O mercado não funciona em Portugal, porque o capitalismo está entupido para felicidade dos podres-de-rico portugueses.
A prova são as 730 mil casas desocupadas, sinalizadas em relatório da OCDE de 2019. Se o mercado funcionasse, o preço das casas e as rendas estariam a baixar em flecha. É a lei da oferta e da procura.
Em rigor, vivemos num sórdido caldo misto de salazarismo e de regime soviético. Queremos ter muitas casas para amealhar, e invejamos as cinco casas do primeiro-ministro António Costa e a casona do Robles do Bloco de Esquerda.
Hoje, temos uma maioria absoluta do Partido Socialista, mas afinal não serve para mudar as leis do arrendamento da Assunção Cristas.
O primeiro ministro prefere andar no jigajogas dos números da inflação, do equilíbrio dos aumentos, nos cortes nas pensões. Mas não toca no essencial: o escândalo da habitação em Portugal, que até já foi reportagem na EuroNews.
Não podemos ter medo de dizer a verdade, quer se seja socialista, popular-democrata ou cheguista.
O problema do nosso dia-a-dia são as escandalosas prestações e as altíssimas rendas de apartamentos, que custaram seis vezes menos o preço da avaliação. Às vezes, um décimo.
Andamos há anos encher os bolsos a bancos, que nos emprestam dinheiro e que já emprestaram aos construtores.
Mas não pode haver lucro? Sim, mas em excesso é roubo!
Pior, depois esse dinheiro desaparece, e o Governo tem de aprovisionar alguns bancos, sacando aos rendimentos suados do trabalho dos portugueses.
Mas, claro!, os podres-de-rico e os Governos agora têm sempre à mão o mesmo disco riscado: a culpa é da invasão da Ucrânia, de sermos uns calões e de termos comprado uma casinha a bochechos.
Prometem ajudar-nos… mas continuam a comer-nos as papas na cabeça.
José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Não penses no cheiro da roupa passada a ferro, até porque a ruga no colarinho da camisa não deixa que te concentres na chama da vela junto ao caixão, e num funeral tão prolongado até o luto fica enjoado com o cheiro de flores e laca do cabelo, não havendo pois espaço para cheiros confortáveis e limpos.
Não penses no cheiro da roupa passada a ferro, até porque mesmo que mantenhas essa honraria de domingo no teu modesto lar, começa a ser urgente reveres teu gesto sempre que tenhas que pôr mais moedas no contador e dar à manivela para fazer faísca.
Também podes ir buscar brasas… O quanto perguntaste à tua avó como se vivia? Até me sento mais direita junto dela enquanto “avó, como fazias?” e por entre um gracejo rouco diz-me ela todos os truques de viver à míngua e construir uma vida, sorrisos, filhos, netos, bisnetos, um telhado sem goteiras e um chão com mais que terra batida.
Minha querida avó Mila. Esta fica para ti, que me dizias “açúcre” em vez de açúcar, só para me arreliar em pequena.
Sabes que os gatos têm inveja dos pássaros e, se murmuram miados na varanda ao vê-los passar, é porque se lamentam da sua pesada sorte de serem os caçadores e não a caça.
Rainhas, príncipes, princesas, corregedores, presidentes, ministros, senhores assessores. Tudo gatinhos com inveja de pardais, tão preocupados parecem viver com treparem ao topo da árvore para depois nem saberem descer. Quem os vir julga até que alguém precisa deles, aos ares que se dão, às adorações que movem.
Houve até uma madame que se fartou de fazer bonecos de cera à escala real de cada uma das figuras. Figurões. Figurinos. Fez mal!
Se era para usar cera espetava-lhes ao menos um pavio no cucuruto para nos alumiar as noites frias de inverno europeu! O que devia ter usado era caco! Vinha aprender umas coisas para os nossos lados e fazia figurinos de loiça destas tão poderosas criaturas, tão preocupadas em mandar. Mas pequeninos, assim, para caberem no louceiro. Umas miniaturas todas catitas a petrificarem estes seres tão importantes que ali ficam a servir de amparo ao pó dos dias, pousadas em filinhas ordenadas na prateleira de vidro para todos nós vermos, a Rainha e a Diana, o Gorbatchev e o Regan, o Biden e o Trump, o Putin e o Schwab…
Sabes que a arte de adicionar mais farinha nas pataniscas também se aprende com sorrisos.
O meu avô Moura um dia chegou mais cedo do trabalho com fome, viu um saquinho de pó branco em cima dos armários e assumiu que seria farinha. Estranhamente, ele bem que vertia o polme na frigideira, mas aquilo sumia-se!… Assim, puff!… como o nosso ganha pão hoje em dia!
Afinal era potassa. A minha avó tinha pedido que lhe dessem um saquinho para arear os tachos e o meu avô arruinou-lhe a dádiva na frigideira.
Típico. Assim, txi!… como os senhores dos bancos, e os gatos invejosos e os figurinos de louça (todos alinhados na prateleira, pó bem espanado, reduzidos à sua insignificância).
No fim do dia, das vidas e das mortes que se coleccionam, se tens ou não asas, importa muito que tenhas abrigo. Os abrigos e as casas não nascem nem brotam do chão. Constroem-se. E constroem-se conforme o terreno em que se querem pôr de pé.
Podes afundar estacas de madeira até terreno firme, podes compactar pesadamente em pedra líquida, podes até flutuar…
Mas sempre, sempre a tentar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Ontem, durante a manhã foi publicada a evolução dos preços ao produtor na Alemanha para o mês de Agosto: os preços subiram 45,8% em relação ao mesmo mês do ano passado! A inflação criada durante os últimos dois anos pelo Banco Central Europeu (BCE) está assim de boa saúde… e não se deveria recomendar.
