Categoria: Opinião

  • A caminho do Árctico: dia 2, em Svalbard, a cidade do fim do Mundo

    A caminho do Árctico: dia 2, em Svalbard, a cidade do fim do Mundo

    A paisagem é bela, como esperava. Parece que estamos em outro planeta. A chegada ao Árctico emocionou-me. E este segundo dia da viagem, que me levou a um dos meus destinos de sonho, terminou com um avistamento inesperado.


    Duas horas de voo separam Oslo e Tromsø – a capital das Auroras Boreais. O meu voo partia muito cedo e encontrei um aeroporto com um pouco mais de movimento do que no dia em que aterrei na capital norueguesa – Oslo – vinda de Lisboa. Uma distração minha na ida para a porta de embarque, “desviou-me” para uma loja de brinquedos e recordações. A compra de última hora de um urso polar ‘Papá’ para o meu filho quase me custou o voo. Ainda consegui embarcar – depois de ouvir a última chamada para os passageiros atrasados para o embarque.

    Nesta altura do ano nunca fica escuro em Tromsø. Ao sair do avião temos de para mostrar o passaporte. (Para entrar na Noruega o cartão de cidadão é suficiente mas para entrar em Svalbard é preciso ter o passaporte com a habitual validade de seis meses). Pedi ao agente se era possível juntar um carimbo à coleção que já tenho no passaporte. Riu-se: “vou ver o que posso fazer desde que não o venda”.

    Embarquei então para mais duas horas de voo para o meu destino final. Quando o comandante anunciou a descida para a aterragem, olhei pela janela e vi Árctico e Svalbard. Não contive uma lágrima perante a beleza da paisagem dramática do Árctico. Senti que tinha chegado a outro planeta.

    Svalbard, é a cidade do “fim do Mundo”. Depois daqui, não há mais nada a não ser glaciares e gelo. Aqui acaba a civilização (e é também onde talvez um dia possa recomeçar, mas sobre isto falarei no dia em que visitarei o Banco de Sementes Global).

    Na chegada ao aeroporto, somos “recebidos” por um “urso polar”, o símbolo do Árctico (o que considerei ser um sinal auspicioso para o meu sonho maior de ver ursos polares no seu habitat – irei precisar de muita sorte para que aconteça).

    Um autocarro leva os passageiros ao centro onde estão os alojamentos. Na minha Guest House (número 102), o dormitório é compartilhado por quatro pessoas. A minha única experiência do género foi, por engano, no Vietname, onde éramos 12. Não é o ideal, mas é a opção mais económica para quem viaja sozinho. As pessoas que optam por este tipo de estadia são muito simpáticas, civilizadas, e de todas as idades. Conheci o Peter, um sexagenário holandês, o Mike, um americano na casa dos trinta, e a Martha, de Israel, que é um pouco mais velha do que eu.

    Depois de me acomodar, era só aguardar pelo guia que me iria levar na primeira tour. Na sala de espera, havia café, chá e chocolate à discrição. Do lado de fora das janelas, o que se vê é uma paisagem bonita: montanhas e, na base, casas de madeira coloridas.

    Chegou o Nick, um holandês a viver em Svalbard há pouco mais de três anos. Seria o guia da tour de trenó puxado por cães. Comigo iriam também um casal holandês e os seus dois filhos e um casal de americanos que visitam Svalbard pela terceira vez. (Fiquei feliz por não ser a única a repetir viagens para os lugares de que gosto).

    O grupo participou na colocação dos cães no trenó, que pareciam estar contentes. Aparentemente, gostam do passeio (sabem que vão ter três paragens para comida e bebida).

    A paisagem é surrealista e as cores de outro mundo. Com o Ártico a perder de vista, senti a energia especial do Grande Norte.

    Depois de uma hora ao longo da costa, entre deserto e lagoas, fomos conhecer o complexo onde vivem os cães. É grande e cuidado. Todos os cães têm nome e estão sempre prontos para os passeios. Há um abrigo de madeira, uma pequena casa muito quentinha, onde comemos waffles acompanhado por um chocolate quente. Tudo o que precisava para me ajudar a habituar aos três graus de temperatura.

    A conversa debruçou-se sobre a vida em Svalbard, sobretudo no Inverno, a altura mais difícil, pois é noite 24 horas por dia, durante seis meses. Os guias dormem metade do tempo na cidade, metade no complexo dos cães. Há também duas famílias com crianças e o complexo tem um parque infantil. Mas não têm água para banhos. Têm uma parceria com um ginásio onde tomam banho. (Imagino os Invernos e a preguiça de saírem de casa para ir tomar banho).

    Vivem em Svalbard pessoas de 64 nacionalidades, por isso, parece de todos e de ninguém. Talvez seja um dos encantos para quem escolhe viver neste lugar remoto.

    De regresso aos alojamentos, optei por jantar uns noodles na Guest House. Liguei ao meu filho e mostrei-lhe o vídeo do passeio de trenó: “mamã, também quero andar com os cães”.

    Um hóspede correu até à sala e perguntou: “queres ver uma raposa do Árctico?”. Da janela do seu quarto avistava-se o animal, que já tinha mudado o pelo para o Inverno. Descia a montanha curioso.

    O tempo voo e era altura de repor as energias. Esperava-me um longo dia com muita aventura e alguns desafios.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • Um editorial que não deveria ter de existir

    Um editorial que não deveria ter de existir


    Hoje, pelas 19:30 horas, o PÁGINA UM publicará uma entrevista em exclusivo a Rui Fonseca e Castro, actual advogado e antigo juiz (expulso por decisão unânime do Conselho Superior da Magistratura), conduzida pelo jornalista Nuno André.

    Anunciar-se esta entrevista com antecipação não é acto que, num ambiente normal e num país de liberdade de expressão, devesse ocupar o espaço de um editorial, mesmo se estivesse em causa entrevistar quer o mais santo ser humano à face da Terra quer o mais facinoroso humanóide.

    Rui Fonseca e Castro

    Numa situação normal, um qualquer órgão de comunicação social publica as notícias dentro das suas capacidades e linha editorial, e sobretudo apresenta as entrevistas a pessoas que aceitam ser entrevistadas e que considera relevantes para os seus leitores.

    Até há algum tempo, existia um claro entendimento que uma entrevista ou um artigo de opinião de um colunista não emparelhava um órgão de comunicação social, embora até fosse aceitável, e por vezes assumido do ponto de vista editorial, uma influência ideológica.

    Isso mudou desde a pandemia. E prolongou-se com a guerra da Ucrânia.

    Hoje, o politicamente correcto, o wokismo, o jornalismo missionário – aquele tipo onde o pivot de um telejornal se vê no direito de dar raspanetes aos espectadores e de censurar hipotéticos comportamentos – inundaram a imprensa. Segue-se uma narrativa, cria-se um unanimismo, nada se faz que possa sequer abalar os alicerces das “convicções” jornalísticas. Não se arrisca, não se colocam geralmente ideias em confronto, e nas raras vezes que sucede é para meter uma das parte no pelourinho. Secam-se opiniões discordantes. Os resistentes são apelidados de extremistas, porque se eliminou pela ameaça e o medo as vozes moderadas e razoáveis. O resistentes moderados são ostracizados, perseguidos.

    three newspapers

    O PÁGINA UM sofreu – embora ripostando sempre – desde o seu nascimento com este novo estilo de “fazer informação”.

    Esse labéu que nos tentaram colar – e que advém, em grande medida, das minhas posições desde 2020 – não tem, neste “novo mundo” da informação qualquer antídoto. Os ataques sobre o PÁGINA UM da própria Comissão da Carteira Profissional de Jornalistas são um exemplo paradigmático. A falta de solidariedade da classe contra os ataques da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, idem.

    Os rótulos são, aliás, confortáveis para quem os coloca, porque não precisam de ser justificados. Colam-se e já está. O PÁGINA UM sabe disso. E o PÁGINA UM também sabe que continuará a ser – apesar das acusações explícitas e implícitas, na praça pública ou nos bastidores; e apesar da sua (ainda) pequena dimensão – o único órgão de comunicação social a pressionar o Ministério da Saúde e as entidades por si tuteladas a divulgarem informação sobre a pandemia e o estado caótico do SNS, e as promiscuidades de certos médicos com as farmacêuticas.

    Rui Fonseca e Castro entrevistado pelo jornalista Nuno André

    Tem sido o PÁGINA UM o paladino da luta por uma maior transparência da Administração Pública, desde o Conselho Superior da Magistratura até ao Banco de Portugal, passando pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Mas, apesar de tudo, o labéu mantém-se e manter-se-á. O sectarismo enraizou-se na sociedade, ainda mais na comunicação social. E não tenho, como director do PÁGINA UM, quaisquer dúvidas de que a entrevista que hoje publicaremos de Rui Fonseca e Castro constituirá, para os detractores do jornalismo independente, mais uma “prova indelével” para justificar rótulos.

    Por isso, de pouco valerá dizer que, pessoalmente, há muitas mais coisas que me afastam de Rui Fonseca e Castro do que aquelas que me aproximam, mas isso não é relevante. Relevante sim é ler (ou ver) a entrevista.

    Na verdade, este editorial nem deveria existir.

  • A caminho do Árctico: dia 1, em Oslo

    A caminho do Árctico: dia 1, em Oslo

    Prestes a conhecer um dos meus destinos de sonho, partilho, neste ‘Diário de Bordo’, os passos de uma viagem até ao Árctico. A primeira paragem é Oslo, onde a temperatura amena, de 23 graus, convida a um passeio de bicicleta pela capital norueguesa.


    É a verdadeira realização de um sonho. De mochila às costas, parto para uma viagem para o Árctico. As expetativas são muitas. O entusiasmo também.

    Desta vez, viajo sozinha. Como sempre faço, também esta viagem foi planeada por mim, ao pormenor, num itinerário que começa em Lisboa e que tem como primeira paragem Oslo, capital da Noruega e estrela das minhas primeiras linhas escritas neste Diário de Bordo, para o PÁGINA UM. É o começo de uma viagem de seis dias, que terminará em Helsínquia, na Finlândia.

