Categoria: Opinião

  • O desamor na barra dos tribunais

    O desamor na barra dos tribunais


    Os Tribunais de Família necessitam de ser fiscalizados e com urgência. A ideia parece polémica. Mas as crianças são mais importantes.

    Uma mãe não pode perder a sua filha apenas porque um juiz de Sintra quis demonstrar “que os famosos também podem ser repreendidos pela justiça”, mesmo sem razão.

    Nem uma criança pode ser “reestruturada mentalmente” apenas porque não quer ver um progenitor, como foi lavrado em Fronteira.

    two children standing near cliff watching on ocean at daytime

    Nem uma mãe pode perder a guarda de um filho, mas ficar com a guarda do outro, de idades idênticas e em circunstâncias iguais, como foi ordenado por um juiz em Mafra.

    Estes são alguns exemplos da situação chocante que se vive nos tribunais de família, onde alguns juízes, ao abrigo do segredo sobre a identidade das crianças, fazem o que muito bem entendem – de forma contrária ao bom senso e os bons costumes.

    Nem tão pouco um jornalista pode ser prejudicado no Tribunal de Família por tratar de casos de retirada violenta de crianças a progenitores, sem razões. Antes da reportagem, o juiz do Tribunal de Família sentenciava num sentido. Depois da emissão da reportagem as sentenças lavradas foram exatamente o contrário.

    Tenho pena de ver Assunção Esteves ter-se marimbado há anos no seu projeto de verificação pela sociedade civil de instituições fechadas, incluindo orfanatos, para abraçar o lugar de deputada e presidente da Assembleia da República.

    Os Tribunais de Família são caixotes selados e constituem uma peça importante no triste sistema português, único na Europa: 95% das crianças institucionalizadas estão em lares, só 5% estão em família de acolhimento.

    a boy crying tears for his loss

    Não há paralelo na Europa. Há três anos ainda éramos acompanhados pela Irlanda, que já inverteu a situação. Mas nós continuamos a ter 351 lares a quem o Estado paga anualmente mais de 90 milhões de euros.

    E porquê? “Porque sim!”

    Foi assim que responderam as duas técnicas que vão ser julgadas em Outubro no Tribunal de Cascais, acusadas pelo Ministério Público de terem falseado relatórios para a retirada das filhas de Ana Vilma Maximiano há cinco anos

    Cinco anos, como todos percebemos, é uma eternidade na vida de uma criança! Uma barbárie.

    Abram-se os Tribunais de Família à sociedade civil para ficarmos a saber o que se passa lá dentro. Ou têm medo?

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A caminho do Árctico: dia 5, Longyearbyen e (inesperadamente) Tromsø

    A caminho do Árctico: dia 5, Longyearbyen e (inesperadamente) Tromsø

    Penúltimo dia desta viagem em que realizei o sonho de visitar o Árctico. O dia contou com uma surpresa: conhecer Tromsø.


    Últimas horas em Longyearbyen. A cidade principal de Svalbard tem cerca de 2.000 habitantes, quase todos os habitantes das ilhas. É a sede do Governador das Ilhas Svalbard, sendo assim sede administrativa de todo o arquipélago.

    Ali encontramos os serviços necessários como, aeroporto internacional, hospital, escola e universidade, assim como várias ofertas de alojamento, desde hotéis, Guest Houses e até campismo. Há algumas lojas, restaurantes e três museus. Uma capital, sem dúvida nenhuma!

    Depois de um retemperante pequeno-almoço, de preparar a mochila e fazer o check-out, segui o conselho do Jérémie e levei tudo comigo na descida de bicicleta. Fui pousando a minha bagagem nos cacifos dos museus e assim, na hora de entregar a bicicleta, evitava a subida de 40 metros até à Guest House 102, o último edifício, mesmo junto à base da montanha.

    Na descida, e mesmo sendo manhã, consegue-se apreciar o silêncio, ouvindo apenas o vento com a aceleração da descida. Passei no Husset, o restaurante e Adega mais setentrional do mundo. A lendária adega criada nos anos 90, tem mais de 15.000 garrafas, uma das mais bem abastecidas da Europa.

    Antigamente, era o ponto de encontro de todas as pessoas, desde o Governador aos mineiros e suas famílias. Um lugar de todos e para todos. Hoje, é um dos restaurantes mais sofisticados de Svalbard.

    Continuando a descida, a igreja, um dos edifícios icónicos da cidade, estava em obras pelo que não ficou grande fotografia.

    Chegada ao fim da rua, para a esquerda é o caminho para o aeroporto, que passa pelo porto, de onde saem os barcos e é também o caminho para o Cofre Global de Sementes. Mas virei à direita: a minha paragem era o Museu da Expedição ao Pólo Norte.

    O Museu mostra-nos as histórias das várias expedições ao Pólo Norte, especialmente com dirigíveis, mas também com skis, trenós puxados por cães e barcos. O edifício tem dois andares e tem expostos documentos antigos, jornais, fotografias, filmes originais de expedições, artefactos históricos, cartas e até o barco que seguia no primeiro dirigível, caso caíssem e precisassem sair por água.

    A exposição demonstra o esforço dos exploradores para alcançar o Pólo Norte e os misteriosos horizontes congelados, movidos pela curiosidade, ambições pessoais e pesquisa científica.

    Terminando a visita, que me fez sonhar com uma expedição ao Pólo Norte, continuei na minha bicicleta para o Museu de Svalbard.

    O Museu Árctico da Noruega, mais a Norte, recebeu o Prémio de Museu do Conselho da Europa, em 2008, competindo com 59 museus em toda a Europa. Está muito bem conseguido. Apresenta-nos fragmentos de 400 anos de Svalbard, descrevendo factores que ajudam a sustentar a vida e as atividades que acontecem neste lugar remoto, e revelando a estreita relação entre o mar, a terra, a natureza e a história cultural.

    Terminando estas duas visitas, devolvi a bicicleta ao posto de turismo. Ainda faltavam 3h30 para o meu voo então decidi fazer o caminho a pé, em vez de esperar pelo autocarro. Uma caminhada de 1h15 minutos que me apeteceu, pois passaria o resto do dia entre aviões até chegar a Helsínquia, onde passaria esta última noite.

    O voo atrasou e cheguei a Tromsø atrasada para o voo que me levaria a Oslo e depois a Helsínquia. Não consegui nenhuma ligação que me permitisse chegar a Oslo, a tempo do último voo para Helsínquia. A melhor opção era ficar em Tromsø e, na manhã seguinte, apanhar um voo direto para Helsínquia. Assim foi. Marquei um hotel central em Tromsø e fui aproveitar os imprevistos da vida e passear pela capital das luzes do Norte.

