Categoria: Opinião

  • Suécia: os frios ventos da mudança

    Suécia: os frios ventos da mudança


    No momento em que escrevia ainda se contavam os votos das eleições que ocorreram no passado domingo, para o Parlamento sueco. Os dois blocos que podem formar governo estavam separados por 0.7%. Em concreto, por um lado, 49% para a “geringonça” formada por socialistas, comunistas, verdes e centristas; e, por outro, 49.7% para a aliança de direita formada pelos moderados (o mais parecido com o PSD sueco) liberais, democratas-cristãos e democratas suecos (o Chega local).

    Até ver apenas três partidos ganharam votos relativamente às últimas eleições: socialistas, verdes e nacionalistas, sendo que estes últimos, com uma forte campanha contra os emigrantes, passaram a ser a segunda força política no Parlamento sueco.

    aurora borealis over body of water during nighttime

    Toda a discussão em torno dos emigrantes é interessante, mas deixá-la-ei para outro texto, depois de ver a constituição do Governo. Aquilo que, de facto, me intriga nesta retórica da emigração são os números.  Na Suécia, como em Portugal, o saldo de emigrantes que contribuem para o país com impostos é esmagador, quando comparado com os que beneficiam das ajudas.

    Ainda assim, lá como cá, a narrativa de que “vivem à nossa conta” vai rendendo dividendos. Seria até interessante que deixassem a Suécia apenas recheada de louros. Gostava de ter dedos para contar as falências no dia em que os dois milhões de emigrantes e descendentes arrumassem a trouxa.

    Há ainda assim uma saturação da população com o actual estado de coisas. Isso parece-me óbvio. Julgo que não será pelo comportamento do Governo durante a pandemia, onde foi, provavelmente, o melhor e o que mais respeitou as liberdades individuais em toda a Europa.

    Mas as repetidas crises de refugiados parecem ter deixado marca. A Suécia ainda não aluga terreno no Ruanda para enviar para lá os desesperados que fogem das guerras (como faz por exemplo a vizinha Dinamarca), mas as portas vão-se, lentamente, fechando.

    Resultados das eleições legislativas às 12:00 horas de hoje. Fonte: Aftonbladet.

    Um em cada cinco eleitores votou no partido que anunciou no Twitter que a próxima paragem da comunidade afegã seria Cabul. E apenas com bilhete de ida.

    Os liberais anunciaram que queriam as ruas livres de islâmicos e até os moderados (PSD), entraram no ataque racista na tentativa de captarem alguns votos à extrema-direita.

    Como a cópia nunca é melhor que o original, acabaram por contribuir para a subida dos nacionalistas. Aliás, em todo este processo há vários pontos de contacto com Portugal. Ulf Kristersson, líder dos moderados comprometeu-se em 2019, aquando de uma visita a uma sobrevivente do Holocausto, a nunca colaborar com os nacionalistas.

    Agora, sendo imperativa a sua presença para que a direita seja governo, apressa-se a discutir pastas e alianças com Jimmy Åkesson, o André Ventura lá do burgo. Parece uma repetição dos Açores com as contradições de Rui Rio, de então, a serem agora refletidas na governação sueca.

    Os socialistas foram o partido mais votado com os comunistas a aparecerem com a quarta força. Democratas-cristãos e liberais aparecem, respectivamente, em sexto e sétimo.

    Não me sinto particularmente confortável que 20% da população vote num partido que persegue etnias, raças ou credos, mas fico ainda mais perplexo com a incoerência do povo. Há pouco mais de dois meses, metade da população disse que queria entrar na NATO por receio da Rússia de Putin. Agora votam em massa num partido simpatizante com a política do nosso Vladimir, um dos vários que, de Budapeste a Varsóvia, passando por Paris e Roma, ali encontraram um parceiro.

    À direita há a promessa de baixar impostos e, claro, reduzir o Estado Social. Esse mesmo que faz da Suécia o primeiríssimo Mundo onde ninguém morre à porta de um hospital ou adormece na rua. O sítio onde a progressividade dos impostos não se destina a parcerias público-privadas (PPPs), a bancos ou a estradas sem fim, mas sim a educação universal e ajuda à população.

    Na Suécia recebemos o que pagamos em impostos. Tudo. Da creche à universidade, da Segurança Social ao desemprego. Até quando, é o que nos falta descobrir.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Portugal vai ter um GRITE – Gabinete de Registo das Incompetências e Trapaças do Estado

    Portugal vai ter um GRITE – Gabinete de Registo das Incompetências e Trapaças do Estado


    O Ministério do Ambiente e da Acção Climática e o seu titular, Duarte Cordeiro, estão tão imbuídos da missão de facilitadores e fazedores do Bem que, enfim, até na fase de consulta pública do denominado Simplex Ambiental – ou, mais pomposamente, do diploma que visa a “simplificação de licenças e procedimentos para empresas na área ambiental” – dão dicas para quem quiser comentar ou tecer recomendações, até amanhã.

    Escrevem eles – ou, enfim, o Governo – que se deve incluir “uma reflexão sobre impactos em termos de custos de contexto (i.e., aumento ou diminuição de encargos associados ao cumprimento das obrigações legais que decorram desta iniciativa legislativa)”, e que se considere “o custo de oportunidade associado ao tempo em que os procedimentos administrativos ficam parados (ou seja, a duração média dos processos de licenciamento) (…), bem como ao facto de, na prática, não ser possível, muitas vezes, beneficiar efetivamente da figura do deferimento tácito.”

    Duarte Cordeiro, ministro socialista do Ambiente e Acção Climática

    O diabo costuma estar nos pormenores; mas, neste caso, aparenta estar em toda a proposta, e em todo o seu esplendor. Todo o diploma cheira mal em cada um dos seus poros.

    Sejamos claros: com este diploma – que também elimina a obrigatoriedade de muitos projectos de apresentarem avaliação prévia do impacte ambiental (em grande parte sob o “chapéu” da urgência de medidas de descarbonização, bondade que parece justificar tropelias e atropelamentos) –, o Governo não deseja desburocratizar.

    Não o move, na verdade, encurtar prazos para o avanço daqueles projectos com impacte ambiental que, com a devida e ponderada “regulação” da Administração Pública, mereceriam sempre uma aprovação. Se assim fosse, bastaria ao Governo eliminar algumas redundâncias burocráticas, e apostar sobretudo num reforço dos meios humanos e técnicos, retocando a logística administrativa. Aumentava-se a eficiência da máquina administrativa, e eis que tínhamos prazos encurtados e tramitações simplificadas.

    Ah, mas isso não! O Estado não quer instruir nem treinar os “jogadores” que lhe batem à porta, fazendo com que acertem as suas bolas numa baliza estreita. O bondoso Estado – ou melhor, o Governo que circunstancialmente detém o poder de gerir o território do país – está disposto a arranjar uma baliza gigantesca, onde tudo caberá: os projectos normais, que seriam aprovados mesmo com avaliação de impacte ambiental, e, enfim, os outros projectos “anormais” que, com as actuais regras do jogo, jamais seriam aprovados.

    giant petrel

    Portanto, assim se conseguirá, com o álibi de acelerar prazos – como se o ontem já fosse tarde para os amanhãs gloriosos – autorizar todas as tropelias.

    Porém, aquilo que verdadeiramente me assusta neste diploma é a figura do “deferimento tácito”. Causa-me calafrios. Apetece logo puxar da pistola (leia-se, caneta) e disparar sem perguntas nem remorsos.