Resta-nos o consolo de ter servido para pagar a funcionários públicos e apaniguados do Estado durante os dois anos da “pandemia”, para que estes pudessem estar em casa sem fazer nada e a ver séries Netflix. Vai ficar tudo bem! Lembram-se?
Nos últimos dias, não parámos de escutar sobre a necessidade de tributar os “lucros excessivos” das grandes empresas. Pessoalmente, parece-me que a única entidade com lucros excessivos até à data tem sido o Estado português. Aliás: saiu-lhe a lotaria!
Apenas à boleia da inflação, e em relação a 2021, no primeiro semestre de 2022, o Estado português logrou obter mais 5,7 mil milhões de Euros de receita fiscal e mais mil milhões de Euros de contribuições para a Segurança Social. Não é um total, é um acréscimo em relação a 2021 – e apenas para a primeira metade do ano. A este ritmo, no final de 2022, poderá resultar numa receita adicional de 13,4 mil milhões de Euros, algo como 1.325 Euros a cada português.
Para uma família de quatro pessoas (pai, mãe e dois filhos), o Estado português irá obter uma receita adicional no valor de 5.306 Euros. Os 350 Euros que serão devolvidos em Outubro (125 × 2 + 50 × 2) representam apenas 6,5% do “assalto”. Depois de despojar, de forma pungente, o ladrão, qual samaritano salaz, devolve uma migalha do butim. Aparentemente, reina a felicidade entre todos. Vai ficar tudo bem! Não é?
Entretanto, sabemos que a Grande Líder Europeia, eleita ao melhor estilo de uma ditadura comunista, apresentou um grandiloquente plano de redução do consumo de energia, em que constam medidas do tipo: “use menos”. Depois de ter proibido os europeus de adquirir energia ao maior produtor mundial, temos agora medidas absolutamente inovadoras e geniais, que a nenhuma cabeça se lhe tinha ocorrido: “use menos”.
Podemos estar descansados: os Estados Unidos sofreram, certamente, o mesmo boicote comercial quando bombardearam e invadiram nações soberanas como o Vietname, o Camboja, a Sérvia, o Iraque, a Somália, o Afeganistão, a Síria – sim, a Síria, precisamente, a área rica em Petróleo, está a ter lugar nos nossos dias –, Granada; enfim, a lista é infindável. Além disso, as sanções à Rússia estão a resultar: quando o frio apertar, iremos usar lenha. Vai ficar tudo bem! Não é?
Entretanto, o Estado português voltou a confiscar os proprietários, num novo ataque aos “ricos e fascistas”, visando proteger os “fracos e os oprimidos”, os inquilinos. O criminoso quer ser o único a gozar da inflação criada pelo seu Banco Central, mais ninguém pode beneficiar do saque.
Durante a década de 70 e 80 do século passado, em particular durante o período “revolucionário”, o parque habitacional português ficou em ruínas devido ao congelamento de rendas, que não acompanharam a evolução da inflação, mas parece que a insanidade nunca tem fim. Aplicar a receita que não resultou é o lema. Vai ficar tudo bem! Não é?
Entretanto, depois do discurso da esmola, parece que alguns demoraram a compreender que o maior esquema em pirâmide da História da Humanidade, denominado Segurança Social, está próximo da falência. Aparentemente, só agora começam a compreender que o confisco dos jovens a favor de um exército de idosos não irá terminar bem.
Todos os esquemas em pirâmide têm um fim: ele anuncia-se quando os novos idiotas que entram no esquema são insuficientes para pagar as saídas. Para perpetuar a fraude, o poder não quer assustar os idiotas, mas apenas diminuir o confisco dos que desejam sair. Vai ficar tudo bem! Não é?
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do PÁGINA UM.
Em 23 de Dezembro do ano passado, o jornal Público, que tem como director o senhor Manuel Carlos Carvalho (como surge inscrito na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista), decidiu publicar um artigo intitulado “Dados clínicos de crianças internadas em cuidados intensivos com covid expostos nas redes sociais”, que fazia eco de ataques soezes de certos sectores da comunidade médica – leia-se, Ordem dos Médicos e seus apaniguados – ao PÁGINA UM, que nascera dois dias antes.
Em causa estava um artigo da minha autoria que revelava dados oficiais anonimizados de internamentos de crianças, provando assim que, mesmo podendo ocorrer hospitalizações por covid-19 em idade pediátrica, estas sempre foram extremamente raras e atingindo aquelas que já possuíam graves comorbilidades.
Manuel Carlos Carvalho, director do Público
Ora, como se sabe, houve pedidos meus de direito de resposta para diversos órgãos de comunicação social – todos inicialmente recusados, mas que viriam, com grande atraso, a ser alvo de decisões favoráveis por parte da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).
Assim, no passado 24 de Agosto, após um longo processo, a ERC viria a deliberar a procedência ao meu recurso por “denegação ilícita do direito de resposta por parte do Público”, exigindo que o jornal do senhor Manuel Carlos Carvalho publicasse o direito de resposta.
Com legitimidade para tal, o Público tomou a decisão de contestar a obrigatoriedade de publicação do direito de resposta através de uma providência cautelar com efeitos suspensivos.
Mas, se esta estratégia do Público se mostra legítima – sobre a moralidade, não me pronuncio por agora –, também possibilitou confirmar com que linhas se cose o jornal do senhor Manuel Carlos Carvalho.
