Nos últimos anos, poucos conceitos foram tão martelados no espaço mediático e político como o da “desinformação”. Tornou-se uma espécie de fetiche moral, uma nova lepra simbólica que se cola a tudo o que contraria o consenso hegemónico — ainda que esse consenso seja, com frequência, volátil, interesseiro ou simplesmente errado.
A palavra “desinformação” passou, aliás, a ter uma dupla função: por um lado, denunciar falsidades objectivas — o que é legítimo e necessário; mas, por outro, tornou-se um instrumento de exclusão retórica, um selo de infâmia aplicado a tudo o que destoa do discurso dominante. Serviu para calar vozes críticas no plano político, silenciar dissidentes no plano social e descredibilizar minorias epistémicas no plano científico. O que antes se combatia com argumentos, combate-se agora com rótulos. E um dos mais eficazes é precisamente este: “desinformador”.
Curiosamente — ou não —, raramente se discute que a desinformação, em sentido lato, é uma externalidade negativa de algo positivo: a liberdade de expressão e a democracia. Tal como a poluição é uma consequência indesejada da industrialização — cuja mitigação exige tecnologia, investimento e ética —, também a desinformação é um subproduto inevitável da liberdade. Só em ditaduras se impõe uma visão única das coisas. E num regime democrático, a única resposta legítima à mentira é a palavra, não a mordaça.
Pretender erradicar a desinformação sem pôr em causa a liberdade de expressão é como pretender eliminar o ruído urbano sem tocar no tráfego automóvel: uma ilusão autoritária mascarada de boa intenção.
Mais grave do que essa simplificação é a tentação crescente — e perigosamente institucionalizada — de se combater a desinformação com censura. Pior ainda: com a Ciência, erigida a nova instância de verdade absoluta. Como se os cientistas fossem missionários, como se os consensos científicos fossem dogmas, como se a discordância fosse uma forma de heresia e os dissidentes, uns leprosos cognitivos.
Mas a Ciência — e é trágico ter de repetir o óbvio — não é um corpo de verdades eternas: é um método. Ora, esse método vive de questionar, de duvidar, de admitir a possibilidade de estar errado. E também de ser paciente em refutar hipóteses absurdas ou erradas, mas sempre com espírito aberto e tolerante. Não se combate erros ou teorias da conspiração proibindo que sejam faladas — combate-se deixando que sejam faladas, para que caiam em descrédito.
Não há, na verdade, Ciência sem dissenso, sem controvérsia, sem revisão de pressupostos. A História da Ciência está repleta de consensos quebrados — e foi sempre por aí que ela mais cresceu.
Por isso, se há figuras públicas que me causam um fastio particular são aquelas que se colocam no pedestal da racionalidade, nos ombros da Ciência, para anatematizar os debates públicos — sejam estes travados por especialistas ou por leigos. Um desses exemplos, que se tornou uma espécie de mascote nacional da “Ciência Certa”, dá pelo nome de David Marçal, conhecido como colunista do Público e autor de vários livros de “divulgação científica”.
David Marçal
Essa minha irritação não decorre da falta de inteligência de David Marçal, nem da ausência de capacidade argumentativa. É precisamente o contrário: é por ser tão fluente na retórica falaciosa, tão hábil na omissão do que o incomoda, tão moralista nas suas inferências, que o seu discurso me parece perigosamente eficaz. E, claro, por ser tão ostensivamente aplaudido por aqueles que se julgam mais esclarecidos — os zelotas do racionalismo domesticado.
No seu mais recente texto, publicado na passada sexta-feira no Público e intitulado “As nossas percepções estão quase sempre erradas”, David Marçal exemplifica esse seu modus operandi de forma lapidar. De início, parece apenas um ensaio sobre as nossas falhas cognitivas e erros de percepção, com base em autores credíveis como Daniel Kahneman, Bobby Duffy ou Hans Rosling. Nada contra.
A exposição da dualidade entre pensamento rápido (Sistema 1) e pensamento lento (Sistema 2) é sólida, didáctica e reconhecida no campo da psicologia cognitiva. Também não é falso que, em muitos domínios da vida social, as percepções das pessoas estão erradas — como demonstram inquéritos sobre imigração, sexualidade, religião ou vacinas. Estamos na área da Psicologia, que é uma ciência humana e comportamental, não propriamente uma ciência exacta.
Mas o problema de Marçal começa na selecção e no tratamento dos exemplos. O texto pratica, com notável perícia, aquilo que em Ciência se designa por cherry picking: seleccionar apenas os casos que confirmam a tese que se pretende sustentar. Aponta com severidade os erros do cidadão comum, mas omite olimpicamente os erros das instituições científicas, dos especialistas mediáticos e dos organismos internacionais — como se estes fossem infalíveis ou, no mínimo, irrelevantes para o debate sobre desinformação. Isso é desonestidade por omissão. E, como se sabe, a meia-verdade é mais perigosa do que a mentira.
Por exemplo: onde está, no seu ensaio, qualquer referência aos consensos científicos errados da história recente? Onde está a autocrítica às previsões apocalípticas da pandemia da covid-19, em que se comparou a doença à gripe espanhola, se promoveram confinamentos com base em modelizações especulativas, se fecharam escolas sem base empírica sólida e se censuraram vozes discordantes que, com o tempo, se revelaram prudentes e certeiras? Onde está a reflexão sobre o papel das farmacêuticas na produção científica durante a pandemia, ou sobre a falência da revisão por pares como garante de fiabilidade?
Não está. E não está porque esse tipo de crítica não serve o propósito do texto: reforçar que o problema está nos outros — os desinformados, os ignorantes, os simplórios. Nunca no clero científico.
O mais espantoso — e inquietante — é que, no momento em que a Ciência estava mais bem equipada do que nunca para enfrentar uma pandemia, com sistemas de vigilância epidemiológica, ferramentas estatísticas, equipas interdisciplinares e capacidade tecnológica sem precedentes, muitos dos seus representantes se comportaram como profetas do pânico, influenciando péssimas decisões políticas. Num cenário que exigia prudência, proporcionalidade e avaliação de risco baseada em dados desagregados, optou-se por uma retórica apocalíptica, convertendo incertezas legítimas em certezas absolutas e alimentando o medo como instrumento de mobilização social.
Suspender consultas, diagnósticos e cirurgias; encerrar escolas e confinar crianças à telescola; impedir que se andasse ao ar livre; internar idosos em “covidários”; tudo isto foi sustentado por cientistas que se deslumbraram com o poder de uma distopia.
E o paradoxo é este: o pico de mortalidade em 2020 e 2021 — não apenas pela covid-19 — deu-se quando havia menos visitas às urgências, menos camas hospitalares ocupadas e menos dias de internamento. E depois a Ciência recusou-se a avaliar seriamente as mortes em excesso em 2022, com temor em descobrir causas politicamente sensíveis. Mas note-se: mesmo entre os grupos mais vulneráveis — os idosos com múltiplas comorbilidades —, as taxas de mortalidade em Portugal durante a pandemia foram, por vezes, inferiores às de há vinte anos. Na primeira década deste século, a mortalidade relativa (taxa) entre maiores de 85 anos foi mais elevada do que nos picos pandémicos de 2020 ou 2021. Isto — goste-se ou não — é uma factualidade científica.
E, no entanto, a percepção mediática e institucional — alimentada por divulgadores como David Marçal — insistiu na ideia de uma catástrofe sanitária sem paralelo. Não por força dos dados, mas por imposição de uma narrativa.
Narrativa essa que foi promovida com zelo quase religioso por cientistas e divulgadores que confundiram pedagogia com propaganda, muitas vezes em promiscuidade ideológica, financeira ou simbólica com a indústria farmacêutica e com os centros de decisão político-mediáticos. A “Ciência” — essa entidade abstracta que tantos invocam — serviu de escudo retórico para justificar medidas que, em muitos casos, não resistiram ao escrutínio retrospectivo. E quem ousava colocar perguntas incómodas era imediatamente rotulado como “negacionista”, “desinformador” ou “anticiência”.
Aliás, a ideia de que se combate a desinformação com “mais Ciência” é, por si só, uma armadilha lógica. Que Ciência? A de que momento? Publicada onde? Financiada por quem? Promovida por que canais? A Ciência não é um bloco monolítico. É feita por humanos, com os seus interesses, limitações, enviesamentos e alinhamentos institucionais. O verdadeiro cientista não teme o dissenso — estimula-o. Não silencia dados desconfortáveis — investiga-os. Não exclui outliers — problematiza-os. Quando um divulgador científico se comporta como censor ou paladino do dogma, deixa de ser defensor da Ciência e passa a ser apóstolo de uma fé travestida de método.
O mais irónico — e preocupante — é que essa retórica ilustrada, desse círculo de Marçal, que despreza o senso comum e endeusa a tecnociência, tem efeitos sociais contraproducentes. Em vez de promover confiança na Ciência, fomenta a suspeita. Em vez de combater os extremismos, alimenta-os. Quando o público se apercebe de que há censura de opiniões divergentes, de que só certas narrativas têm direito à luz do dia, de que os consensos mudam ao sabor do vento político, tende a desconfiar de tudo — até do que está bem fundado. A verdade não se impõe com silenciadores. A confiança constrói-se com transparência, humildade epistémica e coragem para admitir os erros do passado.
Marçal termina o seu ensaio com uma referência ao Brexit como exemplo de erro colectivo baseado em percepções erradas. Pode até ser. Mas pergunto: quantas decisões políticas foram moldadas por dados distorcidos promovidos por instituições ditas credíveis? Onde está a crítica às projecções falhadas do FMI, do BCE ou da OCDE, que erraram sistematicamente durante anos sem qualquer responsabilização? O critério de Marçal é invariável: criticar a irracionalidade das massas, mas nunca a manipulação das elites.
Talvez a pergunta que hoje mais importa não seja “como combater a desinformação?”, mas sim “quem define o que é desinformação?”. Porque a História está cheia de ideias que foram rotuladas de perigosas ou absurdas — e que se tornaram, mais tarde, pilares do conhecimento. Galileu, Lavoisier, Semmelweis, Barry Marshall, Alfred Wegener: todos foram dissidentes. Todos foram perseguidos ou ignorados. Todos foram, a seu tempo, justificados pelos dados. Nenhum deles teria tido espaço nos palcos bem-pensantes da “Ciência Oficial” onde hoje David Marçal actua com os favores de uma certa academia e da imprensa.
Na verdade, ao propor que a Ciência funcione como instrumento de silenciamento — erguendo-a a tribunal moral e a gendarme da verdade —, David Marçal não está a defendê-la: está a traí-la. Porque a Ciência, por definição, só respira em ambientes de liberdade crítica, de permanente revisão, de dúvida metódica. Quando alguém a invoca para calar em vez de para debater, para excluir em vez de para esclarecer, transforma-a numa paródia autoritária do seu próprio ideal.
E se Marçal ainda acredita que esse é o papel legítimo da Ciência — o de censurar o dissenso e filtrar o que merece ou não ser discutido —, então estará perigosamente próximo de cometer aquilo que mais proclama combater: a desinformação. E mesmo que, em nome da liberdade, lhe reconheça o direito de o fazer, não posso deixar de assinalar a ironia: é que o homem que se arroga paladino da razão parece ter esquecido que a dúvida, e não a certeza, é a verdadeira alma do conhecimento.
