à Irlanda, diz-se que um “Estado membro que fixe os critérios e/ ou os limiares só tendo em conta as dimensões dos projectos, sem tomar em consideração igualmente a natureza e a sua localização, excede a margem de apreciação de que dispõe.

    Recorro a decisões do Tribunal de Justiça porque o direito comunitário vai sendo interpretado a partir dessas decisões, sendo uma fonte segura, inclusivamente, para sabermos para onde podem ir algumas das alterações legislativas.

    O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem vindo a decidir de forma consistente que um projecto, mesmo de dimensões reduzidas, pode ter efeitos significativos no ambiente quando for situado num local em que os factores ambientais – tais como a fauna e a flora, o solo, o clima ou o património cultural – sejam sensíveis à mínima modificação.

    E ainda mais importante, os limiares ou critérios fixados pelos Estados “têm o objetivo de facilitar a apreciação das características concretas de um projecto, para determinar se o mesmo está sujeito à obrigação de avaliação, e não o de subtrair de antemão a essa obrigação.”

    man in black shirt sitting beside woman in white shirt

    É fácil perceber onde está o espírito da legislação ambiental e em que sentido vão as decisões judiciais… na Europa.

    Vamos agora viajar de regresso ao nosso processo legislativo, àquilo que está em causa com esta “simplificação de licenças e procedimentos para as empresas na área ambiental”.

    Não tenho dúvida de que o diploma será aprovado. Seguindo o curso legislativo normal, terá de ser ratificado pelo Presidente da República, que pode enviar o diploma para apreciação do Tribunal Constitucional. Marcelo não o fará, porque não quer conflito com o Governo e não quer ficar associado a nada que possa “emperrar” a aplicação dos fundos do PRR.

    Mais uma vez cabe-nos, a nós, a oposição a este tipo de legislação. Legislação que em si mesma é ilegal. Uma das formas de o fazer é participar na consulta pública, e fazer saber a nossa total oposição a esta nova legislação, a partir DAQUI, até dia 16 de Setembro.

    Rui Amores é advogado.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A coerência do incómodo

    A coerência do incómodo


    Gostava de ver legalizada a prostituição. Gostava de ver legalizado o casamento múltiplo. Gostava de ver legalizada a venda de drogas e o consumo delas. Gostava de ver diminuir muitas leis que conduzem pessoas à cadeia. Uma coisa é a violência, o desconforto provocado pelos ladrões, pelos bêbados, pelos condutores agressivos, mas outro assunto mais fácil é a fronteira do que é lícito e do que estamos dispostos a tolerar.

    Há uma baliza que nos incomoda quando empurram, quando insultam, quando maltratam, mas depois há uma fronteira nebulosa quando discutimos a linguagem, quando falamos de género em vez de sexo, quando queremos usar terminologia explicativa para profissões de sempre.

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    A criada é uma técnica, o cobrador é um oficial, o varredor é um funcionário. Os grandes mestres da nebulosidade estão no Parlamento Europeu a montar leis que nos obrigam, a garantir certificações que nos manietam, a desenhar regras que nos bloqueiam.

    Não queremos um Mundo sem leis e sem regras e sem balizas, mas queremos mais flexibilidade que é julgada e aferida pelos resultados, que é estudada e quantificada pelos registos.

    Há um bom senso que nos permite viver em sociedade, mas não queremos vestir todos com fardas, não desejamos que todos tenham guias orientadoras, que tudo se baseie em definições padrão. Não queremos as maçãs todas iguais e do mesmo vermelho, não queremos bananas sempre curvadas do mesmo modo. Não queremos batatas redondas e sem terra.

    man in black jacket standing near body of water during daytime

    A produção gerada por esta ideologia da concentração destruiu a mercearia em favor do supermercado, matou a Baixa das cidades para criar centros comerciais, impediu-nos de ser auto-suficientes na energia, atacou os consultórios para fazer grandes clínicas.

    Gostava de ver legalizadas as drogas e esclarecidas as fronteiras do que é o crime sob seu efeito. Gostava de encontrar prostitutas que podiam passar recibos. Gostava de ver a Manuela com os seus três maridos.

    Tudo o que não me prejudica, não interfere comigo, não bule o meu quotidiano, pode e deve ser liberalizado. Tudo o que é conflito, o que nos perturba o dia a dia, deve ser bem esclarecido.

    A venda de álcool tem de ser aferida com os comportamentos dos utilizadores. Deve haver pessoas a quem não se pode vender, e que só por consumir são penalizadas. Penalizar para mim é trabalho, é deslocação, é redução de salário, não tem de ser cárcere.

    two yellow and red wooden doors

    Retirar pessoas dos seus espaços de conforto, deslocalizar, reduzir salário, mudar de funções, tudo pode ser caminho de castigo para quem ultrapassa a fronteira. Há um gigantesco abismo entre esta opção e a realidade certificadora de hoje.

    A fronteira deve ser defendida pelos cidadãos, e por isso defendo a denúncia para aferir o nevoeiro, objetivando o que são as zonas de desconforto. Construir uma baliza a partir da análise da coerência do incómodo. Isto daria trabalho, mas permitia entender o limite com base na tradição e na tolerância. 

    Diogo Cabrita é médico


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  • A recessão organizada por Lagarde

    A recessão organizada por Lagarde


    Raquel Varela usou uma expressão, que considero feliz, para descrever a actual crise económica: recessão organizada. Enquanto governantes nos tentam convencer que a perda do poder de compra e a redução de salários se devem à guerra na Ucrânia, aquilo a que assistimos são lucros fabulosos na banca, nas energéticas e nas cadeias de supermercados.

    Sendo os preços definidos pelos salários e pelos lucros, sem que se conheçam aumentos significativos no lado dos salários, compreende-se que a subida de preços (inflação) se destine apenas a fazer crescer a balança no lado do lucro. É isto que o BCE de Lagarde consegue ao aumentar, repetidamente, as taxas de juro.

    man in gray jacket and black pants sitting on concrete bench

    Criar uma escandalosa orgia de lucros à custa da disparatada subida dos preços em contraponto com a estagnação dos salários. Está criada a tempestade perfeita em que o trabalhador por conta de outrem fica preso num ciclo sem saída. Por um lado, não pode deixar de trabalhar e, por outro, o valor a que vende a sua força de trabalho vale cada vez menos. Ao mesmo tempo, o lucro das corporações vai batendo recordes.

    Pelo meio, Lagarde diz-nos que é este o caminho para que a inflação regresse aos 2% lá para 2024, e António Costa (tal como os restantes governos da União Europeia), vai distribuindo umas migalhas pela população a partir do IVA extraordinário amealhado por conta da “economia de guerra”.

    Em lado nenhum se aumentam salários. Em lado nenhum se mantém o poder de compra do lado dos trabalhadores. Mas em todo o lado as empresas aumentam os seus lucros. Se isto não nos faz pensar, enfim, não sei o que mais será necessário. Talvez quando nos vierem buscar a pele.

    Dou por mim, pela primeira vez na vida, a concordar com uma afirmação de um deputado da Iniciativa Liberal. Se, de facto, o Governo quer proteger as famílias, bastaria que, por agora, reduzisse a fatia que tira de cada salário na contribuição do IRS. Era esse o verdadeiro acompanhamento da inflação.

    Mas então, e a Ucrânia? Sim, a Ucrânia, onde nos garantem que a vitória é possível (até ao último ucraniano, entenda-se), e que, de costas largas, aceita todas as justificações que nos empobrecem. Até onde iremos?

    black transmission towers under green sky

    Há uma ironia macabra em tudo isto. Enquanto os nossos governantes (europeus) nos garantem que não podemos deixar de apoiar financeiramente, e com armas, os esforços de guerra, dizem-nos que, também por causa desse esforço, devemos aceitar a perda de salários e, para alguns, das suas habitações. Isto depois de nos garantirem que a inflação seria temporária, quando todos já tínhamos percebido que estaria sempre associada (nem que fosse pela narrativa) a uma guerra que ninguém parece querer ver terminada.

    Sempre que ouço esta conversa de que a Ucrânia não pode cair, olho em volta e penso nos que, em qualquer parte do mundo, vão caindo todos os dias na ignorância dos interesses europeus. Mas mais do que isso, pergunto-me até quando aceitaremos patrocinar esta guerra com a nossa pobreza?

    Nada no terreno nos leva a pensar que os ucranianos poderão fazer mais do que resistir. Para além de Nuno Rogeiro, que nos garante desde Maio que os russos já não aguentam mais, a maior parte dos especialistas não vislumbram maneira alguma de rechaçar o exército russo do Donbass e da Crimeia. Mesmo aqueles que já viram a guerra para lá dos estúdios de televisão.

    Portanto, enquanto a União Europeia e os Estados Unidos forem enviando dinheiro e armas, enquanto nós formos empobrecendo sem gritar muito, enquanto os ucranianos tiverem gente viva e enquanto os russos conseguirem vender gás e petróleo aos asiáticos, em princípio a guerra tem pernas para andar.

    battle tank on green grass field during daytime

    Quem grita pela solidariedade eterna com a guerra no Leste Europeu é quem, por norma, nunca quis saber de qualquer outra invasão. Mas é também quem, acima de tudo, vê o drama alheio sem o risco de perder o telhado ou que, apesar dos aumentos do Banco Central Europeu (BCE), tem um salário suficientemente robusto para se sentar na poltrona a exigir solidariedade. Fica bem. É a barricada dos impérios pela verdade. São a nova versão do “fiquem em casa, salvem vidas”, que o meu emprego já é para a vida.