Num dos pontos do articulado do Público pelo seu advogado, Francisco Teixeira da Mota – prezado jurista da liberdade de imprensa, que curiosamente até já prefaciou um livro da minha autoria, pese embora repetidamente escreva “Paulo Almeida Vieira” no processo –, consta a seguinte pérola onde se “justifica” os motivos para se ter chamado “página de negacionistas anti-vacinas no Facebook” ao PÁGINA UM sem o identificar justa e correctamente como um normal órgão de comunicação social (que o Público sabia que era):
“A omissão do nome da página do Facebook ou do jornal que a alimenta foi uma decisão deliberada da Direcção Editorial do jornal PÚBLICO e da editora da secção da Sociedade que, com sentido de responsabilidade, não quiseram dar publicidade à publicação que, manifestamente, tinha tomado posições claramente atentatórias contra a necessidade de se criar consenso social em favor da vacinação, algo que o jornal assumiu e defendeu desde a primeira hora”.
Eis aqui a confissão da mais abjecta postura doutrinária de um jornal. A confissão expressa da Direcção Editorial do jornal Público de ter tido a clara intenção de prejudicar a credibilidade do PÁGINA UM, de um jornal que nascera dias antes, e de permeio desacreditar um jornalista com décadas de experiência, que colaborara com órgãos de comunicação social como o Expresso e a Grande Reportagem – e que, hélas, até publicara artigos de opinião no Público.
Eis também aqui a abjecta confissão da Direcção Editorial do jornal Público de se ter demitido da sua função informativa e de promoção de debate, assumindo o papel de “colaboracionistas” na criação de um “consenso social em favor da vacinação” universal, incluindo de jovens e de crianças. A confissão de terem, despudoradamente, negado os princípios da imprensa isenta e rigorosa.
Notícia do PÁGINA UM que revelou dados anonimizados de crianças internadas com covid-19
E isto quando, na verdade – e soube-se mais tarde, através de uma notícia de Março deste ano do PÁGINA UM – nem consenso havia então na própria Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), o órgão consultivo da DGS.
Recorde-se que num primeiro parecer sobre a vacinação de adolescentes, homologado por Graça Freitas em 28 de Julho do ano passado, de entre 12 votos da CTVC registaram-se três contra e duas abstenções. Menos de duas semanas mais tarde, em 8 de Agosto registaram-se quatro votos contra e “uma pessoa não votou”. Estes pareceres foram escondidos durante meses pela DGS, e apenas foram revelados após pressão do PÁGINA UM na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.
Bem sei: a Direcção Editorial do Público não se preocupava com as minudências de investigar e questionar; andava sim, “com sentido de responsabilidade” (sic), só preocupada em doutrinar o povo para o tal “consenso social em favor da vacinação” – e daí também, muito responsável e nojentamente tratava de denegrir um colega de profissão que desejava informar os leitores.
O Público, o doutrinário jornal do “consenso social” não poderia assim informar os seus leitores de que o consenso sempre foi uma quimera, mesmo na classe médica. E que a DGS escondeu dados e especulou.
Enfim, fica-se, com esta reles confissão da Direcção Editorial do Público, a saber que, para certos jornalistas, quando alguém não está a favor da criação de “consenso social”, seja ele qual for no futuro, não só se pode – como até se deve – tudo fazer para descredibilizar o “opositor”, classificando-o como alguém que toma “posições claramente atentatórias contra a necessidade de se criar consenso social”.
O tempo, esse julgador, mostrará como gente sem carácter para se manter como jornalista – como seja os membros da Direcção do Público e a sua editora da Sociedade, que se julgam “exemplares cidadãos” – deverá ficar recordado na História.
Espero, sinceramente, que os sinais que mostram ter sido um erro colossal vacinar contra a covid-19 crianças, adolescentes e jovens adultos saudáveis não se confirmem como uma triste herança de tempos distópicos. Porque se se confirmarem, gente como eles não se mostrará apenas como uma mera cáfila de doutrinadores; será também vista como uma corja criminosa.
Nota: Com esta providência cautelar, acompanhada da recusa de publicar o direito de resposta, a Direcção Editorial do Público também consegue outro propósito: como sou parte contra-interessada terei de constituir advogado e pagar uma taxa de justiça de 306 euros. Por isso, nestas lutas, o PÁGINA UM – que não tem, como o Público, uma “mãe” (leia-se, Sonae) que lhe suporta prejuízos consecutivos bem superiores a 2 milhões de euros por ano –, apenas conta com os seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO, para uma luta que se sabe nunca será fácil. Nem para o PÁGINA UM, nem para aqueles que o querem dobrar.
“Mas que bronca!” A frase proferida por um banqueiro resume o seu sentimento em relação ao lucro extra que os bancos europeus estão a arrecadar graças a um “erro” do Banco Central Europeu. “O BCE cometeu um erro gigantesco. Agora quer resolver isto, mas não é fácil”. Apesar de considerar-se um “escândalo”, o que certo é que nenhum banco irá deixar de aproveitar esta oportunidade caída do céu (ou melhor, do BCE).
Os bancos estão sentados numa almofada de milhões e milhões de euros em fundos públicos. Agora, estão a usar esses fundos para ter um lucro extra. Estão a depositar os dinheiros públicos junto do banco central. Com a subida das taxas de juro, é só ouvir o “tlim, tlim” dos juros a entrar nos seus cofres.
No total, os bancos europeus estão sentados em cima de 2,1 biliões de euros em fundos públicos provenientes da terceira operação de empréstimos direccionados de longo prazo (TLTRO), segundo dados citados pela Reuters. É um valor astronómico que o BCE tem de pagar aos bancos em juros.
Segundo analistas do banco ING, o total de excesso de liquidez nas mãos da banca europeia ascende a 4,6 biliões de euros. Com a actual taxa de juro, o BCE teria de pagar 34,5 mil milhões de euros em juros por ano, aos bancos. Se a taxa de juro subir para 2,5% em 2023, o valor a cair no colo dos bancos subiriam para 115 mil milhões de euros.