1. Quando falta o corpo: um caso recente em Portugal
O recente acórdão do tribunal do júri em Aveiro (Portugal), no caso da chamada “grávida da Murtosa” voltou a colocar sob os holofotes da opinião pública uma das questões mais complexas do direito processual penal: pode haver condenação por homicídio quando o corpo da suposta vítima nunca apareceu? E que tipo de evidências são juridicamente aceitáveis para presumir a morte e responsabilizar criminalmente um arguido?
Em Portugal, o desaparecimento de uma pessoa pode, ao fim de certo tempo, dar lugar à presunção de morte por via civil (artigos 114.º e seguintes do Código Civil Português). Contudo, essa presunção não se confunde com a prova da morte exigida no processo penal. Para condenar por homicídio, o tribunal tem de estar convencido, para além de dúvida razoável, de que a pessoa está efectivamente morta e de que essa morte foi causada por um acto humano. Sem corpo, essa prova exige um raciocínio indutivo sustentado em evidência indireta, o que levanta desafios éticos, epistemológicos e práticos.
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2. Os Estados Unidos: condenações com base em indícios
Nos Estados Unidos, onde centenas de condenações por homicídio sem corpo já ocorreram, o ex-procurador Tad DiBiase compilou e analisou centenas de casos (mais concretamente 399). No seu livro “No-Body Homicide Cases, A Pratical Guide to Investigaating, Prosecuting, and Winning Cases When the Victim is Missing”, DiBiase identifica três pilares essenciais para a prova indiciária em tais situações:
Motivo claro e documentado, como conflitos familiares, relações abusivas ou interesses patrimoniais;
Evidência circunstancial coerente e cumulativa, como testemunhos, mudanças abruptas no comportamento do arguido, desaparecimento inexplicável da vítima, e cessação de rotinas e contactos;
Evidência forense indireta, como vestígios hemáticos, ADN, pegadas, geolocalização, ou buscas online comprometedoras.
Segundo o próprio DiBiase, até Setembro de 2024 registaram-se 604 julgamentos por homicídios sem corpo nos EUA, com uma taxa de condenação de cerca de 87%. Esses números, também confirmados pelo FBI em mais de 660 casos, mostram que a ausência de corpo não impede uma condenação, mas também revelam o peso crescente da prova indireta no processo penal moderno.
Plataformas como www.nobodycases.com ou www.charleyproject.org reúnem dezenas de casos em que a investigação digital, os metadados, os comportamentos suspeitos e os testemunhos indiretos permitiram condenações sem corpo. Mas essa mesma tendência tem levantado preocupações legítimas sobre a margem de erro nos julgamentos baseados exclusivamente em indícios. Como adverte DiBiase, “a ausência de um corpo não é ausência de um crime, mas obriga a uma investigação mais difícil, mais longa e com muito menos margem para erros”.
O National Registry of Exonerations dos EUA reporta que, desde 1963, pelo menos 1.226 pessoas foram exoneradas de condenações por homicídio (ou seja, viram as suas condenações anuladas), muitas das quais baseadas em provas circunstanciais ou técnicas forenses posteriormente invalidadas. Destas, 381 envolviam erro ou má conduta processual grave.
Em 2024, das 147 exonerações ocorridas nos EUA, 85 ocorreram em casos de homicídio (57,82%), dos quais 67 tiveram como causa a má conduta oficial, que pode incluir a falha em divulgar provas exculpatórias à defesa, casos de adulteração de prova, perjúrio, má conduta policial em interrogatórios, desonestidade do Ministério Público no tribunal, ou má conduta forense.
Mais alarmante ainda: 51 do total das exonerações, onde se incluem os casos de homicídio, foram classificados como “no-crime”, ou seja, em que se concluiu mais tarde que nenhuma morte ocorreu. A média de tempo passado na prisão por estes inocentes é superior a dez anos. Réus negros, em particular, enfrentam um risco desproporcional: são exonerados por homicídio a uma taxa até sete vezes superior à dos brancos e, em média, passam mais tempo presos antes da reversão judicial.
Entre os casos mais emblemáticos estão: o caso de Lawrence Martin que foi preso sob a lei “Three Strikes” por posse de faca num contexto sem crime — exonerado em 2020; o de Clifford Williams Jr. & Hubert Nathan Meyers, que passaram 42 anos presos por homicídio que não cometeram, e só foram exonerados em 2019; e alguns casos de homicídio infantil “no-crime”, em que 53 réus foram condenados e depois exonerados, com base em diagnósticos forenses errados (ex: “shaken baby syndrome”).
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3. Espanha: o precedente de Ramón Laso
Mesmo na Europa, onde os tribunais tendem a tratar com maior cepticismo os casos de pretenso homicídio sem cadáver, surgem algumas decisões paradigmáticas em Espanha, França, Alemanha ou o Reino Unido, demonstrativas de que, mesmo sem corpo, ainda é possível condenar, mas apenas com evidência indiciária técnica irrepreensível.
A acusação e posterior condenação baseou-se em provas como o ADN encontrado em ferramentas e o rastreamento por GPS e telemóvel, demonstrando que o “Reo” foi a última pessoa a ter estado com ambas as vítimas. Esta condenação foi confirmada pelo Supremo Tribunal Espanhol em 2016.
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4. França: o caso Narumi Kurosaki e a revisão judicial
Entretanto, em 26 de Fevereiro de 2025, o Tribunal de Cassação, o mais alto tribunal de apelações de França, ordenou novo julgamento porquanto ficou demonstrado que os investigadores omitiram evidências da equipa de defesa.
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5. Alemanha: condenação sem corpo… e reabilitação póstuma
Na Baviera, Alemanha, o caso de Todesfall Rudolf Rupp mostra a fragilidade das provas indiciárias. Hermine Rupp e as suas duas filhas, assim como Mathias E., namorado de uma delas, foram condenados em 13 de Maio de 2005 pelo homicídio de Rudolf a 13 de Outubro de 2001.
O corpo não apareceu, não existiam evidências robustas, para além de inúmeras contradições nas testemunhas da acusação, e a ausência do cadáver foi justificada pelo facto dos culpados terem morto a vítima e seguidamente desmembraram-no e deram como alimento aos cães. Toda a prova se baseou exclusivamente nas confissões supostamente “voluntárias” dos Réus.
Em Fevereiro de 2009 o carro de Rudolf foi encontrado e retirado do Rio Danúbio com seu corpo ainda no banco do motorista e nenhum sinal de prática de crime.
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6. Reino Unido: confissões falsas e vítimas vivas
Em Dezembro de 2003, no Reino Unido, Harry MacKenney e Terry Pinfold, viram anuladas as suas condenações de 1980 por vários homicídios cujos corpos nunca foram encontrados.
As suas condenações, foram baseadas na confissão de um suposto co-autor, John Bruce Childs que se encontrava a cumprir pena de prisão por outros crimes, que confessou e implicou MacKenney e Pinfold na morte de Terence Eve e mais cinco pessoas, que tinham desaparecido no período entre Novembro de 1974 e Outubro 1978, invocando que estes geriam um negócio como assassinos contratados.
Em 1980, Pinfold foi julgado por quatro assassinatos e MacKenney por seis. Não havia evidências de que as seis pretensas vítimas estivessem mortas, excepto para o testemunho de Bruce Childs. Pinfold foi condenado pelo homicídio de Eve. MacKenney foi condenado por quatro homicídios, mas foi absolvido pelo de Eve.
Em 1986, Childs retratou as suas declarações em julgamento e disse que testemunhou falsamente porque os promotores lhe ofereceram “o incentivo de que minha ‘cooperação’ no julgamento garantiria a sua libertação antecipada da prisão”.
Uma das razões apontadas para o facto da Scotland Yard ter protegido a nova identidade de Terence Eve, a ponto de permitir que Terry Pinfold e Harry MacKenney fossem julgados, condenados e presos por mais de duas décadas por um crime hediondo que nunca aconteceu, e pelo homicídio de mais cinco pessoas de que não existe qualquer evidência que estejam mortas, foi a existência de uma política/prática entre algumas polícias de protecção dos informadores, ainda que sacrificando pessoas inocentes.
Por exemplo, em Janeiro de 2001 o FBI foi exposto publicamente por acusar injustamente e conseguir a condenação de quatro pessoas pela morte de Edward Teddy Deegan em 1965. Os condenados passaram décadas na prisão. Louis Greco e Henry Tameleo acabaram por falecer enquanto estavam recluídos. Peter Limone e Joseph Salvati foram libertados em 2001.
Veio também a demonstrar-se que a testemunha principal da acusação, Joseph Barboza, mentiu para proteger um companheiro que era informador do FBI, e o FBI sempre o soube. A juíza Nancy Gertner afirmou que a postura do governo neste caso era “absurda”.
7. Brasil: o caso Eliza Samudio e as zonas cinzentas da justiça penal
Em Junho de 2010, a modelo brasileira Eliza Silva Samudio desapareceu após alegar que o futebolista Bruno Fernandes, então guarda-redes do Flamengo, era pai do seu filho. O corpo nunca foi encontrado. Ainda assim, Bruno e outros coarguidos foram condenados por homicídio e ocultação de cadáver com base em testemunhos, confissões parciais, elementos circunstanciais e sinais de violência no local.
O caso gerou enorme atenção mediática e reacendeu o debate sobre julgamento por presunção narrativa. Em 2013, Bruno e outros arguidos foram julgados por um tribunal do júri e foram condenados pelo homicídio qualificado de Eliza, a penas de prisão efectiva entre os 17 anos e 6 meses e os 22 anos.
A ausência do corpo não foi um obstáculo às condenações, o processo assentou numa construção coerente, mas essencialmente indiciária, confirmando o poder da narrativa mesmo sem cadáver.
8. Portugal: entre a prudência judicial e a pressão pública
Ao contrário dos EUA, a jurisprudência portuguesa tem sido cautelosa, mais em linha com a tradição de alguns países europeus. No caso conhecido como o da grávida da Murtosa, e de acordo com o que foi noticiado, o tribunal do júri terá absolvido o arguido, por, além do mais, considerar que não estava provado, para além de dúvida razoável, que Mónica tivesse morrido.
Os tribunais reconhecem que a inexistência de corpo não impede, por si só, a condenação, desde que a prova indiciária seja robusta, convergente e sem explicação alternativa plausível. A chave é a coerência interna do quadro probatório.
Mas justamente por serem casos em que falta a evidência mais objectiva, o cadáver, o grau de exigência da investigação tem de ser exponencialmente mais elevado. A tentação de encaixar factos em narrativas plausíveis, mas não demonstradas, multiplica o risco de erro. A prova indiciária deve formar um todo coerente, sim, mas também resistir ao contraditório e à dúvida razoável, sem lacunas ou interpretações forçadas.
O homicídio sem corpo desafia as categorias clássicas do processo penal. A ausência de cadáver é uma ausência simbólica e técnica que pode ser ultrapassada por investigações bem conduzidas e provas digitais e comportamentais. Mas também exige uma cultura judiciária capaz de lidar com a incerteza sem ceder ao desejo de punição e da pressão pública.
Na tensão entre a proteção da inocência e a busca da verdade, estes casos revelam-se como verdadeiros testes de maturidade para o sistema de justiça penal. E mostram que, quando o corpo não aparece, a prova tem de ser tanto mais densa quanto mais invisível é o crime. E, por isso mesmo, deve ser escrutinada com mais rigor.
Os casos de homicídio sem corpo não confrontam apenas a estrutura legal do processo penal, desafiam a percepção, os afetos e as expectativas de todos os actores do sistema de justiça. A ausência do cadáver abre espaço à dúvida, mas também ao preenchimento dessa ausência com suposições, desejos e vieses.