    Acalmaram-se um pouco os falcões que exigiam a entrada da NATO no terreno (de forma oficial, pelo menos), e isso leva-nos para a parte da solução de todo este imbróglio.

    Sem a NATO e uma III Guerra Mundial, é possível derrotar os russos? Rogeiro faz-nos crer que sim, os militares dizem que não. Acreditando nestes últimos, alguns que até defendem que a única solução do conflito passará pela perda de território por parte da Ucrânia, a quem interessa o prolongamento deste conflito?

    Assim de repente, consigo pensar em várias corporações que estão a lucrar como nunca, percebo que para os Estados Unidos seja importante desgastar os russos o mais possível (até porque eles já o admitiram), e para alguns governos até a inflação parece ser positiva.

    black and silver bicycle in front of the man in black shirt

    Mas para nós, o comum dos mortais que trabalha 40 horas por semana e paga contas, de que nos interessa a moral da escolha entre impérios? A hipocrisia da invasão boa vs. a invasão má? A irritante sobranceria com que aceitamos a morte de uns, mas declaramos inconcebível o sacrifício de outros, consoante o nome do invasor ou a proximidade do nosso bairro.

    Compreendo que ucraniano algum queira perder território. Mas… tem de ser a Europa toda a pagar por isso? Não posso eu escolher a que invadido quero dar a minha solidariedade, ou, pelo menos, achar que que tenho o direito de não pagar guerras que não escolhi?

    Andei, andámos, dois anos a pagar os lucros das farmacêuticas e dos laboratórios, enquanto nos cortavam salários. Agora transferimos o valor do trabalho para o capital que está no sector da energia, do armamento, da banca. E voltamos a reduzir salários.

    Quase três anos desta merda, deste ciclo de empobrecimento. Sem que nos perguntem sequer se queremos fazer parte dele. Uma minoria que controla, dirige e oprime a maioria que trabalha, mas que, ao que parece, se recusa a pensar e reagir.

    man on front of vending machines at nighttime

    Eu não aceito que me obriguem a pagar guerras que não escolho. Nem sequer aceito que me digam quais são as guerras boas ou guerras más. E certamente não compreendo, em nome de quem é que a estabilidade da minha família tem que ser colocada em causa para que a banca, os senhores da guerra e as energéticas lucrem como nunca.

    Entre o sangue ucraniano e a pobreza que aumenta na Europa, há quem ganhe fortunas. E nós, os idiotas de serviço, discutimos 125 euros de esmola e gritamos Slava Ukraini no sofá, sem saber quanto mais tempo nos sentaremos nele.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A caminho do Árctico: dia 6, Tromsø e Helsínquia

    A caminho do Árctico: dia 6, Tromsø e Helsínquia

    O dia começou ainda em Tromsø , cidade também remota da Noruega. Mas a expectativa do dia, e do final desta aventura, era Helsínquia – a minha primeira visita à Finlândia. Venham comigo nesta última etapa desta viagem memorável.


    8 horas da manhã. Já estava tudo preparado para a última etapa da viagem. Antes de ir para o aeroporto, passeie pela última vez pela pequena Tromsø , aproveitando o dia de sol.

    As lojas começavam a abrir. Os funcionários das lojas acenavam-nos dando os bons dias. Uma cidade pacata e com pouca gente. Passei pela catedral que continuava fechada. Só abre no Domingo para a celebração da missa. É bonita e é, talvez, o edifício mais alto de Tromsø .

    Dali apanhei o autocarro 42 que me levaria ao aeroporto. O aeroporto também é pequeno e as portas do Terminal ainda não tinham sido abertas. Aguardei um pouco até podermos entrar.

    Procurei uma loja de lembranças para comprar o meu íman de frigorífico – compra habitual quando visito um lugar pela primeira vez -, mas o aeroporto não tem. Apenas se encontravam à venda produtos tax free, bebidas, chocolates, produtos de beleza e pouco mais. Teria de ficar para uma próxima visita, pois desta segui sem íman.

    No avião, que seguia diretamente para Helsínquia, aproveitava para terminar a leitura do meu livro, quando surgiu uma zona de turbulência. Com as milhas que tenho em carteira, já apanhei muitas zonas de turbulência, mas nunca como esta. É uma nuvem do Árctico, disse o comandante! “Mantenham os cintos apertados”.

    Comecei a ficar com náuseas e muito calor, liguei o ar e olhei para o relógio, sem olhar à minha volta pois é essa a melhor forma de controlarmos a ansiedade, não sendo influenciada por pessoas assustadas. Contei oito minutos e tudo ficou mais calmo.

    Aterramos em Helsínquia, saímos e fui direta ao check-in para adiantar o meu voo de regresso a Lisboa, antes de sair para o centro da cidade. Tinha quatro horas para ver o máximo possível. Quando terminei o check-in recebi um voucher da Finnair para gastar nos restaurantes do aeroporto. Achei estranho, mas simpático.

    Quando olhei para o ecrã, com as portas de embarque vi que o voo estava atrasado: “informação sobre horário apenas às 20h00”. Mas que boa notícia! As quatro horas passaram a sete horas e assim poderia cumprir o programa inicialmente preparado. Tudo estava a correr bem!

    Comprei o bilhete de comboio que em 30 minutos me deixaria na Estação Central de Helsínquia. Dali iria visitar os principais pontos de interesse da cidade.

    Na estação, procurei cacifos para poder deixar a mochila e o casaco de Inverno, mas não encontrei. Decidi propor a um comerciante chinês , se me deixava pousar a mochila e o casaco por seis horas em troca de cinco euros. Aceitou!

    Segui feliz e contente em direção à Catedral de Helsínquia, luterana, conhecida como a Igreja de São Nicolau. Entrando na Catedral, notei a simplicidade decorativa das igrejas luteranas. Apenas o seu belíssimo órgão de tubos, um lustre no centro e um quadro alusivo à Paixão e Morte de Jesus.

    Descendo a escadaria íngreme da Catedral, cheguei à Câmara Municipal de Helsínquia, um bonito edifício com muitas flores a adornar o exterior. Atravessei e vi o Mar Báltico. No lado direito, o mercado municipal, como em várias cidades da Europa, renovado para ser um centro de restaurantes e algumas lojas gourmet. Ali sentei-me e pedi um Cappuccino. Fiquei a observar os finlandeses. Têm um estilo arrojado e, especialmente, as mulheres são muito produzidas: saltos altos, muita maquilhagem e roupa de Verão nuns 16 graus que pareciam mais frios que em Svalbard. “É do vento que chega do Báltico”, disseram-me, quando referi que estava frio.

    Seguindo junto ao mar, contornei a estrada para visitar a Igreja Ortodoxa e dar uma volta na Roda Gigante de Helsínquia, um divertimento que nos proporciona as melhores vistas da cidade. Mesmo por baixo e junto ao mar, vi a Alla Sea Pool. Inaugurada em Setembro de 2016, o complexo está equipado com três piscinas construídas sobre o mar: uma piscina infantil, uma de água morna e uma de água salgada. Se visitarem Helsínquia no Verão, recomendo que aproveitem uma tarde nesta espécie de clube balnear, em cima do Mar Báltico.

    Continuando a minha visita pela capital finlandesa, atravessei o Parque Esplanadi e, do lado direito, além de bonitos hotéis e restaurantes, existe uma galeria comercial que chamou a minha atenção, com as suas muitas flores e montras atrativas. É a galeria comercial Kampi. Para os que gostam de fazer compras, sugiro a visita (já perceberam que sou das que não compra nada pois, ou viajo ou compro coisas. E, como é óbvio, vejo maior riqueza e dinheiro bem gasto, nas viagens).

    As ruas são bonitas, edifícios antigos e modernos vivem em perfeita harmonia, os elétricos de várias cores também mostram o seu charme. Segui para visitar o Parlamento, um edifício impressionante, como quase todos os edifícios parlamentares europeus.

    Fiz uma pausa para almoço. Gosto da esplanada do Storyville e só lá estavam clientes locais. É o meu género de restaurante, nada turístico e com serviço rápido. A conta vem em euros e senti-me mais perto de casa.

    Ainda no centro da cidade, procurei a Capela Kampi, também conhecida como a capela do silêncio. Como não tinha visto imagens, fiquei surpreendida quando vi o edifício. É uma obra de arte, uma capela redonda, cor de laranja e bem no centro da confusão de Helsínquia. É um convite à paragem, desaceleração e silêncio na rotina atarefada e sem tempo.

    Gostei muito desta capela, não apenas pela originalidade, mas pelo apelo a receber todos os que procurem recolhimento e, de certa forma, algum reconforto no seu dia. Um portal para a espiritualidade.


    Olhei para o meu roteiro, já só faltava a visita ao Teatro Opera e lá fui eu, antes de regressar à Estação Central que me levaria de volta ao aeroporto e a casa.

    Helsínquia, a capital escandinava que me faltava conhecer e uma muito boa surpresa. Por um lado, os seus traços evidentes de capital do Norte da Europa, por outro, um pouco de São Petersburgo pela proximidade.

    As pessoas são menos disponíveis, andam com muita pressa e sem tempo a perder ou, a ganhar, digo eu.

    Esta cidade é um ponto de partida para quem se aventurar numa visita pelas capitais do Báltico, que será uma viagem que farei um dia destes.

    Agora, era tempo de regressar a casa, abraçar a família e retomar as rotinas diárias que tanto gosto, encontrando sempre tempo para fugir delas e conhecer novos lugares, mesmo e, principalmente os que ficam perto de casa. Aventurem-se também!