    Chegada ao hotel, pedi um mapa com os principais pontos de interesse da cidade e comecei a visita. A minha primeira paragem era a Biblioteca de Tromsø, num edifício moderno com uma sala de conferências e uma cafetaria muito simpática. Entrei e visitei a Biblioteca. Aprecio muito especialmente ver a organização, sentir o cheiro único dos livros. Tomei um chocolate quente na cafetaria onde uma música de fundo relaxante, conseguia-se ouvir.

    Segui para o porto da cidade, passando pelas ruas comerciais principais, com lojas com muito bom gosto. As ruas são sinuosas. A cidade lembra-me, por um lado, Bergen e, por outro, São Francisco. Uma boa mistura. No porto, estão alguns restaurantes e outro museu do Pólo Norte. Uma mistura do melhor dos dois mundos: as casas antigas nórdicas que são lindas, e a bonita e moderna arquitetura norueguesa.

    Tromsø é conhecida por ser a porta para o Árctico. As ligações passam todas por ali, seja de barco ou avião. Mas a cidade está deserta. Já estamos em Setembro, poucas pessoas estão de férias e, por outro lado, ainda faltam cerca de dois meses para a atração rainha de Tromsø: as auroras boreais.

    A caminho do hotel, fiz uma paragem para jantar no Bistrô Bardus. O menu tem influência dos ingredientes e história culinária do norte da Europa. As renas, alces, caranguejos, peixes frescos e baleias fazem parte dos originais ingredientes que encontramos nos pratos deste bistrô, que recomendo.

    Foi um dia diferente do esperado, mas que acabou por ser bem aproveitado e incluiu Tromsø no roteiro da minha viagem.

    Por vezes, as viagens são assim: inesperadas, mas também no inesperado, na maior parte das vezes, surgem oportunidades. Só as temos de agarrar e ver o lado positivo. Amanhã, estarei em Helsínquia!

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • A SIÊNSIA, ou a Nova Ordem Ignorante de regresso a Portugal

    A SIÊNSIA, ou a Nova Ordem Ignorante de regresso a Portugal


    Ouço diversas vezes: “Mas como é que não és covideira?” E ouço isto porque, aparentemente, sou insistente com a lavagem das mãos, o descalçar de sapatos em casa, a troca de roupa…

    Não sou, porém, adepta do álcool-gel; não uso. Aprecio o sabão azul e branco. Gosto de meter as mãos na terra e andar descalça na praia e na relva. Nunca consegui andar no metro ou autocarro sem bilhete válido. Gosto de cumprir regras, tenho os impostos em dia.

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    Mas se me pedem para seguir regras irracionais, e sem fundamentação, obviamente exijo saber em que bases se decidiu adoptar tais regras. E, na inexistência de resposta ou de fundamentação válida, irei naturalmente optar por não seguir essas “regras” disparatadas.

    (Na minha juventude, cheguei a sair de uma sala de aula em protesto por um professor expulsar injustamente dois alunos.)

    Não sigo palermices nem normas absurdas só porque alguém se lembrou de as adoptar na base do “porque sim”. Viver numa democracia permite-me ser racional e exigir respostas dos decisores e governantes. Em países com regimes totalitários, não é assim. Prevalece o obscurantismo e o irracional. Prevalece o “porque sim”.

    Em geral, o português tem um problema com a lógica, a razão e exigência de transparência e de justificações, normais numa democracia. Demasiados anos de pobreza, fome e ditadura, fizeram erodir a réstia de auto-estima e a sobriedade cívica que teriam sido úteis em 2020.

    O combate à epidemia de covid-19, tanto ou mais do que a doença, foi uma catástrofe em Portugal. Os números provam-no. O excesso de mortalidade recorde também o comprova.

    Ainda assim, é ver portugueses ainda hoje a confiar nas mesmas autoridades e personalidades que conduziram a população para tamanha catástrofe.

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    Mas isso pode ter explicação parcial nos milhões distribuídos pelos media convencionais, bloggers, actores, artistas, cantores e micro a médio influencers. Tudo para que passassem propaganda.

    Assim, sem qualquer surpresa, a sempre mal fundamentada Direção-Geral da Saúde (DGS) prepara a chegada do Outono a Portugal. Com ciência, desta vez? Não. Nada disso. A era da SIÊNSIA prossegue, porque floresceu, amadureceu e está pronta nova colheita.

    Neste Outono, a DGS sinaliza o regresso dos mitos, das mistificações, dos amuletos… e da desinformação veiculada com a ajuda (dos sempre prestáveis à vassalagem) media convencionais e dos milhares de mini e médios influencers e bloggers (que se prestam a passar propaganda a troco de uns trocos). A população estará, de novo, entregue aos pobres de espírito, incluindo de espírito científico, para mal dos nossos pecados.

    Pobres tempos de baixo nível (ou nenhum) de literacia em Ciência, em Medicina, em bom senso, em pensamento racional e lógico. Tempos altos para a “ciência” comercial – manipulada e financiada por indústrias e fundos estatais (e dos contribuintes europeus) a soldo de interesses políticos obscuros.

    O facto de as autoridades de saúde, nomeadamente em Portugal, continuarem a esconder dados estatísticos é prova mais do que suficiente da podridão que se vive em termos de Política de Saúde.

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    Assim, vejamos os mitos que se prepararam para regressar este Outono. O primeiro, e um dos queridos à DGS: as máscaras, esse amuleto que para a DGS significa “protecção contra esse mal que é a covid-19 e tudo o mais que ande no ar”.

    A Suécia, esse país fervoroso seguidor da “Ciência”, desde logo enterrou esse mito aberrante, perigoso, atroz e bafiento. Por afastar em geral esse e outros mitos amados pela SIÊNSIA seguida pela DGS, a Suécia conseguiu combater eficazmente o vírus SARS-CoV-2, e ficar, de longe, com as melhores estatísticas em matéria de covid-19 e sobretudo de Saúde Pública.

    Outro mito é o dos confinamentos – essa medida perigosa para a saúde que, em geral, a Suécia também recusou adoptar, e bem. Já Portugal, por via da “condução” da DGS – fervorosa seguidora da SIÊNSIA –, está agora nos lugares cimeiros desse trágico pódio em que nenhum país decente quereria estar. Portugal está entre os líderes em mortes em excesso, em casos covid-19 e outras estatísticas não-covid.