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9. A tentação narrativa: neurociência, cognição e enviesamento
9.1. A necessidade da análise interdisciplinar
Analisemos agora como é que estas situações se podem manifestar nas diferentes perspectivas, começando pela relevância de se fazer tal análise.
Rodrigo Santiago, Professor de Direito Processual Penal e Advogado com especial intervenção em processos crime mediáticos, costuma dizer que ensinava o processo penal tal como ele vem nos códigos e nos livros, e não como ele é muitas vezes aplicado nos tribunais.
Os anglo-saxónicos têm uma expressão interessante para esta divergência, a law in action e a law in books. Existem vários motivos para que este “fenómeno” ocorra, alguns são contextos histórico-políticos de determinado país, mas a maioria estão relacionadas com a natureza humana e as suas dinâmicas (na verdade, como nos ensina António Damásio, é redutor referirmo-nos à natureza humana em algumas dessas circunstâncias, em especial em situações de cooperar ou enganar, porquanto elas fazem parte sim da natureza dos organismos vivos).
Geraldo Prado, Professor de Direito Processual Penal, Promotor de Justiça, Juiz de Direito, Juiz Desembargador e Advogado, elaborou uma reflexão, que tem tanto de impressiva, como de corajosa, desde logo porque em contracorrente com o status quo, identificando e assumindo a existência de um problema e elencando algumas das razões pelas quais ele existe e persiste na justiça brasileira, dos quais nos merecem relevo, por ora, os seguintes trechos relacionados com a assunção da questão:
“O texto deste trabalho surgiu de angústias e conversações… conversações sobre angústias. O lugar em que foi pensado não poderia ter sido melhor: o Instituto de História e Teoria das Ideias da Universidade de Coimbra. E os diálogos travados com o pensador Rui Cunha Martins, no âmbito de um projeto mais alargado, de reflexão sobre a construção sócio-político-econômica das categorias centrais do processo penal teria de rumar para o tema central das democracias em Estados cuja tradição autoritária consolidara-se fortemente no século XX.
Como investigador do processo penal brasileiro incomodava-me a persistente evocação de práticas autoritárias em um processo penal cujas linhas gerais, traçadas pela Constituição de 1988, não comportava interpretação dessa natureza.
Sem dúvida que o estado da arte do processo penal, como saber jurídico, pouco podia socorrer-me em minhas aflições. Afinal, o passar de olhos pela literatura sobre o assunto no Brasil, malgrado as distintas densidades das abordagens, parecia indicar o sucesso do processo democrático em dotar o Sistema de Justiça Criminal das ferramentas jurídicas adequadas para harmonizar o processo penal com as orientações extraídas dos principais textos de direitos humanos.
Como magistrado eu sabia que isso, porém, não correspondia à realidade onde quer que o Sistema de Justiça Criminal se manifeste.
A questão, portanto, residia em interrogar o que assegurava a permanência das citadas práticas autoritárias, em um ambiente aparentemente esquizofrênico no qual discurso e ação estavam visivelmente desencontrados.
Claro que um problema dessa magnitude é bastante complexo e não se presta a ser abordado ou explicado por um ângulo exclusivo.” (ob. citada em referências, pág. 11 e 12).
Alexandre Morais da Rosa, Professor de Direito e Juiz de Direito e Salah H. Khaled Jr., Professor de Direito, além do mais, em Sistemas Processuais Penais, também tocam na “ferida”, de forma bastante marcante:
“A Constituição brasileira completará trinta anos em 2018. Para um país com pouca tradição democrática como o Brasil, trata-se de uma data marcante, pois estamos historicamente acostumados a testemunhar a ruptura autoritária da ordem política. No entanto, não temos muito que comemorar: seu déficit de efetividade é claramente visível, particularmente no que se refere ao âmbito das práticas punitivas. Os atores do sistema penal permanecem propensos a violar direitos fundamentais e flexibilizar garantias, deformando na prática a estrutura regrada do devido processo legal e consagrando cada vez mais o decisionismo.
No que diz respeito ao universo jurídico-penal, a Constituição representa uma abertura democrática em sede processual, consagrando um sistema eminentemente acusatório. No entanto, continua irrealizada sua promessa acusatória, uma vez que nosso sistema processual penal ainda é animado por uma doentia ambição de verdade, que se recusa a arrefecer. Em nome dessa insaciável busca, permanece imperando um processo penal do inimigo, cujo sentido consiste na obtenção da condenação a qualquer custo.
O fetiche pela legislação infraconstitucional ainda seduz a imaginação persecutória de muitos magistrados: nosso Código de Processo Penal (de 1941) é tido como livro sagrado, continuamente apto a potencializar práticas visivelmente inquisitórias e antidemocráticas. Nada parece impedir a continuidade de sua aplicação e muito menos que diante da perspectiva de um novo código, os juízes se manifestam temerosos com a possibilidade de retirada de poderes que lhes permitam buscar a verdade real. Ainda temos que avançar e muito, pois permanecemos presos a um núcleo de pensamento autoritário que é preciso urgentemente superar para fortalecer a democracia.” (ob. citada em referências, pág. 22 e 23).
Da mesma forma que o Brasil, também Portugal teve um regime autoritário que se consolidou fortemente no Séc. XX. Os códigos e as normas mudam, mas as mentalidades e as práticas não mudam por decreto, levam o seu tempo.
Deste lado do Atlântico também existem algumas vozes que alertam para algumas divergências, entre teoria e prática, no âmbito do direito aplicado nos tribunais. Para tanto, veja-se o que o Juiz Desembargador Jubilado Eurico Reis (de nome completo, Eurico José Marques dos Reis), escreveu num artigo de 2021 da Revista de Direito Comercial:
“E como nunca será demais repetir, o direito a ver integralmente cumprido, na prática quotidiana (Law in action), que não apenas na proclamação que consta de inúmeros diplomas legislativos (Law in books), o direito a um julgamento leal, não preconceituoso e mediante processo equitativo [para usar a mundialmente conhecida expressão em língua inglesa, sendo que foi nesse ambiente cultural/jurídico que o conceito foi construído e apresentado pela primeira vez], constitui um pilar fundamental que dá corpo a um Princípio Ético sem cuja efectiva consagração não existe verdadeiramente um normal funcionamento das instituições do Estado de Direito.” (ob. citada em referências, ponto 44, pág. 779).
O primeiro passo para mitigar tais dissonâncias é a sua tomada de consciência, como em grande parte das situações em que é preciso resolver algo. Esta temática, sobretudo no âmbito do processo penal e dos seus imensos impactos, merece estudo autónomo, pelo que não nos alongaremos por ora. Deixemos pois, apenas uma breve introdução do problema (e sim, infelizmente, configura um problema).
No conceito utilizado por Nassim Nicholas Taleb – Professor Jubilado da cadeira de Engenharia de Risco no Tandon School of Engineering do Polytechnic Institute da New York University, autor do best-seller O Cisne Negro, e que teve como um dos seus principais temas de estudo a tomada de decisões num sistema opaco –, o Direito, tal como a Economia, entre outras áreas do saber, são ciências essencialmente normativas, baseadas numa perspectiva kantiana, do é porque deve ser, que permite lucubrações filosóficas muito bem elaboradas e sustentadas mas, em determinadas circunstâncias, têm pouca ou nenhuma adesão com a realidade (law in action versus law in books). Contrariamente, as ciências positivas baseiam-se no comportamento real das pessoas. (ob. citada em referências, pág. 227 e 228).
Isto é tanto mais assim, quanto maior for a relevância das emoções na aplicação de determinada teoria, o que em termos de ciências jurídicas, ocorre com especial relevância nas disciplinas de Direito adjectivo, como é o caso do processo civil, mas sobretudo no processo penal. Para que exista uma correcta aplicação das diversas teorias, bem como do que resulta das mesmas em sede de legislação processual, é fundamental a observação de estudos empíricos. Quando eles não existem, maior é a probabilidade de estarmos a cometer erros.
Só os estudos de campo, testados e replicados, permitem perceber se o “é porque deve ser” é confirmado na prática, ou se o resultado se afasta largamente do objectivado aquando da elaboração da norma.
Em países como Portugal, são conhecidos poucos estudos empíricos (e infelizmente também não existe grande incentivo para que estes se realizem) que analisem de forma interdisciplinar, se os vários momentos de tomada de decisão no processo penal estão a ser bem aplicados, ou se existem desvios na sua concretização que urgem correcção face ao princípios subjacentes e, em caso afirmativo, em que termos deverá esta ser efectivada.
No entanto, são conhecidos inúmeros estudos internacionais das mais diversas áreas do saber que podem, e devem, ser observados e que nos podem auxiliar a melhorar esses mesmos processos de tomada de decisão que ocorrem ao longo de um processo penal.
Aury Lopes Jr., Professor de Direito Processual Penal e Advogado Criminalista, enuncia muito bem a necessidade de uma visão interdisciplinar quando refere que: “vivemos em uma sociedade complexa, em que o risco está em todos os lugares, em todas as atividades e atinge a todos de forma indiscriminada. Concomitantemente, é uma sociedade regida pela velocidade e dominada pela lógica do tempo curto. Toda essa aceleração potencializa o risco.
Alheio a tudo isso, o direito opera com construções técnicas artificiais, recorrendo a mitos como “segurança jurídica”, “verdade real”, “reversibilidade de medidas” etc. Em outros momentos, parece correr atrás do tempo perdido, numa desesperada tentativa de acompanhar o “tempo da sociedade”. Surgem então alquimias do estilo “antecipação de tutela”, “aceleração procedimental” etc.
O conflito entre a dinâmica social e a jurídica é inevitável, evidenciando uma vez mais a falência do monólogo científico diante da complexidade imposta pela sociedade contemporânea. Nossa abordagem é introdutória, um convite à reflexão pelo viés interdisciplinar, com todos os perigos que encerra uma incursão para além de um saber compartimentado. Sem esquecer que, em meio a tudo isso, está alguém sendo punido pelo processo e, se condenado, sofrendo uma pena, concreta, efetiva e dolorosa.” (Lopes Jr., Aury, ob. melhor citada em referências, pág. 45 e 46).
Os elementos da investigação, pressionados pela urgência da resolução e pela visibilidade mediática, enfrentam um dilema: quanto mais ausência de provas físicas, maior o risco de se saltar para conclusões por associação e do posterior viés de confirmação. A tendência para “amarrar o caso” à hipótese inicial compromete o escrutínio de outras possibilidades, criando uma visão de túnel. A ciência forense, quando usada como muleta narrativa em vez de ferramenta de validação, torna-se um instrumento de erro.
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9.2. Sistema 1 e vieses
“Um traço essencial da constituição da máquina associativa é representar apenas ideias ativadas. A informação que não é evocada (mesmo de forma inconsciente) da memória é como se não existisse. O Sistema 1 é excelente na construção da melhor história possível que incorpore ideias ativadas no momento, mas não permite (nem pode) informações que não possui.
A medida do sucesso para o Sistema 1 é a coerência da história que consegue criar. A quantidade e a qualidade dos dados em que a história se baseia são em grande parte irrelevantes. Quando a informação é escassa, o que ocorre com frequência, o Sistema 1 opera como uma máquina de saltar para conclusões.” (Kahneman, Daniel, “Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências, pág. 117).