    Até breve!

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • O dia da minha morte

    O dia da minha morte

    Só percebi que já tinha morrido há cerca de uns nove anos. Até aí, fui suficientemente ingénua para continuar a considerar-me deveras viva. Está bem que César foi apunhalado no Senado, mas eram meia dúzia de políticos todos eles invejosos e medíocres, exatamente como também nós acabamos por nos habituar a pensar nos políticos. No meu caso, eram dez milhões de portugueses. E ninguém me tinha apunhalado com punhais propriamente ditos. Não há nada mais estranho do que uma pessoa então de cinquenta e três anos, que se sente cheia de saúde e pronta a entrar em acção, ser obrigada a aceitar que já morreu. Mas não somos propriamente nós quem escolhe grande parte do que nos acontece. E quem sou eu para contrariar a vontade de todo o meu País, certo?…


    … Quando tudo isto aconteceu, eu tinha lançado o meu último romance, Não podemos ver o vento, dois anos antes. Tinha recebido boas críticas. Tinha dado várias entrevistas.

    Mas, já nessa altura, é claro que nem tudo brilhava à maneira indicativa da Estrela Polar.

    Por exemplo, quando chegava às rádios, às televisões, ou aos sítios onde as revistas queriam fazer mais uma daquelas suas “produções” que a editora insistia serem uma óptima ideia, ouvia frequentemente comentários como,

    Ah! Mas afinal a Clara não está nada gorda!”;

    ou

    Oh! Está tão bonita! E dizem que anda para aí a meter para a veia e a cair da boca aos cães[1]

    ou

    Enfim… para quem não está bem da cabeça… o seu raciocínio é interessantíssimo.

    Tinha-me habituado facilmente a estas figuras de estilo e a várias outras, e portava-me sempre muito bem nas conversas, como se nada daquilo me doesse, tendo em conta o terrível maremoto de maledicência e a incrível destilaria de destruição que acompanharam “o escândalo das fotografias”; só que – enfim. Estava desempregada, estava silenciada, mas estava viva e a roda havia de voltar a subir.

    ”Pretinha’, com cinco anos, no papel de São José no Presépio Vivo de Luanda.,

    Tenho uma fé a bem dizer insuportável na gentileza das pessoas. Pior ainda, confio no sentido de solidariedade dos portugueses[2]. O que ganhava com isso era estar permanentemente a ser desiludida, mas ao menos saltava todos os dias da cama às sete da manhã cheia de confiança no destino. De cada vez que ia falar com alguém por motivos de trabalho, ia sinceramente convencida de que, dessa vez, o plano resultava e eu voltava, no mínimo, a ser útil.

    Como isso nunca aconteceu, acabei por voltar para os Estados Unidos a convite do grande Scott Gilbert, para escrevermos em co-autoria um projecto muito arrojado sobre os efeitos colaterais das técnicas de Reprodução Medicamente Assistida.

    É verdade que já lá iam três anos de desemprego, e eu bem tentava, bem tentava, bem tentava, e nunca ninguém me dava trabalho. Mas, sobretudo, aceitei o convite do Scott porque percebi que o meu próprio país me tinha dado por morta e não ia, de todo em todo, tolerar que eu continuasse viva.

    Foi no dia em que entrei numa farmácia ao pé de Santa Apolónia, e não estava lá mais ninguém a não ser a menina do balcão.

    Assim que me viu, a menina deu um gritinho.

    Eu fiquei a olhar para ela, à espera de melhor explicação.

    A menina deu uma série de outros gritinhos, de tal forma sentidos que eu acabei por perguntar,

    “Está tudo bem?”

    “É que a senhora… a senhora… a senhora era uma escritora!”

    Era???? Então a que vem esse era? Era e ainda sou! Quer dizer, tanto quanto sei, ainda não morri.”

    “Está bem, mas a senhora nunca mais voltou a aparecer… dantes a senhora aparecia sempre… a senhora era uma pessoa que aparecia muito… e… e… como nunca mais apareceu…”

    “Não me diga que acha que eu morri só porque não voltei a aparecer.”

    “Ah! E garanto-lhe que não sou só eu! Tem a certeza de que é mesmo a senhora que era aquela escritora?

    E eu respondi-lhe exatamente o que senti, pela primeira vez de muitas vezes que haviam de vir depois:

    Não, minha querida. Não tenho qualquer certeza de ser seja quem for. Agora, se faz favor, pode arranjar-me uma caixa de microlax?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora.


    [1] Adoro esta expressão dos cães. Era só ouvi-la e ficava logo bem disposta.

    [2] Sou parva, e então? O que é que eu ganhava em ser raivosa?

  • O regresso de Clara Pinto Correia à crónica semanal… hoje, no PÁGINA UM

    O regresso de Clara Pinto Correia à crónica semanal… hoje, no PÁGINA UM


    O PÁGINA UM começará hoje a publicar crónicas semanais de Clara Pinto Correia. Grande parte da população portuguesa conhece esta mulher nascida em 1960, que se notabilizou não apenas na Ciência – sobretudo na investigação no domínio da Embriologia no Instituto Gulbenkian de Ciências e em universidades norte-americanas (Buffalo e Harvard) – como na Literatura.

    Foi também, durante mais de uma década, presença assídua na comunicação social, passando pelo O Jornal, o Diário de Notícias e a revista Visão, que terminou, de forma abrupta e polémica, em 2003.

    Já passaram quase 20 anos, portanto.

    Duas décadas se passaram, muitas explicações se deram então (e a própria Clara as deu), e uma “coisa” (não aprecio muito este termo, mas enfim…) me parece evidente: Portugal não pode jamais ostracizar em definitivo os melhores de entre si como se todos aqueles que decretam o “édito de expulsão” na concha da ostra (ostracismo deriva daqui), como faziam os gregos, fossem perfeitos, puros, imaculados de pecado e defeitos.

    E sei também que a Clara Pinto Correia, com a sua colaboração no PÁGINA UM – inicialmente semanal; veremos o futuro –, contribuirá, com o seu olhar amadurecido mas simultaneamente jovial, para que (nos) observemos melhor, com outros ângulos, talvez com maior empatia.

    Empatia, antes da simpatia, é aquilo que como director do PÁGINA UM peço a todos os nossos leitores – aqueles que nos seguem e apoiam desde o início deste projecto editorial. E, sobretudo, desfrutem dos escritos da Clara Pinto Correia.

    A Deriva dos Continentes “renasce” hoje no PÁGINA UM. E isso só, só isso mesmo, deve ser motivo para o nosso contentamento. O resto é supérfluo.

    Pedro Almeida Vieira


    Razões de um regresso

    Já nem sei quando é que comecei a fazer crónicas, mas, pelo menos, em 1989 já mandava todas as semanas, de Buffalo para O JORNAL, por uma novidade muito fina que era o fax, uma série de dois anos chamada THE BIG EASY, sobre o quotidiano na América profunda.

    Depois escrevi outra série para a revista de O JORNAL, depois passei anos a escrever ao domingo para o DIÁRIO DE NOTÍCIAS, depois passei outros tantos anos a escrever para a VISÃO… até que, em 2003, enquanto eu estava nos Estados Unidos a concluir um projecto de investigação de prazo apertado, creio que é do conhecimento comum que a populaça me foi cortando os braços, as pernas, a cabeça, numa grande animação de linchamento na praça pública[1], ao mesmo tempo que fazia chorar muito os meus filhinhos que tinham ficado em casa sem mim.

    Agora os matulões vão nos trinta anos e já me encheram de netos, pelo que temos a certeza de que mais ninguém vai chorar por minha causa[2].

    Espera-se, portanto, que vos diga que é bom estar de volta?

    Então, mas e eu é que sei?

    Oiçam lá, como é que é? Já ninguém se lembra de que os caminhos do Senhor são insondáveis?

    Bem, eu lembro-me… mas se calhar é tudo uma questão de defeito. Ou mesmo de feitio. Qu’ importe, como diria o outro…

    Clara Pinto Correia


    [1]Às tantas, nessa altura, telefonou-me um dos meus melhores amigos, sem saber se havia de rir ou de chorar, a contar-me que nas notícias se debatia furiosamente o meu “plágio”, enquanto por baixo, em notas de rodapé muito pequeninas, passava um letreiro a dizer “explodiu o Space Shuttle”. Francamente, pessoal.

    [2]Agora a tendência deles é mais para suspirarem “Oh, Mãe…”

  • A indecência de chamar socialista ao Governo

    A indecência de chamar socialista ao Governo


    Tinha pensado desligar-me do mundo por uns dias e seguir por caminhos enviesados nesta longa estrada que liga Gotemburgo a Lisboa. Algures entre as intermináveis filas nas estradas alemãs, cujas obras são uma constante há pelo menos 20 anos, e a extorsão que a Vinci faz nas auto-estradas francesas, aborreci-me da playlist do Spotify e virei para as notícias.

    A Jonet falava, chegavam pedidos ao banco alimentar, aumentava o número de pobrezinhos. No mundo com que sonho, a Jonet seria uma crónica desempregada. Contudo, no Portugal do século XXI, a senhora tem palco e luzes cada vez maiores.

    man sleeping on bench in the middle of the street

    De seguida fala o Costa. Tinha medidas para anunciar que iriam ajudar os pobrezinhos da Jonet. Foi aqui que percebi que as obras nas estradas alemãs seriam a menor das minhas irritações em período de férias.