Agora, a factura bateu à porta do BCE. Com uma inflação galopante, começou a subir as taxas de juro mais cedo do que tinha previsto quando começou a pagar aos bancos para se endividarem.
Claro que os bancos agora não entregam a mala do dinheiro. Não, quando podem ficar sentados a contar os euros garantidos pelos juros que os depósitos dos fundos públicos garantem.
Esse dinheiro está a agora de lado, a render e a trazer lucros chorudos para os bancos.
Tudo isto é perfeitamente legal. Tudo isto é perfeitamente legítimo. Mas é também igualmente altamente imoral.
Os bancos receberam dinheiro para pedirem emprestado ao banco central para ajudar a economia em tempos de crise. Usar os fundos públicos que lhes foram disponibilizados devido à crise para lucrarem com o seu depósito junto do banco central é lamentável.
Agora, esta gigantesca onda de dinheiro público nas mãos dos bancos é um problema para o BCE que se vê a braços com aumentos da inflação.
Mas é também um escândalo. É aberrante que bancos possam estar sentados em cima de tanto dinheiro público e, sem mexerem uma palha, lucrarem com ele.
O BCE analisa como vai tentar travar estes lucros para a banca. Mas descalçar a bota não é fácil.
Seja como for, fica sempre no ar aquela ideia de que, nas crises, o ‘banqueiro capitalista’ sai sempre a ganhar.
Neste caso, mesmo achando que é um escândalo, banqueiros esfregam as mãos de contentes. E vão continuar agarrados à mala, só devolvendo o dinheiro no fim do prazo do empréstimo especial (TLTRO), em Junho de 2023. Até lá, é facturar. Aos milhões.
No fim de contas, o BCE não sai bem na fotografia. Afinal, falhou os seus cálculos relativos ao calendário de subida das taxas de juro e deu de mão beijada uma dupla prenda aos bancos: primeiro, pagou-lhes para receberem dinheiro emprestado; agora paga os juros dos depósitos que os bancos fizeram com o dinheiro emprestado. Para os bancos é um Euromilhões. Para os europeus, a braços com menor poder de compra e preços a disparar, esta situação é, no mínimo surreal. Surreal e imoral.
Afinal, a crise quando bate à porta, não é para todos.
Não sou grande companhia de viagem quando estou num avião. Encosto-me à janela, e tento dormir, para que o relógio avance sem eu dar por ele. Detesto andar de avião, mas faço-o com uma regularidade assinalável há uns bons 35 anos. Num mundo desenhado por mim, a ferrovia e as pontes atravessavam continentes. Mas adiante – não nos percamos nas minhas fobias.
Entrei no avião que me traz para casa, aqui na pequena ilha de Santa Maria. Conhecemo-nos quase todos, percebe-se quando vem “gente de fora” só pelo recheio das filas. Fiz o meu número habitual, capuz na cabeça, um primo qualquer do Xanax na boca e uma musiquinha que me embalasse. Vejo o Cristo-Rei, depois a Linha de Cascais, e já está, mar a perder de vista para as próximas duas horas. O sol na janela vai-me aquecendo e começo a adormecer.
Um ruído ali perto vai-me incomodando. Aumento o volume da Garota de Ipanema, e foco-me no sono. Não funciona e olho para trás onde, a duas filas, três reformadas com colares de madre pérola discutem a guerra na Ucrânia.
Aos poucos, as vozes das estimadas senhoras vão substituindo a de António Carlos Jobim. Um tom nasalado que ecoa por toda a cabine, e que não deixa ninguém indiferente.
Não são idosas como a minha avó, entenda-se. Não são mulheres do campo. São daquelas que, como diria Maria Francisca, tinham empregos muito bons em escritórios. Para a minha avó qualquer pessoa que trabalhasse num sítio com janelas tinha-se dado bem na vida.
Note-se que estava um dia de calor, húmido e quase tropical, mas elas não abdicaram dos fatos com saia e jaqueta, daquele tecido grosso e quente, enfeitado com um broche de jóias na lapela. Ainda são da geração que se veste, a preceito, para viajar.
Pela propagação das ondas de som, eu apostei em professoras reformadas. Repararão, os caros leitores, que ao fim de umas décadas de profissão os professores, aqueles que entretanto não ficaram malucos, desenvolveram uma espécie de surdez que os leva a falar sempre aos berros. Ou, como diria o meu sogro quando a mulher, também professora, fala ao telefone: “para que usas o tablet quando podes só gritar e eles ouvem-te do lado de lá?”
De modo que o estilo me era, de alguma forma, familiar.
Nesta altura já tinha perdido a Elis Regina e até o Vinicius. Só ouvia as senhoras que, com alguma pompa, davam uma aula aos restantes 160 passageiros. Desisti da bossa nova e passei para a fila de trás, para ficar mais perto da fonte do saber. Foi nesta altura que percebi que ia ter tema para o PÁGINA UM.
“Que horror aquele massacre em Izim ou Izum ou lá como se chama aquilo”, dizia a professora principal, a que falou durante as duas horas sem pausas para água.
As duas assistentes concordaram, acenando com a cabeça e emitindo um síncrono “hum-hum”. E continuava na análise. “Onde é que já se viu matar gente assim? No meio do nada?”
E uma das assistentes tenta meter um paninho quente com um “bom… é uma guerra, já se sabe, há crimes todos os dias”.
A professora-rainha não ficou contente com a tentativa de argumentação e contra-atacou: “Todos os dias? Mas tu achas que os ucranianos também matam e torturam como os russos? Não te lembras do que aconteceu quando o Napoleão tentou invadir a Rússia? Mataram aqueles franceses todos e fartaram-se de lhes roubar cavalos e comida?”