Na sequência desta citação de Daniel Kahneman – que em 2002 recebeu o Prémio Nobel da Economia por uma investigação pioneira na área da Psicologia (o prémio atribuído em Economia denomina-se Prémio do Banco da Suécia em Ciências Económicas em Memória de Alfred Nobel – foi atribuído pela primeira vez em 1969), sobre o modelo racional que preside à tomada de decisões, trabalho que teve um impacto profundo em campos como a Economia, a Medicina, ou a Política. Foi professor de Psicologia e de Relações Institucionais na Princeton School of Public and International Affairs –, importa perceber que Sistema 1 e Sistema 2 são metáforas que alguns autores utilizam para a forma de funcionamento do cérebro, de forma mais intuitiva, associativa e de resposta mais rápida ou de modo mais ponderado e não tão célere.
A propósito das metáforas sobre o cérebro, Lisa Feldman Barrett –Investigadora no campo da Psicologia e Neurociência, especialista mundial na Psicologia das emoções, Professora de Psicologia na Northeastern University, com ligação à Harvard Medical School e Massachusetts General Hospital, onde dirige o Center for Law, Brain & Behavior –, observou o seguinte: “Se ouviram dizer que o lado esquerdo do nosso cérebro é lógico e o lado direito é criativo, isso é apenas uma metáfora. Tal como a ideia de que o nosso cérebro tem um «Sistema 1» para respostas rápidas, instintivas, e um «Sistema 2» para um processamento mais lento e reflexivo, conceitos discutidos no livro Pensar, Depressa e Devagar, do psicólogo Daniel Kahneman. (Kahneman é muito claro ao dizer que os Sistemas 1 e 2 são metáforas sobre a mente; mas frequentemente, são confundidos com estruturas cerebrais).” (“7 lições e meia sobre o cérebro”, melhor citada em referências, pág. 41 e 42).
Tenhamos presente que o cérebro funciona por previsão, com base nas informações existentes no nosso corpo, pelo que em situações de investigação criminal contribuirão as experiências passadas e vivenciadas pelos investigadores directa ou indirectamente, a que acrescem os dados sensoriais que recebemos do mundo exterior (vd. por todos Barrett, Lisa Feldman, “7 lições e meia sobre o cérebro”, melhor citada em referências, Lição n.º 4, pág. 79 a 97).
Situações como as investigações de homicídio com alta exposição mediática, podem gerar enorme pressão nos investigadores, tendo em vista uma resolução tão rápida quanto possível da investigação. E é aqui que, com base nas experiências passadas, o cérebro dos investigadores lhes pode pregar uma rasteira, ou seja, existe a possibilidade de partirem de palpites para hipóteses de trabalho demasiado delimitadas, descurando ou até ignorando os indícios que surgem em sentido contrário. Tais circunstâncias podem ter como resultado a tentação de encaixar indícios em narrativas pré-existentes e não construírem narrativas a partir do aparecimento dos indícios… com a elasticidade investigatória necessária para alterar rumos à medida que as evidências vão surgindo.
Assim nos explicam Daniel Kahneman, Olivier Sibony – Professor de Estratégia Empresarial e Estratégia Corporativa na HEC Paris Business School, escritor e consultor especializado em tomada de decisões estratégicas e organização de processo de decisão – e Cass R. Sunstein – Professor em Harvard, onde dirige o Programa de Economia Comportamental e Políticas Públicas. Entre 2009 e 2012, esteve à frente do gabinete para a Informação e Questões Regulamentares, na Casa Branca, e, entre 2013 e 2014, fez parte do Grupo de Estudo criado pelo presidente Barack Obama para Tecnologias da Informação e Comunicações. Em 2018, recebeu o Prémio Holberg do governo da Noruega, por vezes descrito como o equivalente ao Prémio Nobel do Direito e das Humanidades. Em 2020, a Organização Mundial da Saúde nomeou-o Presidente do seu grupo de consultoria técnica sobre Insights Comportamentais e Ciências para a Saúde: “Este exemplo ilustra um tipo diferente de enviesamento, a que chamamos enviesamento de conclusão, ou juízo prematuro. A exemplo de Lucas, começamos muitas vezes o processo de formulação de um juízo com uma inclinação para chegar a uma determinada conclusão. Quando fazemos isso, deixamos o nosso rápido e intuitivo Sistema 1 de pensamento sugerir uma conclusão. Ou tiramos essa conclusão precipitada e ignoramos o processo de reunir e integrar informações, ou então mobilizamos o Sistema 2 de pensamento – envolvendo-nos em pensamento deliberado – para conceber argumentos que apoiam o nosso juízo prematuro. Neste caso, a prova será selectiva e distorcida: devido ao enviesamento de confirmação e ao enviesamento de desejabilidade, tendemos a reunir e interpretar elementos de prova de forma selectiva para beneficiar um juízo em que já acreditamos ou que gostaríamos que fosse verdadeiro.
As pessoas apresentam muitas vezes racionalizações plausíveis para os seus juízos e pensam que elas são a causa das suas convicções. Um bom teste ao papel do juízo prematuro é imaginar que os argumentos que parecem apoiar a nossa convicção são de repente considerados inválidos.” (ob. citada em referências pág. 206 e 207).
O elevado risco deste modo de actuação, é que podem existir linhas de investigação que faria todo o sentido serem analisadas com base nos indícios já recolhidos, mas que pelo facto de estarem em contradição, ou até desmontarem por completo as hipóteses de trabalho em curso, são ignoradas. A coerência excessiva entra em acção e os erros podem acumular-se sem que os investigadores se apercebam: os vieses de confirmação fazem o seu trabalho e apenas os indícios que encaixam na narrativa são valorizados.
Conforme nos ensina Daniel Kahneman: “Não se consegue evitar lidar com a limitada informação que se possui como se fosse tudo aquilo que há para saber. Constroem-se as melhores histórias possíveis a partir da informação disponível e, se for uma boa história, acredita-se nela. Paradoxalmente, é mais fácil construir uma história coerente quando se sabe pouco, quando há menos peças para encaixar no puzzle. A nossa reconfortante convicção de que o mundo faz sentido baseia-se num alicerce seguro: a nossa capacidade quase ilimitada de ignorar a nossa ignorância.” (“Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências, pág. 265 e 266).
Vale a pena recordar António Damásio, Médico, Neurologista e Neurocientista de renome internacional, conhecido pelas suas contribuições pioneiras para a compreensão das relações entre o cérebro, as emoções e a racionalidade. Professor da cátedra David Dornsife de Neurociência, Psicologia e Filosofia, bem como Director do Brain and Creativity Institute, que fundou em 2006 na University of Southern California, em Los Angeles:
“O nosso trabalho mostra que a resistência à mudança está associada à relação conflituosa entre sistemas cerebrais relacionados com a emotividade e a razão. A resistência à mudança está associada, por exemplo, à ativação de sistemas responsáveis pela produção de zanga e fúria. Criamos uma espécie de refúgio natural para nos defendermos contra a informação contraditória.” (ob. citada em referências, pág. 294).
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9.3. Confiança e ausência de dúvida
Como bem refere David J. Lieberman, Psicoterapeuta e líder internacionalmente reconhecido nos campos do comportamento humano e das relações interpessoais. Formou membros de todos os ramos das forças armadas dos EUA, bem como do FBI, da CIA e da NSA:
“As pessoas tendem a encontrar o que procuram e a ver o que esperam ver. Sempre em busca de provas que corroborem as nossas ideias, fechamos os olhos a qualquer prova que não esteja de acordo com as nossas expectativas. Este é um fenómeno conhecido como viés de confirmação. Concentramo-nos no que confirma o nosso pensamento, e subconscientemente filtramos as inconsistências.
Quando o viés de confirmação está em ação, a prova surge por si só – quase misticamente –, em padrões de identificação imediata. Isto faz parte do processo neurobiológico que o cérebro utiliza para dar sentidoao mundo. Os nossos cérebros basicamente criam ficheiros, tal como nós fazemos nos nossos computadores. No nosso cérebro, esta categorização enquadra-se no âmbito dos atalhos mentais, chamados heurística.
(…)
A heurística é útil para nos ajudar a resolver problemas de forma eficiente, mas pode conduzir a preconceitos que nos levam a entrar num modo «culpado até prova em contrário». Por exemplo, se um detetive que investiga o assassinato de uma mulher sabe que uma elevada percentagem de mulheres assassinadas são mortas pelos seus cônjuges, pode ser mais provável que assuma que o cônjuge o fez e comece a filtrar mentalmente as provas para se adequarem à sua teoria.” (ob. citada em referências, pág. 121 e 122).
Por seu turno, o Ministério Público com base na sua função acusatória, pode desenvolver uma narrativa incrivelmente persuasiva a partir de fragmentos, nomeadamente se tiver eco nos meios de comunicação social. Mas quando o corpo não está presente, essa construção depende fortemente de inferências.
Não podemos esquecer, como bem nos enuncia Aury Lopes Jr., que o Ministério Público no exercício da sua pretensão acusatória, formula a acusação, mas para que o devido processo Penal funcione: “é preciso que cada um ocupe o seu “lugar constitucionalmente demarcado” (clássica lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho), com o MP acusando e provando (a carga da prova é dele), a defesa trazendo seus argumentos (sem carga probatória) e o juiz, julgando. Simples? Nem tanto, basta ver que a estrutura inquisitória e a cultura inquisitória (fortíssima) fazem com que se resista a essa estrutura dialética por vários motivos históricos, entre eles o mito da “busca da verdade real” e o anseio mítico pelo juiz justiceiro, que faça justiça mesmo que o acusador não produza prova suficiente.” (Lopes Jr., Aury, ob. citada em referências, pág. 224).
Acresce que, como já vimos, o risco de viés da narrativa coerente é acentuado: o procurador que constrói uma história lógica e emocionalmente satisfatória tenderá a ignorar dados que a contradigam (sucessão e perpetuação de erros que já vêm da investigação).
Como adverte Daniel Kahneman: “A confiança subjetiva num juízo não é uma avaliação sensata da probabilidade de esse juízo ser correto. A confiança é uma sensação, que reflete a coerência da informação e a facilidade cognitiva de a processar. É prudente levar as admissões de incerteza a sério, mas as declarações de elevada confiança dizem-vos principalmente que um indivíduo construiu uma história coerente na sua mente, não necessariamente que a história seja verdadeira.” (“Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências pág. 279).
Para a família da vítima, o desaparecimento é bastante doloroso, porque não há ritual de luto, nem corpo, nem sepultura.
O reencontro do corpo, segundo estudos qualitativos com famílias, é frequentemente o momento que marca o início do luto: subitamente, o processo ganha uma base sensorial e simbólica, permitindo às vítimas iniciarem a reconciliação emocional.
Na ausência do corpo, porque não foi encontrado, bem como em situações de absolvição do arguido, persiste uma situação de ambiguidade que dificulta o processo de encerramento e início do luto. Pauline Boss, Professora Emérita da University of Minnesota, membro da Associação Americana de Psicologia e da Associação Americana para Casamento e Terapia Familiar, e ex-presidente do Conselho Nacional de Relações Familiares, define este processo como ambiguous loss: sem corpo e sem condenação (embora o próprio processo judicial em si, seja muito difícil de suportar para os familiares das vítimas), não há rituais nem prova que simbolizem a morte e, portanto, a dor pode permanecer suspensa.
O sistema judicial é, muitas vezes, instrumentalizado como substituto do funeral: punir alguém torna-se a única forma de “fazer justiça”, o que pode pressionar as autoridades e os tribunais. Sobretudo se existirem meios de comunicação que já tenham providenciado “o pacote completo e fechado”, ou seja, tenham divulgado quem foi o autor do crime, de que modo o fez, e qual a motivação.