    O Governo anunciou um pacote de medidas de ajuda no combate à inflação e aos custos da energia. Antes de irmos às medidas em si, convém esclarecer uma coisa, a inflação aumenta o custo de vida de cada um de nós, mas traduz-se numa receita fiscal maior. Portanto, não existe qualquer pacote de ajudas em período de inflação galopante… quando muito existe um pacote de devolução extraordinária daquilo que nos tiram sem que percebamos bem porquê.

    Em todas estas discussões, onde se apuram culpados, é preciso que se perceba uma coisa: não foram os portugueses que decidiram ter uma das electricidades mais caras da Europa em simultâneo com salários dos mais baixos entre os parceiros europeus.

    E isto antes da guerra.

    E isto é preciso repetir 50 vezes para que não continuemos no engodo de atribuir à Ucrânia toda a miséria que nos assola há décadas.

    photo of truss towers

    António Costa disse que todos os cidadãos com salários brutos até 2.700 euros (cerca de 2.000 líquidos) receberiam um apoio de 125 euros. Eu juro que pensei que fosse uma verba mensal ou algo assim. Mas não. Para pessoas que deixam, no caso dos 2.700 euros de salário, cerca de 10.000 euros em IRS anual nos cofres do Estado, António Costa achou que 1,25% desse valor seria uma boa “ajuda”.

    Estamos a falar de famílias que passaram a pagar muito mais pela casa por causa das taxas de juro, que suportam os lucros pornográficos da energia (que repito, NÃO VEM DA RÚSSIA) e que ainda contribuem para mais um jackpot estatal com os impostos sobre os bens de consumo à boleia da inflação. Em resumo, e numa linguagem que se perceba, o Governo português recebeu um porco (Pata Negra, pelo menos) de cada um de nós, e resolveu dar-nos um chispe, anunciando-o com pompa e circunstância.

    Conseguiu o Governo, pela primeira vez, colocar toda a oposição de acordo, depois de este número de ilusionismo. Carlos Guimarães Pinto, da Iniciativa Liberal, disse, e eu concordo, se o Governo queria de facto ajudar, bastaria ter reduzido os impostos sobre os salários e permitido que, nesta fase excepcional, as pessoas ficassem com mais dinheiro no bolso para enfrentar as dificuldades.

    É, aliás, essa a base do problema: os nossos baixíssimos salários. Os 2.000 euros líquidos são o limite para a fabulosa ajuda dos 125 euros, daí para cima estão os ricos. Dificilmente se enfrentam tempos destes sem poupanças e, como qualquer um de nós perceberá, poucas ou nenhumas serão as poupanças num país onde a média salarial se aproxima dos 1.000 euros.

    two Euro banknotes

    Por isso, estamos condenados à caridade, aos subsídios, às ajudas extraordinárias. Isto porque a nossa massa salarial não é, nem nunca foi, em média, algo sequer parecido com o Primeiro Mundo.

    No fundo, somos o reflexo da política do país que durante mais de três décadas de presença na União Europeia se habitou a gerir subsídios em vez de os usar para começar a produzir riqueza. Triste fado o nosso que nos deixa de gatas a cada crise.

    Vejo também, com alguma curiosidade, a indignação (e bem) de alguma parte da direita política com o ridículo valor de 125 euros. Não nos atrapalhemos que eu também aí concordo, mas, curiosamente, é a mesmíssima direita que falava no RSI e dos Mercedes à porta. Ora, o valor é semelhante. Eu pensava que dava para fazer férias em Nassau mas, afinal, parece que não. 

    A medida de auxílio aos pensionistas foi, ainda assim, a tentativa de ilusão mais indecente deste Governo, que, lembre-se, anunciou o Orçamento mais à esquerda de sempre. Os pensionistas recebem em Outubro metade do valor da pensão e os restantes 4% de aumento em 2023, perfazendo o aumento esperado para esse ano, de acordo com o valor da inflação.

    two hands

    Contudo, a partir de 2024, o aumento incidirá sobre o valor final de 2023 (o tal a que se chegou com 4% em vez de 8%); portanto, o que na prática o Governo de António Costa faz é antecipar para Outubro de 2022 o que já estava previsto por lei, mas a partir de 2024 retira, na parte valor, até à data da morte de cada pensionista.

    Significa isto, portanto, que o adiantamento de Outubro de 2022 não aparecerá no aumento de 2023. Embora a totalidade do dinheiro recebido seja a mesma, o valor final da pensão bruta mensal não será. Portanto, quando se calcular o aumento para 2024, este incidirá sobre uma base menor. Ou seja, anunciando um aumento e uma ajuda, o que António Costa faz é, na verdade, um corte nas pensões. Segundo a ministra da Segurança Social, ontem no Parlamento durante o debate com a Oposição, devemos discutir para já 2023 e criticar, se for caso disso, o que o Governo apresentar daqui a um ano para o Orçamento de 2024. Aqui para nós, parece-me que o país percebeu rapidamente a ilusão e o PS procura empurrar com a barriga e ganhar tempo para respirar.

    O tempo raramente nos engana e seria bom, ao dia de hoje, lembrarmo-nos de quem condenou este Orçamento e quem repetiu, até à exaustão, que iria retirar poder de compra aos portugueses.

    Aí está ele, desmascarado por qualquer português que saiba fazer umas contas de merceeiro, o Orçamento mais “à esquerda de sempre”, que diminui o poder de compra dos pensionistas, rebenta com o que falta do SNS, desvia dinheiro para a NATO, mantém a Função Pública estagnada e nem por uma vez se digna cobrar impostos extraordinários sobre os lucros fabulosos do sector da energia. E isto enquanto os portugueses vão definhando para manter as casas.

    Quanto à compensação da factura da electricidade é apenas uma piada de mau gosto. Tentem manter uma casa quente no Inverno consumindo menos de 100 Kwh. O governo sueco, sem perguntas, filtros ou ses, resolveu compensar cada cidadão, ajudando com as despesas de energia para todo o inverno de 2021/2022. Através de um simples e-mail, informou que seria descontado o valor X na próxima factura e ponto final. Isto num sítio onde o salário médio deve rondar os 3.000 euros.

    person holding brown leather bifold wallet

    As medidas anunciadas em Portugal são, no fundo, uma mão cheia de nada. Uma aldrabice pegada onde o Governo poupa dinheiro dando a ilusão de que é um mecenas. Num país cada vez mais pobre e, infelizmente, dependente das ajudas, é um embaraço e uma vergonha ter que assistir ao que faz o Governo de António Costa.

    Os salários não acompanham a inflação; os impostos resultantes do aumento do custo de vida não são distribuídos; o BES (afinal) ainda existe; as clientelas e os Figueiredos também; as gasolineiras e as eléctricas continuam, em cartel, a decidir os preços praticados. E os portugueses estão reféns. De todos.

    Mas, enquanto nos continuam a roubar, tenham pelo menos a decência de não chamarem, ao Governo que nos governa, de socialista.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Brasil: um país nascido a quatro mãos

    Brasil: um país nascido a quatro mãos


    [Este texto foi publicado, como capítulo no livro Assim se pariu o Brasil, sob o título “Um reino a quatro mãos”, editado originalmente naquele país em 2015 pela editora brasileira Sextante. Manteve-se a grafia da edição original, em português do Brasil, num trabalho conjunto do autor com Bruno Anselmi Matangrano. Esta obra conheceu uma edição em Portugal pela Saída de Emergência, em 2016, e outra na Itália pela editora Mimesis, em 2020.]


    O Brasil, como hoje o conhecemos, não devia existir. Ou melhor dizendo, é um milagre possuir um território de mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, figurando como o quinto maior país mundial. Na verdade, os ventos separatistas que percorreram a América Latina no século XIX deveriam ter feito com os domínios portugueses aquilo que aconteceu com as antigas possessões espanholas: um desmembramento em várias nações. Se assim tivesse acontecido, talvez houvesse agora uma nação chamada Brasil, mas de menor dimensão, rodeada de outros países lusófonos. E, pelo meio, muitas cruzes marcando sepulturas, porque infelizmente quase todas as independências são pagas com sangue.

    Embora se trate sempre de um exercício especulativo, pois jamais será possível ter certeza do que se passaria se as circunstâncias e personagens de um determinado momento da História não tivessem se “encontrado”, o Brasil dificilmente seria uma nação unificada e federativa se não fossem dois homens que lá estiveram: o rei português D. João VI e seu filho, o primeiro imperador, D. Pedro I. E também indiretamente por causa de um terceiro homem que nunca lá pôs os pés: Napoleão Bonaparte.

    Texto publicado no livro Assim se pariu o Brasil, mantendo a grafia da edição original em português do Brasil.

    Com efeito, a retirada estratégica de D. João VI para o Brasil, no final de 1807, no momento da invasão das tropas napoleônicas em Portugal, permitiu não apenas evitar a perda da independência lusitana – porque assim seu soberano não pôde ser deposto – como involuntariamente uniu ainda mais o território brasileiro.

    Por outro lado, optando por manter a velha aliança com a Inglaterra, em vez de se subjugar aos caprichos de Napoleão, o rei português esquivou-se também da má sorte de seus pares da Espanha, com graves consequências para esta nação, quer na Europa quer em suas colônias americanas.

    De fato, Carlos IV da Espanha foi ingênuo quando assinou com a França o Tratado de Fontainebleau, em outubro de 1807. Pensava que, aliando-se a Napoleão, ficaria mesmo com parte do território português e com um bom quinhão de suas colônias[1]. Não menos surpreendente foi o fato de que o rei espanhol pretendia invadir o reino vizinho onde o regente, D. João VI, casara-se com sua filha, D. Carlota Joaquina.