    Assim que cheguei ao aeroporto Oslo Gardermoen, senti que tinha acabado de fazer uma viagem no tempo, para uma cidade no futuro.  A capital da Noruega é uma cidade moderna, famosa pela sua arquitetura. A maior cidade do país – sendo seguida por Bergen -, Oslo é uma cidade que nos fascina.

    Tudo funciona bem: o comboio, o metro, o elétrico, os autocarros. Os noruegueses são simpáticos e prestáveis. Respiro civilização.  

    Já no comboio, não consigo deixar de notar, o que há muito já sabia. Não há uma máscara, não há restrições covid. O tema não é assunto (e nunca assumiu, nem de longe nem de perto, as gigantescas proporções que assumiu em Portugal). Em todo o dia, apenas vi uma família de máscara (e quando começaram a falar, eram portugueses) e, no final do dia, vi um grupo de chineses, também de máscara. (Fiquei a pensar o que teremos em comum com os chineses! Nem franceses, nem espanhóis, nem italianos! Portugueses e Asiáticos de máscara. Porque será?)

    Saí do comboio na Estação do Teatro Nacional, onde aluguei um espaço no interior de um restaurante, para deixar a mochila e o meu casaco de Inverno. Dali, segui para o Porto e vi o bairro de Aker Brygge e os Fiordes de Oslo. Segui numa caminhada de 20 minutos até ao ponto de partida para a minha ‘Oslo Viking Biking’, que prometia passar pelos principais pontos da cidade que já tinha visitado na minha primeira visita à Noruega. É uma forma diferente de revisitar estes lugares. 

    Habitualmente, reservo tudo mas, como não tinha certeza se o avião chegaria a tempo a Oslo, optei por não reservar e, se tivesse tempo, arriscaria o passeio de bicicleta. Arrisquei e, quando cheguei, a tour estava completa; Mas devo ter feito uma cara de desiludida porque o rapaz disse para aguardar: “às vezes falta alguém e, se assim for podes vir”.

    Passaram 10 minutos do horário e faltavam duas pessoas. Fui ao escritório pagar e, quando saiu o talão do terminal de pagamentos, chegaram as duas pessoas. Fui literalmente salva pelo “Multibanco”, porque, depois de ter pago, deixaram-me seguir com um dos grupos. Tive muita sorte! 

    Rebeca era nossa líder da tour. Não deve ter mais de 30 anos, é consultora legal e aos sábados tem este part-time. “É uma forma de fazer exercício, ganhar mais algum dinheiro e conhecer pessoas”. Lembrei-me de uma época em que trabalhava a tempo inteiro e tive também um part-time ao sábado mas, em Portugal, é muito raro. Há uma cultura em que parece que as pessoas têm vergonha de trabalhar em áreas fora das suas habilitações académicas. Há uma preocupação com as aparências e, muitas vezes, um ciclo vicioso que não nos deixa viver em pleno e sermos nós próprios. 

    A Noruega é um país muito rico: o seu Produto Interno Bruto per capita é duas vezes o do Japão e duas vezes o de França. Mas, ao mesmo tempo, no essencial, os noruegueses são pessoas simples e levam muito a sério o lema “ninguém é melhor do que ninguém”. Ao nível dos costumes, ao contrário de alguns países, aqui as pessoas não se diferenciam pela maneira como se vestem. A Noruega é também um país que lidera em termos de igualdade de género, entre homens e mulheres. 

    Começamos a tour pela fortaleza e castelo, onde ficam o Ministério da Defesa e o Museu da Defesa. Muitos casais casam e também a tradição do casamento é muito diferente da Europa do Sul. As noivas vestem-se a rigor, os convidados vestem os trajes tradicionais da Noruega (que são lindos) e, ao contrário de Portugal, os convidados são apenas os pais, padrinhos, família próxima e seis amigos de cada lado. O casamento é um momento caloroso e desmistifica a ideia que os nórdicos são frios. 

    Da fortaleza, seguimos para o Palácio Real, passeamos pelos seus jardins e, no caminho, passámos pelo Grand Hotel de Oslo, o Teatro Nacional e o centro histórico.

    Visitar a Noruega no Verão é maravilhoso. Além de encontrarmos dias solarengos e bonitos, vemos todos os jardins em flor, o que faz com que a cidade tenha ainda mais encanto. Nada de flores secas, nem de um calor abrasador, apenas o habitual Verão norueguês, com 23 graus. 

    A paragem seguinte foi o Parque Vigeland, onde encontramos o maior museu aberto de esculturas do artista norueguês Gustav Vigeland, As suas esculturas mostram os vários momentos da vida e, em particular, da paternidade (talvez em jeito autobiográfico, digo eu).

    Tive ainda tempo de provar um gelado norueguês com brownies e caramelo para retemperar energias. 
    O café do parque também é muito bonito, com uma grande esplanada, e um ponto de encontro de famílias e amigos neste lugar único no mundo. 

    O regresso ao ponto de partida levou-nos pelas zonas nobres residenciais, com os seus bistros e cafés, e por Aker Brygge.

    Segui depois a pé até à Ópera e ao Museu Munch, e confirmei que os nórdicos aproveitam qualquer local junto à água para fazer praia. Há ali também plataformas e barcos, que grupos de amigos alugam, com bebidas, e de onde dão mergulhos para o mar.

    Fui procurar o terminal de autocarros, para apanhar o 34, para me levar até Damstredet, uma zona pitoresca, onde ainda se podem ver as típicas e antigas casas norueguesas. 


    Não foi fácil encontrar a paragem. Já sentada no autocarro, fechei os olhos. O motorista árabe ouvia as orações. Naqueles instantes, senti-me a ser transportada para a Turquia ou um qualquer país muçulmano.

    Cheguei à minha paragem e segui em direção a Damstredet, que corresponde às expectativas. Casas coloridas muito bonitas, numa zona tranquila de Oslo, com espaços verdes e um cemitério que entra para o top dos cemitérios mais bonitos que visitei (não estava no programa, mas deixo sempre espaço para o inesperado), depois do cemitério americano na Normandia, que considero ser o mais bonito. 

    Voltei a pé para o centro, mas antes parei para um aperol (um aperitivo italiano) na Vulkan, a área hipster de Oslo. Trata-se de uma zona residencial em forma de vulcão, com muitos restaurantes e bares. 


    O caminho até ao Teatro Nacional demorou 30 minutos. Em cena, está “Hamlet”, de Shakespeare, em inglês, com atores noruegueses. 

    Antes, jantei no lindo Café do Teatro. Estava lotado (pensámos todos o mesmo: jantar antes do teatro). Muitos casais, uma mesa de amigas, algumas de amigos mais velhos. Como estava sozinha, jantei ao balcão. Gosto muito da cozinha norueguesa, mas, o melhor de tudo foi ter estes minutos a imaginar como seria a vida daquelas pessoas que, como eu, iam ver “Hamlet” no Teatro Nacional.

    Saindo do teatro, são apenas 2 minutos até onde deixei a mochila – um restaurante de turcos. Os empregados eram os mesmos que encontrei de manhã. Comentei que trabalham muito, ao que me respondeu o dono: “10 ou 12 horas mas se fosse na Turquia seriam 16 horas”. 

    Segui para a estação, onde apanhei o comboio de regresso ao aeroporto junto ao qual se situa o meu hotel. Amanhã, a viagem para o Ártico começa cedo e assim já estou ao lado do aeroporto. 

    Sentada no comboio, doíam-se as pernas e um pouco os ombros e as costas. Um dia, ganharei coragem para revisitar os mesmos locais no longo Inverno, pois, neste Verão que não acaba, tudo parece fácil e certo. 

    O dia termina com uma chamada para o meu filho que, em casa, espera que lhe leve um ursinho polar. Vou dar o meu melhor, que é o mais importante. O “saldo” da viagem, esse já é positivo. Agora, é só viver o momento, guardar as memórias, as imagens, paisagens e os lugares… 

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.


    Dicas:

    A melhor altura para se viajar para a Noruega é entre Junho a Agosto. Em Junho, podem ver-se as noites brancas (nunca fica de noite). 

    Para quem procura assistir às auroras boreais, terá de viajar em Novembro ou Fevereiro. O ideal é comprar a viagem mais em cima da hora e verificar no site Northern Lights in Norway quando é boa altura para ir. Isto, para aventureiros last minute. A aplicação também tem os melhores lugares para ver as auroras boreais, se bem que Tromsø é a “capital” das “luzes do Norte”.

  • O t(r)emido legado da Marta

    O t(r)emido legado da Marta


    A demissão de Marta Temido tem vários ângulos de discussão e substitui, na prioridade da informação nacional, os directos das filas para compra de bilhetes para os Coldplay. Só por aí já ficámos a ganhar, e voltámos assim às discussões que interessam.

    É impossível, num texto só, abordar tudo o que já foi dito sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a demissão da senhora e o seu (e o nosso) futuro, e como tal, tentarei dividir a minha opinião por “zonas de reacção”. Não sendo propriamente um ás na arte da síntese, tentarei, ainda assim, não aborrecer o leitor.

    Marta Temido, ao centro.

    A ponta do iceberg

    Marta Temido decidiu sair depois de mais um escândalo no SNS. Sim, escândalo. Quando uma grávida morre numa ambulância estamos a caminhar a passos largos para o Terceiro Mundo. Quando uma mulher grávida é transferida, com um quadro clínico complicado, por falta de incubadoras no maior hospital do país, estamos a assistir à falência do sistema.

    A conferência de imprensa dada hoje pelos clínicos do Santa Maria, apesar das boas intenções, foi um tiro nos pés. Dizer que a mulher era estrangeira, que não se expressava em inglês ou português, e que não tinha sido admitida no hospital (mas que simplesmente aparecera lá), são argumentos absolutamente infelizes.