    Sou jornalista desde os anos 90, e ademais comecei no jornalismo ambiental e de urbanismo, pelo que bem sei o significado de um “deferimento tácito”: caminho aberto para esquemas menos claros.

    Para quem não conhece o termo, o deferimento tácito significa uma aprovação por ultrapassagem do prazo de análise pelo Estado. Ou seja, é um prémio concedido pelo Estado à incompetência involuntária ou intencional da Administração Pública. Ou ainda um prémio ao requerente que, por “artes mágicas”, consegue que, algum funcionário estatal ou membro do Governo, vá colocando outros projectos em análise sempre em cima do seu, de modo que, enfim, hélas, o prazo passa… e voilà, aprovação.

    No diploma em causa, promovido pelo bondoso ministro Duarte Cordeiro, conta-se 25 vezes o termo “deferimento tácito”, e lá estão estabelecidos, em detalhe, os trâmites, céleres e desburocratizados, para a obtenção de um “licenciamento de secretaria”. Portanto, passa o prazo, e o promotor de um determinado projecto tem a garantia de que, fazendo um requerimento electrónico, a Agência para a Modernização Administrativa lhe passará uma “certidão no prazo de três dias úteis”, após os serviços tutelados pelo ministro do Ambiente confirmarem, no prazo de um dia, que houve deferimento tácito. Se os serviços do ministro do Ambiente nada disserem em um dia, segue a certidão à mesma.

    Modelo de requerimento previsto no Simplex Ambiental para o pedido de deferimento tácito.

    Só para mostrar que não se cumpriram prazos de análise, o Estado mostra rapidez e eficiência.

    Tão competente se mostra Duarte Cordeiro em prever os momentos de incompetência da Administração Pública que, vejam lá, até já se preparou um “modelo de certidão de deferimento tácito” (vd. página 128 do Simplex Ambiental).

    Reza assim: “A presente certidão atesta que (colocar a firma ou nome do interessado) obteve uma (colocar a designação legal do tipo de ato requerido e que foi obtido por deferimento tácito) para (identificar a atividade permitida através do ato de deferimento tácito). As autoridades públicas competentes devem, para todos os efeitos legais, assumir que a (colocar a firma ou nome do interessado) obteve todos os atos necessários para a realização da atividade em causa junto das entidades competentes, não podendo, designadamente, aplicar coimas por ausência da licença/autorização/permissão necessária para o desenvolvimento desta atividade.

    Eis como se produzirá um salvo-conduto para todo o tipo de arbitrariedades, sob a capa da bondade da transição energética, para salvar o Planeta do aquecimento global torpedeando todos os princípios de conservação da Natureza que demoraram décadas a consolidarem.

    E vejam lá ainda, pormenor relevante: Duarte Cordeiro é tão amigo do deferimento tácito que até o concede mesmo se o requerente nunca tiver pagado quaisquer taxas enquanto aguardava que a Administração Pública se mantivesse incompetente.

    Perante isto, tenho uma proposta para Duarte Cordeiro: em vez de ser a Agência para a Modernização Administrativa a gerir os deferimentos tácitos, crie o GRITE, acrónimo de Gabinete de Registos das Incompetências e Trapaças do Estado. Pelo menos, fica mais claro aquilo que sairá deste Simplex Ambiental.

  • A Europa de von der Leyen não é só dela; é também a minha (e a tua) Europa

    A Europa de von der Leyen não é só dela; é também a minha (e a tua) Europa


    Muitos foram os discursos de políticos e burocratas de Bruxelas que ouvi ao longo de mais de duas décadas como jornalista. Invariavelmente, têm pontos semelhantes. Vamos ficar “mais fortes”, “mais unidos”, sendo sempre “solidários”. A Europa vai conceder “ajudas” e “apoios” para investimentos e “desenvolvimento” deste ou daquele setor, desta ou daquela indústria, consoante o tema popular da época. E a Europa vai prevalecer.  

    É comum haver referências nos discursos a “direitos humanos”, “democracia”. E, de novo, “solidariedade”. A moda do “temos de cuidar uns dos outros” ganha forma nos últimos discursos. Sendo que ainda não percebi se é só aplicável à “plebe” ou se também se aplicará essa máxima aos poderosos e aos seus amigos em multinacionais e bancos, aqueles que andam em jactos privados e a quem nunca faltará água nem luz.

    Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e Vladimir Putin na Conferência de Berlim, em 19 de Janeiro de 2020

    Em todo o caso, a expressão “cuidarmos uns dos outros” e pelo “bem comum” ditas por políticos e burocratas europeus faz-me hoje lembrar mais – e de forma arrepiante – o regime totalitário Chinês, devido ao comportamento de Bruxelas na pandemia. 

    O discurso da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, falhou em trazer algo de novo. Cumpriu o esquema habitual dos discursos escritos pelas equipas de comunicação: mostrar força, identificar inimigos a combater (“nós, os heróis e bons, contra os vilões e maus) e, claro, esperança, solidariedade. Muita esperança e solidariedade. E paz no Mundo, como nos concursos das “Misses”. 

    Estes discursos fazem-me lembrar os guiões já escritos e repetidos pelos vendedores de call centers. A pessoa do lado de lá do telefone muda. Mas o guião para vender o seguro ou ou serviço de TV e Internet é sempre o mesmo. 

    Gostaria de estar aqui a escrever algo diferente. A aplaudir o discurso de um líder europeu, que mostrasse um caminho claro de prosperidade e bem-estar para a Europa e os seus cidadãos, com a promoção da diversidade e inclusão, e com reformas urgentes e políticas e decisões de investimento estudadas e a pensar no longo prazo.   

    Xi Jinping, presidente da República Popular da China

    Mas, no discurso de von der Leyen, vi o habitual. Dinheiro que será transferido para o desenvolvimento de certos negócios e setores de atividade para encher os bolsos de alguns a pretexto de uma “necessidade” e uma crise que, por acaso, foi criada por decisões políticas irresponsáveis.

    A distração gerada em torno do “inimigo a combater” – da China à Rússia. Como se a Europa não tivesse os seus próprios inimigos cá dentro, bem no coração do Velho Continente. Os “inimigos” de hoje são os “amigos” de ontem e serão, de novo, os “amigos” de amanhã, consoante as conveniências políticas, económicas e financeiras. Mas servem bem como distração dos verdadeiros inimigos e problemas dos europeus. Um inimigo exterior distrai o “povo”. Resulta sempre.

    Nos últimos dois anos, tudo o que a Europa representava no Mundo foi reduzido a pó pela Comissão Europeia. E von der Leyen tem sido o rosto dessa destruição e dessa traição à Europa. 

    Foram enterrados direitos humanos. Foram eliminados direitos civis. Foi implementado um regime de segregação, com cidadãos de classe A e de classe B. Responsáveis da Comissão Europeia proferiram discursos de incentivo ao ódio contra europeus que optaram por se manter sem vacinas contra a covid. Chegaram a falar em pandemia de não vacinados – o que era totalmente falso.  

    white and black printed paper

    Foram introduzidas leis e normas que limitam o direito à informação por parte da população e reprimem a liberdade de expressão. Foram promovidas barreiras à transparência, o que tanto favorece a corrupção e negócios opacos e lesivos para os cidadãos – veja-se o caso dos contratos com farmacêuticas. A Ciência foi substituída por uma religião ligada às farmacêuticas e interesses políticos, com cientistas de renome a serem ignorados e as suas opiniões e avisos a serem postos de lado.  