    O feitiço virou contra o feiticeiro. Em março do ano seguinte, o rei castelhano foi obrigado a abdicar em favor de seu filho Fernando VII, em uma revolta conhecida como Motim de Aranjuez, que causaria também a queda de Manuel Godoy. Dois meses depois, foi a vez de Fernando VII ser preso por Napoleão em Bayona. A Espanha ficou assim sob domínio francês – sendo nomeado como rei-fantoche o irmão do próprio Napoleão, com o título de José I. Somente em 11 de dezembro de 1813, a Espanha se livraria na Europa do jugo francês, através de duras batalhas contra seu traiçoeiro aliado.

    Porém, o mal já estava feito na Espanha. Durante os seis anos de guerra interna estima-se que morreram entre 215 mil e 375 mil pessoas, às quais se somam mais algumas centenas de milhares em resultado da fome e de epidemias. Sem esquecer a destruição econômica e a redução da capacidade militar. Ou seja, a Espanha ficou na bancarrota, precipitando a perda do controle de seus domínios ancestrais na América do Sul. E não em um só bloco, mas se desmembrando em pedaços.

    Embora as primeiras insurreições na América espanhola tenham se iniciado, mas em pequenos focos, ainda em 1806 – no mesmo período em que a Inglaterra tentou invadir, sem sucesso, os territórios do Rio da Prata, na atual Argentina –, a ruína começou apenas durante o reinado espanhol do irmão de Napoleão. Primeiro, perdeu a Venezuela, pouco depois várias regiões na costa do Pacífico – que formariam, em um primeiro momento, a chamada Grã-Colômbia –, seguiram então as Províncias Unidas do Rio da Prata, o Paraguai, o Império Mexicano e muitas outras regiões.

    Esta desagregação evoluiu depois para novas divisões. Simón Bolívar, o chamado Libertador da América, ainda tentou concretizar seu sonho de criar, na América hispânica, uma solução federativa similar aos Estados Unidos na América do Norte. Mas nunca conseguiu. Atualmente, os territórios americanos que a Espanha dominou até o início do século XIX estão distribuídos em mais de duas dezenas de países. Ao contrário disso, os domínios portugueses originaram apenas o Brasil, com uma estrutura federativa e territorial quase similar ao período colonial.

    Não foi obra do acaso, este distinto desfecho. A razão é simples: quando as convulsões nas colônias espanholas iniciaram, o Brasil já não era uma colônia portuguesa; era Portugal, de fato, pois D. João VI e a família real nele viviam. E não estavam só de passagem. Tanto que, quando o principal motivo para sua saída de Portugal – as invasões napoleônicas – deixou de existir, nunca houve pressa para regressar à Europa. Aliás, embora nunca o manifestasse abertamente, D. João VI sentia-se melhor sendo rei no Brasil do que em Portugal, o que é compreensível; o território sul-americano era quase cem vezes maior do que o minúsculo retângulo europeu.

    A manutenção de D. João VI na América do Sul também se dava por um motivo de estratégia política, além das belezas do Rio de Janeiro, que obviamente o agradavam bastante. Sua presença no Brasil apaziguava, de forma decisiva, eventuais “contaminações” subversivas vindas do lado espanhol. Uma coisa eram os movimentos separatistas contra um soberano que vivia do outro lado do Atlântico, como se passava nas colônias espanholas – ainda mais diante de um rei-fantoche, como José Bonaparte, irmão de Napoleão –, outra bem diferente era uma revolta acontecer perante um inédito rei presente.

    Napoleão Bonaparte

    Além disso, olhando para os três séculos anteriores de colonização portuguesa na Terra de Vera Cruz, o Brasil transfigurou-se com a estadia da família real. Para bem melhor. E mais ainda o Rio de Janeiro.

    No momento da chegada dos monarcas portugueses, a cidade era, nas palavras do comerciante inglês John Luccock, “o mais imundo dos ajuntamentos de seres humanos debaixo do céu”. Com uma população de 60 mil habitantes, dos quais apenas 20 mil brancos e 15 mil escravos, a cidade era um aglomerado de apenas setenta ruas e algumas vielas, todas pestilentas devido às águas estagnadas e pântanos, e aos despejos generalizados de lixos nas vias públicas. Havia doenças para todo gosto.

    Nas palavras do médico Bernardino Gomes, as moléstias mais frequentes eram “sarnas, erisipelas, impingens, bolbos, morfeia [lepra], elefantíase, formigueiro, bico dos pés, edemas de pernas, hidrocele, sarcocele, lombrigas, hérnias, leucorreia, dismenorreia, hemorroidas, dispepsia, vários afectos compulsivos, hepatites e diferentes sortes de febres intermitentes e remitentes”.

    A falta de edifícios para acolher milhares de reinóis, muitos dos quais de famílias nobres, impulsionou um crescimento urbano nunca antes visto. Construíram escolas, hospitais e teatros; fundaram a Academia Real Militar e a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica, estabelecendo uma provedoria da saúde, para controlar as epidemias, e um corpo especial de guardas, para melhorar a segurança pública. E, além de tudo isso, introduziram a tipografia no Brasil, até então proibida. A vida cultural, então inexistente, floresceu para entreter fidalgos e pessoas de posses. O comércio de todo tipo de produtos teve um crescimento ímpar. Em menos de uma década, para tanto serviço, foram trazidos mais de 200 mil escravos.

    D. João VI soube também agradar às elites cariocas. Fartou-se de distribuir cargos públicos e outras prebendas e também títulos nobiliárquicos. Até 1821, “criou” vinte e oito marqueses, oito condes, dezesseis viscondes e vinte e um barões – um número impressionante, jamais registrado em toda a História da Monarquia Portuguesa –, alguns destes títulos beneficiando pessoas havia muito radicadas em terras brasileiras e, pelo menos, duas nascidas na colônia: Ana Francisca Maciel da Costa, nomeada baronesa de São Salvador de Campos de Goitacases, e José Egídio Álvares de Almeida, nomeado barão de Santo Amaro. Também não foi por um acaso, nem por fanfarronice, que em dezembro de 1815, o Reino de Portugal e dos Algarves passou a incluir o Brasil com similar estatuto. E mais, com o privilégio de ter o rei em seu seio.

    As comunicações terrestres ao longo do Brasil melhoraram extraordinariamente. O Rio de Janeiro tornou-se uma capital nevrálgica, de onde partiam estradas para todas as principais cidades de outras capitanias, como Belém do Pará, numa extensão de mais de 120 léguas, Salvador da Bahia, São Paulo, Vila Rica, Sabará, Vila do Príncipe, Vila Boa de Goiás e tantas outras, tornando-se assim uma alternativa segura e confiável ao transporte marítimo.

    Por outro lado, longe de ser um rei autoritário, D. João VI sempre surpreendeu com sua atitude conciliadora e atenciosa. Mesmo quando aportou pela primeira vez no Brasil, em Salvador da Bahia, chegado de uma longa e acidentada travessia atlântica, recebeu em audiência toda a casta de gente, desde agricultores e negociantes até oficiais e padres, inclusive as pessoas mais humildes. Nem sempre era rápido em se decidir, o que por vezes parecia denotar pouca firmeza; mas, porventura, assim procedia por pensar menos naquilo que era melhor para si mesmo.

    Também nunca mostrou ser um rei atormentado ou traumatizado por ser o primeiro monarca português a se refugiar fora de seus domínios europeus. Pelo contrário, além da decisão imediata à sua chegada ao Rio de Janeiro de invadir a Guiana Francesa[2],

    Partida da Corte Portuguesa para o Brasil,em 1808.

    D. João VI soube aproveitar as fragilidades e dificuldades da Coroa espanhola na gestão das colônias americanas. Por via de seu casamento com uma infanta castelhana, D. Carlota Joaquina, filha do deposto Carlos IV, tentou no início da segunda década do século XIX, através de ações diplomáticas, mescladas de atitudes por vezes intimatórias, que as autoridades coloniais da região do Rio da Prata, na atual Argentina, aceitassem a proteção lusitana. Porém, alguns erros estratégicos, bem como certa rebeldia de D. Carlota Joaquina, gorariam a concretização desse plano.

    Em todo o caso, D. João VI queria mesmo seu quinhão na região meridional. E apostou assim na região onde Portugal até já tivera um pequeno enclave no meio do território espanhol: Sacramento. De fato, desde meados do século XVII, Portugal tentara ocupar a margem esquerda do Rio da Prata por ser uma área de acesso aos rios Uruguai e Paraná. Embora na margem direita já se localizasse a cidade de Buenos Aires, os espanhóis não tinham considerado a ocupação do outro lado prioritária. Mas como pelo Tratado de Tordesilhas aquele pedaço de terra lhe pertenceria, também não queriam portugueses por lá.

    No entanto, quase quatro décadas após a Restauração da Independência, no fim de 1679, o governador da capitania do Rio de Janeiro, Manuel Lobo, foi incumbido de fundar uma fortaleza na margem oposta a Buenos Aires. Na boca do lobo, se assim se pode dizer. Poucos meses após a instalação de um pequeno forte na ilhota de São Gabriel, que deveria constituir o primeiro baluarte para uma posterior ocupação terrestre, o governador de Buenos Aires, José de Garro, enviou um grande contingente naval. Eram centenas de soldados espanhóis auxiliados por três mil índios guaranis.