Casos sem corpo geram fascínio público e atraem mediatismo intenso. Isso tende a promover juízos precipitados, julgamentos paralelos e a exigência de “justiça emocional”.
Conforme nos descreve Morris B. Hoffman, Juiz Jubilado no Colorado, onde presidiu a várias divisões judiciais, incluindo o grande júri de Denver. Membro da MacArthur Research Network on Law and Neuroscience e investigador no Gruter Institute for Law and Behavioral Research, tem escrito e ensinado sobre direito penal, neurociência aplicada ao julgamento, história do júri e seleção de jurados:
“Nas minhas instruções iniciais aos jurados, esforço-me sempre por alertá-los para um problema fundamental: um julgamento é um processo profundamente antinatural, e o maior desafio será resistir à tentação de tirar conclusões antes do tempo. O ser humano não está feito para esperar passivamente até que todos os factos estejam em cima da mesa antes de julgar, muito menos para o fazer de forma linear, como exige o processo: primeiro uma parte, depois a outra. Julgamos continuamente, com base em fragmentos mínimos de informação, e esses juízos iniciais alteram profundamente a forma como recebemos e processamos o que vem a seguir, sobretudo aquilo que contradiz o que já decidimos.
O maior desafio para qualquer jurado é este: transformar-se de uma ‘máquina de julgamento instantâneo’ num recipiente paciente de julgamento ponderado.
Mas este problema não afeta apenas os jurados. Nos julgamentos sem júri, em que sou eu o decisor, há sempre um momento, por vezes cedo, por vezes tarde, em que se acende uma ‘luz’ na mente: parece que se vê o todo, que se compreende o essencial, que se antecipa o resultado. Tento lutar contra esse momento, voltar mentalmente ao estado de incerteza anterior, e até prestar atenção redobrada à prova que aponta noutra direção. Ainda assim, devo confessar: quando esse momento chega, raramente mudo de opinião quanto ao essencial.
Passei anos a pensar em formas de mitigar este problema, o do julgamento precoce, do veredito em piscar de olhos. A verdade é que esses momentos de “luz acesa” surgirão inevitavelmente. Fazem parte do modo como decidimos. Talvez o melhor que possamos fazer seja empurrá-los o mais possível para o fim do processo. E, para isso, talvez baste reconhecer que o problema existe, e obrigar o jurado, ou o juiz, a reconhecê-lo também. Recordá-los, e recordarmo-nos, de que o julgamento é um processo antinatural, em que pedimos aos decisores que resistam à sua tendência natural de saltar para conclusões.” (Hoffman, Morris B., ob. citada em referências, pág. 272, 274 e 275).
O fenómeno da justiça performativa, que analisámos no artigo Punir (e ver punir) sabe bem!, está aqui particularmente activo: sem cadáver, o espetáculo judicial substitui a prova.
Nos sistemas com jurados, os riscos poderão ser amplificados: a ausência do corpo é muitas vezes compensada por emoção, empatia com a vítima ou desconfiança do arguido.
Juízes togados, por seu lado, podem ser vítimas do viés da coerência institucional, para além do viés de confirmação: validar o trabalho da investigação e acusação com base na construção lógica interna, mesmo sem evidência física central.
“É importante sublinhar que o “viés confirmatório” é um processo inconsciente, que independe das boas ou más intenções do juiz, sendo um dos muitos erros cognitivos que pode o juiz incorrer nos diferentes processos decisórios que é chamado a realizar.
O viés confirmatório – confirmation bias –, explicam Morais da Rosa e Wojciechowski, constitui uma tendência natural das pessoas a procurarem ou favorecerem apenas as informações que corroborem os seus pontos de vista, hipóteses ou preconcepções, negligenciando evidências que apontem em sentido contrário. Parafraseando Cordero, é exatamente a prevalência da hipótese sobre os fatos. Ocorre quando o agente (pode ser o juiz ou, durante a investigação, a autoridade policial) primeiro decide e depois vai atrás da prova que (apenas serve para) confirmar a decisão já tomada, desconsiderando outras hipóteses. Primeiro decide “foi ele”, depois busca a prova exclusivamente confirmatória daa decisão já tomada. O viés de confirmação é o erro mais comum nas investigações e decisões judiciais, ainda que não seja o único, gerando graves injustiças.
Como apontam Alexandre e Paola, “as ideias são pegajosas”, conduzindo ao efeito perseverança. Por isso, é importante um agir contraintuitivo, que, consciente daa existência desse enviesamento, o agente busca atrasar ao máximo a tomada de decisões, estando cognitivamente aberto para confirmar ou negar a hipótese trazida.
O quadro mental é agravado pelo chamado “efeito aliança”, em que o juiz tendencialmente se orienta pela avaliação realizada pelo promotor. O juiz “vê não no advogado criminalista, mas apenas no promotor, a pessoa relevante que lhe serve de padrão de orientação”. Inclusive, aponta a pesquisa, o “efeito atenção” diminui drasticamente tão logo o juiz termine sua inquirição e a defesa inicie suas perguntas, a ponto de serem completamente desprezadas na sentença as respostas dadas pelas testemunhas às perguntas do advogado de defesa.
Tudo isto acaba por constituir um “caldo cultural” onde o princípio do in dubio pro reo acaba sendo virado de ponta-cabeça – na expressão de Schünemann –, pois o advogado vê-se incumbido de provar a incorreção da denúncia! Entre as conclusões de Schünemann encontra-se a impactante constatação de que o juiz é “um terceiro inconscientemente manipulado pelos autos da investigação preliminar.” (Lopes Jr., Aury, ob. citada em referências, pág. 81 e 82).
Por outro lado, na ausência de corpo, que numa análise sumária poderá parecer uma grande mais-valia para o arguido, existe o outro lado da moeda pois nessas circunstâncias o arguido também não pode partir da análise do cadáver em todas as suas vertentes periciais, para poder demonstrar que, por esta ou aquela razão, não pode ter sido ele o autor do crime. Inclusive, ficam mais difíceis as situações de tentativa de direcionamento para um outro possível agente do crime, que são estratégias de defesa comuns, sobretudo em latitudes em que existe uma verdadeira investigação defensiva e obrigatoriedade de partilha de indícios entre investigação/acusação e defesa.
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9.4. Remorso e julgamento emocional
Nestas situações, a atitude do arguido em julgamento (frieza, silêncio, contradições) pode ser sobrevalorizada como “indício de culpa”, ainda que emocionalmente neutra ou até justificada por medo ou trauma por estar a passar por todo o processo. O direito ao silêncio, longe de proteger, pode aqui funcionar contra si, contribuindo para alimentar narrativas especulativas.
A ausência de corpo transforma o processo penal num campo de disputa entre lógicas narrativas, emoções colectivas e percepções enviesadas. Mais do que em qualquer outro crime, o homicídio sem cadáver exige da justiça não só provas indiciárias coerentes e irrepreensíveis, mas um sistema imune à sugestão, à simplificação e ao desejo social de punição.
Por seu turno, a ausência de um corpo no contexto de um possível homicídio não é apenas uma lacuna probatória: é um vazio simbólico que o cérebro humano tem dificuldade em aceitar. Do ponto de vista neurobiológico e cognitivo, isso tem consequências profundas para todos os envolvidos, não só no processo penal propriamente dito, como em toda a atmosfera envolvente.
Um vazio como a ausência de um corpo numa situação de possível homicídio, tende a ser preenchido pelo cérebro humano do mesmo modo que processa a falta de pormenores de um acontecimento passado, numa situação de reconstituição de memória episódica.
Tal como descrito por Charan Ranganath, Professor de Psicologia e Neurociência na University of California, e Director do Dynamic Memory Lab da mesma universidade. É um pesquisador líder no campo da memória, usando imagens cerebrais, modelagem computacional e estudos de indivíduos com distúrbios de memória para investigar como nos lembramos de eventos passados e como a memória afecta vários aspectos de nossas vidas: “Acredito decididamente que o hipocampo nos permite entrar num estado mental passado e invocar alguns pormenores de um acontecimento passado. Mas também concordo com a opinião de Bartlett de que, assim que regressamos ao passado, não reproduzimos simplesmente as coisas à medida que elas aconteceram. Se assim fosse, ao relembrar uma conversa telefónica de dez minutos, passaríamos dez minutos a reviver tudo o que experienciámos durante essa conversa. Não é isso que acontece. Pelo contrário, geralmente comprimimos essa experiência numa narrativa mais breve que capta a sua essência. Assim, o hipocampo pode levar-nos até algumas das unidades celulares que estavam ativas durante alguns momentos dessa conversa, mas continuamos a ter de utilizar esquemas na rede-padrão para dar sentido àquilo que estamos a recordar. Contudo, esta reconstrução é suscetível ao erro porque os esquemas captam o que geralmente acontece, não o que deveras aconteceu.
Quando recordamos, somos como detetives a tentar resolver um mistério ao juntar as peças de uma narrativa a partir de um conjunto limitado de pistas. Um detetive pode alicerçar um caso com base numa compreensão do motivo do assassino, o que pode ser útil, mas também pode levar a vieses. Da mesma forma, quando recordamos acontecimentos, o motivo pode ter um importante papel explicativo, ajudando-nos a dar sentido ao que que aconteceu. Dá sentido à ação, o que nos permite reunir fios de informação e tecê-los numa narrativa memorável. Mas suposições sobre as motivações das pessoas também podem estimular a nossa imaginação, levando-nos a preencher os espaços em branco de acontecimentos de formas que deformam as nossas narrativas daquilo que aconteceu.” (ob. citada em referências, pág. 82 e 83).
O cérebro humano detesta incerteza, sendo que estudos de neuroimagem mostram que a incerteza ou situações de tensão podem activar o circuito do stress, preparando o corpo para a acção, mais comumente conhecida pelo termo inglês fight or flight.
“Para iniciar a reação de lutar ou fugir, a amígdala ativa o hipotálamo. Com isso, envia sinais para os nossos nervos autonómicos, que controlam processos como a digestão e a respiração. O sistema nervoso simpático ativa então a reação de lutar ou fugir, levando as glândulas adrenais a libertarem duas hormonas da mesma família, a adrenalina e a noradrenalina, na corrente sanguínea.
As duas hormonas viajam pelo corpo, gerando um conjunto de alterações: o nosso ritmo cardíaco acelera, a respiração aumenta e o fluxo sanguíneo para os músculos cresce para lhes levar o máximo possível de oxigénio, caso precisemos de correr. Uma quantidade adicional de oxigénio viaja para o cérebro, fazendo-nos sentir alerta, e os nossos sentidos ficam mais despertos. Os níveis de açucar no sangue disparam, sendo libertado pelo fígado para alimentar os músculos.
Passados alguns segundos, o hipotálamo liberta um mensageiro químico que, através de uma reação em cadeia aciona a libertação de, entre outros, cortisol (uma hormona que conhecemos no Capítulo 2) pelas glândulas adrenais, que se situam por cima dos rins. Muitas vezes considerado a hormona do stress, o cortisol mantém o corpo num elevado estado de alerta, aumentando a pressão sanguínea e os níveis de glicose no sangue. É o cortisol que nos permite lidar com as situações tensas que duram mais do que alguns minutos.