    Destruíram-se pequenos e médios negócios enquanto bancos e grandes grupos reforçam lucros. Criou-se pobreza, aprofundou-se a desigualdade e retirou-se ainda mais dignidade a trabalhadores. O estado da economia, o disparar dos preços dos bens e serviços, a diminuição do poder de compra, são um espelho de políticas irresponsáveis levadas a cabo na Europa, nos últimos dois anos. 

    Mas, o pior de tudo, foi a destruição causada ao nível de vidas. O número de vítimas covid é um pavor em comparação com países que aplicaram medidas fundamentadas cientificamente e com bom senso (com a Suécia a sobressair nesta matéria).

    O número de mortes em excesso em países europeus é hoje um pavor. Portugal está no topo. Estão a morrer mais adolescentes e jovens, incluindo em Portugal. Não há investigações independentes ao que se está a passar. Não se quer investigar nem perceber. Mas sabe-se que os confinamentos foram destrutivos e sabe-se que faltou o bom senso e a verdadeira Ciência em medidas aplicadas em países europeus, incluindo Portugal.

    person wearing gold wedding band

    (Basta lembrar a promoção da concentração de consumidores nos supermercados, aos sábados de manhã, em plena pandemia, entre muitos outros exemplos.)  

    O apoio à guerra na Ucrânia e a solidariedade para com os ucranianos – esta, naturalmente necessária – foi o motivo usado para, de forma consciente e intencional, os líderes europeus atirarem a Europa para um possível Inverno gelado e sabe-se lá quais os direitos civis e humanos que serão pisados com o pretexto de “crise energética” e das alterações climáticas. 

    Este é o Estado da Nação na Europa.

    Mas, algo de muito positivo tem acontecido nos últimos dois anos. Cidadãos têm-se levantado e expressado a sua voz em defesa dos valores europeus e do modo de vida europeu. Cidadãos têm-se unido em comunidades, em projetos ecológicos, têm criado movimentos, empresas, projetos. Cidadãos têm-se conectado, têm debatido. Têm-se manifestado.

    person in red sweater holding babys hand

    Além dos burocratas e políticos de Bruxelas, com os seus discursos preparados e amigos em multinacionais, existe toda uma Europa vibrante, viva e poderosa, livre, solidária, constituída pelos seus cidadãos, famílias, empresas. Eles são a alma deste Continente e, com as suas culturas, semelhanças e diferenças, fazem, no seu dia-a-dia, esta Europa em que vivemos, com o que tem de bom e o que tem a melhorar. 

    Honestamente, é nesses que tenho esperança. Nos europeus e nos que, não sendo europeus, encontraram na Europa a sua casa. Esperança que se unam cada vez mais em comunidades e projetos em comum. Que criem negócios e empregos. Que criem famílias.

    No entanto, numa coisa concordo com Ursula von der Leyen: a democracia está em risco. E, no caso da Europa, a presidente da Comissão Europeia é uma das responsáveis por ter colocado a democracia em perigo, com as políticas seguidas desde 2020.

    Se nada fizermos para promovermos o debate e para se implementarem políticas alternativas às que têm sido seguidas por Bruxelas, a Luz que a Europa foi outrora para o Mundo extinguir-se-á.  

  • Pode não parecer, mas estamos a prevalecer bem para vencer melhor…

    Pode não parecer, mas estamos a prevalecer bem para vencer melhor…


    Ursula von der Leyen discursou esta manhã em Bruxelas uma boa horita. Ou como Fidel lhe chamaria, “uns bons cumprimentos iniciais”.

    Garantiu algumas coisas que me deixaram deveras descansado, logo a mim, confesso contribuinte europeu preocupado.

    Desde logo disse que “Putin falhará e a Ucrânia e a Europa prevalecerão”, e que as sanções à Rússia são para manter, e que as ajudas financeira e militar para a Ucrânia são para manter. Positivo: até porque, como se tem visto, este é um caminho de sucesso… Garantido!

    Ursula von der Leyen, ao centro, ladeada pelas comissárias europeias.

    Depois ainda explicou que a Europa e as suas democracias vão prevalecer, e que Putin falhará. Uma vez mais, parece-me uma excelente abordagem; porém, fico meio baralhado com a inclusão da nouvelle democracia ucraniana.

    Como sabemos, antes da invasão, a Ucrânia era um estado altamente corrupto, e naqueles rankings da limpeza aparecia ali bem pertinho da Rússia. Coloquemos os pontos nos iis: se, de repente, a Coreia do Sul invadisse a Coreia do Norte, não passaremos todos a dizer que uma democracia saudável foi invadida, certo?

    Uma merda maior invadiu uma merda mais pequena, tudo certo. Mas, por favor, evitem o discurso do Bem contra o Mal, e, especialmente, não besuntem merda com aroma de rosa, porque o cheiro não muda.

    A Rússia tem que perder esta guerra, e a Ucrânia, no cenário ideal, não deveria perder um metro de terra. Foi o que defendi na altura do Kosovo, Geórgia e qualquer outra anexação – não vou falar na mais antiga para não aborrecer os não-camaradas.

    Portanto, mantenho a coerência. Agora, não pintem a Ucrânia como vales verdejantes cheios de Heidis, porque aquilo não é, e nunca foi, algo parecido com uma democracia saudável ou de padrões europeus.

    Por fim, no seu discurso, Ursula, sabe-se lá porquê, ainda invocou a Elisabete II como exemplo maior dos valores europeus e da democracia. Aí já não dá Ursula… f$#@-se. Quem é que te escreve os discursos? Uma rainha que foi a zero eleições é um exemplo de democracia? Perdi alguma aula na escola e passei a História administrativamente, enquanto os conceitos eram alterados nos gabinetes?

    Entretanto, Lagarde ouviu este discurso e puxou logo da calculadora para encontrar o próximo aumento da taxa de juro. Aguardo em pulgas…

    Fiquei, contudo, na dúvida apenas em duas ou três coisitas, que talvez um de vós, mais estudado, me possa elucidar.

    Quem nos pede tantos esforços, e discursa de forma épica, sentindo-se um Churchill de Bruges, por acaso também leva cortes salariais? Perde poder de compra? Paga prestações ao banco? Passa anos com o mesmo salário?

    É que, se percebi bem, pode não ser o caso.

    A Europa prepara-se para ajudar os seus cidadãos nas faturas da electricidade – julgo que virá um pacote para as rendas de casa e a própria Ursula, certamente imbuída de um espírito venezuelano, já disse que é altura de limitar os preços e taxar as petrolíferas pelos lucros extraordinários.

    Portanto, vivemos uma fase de lucros desmesurado, jackpot de impostos, migalhas e esmolas para o povo e nada de aumentos salariais reais.

    Assim sendo, julgo que estamos a prevalecer bem para vencer melhor. Por mim é continuar:  também não tinha nada de especial planeado para os próximos cinco ano anos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Inflação: foi V. Exa. que pediu uma desculpa? Ou deseja antes uma explicação?

    Inflação: foi V. Exa. que pediu uma desculpa? Ou deseja antes uma explicação?


    Há umas semanas, Vítor Constâncio deu uma entrevista à RTP a respeito da inflação, com aquele ar doutoral que o caracteriza (cansado até), a viver o “produto” de muitos anos de milionárias sinecuras oferecidas pelo partido em que sempre militou. Com um semblante que parecia reflectir um certo enfado, lá respondeu às perguntas do jornalista José Rodrigues dos Santos, que parecia, sem ironia, vir bem preparado.