    Um ser humano aparece na urgência do maior hospital de um país que há 35 anos faz parte da zona mais civilizada do planeta, e até pode ser muda e paralítica… atende-se logo e não se pode mandá-la para outro lado porque há falta disto ou daquilo. É simples. Ou seria, se o SNS não andasse a ser desmantelado há anos. A culpa não é, obviamente, dos médicos, que fazem milagres com o que vai sobrando.

    photo of iceberg

    A reacção de Marta Temido

    A morte da mulher de origem indiana, grávida e de férias em Portugal, terá sido a gota de água que explica, publicamente, o caos que todos sabemos existir no SNS.

    A ministra não será certamente a única culpada, mas é a cabeça que tem de rolar. A falta de pessoal de Obstetrícia, que marcou o Verão, foi outro dos problemas que Temido carregava há alguns meses. Tal como os dois anos de pandemia em que o SNS ficou absolutamente sobrecarregado, por decisões políticas erradas, passando as demais doenças para segundo plano.

    O Governo português tomava as decisões com base numa equipa de especialistas (onde andarão eles agora?) e os hospitais privados, não sei se se lembram, decidiram ficar de fora do esforço nacional, a não ser que 13.000 euros por doente lhes fossem doados. Marta Temido foi, apesar de tudo, uma cara que tentou defender o SNS, mesmo se, aqui e ali, tenha cometido umas gaffes, como a famosa resiliência.

    Acho que foi vítima de alguma ingenuidade, e não me parece que seja a maior responsável na catástrofe em que se tornou o SNS, onde a maior parte das decisões que contam são tomadas no Ministério das Finanças. Marta Temido é a cara da política que nos trouxe aqui, não é a responsável principal.

    pregnant woman holding her tummy during daytime

    A reacção da Oposição

    A Oposição precisava desta demissão como de pão para a boca. A frase que mais ouvi foi “demite-se tarde” – e, por acaso, concordo. Por razões diferentes, mas concordo. Marta Temido devia ter batido com a porta mais cedo, mostrando que não legitimava as políticas do governo para o SNS, que, como alguma esquerda disse, “assistia passivamente ao desmantelamento do SNS”.

    Entre as diferentes tipologias de declarações do dia que ouvi, uma pareceu-me mais perigosa:  a ânsia de saber quem seria o substituto de Marta Temido e se estaria preparado para mudar radicalmente o SNS.

    E o que será mudar radicalmente o SNS? Será perceber que os “tempos são outros”, e que a Medicina mudou, e que os privados passaram a investir na Saúde de uma forma que não deixaria nada como era há 40 anos.

    Ou seja, para alguma Oposição de direita, o próximo ministro deve reconhecer que o SNS deve fornecer serviços básicos de Saúde, especialmente aos mais desfavorecidos, e deixar que os privados tomem o seu lugar e complementem a oferta do SNS. Traduzindo para português corrente: cartões de seguro para toda a gente e SNS apenas para passar receitas de aspirinas.

    Partidos como o Chega benzeram-se com esta crise, porque deixaram de falar nas sessões de pugilismo internas e aproveitaram para pedir a demissão de António Costa, também.

    O PSD, responsável pelo início desta caminhada no SNS, também culpa Marta Temido pelo caos no SNS e espera que o Governo encontre um ministro que seja fã das parcerias público-privadas (PPPs) da saúde.

    Já à esquerda, Bloco de Esquerda e PCP, dizem que é tempo de voltar a investir a sério e fixar médicos no SNS.

    Notei que foi pedida também uma reacção a Nuno Melo (CDS). Confesso que não percebi porquê.

    A reacção dos profissionais

    Entre as várias que passaram nos três canais informativos, destaco uma que me pareceu mais assertiva.

    Dizia uma profissional, com mais de 40 anos de experiência, que a debandada no SNS começou nos tempos da troika. Este parece-me um dado importante. Não é que não seja óbvio, mas é bom lembrar que a pandemia só mascarou um problema que já vinha de trás.

    Explicava esta profissional que os médicos que começaram a sair nessa altura (para fora do país ou para os privados) são a geração que hoje estaria nos 40/50 anos sendo que essa é a fatia que mais falta no SNS.

    Ou seja, há muitos jovens (no internato) e muitos médicos em fim de carreira. Faltam aqueles que, hoje, fariam a geração de transição. E esse é que é o cerne da questão.

    O SNS está preso por arames há muito e a culpa não é de Marta Temido. É de todos os governos que decidiram meter dinheiro em estradas, no BES, nas exigências para lá da troika, nos esforços de guerra, nas PPP’s e em todos os arranjinhos que, neste país, fazem de sorvedouro de dinheiros públicos. Tal como os professores, os médicos e enfermeiros andam a ver a degradação das suas carreiras há mais de uma década.

    Quando os liberais usam frases-chavão, e afirmam que não podemos despejar dinheiro no SNS porque o problema é de gestão, o que eles verdadeiramente querem dizer é que não podemos despejar dinheiro no SNS porque devemos fazê-lo na direcção dos grupos privados de saúde.

    Claro que o problema é de investimento. Os profissionais não abandonam o SNS se tiverem boas condições de trabalho. Não são diferentes de qualquer um de nós.

    man in white thobe standing

    A reacção da sociedade civil

    Quando todos os dias nos queixamos nas redes sociais, ao vizinho do lado ou no trabalho, sobre os problemas que enfrentamos no SNS, especialmente com as filas de espera, temos a inquestionável habilidade de nos esquecermos que, há pouco mais de um ano, andávamos a bater palmas aos médicos nas varandas e a agradecer por estarmos todos em casa a ignorar 99,9% das doenças do mundo.

    Ora, essa decisão governamental, apoiada pela maioria da população (bem sei que hoje já se esqueceram, mas há que aguentar), não só sobrecarregou os profissionais naquele momento como, os repetidos adiamentos, deslocaram a sobrecarga para outras especialidades mais à frente no tempo.

    Em parte, é isso que todos estamos a viver hoje: o ruir da última parede do edifício do SNS. Contudo, enquanto milhões de pessoas saudáveis ficavam em casa e pessoas doentes (sem covid) não eram assistidas, (quase) todos achávamos que seguíamos no caminho para ficar tudo bem.

    O dinheiro que aí se gastou, nomeadamente com o pagamento de layoffs e no trabalho extraordinário dos médicos, daria, provavelmente, para reforçar em permanência os quadros do SNS.

    A Suécia – ainda se lembram do país que “matava velhinhos” – não seguiu a política da maioria (Portugal incluído), não esgotou o seu SNS, não esbanjou dinheiro para que pessoas saudáveis ficassem em casa. Era possível ter feito diferente.

    timelapse photo of people passing the street

    Conclusão

    Marta Temido fará as parangonas de hoje e amanhã. É a cara de uma política que falhou. Não é, nem de perto nem de longe, a principal responsável pelo actual estado do SNS. Nem parece que quem vier, se vier com as mesmas ideias, faça este estado de coisas mudar.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Pedro na ERC, Anita no circo ou Portugal na ditadura

    Pedro na ERC, Anita no circo ou Portugal na ditadura


    No passado dia 9 de Agosto, nas instalações da Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC), com autorização superior para consultar processos administrativos por parte do senhor juiz conselheiro Sebastião Póvoas, circunstancial presidente daquele regulador – previsto na Constituição da República para defesa da liberdade de imprensa –, cometi um suposto “crime de lesa-majestade”: saquei do telemóvel e comecei a tirar fotografias às páginas.

    Desde que os smartphones se vulgarizaram, não conheço, como jornalista, meio mais corriqueiro de consulta, mais eficiente pela rapidez e mais ecológico pela poupança de recursos. Em meia dúzia de minutos, capta-se os elementos estritamente necessários, evitando-se ocupar tempo a todos, e cada um segue caminho. Que venha o primeiro jornalista dizer que nunca usou, de forma descontraída e sem pressão, um telemóvel para fotografar papéis.

    Porém, em 9 de Agosto, a ERC quis fabricar um “incidente”, e procurou proibir-me ilegalmente de usar um meio legítimo de reprodução de documentos, previsto na Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA). Um pedido para a PSP tomar conta desta ocorrência, transformou-se de repente num distúrbio (artificial), que culminou não apenas em um, mas logo em dois comunicados da ERC, o segundo da própria Comissão de Trabalhadores.

    Os dois comunicados difamantes – divulgados na imprensa, em que chegava a colocar em dúvida a minha actividade de jornalista e me atribuía supostos insultos aos membros do Conselho Regulador e uma alegada “atitude invulgar e abusiva”, pretendia criar uma “cortina de fumo” nas investigações do PÁGINA UM sobre a ERC.

    Fachada da ERC, na Avenida 24 de Julho, em Lisboa, fotografada hoje de manhã.

    Com efeito, o PÁGINA UM tem procurado saber como tem sido a intervenção do regulador na gestão dos pedidos de confidencialidade de grupos empresariais de media relacionado com a transparência de dados económicos, e também conhecer se haverá intervenção sobre estranhos contratos entre diversos grupos empresariais de media e entidades da Administração Pública que resultam em ingerências editoriais.

    Ora, mas o PÁGINA UM não se deixa amedrontar com estas “manobras de diversão”. Nas últimas semanas, além de instaurar um processo de intimação contra a ERC por negar a consulta de documentos sobre a transparência dos media, fui insistentemente solicitando a remarcação da consulta dos processos inopinadamente interrompida em 9 de Agosto. Por três vezes se fez o pedido. Apenas no passado dia 24 de Agosto houve uma reacção da ERC, marcando nova consulta para hoje, dia 30, mas com a imposição de regras, entre as quais a proibição de fotografias.

    Reacção: novo protesto, queixa na Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA), indicação de que estaria presente na companhia de advogado e que não se aceitaria aquelas regras arbitrariamente impostas pelo Conselho Regulador da ERC, mesmo se ditadas por um juiz conselheiro que, na verdade, ali, assumia apenas o papel de presidente do regulador e não de qualquer tribunal.

    Intolerável coacção sobre a ERC por um cidadão inoportuno?

    Ou antes uma intransigente defesa de direitos por um jornalista incómodo?

    Os leitores que decidam. Os cidadãos que escolham a perspectiva e, como a sua decisão, queiram aceitar o tipo de democracia que mais apreciam.