Por esta altura, pensei que a estridente anciã tivesse visto, em directo, a batalha de Krasnoi, quiçá na CNN, tal era o à-vontade com que relatava as barbáries que os russos tinham infringido ao invasor francês.
Percebi também que era um pouco indiferente a posição em que os russos estivessem, invasores do Donbass ou invadidos por Napoleão, o seu destino deveria ser a guilhotina. Sempre e em qualquer situação.
“E agora é igual! Antes roubavam cavalos ao Napoleão, agora roubam máquinas de lavar ao Zelensky”, continuou a professora em análise profunda. “São uns desgraçados que nem sabem o que ali estão a fazer, o Putin não lhes diz nada… não ouviste o que disse o Milhazes ontem?”.
Abriu a boca a professora mais calada, entretida até então com a sandocha de bolo lêvedo e a bolacha mulata, oferecidas pela SATA como amostra de produtos regionais. “Mas se o Milhazes diz que a informação não chega à Rússia, como é que ele sabe tanto? O homem não viveu lá 40 anos?”.
A reitora começou então a perder o rumo da aula, e interrompeu: “Mas tu não vês que ele vinha regularmente a Lisboa e ia fazendo actualizações? Agora, imagina aqueles desgraçados lá no meio da Sibéria, que nunca viram um gira-discos, quando se apanham ali em Donetsk com tanto para roubar!”.
A outra assistente que parecia querer dar mais luta disse: “bom… Donetsk também não seria propriamente Tóquio, não é que os ucranianos andassem a exportar tecnologia e tal. Também eram outros desgraçados sujeitos a governos corruptos e pouco democráticos. Enfim, uma miséria pegada!”
“Então achas que por serem pobres também, e o governo ser corrupto, já podiam ser invadidos e mortos?”, disse a professora-chefe, já com o tom nasalado a rebentar pelas costuras e o piloto a ouvir parte da aula. “Não, não acho que devam ser invadidos, mortos ou sequer incomodados. Os ucranianos ou os russos. Acho que velhos decidem guerras e os novos morrem nelas”, tentou rematar uma das assistentes para voltar ao bolo lêvedo.
“Ahhh… lá estás tu com as tuas conversas bonitas! Já não vais ao Avante desde 78, mas ainda repetes esses chavões! Tens que tomar partido! Quem invade nunca tem razão!”, lá ripostou a catedrática.
Entrou então a apaziguadora na conversa e disse: “é nestas alturas que fico feliz por não vivermos num país corrupto, com imprensa livre, que não se mete em guerras ou aparece nos Panama Papers”. E voltou para a bolacha mulata, que molhou no chá de tília.
Encerraram elas por ali o debate, com a certeza de a sua informação, aquela que lhes chegava, ser total, verdadeira, sem hipótese de contraditório.
Acreditando que há bons e maus numa guerra, que impérios do bem são amigos e impérios do mal são opressores.
Dizendo, a professora-chefe, que “não podíamos parar de ajudar até todos os russos estarem no chão”. Os tais russos bárbaros que também o eram quando Napoleão, e bem pelo que percebi, os tentou invadir. Não podemos baixar os braços e desistir. Nós, todos, os ocidentais que recebemos a informação completa e sabemos, ao minuto, os horrores da guerra vividos pelo lado bom.
Elas, sem renda de casa para pagar, sem juros da Lagarde, com a reforma garantida para os próximos 25 anos (diz o Costa) e com dinheiro suficiente para, em conjunto, visitarem as ilhas dos Açores, desembarcaram felizes e com a sensação de dever cumprido.
O moral ficou em alta. Todos temos que ajudar, dê por onde der, custe a quem custar. Menos elas, claro.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Recordo como se fosse hoje a esquiva e as desculpas para não operar os doentes. Recordo as crises emocionais de alguns a quem calhou a sorte de um HIV positivo.
Tenho a memória de operar em PECLEC (sistema de redução de lista de espera) nos anos 2005 e seguintes, no Hospital de Anadia, doentes de Portugal inteiro que se arrastavam nas suas instituições onde despudorada e desavergonhadamente lhes recusaram assistência.
A SIDA teve uns artistas televisivos, uns médicos que se prestaram ao discurso de um certo Cavaquismo (governava o PSD com maioria absoluta) e a um ministro Arlindo de Carvalho que distribuiu milhões de escudos que chegavam da Europa para associações e instituições onde se acumulavam amigos e companheiros.
Antes eram escudos, os euros vieram em 2002.
De 1987 (começavam a morrer vedetas da música, cabeleireiros, gente associada ao mundo gay) até 2004, quando irrompem os retrovirais dando confiança, a falta de respeito e a perfídia reinava em português.
– São paneleiros!, diziam com desprezo.
Falo de gente directora de serviço, de gente directora de hospitais, de enfermeiros-chefes. Eu vi. Eu testemunhei, surpreso e contundido.
Sim, meus amigos, essa geração reagiu ao medo de um modo descompensado e deselegante.
Organizei, com o Cesário Andrade Silva e o Luís Taborda, e com subsídio atribuído pelo ministro Couto dos Santos, e depois pelo secretário de Estado Martins Nunes, o “SIDA anos 90”. Foi o primeiro congresso internacional sobre SIDA que se fez na Europa.
Tivemos as vedetas da TV, a Laura Aires e a Odete Santos Ferreira – já falecidas e que, na altura, desempenhavam o papel do Froes e do Carlos Antunes de agora, os proprietários das Associações criadas para receber os fundos europeus, os amigos do Estado. Tivemos imposições para alguns estarem nas mesas, nomes do nepotismo nacional, rolhas que sempre sobrenadam.