    Este último iniciou a entrevista com a seguinte questão:

    – Não terá o Banco Central Europeu (BCE) actuado demasiado tarde em relação à inflação?

    blue and yellow star decor

    Em resposta, Vítor Constâncio utilizou mais ou menos estas palavras: – A inflação, até Agosto do ano passado (2021), esteve sempre abaixo de 3%, ou seja, enquadrada no objectivo de 2%. Só no final de 2021 a coisa piorou, passando os 3% e por aí fora, até ter ficado evidente que teria de existir um ciclo de subida de taxas de juro, iniciando-se mais cedo nos Estados Unidos. Qualquer variação das taxas de juro leva tempo a produzir efeitos.

    Seguidamente, Rodrigues dos Santos ripostou: – Não deveria ter ocorrido uma actuação mais cedo, dado que agora temos a inflação a destruir os salários?

    Vítor Constâncio voltou a responder com um ar professoral: – As taxas de juro demoram tempo a fazer efeito e, por conseguinte, mesmo que tivesse ocorrido uma actuação mais atempada, não teria havido grande diferença na taxa de inflação que hoje temos…”porque… repare… os grandes pulos na inflação deveram-se a grandes choques internacionais de preços; primeiro o Petróleo, depois a alimentação, o trigo e outros produtos alimentares intermédios… que deram origem ao aumento dos preços”.

    Vítor Constâncio, antigo vice-presidente do Banco Central Europeu

    Interrompendo, Rodrigues dos Santos retrucou direito à “ferida”, com estas palavras: – Mas não houve uma enorme impressão de moeda pelo BCE por alturas da pandemia?

    Eis que o “professor” contesta com enorme protérvia: – A impressão de moeda não é a causa da inflação que se atribuiu durante muito tempo, na chamada visão monetarista das coisas. Veja que, entre 2008 e 2015, 2016 e mesmo 2017, ocorreu impressão de moeda, ou seja, um aumento espectacular do balanço dos Bancos Centrais e não houve inflação durante todos esses anos! Portanto, essa teoria da emissão monetária não tem aqui grande justificação. O ponto aqui é que a inflação começou com choques externos, primeiro na energia, depois na alimentação e, claro, começou a partir de certa altura, mas só este ano, nos preços internos. A política monetária tem de tentar mitigar precisamente isso.

    Resumamos então as palavras de Vítor Constâncio:

    1 – A impressão de dinheiro não tem qualquer relação com a inflação;

    2 – A inflação, que estamos presentemente a viver, é fruto de um truque de prestidigitação: o resultado de choques internacionais nos preços, gerando “pulos”.

    Mas esta propaganda estatal não se ficava por aqui. Na semana passada, no inacreditável discurso da esmola, o nosso primeiro-ministro atirava: “… consequência da pandemia e, sobretudo, da guerra da Rússia contra a Ucrânia, temos vindo a sofrer um brutal aumento da inflação que atinge duramente o poder de compra das famílias…”. Aqui a inflação não apareceu por magia, digamos por choque, mas já foi consequência da pandemia e da guerra na Ucrânia.

    stack of books on table

    Importa deixar algo claro a estes senhores que o único responsável pela inflação é o Governo, pois tem o monopólio da emissão de moeda, através do seu Banco Central, juntamente com o sistema bancário – que apenas pode operar caso possua uma licença bancária – , que igualmente emite moeda quando concede créditos por contrapartida da emissão de moeda.

    Mais ninguém gera inflação. Não é o Putin, não é a “pandemia”, nem tão pouco são os “choques ou os pulos” dos preços.

    Quem gera inflação é o Banco Central e o sistema bancário por si licenciado e supervisionado – mais ninguém!

    Como expliquei neste vídeo, quando há emissão de dinheiro não ocorre qualquer produção de bens ou serviços, não há aumento de riqueza, apenas a sua redistribuição. É como uma pirâmide de flutes de champanhe: os copos mais próximos do topo (neste caso, os mais favorecidos e os apaniguados do Estado) são os primeiros a receber o champanhe; enquanto os que estão abaixo (os pobres) recebem apenas gotas, mas já a saberem mal, em resultado de preços inflacionados.

    A inflação é, na verdade, um roubo dos ricos e poderosos aos pobres, nada mais. Os ricos vêem os seus activos e propriedades a valorizar, o Governo vê as suas receitas a disparar e a dívida pública a diminuir, tanto em termos reais como em peso do Produto Interno Bruto (PIB).

    Vítor Constâncio diz-nos que, entre 2008 e 2017, houve uma impressão massiva de moeda, mas não houve inflação. Diríamos mesmo que, desde o final de 2008, não aconteceu outra coisa que não seja a impressão massiva de moeda e inflação. Vejamos o balanço do principal Banco Central do Mundo: a Reserva Federal norte-americana (FED).

    Evolução do balanço da Reserva Federal norte-americana entre 2009 e Agosto de 2022, em biliões de dólares. Fonte: St. Louis Fed; Análise do autor

    Entre o início de 2009 e o final de 2017, o balanço duplicou, ou seja, subiu 110%, a um ritmo anual de 8,6%. Esta emissão é amplificada 10 ou 20 vezes pelo sistema bancário, pois esta nova moeda é creditada a seu favor, podendo assim conceder crédito com uma pequeníssima fracção destas reservas.

    Isto foi o que precisamente sucedeu durante aquele período até ao início da “pandemia”: os bancos norte-americanos concediam crédito com juros de 0% às grandes empresas, como a Apple ou a Tesla, por contrapartida da criação de moeda – ou seja, inflação. Com esta liquidez compravam as suas próprias acções nas bolsas de valores e faziam subir as cotações. Uma redistribuição a favor dos accionistas destas empresas, algo que o Dr. Vítor Constâncio não se deve ter apercebido seguramente.

    Vamos utilizar um momento-chave dos Bancos Centrais, quando a administração do Banco Central Europeu (BCE) – na altura presidido por Mario Draghi, e com Vítor Constâncio a ocupar a vice-presidência – anunciava a 26 de Julho de 2012: “… está pronto para fazer o que for necessário para preservar o euro; e acreditem que isso será suficiente…”.

    O que é que aconteceu com as cotações das principais acções norte-americanas e os principais índices bolsistas no período entre Julho de 2012 e o início da “pandemia”, no final de Fevereiro de 2020: a Tesla subiu 2 521%, ao ritmo anual de 54% ao ano, a Amazon 845%, ao ritmo anual de 34%, e por aí a fora. Para os multimilionários norte-americanos, este período foi de enorme bonança. A inflação seguia inteiramente a seu favor.

    Retorno do preço da acção ou pontos do índice entre 26 de Julho de 2012 e 28 de Fevereiro de 2020
    (Unidade: %; medido em Euros). Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    O que é que aconteceu com o imobiliário para o mesmo período: o índice “S&P/ Case-Shiller U.S. National Home Price Index”, que mede os preços do imobiliário para as principais cidades norte-americanas, subiu 50% entre Julho de 2012 e o início da “pandemia”, a um ritmo anual de 5,4%, muito longe da suposta inexistente inflação que nos anunciava Vítor Constâncio na entrevista.

    Mas podiam dizer-nos que os lucros da Tesla foram excepcionais e subiram vertiginosamente durante este período, justificando tal subida meteórica. Não, nada disso. Entre 2012 e 2019, a Tesla nunca apresentou lucros para nenhum exercício. Em 2017 até apresentou perdas colossais de 1,9 mil milhões de dólares (fonte: Macrotrends).