    Ao fundo, advogado João Pedro César Machado, à entrada da ERC, que acompanhou o director do PÁGINA UM na consulta dos processos, aos quais se tiraram fotografias.

    Em função desse protesto, enfim veio nova reacção da ERC: “excepcionalmente”, o presidente do Conselho Regulador autorizou ontem que a consulta de hoje pudesse ser feita com reprodução de fotografias dos processos – algo que, aliás, já eu fizera em outras oportunidades antes do dia 9.

    E lá estive hoje, eu, Pedro na ERC, a consultar seis processos, na companhia do advogado João Pedro César Machado, na mesmíssima sala do dia 9 de Agosto, munido de telemóvel a fotografar páginas e a escrever seis requerimentos. Numa exacta hora e meia, despachei tudo: consulta, fotografias e requerimentos.

    E onde está a “Anita no circo”? Talvez no facto de ter, durante esta corriqueira consulta, a “escoltar-me” o chefe de gabinete do presidente da ERC, acompanhada por mais uma jurista.

    E, entretanto, lá em baixo, a guardar a porta, fiel, um agente da Polícia de Segurança Pública, convenientemente requisitado pela ERC, por certo.

    Nunca antes, nas minhas diversas visitas à ERC, tinha visto à porta um agente da PSP. E foram várias. Nunca antes de 9 de Agosto esteve ali um agente. E não há coincidência. Há coacção sobre os jornalistas, agora olhados como Inimigos Públicos se saírem da bitola da “cordialidade” e do “respeitinho”.

    Alguém da ERC achou que eu constituiria um perigo e requereu previamente presença policial; e alguém na hierarquia da PSP achou por bem destacar recursos públicos – um agente – para proteger não sei quem de um jornalista que, enfim, só ali entrou para exercer a sua actividade como jornalista, munido de telefone e caneta, e que dali saiu pacifica e livremente, mas a pensar se ainda se vive numa democracia.

    Ou se já se está num circo.

    Ou, mesmo já, numa ditadura.

  • Terrorismo: ser ou não ser, depende?

    Terrorismo: ser ou não ser, depende?


    Tomámos conhecimento este mês, pelos órgãos noticiosos, do comunicado conjunto dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros de nove países europeus (onde Portugal não figura) de que o Governo de Israel ocupou, encerrou e expulsou fisicamente das sedes respectivas seis organizações não-governamentais (ONG) na Cisjordânia, acusando-as de terrorismo, de serem associadas da Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP).

    Esta acção vem na sequência da designação pelo mesmo Governo, já a 22 de Outubro de 2021, dessas mesmas organizações enquanto entidades terroristas, concretamente do desvio de fundos a favor dos guerrilheiros.

    blue and gray binoculars on top of the building

    Ora, sucede que, apesar de serem compreensíveis, de um ponto de vista lógico-argumentativo, os interesses que orientam estas acções do Estado de Israel (bastando para tal ler ou ouvir um qualquer teórico israelita hodierno sobre estas matérias, como seja Boaz Ganor) – com as quais, de resto, discordamos –, já diz a vox populi que se tudo for algo, então nada o é.

    Existe, por isso, um problema definitório, conceptual, quanto ao Terrorismo, “palavrão” tantas vezes usado, a maioria delas errónea ou imprecisamente.

    Havendo mais de uma centena de definições deste conceito, em termos doutrinários as Nações Unidas adoptaram a formulação académica do holandês Alex P. Schmid (1984) no seu Political Terrorism: A Research Guide to Concepts, Theories, Date Bases and Literature (apud Bessa, 2016), considerando o Terrorismo como um método “de reiterada acção violenta inspirada na angústia, utilizado por pessoas, grupos ou Estados de forma clandestina, por razões idiossincrásicas, criminosas ou políticas, por meio das quais – a diferencia do assassinato – o objectivo imediato da violência não é o objectivo final.

    Esta abordagem é prosseguida por diversos autores, menos e mais actuais, sendo que perfilamos uma visão distinta (de elevado impacto em termos práticos), onde se distingue “terror” de “terrorismo”, com o vector decisivo deste último ser a alteração política: “(…) the fundamental aim of the terrorist’s violence is ultimately to change ‘the system’ (…)” (Hoffman, 1998), o que redunda na circunstância de se considerar o terrorismo como “(…) the deliberate creation and exploitation of fear through violence or the threat of violence in the pursuit of political change” (Hoffman, 1998). Na prática, o que as instituições nacionais e internacionais que nos regem optaram por fazer, confrontadas que foram com este problema de falta de acordo universal para a definição desta realidade, foi contorná-lo, descrevendo e definindo as acções, os agentes, as consequências do terrorismo, e mesmo por referência às intenções de actos já criminalizados, utilizando até uma técnica jurídica remissiva não só confusa como pouco eficiente, pensamos.

    blue and white flag on pole

    Numa perspectiva não-Ocidental, a Convenção Árabe do Terrorismo que foi levada a efeito no Cairo em Abril de 1998, preconiza este fenómeno como “[q]ualquer acto ou ameaça de violência, quaisquer que sejam os seus motivos ou propósitos, que surjam por iniciativa própria ou colectiva, procurando semear o pânico entre os povos causando-lhes danos, ou colocando as suas vidas, liberdades ou segu­rança em risco, ou procurando causar prejuízos no ambiente, instalações públicas ou privadas, ou ocupando ou apoderar, ou procurando expor ao perigo recursos nacionais.” (Bessa, 2016).

    Compreensivamente abrangente e laica esta formulação, determinada a expurgar preconceitos de ordem religiosa.

    Qual a solução, então? Conhecimento e compreensão, com rigor. “Classificar um ato, um grupo, uma pessoa, mesmo um Estado ou uma entidade supranacional, como terrorista, depende do contexto, de quem classifica, de quem interpreta e da época histórica (os terroristas de uns podem ser os combatentes da liberdade para outros).” (Lemos Pires, 2017), ou seja, falamos da perspectiva.

    O terrorismo depende da perspectiva. Depende do olhar de quem se debruça sobre esta temática, depende da compreensão de que este jogo de realidades nunca é apenas preto ou branco, mas sim de diversos matizes de cinzento – a “[z]ona cinzenta (…) onde encontraremos o terrorismo”, nas palavras de Townshend (2006) – que carecem de entendimento. É sobretudo uma questão de perspectiva, sobre quem olha para uma determinada realidade e sente medo (consequência) ou, por outro lado, desejo de iniciativa para alterar essa realidade, estando (normalmente) subjacente a isto um sentimento de injustiça.

    Injustiça percebida esta, muitas vezes, na base de processos de radicalização, mesmo com ausência de um input radicalizador externo, o que aumenta a exposição societária a retóricas de extremismos violentos. Para mais, hodiernamente, potenciados pelas TIC.

    people gathered near pole

    Para este desiderato, sustentamos que o terror (e não o terrorismo) é que pode ser considerado simplesmente um método, como ensina o politólogo Sunil Khilnani (citado por Townshend, 2006), sendo que, tendo presente que o terrorismo não se reconduz apenas àquele denominado jihadista, concebemo-lo com as seguintes características:

    1. Existência ou ameaça de violência;
    2. Acção voluntária, individual ou grupal, organizada ou não;
    3. Contra pessoas ou alvos indiscriminados ou com representação simbólica;
    4. Para atingir um objectivo secundário de condicionar uma acção ou abstenção duma entidade com poder, normalmente estatal, ou de perturbar os termos do «nexo sinalagmático» de uma sociedade;
    5. Orientada por uma arquitectura ética que o(s) autor(es) considera(m) legítima;
    6. Cujas consequências ou impacto potencial serão graves ou danosas;
    7.  Este estado de coisas seja passível de difundir uma mensagem ou sentimento generalizado, seja apelativo/cativante ou negativo (como o medo), condizente com a ética legitimadora subjacente.

    Identificamos também, mesmo no dia-a-dia, imprecisões conceptuais (sendo o conceito de jihad um caso paradigmático) que prejudicam uma boa construção dogmática das tipologias de terrorismo (conscientes de que existe mais do que uma categorização admissível), sendo fundamental, a nosso ver, compreender que aquilo que está em causa é o extremismo violento, tendo por base uma ideologia (normalmente) política.

    soldiers in green and brown camouflage uniform standing on gray concrete floor during daytime

    Se algumas destas imprecisões fossem ultrapassadas, alçando-nos em maior conhecimento, seria possível não se promoverem sentimentos de rejeição sem causa, afastando-se uma certa terminologia não só errónea como contraproducente, bastando atentar no caso do termo “terrorismo islâmico”. Apreenderíamos, destarte, que organizações como o ISIS (e outras semelhantes) não são organizações políticas que praticam violência, mas grupos armados que racionalizam politicamente as suas acções violentas.

    Estas conclusões convocam, como pretendemos demonstrar mais demoradamente noutros escritos, uma resposta contra-terrorista com base na investigação criminal preventiva (e proactiva) do terrorismo, não só por imperativos de acção, mas de princípios fundacionais do nosso ordenamento jurídico, como os direitos fundamentais, a legalidade democrática ou a separação de poderes.

    Daqui resultam aspectos de análise que poucas atenções têm obtido até agora, em termos de doutrina portuguesa, como sejam o ‘crime-terror nexus’ ou o estudo das ‘root causes’ do terrorismo. Rectius, compreender as razões de aparecimento de grupos, neste domínio, como os da aliança HTS (onde se inclui a Jabhat Fateh al-Sham, anteriormente Jabhat al-Nusra), na Síria, ou a da AQMI, al-Mourabitoun, Frente de Libertação de Macina e Ansar Dine (denominada JNIM), no Sahel, são de singular importância.