    Perante o fraco contingente português, assistiu-se a um massacre naquela passagem de 8 para 9 de agosto, tristemente conhecida como Noite Trágica. “Não se dava quartel aos que se rendiam as armas pelos índios […], a nenhum dos quais perdoou a fúria gentílica”, escreveu Manuel Lobo. Morreram 112 portugueses, a que se seguiu o habitual saque, executado, sobretudo, pelos indígenas. “E não foi pouco, pois todos perdemos tudo”, como se lamentou o malfadado governador português, que veio a morrer, poucos anos mais tarde, ainda prisioneiro em Buenos Aires.

    Retrato de D. João VI, pintado por Jean-Baptiste Debret (1817).

    Os desejos lusitanos não amainaram, apesar do vexame. Procuraram então a via diplomática. Em 1681, um tratado provisório entre os dois reinos ibéricos acabaria assim concedendo o direito a Portugal de construir naquela região uma cidadela de terra e madeira, com baluarte, fosso e tudo mais. E assim nasceria a colônia de Sacramento.

    Porém, os acordos de um dia, se desfaziam no outro. Sobretudo a partir de 1699 e até o final de 1716, os espanhóis arrependeram-se da concessão, atacando por diversas vezes o reduto lusitano.

    Com o tratado de Utrecht, Portugal garantiu o direito de permanência naquelas terras, iniciando-se então uma intensa migração de reinóis, sobretudo da província lusitana de Trás-os-Montes. Em 1730 já viviam ali mil famílias portuguesas, dedicando-se principalmente à exploração do gado e ao comércio de couros.

    Em todo o caso, embora tenha tentado, Portugal nunca conseguiu estender seus domínios na região cisplatina. Em 1723, ainda fundaram um povoado na atual cidade de Montevidéu, mas um ataque espanhol acabou com os sonhos expansionistas. Em suma, a colônia do Sacramento se manteria como um enclave, sempre sujeita ao mau humor dos castelhanos. Por exemplo, durante dois anos na década de 30, a cidade foi cercada por causa de um conflito diplomático entre as duas monarquias ibéricas.

    Porém, independentemente destas indisposições, a anarquia reinava mais do que os reis ibéricos na região cisplatina. O contrabando entre as margens do Rio da Prata era intenso, pois as colônias sul-americanas da Espanha estavam proibidas de importar certos produtos da Europa. A situação era aproveitada pelos portugueses para traficarem com comerciantes de Buenos Aires a troco de prata sem precisarem pagar impostos.

    Além disso, os roubos eram constantes. Os jesuítas, que desde o século XVII tinham instalado aldeias naquele trecho, exploravam extensas criações de gado, que, de quando em vez, eram dizimadas por aventureiros para roubar couro e outros produtos animais. Em poucos anos, de acordo com uma reclamação do Padre José de Aguirre, as manadas passaram de quatro milhões de animais para apenas trinta mil. Os padres da Companhia de Jesus ficaram fartos de tanta roubalheira e começaram a dar o troco. Armando os índios guaranis, fizeram diversas incursões e saques em estâncias de muitos aventureiros.

    Através da assinatura do Tratado de Madri, em 1750, a colônia de Sacramento deveria ter sido entregue aos espanhóis em troca das terras de Sete Povos das Missões, mas a subsequente Guerra Guaranítica, e o desinteresse do futuro marquês de Pombal em abrir mão do enclave, fez tudo voltar à estaca zero[3]. Ou, melhor dizendo, o jogo de pingue-pongue continuou. Durante os conflitos da Guerra dos Sete Anos, que extravasou para a Península Ibérica em 1762, a Espanha decidiu, e conseguiu, expulsar os portugueses da Cisplatina, tomando ainda uma parte do Rio Grande do Sul e da ilha de Santa Catarina. Um ano mais tarde, com o Tratado de Paris, a colônia do Sacramento regressou à posse dos portugueses. E, finalmente, em 1777, com novo acordo de paz, neste caso de Ildefonso, os espanhóis ganharam a colônia de Sacramento.

    Partida da Corte Portuguesa para o Brasil,em 1808.

    E era assim que estavam as coisas quando D. João VI chegou ao Brasil. Porém, três anos mais tarde, em 1811, as diversas insurreições na região transplatina obrigaram as autoridades coloniais espanholas a recuar para Montevidéu sob pressão de José Gervasio Artigas, um dos generais das recém-criadas Províncias Unidas do Rio da Prata. No Rio de Janeiro, D. João VI predispôs-se logo a ajudar os castelhanos. Por interesses próprios, diga-se de passagem.

    No trono da Espanha sentava-se então o irmão de Napoleão Bonaparte, e a intenção do regente português não era propriamente auxiliá-lo. Queria sim ganhar adeptos na região para o partido de sua mulher, Carlota Joaquina. Como era irmã do rei deposto espanhol, Fernando VII, pretendia Portugal que ela fosse aceita como tutora da Cisplatina, o que significaria sua integração a Portugal.

    Formalmente, D. João VI não entrou em guerra contra as tropas de Artigas, nem apoiou diretamente o lado castelhano. Sob orientação do recém-nomeado capitão-general da capitania do Rio Grande do Sul, Diogo de Sousa, o contingente português tinha uma denominação eufemística: Exército de Observação, ou também Exército de Pacificação da Banda Oriental. No entanto, desde cedo e desde sempre mostraram atitudes hostis. Constituídos por diversas legiões de militares e de voluntários paulistas e gaúchos – capitaneadas por Manuel Marques de Sousa, Fonseca e Sá, Joaquim Xavier Curado e Mena Barreto –, os portugueses investiram fortemente em colunas ou ataques esporádicos, logo conquistando muitos bastiões dos homens de Artigas.

    Aguarela de Jean-Baptiste Debret retratando as tropas brasileiras que invadiram a Cisplatina em 1816.

    Talvez os portugueses tivessem conseguido, com estas investidas, controlar de imediato toda a Cisplatina, se não surgisse, neste meio tempo, um armistício, assinado em outubro de 1811 entre as autoridades espanholas e as Províncias Unidas do Rio da Prata. De qualquer modo, as tropas lusitanas não mostraram interesse em sair da região. Ao contrário, reforçaram os batalhões, que chegaram a atingir mais de cinco mil homens munidos com quase duzentos canhões.

    Somente em maio de 1812, através do tratado conhecido como Rademaker-Herrera, intermediado pelos ingleses, a trégua seria selada com a nova república revolucionária cisplatina. No entanto, como consequência, D. João VI conseguira integrar para o território brasileiro os atuais municípios gaúchos de Uruguayana, Quaraí, Santana do Livramento, Alegrete e ainda parte de Rosário do Sul e Dom Pedrito.

    Mas a coisa não parou por aí. Quatro anos mais tarde, os tempos já eram outros. Napoleão tombara, os territórios da Península Ibérica tinham se libertado definitivamente do jugo francês, mas D. João VI continuava com ideias expansionistas, aproveitando o desmantelamento do império espanhol. Em 1816, a Espanha já deixara de controlar a Cisplatina, dominada então por Jose Gervasio Artigas, que neste meio tempo entrara em rota de colisão com os outros líderes das Províncias Unidas do Rio da Prata. Em suma, desejava a autonomia completa da margem esquerda do Rio da Prata. Ou seja, a independência.

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    Antes de se tornar independente, o Uruguai esteve integrado no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, por conquista de D. João VI.

    Sabendo das fraquezas de Artigas, D. João VI ordenou ao marechal Carlos Frederico Lecor, comandante da Divisão de Voluntários Reais, um ataque massivo à região cisplatina. Começou por Montevidéu, alargando depois as investidas para todo o território a leste do rio Uruguai. Sem grande dificuldade, as tropas lusitanas tomaram a estratégica fortaleza de Santa Teresa em agosto de 1816, avançando em seguida pela costa até Maldonado.

    As tropas de Artigas também se dirigiram aos tropeços para o interior, deixando os portugueses dominarem toda a região meridional do rio Negro, bem como a margem oriental do rio Uruguai. Em julho de 1821, a Cisplatina foi formalmente integrada no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

    Enfim, tudo parecia estar correndo bem na vida de D. João VI. Para um rei supostamente medroso, em menos de uma década, ele conseguira transformar a geografia e o urbanismo do Brasil e até aumentar seus domínios ao norte e ao sul[4]. Nem parecia que ao seu redor as colônias espanholas entravam em colapso. Durante esse período, tivera de se preocupar apenas com uma insurreição em Pernambuco, no ano de 1817, mas logo abafada ao fim de três meses[5].

    Porém, não há mal que sempre dure, nem bem que não acabe. Durante este tempo, os portugueses europeus fartaram-se de ver seu rei no Rio de Janeiro. Ou melhor dizendo, em uma Europa em convulsão, os portugueses do Velho Mundo – que durante séculos se habituaram a explorar as colônias sul-americanas, africanas e asiáticas – ficaram perplexos ao se sentirem colonos em suas próprias terras. Na Europa, Portugal quase se transformara, depois das invasões napoleônicas, em um protetorado britânico.

    Com efeito, na ausência de D. João VI, o território lusitano passara a ser administrado por um conselho regente que, embora composto por portugueses, estava sujeito ao controle militar do marechal inglês William Carr Beresford. Também por via de acordos comerciais, a Inglaterra dominava os principais negócios, causando um mal-estar geral entre a população.

    Em 1817, a insatisfação teve um lampejo subversivo. Uma conspiração de caráter liberal e maçônica foi aniquilada em Lisboa, levando ao enforcamento de doze envolvidos, incluindo um renomado general. Se esta primeira tentativa de insurreição em Lisboa foi logo cortada, as raízes, no entanto, mantiveram-se fortes e despontariam cerca de três anos mais tarde na cidade do Porto.