Entretanto, quaisquer processos que não sejam necessários, e possam desperdiçar energia preciosa, são desligados. A digestão abranda ou acaba mesmo por parar, a produção de lágrimas e saliva sofre uma forte redução (gerando a sensação familiar de boca seca) e o precioso sangue é redirecionado para longe da pele, fazendo-nos ficar pálidos. O sistema imunitário é suprimido e, em casos extremos, os músculos da bexiga ficam relaxados. Libertar a urina que transportamos para reduzir o nosso peso poderá dar-nos aquela pequena melhoria na corrida que faz a diferença entre a vida e a morte. Estas duas vias, uma rápida mas de curta duração, viajando através dos nervos, e a outra mais lenta mas de maior duração, levada no sangue por substâncias químicas, significam que a reação durará o tempo que for preciso para nos livrar do perigo.” (Smith, Ginny, ob. citada em referências, pág. 88 e 89).
Este desencadear de reacções pode ocorrer a qualquer um dos intervenientes, inclusive na sala do tribunal em plena audiência. A intensidade com que as reacções do corpo se desenvolverão, terão a ver em grande medida, primeiro, com a rapidez do córtex pré-frontal em anular o que a amígdala iniciou, dizendo que foi falso alarme e que não existe um perigo real, segundo, que a pessoa não desenvolva um ataque de ansiedade, sem conseguir que o córtex pré-frontal anule a situação despoletada pela amígdala.
A maior ou menor duração deste processo nervoso-químico, vai ditar que tipo de consequências o corpo vai sentir ou somatizar, na medida em que a libertação de hormonas e a preparação do corpo para uma reacção física intensa (mas que depois não ocorre) pode ter efeitos desgastantes e até devastadores no estado físico e sobretudo psíquico da pessoa, diminuindo-lhe grandemente a capacidade mental.
Curiosamente, conforme nos adverte Ginny Smith, especialista em Neurociência e consultora de comunicação científica, uma das consequências deste tipo de situações, e sobretudo da existência de stress, é o facto deste ter a capacidade de nos tornar mais susceptíveis a vieses. (ob. citada em referências, pág. 216, adaptado).
Tudo isto, permite-nos perceber porque a ausência de corpo pode ser emocionalmente mais perturbadora do que a visão de um cadáver, independentemente do estado deste, porquanto esta ausência causa uma ideia de não resolução, de não encerramento de uma narrativa, que obviamente se agrava em situações de absolvição em sede de processo crime. Nas circunstâncias em que o processo tiver sido muito mediatizado, as pessoas, mesmo aquelas que têm conhecimentos técnicos, tendem a dizer que não foi feita justiça (porque nessas situações fazer-se justiça, significa obrigatoriamente a existência de uma condenação).
Voltando a David J. Lieberman: “O nosso desconforto crónico com a ambiguidade leva-nos a interpretações previsíveis, confortáveis e familiares, mesmo que sejam apenas representações parciais ou totalmente desconectadas da realidade… Outras coisas que não encaixam, ficam pelo caminho. Estamos a impor interpretações coerente. Vemos o mundo de uma forma muito mais coerente do que é.” (ob. citada em referências, pág. 124).
Acresce que esta ambiguidade gera o que a psicologia chama de “aversão à incerteza” (uncertainty aversion), que normalmente se relaciona com decisões mais punitivas (sobretudo com muita emoção subjacente).
Estudos de neurociência social, como o de Buckholtz – Neurocientista e Professor na Stanford University, no Departamento de Psicologia. A sua investigação foca-se nos mecanismos cerebrais da moralidade, da punição e da regulação do comportamento social. Recorrendo a neuroimagem funcional, modelação computacional e psicologia experimental, estuda como o cérebro processa normas, emoções e julgamentos, especialmente em contextos de justiça criminal – e Marois – neurocientista e Professor no Departamento de Psicologia da Vanderbilt University (EUA), onde dirige o Laboratório de Neurociência Cognitiva. O seu trabalho investiga os limites da atenção, da tomada de decisão e do controlo executivo, com ênfase na forma como o cérebro processa informação em contextos de sobrecarga e incerteza –, demonstram que o julgamento penal activa um circuito que integra emoção (amígdala), inferência de intenção (Junção Temporoparietal TPJ) e avaliação normativa (Córtex Pré-Frontal medial mPFC e Córtex Pré-Frontal DorsoLateral DLPFC). O castigo emerge da conjunção entre culpa presumida e dano sentido, mesmo que este último não seja empiricamente demonstrado, como sucede nos homicídios sem corpo. A punição, nestes casos, parece compensar cognitivamente a incerteza factual com a certeza emocional. E essa certeza é, como demonstram os autores, construída por processos cerebrais de generalização e inferência moral, não por evidência direta. (Buckholtz, Joshua W e Marois, René, ob. citada em referências, síntese adaptada).
Reiteramos, tal como descrito em Punir (e ver punir) sabe bem!, a punição activa os circuitos de recompensa, incluindo o núcleo accumbens, associado à dopamina. O desejo de ver punido o alegado autor de um homicídio sem corpo pode, assim, funcionar como compensação emocional da incerteza.
O cérebro prefere claramente uma história errada ou com lacunas mas completa, do que uma verdade incompleta. Este mecanismo explica por que razão a comunidade, os jurados, e até os magistrados podem, inconscientemente, favorecer uma narrativa acusatória coerente em detrimento da dúvida razoável.
“Quando os jurados não recebem uma narrativa socialmente coerente, tendem a inventá-la. Tal como bebés que atribuem intenções boas ou más a figuras geométricas em movimento, os jurados (e também os juízes) atribuem intenções morais às partes em conflito, mesmo que os advogados não apresentem o julgamento nesses termos. Mais impressionante ainda: os jurados, depois do veredito, reconstroem mentalmente as provas para que se tornem consistentes com a decisão tomada. Em entrevistas realizadas após o julgamento, verificou-se que muitos já nem se lembravam de elementos que contradiziam o veredito. Esta vasta literatura sobre narrativas permite inferir que, durante as deliberações, os jurados fazem o mesmo que fazem depois: constroem uma história a partir das provas, ignoram os factos que não se encaixam e sobrevalorizam os que servem a coerência da narrativa.” (Hoffman, Morris B., ob. citada em referências, pág. 278).
“A confiança que os indivíduos têm nas suas crenças depende sobretudo da qualidade da história que conseguem contar acerca daquilo que veem, mesmo que vejam pouco. Falhamos muitas vezes na admissão da possibilidade de o testemunho que deveria ser crítico para o nosso juízo estar ausente – só há aquilo que vemos. Além disso, o nosso sistema associativo tende a contentar-se com um padrão coerente de ativação e suprime a dúvida e a ambiguidade.” (Kahneman, Daniel, “Pensar Depressa e Devagar”, melhor citada em referências, pág. 120).
Como nos elucida Rui Cunha Martins, Professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde lecciona nas áreas de Filosofia do Direito, Epistemologia Jurídica e Teoria Crítica. É investigador integrado no Instituto de História Contemporânea (IHC) e Professor visitante em várias universidades no Brasil, Alemanha e América Latina. A sua obra explora as interfaces entre direito, tempo, linguagem e imaginação, tendo refletido criticamente sobre a função hermenêutica dos tribunais, o conceito de justiça narrativa e a crise da imparcialidade judicial no mundo contemporâneo:
“Terceiro “operador de contágio” residente no dispositivo da convicção: a confiança. A confiança não se opõe propriamente à prova. É mais sério que isso, torna-a desnecessária. O que há para provar ali onde nenhuma inquietude, nenhuma incerteza e nenhuma perturbação na força ostensiva do real pode instalar-se? A confiança tem contrato implícito com a evidência.
Epistemicamente falando, o exercício da confiança corresponderá a uma crença declaradamente não fundada. Ela “é um redobramento, um ´crer na crença´, uma disponibilidade para aderir que sai para fora da lógica da argumentação. A confiança, em termos empíricos, não é mesmo questão de argumento. O seu suporte é antes o de uma primordialidade roubada à discussão. Uma imagem do mundo´ que se aceita indiscutível – aquela onde o nosso questionamento retrospectivo sobre a ordem das coisas e sobre nós próprios acaba por se deter, incapaz ou sem vontade de cavar mais fundo – e que, a partir desse momento, se institui como base primordial de confiança, passando a sedimentar a nossa posição no mundo. Eis o que faz dos padrões de confiança uma espécie de “gonzos imóveis das práticas de que eles constituem as regras”.” (ob. citada em referências, pág. 34 e 35).
A ausência de cadáver gera uma lacuna sensorial que o cérebro tenta preencher com sinais substitutivos: olhares, posturas, contradições verbais, passados conturbados. Como vimos, o córtex pré-frontal medial e o circuito da teoria da mente (junção temporoparietal e sulco temporal superior) avaliam intenções, mas fazem-no com base em padrões arquétipos, ou seja, o cérebro procura encaixar o arguido num papel, por exemplo como mentiroso, como assassino, e, por vezes, ainda que de forma mais rara, como uma vítima de tudo o que lhe estão a fazer passar.
Este processo está na raiz da heurística da representatividade, em que o cérebro avalia a culpa com base na adesão ao “perfil típico” de culpado, mesmo sem prova empírica.
Em tais situações, o direito ao silêncio tende a ser interpretado por via racional como um mecanismo de proteção. Mas do ponto de vista neurológico e emocional, o silêncio perante a acusação é lido como dissonância, desvio ou manipulação, principalmente em contexto de alta emocionalidade colectiva.
Num estudo experimental com jurados simulados, Joseph Thomas, investigador e Mestre em Psicologia pela Northern Illinois University, com uma dissertação sobre comportamentos não verbais de arguidos e a sua influência nas decisões dos jurados, demonstrou que a exibição de remorso – expressa por choro, olhar cabisbaixo ou postura encolhida – gera simpatia e conduz com frequência a recomendações penais mais brandas. Curiosamente, tanto a ausência total como o excesso de emoção foram interpretados como sinais de culpa, enquanto uma resposta emocional ‘moderada’ foi percepcionada como mais aceitável e menos condenável.
Os participantes no estudo traziam consigo expectativas prévias sobre o modo como um arguido “culpado” se deve comportar. Quando essas expectativas eram violadas, tendiam a interpretar o desvio como sinal de frieza ou desumanização. Tal como o autor conclui, o comportamento não verbal do arguido – mesmo sem relevância jurídica direta – torna-se um factor determinante no juízo de culpabilidade e na severidade da pena sugerida. (Thomas, Joseph, ob. citada em referências, abstract, pág. 3 e 27, adaptado).
O cérebro social interpreta o silêncio como incongruente com a inocência. A ausência do corpo e o silêncio do arguido amplificam a lacuna manifesta: não há corpo, não há palavra, logo, há espaço para projecção.
Tal como nota a jurista norte-americana Susan Bandes, Professora na DePaul University College of Law, especialista em emoções no julgamento criminal, mesmo em processos de pena capital (pena de morte), onde a vida do arguido está em jogo, a avaliação do remorso baseia-se frequentemente em expressões faciais e posturas corporais durante o silêncio em julgamento. A ausência de palavras ou emoção visível é muitas vezes interpretada como frieza ou culpa. É o corpo que fala, mas a leitura desse corpo raramente é neutra.
Como salienta Bandes, mesmo que o remorso seja autêntico e profundo, dificilmente poderá ser adequadamente transmitido apenas por expressões faciais ou linguagem corporal. O problema não é apenas o fingimento: é a própria suposição de que o “íntimo” pode ser lido no rosto do outro, e que isso deve guiar decisões de vida ou morte. (Bandes, Susan A., ob. citada em referências, pág. 6 e 28, adaptado).