    No mesmo sentido, as especificidades ciber, nas suas vertentes do ciberterrorismo e da dimensão ciber do terrorismo, por serem realidades criminógenas distintas, exigem um tratamento diferenciado, mesmo tecnicamente. Em oposição, uma resposta meramente securitária (ou militarista) não alcançará os efeitos pretendidos a longo prazo: “[m]ore sophisticated technology and increased military force will not end terrorism in the longterm.” (Moghaddam, 2005).

    in flight dove

    Após aturado discorrer, concluímos pela indissociabilidade e interdependência do trinómio Segurança-IC-Intelligence no âmbito CT, o qual, na verdade, é uma disciplina que lida com um fenómeno criminal, simultaneamente prosseguindo fins securitários, com recurso a produção de informações, onde a garantia do conteúdo substantivo da segurança interna é inerente à defesa da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos. Decorre daqui, ainda, a desnecessidade dos serviços de informações internos, pelo menos no que ao campo CT diz respeito, o que advogámos.

    De um ponto de vista hermenêutico, o terrorismo, considerado holisticamente, para além de ser um fenómeno hodierno político-social, é, sem margem para dúvida, um fenómeno criminal. Não só é criminal ao nível do combate e das respostas que as nossas sociedades lhe encontram (neocriminalização de comportamentos normais num determinado contexto, cf. nº 11 do artigo 4º da Lei nº 52/2003), uma vez que contende com bens jurídicos que elegemos com a maior dignidade jurídica (nomeadamente a constitucional e a do direito natural), mas é também criminal ontologicamente.

    Na sua origem identificámos dois níveis. Um, porquanto as acções de que lança mão, ab initio, são em si já tipificadas ou genericamente consideradas como crime, com especial manifestação no ciberespaço (designadamente na utilização da darknet, etc.). Outro, visto as motivações subjacentes à actividade terrorista, mesmo na sua vertente ciber, serem muitas vezes, em primeira linha, mas ocultas, razões mais orientadas para a obtenção de vantagens ilícitas individuais, com um mero “aparente” radicalismo ideológico.

    Inspector da Polícia Judiciária, licenciado em Direito e mestre em Direito e Segurança

    Autor do livro Contra-Terrorismo – Tópicos Essenciais e a Unidade CT “Ideal”


    BIBLIOGRFIA

    BESSA, João Manuel de Andrade Pinto – “As Nações Unidas e o Terrorismo”. Revista Militar n.º 2458 – Ano III, Novembro de 2016.

    HOFFMAN, Bruce – Inside Terrorism. 1.ª Ed. London, 1998, ISBN: 0575065095.

    LEMOS PIRES, Nuno – “As plataformas cibernéticas para a exponenciação do terrorismo transnacional”. Revista CYBERLAW (CIJIC). ISSN: 2183-729. N.º III (2017), p. 80-92.

    MOGHADDAM, Fathali M. – The Staircase to Terrorism: A Psychological Exploration. American Psychologist. Ano LX, n.º 2 (Feb./Mar. 2005), p. 161-169.

    TOWNSHEND, Charles (2002) – O Terrorismo. 1.ª Ed. Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2006. ISBN: 989-552-189-8.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O best-seller: o popular e o kitsch do objecto literário

    O best-seller: o popular e o kitsch do objecto literário


    A questão é incómoda e só com algum atrevimento nos é possível abordar a escandalosa coincidência, no plano do consumo, de, por exemplo, um romance de Morris West, Jacqueline Susan ou Leon Uris com o Ulysses de Joyce; contudo, a abordagem do best-seller, a menos que se entrincheire no diminuto reduto das certezas da arte literária para atingir com a suspeita a qualidade duvidosa dos não eleitos, tem de passar antes de mais pela constatação de um fenómeno: há livros que, por obra de uma publicidade mais ou menos deliberada, do activar engenhoso dos interesses informativos do público, atingem uma dimensão de venda que os tornam notáveis, mais do que outros que fazem parte da cultura mas que ficam esquecidos como objectos imediatos de leitura ou, pelo menos, de compra.

    Em consequência disso, e de se indicar o seu alto índice de compra, tornam-se ainda mais vendidos, transformando-se numa referência que, num determinado momento, se tornam uma espécie de moda. Tais fenómenos de mercado são chamados, numa designação que ultrapassa as barreiras da teoria literária, da genologia e da análise morfológica, best-sellers.

    Ulisses, de James Joyce, um clássico publicado originalmente em 1922 em Paris. Um exemplar da primeira edição pode valer cerca de 20 mil eiuros no mercado.

    Tanto quanto a memória nos diz, esse termo data de meados do século XX, proveniente do mercado livreiro americano, e aparece como uma informação de claros propósitos persuasivos, tendente a criar uma frase exortativa do tipo “toda a gente já leu – porque é que você não faz o mesmo?”

    Não pretendendo ser esse o nosso objectivo, aqui, não podemos deixar de pensar que seria bem interessante determinar o facto com verdadeiro rigor ou seja, o momento em que a expressão deixa de ter funções adjectivas, para se torna uma designação substantiva, um conceito com valor quase genológico.

    Resignando-nos com a falta de uma investigação satisfatória sobre o esclarecimento de tal matéria, o que nos resta fazer, de momento, é lançar algumas conjecturas e apreciações sobre mecanismo de selecção accionado, partindo dos elementos do mecanismo com os quais temos contacto mais directo.

    O primeiro elemento desse mecanismo de activação de interesse, venda e leitura, cuja existência postulamos, assemelha-se à formulação entimémica: o que é massivamente procurado pode ser índice da qualidade presumível do que se anuncia, arrastando, como causa ou antecedente “lógico”, a hipótese de que o que já agradou a muita gente por certo será do agrado de toda a gente.

    As reservas são, normalmente, de uma estirpe de maçadores armados em elite que, por vezes, teimam em não alinhar com as maiorias. É evidente que esses seres bisonhos existem, olham para tudo o que não está rotulado com as legendas canónicas de literário ou até de clássico, com ar de suspeita e lançam a dúvida, muitas vezes injustamente, sobre a qualidade do que é popular no sentido que o termo tem nas sociedades modernas: lido por “toda a gente” sem qualquer critério sólido de selecção.

    Não nos é possível desfazer e tornar claro todo este novelo de questões que tocam, como o leitor mais experto notará, em alguns dos problemas de fundo da literatura e da arte em geral: selecção, literatura, qualidade, capacidade de critério estético, popularidade, elitismo, etc., numa infinitude de vias e argumentos que nos deixam tontos. Porém, alguma coisa se pode fazer.

    Antes de mais, constatar que, por exemplo,  facto registado como motivo de grande surpresa,  a edição portuguesa de Ulisses de James Joyce – obra que ainda se pode considerar muito difícil, de leitura muito complexa não só pela sua elaboração textual, pela complexidade da sua gramática narrativa, mas até pelo sistema referencial de toda a cultura ocidental e irlandesa (pela sua hipertextualidade disseminada e inquieta, enfim) que nela é posto a funcionar, a cintilar – tenha atingido o sucesso livreiro que atingiu, tendo sido considerado um best-seller.

    Pressentimos que o mecanismo posto a funcionar, na operação de marketing efectuada por editor e livreiros, é o do kitsch, com as implicações que ele impõe: retirar ao objecto a sua funcionalidade primeira, reduzi-lo a objecto de mostruário, colocando como primordial a sua perceptibilidade mais imediata, tornando-o ícone ostentável da sua função primordial de origem que deve ser indicada mas não activada.

    Uma obra cimeira da literatura e da legibilidade literária, conotada com a problemática poética da própria legibilidade/ilegibilidade/escritibilidade, fica, assim, notabilizada pelos seus aspectos culturalmente mais frágeis: a intensificação da reprodutibilidade do produto editorial, a iconografia do seu nome, e a valorização visual do volume-livro.    

    No entanto, e apesar da realidade recente que funda a etimologia, não é ao fenómeno de mercado, na sua pureza sócio-económica, que nos referimos, quando falamos de livros pertencentes a um género, intuitivamente reconhecido por todos (notar-se-á, também neste caso, como em toda a genologia, o esforço é para abordarmos noções arquitextuais – difusas, como não pode deixar de ser – em tom de elaboração teórica, como se nos aproximássemos de conceitos estabilizados, a partir de noções intuitivamente reconhecidas) como best-seller.

    Na sua conotação depreciativa, que é também a genológica, best-seller designa um conjunto de obras que enfileiram em certas colecções, ou que constituem a produção de um autor, que são bastante conhecidas e às vezes estão na origem de filmes (no caso mais frequente é o que acontece  ao romance best-seller) ou de programas televisivos, mas que todos reconhecem pelos seus traços fundamentais implícitos – mesmo quando difíceis de enumerar na totalidade, ainda que possam ser resumidos em três ou quatro tópicos: a pobreza ideológica pela banalização dos valores, a recorrência dos motivos temáticos, a popularidade dos seus elementos e situações bem como o conformismo estético-cultural.

    A cultura como informação

    O trilho habitualmente seguido pelo sistema do best-seller, seja qual for o género “canónico” em que se inscreva por semelhanças estruturais do discurso, aponta, antes de mais, para uma problemática de informação. Há uma espécie de desejo compulsivo de cultura, de saber sobre o “mundo postulado como real” que caracteriza o público consumidor desse material bibliográfico.

    O best-seller é, na maioria esmagadora dos casos, uma obra que fala sobre um tema candente, uma problemática apaixonante, um acontecimento capaz de comover amplas camadas sociais. Como muita da outra produção literária normalmente assumida como marginal, de amplas edições e alto consumo em certas épocas e em certos momentos de moda (há ou houve a do policial, a da FC, a do fantástico, a do romance cor-de-rosa) o best-seller emerge como resposta a um ambiente informacional favorável, seguindo de perto, de maneira mais ou menos evidente, o tema que na comunicação social se encontra mais agitado.

    black and white typewriter on white table

    Não é possível determinar todos os meandros desta influência nem detectar exactamente como se engrenam os assuntos do dia. Pode a activação de um imaginário ser desencadeada por um programa particularmente feliz de TV, ou pelo eco que determinado acontecimento atingiu no noticiário. Os chamados dramas humanos, aqueles que apresentam uma vítima da desgraça, a tragédia de alguém dividido entre um dever transcendente e o sentimento mais banal (amor filial, paixão não correspondida ou contrariada pelo dever), a catástrofe colectiva que tenha por motor um dado irracional (a etnia perseguida pelas convicções religiosas – os judeus, por exemplo) tudo o que assente, enfim, em axiologias implicadas por inquestionáveis tradições já enraizadas em determinados universos culturais e civilizacionais, serve de tema privilegiado para o livro best-seller.