    E, como se isso já não fosse péssimo e agoirento, a DGS continua a teimar em conduzir os portugueses, e o país, para as catacumbas da escuridão científica e da Saúde Pública.

    Não lhe bastou publicitar, durante o Verão, esse mito de “a indigestão ser causada por banhos após o almoço”. Não lhe chegou. Também tem de continuar a arrastar o país, e os portugueses, pelos caminhos da sua SIÊNSIA.

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    Outro objetivo, já anunciado em parangonas pela DGS para este Outono, é vacinar em força as crianças e jovens. Não morrem de covid-19, mas vacina-se à mesma, mesmo se se mostra por demais evidente que a imunidade de grupo foi uma falácia, uma mentira impingida durante meses a fio.

    E os efeitos adversos em crianças e jovens? Não lhes importa o rácio risco/benefício, que cada vez mais aponta para o afastamento dos mais jovens destas vacinas?

    Nada disso interessa a quem segue a religião da SIÊNSIA. O dinheiro a rodos para pagar campanhas nos media convencionais e para pagar a artistas, actores, cantores e todo o tipo de personalidades nas redes sociais e fora delas está garantido, para escoar o produto armazenado e mostrar estatísticas sobre vacinação que colocarão Portugal no topo da percentagem de população vacinada. Se com tudo isto, ou apesar disto, Portugal se mantém no topo das piores estatísticas de Saúde Pública na Europa, já pouco importa.

    E dinheiro para fazer o que a Ciência diz, para se fazerem, por exemplo, testes serológicos na população (para aferir da imunidade natural e da necessidade ou não de vacinação); para isso há? Na realidade, não se sabe, até porque seria preciso que a DGS seguisse a Ciência, e que quisesse estudar e agir com prudência e exactidão.

    Aliás, Ciência é coisa que não importa à DGS – por muito que seja invocada – nem, na verdade, à maior rede social com sistema de créditos, o Facebook. Desde 2020, o Facebook tem sido um dos principais instrumentos para cortar com um dos princípios basilares da Ciência – o debate –, impondo o unanimismo da SIÊNSIA.

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    Assim, nada de escrever sobre estudos sérios e credíveis não financiados por farmacêuticas, sobre imunidade natural, sobre a inutilidade do uso de máscaras na transmissão do vírus, e muito menos autorizar vozes de cientistas que pedem com urgência a divulgação integral dos dados sobre as vacinas e os seus efeitos adversos.

    Desde 2020, quem tentar efetivamente abordar temas científicos no Facebook, será castigado – como seria na China se falasse sobre violações de direitos humanos e o direito humano à liberdade de expressão e sérias investigações científicas.

    No Facebook, como nos media, continuará a haver espaço apenas para os promotores – a soldo da DGS ou da Comissão Europeia – da SIÊNSIA.

    A SIÊNSIA é hoje o garante de um crescente controlo sobre uma população (à nora e amedrontada); é hoje o garante do aumento das vendas de produtos fármacos (pouco ou nada transparentes quanto à sua eficácia, segurança e necessidade); é o garante da criação de investidores multimilionários; é o garante de mais estados de emergência e de calamidade ilegais (que permitem a governantes alargarem o seu poder de ação e aprovar legislação outrora apenas sonhada e concretizada por ditadores).

    Infelizmente, Portugal não é o único país seguidor da SIÊNSIA. Até mesmo o Brasil de Bolsonaro, veja-se, acompanha já também essa religião. E não é por causa da questão da hidroxicloroquina, ou sequer por o ainda presidente brasileiro ter dito que a covid-19 era uma gripezinha.

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    Na verdade, poucos sabem, mas, actualmente, um brasileiro ou estrangeiro adulto não-residente só pode entrar no Brasil se tiver tomado as doses exigidas de vacina contra a covid-19. Teste negativo ou certificado de recuperação não valem. Mas se for um brasileiro ou estrangeiro residente no país a entrar, estejam à vontade. Podem entrar no Brasil aviões cheios de pessoas com covid-19, e assim espalhar o vírus no Brasil? Sim, mas esses infectados têm é de estar vacinados! Podem entrar no Brasil aviões cheios de brasileiros e estrangeiros residentes no país sem todas as doses da vacina e sem covid-19? Sim. E sem todas as doses da vacina e com covid-19? Também podem.

    Tudo isto é SIÊNSIA. Aceite e propagada como se fosse Ciência.

    O objectivo não tem já nada a ver com travar uma epidemia e um vírus. O objetivo é já só educar “o povo” sobre quem manda, e sobre o que acontece ao “povo” que não obedece a ordens, independentemente de serem irracionais e de até acarretarem potenciais problemas graves do ponto de vista da Saúde Pública, da Economia e do bem-estar.

    Restará aos portugueses racionais e agnósticos, que resistem a esta religião dita SIÊNSIA – que só na aparência ecoa como a (antiga) Ciência –, prosseguirem com as suas vidas, mas também lutarem contra o avanço desta Nova Ordem Ignorante.

  • De quem são os rios?

    De quem são os rios?


    Habituamo-nos a ver que as águas correm e que só temos de saber navegar o barco. Habituamo-nos que as águas sequem e comecem a rarear, ou que venham em bátegas e a turbulência nos impeça de atravessar em segurança. Por instinto gravado nas nossas células, é um hábito acharmos que tudo o que vivemos é natural.

    É relativamente simples separarmos as águas do hoje, caso o barulho pareça por vezes demasiado: existe, hoje, mais que nunca, o mundo real e o mundo irreal.

    man and woman standing on river

    Podemos chamar virtual ao irreal, como se ainda houvesse algo de virtuoso ou potente, como o seu étimo nos conta, mas o facto é que não deixa de ser aquilo que é: irreal, o contrário da realidade.

    Pessoas que aplicariam boas maneiras no trato umas com as outras, de repente perseguem-se por ruas e passeios irreais. Caminham, umas atrás das outras, com agressividade, e tentam rasteirar para que tombem de dentes contra o lancil de cimento (irreal). Proíbe-se o piropo no mundo (real), e vociferam-se discussões entre estranhos nas praças mais públicas deste mundo (irreal).

    Ideias que não passariam de desabafos, suspiros, degraus num caminho, passam a ser uma comunidade, pesada e enorme como um paquiderme enraivecido a bramir a tromba na direcção de quem se atravesse na procissão.