Pontificava, no mundo, um português de sua graça Luís Champalimaud, que tinha identificado e isolado o HIV2 na Guiné. Esse colega não ia à televisão, não era membro das comissões de luta contra a SIDA, não tinha voz activa nas decisões do Estado. Não tinha palco! Era o patinho Torgal daquela altura.
Nós éramos a Associação Nacional de Jovens Médicos, fundada pelo Álvaro Beleza, e que eu prosseguiria com a missão.
Tivemos outros médicos, que hoje são vedetas políticas, como Miguel Guimarães, Manuel Pizarro, Miguel Leão, mas não incentivaram a ANJM, e não estiveram de alma no Congresso da SIDA anos 90.
As principais conclusões, e outros textos sobre a temática, foram publicadas na revista da Ordem dos Médicos em Junho de 1990.
A SIDA foi uma escola para aquilo que hoje estamos a viver. Foi uma lição onde os comportamentos humanos mais impróprios ganharam luz, mas, como não era um vírus transmitido pelo ar, a histeria não cresceu mais.
Havia os que recusavam os pratos nos restaurantes, os que temiam um beijo, os que recusaram proximidade com doentes da SIDA ou mesmo os seus cuidadores.
O HIV matava jovens que se fartava – nada comparado com o SARS-CoV-2. Morriam de modo lento, com infecções sucessivas, em angústia e agonia.
Recordo o filme Filadélfia, em 1993, com Tom Hanks e Denzel Washington, e uma banda sonora maravilhosa. Vejam, e perceberão o que se passa no Mundo agora.
Eu vi! Eu estive lá!
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Tenho por hábito escrever sobre o que me rodeia e sem grandes amarras no pensamento. Quem me conhece sabe a quem entrego o meu voto e quem me vai lendo, por esta altura, também já deve ter percebido. E eu acho isso óptimo.
Gosto de assumir as minhas convicções e, em simultâneo, o meu direito ao pensamento livre. Não concordo ou discordo de algo por ser da ideologia política A, B ou C. Concordo com o que me parece ser lógico, sensato e parte integrante daquele que seria, idealmente, o meu modelo de sociedade.
Imagino que todos tenhamos um modelo de sociedade na cabeça que, dificilmente, será retratado integralmente no programa de um partido político.
Isso significa, em resumo, que PSD e Liberais dizem coisas, às vezes, com as quais concordo. E PS, PCP e BE dizem coisas, às vezes, com as quais discordo. Mentiria se não dissesse que me custa mais quando aqueles mais próximos daquilo que defendo fazem ecoar asneiras na Assembleia da República.
Dito isto, temos o que Joana Mortágua disse, na semana passada, em discurso no Parlamento, que a falta de alojamento para os recém-entrados no ensino superior se devia à opção dos senhorios de retirar as suas casas do mercado de arrendamento de longa duração e colocá-las no alojamento local. Pretendia o BE que o Governo travasse esta situação.
É uma espécie de tiro no pé, desde logo do Bloco de Esquerda, mas também da esquerda de uma forma geral.
Compreendo que a minha opinião no tema não vá de encontro à dos que, por norma, votam ao meu lado, mas enfim, como expliquei ali em cima, penso e respondo pelas minhas ideias.
O BE tem razão quando diz que o desvio de casas para o alojamento local prejudica os estudantes. É factual. São menos propriedades disponíveis no mercado.
Agora, não pode em momento algum – ou não deve – sugerir que seja o Governo a decidir o que fazer com a propriedade alheia. Das duas uma: ou somos contra a propriedade alheia e vivemos todos em colectividades – o que está longe da sociedade que defendo –; ou, se permitimos a existência de propriedade privada, não podemos depois decidir o que eles devem fazer.
Joana Mortágua, ou o BE, parecem cair no limbo das opiniões vezes em conta. Há uma certa dificuldade de assumirem uma posição, se esta for pouco popular, criando uma ideologia de agradar a todos.
O resultado são as contradições em que se perdem. Por exemplo, Joana Mortágua tem uma herdade no Alentejo; não consta que a tenha convertido em abrigo quando os nepaleses dormiam em contentores em Odemira.
Residências universitárias, por exemplo, seriam uma das soluções deste problema que Joana Mortágua aponta.
Investimento a sério num país que precisa rapidamente de parar de exportar universitários.
Há, de facto, muita coisa que o Governo pode fazer, como seja o combate à especulação, tanto no mercado de arrendamento como no da compra.
Bem sei que há uma parte da esquerda que se indigna com a propriedade privada. Eu não. Se uma pessoa trabalha para comprar algo, ou recebe de uma herança familiar, beneficiando do trabalho dos seus antecessores, não vejo problema algum. Se alguém trabalha e investe numa casa, ou duas, ou três, é porque se esforçou para lá chegar; é porque estudou e trabalhou para isso.
Nem todos chegamos da China e compramos casas a dinheiro para obter vistos Gold. Nem todos temos o acesso aos créditos do BES como se fôssemos um Vieira ou um Vasconcellos.
A maior parte trabalha uma vida para pagar créditos e construir qualquer coisa. Nada disso contraria aquilo que imagino para uma sociedade, e lamento se alguma esquerda não vê para lá disso. Nem será o caso do BE que, convenhamos, gosta bastante da propriedade privada embora repita ad nauseam este slogan dos pobres e desamparados.
Enfim, onde começa o meu “problema” é no aproveitamento desmesurado da falta de habitação por causa dos preços especulativos. E, por favor, não me digam que é uma questão de mercado ou da lei da oferta e da procura. É um simples aproveitamento em regime de cartel para cobrar preços absolutamente escandalosos; no fundo, como acontece com o cartel das petrolíferas. Todos se queixam, mas o princípio é essencialmente o mesmo.