    De certo modo, atrás do apelo mórbido de uma temática da fatalidade (duas doxas que se opõem, cindindo tragicamente um ou vários protagonistas ou colocando-os diante de um problema de consciência), há um apelo informativo directamente entendido pelo leitor do género: ele quer e procura saber mais, informar-se, conhecer mais profundamente o caso através do romance inspirado por ou lendo o relato, a série de entrevistas, a biografia ou a autobiografia ou mesmo a monografia ensaística que aborda o tema em questão.

    A actriz bela assassinada, a prostituta que ganha muito dinheiro e é feliz, o padre que se divide entre os deveres da ordem e os apelos do amor, ou da família, ou do grupo racial ou da nação, são esquemas que, por assim dizer, entroncam no apelo romântico do caso como tema – ou, mais correctamente, no apelo romanesco-sentimental do caso como singularidade e como excepção. É claro que o aspecto informativa busca menos na casuística “romântica” o apelo ao leitor, fazendo incidir antes o interesse no desfilar de coisas extraordinárias ainda que “verosímeis” que são apresentadas.

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    O caso da obra “crua”, reveladora de uma “realidade” social sórdida e inevitável, a demonstração cabal de que as classes altas vivem nos mais “abomináveis costumes”, a confirmação de que na vida só se triunfa pela baixeza e pela infâmia, parece-nos ser revelador dessa apetência de uma massa leitora pelo “realismo”, que fornece a dose doentiamente esperada de desagrado (perante uma formulação ética normalmente hipócrita que vacila como um fascínio denegativo numa expressão do tipo: “como eu gostava de ter participado daquele horror! – mas sem ser tocado pelas suas consequências…até porque não devo!”) que confirma como os princípios da crença são a única protecção contra as tentações do mal – mas como a experiência fantasiosa dele é necessária para a catarse.

    Desejo de informação e apelo do conhecimento que está na moda, vontade de estar em dia com o que se diz por esse mundo fora, parecem ser motivações para um terceiro aspecto característico dos best-sellers, talvez o mais fascinante de entre ele: a busca de resposta para as grandes temáticas antropológicas. Daí, entre esta casta genológica que procuramos embaraçadamente delinear, resulta que aparecem livros sobre astrofísica, ciências naturais e humanas que atingem altas procuras no mercado e que são parcialmente (até um ponto de insuportável rotura) devorados pelos leitores desprevenidos.

    Formulações sensacionalistas que apregoam, sobre um livro, que ele dá respostas a questões tão importantes como o problema da morte, do destino da humanidade, das origens da vida, fazem de imediato incidir sobre tal texto as atenções doentias. Ao lado das obras como Um Pouco mais de Azul, de Hubert Reeves, que parece responder ao desejo fundamental de conhecer os limites do universo, vêm, depois, enfileirar-se tratados práticos sobre a forma de obter o prazer sexual utilizando o yoga, ou respostas aos desejos de felicidade pelo domínio da ciência do karma… o aparato retórico e científico fornecido pelo modelo reverte em favor de todas as especulações oportunistas e, por vezes, assumindo o modelo argumentativo do senso comum, evocam os benefícios da mais crassa candura – que lembra a estupidez.

    A retórica do realismo

    Apesar de todos os casos acima se poderem incluir no “género best-seller, ainda que pertencentes a variados tipos de discurso, o que aqui nos importa, como zona específica (até porque típica) do conjunto é o do género literária tradicional, clássico, privilegiado como modelo, num horizonte que participa da aspiração cultural e da interiorização das regras da boa leitura: o romance “clássico”, ou seja, que cumpre certas regras que uma determinada tradição “culta e escolarizada” considera “boas”.

    Mesmo quando não se pode perceber, pelo apelo do saber na moda, como Joyce atingiu o lugar, nos escaparates, do best-seller, dado que a moda nada tem a ver com as suas características específicas, podemos pontualmente aceitar que ele se tornou muito falado e vendável porque e escreveu um “romance” – e é um “clássico”, pelo que o saber trivial divulga.   

    Narrativa bem “regulada”, forma de discurso capaz de veicular informação segundo modelos antropologicamente fortes pelos traços de representação, vigorosamente actuantes desde o mito até ao romance moderno pelos valores amplamente difundidos de que são emblemáticos, a ficção típica do best-seller assenta, de facto, a sua legibilidade, sobretudo, nos traços mais notórios de um género tornado clássico, no Ocidente: o romance realista.

    opened book

    Por abstracção desse modelo, que poderia ir do romance de costumes ao de aprendizagem, o que vigora, em grandes linhas é o conto alongado de um (ou vários) protagonista que se defronta com o mundo, busca nela resposta, uma ciência da vida. Normalmente, uma sabedoria do trivial que transporta um provérbio de monótono bom senso para uma atribulada deambulação pelo mundo dos enganos constitui o tema esquemático privilegiado.

    A grande ciência, a última, a suma teleológica do género assenta na máxima do saber viver com mais ou menos custo, com mais ou menos atribulações. A visão antropológica pícaro-realista é a grande fonte de inspiração, depois de expurgada e desproblematizada. A banalização de desvendamento do naturalismo é a pedra de toque para a produção controlada de todo o dizível e, portanto, de todo o visível.

    O uso da elipse sensata nas perigosas revelações da sexualidade, o uso do provérbio na reflexão sobre a existência, os modelos reconfortantes da narração centrada num saber omnisciente, uma confiança na lógica da temporalidade e uma hábil gestão das técnicas de focalização, apresentando os mecanismos narrativos mais usuais, são condições para uma boa recepção, ou seja, garantia de que a peça fabricada atinge o alvo com segurança.

    Mas, sobretudo, o verosímil, a conformidade com um real altamente codificado enquanto percepção tem de estar claramente formulado. Daí, talvez, o best-seller de matriz realista ter dificuldade em sobreviver muitas gerações. A alteração dos costumes, das crenças banais, tem de ser calculada em cada momento.

    Uma apaixonada suicida em nome da honra não seria motivo de aceitação nesta visão do mundo adaptada aos dias de hoje. Um herói que pusesse os princípios acima do desejo de sucesso social seria encarado como um idiota inverosímil. O que constitui o arrojo nas regras do jogo no romance de Balzac, torna-se a banalização triunfalista do oportunista do herói aceitável dos nossos dias.

    woman holding book covering half face

    É por isso que a revelação desmesurada na visão do mundo do texto balzaquiano se reduz a uma receita do “dar a ver” realista que encanta no romance de sucesso popular dos nossos dias. O mecanismo artificioso é como que esquecido; para o leitor apressado, mais em busca do esquecimento do que da interrogação, do saber do que da pergunta, interessa sobretudo a redundância do conformismo enquanto tal, a todos os níveis.

    O mecanismo em causa é de tal forma poderoso que, mesmo em circunstâncias em que o sucesso (presume-se) não é procurado pela via da facilidade, ele funciona na mesma. No seu Poetics of postmodernism (Routledge, New York) Linda Hutcheon afirma sobre a duplicidade paródica da ficção pós-moderna:

    “De certo modo, como já argumentei, o novo romance (nouveau roman) é, consequentemente, muito mais radical em forma do que qualquer romance pós-moderno. Aquele assume que o seu leitor conhece as convenções da narrativa realista e por isso procura subvertê-las – mas sem fazer como o pós-moderno, que as inscreve. Ambos procuram mostrar a natureza convencional dos processos vulgares de construção dos mundos romanescos, mas a metaficção historiográfica confirma e depois sabota esses mundos e a sua construção. Talvez isso explique porque razão muitos romances pós-modernos têm sido best-sellers” (1988: 202)

    A transtextualidade: as regras da imitação e as condições da crença.

    O que o best-seller nos vem mostrar, se o que sobre ele dissemos tem algum fundamento, é que ao lado de uma literatura de evasão (às vezes buscando no fait-divers apenas uma pequena parcela de caução de verosimilhança, como acontece com o policial em relação à imprensa “criminal”) que aponta claramente para os mecanismos do fantástico como apelo primordial, onde o acto de contar se compromete com a aspiração irrecalcável do universo do devaneio, do “seria tão bom que…”, existe uma outra via de integração nos gostos generalizados que parece paradoxalmente a sua antítese, apelando para o desnudamento realista.

    Só aparentemente existe tal contradição, pois o que a técnica do best-seller nos dá é uma movimentação da crença, só que assumida a um outro nível. Se a crença infantil e popular é irreverente, desmesurada e inconformista, os seus monstros estão perto em aspecto dos grandes fantasmas do fascínio e do medo, a crença do leitor moderno é acomodada no interior de uma vulgata positivista e cientista que faz do real, do exorbitantemente real, um centro de apelo irreprimível.

    brass quilt pen

    Claro que, se para o folclore e para a criança os ogres e os lobos emergem como figuras da inquietação e da desinquietação, para o moderno leitor adulto essas figuras do medo têm de emergir investidas de factores de aquietação, tranquilizantes. O seu mundo é um real verosímil onde as grandes ameaças estão domesticadas ou então têm nomes que asseguram o controlo das forças hostis, mas manobráveis: são marginais, ou loucos, ou comunistas, ou bandos subversivos de direita ou esquerda ou fundamentalistas islâmicos desaçaimados.

    Se o monstro tiver o perfil de Hitler, ou os tiques de um nazi actuando para a KGB, a fábula assume as proporções de uma informação realista, o possível torna-se apaziguante e o sonho mau passa como um relato carregado de informações sobra a última grande guerra ou a guerra-fria. Mesmo que a guerra seja santa e o alvo sob mira se revele muito mais como moderna gesta de cavalaria em direcção a uma Jerusalém a “libertar”, do que como relato objectivo do retorno sionista à Palestina.