    O decoro perde-se. Jornalistas, homens (hominídeos) de letras, a quem entregamos a vigília da isenção, da transparência e da legitimidade, acham que podem, aparentemente sem ordem do pai tirano (será?), perseguir e borrar a pintura de colegas das artes e cultura. Zurram “zorro!”, levanta-se a condenação pública da multidão, mas como diz a má-língua: embrulha-se o peixe no dia seguinte com essa folha de jornal (mas isso é no mundo real).

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    Os que sobram no rio, afogam-se em torvelinhos. Podem falar que não se os ouve. Podem gritar que não se lhes admite. Podem calar, para prevenir. O exemplo fica dado: calem-se todos, cumpram as regras, serão felizes. De quem são os rios, afinal?

    No meio da propaganda há sempre algumas verdades. Propaganda não tem de ser mentira. Tem apenas de ser uma poda eficiente. Um tesourar nas expectativas, um tesourar no movimento. O ser humano está construído à semelhança da restante natureza, no seu crescimento e na sua necessidade de movimento. O sistema cardiovascular, como rios, o cérebro como uma noz, o ar a entrar dentro dos nossos alvéolos pulmonares como um brócolo, braços a estenderem-se como árvores.

    Mas a propaganda decidiu discordar disso, dessa relação absoluta (e real) do ser humano com o seu mundo natural, mesmo que na sua natureza esteja a imposição, a manipulação e a selecção artificial. Será problema antigo, talvez, a desconexão, ainda mais advinda da revolução industrial, entre o homem e a Natureza, não falta prosa e ciência (a antiga) sobre o tema. Não faltam sequer religiões – por alguma razão é muito comum que assentem muitas na ideia da expulsão de um jardim. Meu conhecimento por uma maçã, minha alma por um beijo, meu pecado por meus filhos.

    Mas a propaganda pegou nessa ideia, juntou umas observações, notou outras ideias. E, como provavelmente sempre acontece, alguém reparou que era uma óptima oportunidade de negócio.

    De que forma poderiam branquear manchas de óleo negro, aumentar lucros e criar uma histeria transgeracional? Uma simples ideia, que nem é mentira, basta ser podada como uma verdade conveniente: a pegada ecológica.

    Por exemplo, o conceito da pegada ecológica foi criado pela British Petroleum (BP).

    Essa mesmo.

    A pegada ecológica pode ser uma mera ferramenta de medição de tudo. Um único morcego na Amazónia tem uma pegada ecológica apocalíptica para as populações de mosquitos. (E que jeitinho me fazia um, um morcego, agora aqui, em Aveiro.)

    Num golpe de mestre, que conduziu a narrativa até aos dias de hoje, de repente a poluição atmosférica não era culpa “deles”. Era nossa, porque andávamos de carro (movidos a petróleo) e ainda por cima vivíamos longe do nosso trabalho (alimentado a petróleo).

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    O continente de lixo, que flutua no Oceano Pacífico, não era culpa das frotas pesqueiras industriais (movidas a petróleo), que monopolizaram o mar e largam toneladas de redes de nylon (feitas de petróleo) em cada rota. Era nossa, porque usávamos objectos de plástico (feitos de petróleo).

    O transporte, abate e desrespeito pela vida animal (derivado do petróleo), após uma horrível vida de clausura, abuso e medicação forçada, não era culpa de uma indústria sanguinária que trabalhou sempre para criar excesso de oferta, excesso de procura, excesso de lucro e excesso, excesso, excesso. Era nossa, porque comemos carne, e tivemos filhos, e fizemos férias, e lavámos os dentes com uma escova de plástico colorido.

    E a nossa camarada British Petroleum mudou as cores, para verde e amarelo, apresentou-se de cara lavadinha, de novi-bíblia debaixo do braço, e a frase “já pensou no Jesus das eólicas hoje?” Mostrou-nos a sua calculadora da nossa culpa, mediu-nos a pegada ecológica, e quantos planetas eram necessários só para nós, sozinhos!

    ten birds sits on wire

    Não contentes, como em todos os cultos, outros Golias seguiram o exemplo. Começou até a vir o brinquedo no happy meal e nas nossas escolas, e em breve uma geração, hoje adulta, aprendeu a regurgitar sem contestar, a vestir o molde sem pensar. Sem virar a capa do jornal e ver a quem pertencem os rios. Porque, simplesmente, a terra é assim, foi assim que lhes disseram que a terra era. Plana.

    Mas, como os rios correm para o mar, quem é dono dos rios sabe que eventualmente a água se salga, a ferramenta é novamente usada para cavalgar o empreendedorismo e voluntarismo desta nova geração. Adoráveis e dóceis herbívoros que inovaram a indústria, os produtos, as soluções. Um sem fim de artigos, sistemas, estilos de vida que voltam a reconectar-nos com a Natureza, reduzem a nossa pegada e garantem que salvamos o mundo a tempo!…

    E como sempre, alguém vê uma oportunidade de negócio, antes da terra ficar salgada como Cartágo.

    people walking on sidewalk pathway beside road with vehicles and high-rise buildings during daytime

    Agora, que populações histéricas, sob doses incríveis e nunca antes vistas de flúor, ansiolíticos, PLV e glúten, com o acesso mágico e transcendente ao tão desejado mundo irreal, estão na presença de um embate imenso entre impérios, agitam-se as bandeiras, quando na verdade, e digo-o numa angústia profunda de mãe, o resultado será sempre a tirania. Como em todos os rescaldos de um grande cisma.

    Primeiro aterrorizam. Depois amordaçam. Por fim esfaimam.

    E enquanto estamos nestes debates eternos, com o barquinho no meio do rio, os donos do mundo já têm o livro das revelações escrito, e já falam entre comparsas sobre a inevitabilidade da “restruturação” de tudo isto.

    Agora já é tarde. Sobra enviar estas missivas em garrafas para a água. Esperar que outros náufragos as encontrem. Mesmo que vos calem.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A idade e o senso

    A idade e o senso


    A construção da lei obedece a um negócio entre parceiros que usam esse poder de modo discricionário para se proteger e ajudar os seus amigos e construir necessidades onde constroem os seus negócios. A legislação sobre a idade dos trabalhadores do Estado é um exemplo da incoerência política.