“As emoções não são reveladas de forma objetiva no rosto, na voz ou no corpo, apenas inferidas. Não é possível ‘ver’ remorso, raiva ou tristeza numa testemunha ou num arguido; só se pode formular suposições, umas mais informadas do que outras. Um julgamento justo exige sincronia entre quem vive a emoção (como o arguido) e quem a interpreta (como o juiz ou o jurado), mas essa sincronia é difícil, sobretudo quando existe distância emocional, ideológica ou étnica. A falta de empatia ou o desacordo político, por exemplo, podem tornar muito mais difícil reconhecer e compreender a emoção do outro.” E, como adverte Lisa Feldman Barrett, “as emoções não são expressas, exibidas ou reveladas de forma objetiva – só podem ser adivinhadas”. Daí que a frieza, o silêncio, ou a ausência de gestos codificados não possam ser lidos como sinais de culpa, apenas como projeções moldadas por contextos, expectativas e estereótipos.” (Barrett, Lisa Feldman, “How Emotions are Made, The secret life of the brain”, melhor citada em referências, pág. 244 e 245, adaptado).
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10. Últimas notas
A complexidade dos homicídios sem corpo transcende a prova penal e desafia os próprios alicerces da racionalidade judicial. Como vimos, a ausência do cadáver não é apenas uma dificuldade técnica de investigação ou de demonstração factual, mas um catalisador de enviesamentos cognitivos, de distorções emocionais e de pressões sociais intensas.
A tentação narrativa, os vieses de confirmação, a busca de coerência, o desejo de punição, o sofrimento das famílias e a influência mediática convergem para um terreno de altíssimo risco. E nesse terreno, o sistema judicial é chamado a decidir não apenas com base no que falta – o corpo –, mas sobretudo no que sobra: fragmentos de indícios, leituras emocionais e construções interpretativas. Exige-se, por isso, mais do que nunca, uma justiça epistémica: lúcida perante os seus próprios limites, crítica das suas tentações internas e consciente de que o erro judicial, nestes casos, não é apenas provável – é estruturalmente possível.
E é precisamente nestes casos que o princípio da presunção de inocência, tantas vezes invocado como mero enunciado retórico, deve ser elevado à sua dimensão mais plena: a de verdadeira garantia contra o colapso do racional sob o peso da emoção.
Em suma, quando falta o corpo, o julgamento decorre tanto no tribunal como no cérebro dos intervenientes (mais ainda do que em situações de existência de cadáver). O cérebro, por natureza, detesta o vácuo e tende a preenchê-lo, com medo, com suposições, com desejo de castigo. Por isso, a justiça sem cadáver tem de ser a mais exigente, a mais rigorosa e a mais fria das justiças. Porque todos os outros sistemas – o imunológico, o límbico e o mediático – já estarão em ebulição.
Em particular, o sistema mediático, muitas vezes formatado para entregar uma história antes do processo, tende a ocupar o espaço do corpo ausente com uma narrativa fechada, antecipando culpados, intenções e desfechos. A sua pressão simbólica pode, assim, não só moldar a opinião pública, como infiltrar-se, subtil mas persistentemente, nos próprios operadores judiciários.
Entre um culpado solto e um inocente condenado, a História ensinou-nos – nas masmorras, nos pelourinhos e nas fogueiras – que o verdadeiro erro da justiça não é falhar a punição, mas consagrá-la sem prova.
Quando não há corpo, que ao menos haja memória: da razão, da prudência e do primado da dúvida.
Miguel Santos Pereira é advogado, é membro: da Ordem dos Advogados Portugueses – OAP, da American Bar Association – ABA, com inscrição na divisão de Justiça Criminal, da Association Internationale De Droit Pénal – AIDP, da European Criminal Bar Association – ECBA, da Society for Judgment and Decision Making – SJDM, e do The Centre of Neurotechnology and Law.
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Rita Matias e Catarina Furtado trocaram galhardetes por causa de barracas. A apresentadora e a deputada do partido Chega acusaram-se mutuamente de serem ignorantes. Matias aproveitou para criticar o facto de Furtado receber cerca de 15 mil euros de vencimento mensal na RTP.
É este o país que temos. Uma deputada a lançar insultos. Uma apresentadora a lançar insultos. Ainda por cima, duas caras bonitas. O caso torna-se facilmente um dos assuntos da semana nas redes sociais e na imprensa. O povo vai entretido. A apresentadora promove mais um pouco a sua imagem — o que é excelente para angariar mais contratos de publicidade. A deputada ganha mais audiência e caça mais uns votos, até porque é candidata à Câmara de Sintra nas eleições autárquicas.
Foto: D.R.
Mas as barracas continuam por aí. E não há só barracas em Loures. E há quem nem sequer uma barraca tenha para viver. Há quem viva numa tenda. Num quintal. Num quarto pequeno com bolor, a dormir à vez em beliches. Na rua.
Atenção: Catarina Furtado é muito talentosa e merece bem o seu vencimento milionário. Mas não o deveria estar a receber num canal público, mas num canal privado.
Catarina Furtado. / Foto: D.R.
Mas o caso do salário de Catarina Furtado é apenas um dos símbolos da mentalidade que temos tido em Portugal, em que o despesismo e as despesas públicas extravagantes se tornaram normais, a par da corrupção, do tráfico de influências e do compadrio.
São roubos que são feitos aos contribuintes. Todos os dias. Todos os meses. Todos os anos. Ano após ano.
Em 2025, Portugal é um país com barracas, encurralado pelo despesismo, pela corrupção e pelo conformismo.
Para o Chega, ganhar em algumas autarquias vai ser uma prova de fogo. O nível de despesismo e excentricidades em alguns municípios representam muitos 15 mil euros multiplicados e distribuídos por almoços, jantares, esculturas, festas ‘grátis’, carros, prendas, brindes, viagens e acções de ‘team building‘ para ‘líderes’ da autarquia.
Foto: D.R.
Vamos ver como se comporta o Chega em municípios que venha a liderar, e se Rita Matias vai condenar o eventual despesismo de novos autarcas do seu partido.
Mas, saindo do universo das autarquias, passamos para um outro nível de gastos públicos e aí é aos milhões e milhões, com a TAP a ser a cereja no topo de um bolo que inclui bancos, empresas públicas falidas, fármacos que acabam no lixo, obras públicas que derrapam para o bolso de alguém… Um bolo que tem ajudado a construir muitas vivendas e a comprar apartamentos no estrangeiro.
Mas o país vai andando. O povo, conformado. Porque a culpa “é dos governantes”. Eles que “resolvam”.
Foto: D.R.
E, assim, continuamos com barracas. Com pobreza. Fome. Com escolas geladas no Inverno, sem condições. Com esquadras a meter água da chuva. Com polícias mal pagos. Com professores exaustos e desanimados. Sem acesso a saúde condigna. Os partos a terem de ser feitos em ambulâncias, na auto-estrada.
Estes são alguns dos motivos que levam o PÁGINA UM a ter como uma das suas prioridades fazer notícias sobre os gastos públicos. Porque sempre que fazemos notícias sobre contratos públicos milionários por ajuste directo, ou simplesmente com fins mirabolantes, conseguimos vislumbrar um pouco o que se passa com o ‘nosso’ dinheiro. Para onde vai. Como se esvai. Para o bolso de quem vai.
Mas, apesar de ser o ‘nosso’ dinheiro, a maioria dos portugueses está-se ‘nas tintas’. Alguns, se calhar, têm é pena que não tenham amigos numa câmara municipal ou numa junta de freguesia para lhe fazer um pequenino ajuste directo ocasionalmente.
Foto: D.R.
Em geral, os portugueses continuam a não querer saber. Mas, na hora de votar, alguns decidiram mudar o seu voto para o Chega, nas últimas eleições. Porque ‘querem mudança’.
Pois, muitos leitores não vão gostar, mas tenho cá a ideia de que a verdadeira mudança só virá de cada cidadão, de cada munícipe. Virá de cada um se interessar pelo país, pelo seu município, pela sua freguesia. Pelos seus vizinhos, imigrantes incluídos. Votar não é suficiente, seja em que partido for.
A mudança virá do envolvimento directo de cada um. De questionar os seus governantes locais sobre o que andam a fazer quando assinam tantos ajustes directos. Virá do associativismo. Do cooperativismo. Porque votar não chega.
A mudança pode até passar por se começar a questionar a RTP do porquê de suportar, a peso de ouro, uma única apresentadora de TV. Mas não chega. Não chega, mesmo.
Sede da RTP, em Lisboa. / Foto: D.R.
Porque tirar Catarina Furtado da estação pública iria trazer poupanças. Quem sabe, até daria para contratar jornalistas e fazer notícias e reportagens que fossem verdadeiro serviço público — e não os pés de microfone que frequentemente vemos na RTP. Mas não iria criar casas em Loures.
Repare-se que Catarina Furtado não furtou nada aos contribuintes. O seu único ‘crime’ foi ter tido a sorte de alguém na RTP achar que Portugal é um país com petróleo e que, portanto, tinha ordem para esbanjar à vontade os dinheiros públicos numa estrela de TV.
Rita Matias tem razão em condenar um salário principesco na RTP, num país com barracas. Catarina Furtado tem razão em sentir empatia pelas famílias sem casa, em Loures. Andarem a insultar-se uma à outra na praça pública apenas dá lenha para a fogueira que alimenta o voto no Chega. Não traz casas a quem não tem.
Foto: D.R.
Mas se este ‘conflito’ entre Rita Matias e Catarina Furtado trouxer casas a alguém que delas precise, então proponho que se erga uma estátua a ambas com a seguinte inscrição: “Duas grandes activistas pelo fim da ignorância”. Poderia até ser uma ‘obra’ a trazer ‘vida’ a uma qualquer rotunda ou jardim em Loures. Mas sem ter dinheiros públicos à mistura, nem envolver encomendas a escultores amigos do presidente da câmara.
Podia fazer-se antes uma ‘vaquinha’ na Internet para as estátuas. Ou talvez para as casas das pessoas das barracas em Loures. Porque os dinheiros das autarquias e das juntas, os dinheiros do Orçamento do Estado, chegam para estátuas, festas ‘grátis’, luxos, extravagâncias, TAPs e bancos. E salários de apresentadoras ‘estrela’. Os dinheiros públicos não chegam para tirar gente de barracas. Para casas, já não há.
Na próxima quinta-feira, 24 de Julho de 2025, cumprem-se exactamente dois anos sobre a publicação no PÁGINA UM de uma investigação que — por muito que alguns quisessem ridicularizar, desprezar ou silenciar — expunha, com base nas demonstrações financeiras da própria empresa, a ruína anunciada da Trust in News. O título era inequívoco: “Dona da revista Visão com dívida astronómica ao Estado. E Governo esconde.” Não se tratava de conjecturas nem de insinuações, mas de números, factos e documentos oficiais. Era jornalismo, e dos mais incómodos.
Na altura, escrevi: “Na aparência, ninguém se apercebeu no Governo, mas a Trust in News – a empresa proprietária da revista Visão e de outras publicações como a Exame, a Caras e o Jornal de Letras – apresenta já, alegremente, uma dívida de 11,4 milhões ao Estado. A sua cobrança, a atender à situação financeira da empresa, mostra-se cada vez mais complexa.”
Luís Delgado e Francisco Pedro Balsemão: um negócio ainda por explicar que termina sete anos depois numa ‘bancarrota’ absoluta e dívidas de mais de 30 milhões de euros.