Era aqui – na disparidade de preços quando comparados com a realidade nacional – que o governo deveria intervir.
Mas claro, todos percebemos que a especulação imobiliária se traduz em avultados impostos, e, portanto, é outra galinha dos ovos de ouro para o PS (ou PSD) distribuírem pelas habituais clientelas das parcerias público-privadas (PPPs), bancos, Mários Ferreiras, auxiliares dos auxiliares de secretários de Estado, e por aí fora. Certo como o destino, é saber que esse dinheiro não chega onde deveria – neste caso, à Educação.
Era aqui, nestes pontos, que eu esperaria, também, que o BE gritasse a plenos pulmões. Em vez de tentarem mexer na propriedade privada dos outros, poderiam e deveriam exigir, isso sim, investimento na Educação, de forma que Portugal tivesse, finalmente, um sistema de ensino universal.
Dizem-me que já tem, que a Educação é tendencialmente gratuita. Mas não é. Vejo as diferenças, diariamente, entre as duas realidades em que me desloco: Suécia e Portugal.
Na Suécia temos creches grátis em cada bairro e um abono mensal de 100 euros, ensino básico e secundário sem qualquer custo (livros, comida, computadores) e universidades gratuitas, para além da possibilidade de um empréstimo estatal (um salário) disponível para cada aluno do Ensino Superior, assim o deseje contrair. É este o conceito de Educação universal. A garantia que o filho de um padeiro e o filho de um advogado recebem as mesmíssimas condições no ponto de partida.
Eis a garantia, por lei, que o filho de um pescador só será pescador se assim o entender. Tudo feito com o Estado Social, a solidariedade dos escalões progressivos nos impostos e uma carga fiscal totalmente direcionada para a população.
Claro que, com isto, as estradas suecas não chegam aos calcanhares das portuguesas, mas minhas senhoras e meus senhores, isso é que são escolhas que decidem o futuro das gerações seguintes. A Suécia apostou na formação da população; nós, em Portugal, apostámos na Mota-Engil.
Opções políticas, dizem uns – corrupção da boa, digo eu.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Esta madrugada, eram cinco horas e eu ainda estava a escrever, mas não era nenhuma notícia. Deveria ser, mas não era.
Estava a escrever “argumentos jurídicos”, para “auxiliar” o advogado do PÁGINA UM, Rui Amores, a contra-alegar no Tribunal Administrativo em dois dos processos de intimação que interpusemos para acesso a documentos administrativos.
São já 12, como será do conhecimento público, todos devido à falta de transparência de entidades públicas. Talvez sejam mais em breve, incluindo contra a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), cujo Secretariado veio, na semana passado, recusar-me o acesso a informações, em alguns casos relacionados com notícias que escrevi, alegando que, além de “constitu[ír]em documentos nominativos, sujeitos à proteção de dados pessoais”, eu não tenho “um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante”.
Já estamos na fase em que jornalistas da CCPJ defendem e promovem a tese de que os jornalistas, pela sua condição, não têm interesse em matérias que investigam. E que, basicamente, não devem chatear.
Não nos surpreendamos: o próprio Conselho Superior da Magistratura (CSM) já defende essa linha (não por acaso, é vê-la agora em estreita colaboração com a CCPJ). E mesmo tendo o CSM perdido um processo de intimação em primeira instância no Tribunal Administrativo de Lisboa, recorreu, pelo que o acesso continua ainda impossível.
Mas vejam então como dediquei esta noite “jurídica”, que só há pouco terminou com a escrita deste Editorial.
O primeiro processo, no qual estive a “alegar”, é recente – começou no mês passado. Tem como ré a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – que, aliás, tem estado a criar regulamentos internos ad hominem (voltarei ao tema!) – e deve-se à recusa no acesso aos pedidos de confidencialidade de empresas de media para que fiquem secretos determinados fluxos financeiros. A transparência é a regra, mas há uns “amigos” que podem ser excluídos dessa obrigação. A ERC quer decidir… secretamente.
O segundo processo é mais antigo (iniciou-se em finais de Maio), e refere-se à recusa das Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos em ceder documentos operacionais e contabilísticos da campanha Todos Por Quem Cuida, que envolveu 1,4 milhões de euros, e o apoio financeiro da indústria farmacêutica. Embora considerado urgente, esta intimação já caminha para o quarto mês, tendo já 46 registos (movimentos) processuais. Tem sido interessante ver como as duas Ordens, mais as respectivas sociedades de advogados, lutam abnegadamente para não cederem os documentos requeridos para se avaliar como ganharam e como gastaram o dinheiro dos donativos.
Pormenor dos movimentos processuais da intimação sobre o acesso aos documentos da campanha Todos por Quem Cuida
Enfim, nos últimos tempos, uma parte dos meus dias de trabalho no PÁGINA UM não se mostra visível, sob a forma de notícias; são estas “burocracias”, as pequenas “batalhas” em prol da transparência, do acesso a documentos, apresentando requerimentos, reiterando pedidos de informação, compondo queixas. É desgastante, mas necessário. Os leitores não vêem este trabalho de formiga – e, por vezes, sinto que o menor fluxo de notícias, patente nas últimas semanas, pode influenciar a avaliação que se faz ao PÁGINA UM.
Mas sempre assumi que o PÁGINA UM, além de um projecto de jornalismo independente, seria um projecto de cidadania. O leitmotiv do PÁGINA UM é a Democracia, a defesa dos princípios democráticos, assumindo que a Imprensa é um dos instrumentos.
Nesta linha, os processos em Tribunal Administrativo – perante o inculcado e bem enraizado obscurantismo da Administração Pública – estão a servir também de teste à Democracia; servem para perceber se ainda existe uma entidade externa ao Poder, e às decisões arbitrárias deste em recusar o acesso à informação por parte dos cidadãos, que defenda a Democracia.