    Por um lado, os sindicatos lutam pela reforma, os trabalhadores descontam a vida toda para a obter, equiparamos o mais possível o valor da pensão ao salário do trabalhador, e vai daí, permitimos que a Administração Pública contrate funcionários para lá da jubilação.

    man and woman sitting on bench facing sea

    Mas quem quer trabalhar depois da reforma? Porque damos lugares a pessoas com setenta e vários anos, na função pública? Na privada é frequente, e há inúmeros cidadãos que mantêm as suas empresas para lá dos oitenta, e alguns gerem os negócios mesmo aos noventa. Sinto-me útil, dirão alguns. Não sei o que fazer se sair – ouvi outras pessoas. O problema desta desconstrução está na imagem que fazemos de nós: sinto-me jovem! 

    A idade não se manifesta na auto-observação e nas nossas circunstâncias. Por esta razão, é difícil ver políticos deixarem a cena de moto próprio. Nunca chegam ao seu fim. Mandela, Gorbachov, o Papa emérito são excepções raríssimas que abdicam.

    Nas carreiras da função pública há inúmeros exemplos que se arrastam durante os últimos seis ou dez anos apenas porque sim. Não arranjaram entretém, não construíram sossego, não são capazes de se tornar associativos, ou ter funções beneméritas, ou ser opinativos. O que me entristece é a sua colocação em lugares de liderança na Administração Pública com salários opíparos.

    red green and yellow flag

    Esta insistência rompe o ciclo da renovação, a exigência da evolução e, sobretudo, prejudica o futuro. Ver homens de oitenta aos saltinhos num palco, convencidos de que são roqueiros surpreende-me as artroses, deixa-me com apertos na próstata.

    Há tanta coisa para ser, tanta realidade para viver. Não sou insensível ao mau gosto e parece-me desapropriado o avô a fingir que tem vinte anos. Também me indigna a parva decotada a visitar igrejas. Sou um conservador, já se vê.

    Por estas razões, não percebo o que fazem tantos reformados na gestão de empresas do Estado. Não percebo porque transitam pela administração os funcionários dos partidos, sem limite e sem vergonha. Presidente da Mesa da Assembleia Geral do SUCH, temos Correia de Campos. Na direcção da ADSE lá está João Proença, um camaleão de todas as funções possíveis. Na Entidade Reguladora da Saúde (ERS), o curriculum de Rogério da Carvalho é típico dum transeunte do poder.

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    Mas os reformados da Administração Pública pululam em fundações, Santas Casas, entidades financeiras. Há lugares dourados para encaixar inúmeras figuras, num Estado que se multiplicou em instituições que competem nas funções e se anulam na acção.

    Na gestão dos investimentos privados não me meto, mas na gestão de institutos, fundações, IPSS que recebem milhões da governação, acho ilícito que quem se reforma do trabalho público regresse a funções para as quais devíamos ter construído a rotação benéfica e eficiente.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um editorial que existe porque a censura cega e absurda no Facebook ainda prevalece em 2022

    Um editorial que existe porque a censura cega e absurda no Facebook ainda prevalece em 2022


    Este editorial não deveria existir. Esta tarde, pelas 16:21 horas, recebi uma notificação do Facebook: “A tua publicação desrespeita os nossos padrões da Comunidade sobre informações incorrectas sobre vacinas”.

    Que tinha eu feito? Publiquei umas breves notas, com a correspondente ligação, sobre um interessante artigo científico – repito: artigo científico – publicado no dia 31 de Agosto na revista Vaccine da autoria de sete investigadores dos Estados Unidos (cinco), Austrália e Espanha. O artigo tem o sugestivo título: “Serious adverse events of special interest following mRNA COVID-19 vaccination in randomized trials in adults.”

    Alertava apenas para as principais conclusões, e as desconformidades com o que as farmacêuticas apontavam inicialmente e o próprio regulador norte-americano (FDA) em relação às vacinas contra a covid-19, salientando que o artigo surgia com base em dados (ainda não integrais) libertados pela Pfizer e Moderna, após uma carta aberta publicada no início do ano na revista científica BMJ.

    E relembrava também as dificuldades que o Infarmed tem colocado ao PÁGINA UM para aceder aos dados das reacções adversas às vacinas contra a covid-19 em Portugal.

    Este (mais um) caso de censura – que não afectou, por agora, a própria página do PÁGINA UM no Facebook, embora corra o risco de tal suceder, afectando a sua visibilidade – sucede à censura do vídeo da entrevista ao advogado Rui da Fonseca e Castro por parte do YouTube. A censura a um órgão de comunicação social, porventura porque esse órgão de comunicação social decidiu editorialmente entrevistar uma figura polémica (não seguiu a política do cancel) e o deixou falar livremente (mesmo se eu não concordasse com algumas das suas opiniões) sem censurar qualquer parte.

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    Nestes tempos que correm, a censura cega e absurda, que nem sequer admite o mínimo debate, torna o Mundo cada vez mais pobre e mais próximo de uma Ditadura. Em apenas dois anos e pouco perdemos décadas inteiras de tolerância, civilidade, Democracia e até Civilização.

    Deixo-vos o texto integral censurado pelo Facebook. Não há já muito a dizer, excepto reiterar que se mantivermos a postura obediente e não-reactiva às redes sociais e aos Governos que não os proíbem de instituir censura prévia, acordaremos um dia amordaçados e a praticar o mais castrante dos actos: a auto-censura.


    Texto censurado na página pessoal do Facebook

    (continha printscreens de diversos trechos dos artigos e cartas abertas)

    Em Janeiro, uma carta aberta na conceituada revista científica BMJ, onde pontificava Peter Doshi, clamava pela disponibilização de dados em bruto (raw data) dos testes das vacinas contra a covid-19 da Pfizer e Moderna. O PÁGINA UM abordou esse tema.

    Nem todos foram disponibilizados, mas alguns, o que permitiu uma análise independente agora publicada na revista Vaccine, tendo Peter Doshi como um dos autores.

    Os resultados são preocupantes, não apenas por mostrar que os efeitos adversos são mais frequentes do que os indicados pelas farmacêuticas, mas sobretudo por demonstrarem que a FDA subestimou (intencionalmente?) as suas análises, não exercendo com responsabilidade as suas funções de regulador.

    Tudo isto me faz relembrar que o PÁGINA UM anda, sozinho (com o apoio dos seus leitores, é certo) a exigir que o Infarmed liberte os dados nacionais das reacções adversas às vacinas. Os argumentos dos advogados do Infarmed no Tribunal Administrativo de Lisboa têm sido lastimáveis, e espero sinceramente, para bem da transparência, que não ganhem. Nota-se que têm receio de que se saiba a verdade.