    O sentimento da verdade histórica fica assegurado se meia dúzia de nomes controversos se erguer como um punhado de heróis da reconquista, tendo por detrás a documentação dos periódicos reconhecidos como equilibrados, desde os anos 40 e 50 até hoje.

    Cabendo claramente dentro da relação transtextual do hipertexto com o hipotexto de valor genérico, ou seja com o arquitexto, de que nos fala Genette em Palimpsestes (Seuil, Paris, 1982, p. 60-61), o best-seller canónico, de tipo romanesco de imitação, tem objectivos sérios e veste roupagens de adaptação aos mais severos rigores de um grau zero da escrita da actualidade – ao contrário dos casos mais conseguidos da paródia moderna (ou pós-moderna, como querem alguns). 

    A rejeição frequente, mesmo por leitores apaixonados de best-sellers, dos que foram consumidos pela geração anterior, com uma velocidade que ronda a da mudança na moda do traje, talvez encontre justificação na seriedade dos valores que nele se imprimem. De certo modo, a busca cuidada do autor de sucessos, contrariamente à busca do escritor que se empenha na revolução que cada obra procura ser, nos processos de desautomatização ou de estranhamento de que nos fala o  formalismo russo, é uma busca de automatismos de escrita, de identificações e de identidades, de utilizações e de lugares-comuns que, sob a estrutura novelesca do realismo, faz o efeito do segundo guia para leitor que, sendo supostamente desprevenido, é, além disso, tomado como próximo da estupidez e da ignorância.

    Se muitos textos de grande público piscam o olho ao leitor de cultura cosmopolita, a maior parte deles não se arrisca e, mesmo que tenha como assunto um tema de sucesso na comunicação social, na maior parte dos casos parafraseia e explica redundantemente para que a mensagem não escape.

    Restaria talvez acrescentar um reparo a estas notas sobre terreno que, cremos, nunca foi razoavelmente explorado. A tendência do best-seller é para a redundância dos mecanismos de reconhecimento. Não desenvolve apenas o recurso ao género, que poderia ser um saudável trabalho sobre o arquitexto, como sugere Hutcheon.

    Nem sequer aos modelos canónicos autorais, o que poderia activar uma saudável relação hipertextual. São os próprios universos ficcionais recriados que se evocam a traços largos, para os leitores não se perderem na escolha. 

    Para citarmos um caso nacional, Manuel Arouca produziu a hipertextualidade à segunda potência quando, com Os Filhos da Costa do Sol,parafraseava o título do best-seller de James Michener Filhos de Torremolinos.

    Isso vem provar que não é preciso sugerir que se inventa ou se busca um universo estranho ou populoso onde o excepcional pode acontecer, para ser sucesso editorial fácil. Basta dar com a receita local e com o verosímil que se aceita numa certa fase histórica – mesmo que os horizontes sejam estreitos.

    A receita, entre nós, tem dado frutos que mostram claramente os limites do género – buscando o geral na mediania, e o reconhecível no fenómeno estritamente local, temos o sucesso editorial no cavaqueio de todos os dias. Se o grande acontecimento é a notícia e o notável é “colunável”, o best-seller inclina-se para o encanto onde o grande acontecimento é ser notícia e o fenómeno digno de registo é surgir na fotografia ou na imagem do noticiário ou do programa com máximo de audiência. Teríamos aqui o modelo de um certo sucesso de escrita – não do eterno retorno, mas da porca giratória, ou da batedeira

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Genette, Gérard, 1982, Palimpsestes, Seuil, Paris

    Hutcheon, Linda, Poetics of postmodernism, 1988, Routledge, New York


    Texto originalmente publicado na revista Vértice, n.º 23, 1990

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  • Os meus (indesculpáveis?) erros, por um lado; e a aselhice do fact-checking, por outro

    Os meus (indesculpáveis?) erros, por um lado; e a aselhice do fact-checking, por outro


    Muitas vezes – ainda hoje, por sinal –, detecto pequenos erros ou imprecisões naquilo que escrevo. Por exemplo, constatei que há uma semana escrevi um artigo intitulado: “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior de sempre”. Errado. E o artigo foi corrigido passando agora a intitular-se “Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980”. Está 100% correcto – e, aliás, acertarei a minha previsão. E está um título escrito com prudência, porque, na verdade, talvez seja desde 1970 ou até desde um ano anterior, mas assim excluo o “sempre”, porque não era verdade.

    De facto, é sempre arriscado escrever “sempre” num artigo; por mais aliciante que seja, é um perigo.

    broken blue ceramic plate

    Embora os meus detractores não me desculpem – embora tenha sido eu a apanhar o erro –, confesso que este adveio de um excesso de confiança nos meus conhecimentos. Por vezes, dá maus resultados, mesmo se não estamos perante uma situação que altere a gravidade daquilo que se denunciou: um excesso de mortalidade desde Fevereiro de 2022, inexplicável e intolerável nos tempos modernos.

    Com efeito, para escrever “sempre”, baseei-me nos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e do Pordata desde 1980 (o ano a partir do qual existe uma base de dados de fácil consulta). Ora, sabendo eu que, nos tempos modernos, os Verões são muito menos mortíferos do que os meses de Inverno, extrapolei abusivamente que, para uma população menor em décadas passadas, não encontraria tanta mortandade em meses estivais, como Agosto.

    Não é bem assim. Ou melhor, não era bem assim. Deu-me para procurar dados nos relatórios da Estatística do Movimento Fisiológico de Portugal do INE dos anos 20 e 30. Trabalho árduo e demorado, mas que acabou por ser a merecida penitência para os meus erros.

    De facto, embora sejamos agora uma população mais envelhecida e maior do que nas primeiras décadas do século passado, houve vários anos em que se morreu mais. Por exemplo, em 1918 – o ano da gripe espanhola – morreram cerca de 248 mil pessoas, o que dá uma média mensal de 20 mil pessoas. Diga-se, contudo, que “apenas” cerca de 9% foram por gripe espanhola – voltarei, aliás, a este tema muito em breve.

    Portanto, embora não tenha encontrado valores mensais disponíveis para aquele ano, de certeza absoluta que na Primavera e Verão de 1918 terão morrido muito mais do que 10 mil pessoas em cada mês.

    Mas mesmo depois da gripe espanhola – que atacou Portugal quase em exclusivo no ano de 1918 – houve anos de maior mortalidade. Verifico agora a raiz do meu erro: não considerei a dimensão da mortalidade infantil sobretudo até à primeira metade do século XX.

    De facto, a mortalidade total estava muitíssimo dependente da taxa de mortalidade infantil, que atingia proporções inauditas, completamente assombrosas, sobretudo por diarreias, enterites e outras doenças profundamente letais nos primeiros anos de vida. Além disso, a mortalidade por malformações era também elevadíssima. Natural, na verdade – ao contrário do que se diz agora – era ver-se pais a enterrar filhos.

    person holding clear glass ball

    Acresce que, nas décadas de 20 e 30, a fertilidade era elevada. Por ano, era habitual nascerem cerca de 200 mil crianças numa população de 6 milhões de habitantes. Agora, que somos 10 milhões de habitantes, nascem cerca de 80 mil crianças por ano.

    Porém, nas primeiras décadas do século XX, as doenças até aos cinco anos de idade dizimavam uma grande parte dessas esperanças de vida. Para se ter uma ideia, em 1918 morreram 77.550 crianças com menos de cinco anos. Destas, estão incluídas 11.370 falecidas antes de completarem dois anos por causa de diarreias e enterites, e mais 5.862 por “debilidade congénitas”.

    Meia década mais tarde, em 1923, num ano já sem resquícios da gripe espanhola – a gripe endémica causou então “apenas” 2.000 (exactos) óbitos –, a mortalidade infantil cifrou-se em 56.933 óbitos, sendo que 12.719 se deveram a diarreias e enterites, enquanto as “debilidades congénitas” causaram 5.764 mortes infantis.

    Se considerarmos, que em 1923, a mortalidade total foi de 141.775 óbitos, conclui-se então que a morte de crianças com menos de cinco anos representou 40% do total!

    grayscale photo of woman hugging baby

    Nos anos antecedentes e posteriores, durante algumas décadas, este foi o peso relativo das fatalidades infantis, que tinham um maior peso nos meses de Verão, período onde certas doenças infecciosas – muito por via da falta de saneamento – incidiam.

    Portanto, o meu erro foi subestimar a elevadíssima mortalidade infantil nos primórdios do século XX. O “sempre” estava ali a mais, porque bastaria, para aquilatar da gravidade do que se está a passar agora, dizer que a situação é a pior dos últimos 10 ou 20 anos, porque é esse o contexto histórico que nos deve guiar sempre.

    Ora, mas daqui quero passar – e não é por acaso que se faz referência ao ano de 1923 – para um outro tipo de erros, muitíssimo mais grave, cometido pela comunicação social mainstream, sobretudo aquela que se presta ao fact-checking.

    Neste aspecto, peguemos então no paradigmático exemplo de um fact-checking do Observador sobre se “estamos perante a maior mortalidade de sempre em Portugal”. A “análise” conclui, entre outros aspectos, que a “mortalidade geral não é maior de sempre em Portugal: houve mais óbitos em 1923, revelam dados do INE”.

    Fact-check do Observador sobre se 2022 apresenta a maior mortalidade de sempre e a falta de contextualização

    Ora, na linha do que disse anteriormente, um fact checking desta natureza não pode jamais olhar para os números de forma estática. Há um “dinamismo” social que deve entrar na equação. Temos de saber o que estamos a comparar e como devemos comparar. E sobretudo qual o objectivo dessa comparação.

    Um fact-checking não deve ser uma mera análise quantitativa. Na verdade, saber se a mortalidade de um Verão assume ou não o valor mais elevado de sempre – desde que Portugal é um país – mostra-se irrelevante. É uma curiosidade histórica.  

    Em Saúde Pública devemos olhar sim para uma série longa de indicadores apenas aferir as melhorias tecnológicas e dos cuidados médicos. Mas não serve para identificar, numa perspectiva de uma ou duas ou três décadas, anomalias graves num sistema de Saúde.