Sinto, por isso, cada um dos processos de intimação no Tribunal Administrativo como um teste à vitalidade da Democracia portuguesa.
Uma vitória – e tivemos duas embora ainda sem efeitos práticos, porque o Conselho Superior da Magistratura e a Ordem dos Médicos (um outro processos, sobre pareceres técnicos) recorreram – é sempre uma esperança.
Mas mesmo quando também há uma derrota, paradoxalmente, nasce uma esperança – mas por outros motivos.
Por exemplo, esta madrugada, no meio da consulta da plataforma dos meus processos, constatei que tive uma derrota. Foi ontem concluída a sentença da intimação para o Ministério da Saúde abrir o seu arquivo – para conhecer a gestão durante os anos da pandemia.
Ora, tendo eu pedido acesso integral do arquivo do Ministério da Saúde desde 2020, identificando as entidades a quem se dirigiam e recebiam ofícios e relatórios, a juíza entendeu, mesmo assim, que “atendendo à forma como o pedido foi formulado, a Entidade Requerida [Ministério da Saúde] não consegue satisfazer a pretensão, por não ser possível identificar, em concreto, a que documentos e informações o Requerente [eu] pretende o acesso, nem mesmo para perceber se estão em causa dados pessoais ou nominativos.”
E acrescenta, dando na ferradura, que “importa salientar que não se trata de negar o acesso aos arquivos e registos administrativos, que conforme acima se expôs, constitui um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, todavia, impõe-se aos requerentes dessa informação que concretizem o que pretendem, caso contrário, a entidade administrativa não consegue satisfazer o pedido.”
Esta decisão é surpreendente, porque a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos diz taxativamente que “se o pedido não for suficientemente preciso, a entidade requerida deve, no prazo de cinco dias a partir da data da sua receção, indicar ao requerente a deficiência e convidá-lo a supri-la em prazo fixado para o efeito, devendo procurar assisti-lo na sua formulação, ao fornecer designadamente informações sobre a utilização dos seus arquivos e registos.” Algo que o Ministério da Saúde nunca fez nem propôs. Aliás, o Ministério classificou logo o pedido do PÁGINA UM de “manifestamente abusivo“.
Mas, mesmo assim, a juíza achou que como não consegui identificar em concreto os documentos – talvez o número dos ofícios ou o título de relatórios, que só poderia saber se fosse adivinho –, mesmo se identifiquei as entidades envolvidas e o intervalo de datas, “não se impõe à Entidade Requerida que entregue ao Requerente a informação e documentos requeridos.”
E, pronto, improcedente, e pague-se as custas… Ou recorra-se para o tribunal superior, com mais custas, que é aquilo que se fará enquanto houver dinheiro do FUNDO JURÍDICO. E esperança…
E, então, perguntam os leitores: onde está afinal a esperança nesta derrota?
Está em poder contribuir para muitos acordarem do torpor (quase) colectivo que deixou a nossa Democracia apodrecer.
Embora com meios incomensuravelmente menores do que as entidades públicas, o PÁGINA UM não vergará facilmente na sua luta em prol da transparência e do acesso à informação. No caso dos processos judiciais, que podem envolver custos acrescidos em caso de derrota, os apoios podem ser concedidos ao FUNDO JURÍDICO. Para o apoio ao trabalho jornalístico, podem apoiar através de várias modalidades.
A nossa democracia tem mordomias e excepções inaceitáveis nos tribunais. Por exemplo, um magistrado e uma deputada isentam-se de ir a tribunal, como meros cidadãos. Escrevem o depoimento.
É o caso de Paulo Guerra, ex-director-adjunto do Centro de Estudos Judiciários, e de Isabel Rodrigues, advogada ligada a questões de família, antiga deputada do Partido Socialista e actual secretária de Estado da Igualdade e Migrações. Deviam sentar-se nas cadeiras do tribunal como os juízes e as partes litigantes. Vão como testemunhas, mas com um tratamento de gente especial, que não são!
Trata-se de um caso de um ex-juiz que se queixa de ter sido difamado numa reportagem televisiva sobre a retirada violenta de crianças a progenitores, normalmente pobres. Uma coisa que se tornou muito comum em Portugal.
Nas imagens, o tal ex-juiz confessa nunca ter assistido a nenhuma dessas retirada violentas nos 12 anos em que exerceu o cargo, dos 70 anos de idade até aos 82, quando cessou funções.
A República Portuguesa não pode tolerar privilégios de testemunhas abonatórias ou até de senhores juízes queixosos, que são tratados por conselheiros.
Um destes dias, também nos passam à frente na fila do supermercado.
As situações de excepção da Justiça descredibilizam o Estado Democrático de Direito. Já nos bastou o juiz Rangel a pedir sentenças à medida a dois presidentes do Tribunal da Relação de Lisboa.
E quem eram os juízes que lavravam essas sentenças? Não se sabe. Assim como nunca soube quem eram os juízes do Tribunal Plenário de Santa Clara da ditadura de António Salazar.
No tempo recuado de João das Regras, aos tribunais ia-se de cabeça erguida, costas direitas e sentava-se o rabo na cadeira, como contam os cronistas.
Os tribunais são o mundo à parte? São! Com prerrogativas e leis próprias? Sim! Onde juízes julgam caixas de juízes contra jornalistas? É verdade.
E os jornalistas lá se sentam a olhar para as testemunhas.
Que, neste caso, serão dois meros papéis: o senhor magistrado Paulo Guerra e a senhora secretária de Estado Isabel Rodrigues.
Duas folhas A4!
José Ramos e Ramos é jornalista (CP 214)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.