    Entretanto, numa outra carta aberta na BMJ, um conjunto de sete cientistas, a pretexto do artigo da Vaccine, clamam para que a Pfizer e a Moderna libertem mesmo todos os dados, incluindo dados estratificados por idade. Não está aqui em causa a eficácia da vacina em algumas idades, mas sim a necessidade de uma correcta análise de benefícios-efeitos adversos.

    Aliás, ler a carta aberta destes cientistas mostra como a política e os interesses económicos das farmacêuticas sequestraram a Ciência.

  • A caminho do Árctico: dia 4, a bordo do PolarGirl

    A caminho do Árctico: dia 4, a bordo do PolarGirl

    Neste “Diário de Bordo”, o quarto dia fica registado como o dia em que atravessei o Árctico a bordo do PolarGirl. Depois da euforia do dia anterior, chegou a altura de dar um passeio calmo e relaxante pelas paisagens geladas, rumo a Barentsburg, pelos fiordes, glaciares e icebergues.


    A manhã na Guest House era sempre divertida e uma oportunidade para trocar experiências, despedirmo-nos dos viajantes que partem e para preparar o novo dia.

    Neste dia, o Peter iria embora. Falei-lhe dos ursos e desejei-lhe um bom regresso a casa. “Casa… Nunca volto a casa”, retorquiu ele. Pensei que era bom lema de vida. Percorrer o mundo sem parar. Confesso que estou muito longe deste desapego. Adoro sair, ver, explorar, desafiar limites e descobrir, mas também é indescritivelmente bom o regresso a casa. (Mas, Peter, tomei nota. Não é nada má a possibilidade. No seu caso, do calor do México, veio parar ao Ártico.)

    Marcha, a simpática russa que me veio buscar para a tour, espalhou calor e a hospitalidade russa (e levou-me a recordar os dias fantásticos que passei na Rússia em 2016).

    Chegámos ao barco. Foram dadas as instruções de segurança e cada um escolheu o seu lugar. Escolhi o meu no bar, à janela, onde me sentia na primeira fila do concerto dos Coldplay.

    Entre o fiorde Isfjoren, o glaciar Esmark e icebergues, seguíamos para o nosso destino de visita a Barentsburg. Aqui, a vida selvagem também é muito abundante. Avistam-se focas, morsas, e até um urso polar.

    Durante a viagem serviram um almoço muito saboroso. Perguntei a Marcha que carne saborosa era aquela. “É baleia. Não dizemos, pois as pessoas antes de comerem acham estranho mas depois de experimentarem adoram”, disse ela. Confirmo e aprovo.

    Durante a viagem, tive a oportunidade de conhecer Jon “small Svalvard”, que foi o amigo de Matt que o avisou do local onde estavam os ursos, na véspera.

    Era muito simpático e conhecedor da vida animal, em especial do Rei do Ártico. Falou de Elsa, a ursa que avistei com os filhos, e que tinha um irmão, Frozie, um urso que foi abatido após ter invadido a tenda de um alemão. A história não acabou bem, nem para o alemão, nem para Frozie, que acabou por cair morto a poucos metros do aeroporto.

    Jon contou que, por vezes, as pessoas arriscam, fazem churrascos e dormem em tendas. Um urso cheira um churrasco a quilómetros de distância. Explicou também como funcionam os ursos quando nascem: a mãe foge com eles e protege-os até chegarem à idade adulta. Assim que pode, separa-os para não correrem o risco de se matarem e, mais ainda se outro macho se aproxima, pois, matará as crias para poder engravidar a ursa e deixar os seus genes nas novas crias.

    Enfim, um admirável mundo novo, a vida dos ursos e a sua capacidade de adaptação ao degelo e ao desaparecimento do seu habitat, como o conheciam. “Eles sobreviverão sempre”, disse Jon, falando sobre a extinção da espécie do urso polar.

    Chegámos a Barentsburg, a segunda maior cidade de Svalbard, onde russos e ucranianos vivem em paz e tranquilos, exercendo as suas diversas profissões.

    A nossa guia, Iryna, de Moscovo, a viver na cidade desde 2017, contou como é viver numa cidade que pode ser percorrida a pé numa manhã. Mas também explicou como os mineiros, desde o momento que entram na mina até que chegam ao local de mineração, perdem o mesmo tempo de viagem que um morador na gigantesca Moscovo.

    Iryna falou-nos da vida na cidade e mostrou-nos os lugares de destaque, desde o anfiteatro de cinema, cujo filme é a paisagem do Ártico, passando pela casa onde mora, a antiga casa do governador e a única com varanda, os correios, o restaurante bar, o hotel, a fábrica de artesanato e as casas mais antigas. Vimos os poucos sinais que restam do comunismo e duas cabeças de Lenine.

    Aproximámo-nos da Estação de Pesquisa Russa, a zona mais interessante, para mim. Parecia que estávamos num filme de James Bond e que, a qualquer momento, teríamos de fugir dali. Mas verdade é que os cientistas com quem me cruzo param para dizer olá. Eram simpáticos. A envolvente visual poderia ser a Lua, não estivessem ali veados a pastar. “Aqui são como vacas nos Alpes”, disse Iryna.

    Regressámos ao Polar Charter a caminho da capital e dois chineses, a residirem no Canadá, juntaram-se à viagem e decidem mostrar o vídeo de um urso gigante que encontraram a pé. “Que medo”, pensei eu. “Estávamos armados, mas sentimos medo. Acho que o urso também. Além de bem alimentado, são espertos já sabem que se estamos ali temos armas. Entrou no mar e seguiu a sua vida e nós também”, explicaram. O vídeo era impressionante!

    Chegámos a Longyearbyen. Era tempo de ir buscar a minha bicicleta e ir jantar ao Mary Ann’s Polarrigg, um hotel com restaurante muito exótico e local e mais original.

    Ali repeti o “trio árctico”, que inclui baleia, foca e rena, o bacalhau fresco selvagem e, de sobremesa, o crumble do dia de frutos vermelhos e para acompanhar um Riesling alemão.

    Findo o jantar, ganhei coragem para voltar de bicicleta para casa e apreciar a minha última noite branca em Svalbard.

    Cheguei à Guest House onde encontro Jérémie, o francês que nos chamou para ver a raposa do Árctico, e falámos sobre as histórias dos ursos… Jérémie, que estava a pensar ir até à cidade ver uns amigos, assumiu estar a ficar com medo. Ao lado faziam um churrasco e até parecia que estava a escurecer. Uma galhofa e só falávamos dos pesadelos que íamos ter com os ursos a entrar pelo dormitório.