    Mas agora vamos ver o que aconteceu com as obrigações que foram objecto de ajuda por parte do BCE de Vítor Constâncio, após anúncio salvífico do euro em Julho de 2012.

    Na figura seguinte podemos ver que inflação foi coisa que “nunca existiu”, em particular para as obrigações gregas que subiram 644%, ao um ritmo anual de 22%, desde o épico anúncio de Mario Draghi até aos nossos dias. Tratou-se de um verdadeiro milagre para um Estado falido, que tem hoje uma dívida pública superior a 220% do PIB e que, antes da ajuda de Mario Draghi, se financiava nos mercados acima de 35%!

    Evolução mensal do preço e da taxa de juro implícita das obrigações emitidas pelo Estado grego com maturidade a 10 anos (Unidade: índice e %). Fonte: Investing (Thomson Reuters Greece 10 Years Government Benchmark). Análise do autor

    Para o mesmo período, as obrigações portuguesas subiram 146%, as espanholas 86% e as italianas 61%, uma verdadeira festa para bancos e multimilionários, que à boleia da inflação dos Bancos Centrais viram uma importante fracção da riqueza mundial ser canalizada directamente para os seus bolsos.

    Mas eis que chegou um vírus com uma taxa de sobrevivência superior a 99%: era necessário imprimir dinheiro como se não houvesse amanhã. Pela primeira vez, os Estados deixaram de se preocupar com quem lhes pagava a conta. O processo foi e é simples: enormes défices financiados com a emissão de obrigações e adquiridas pelos Bancos Centrais por contrapartida da emissão de moeda. Inflação sem limites!

    No caso do Banco Central norte-americano, o FED, desde o início da “pandemia” até hoje, subiu o seu balanço em 4,5 biliões de dólares (12 zeros); o BCE não ficou atrás, imprimindo praticamente a mesma quantia, neste caso em euros.

    Então o que aconteceu entre o início da “pandemia” e o início da guerra da Ucrânia? Como podemos ver na figura seguinte, o petróleo subiu 351%, ao ritmo anual de 121%.

    O petróleo, no final de Março de 2020, valia 20 dólares por barril (cerca de 18 euros) e no dia 23 de Fevereiro de 2022 – um dia anterior à invasão da Ucrânia pela Rússia – valia 92,1 dólares por barril (81,3 euros).

    Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas entre 30 de Março de 2020 e 23 de Fevereiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor

    Para o mesmo período, a madeira subiu 323%, ao ritmo de 113% por ano, o gás natural 169%, ao ritmo anual de 68%, a aveia 155%, ao ritmo anual de 64%, e por aí fora.

    A impressão massiva de dinheiro para as pessoas “ficarem a casa”, enquanto se lhes dizia que iria “ficar tudo bem”, gerou uma enorme inflação. Não foi o resultado de um truque de magia, mas uma inflação deliberadamente criada pelos Governos.

    Será que estas subidas foram mais ou menos acentuadas após o início da guerra da Ucrânia?

    A partir de 22 de Fevereiro até finais de Agosto, de entre 22 matérias-primas, apenas sete subiram a um ritmo anualizado superior – assinaladas a cinzento –, ou seja, 30%, aproximadamente.

    Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas entre 23 de Fevereiro de 2022 e 29 de Agosto de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Destaque para o gás natural que subiu 131% até ao final de Agosto de 2022, a um ritmo anual de 411%. Esta subida deve-se, não só à inflação criada pelos Bancos Centrais, mas também à “estúpida” política de sanções da União Europeia (UE).

    Em conclusão, a presente inflação que estamos a viver é da exclusiva responsabilidade dos Governos, que têm o monopólio da emissão de moeda, juntamente com o sistema bancário com uma licença governamental, que lhes autoriza a prática de reservas fraccionadas, uma prática altamente inflacionária.

    Numa primeira fase, esta “loucura” foi apenas um fenómeno de ricos: carros antigos, arte, acções, obrigações, imobiliário, passes de jogador de futebol, imobiliário…

    black and silver laptop computer

    Numa segunda fase, a impressora trabalhou com tal intensidade, que a massa monetária criada foi parar essencialmente às mãos dos apaniguados do Governo, a quem lhes foi proporcionada uma procura completamente artificial e desnecessária: testes, máscaras, vacinas, contratação de funcionários públicos de forma massiva, subsídios para o “fique em casa”, etc.

    Esta “liquidez” foi usada para adquirir bens que fazem parte do cabaz de compras utilizado para medir a inflação. Desta vez, não foi possível ocultar, daí a necessidade da propaganda e dos truques de prestidigitação.

    A inflação é o aumento de massa monetária: isto é, um monopólio do Governo e do sistema bancário autorizado pelas autoridades. Nada mais.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.

  • A pandemia nas prisões

    A pandemia nas prisões


    Quem nunca esteve na prisão não sabe como é o Estado, Leon Tolstói

    A covid-19 fez, em Março de 2020, soar os alarmes no Ministério da Justiça.

    Ninguém sabia nada sobre a doença e a única preocupação era evitar que ela se propagasse.

    As cadeias tiveram, desde logo, o tratamento habitual quando se desconhece aquilo que se combate: o máximo de restrições.

    man holding chain-link fence

    A ignorância leva a seguir “a voz do povo” e, todos sabem, “vale mais prevenir do que remediar”.

    Aproveitando o Estado de Emergência, entretanto decretado, foi determinado que as visitas dos familiares fossem reduzidas ao máximo. De duas visitas semanais, de uma hora cada, passaram a uma única visita, por semana, e de meia hora.

    Deixaram de poder entrar três visitantes por recluso para passar a um único.

    Colocaram barreiras de acrílico entre reclusos e visitantes.

    Mas não distribuíram máscaras, nenhuma cadeia tinha uma gota de gel, não havia desinfectantes para as celas ou sanitários. Nem as famílias os podiam entregar sendo obrigatória a compra dos mesmos nas cantinas das cadeias (onde os preços são os de lojas gourmet).

    Veio a campanha de vacinação “que foi um êxito” com mais de 90% dos reclusos vacinados.

    low-angle photography of lighthouse

    Entretanto as crianças, presas com as mães, em Tires, não recebiam qualquer vacina. Sequer as do Plano Nacional de Vacinação.

    Talvez porque não estava na moda…

    O estado de emergência não foi renovado depois de 30 de Abril de 2021, pelo que, a partir de 1 de Maio desse mesmo ano, passou a vigorar a situação de calamidade, com muito menos restrições, que praticamente terminaram, por decisão do Governo, três meses depois, a partir de 1 de Agosto.

    Mas, é sabido, as cadeias são um mundo à parte.

    Rara é a Lei que ali é cumprida.

    man in brown jacket and brown pants holding black smartphone

    Nem mesmo a Lei de Execução de Penas, que devia reger a vida dos reclusos, é respeitada.

    Todos os dias, em todas e cada uma das prisões de Portugal, os reclusos são vítimas do atropelo às Leis por parte de quem a devia cumprir escrupulosamente. Até para, pelo exemplo, ajudar na reabilitação.

    Dificilmente se poderá encontrar uma maior perversidade do que esta do Ministério da Justiça não cumprir a Lei em relação a cidadãos privados da liberdade por também a não terem cumprido.

    Mas é o que acontece. Para vergonha de todos.