    Aproveitando a ausência de Beresford – que se deslocara ao Rio de Janeiro para solicitar reforço de poder ao rei–, um movimento liderado pelos magistrados Manuel Fernandes Tomás e Ferreira Borges desencadeou, em 24 de agosto de 1820, uma revolução apoiada pelo exército, pela nobreza e pelo clero.

    Depondo as autoridades da cidade, criaram uma Junta Provisória do Governo Supremo. Através de um manifesto disseram o que queriam: o retorno imediato de D. João VI a Portugal e a reposição do Brasil ao estatuto de simples colônia. Em setembro daquele ano, Lisboa e todo o país adeririam ao movimento liberal. O marechal Beresford foi impedido de desembarcar, quando regressava do Brasil, e a situação política deixou de estar sob o controle do rei.

    Grito de Ipiranga de D. Pedro I do Brasil. Seria possível sem o papel de D. João VI?

    Apesar disso, esta revolução nunca teve características republicanas nem questionou a soberania de D. João VI; somente cerceava -lhe o poder absoluto – o que, diga-se de passagem, já era muito. Quando comunicaram o Rio de Janeiro sobre suas ações, os líderes do pronunciamento até pediram a bênção do rei “como bom, como benigno e como amante de um povo que o idolatra”.

    Embora as primeiras informações sobre a revolução no Porto tenham chegado ao Brasil em outubro, somente dois meses mais tarde, com a chegada do conde de Palmela ao Rio de Janeiro, a Corte tomou consciência da magnitude daqueles episódios. De fato, ao contrário do que talvez D. João VI poderia pensar, os revolucionários não exigiam apenas seu regresso a Portugal, mas, sobretudo, a realização de Cortes Gerais Extraordinárias para que uma carta constitucional de viés liberal fosse aprovada.

    Em suma, a figura do soberano português passaria a um papel secundário, quer no executivo ou legislativo. Obviamente, uma recusa de D. João VI poderia desencadear uma cisão de consequências imprevisíveis até mesmo no Brasil.

    D. João VI hesitou muito sobre qual direção tomar. Alguns de seus conselheiros, sobretudo Tomás Antônio Portugal, seu primeiro-ministro, advogaram que a família real deveria permanecer no Brasil, independentemente do rumo tomado em território europeu pelos revolucionários.

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    Podia-se perder os anéis – o território europeu –, mas sempre restariam os dedos – ou seja, o Brasil –, repleto de recursos, ainda longe de estarem explorados. A hipótese de ser o infante D. Pedro a atravessar o Atlântico para presidir às Cortes Extraordinárias, e apaziguar os ânimos, começou a ser levantada no fim de janeiro, mas o rei hesitou também em tomar uma decisão.

    Os receios transmitidos pelo conde de Palmela sobre os riscos dos movimentos liberais lusitanos se alastrarem no Brasil foram confirmados com novos acontecimentos. Em 10 de Fevereiro de 1821, em Salvador da Bahia, um grupo liderado pelo médico Cipriano Barata, que contava com diversos militares, exigiu também a limitação dos poderes do rei, propondo uma constituição semelhante à desejada pelas Cortes em Lisboa. E criticavam também a centralização do Rio de Janeiro em relação às outras regiões brasileiras.

    Já com pouca margem de manobra, D. João VI tentou, por fim, convencer o infante D. Pedro a partir, em vez de ir ele mesmo. E não era apenas por apreciar a cidade carioca. Na verdade, com certeza sabia que sua presença no Rio de Janeiro e a de seu herdeiro em Lisboa garantiriam um melhor controle dos acontecimentos. Se já era certo que as Cortes Extraordinárias iriam retirar seu poder absoluto, sempre lhe seria mais fácil, estando no Rio de Janeiro, gerenciar a nova situação política e controlar focos subversivos no Brasil. No limite, caso em Lisboa a corda esticasse, teria ele refletido sobre uma cisão. Ou seja, perderia Portugal, mas permaneceria sendo rei do Brasil. Porém, o infante D. Pedro recusou esta pretensão.

    . D. Miguel, D.João VI e D. Pedro I do Brasil (e IV de Portugal), retratados por Enio Squeff.

    E após mais muitas indecisões, o rei acabou decidindo voltar a Lisboa com toda a família real, exceto o infante D. Pedro, que se manteve no Rio de Janeiro como regente. D. João VI rumou para Portugal em 26 de abril de 1821 em um contexto já explosivo, inclusive na cidade carioca. Quatro dias antes, um grupo de radicais, que participava numa assembleia na praça do comércio da bolsa fluminense, teve de ser repelido a tiros. Na hora da despedida, D. João VI já profetizava o futuro, quando disse ao filho: “Pedro, se o Brasil se separar [de Portugal], antes seja para ti, que me hás-de respeitar, do que para algum desses aventureiros”.

    O rei ancorou em Lisboa cerca de dois meses e meio depois, em 3 julho, juntamente com quatro mil pessoas. Não foi uma chegada triunfal. Embora as ruas da capital estivessem decoradas e três noites de festas com luminárias tivessem sido organizadas, incluindo o habitual beija-mão, o ambiente não se mostrou muito caloroso. Havia muito ressentimento no ar, não apenas pela longa ausência do rei, mas também pelas muitas benesses que concedera aos brasileiros, nos últimos anos, em detrimento dos lusitanos.

    Além disso, com a demora na partida, D. João VI se viu em um caldo político ainda mais desfavorável, porque as Cortes Extraordinárias não esperaram por ele e a Carta Constitucional já tinha sido aprovada. Além disso, as reuniões entre os deputados lusitanos e a centena de representantes brasileiros, que para Lisboa tinham rumado, abriram ainda mais as feridas.

    Pintura de Óscare Pereira da Silva retratando as Cortes Constituintes de 1820 em Portugal.

    Enquanto a facção lusitana exigia a reversão do Brasil à antiga condição de colônia, a ala brasileira reivindicava tratamento igualitário. Sem nenhum espaço para manobra, nem podendo sequer ser árbitro, o rei fora, por mais que estrebuchasse, reduzido à mera figura simbólica. Nada lhe restara além de assinar a Carta Constitucional. Ou assinava, ou era deposto. E assinou, em julho daquele ano.

    A completa subalternização do rei acentuou-se ainda mais nos meses seguintes, chegando ao ponto de a regência do infante D. Pedro no Brasil ter sido retirada pelas Cortes. Exigiram também seu regresso a Lisboa. Começou uma queda de braço nos dois lados do Atlântico. Dando seguimento à assinatura da Carta Constitucional, e para pressionar o infante, seriam reforçados os batalhões militares portugueses de Pernambuco e da Bahia.

    O governador desta última região, bem como o do Maranhão, majoritariamente dominadas por reinóis, passaram a recusar ordens diretas do infante. O descontentamento nas demais regiões do Brasil também aumentou. Por sua vez, D. Pedro, como herdeiro de Portugal, indisposto com a nova realidade em Lisboa, sentia-se cada vez mais humilhado e pouco disposto a acatar ordens.

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    Contudo, apesar de seu espírito aventureiro, irrequieto, voluntarioso e resoluto – muito diferente do pai –, o infante não desejava dar o passo que uma boa parte dos brasileiros já ambicionava: a independência do Brasil. Em setembro de 1821, em uma carta endereçada ao pai, escreveu que os movimentos em prol da emancipação o pressionavam para que aceitasse a aclamação como imperador, mas que jamais aceitaria essa solução. Só “depois de eu e todos os portugueses estarem feitos em postas”, reiterava. Terminava essa missiva com uma garantia: “juro ser sempre fiel a Vossa Majestade e à Nação e à Constituição Portuguesa”.

    Nunca se deve dizer desta água não beberei, porque quando a sede aperta não há força que lhe resista. Porém, se D. Pedro parece ter depois negado o juramento feito à Nação portuguesa e à sua Constituição, ditada por uma Corte rancorosa em relação aos interesses brasileiros, não se pode dizer, por outro lado, que foi infiel ao pai. Pelo contrário. Talvez mais do que o abaixo-assinado de oito mil fluminenses que o levaram, em 10 de janeiro de 1822, a proclamar a célebre frase: “como é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto; diga ao povo que fico”, talvez tenha pesado mais a troca de cartas mantida com D. João VI.

    Com efeito, mesmo tolhido pelos ventos revolucionários, o rei português mostrava uma grande lucidez. Se na hora de sua partida do Rio de Janeiro já pressagiara a independência do Brasil, os meses em Lisboa o convenceram ainda mais de que este seria o caminho, se levado obviamente a cabo por seu filho. No fim de 1821, instigou-o implicitamente a avançar. “Sê hábil e prudente”, escreveu D. João VI ao infante, “pois aqui, nas Cortes, conspiram contra ti, querendo os reacionários que abdiques em favor do teu mano Miguel[6]. Tua mãe é pelo Miguel e eu, que te quero, nada posso fazer contra os carbonários que não te querem”.

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    Depois do Dia do Fico, o rumo em direção à independência avançou de forma imparável. Ainda em janeiro de 1822, ignorando um ultimato das Cortes, D. Pedro nomeou novos ministros para a regência, dentre eles, José Bonifácio de Andrada e Silva, que se tornaria um de seus mais influentes conselheiros. No mês seguinte, responsabilizando as tropas portuguesas pela morte de seu filho João Carlos Pedro[7], liderou pessoalmente um cerco ao batalhão do general português Jorge Avilez, acampado na região de Niterói, conseguindo sua expulsão.