    O serão chegou ao fim e, olhando pela janela, vejo a raposa do Árctico. Terá vindo despedir-se? Vou acreditar que sim. A nossa vida é um sonho e podemos acreditar no que quisermos.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • Lambadas em inocentes

    Lambadas em inocentes


    Por mais que se discuta sobre a violência doméstica, este tema não permite esgotar-se, infelizmente.

    Doutos conhecedores tecem considerações, apresentam números e duras críticas ao sistema. Brincam com dados, mais ou menos tendenciosos, que continuam a depender de quem encomenda os estudos. Assim, por mais que se discuta na praça pública a questão, continuamos sem encontrar soluções.

    A violência doméstica está presente em diferentes lares, não conhecendo idade, estrato social ou nível de literacia. Pratica-se violência contra mulheres, contra homens, contra crianças, contra idosos… Não devia ser assim. Assusta-me assistir ao esgrimir do tema pelos meios de comunicação. O assunto vende, e por isso lá vão aparecendo exemplos, contados na primeira pessoa, que nos tocam no coração. Lamento que haja um aproveitamento do tema e não uma verdadeira luta para erradicar este mal.

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    A solução encontra-se enraizada na educação. Na resposta integral para a construção de uma sociedade evoluída moralmente. Falta, por isso, ganhar consciência do sentido da vida. Assim, resolvendo o problema na raiz, não será necessário apontar os erros nas respostas às denúncias ou nos processos judiciais. As utopias ainda fazem sentido. Sabemos para onde queremos caminhar e temos a certeza de onde não queremos permanecer.

    A nossa integração social vive de uma resposta constante à lei do mais apto. Desde cedo apercebemo-nos de que necessitamos de esquemas e artimanhas para alcançar o que pretendemos. Entre choros e gracinhas, os mais pequeninos lá nos levam a ceder às suas vontades. Conforme crescemos simplesmente vamos apurando este nosso lado profundamente humano.

    O despertar para uma moral alicerçada numa consciência ética, está em entender o que é o homem. Não perceber isto é não entender o que é a vida. Podemos discutir política ou até mesmo religião, mas há uma inclinação natural para o bem comum que, mais que discutir devemos viver. Nem todos têm o mesmo grau de desenvolvimento intelectual; nem todos têm a capacidade de discernir profundamente os assuntos e, por isso, compete a quem é capaz de o fazer, ajudar a transformar o mundo em que vivemos num mundo melhor.

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    É nossa obrigação denunciar a violência doméstica do nosso vizinho, mas o mais importante é não sermos violentos no nosso lar. Pensar o mundo só faz sentido se formos capazes de acolher a educação moral. A violência faz parte da natureza humana. Basta atentar na nossa História para percebermos como boa parte dela se desenrolou à lei da pancadaria. Lutar contra esta tendência é inverter a nossa natureza. Qual pedra bruta, devemos deixar que o escultor nos possa talhar. Mas, há sempre uma pergunta que se impõe: que mãos é que nos vão moldar?

    Quando era criança ouvia a música Lambada, um ritmo brasileiro que escutava enquanto sonhava com o dia em que haveria de dançar com uma morena linda e bem agarradinho. Recorda-me a frescura do amor inocente. Na altura, tinha seis anos e não sabia que havia por aí outras “lambadas”…

  • A caminho do Árctico: dia 3, entre glaciares, montanhas e vida

    A caminho do Árctico: dia 3, entre glaciares, montanhas e vida

    Prestes a realizar um dos meus sonhos, de ver ursos polares no seu habitat natural, passei o dia a caminhar no meio de paisagens deslumbrantes. O frio não esmoreceu a minha vontade de ainda ir “espreitar” o cofre global de sementes. Nem de realizar o meu sonho (mais ao final do dia).


    Glaciares e montanhas. Era o que me esperava na caminhada de seis horas programada para o início do meu terceiro dia de viagem ao Árctico.

    Acordei sem despertador. Na sala do pequeno-almoço só se falava dos ursos avistados no caminho para Pyramiden, um povoado soviético abandonado junto a uma mina de carvão, tornado atração turística. Optei por não fazer essa tour, pela falta de tempo e por ser a mais turística. Por momentos, passou-me no pensamento que talvez me pudesse arrepender de não ter ido. Mas recentrei os pensamentos. Acreditava que os guias iriam dar o seu melhor para conseguirmos avistar o rei do Árctico.

    Às 9h30, os guias apanharam-me para caminhada de Sarkofagen, entre montanhas e glaciares. Eram o Frederik e o Pete, um sueco e um geólogo norueguês que está em Svalbard a estagiar. Recolhemos entretanto outros montanhistas, incluindo Roman, um lituano que está a visitar Svalbard e que depois permanece por mais duas semanas pelo norte da ilha, passando pela Islândia e Gronelândia. Sobram os dois casais sexagenários, que me fizeram recordar que é possível envelhecer em forma e saudável.

    Depois de nos mostrarem no mapa o trajeto que iríamos fazer, seguimos para o local de início da subida da montanha, que fica mesmo por detrás da Guest House. Adormecia e acordava a olhar para ela.

    Começámos a subida por um trilho com pedras muito grandes e caminhámos uns 30 metros, até termos a primeira grande subida. Olhando para trás, víamos a cidade cada vez mais longe e uma vista deslumbrante.

    As montanhas pareciam ter rostos de guardiões. Durante mais 2h30, subimos até ao miradouro, com neve e muitos pássaros. Fizemos pausa para almoço e Frederik ofereceu um chá com xarope de morango, muito doce e muito aconchegante. Estava um frio de rachar lá em cima – zero graus – e esta bebida soube muito bem, acompanhada por umas bolachas suecas também oferecidas pelo guia.

    (Pensei que era engraçado, que quando estamos longe de casa procuramos os sabores que nos confortam. Comemos o pacote todo.)

    Começou a descida até ao glaciar e, quando chegámos, colocámos a proteção nas botas para descermos o glaciar a pé. É uma sensação boa. Vamos vendo as cavernas de gelo. Frederik reconhece algumas onde já dormiu no Inverno.

    Quando chegámos a terra firme, começámos a procurar fósseis, o que tornou a tour ainda mais interessante pois, nunca tinha visto fósseis na mão e ainda podemos levar para casa.

    Conversando com Frederik, perguntei-lhe se achava boa ideia eu ir buscar uma bicicleta ao posto de turismo – que as emprestam gratuitamente por três dias – e ir até ao cofre global de sementes. Esta maravilha, que contempla todas as sementes do mundo inteiro plantadas pelo homem, encontra-se fora da zona de segurança, mas não tenho tempo de fazer a tour que leva os viajantes até a esta Arca de Noé da actualidade. Disse-me para ir e que, durante o dia, com os carros e o barulho das obras da estrada, os ursos não se aproximam.