    Num momento em que a vida voltou ao normal – com estádios de futebol, espaços destinados a concertos, transportes públicos, repletos de gente sem máscara –, o que se passa no interior das cadeias?

    Em nenhuma prisão portuguesa se cumpre a lei das visitas, continuando as restrições quer no que respeita ao seu número (deviam ser duas semanais, com pelo menos uma delas ao fim de semana devido aos familiares que trabalham ou estudam); tempo de duração, que devia ser uma hora e não meia hora ou quarenta e cinco minutos, com permissão de entrada de três visitantes por recluso, e não um ou dois, com as crianças de um ano de idade a contarem como adultos.

    Para mais, cúmulo da ilegalidade, as visitas íntimas estão proibidas se os visitantes, ou os reclusos, não estiverem vacinados, mesmo que apresentando testes negativos.

    Isto sabendo-se que as vacinas não são obrigatórias.     

    Todas estas medidas podem ajudar na gestão das prisões.

    Quanto mais restrições, menos trabalho para guardas e funcionários.

    Se isso justifica o incumprimento da Lei é questão diferente. Mas com que poucos se preocupam.

    Únicas conclusões possíveis:

    A Tutela considera um êxito o facto de não ter morrido um único recluso, por covid-19, o que é, sem dúvida, um sucesso a registar.

    Ninguém comenta o facto do número de mortes, por diversas outras causas, e o de suicídios nas cadeias portuguesas – muito pelo agravamento das já péssimas condições de vida e pela quebra dos laços familiares – tenham aumentado, neste período, para o dobro do habitual.

    brown and white short coated dog in cage

    O modo como a covid-19 é encarada nas cadeias portugueses permite não só perceber o total desprezo do Poder Político em relação aos reclusos, e seus familiares, como também provar que as prisões são, no nosso país, feudos geridos à vontade dos directores e chefes de guarda sem qualquer supervisão do Ministério da Justiça ou, sequer, da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.

    E razão têm os que dizem que os muros das cadeias servem, principalmente, não para evitar que haja fugas, mas para que não se veja o que se passa lá dentro.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O “energético” senhor Macron

    O “energético” senhor Macron


    Levámos com um guardanapo encharcado na cara atirado pelo presidente francês Macron. Diz ele que afinal já não precisa de um gasoduto português para nada.

    Temos recebido de braços abertos os franceses reformados e ricos, que não pagam cheta de impostos em Portugal. Que compram todas as casas do Bairro Azul e dos outros sítios chiques, e voilà.

    De troco, Macron não considera prioritário um gasoduto com origem em Portugal, que receba os navios gigantescos de gás no porto de Sines.

    factories with smoke under cloudy sky

    Macron risca também Espanha, que tem 33% da capacidade de armazenagem de gás da Europa. E está ligada à Argélia, um dos maiores produtores mundiais.

    O senhor Macron prefere reactivar 27 centrais nucleares francesas, há muito fora de uso.

    Ele quer uma França imperial, ao estilo de Napoleão – que foi precursor de Hitler, que até fez um pacto germânico-soviético.

    Em 2022, sem a Grã-Bretanha, este é afinal o caldo da actual Europa.

    A atitude do presidente francês é uma enorme asneirada estratégica. É um retrocesso político estúpido. Pior, só à política da alemã Merkel, que pôs a Europa totalmente dependente da energia de Putin, durante os últimos 16 anos. Até parece de propósito.

    Esta decisão de Macron é também uma forte machadada na intelectualidade portuguesa, ainda muito magoada com as três invasões dos exércitos napoleónicos. Nunca esquecidas, e que foram autênticos pilha-galinhas, em roubos escandalosos e arrasos.

    Emmanuel Macron, presidente da França.

    Nem sequer deixaram de pé quem lhes perguntou pelo país-paraíso da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.

    Já se percebeu há muito que a nossa salvação energética está do outro lado do Mediterrâneo, na Europa Romana. Onde poderia reinar o progresso e a harmonia, sem tantos afogados que inundam a nossa consciência.

    Que raio de Europa é esta, que se diz cristã?

    Que deixa morrer milhares de homens, mulheres e crianças no nosso querido Mediterrâneo…

    Será que a França ainda não digeriu os “pieds-noir” e continua com a mania dos impérios?

    Ó senhor Macron, a história do Rei-Sol teve um final infeliz. Não aprendeu na escola?

    José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Por uma lágrima tua

    Por uma lágrima tua


    Querido Pedro

    Soube agora da morte do teu Pai.

    Até parei de escrever, numa parálise de pura tristeza.

    O que é que nós podemos fazer? Mandar-te um beijo muito carinhoso e muito solidário, desde já. Mas claro que não chega. Eu já não tenho nem Pai nem Mãe[1], e sei perfeitamente que nunca estamos “preparados“: no dia em que eles se vão embora, na nossa vida há sempre um terramoto.

    gray scale photo of angel statue

    Eu já perdi praticamente toda essa geração da minha família, todos os tios biológicos e todos os tios que eram os amigos dos meus Pais, e que me ajudaram a crescer em tudo aquilo em que os meus Pais não podiam ajudar.

    Ofereço-te a morte que me tocou a mim esta semana, só para te fazer companhia.

    Ontem morreu a Joana Bénard da Costa, uma tia que estava sempre a dar-me descomposturas por eu não me vestir “normalmente“, por pôr as maminhas de fora na praia, por não disciplinar minimamente aquela minha enorme cascata de caracóis, e sobretudo por “fazer demasiadas coisas”:

    PÁRA! PÁRA! Não tens necessidade nenhuma de ser jornalista, estudar biologia, cantar num coro, e fazer teatro, tudo ao mesmo tempo. Já fizeste mais em vinte anos do que um africano faz na vida inteira! Assim nunca terás tempo para pensar!” – tudo isto com imenso humor, e com um gozo mesmo cáustico, que foi sobretudo brilhante quando eu me casei com o Meguinha (AKA António Mega Ferreira):

    Armindo Duarte Vieira (n. 15/12/1938; m. 09/09/2022)

    Então agora vais resolver os teus problemas armando-te em madame? Ó Clarinha, não é assim que os problemas se resolvem. Ainda bem que agora já há divórcio, porque tu não vais aguentar um papel desses. Dou-te dois anos de senhoreca, e já vais com sorte.”

    Por acaso aguentei sete, se bem que nos últimos dois já estivesse sozinha em Buffalo.

    Ontem a Joana morreu.

    Nos últimos anos, já no lar mas perfeitamente lúcida, passava a vida  a telefonar-me porque queria estar comigo. Há vinte anos que não sabia nada de mim, nem tinha percebido nada do que me fizera desaparecer, nem sabia o que é que eu andava para aí a fazer agora.

    Olhe, Joana, Saturei-me de Lisboa, sabe? Saturei-me completamente. Achei que ia morrer se continuasse lá. Então olhe, vim viver para Estremoz, e…

    Para Estremoz? Foste ter com o Zé Filipe?

    Ó Joana, então? O Zé Filipe é casado e tem filhos!

    Olha que na tua geração, pelo que eu vejo por aí… Vá lá, ainda por cima com o Zé Filipe… Temos mesmo que falar!