    A partir de então, ordenou que qualquer ordem vinda de Lisboa somente fosse distribuída no Rio de Janeiro após sua concordância. Exigiu também que todos os governos ou juntas das outras regiões brasileiras lhe obedecessem. Por fim, criou um Conselho de Procuradores, uma espécie de assembleia constituinte. Sobre todos os detalhes, D. Pedro informou D. João VI em carta particular, não como um regente para um rei, mas de filho para pai.

    A independência já estava, então, na fase embrionária, embora ainda não declarada. D. Pedro decidiu primeiro viajar para Minas Gerais e para São Paulo com o objetivo de reconfirmar apoios e sentir o que pensava o povo. Em setembro daquele ano, nas imediações de São Paulo, perto do riacho do Ipiranga, recebeu vasta correspondência das Cortes de Lisboa, em tons ainda mais ameaçadores. E também uma carta anexa de Andrada e Silva que lhe dizia: “Senhor, o dado está lançado e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores. Venha Vossa Alteza Real [até o Rio de Janeiro] e decida-se.” Não foi; decidiu logo ali, naquela tarde do dia 7 de setembro de 1822, proferindo o célebre Grito do Ipiranga: “Independência ou Morte”. O Brasil estava independente.

    Primeira bandeira do Brasil após a independência em 1822.

    A adesão das diversas regiões à aclamação de D. Pedro como primeiro imperador do Brasil não foi imediata; pelo contrário. Na Bahia, um forte contingente português, liderado por Madeira de Melo, já desde março de 1822 dominava a capitania. E bateu o pé diante do Grito de Ipiranga. Foi osso duro de roer. Com um número reduzido de tropas fiéis à nova nação, pois os batalhões militares estacionados no Brasil eram, sobretudo, provenientes de Portugal, D. Pedro viu-se obrigado a contratar mercenários. Grande parte veio da Inglaterra, como Thomas Cochrane, famoso por suas ousadas campanhas navais.

    Conhecido como “o Lobo dos Mares”, foi logo nomeado primeiro-almirante do Brasil, desempenhando um papel vital na organização dos combates que levariam, em 2 de julho de 1823, à difícil renúncia de Madeira de Melo. Pouco meses antes, a resistência à integração do Pará, Maranhão e Piauí também tinha sido aniquilada, por vezes de forma sangrenta. O mesmo se passou na Cisplatina. Depois de alguns confrontos, D. Pedro acabou sendo aclamado em Montevidéu no início de 1824.

    Mais problemática se mostrou a região pernambucana. Historicamente imbuídas de espírito autonomista, como se vira recentemente em 1817, as elites não se mostraram predispostas a aderir a qualquer um dos lados; nem a Portugal nem ao Brasil. Muitos idealizaram sua emancipação, dentro do contexto de certa anarquia, mas com um viés republicano. Assim, tendo como mentor o carmelita Joaquim da Silva Rabelo, popularmente conhecido como Frei Caneca, arquitetaram a criação da Confederação do Equador. Proclamada em 2 de julho de 1824, a nova nação foi subjugada poucos meses depois.

    Mapa do Brasil publicado em 1849.

    Consolidada a independência do Brasil, faltava o seu reconhecimento. Os Estados Unidos foram o primeiro país a fazê-lo, logo em maio de 1824. Porém, as diversas nações mundiais aguardaram por mais desenvolvimentos que clarificassem a estranha gênese desta emancipação. Afinal, apesar da Constituição do Brasil impedir seu imperador de governar outro país, para todos os efeitos D. João VI mantinha D. Pedro I como seu herdeiro em Portugal; e D. Pedro não renegara ainda esse estatuto.

    A Inglaterra, desejando estreitar relações comerciais com o Brasil, predispôs-se então a mediar uma solução diplomática, enviando o embaixador Charles Smith ao Rio de Janeiro. A proposta britânica inicial, articulada em segredo com Portugal, passava por um reconhecimento imediato desde que a independência fosse assumida como uma “doação” do rei D. João VI ao seu filho. Em uma primeira fase, D. Pedro negou essa solução de forma categórica. Contudo, a habilidade britânica acabou conseguindo um acordo que, na verdade, se mostrou extremamente desvantajoso para o Brasil, embora favorável ao seu imperador.

    De fato, nas negociações, além do reconhecimento simultâneo da independência brasileira por Portugal e Inglaterra, D. João VI aceitou que o herdeiro ao trono lusitano passasse a ser sua neta, a infanta Maria, filha do imperador D. Pedro I, que então tinha apenas seis anos[8]. Porém, em troca destas concessões, o Brasil obrigou-se a pagar uma indenização de dois milhões de libras esterlinas – obtidas por um empréstimo bancário inglês –, além de outorgar benefícios especiais ao comércio britânico. Para evitar qualquer integração de outras colônias portuguesas, nomeadamente africanas – a principal “fonte” de escravos –, o Brasil também se comprometeu a não ter uma política expansionista contra Portugal.

    Imperador Pedro II e família, segundo monarca do Brasil, desde 1840 até 1889.

    Depois disso, com um mau ou péssimo acordo, o Brasil iniciou finalmente sua viagem pelo tempo como país independente. Não sem sobressaltos, pois teve muitos, mas conseguindo manter quase imaculadas suas fronteiras do tempo colonial. De fato, com exceção da perda da Cisplatina, que originaria o Uruguai em 1828 – por via de uma negociação intermediada pelos ingleses –, da incorporação do Acre – “adquirido” da Bolívia no início do século XX – e de pequenos acertos diplomáticos com os países vizinhos, o Brasil permanece ainda hoje unido e federalista, como D. João VI e D. Pedro I o idealizaram[9].

    E, claro, somando, como todos os países, e já sem poder culpar os antigos colonizadores, infinitos conflitos e insurreições, carnificinas e selvagerias, despotismos e ditaduras, injustiças e perversões.

    Mas relatar com pormenor esses sempre trágicos episódios ficará para outros carnavais, e por conta de outros escribas. Um português se meter com a História do Brasil colonial, até que tudo bem; agora, na História do Brasil independente, já seria meter o bedelho onde não se foi chamado. Ou, como se diria em terras lusitanas, meter foice em seara alheia.


    [1] – Antes da invasão a Portugal, Napoleão e o rei Carlos IV da Espanha “decidiram” a divisão do território lusitano: a província de Entre Douro e Minho, incluindo a cidade do Porto, destinava-se a Carlos Luís, neto do rei espanhol (como compensação pela anexação do efêmero reino da Etrúria, que tinha Florença como capital), sob a denominação de Lusitânia Setentrional; o Alentejo e Algarve ficariam nas mãos de Manuel Godoy, duque de Alcudia e primeiro-ministro espanhol, sob a denominação de Principado dos Algarves; e a restante região seria depois distribuída entre a França e a Espanha. Ficou também estabelecido que estas duas nações decidiriam posteriormente a “igual divisão das ilhas, colônias e outras possessões ultramarinas de Portugal”.

    [2] – Ver o capítulo “A vingança servida quente” (pág. XXX).

    [3] – Ver o capítulo “Um acordo para um real pesadelo” (pág. XXX).

    [4] – A Guiana Francesa, conquistada logo em 1808, veio, contudo, a ser devolvida aos franceses, depois da queda de Napoleão. Ver o capítulo “A vingança servida quente” (pág. XXX).

    [5] – Ver o capítulo “A república tingida de sangue” (pág. XXX).

    [6] – D. Miguel, terceiro filho de D. João VI e D. Carlota Joaquina, viria a participar ativamente em dois movimentos contrarrevolucionários em Portugal para o estabelecimento do regime absolutista em 1823 (Vilafrancada) e no ano seguinte (Abrilada). Ele chegou a tentar obrigar o pai a abdicar. Foi exilado em Viena, regressando em 1828 para se casar com sua sobrinha, D. Maria II, filha de D. Pedro I do Brasil, e se impôs em seguida como rei absoluto de Portugal. Como resultado, uma guerra civil eclodiu, perdurando até 1834 com a recondução ao trono de D. Maria II. Para este desfecho a participação do imperador D. Pedro I, que voltou a Portugal após abdicar do trono brasileiro em 1831, foi essencial.

    [7] – Após o Dia do Fico, as hostilidades com as tropas fiéis a Portugal só aumentaram, obrigando o infante D. Pedro a enviar sua família para Santa Cruz. Durante a viagem, seu pequeno filho, ainda com menos de um ano de idade, adoeceu gravemente e acabou morrendo. O infante escreveria, mais tarde, ao rei D. João VI que foi “a divisão auxiliar [o batalhão português no Rio de Janeiro] que assassinou o príncipe, o neto de Vossa Majestade”.

    [8] – A infanta D. Maria, que se tornou a rainha D. Maria II, nascera e vivia então no Rio de Janeiro. Apenas partiu para Portugal após a morte do rei D. João VI em março de 1826. Por razões estranhas, D. Pedro I do Brasil concordou com o casamento da filha com seu irmão D. Miguel, que se encontrava exilado em Viena. Uma péssima decisão – como muitas outras que D. Pedro I haveria de tomar até abdicar do trono brasileiro –, porque D. Miguel, apesar de ser apenas um rei consorte, usurparia o trono português, desencadeando uma guerra civil.

    [10] – Além de conflitos armados com outras nações e insurreições políticas, o Brasil assistiu ao longo do século XIX a alguns movimentos separatistas, que resultaram em estados efêmeros, nomeadamente no Rio Grande do Sul (República Rio-Grandense, 1836-1846), Salvador (República Bahiana, 1837-1838), e Santa Catarina (República Juliana, durante menos de quatro meses em 1839).