    No final da tour, deixaram-me no posto de turismo para ir buscar a bicicleta e comecei a minha nova aventura, a pedalar como se não houvesse amanhã (nem ursos polares por perto). São 30 minutos até ao cofre global de sementes onde apenas vemos a entrada. Mas é uma experiência que recomendo, pois é a esperança de um recomeço em caso de catástrofe global.

    Quando me aproximei do cofre, tive a sensação de ter viajado para o futuro e de ter encontrado algo deixado por uma civilização que não conheci. Algo de valor. E mesmo que não soubesse do que se trata, perceberia que, lá dentro, está guardado um presente. Mas o que vejo é apenas a entrada.

    Para chegar às sementes, é preciso atravessar um túnel de 120 metros com cinco portas à prova de explosões, atravessando o interior da montanha até chegarmos a três salas com 880.000 sementes de 5.403 espécies vegetais, vindas de todos os lugares do mundo. O cofre fica trancado 350 dias por ano e só é aberto para inspeções ou para receber sementes. Em 2015, aconteceu a primeira e, até hoje, única retirada do cofre. Devastada pela guerra, a Síria tirou 38.000 espécies de sementes do Oriente Médio. Mas os criadores do bunker dizem que foi uma vez sem exemplo, pois este cofre foi construído para não ser usado.

    Regressei à Guest House na “super” bike (sendo que seria ainda mais super se fosse elétrica), numa subida de 30 minutos. Tinha 15 minutos para iniciar o percurso pelo qual tanto ansiava desde que comecei a organizar esta viagem: a possibilidade de ver ursos polares.

    Às 18 horas chegou o capitão do barco, Matt, um sueco, a quem cumprimentei. “Então, Matt, preparado para me mostrar pelo menos um urso polar? Disseram-me que esta é a melhor tour, não espero menos que isso”. Matt, um calmeirão simpático, riu-se: “Ver os ursos é todos querem, mas é muito difícil”.

    Chegámos ao barco. Éramos 12 passageiros. A guia mostrou-nos os mapas e deu duas opções de trajeto. As possibilidades eram: Pyramiden ou aos fiordes. Instantaneamente, indiquei que o destino seria Pyramiden e tentar encontrar os ursos avistados por lá. A guia perguntou-me se eu tinha ouvido algo. É que há três dias que são avistados três ursos: mãe ursa e dois pequenos de dois anos.

    Começámos a viagem. Não havia vento. O mar estava calmo. Começámos a ver golfinhos, depois baleias pequenas e ainda baleias maiores. No barco, respirava-se alegria e estava uma energia incrível.

    Senti que estava tudo a acontecer como preparativo para a aparição do Rei do Ártico. Sabia que iria ver os ursos. Sei que é estranho, mas sempre soube.

    Pedi os binóculos. Vi um barco mais pequeno junto às rochas. Era um bom sinal. Aproximámo-nos e vi algo bege nas rochas: eram três ursos. Que emoção! Estava a vê-los como sonhei, no seu habitat natural. Olhei à volta e estavam todos em êxtase.

    Vi um dos passageiros indianos ao telefone, com os olhos a brilhar. Desligou o telefone. Perguntei se estava telefonar a alguém importante. “Sim, liguei à minha mãe”, disse ele. “Estava a dormir. Na Índia, é muito tarde mas era com ela que gostava de partilhar o momento”, explicou. Fiquei emocionada a pensar que, talvez um dia, o meu filho também me ligue de um lugar qualquer do mundo, a partilhar essa maravilha que está a ver.

    Matt abriu uma garrafa de champanhe. Aplaudimos todos o seu excelente trabalho e ficámos a degustar uma maravilhosa sopa goulash, um pão delicioso e, de sobremesa, um brownie óptimo. Tudo tão simples, mas parecia o melhor de sempre.

    (Mais um sonho tornado realidade. Obrigada, Universo, por permitires que eu viva estes momentos. É o que se levamos desta vida, o que vivemos. Tudo mais fica cá.)

    Regressámos a Longyearbyen – a capital do arquipélago de Svalbard – com uma escolta de golfinhos a surfarem as ondas do barco. Um dia em cheio. Vivenciei muito mais do que podia sonhar.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook e no Instagram.

  • A PIDE nos bancos

    A PIDE nos bancos


    Parece que todos os políticos portugueses estão sob suspeita. Basta ir a uma agência bancária – como eu fui, para abrir uma conta de condomínio – para constatar esse facto.

    Aconteceu-me quando me perguntaram, entre muitas coisas, se exercia cargos políticos. E justificaram o interrogatório com a simples frase: somos obrigados a sabê-lo. E como não respondi, a conta do condomínio não foi aberta.

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    As perguntas feitas pelas entidades bancárias são intrusivas. Querem também saber o estado civil dos administradores do condomínio, se há filhos, qual a composição do agregado, a situação profissional, os rendimentos, as propriedades e por aí fora. Como se o dinheiro fosse deles.

    Os Bancos ficam assim com uma base de dados, cujo objetivo não se descortina. Onde está afinal a Comissão Nacional de Proteção de Dados?

    Um português é identificado plenamente com seu cartão de cidadão – que tem gravado os números do dito, da identificação fiscal e da Segurança Social e do Utente de Saúde. Ainda se quis juntar o número da carta de condução, mas isso foi chumbado. No limite poderia ter a indicação do tipo de sangue.

    As perguntas que se fazem numa agência bancária não têm qualquer paralelo à identificação pedida por um juiz no início de um julgamento, seja ele qual for.

    Esta fúria abusiva já se espalhou a simples consultórios médicos. Num deles queriam até saber a empresa onde eu trabalhava e o cargo que exercia.

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    A questão da abertura [de conta] leva cerca de duas horas como me foi dito. Por causa das perguntas, com confirmações e reconfirmações.

    Fiquei cinco minutos, para me despedir do funcionário bancário e dos meus companheiros de administração do condomínio.

    Em rigor, esta prática, para além de abusiva, é até absurda. Se tivermos em conta a escandaleira dos banqueiros que deram sumiço, nos últimos anos, a largas dezenas de milhões de euros.

    Esses sim, andavam com a mão na massa dos portugueses.

    Já agora quais foram as perguntas feitas a esses senhores?

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


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