    E eu completamente tesa, frequentemente doente, tudo tão difícil. Eu e os meus amigos com quem cresci bem tentámos trazer a Joana a Estremoz, mas por uma razão ou por outra nunca foi possível. Essa tal última conversa que ainda íamos ter, a conversa em que eu lhe explicava tudo e depois lhe contava tudo do que andava a fazer, e de caminho esclarecia que não andava a fazer nada com o Zé Filipe[2]… a conversa em que ela havia de ser cáustica e irónica como sempre, e fazer-me acordar para o facto óbvio de que nenhuma mulher de 62 anos se veste assim…

    … Pois é, íamos sempre a tempo, mas agora o tempo acabou.

    Ontem, durante a noite chorei, chorei, chorei, agarrada ao lince de peluche da WWF sonegado ao neto da Didi, que é um purista e da WWF só queria pandas[3], pelo que não ligou nenhuma ao meu lince e eu foi género,

    Ai o menino não quer? Então olhe, quer a tia, quando não estiver ninguém a ver – ou acha que um lince tão lindo ficava aqui para ir para porcos?[4]

    Agora é todo o grupo da minha idade, todos os putos com quem passeei pelas praias, cantei, tive conversas complicadas, vivi aos dezoito anos a minha primeira grande paixão[5] que por acaso era daqui de Estremoz[6] —  somos nós, todos os que cresceram com o sarcasmo perfeito da Joana, quem tem pela frente a tarefa hercúlea de ser tão bom perante a vida como os seus pais e como os amigos deles.

    man walking on hallway

    Tudo isto para te dizer que estou à disposição, absolutamente, se puder ser útil nalguma coisa. É óbvio que uma expressão tão brutal como the confort of strangers nunca poderia ter sido cunhada ao acaso. Foi cunhada porque os desconhecidos, exactamente porque nada os mancha no nosso passado, nos confortam mesmo. Eu já senti isso na pele centenas de vezes. Passo eternidades em salas de espera relativas a coisas tristes e perigosas.

    E, em termos de suavizar as dores de pessoas,  eu até sei ser coach, sei fazer Reiki, e sei dar massagens terapêuticas[7]. Recuso-me a dar ou receber Shiatsu, porque não há técnica que deixe uma pobre desgraçada que já estava toda partida ainda mais completamente partida[8]. No Feng Shui, por favor não me peçam que acredite. E a porcaria do Pilates… quando quiseres rir pede-me que te conte a história da minha inesquecível sessão de Pilates, ministrada por uma fufa americana.

    Clara Pinto Correia

    Estremoz, 12 de Setembro de 2022


    [1] …e, como continuava a canção que começava com “É tão bom ser pequenino/ Ter Pai, Ter Mãe, Ter Avós” – a quadra fecha com “Ter confiança no Destino/ E ter quem goste de nós”. Esta última parte ainda é mais difícil de engolir do que a primeira. Por muito que nos custe, sabemos que Pais e Avós hão de ir-se embora. Mas descobrirmos que eles nos mentiram… que é perigosíssimo ter confiança no destino e que não há assim tanta gente como isso que goste mesmo de nós… Ah, caracóis! Isso dói!

    [2] Já estou há quase dois anos em Estremoz e nunca mais o vi. Claro que tenho pena. Mas não propriamente pelos motivos que a Joana pensava.

    [3] Símbolo da WWF, como se sabe. Mas é verdade, eles agora até já fazem linces, e são lindos! Fica a sugestão para quem tiver netos, ou netos de amigos, menos autistas do que o da Didi.

    [4] Há que ver que eu pertenço à geração da Faculdade de Ciências que lançou a Campanha SALVEMOS O LINCE E A SERRA DA MALCATA. E que fui a primeira jornalista portuguesa a escrever prontamente duas páginas sobre o assunto, já que, nos anos 80, o pessoal nem sequer sabia o que era um ecossistema. À minha frente ninguém brinca com o lince. Nem os netinhos fundamentalistas.

    [5] O tal Zé Filipe, só podia.

    [6] Mais propriamente, dos Arcos. Mas íamos e vínhamos a pé. E foi assim que começaram os meus longos amores com Estremoz, já timidamente iniciados aos 16 anos, com colónias de férias na Serra de Portalegre.

    [7] É verdade. Fiz estes cursos em Harvard, para lidar melhor com a dor crónica.

    [8] Depois da minha última experiência com o Shiatsu tive que tomar uma daquelas bombas americanas para as dores que têm mais morfina do que qualquer outro componente. Foi o que valeu. Mas, francamente – não é para depois ter que se encharcar em opioides que um gajo vai à massagem!

  • Simplex Ambiental: um embuste a caminho

    Simplex Ambiental: um embuste a caminho


    No país em que a avaliação de impacto ambiental é encarada como uma chatice, ainda por cima, cara, que deve ser ultrapassada por forma a chegar ao licenciamento final;

    No país em que todos os esquemas são usados para fazer aprovar um projecto;

    No país em que há uma completa desconsideração pelo território, pelas suas características e pelas populações que nele habitam;

    group of people beside water

    No país em que temos vastas áreas de território ao puro abandono pelas autoridades que dele deviam cuidar, à mercê de todas aqueles que o querem explorar sem piedade, desconsiderando o passivo ambiental que deixam pelo caminho um passivo ambiental do qual ninguém quer saber;

    No país em que se abatem milhares de árvores em prol da descarbonização;

    No país em que se destrói o montado de sobro em prol da descarbonização;

    No país em que o património agrícola mundial está em vias de ser destruído às mãos da extração do lítio;

    No país em que se limpam ribeiras com glifosato e se acha que limpar uma linha de água é o mesmo que limpar o quintal lá de casa;

    No país em que se assiste a uma completa destruição do solo com vastas zonas de onde é arrancado todo o coberto vegetal, seja para plantação de novas culturas como o abacate, seja para “plantação” de painéis solares;

    two trucks on plant field

    No país em que se espalha a ideia de que a seca é combatida pela construção de uma dessalinizadora;

    É, pois, neste país, em Portugal, que uma legislação, actualmente em consulta pública, sobre simplificação de licenças e procedimentos para empresas na área ambiental deve estar a provocar a abertura de garrafas de champanhe.

    Afinal, a ser aprovada esta nova lei, já não será necessário torcer diplomas, produzir estudos de impacte ambiental que são atentados à inteligência, usar favorecimento pessoal, e principalmente, nessa medida, o “progresso” já terá uma via rápida, sem constrangimentos ambientais.

    Só a título de exemplo – e mesmo só a título de exemplo, já que as canalhices se multiplicam ao longo do diploma –, vejamos algumas das maravilhosas inovações que este diploma oferece aos investidores.

    Antes de mais, o próprio projecto de diploma é ambicioso, e não esconde ao que vem. A dada altura pode ler-se: “Serão futuramente adotadas novas iniciativas legislativas com o mesmo propósito de simplificação e redução dos encargos administrativos para as empresas também noutras áreas, incluindo, em especial, o urbanismo, ordenamento do território, indústria, comércio e serviços e agricultura.”

    black framed eyeglasses on top of white printing paper

    E continua, vincando bem os casos de em que deixa de ser necessário avaliação de impacto ambiental (AI). Este, aliás, aparenta ser o principal objectivo.

    Querem instalar 100 hectares de painéis solares? Não há necessidade de AIA.

    Projectos de loteamento? Deixa de ser necessário AIA.

    Querem transportar energia eléctrica até 15 Km e 110 KV? Não há necessidade de AIA.