    Por isso, não faz sentido algum andar à procura de um ano como o de 1923, tão para trás, para mostrar que a situação de 2022 não está a ser assim tão má. Para concluir que, afinal, houve um ano pior do que o presente está a ser. É um disparate. É uma irresponsabilidade. Não é jornalismo. É um péssimo trabalho de fact-checking.

    Este é o caso do fact-checking do Observador no caso em apreço. Diz isso quem acabou de confessar um erro, que se penitenciou e que o explicou.

    E digo isto do fact-checking do Observador, e de tantos outros, porque, neste caso, desde logo é uma rotunda aselhice comparar um ano (1923) em que a mortalidade infantil representava 40% da mortalidade total com outro ano (2022) em que a mortalidade infantil representa apenas 0,23% (até 27 de Agosto houve 194 mortes de menores de cinco anos, entre os 82.868 óbitos registados)

    Não podemos comparar dois anos (1923 e 2022) – e os anos intermédios – sem enquadrar a evolução na esperança média de vida, no tratamento de doenças, em tudo e mais alguma coisa.

    Se um jornalista não souber sequer fazer uma contextualização, daqui a nada ficaremos satisfeitos por nos tirarem todos os direitos conquistados em 25 de Abril de 1974, porque afinal um fact-checking surge a concluir que, mesmo assim, estamos melhor com o regresso aos tempos da Outra Senhora do que estavam os nossos antepassados no tempo do Feudalismo.

  • Animais de estimação

    Animais de estimação


    Não vou falar da Márcia e da Né. Elas adoram animais – e, se todos fossem como elas, era uma alegria para mim e uma melhoria para o Mundo. Animais carecem de tempo, disponibilidade, interligação, compromisso. Elas são 20 valores.

    Falo dos outros. Ter cães que não passeiam está errado. Ter animais que se deixam ao deus dará é um desastre social e ecológico. Ter animais por esterilizar ou por educar é contra um mundo melhor. Os gatos são predadores naturais e definem seus territórios de caça onde matam sem quartel. Não ficam ninhos, não sobrevivem insectos grandes, ratos e outra fauna.

    Se uma cidade como Coimbra tiver trinta mil gatos, os pássaros vão fugir daqui. A Nova Zelândia descobriu como os gatos abandonados dizimavam os papagaios e teve de tomar medidas importantes.

    Ter animais de estimação é uma responsabilidade social e não “uma coisa fixe” ou uma tonteira para alegrar dois ou três meninos que não os passeiam, não os lavam, não lhes dão de comer. Cão e gato, coelho ou cobra, ou mesmo iguana, carecem de uma regulamentação para que fiquem em casa, sejam domésticos e não selvagens.

    Para serem felizes carecem de espaço, carecem de companhia, são exigentes na dedicação. Os animais são relógios de rotinas. Todos os animais sabem as suas horas de comer, de sair, de entrada dos donos. As vacas têm de ser mungidas à mesma hora, encontrar a palha no mesmo lugar, repetir os mesmos gestos todos os dias. Este compromisso com o tempo é mandatório a quem deseja ter pets.

    woman and cat joining hands

    Se o teu cão passa a vida a latir, algo está errado. Se o teu cão deixa fezes na minha porta, és tu quem tem culpa. Se o teu pet fede, é porque és um porco e um preguiçoso, a não ser que tenhas adoptado uma doninha. Se há tantos cães e gatos mortos nas estradas, a culpa é tua que libertas o bicho para ir de férias. É uma questão também de ética.

    O que é brutal hoje é que um discurso crítico ao negócio do amor de estimação é silenciado pelo poder das empresas que controlam a alimentação, os produtos infinitos para mimosear os bichos de casa, as associações defensoras dos animais. Dizer que os animais de estimação têm um custo ecológico elevado, são mais uma fonte de poluição e de morte é uma brutalidade para os fanáticos.

    Infelizmente, os supermercados estão a encher-se de secções de negócio animal, comida mais cara que a ração dos esfomeados de África, mais dispendiosa que a diária das penitenciárias. 

    Se formos ao Google vemos milhares de virtudes em ter estima por animais, encontramos resmas de discursos que potenciam o negócio. Mas, claro, nem todos podem criar animais de estimação – tem de haver regras. Os gatos e cães devem estar esterilizados nas vossas casas. Para serem domesticados sofrem uma contracção da sua essência, e por essa razão há uma grande discussão sobre este tema.

    selective focus photography of brown hamster

    Depois há animais que são donos de objectos com patas e os levam para cenários violentos, os transportam para jogos de morte e de diversão com barbaridade acrescida. Tudo isto carece de observação, legislação abrangente e sobretudo vertida de uma discussão aberta, sem filtros, culta, informada por técnicos e cientistas.

    Não fosse a Márcia e a Né, eu defenderia que os pets fossem proibidos, sem ser em condições excepcionais, mas elas demonstraram-me à saciedade como posso não ter razão e concordaram comigo em muito do que disse atrás.

    Afinal, eu gosto dos bichos e eles espantosamente, aproximam-se despudoradamente de mim.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As lágrimas de Sanna Marin, a hipocrisia… e, já agora, os curdos

    As lágrimas de Sanna Marin, a hipocrisia… e, já agora, os curdos


    Não sei se já tiveram a oportunidade de passear as ancas numa discoteca finlandesa. Aviso já que é um trabalho árduo que requer alguma perícia e que nos obriga, com destreza, a acompanhar dezenas de pessoas que dançam uma música imaginária enquanto o dj nos oferece outra.

    Se Deus alguma vez existiu, esqueceu-se do Norte da Europa na altura de dotar os esqueletos de ritmo. Começando por aí, fiquei logo um pouco mais fã de Sanna Marin, a primeira-ministra mais nova do Planeta, residente num país onde, pelo que vi, deverá ser a mais profícua dançarina. Mais do que isso, conseguiu estar num espaço onde mais do que quatro finlandeses se riam em simultâneo. Isso, sim, é uma proeza. Quem não se lembra da alegria gélida com que Kimi Räikkönen festejava (com o semblante fechado) cada vitória na F1.

    Sanna Marin, primeira-ministra da Finlândia. Foto: ©Laura Kotila 

    Portanto, ter uma política destacada, nova, que se consegue divertir entre um grupo de amigos, como qualquer um de nós, é uma excelente notícia.

    Tudo o que se segue nesta história é uma pura desgraça que explica, em poucas passagens, a sociedade em que vivemos.

    Por que razão aparece um vídeo de uma festa privada nos jornais? É o primeiro ponto a discutir nesta sociedade em que escolhemos deixar de viver para gravar. Não vemos, não ouvimos, não sentimos. Gravamos para mais tarde mostrar a alguém.

    Sanna Marin apareceu em lágrimas a pedir desculpa pelas fotos que foram reveladas e até se sujeitou à suprema humilhação de fazer um teste de drogas. Imagino que para a maioria dos finlandeses a alegria e a euforia ainda seja algo artificialmente conseguido, entre umas Lapin Kulta e uns comprimidos de ecstasy.

    Passaria um destacado político, homem, por tamanho insulto ou perseguição?

    Eu acho que não. Boris Johnson, (ainda) primeiro-ministro inglês, foi apanhado a participar em várias festas [comparando as imagens da farra, a de Sanna ficaria na categoria de enterro], na residência oficial durante um período de confinamento decretado pelo próprio. Uma espécie de poker das trapalhadas. Demorou dois anos até ser corrido do cargo que ocupava.

    Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido. Foto:  ©Crown Copyright

    E note-se: sempre defendi que os confinamentos não faziam sentido, mas, se um Governo os impõe, não podem ser os próprios membros do Governo a furá-los. Aí esperava-se um exemplo. No caso da festa privada entre amigos, estamos num momento absolutamente irrelevante para a profissão desempenhada por Sanna Marin.

    Alguém imagina que um ministro, presidente ou secretário-geral, quando sai do seu horário de trabalho, se recolhe junto à lareira a escrever as memórias ou a pintar paisagens campestres?

    Na verdade, sejamos claros: Marin nunca passaria por este escrutínio se fosse um homem. E suceder o que sucedeu numa das sociedades onde a diferença de “tratamento” entre homens e mulheres é menor, mostra que o desnível ainda é real e muito grande.

    Notem que Silvio Berlusconi organizava orgias, mas, entre escândalos e prostitutas, foi primeiro-ministro italiano durante nove anos, o mais duradouro no poder desde a II Guerra Mundial.

    Enquanto isso, Sanna Marin vê uma foto sua, com quatro ou cinco amigos sorridentes numa noite de copos na casa de um deles, e de imediato tem de vir a público, de lágrimas nos olhos, dizer que é uma pessoa comum com 36 anos, que não faltou um dia ao trabalho e que também precisa de se divertir.

    Este é que é o drama real da hipocrisia que assalta os meios de comunicação social num mundo, ainda, profundamente machista.

    A lavagem que fazem perante escândalos masculinos, uns atrás dos outros, de proporções bíblicas (ou talvez mais romanas), e o empolamento que dão a uma mão cheia de nada, se a visada for uma mulher. Percebo que a oposição política use tudo na guerra dos votos, mas já não entendo que a imprensa e a sociedade os sigam. Se isto acontece num dos países mais avançados do Mundo, o que se diria num daqueles mais plantado à beira-mar, se é que me compreendem?

    Na verdade, eu acho que se deveria discutir não os dotes artísticos da jovem primeira-ministra finlandesa, na ocupacão dos seus tempos livres; mas outra coisa bem diferente, mais política. Como, por exemplo, perguntar-lhe como se atinge aquele nível de alegria depois de se aceitar entregar curdos ao Erdogan em nome da entrada na NATO.

    Bem sei que para um governante foi apenas mais um dia no escritório, e uma decisão em mil, mas, se era para a deixar em lágrimas e encher telejornais, podiam ter-lhe perguntado o preço de uma vida curda neste mercado de Verão. Sempre aprendíamos qualquer coisa.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.