    Se determinadas situações já foram analisadas em sede de AIA, já não haverá necessidade de avaliação pelas entidades competentes. Por exemplo, projectos localizados em área de Reserva Ecológica Nacional (REN), já não serão analisados pelas respectivas comissões de coordenação regional (CCDR’s). Projectos de utilização não agrícola de terrenos agrícolas, já não serão objecto de parecer da comissão da Reserva Agrícola Nacional (RAN). O abate de sobreiros e azinheiras já não necessitarão de pareceres prévios e vinculativos por parte do Instituto Nacional de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).

    clear plastic water bottles

    Também há caminho escancarado para a aprovação tácita – ou seja, aprovação por mero decurso do tempo, sem que a autoridade de AIA tenha ponderado sobre o projecto. Uma vergonha, e tenho para mim que esta será a nova moda em termos a aprovação de projectos de avaliação de impacto ambiental.

    E pronto. Está aberto o espaço para a completa desagregação do território, sendo que a técnica é, como em outras ocasiões, tornar legal aquilo que antes era ilegal.

    Mas porquê que este diploma é totalmente ilegal?

    A actual legislação sobre avaliação de impacto ambiental é produto de uma transposição de Directivas europeias, que têm vindo a ser sujeitas a actualizações, mas sempre no contexto de legislação europeia.

    Ora, perante isto, a mera circunstância de vir um decreto-lei do Governo, que não constitui transposição de coisa nenhuma e que só visa alterar (no sentido de facilitar) legislação comunitária, é desde logo ilegal atento o primado do direito europeu sobre o direito nacional.

    Não estou com isto a dizer que, ao nível interno, não possam existir alterações àquilo que está definido em termos de critérios para avaliação de impacto ambiental. O que estou a dizer é que, essas alterações devem fazer-se sempre dentro do espírito da lei europeia e nunca para contorná-la.

    Conforme dito no Acórdão do Tribunal de Justiça (Quinta Secção), de 21 de Março de 2013, Salzburger Flughafen GmbH contra Umweltsenat, a margem de apreciação de que dispõem os Estados Membros, quanto “à fixação dos limiares ou critérios para determinar se um projecto destes deve ser sujeito a uma avaliação de impacto ambiental (…) tem os seus limites na obrigação (… ) e submeter a um estudo do impacte ambiental os projectos susceptíveis de ter efeitos significativos no ambiente, nomeadamente pela sua natureza, dimensões ou localização”. Estas três dimensões, não sendo excludentes de outras são inafastáveis.

    people walking on street during daytime

    Já num outro Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, relativo à Irlanda, diz-se que um “Estado membro que fixe os critérios e/ ou os limiares só tendo em conta as dimensões dos projectos, sem tomar em consideração igualmente a natureza e a sua localização, excede a margem de apreciação de que dispõe.

    Recorro a decisões do Tribunal de Justiça porque o direito comunitário vai sendo interpretado a partir dessas decisões, sendo uma fonte segura, inclusivamente, para sabermos para onde podem ir algumas das alterações legislativas.

    O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias tem vindo a decidir de forma consistente que um projecto, mesmo de dimensões reduzidas, pode ter efeitos significativos no ambiente quando for situado num local em que os factores ambientais – tais como a fauna e a flora, o solo, o clima ou o património cultural – sejam sensíveis à mínima modificação.

    E ainda mais importante, os limiares ou critérios fixados pelos Estados “têm o objetivo de facilitar a apreciação das características concretas de um projecto, para determinar se o mesmo está sujeito à obrigação de avaliação, e não o de subtrair de antemão a essa obrigação.”

    man in black shirt sitting beside woman in white shirt

    É fácil perceber onde está o espírito da legislação ambiental e em que sentido vão as decisões judiciais… na Europa.

    Vamos agora viajar de regresso ao nosso processo legislativo, àquilo que está em causa com esta “simplificação de licenças e procedimentos para as empresas na área ambiental”.

    Não tenho dúvida de que o diploma será aprovado. Seguindo o curso legislativo normal, terá de ser ratificado pelo Presidente da República, que pode enviar o diploma para apreciação do Tribunal Constitucional. Marcelo não o fará, porque não quer conflito com o Governo e não quer ficar associado a nada que possa “emperrar” a aplicação dos fundos do PRR.

    Mais uma vez cabe-nos, a nós, a oposição a este tipo de legislação. Legislação que em si mesma é ilegal. Uma das formas de o fazer é participar na consulta pública, e fazer saber a nossa total oposição a esta nova legislação, a partir DAQUI, até dia 16 de Setembro.

    Rui Amores é advogado.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A coerência do incómodo

    A coerência do incómodo


    Gostava de ver legalizada a prostituição. Gostava de ver legalizado o casamento múltiplo. Gostava de ver legalizada a venda de drogas e o consumo delas. Gostava de ver diminuir muitas leis que conduzem pessoas à cadeia. Uma coisa é a violência, o desconforto provocado pelos ladrões, pelos bêbados, pelos condutores agressivos, mas outro assunto mais fácil é a fronteira do que é lícito e do que estamos dispostos a tolerar.

    Há uma baliza que nos incomoda quando empurram, quando insultam, quando maltratam, mas depois há uma fronteira nebulosa quando discutimos a linguagem, quando falamos de género em vez de sexo, quando queremos usar terminologia explicativa para profissões de sempre.

    silhouette of three woman with hands on the air while dancing during sunset

    A criada é uma técnica, o cobrador é um oficial, o varredor é um funcionário. Os grandes mestres da nebulosidade estão no Parlamento Europeu a montar leis que nos obrigam, a garantir certificações que nos manietam, a desenhar regras que nos bloqueiam.

    Não queremos um Mundo sem leis e sem regras e sem balizas, mas queremos mais flexibilidade que é julgada e aferida pelos resultados, que é estudada e quantificada pelos registos.

    Há um bom senso que nos permite viver em sociedade, mas não queremos vestir todos com fardas, não desejamos que todos tenham guias orientadoras, que tudo se baseie em definições padrão. Não queremos as maçãs todas iguais e do mesmo vermelho, não queremos bananas sempre curvadas do mesmo modo. Não queremos batatas redondas e sem terra.

    man in black jacket standing near body of water during daytime

    A produção gerada por esta ideologia da concentração destruiu a mercearia em favor do supermercado, matou a Baixa das cidades para criar centros comerciais, impediu-nos de ser auto-suficientes na energia, atacou os consultórios para fazer grandes clínicas.

    Gostava de ver legalizadas as drogas e esclarecidas as fronteiras do que é o crime sob seu efeito. Gostava de encontrar prostitutas que podiam passar recibos. Gostava de ver a Manuela com os seus três maridos.

    Tudo o que não me prejudica, não interfere comigo, não bule o meu quotidiano, pode e deve ser liberalizado. Tudo o que é conflito, o que nos perturba o dia a dia, deve ser bem esclarecido.

    A venda de álcool tem de ser aferida com os comportamentos dos utilizadores. Deve haver pessoas a quem não se pode vender, e que só por consumir são penalizadas. Penalizar para mim é trabalho, é deslocação, é redução de salário, não tem de ser cárcere.

    two yellow and red wooden doors

    Retirar pessoas dos seus espaços de conforto, deslocalizar, reduzir salário, mudar de funções, tudo pode ser caminho de castigo para quem ultrapassa a fronteira. Há um gigantesco abismo entre esta opção e a realidade certificadora de hoje.

    A fronteira deve ser defendida pelos cidadãos, e por isso defendo a denúncia para aferir o nevoeiro, objetivando o que são as zonas de desconforto. Construir uma baliza a partir da análise da coerência do incómodo. Isto daria trabalho, mas permitia entender o limite com base na tradição e na tolerância. 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.