Era o retrato de um calote fiscal que crescia a mais de 12 mil euros por dia, com a complacência do poder político, a aparente indiferença da autoridade tributária e o silêncio cúmplice da Segurança Social. E o regulador – a Entidade Reguladora para a Comunicação Social – aos costumes disse nada.
Apesar da clareza dos factos, a então directora da revista Visão, Mafalda Anjos — que acumulou durante anos o cargo de publisher do grupo — preferiu insultar a inteligência alheia, classificando as notícias do PÁGINA UM como “fantasiosas”. Talvez lhe parecesse fantasia que uma empresa de capital social de 10 mil euros, criada por Luís Delgado, tivesse adquirido à Impresa de Pinto Balsemão um portefólio de 16 títulos de imprensa escrita. Talvez lhe parecesse fantasia que a ERC, mesmo após a criação do Portal da Transparência, nunca tivesse analisado seriamente nem o negócio de 2018 nem a contabilidade anual da Trust in News, onde ano após ano as dívidas ao Estado cresciam, mas eram escondidas, enquanto se acumulavam “outras contas a receber” de natureza inexplicada.
Durante mais de um ano, o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social a acompanhar, com independência e persistência, este caso que só poderia ser descrito como um escândalo de gestão e de regulação. E mesmo quando a restante imprensa começou a abordar o tema, houve desresponsabilização de Luís Delgado – ainda hoje, as notícias omitem a condenação de Luís Delgado por abuso de confiança fiscal agravado.
Mafalda Anjos, em Novembro do ano passado no Porto, a apresentar o seu livro (ironicamente) intitulado ‘Carta a um jovem decente‘.
Entretanto, desde o ano passado, tudo aquilo que suceder em redor da Trust in News foi um circo para atirar areia para os olhos e salvar o ‘coiro’ de Luís Delgado, que, com a compra dos títulos à Impresa em 2018, ‘salvou’ a família Balsemão de mais agruras. O Processo Especial de Revitalização(PER), que Luís Delgado usou para congelar os seus compromissos fiscais e sociais, era na verdade um expediente para evitar novos processos judiciais por abuso de confiança fiscal.
O mesmo sucedeu com o plano de insolvência que tinha um único propósito pessoal recusado – e bem – pela juíza: proteger o proprietário, e não os credores, e muito menos o interesse público.
Em 2023, o silêncio do então ministro das Finanças, Fernando Medina, foi ensurdecedor – e foi para mim evidente que as revistas da Trust in News estavam agradecidas ao Governo socialista. Com efeito, causa estranheza que a Trust in News, apesar de ter processos executivos instaurados, e ter começado as dívidas ao Estado logo a partir de 2018, nunca ter figurado na lista de devedores fiscais nem da Segurança Social.
Primeira notícia do PÁGINA UM de 24 de Julho de 2023 sobre a crise financeira insustentável (e escondida) da Trust in News.
A pergunta impõe-se: por que razão foi esta empresa poupada à humilhação pública a que tantos outros contribuintes são sujeitos? E por que motivo os seus trabalhadores — especialmente os directores, que segundo a Lei de Imprensa têm o direito de aceder à situação financeira detalhada das suas empresas — permaneceram ignorantes ou resignados perante tamanha evidência de naufrágio?
O encerramento hoje decretado judicialmente é, por muito que custe a assumir, “um choque saudável”, uma moralização tardia mas necessária no sector da comunicação social em Portugal. Mas não nos iludamos: não foi a Entidade Reguladora para a Comunicação Social que agiu; não foi o Estado a exigir transparência e justiça fiscal. Aquilo a que assistimos foi a um colapso silencioso de uma empresa insustentável, protegida até ao fim por uma rede de indiferença, conveniência e corporativismo mediático.
O fecho da Trust in News deve, portanto, servir de ponto de partida — e não de chegada — para a dissecação do negócio ruinoso de 2018, entre a Impresa e Luís Delgado. Há demasiadas sombras neste contrato de cessão de títulos que libertou o grupo Balsemão de um portefólio deficitário à custa do erário público. Há rubricas nas contas da Trust in News, nomeadamente a obscura “Outras contas a receber”, que indiciam engenharia financeira deliberada para mascarar prejuízos acumulados em milhões durante mais de cinco anos. E há responsabilidades que não podem continuar encobertas, seja do lado de quem vendeu, de quem comprou ou de quem devia fiscalizar e reguladoramente intervir.
Em Julho de 2023, a então directora da Visão considerou o conteúdo dos artigos do PÁGINA UM como “fantasiosos”. Nota: a declaração de não permissão de a citar não tem qualquer validade, porque pressupõe haver uma aceitação da parte do PÁGINA UM (o que não se verificou). Mafalda Anjos escreveu voluntariamente.
Este caso é mais do que a falência de uma empresa: é a falência de um modelo mediático que mercantiliza o jornalismo, que despreza a sustentabilidade económica e que vive de aparências e de favores institucionais. Um modelo que produz títulos vistosos mas assentes em areia, que enaltece o combate às fake news mas vive da opacidade das suas próprias contas, e que exige subsídios públicos enquanto foge ao fisco.
O PÁGINA UM, ao denunciar em 2023 o descalabro financeiro da Trust in News, não apenas antecipou o desfecho — antecipou a verdade. E escrevo isto sem qualquer júbilo: o encerramento de 16 títulos de imprensa, por mais irrelevantes que se tenham tornado, é sempre uma perda simbólica para o pluralismo informativo. Mas essa perda só é superada pela complacência que permitiu que estes títulos sobrevivessem durante anos à custa do dinheiro que não pagavam ao Estado, nem aos trabalhadores nem aos credores.
O jornalismo só se defende com verdade, independência e rigor. E isso começa pela denúncia dos que, em nome do jornalismo, dele abusam. A Trust in News morreu. Viva o jornalismo! Que a verdade continue viva.
Em vésperas de entrarmos neste milénio, surgiu um filme que se tornou um fenómeno de culto. O protagonista queria saber o que era “a Matrix”. Para isso, teve de escolher entre tomar um comprimido vermelho ou um comprimido azul. Se tomasse o azul, voltaria para casa para viver a sua vida normal e acreditar no que quisesse. Se tomasse o vermelho, iria conhecer a verdade, que nada mais era do que a realidade.
Nesta cena icónica, Morpheus, interpretado pelo brilhante actor Laurence Fishburne, revela a Neo (Keanu Reeves) que a Matrix não pode ser explicada, tem de ser vista em pessoa. Mas adianta-lhe uma informação: a verdade é que ele é um escravo, nascido numa prisão. Tal como todos os humanos.
A narrativa de “The Matrix” está assente na ideia de que a nossa mente está programada e que vivemos uma simulação. Para mim, uma das cenas mais interessantes do filme dos (então) irmãos Wachowski (que agora são irmãs), é quando Morpheus e Neo entram num programa para se enfrentarem num treino de luta, pela primeira vez. Morpheus, procurando ensinar Neo a “sair da sua mente”, pergunta-lhe: “pensas que é ar o que estás a respirar?”
Por esta altura, o leitor estará a questionar porque comecei este texto com cenas do filme “The Matrix” e o que é isso tem a ver com o título. Na realidade, a meu ver, tem tudo a ver. Passo a explicar o motivo: sair da Matrix ou da ‘roda do ratinho’ ou da roda de Samsara – que é definida pelo carma – implica, primeiro, ter consciência do que é a realidade e ter consciência sobre “o que” somos. Sem isso, sobra a alternativa de uma vida de escravidão e escuridão, na qual seremos fantoches à mercê de programas – narrativas.
Uma das mais chocantes narrativas (ou programa) a que assisti ao vivo, que infectou como um vírus uma boa parte da opinião pública, dizia isto: os “não-vacinados vão todos morrer e vão matar-nos a todos”. Vi jornalistas, governantes, comentadores e actores de Hollywood a espalhar esta mentira. A exigir segregação. Os ‘não-vacinados’ foram segregados, odiados, perseguidos, excluídos. Desumanizados nos media, diariamente, por comentadores e jornalistas alheios a conceitos estabelecidos como a imunidade natural e ao princípio de ouro em Medicina, do consentimento informado. Tudo com base num programa malicioso que se tornou viral e que usava o medo como porta de entrada para se instalar.
Já tinha acontecido antes na História. Mentiras (programas maliciosos) que se espalham e acabam no ódio. Na perseguição. Na segregação. Na exclusão. Na desumanização. Na chacina. No genocídio.
Hoje, a mesma narrativa-padrão está a espalhar-se que nem fagulha em mato seco. As vítimas não são mulheres “bruxas”, nem hereges, judeus, ou negros. Também não são não-vacinados. Os novos alvos deste programa malicioso viral são: “os imigrantes”. Mas não são uns imigrantes quaisquer. A narrativa não abrange imigrantes franceses, norte-americanos ou finlandeses. Também não apanha imigrantes da maior parte dos países da América Latina. Os chineses também estão a salvo (para já).
Nesta nova onda de maliciosa desumanização, os alvos são os “hindustânicos”. Em Portugal, acrescenta-se ainda os “brasileiros”. Em vários países europeus, este vírus de programação inclui ainda como alvos os imigrantes do Norte de África. São estes os novos “não-vacinados que nos vão matar a todos”, após o upgrade que houve do mesmo programa malicioso que circulou na pandemia.
O mais curioso é que, hoje, fervorosos defensores do fascismo-sanitário se unem a “não-vacinados” para “eliminar” este novo “inimigo”. A sério. “Ovelhas” e “chalupas” unidos numa só voz, gritando: “deportação, já!”. A segregação como forma de separar os “puros” dos “impuros” foi substituída pela nova “solução”: a deportação.
Na actual narrativa, todos os hindustânicos são perigosos pedófilos-violadores-terroristas. (Uma mesquita mais, e é o fim do mundo). Todos os brasileiros são líderes de gangs bárbaros tatuados, armados até aos dentes. Todos os marroquinos e argelinos são máquinas do mal em estado bruto que vieram para nos destruir.
O rebanho está unido e finca o pé. Tal como na pandemia, os verdadeiros fascistas esfregam as mãos de contentes, gratos por estas novas ovelhas que lhes entraram pela quinta adentro. O fascismo continua vivo! Já não é o sanitário, é um ainda melhor.
Com a nova narrativa de polarização (agora opondo “europeus de gema” vs “imigrantes maus”) os conflitos ganham força, saltam para as ruas e já metem pedras, bastões e facas. Vai ser preciso “controlar a imigração” e investir em “segurança”. Finalmente, vai-se conseguir fazer o que na pandemia não se conseguiu: colocar um “QR code” no braço de cada europeu. Um chip. Para sempre. Mas, atenção, que é para “lidar com os imigrantes”. É para “o bem comum”. E, assim, tudo será digital por uma questão de “segurança”. Até o dinheiro.
O que me espanta é que os “super inteligentes” “não-vacinados”, que conseguiram “não cair” na “maior operação de propaganda e manipulação de sempre”, acabaram por cair, que nem uns patinhos (ou ovelhas) nesta nova “maior operação de manipulação de sempre”.
Dir-me-ão que são situações diferentes. Que não têm nada a ver. Mas esse é o “código” principal deste milenar programa malicioso que ataca humanos com mente não liberta. Passa a ideia subliminar de que “agora é que o perigo é real”. Aquele “inimigo” é mesmo muito mau. O rebanho fica entretido com um inimigo comum a abater. Um novo bode expiatório foi encontrado. E é perfeito.
Na pandemia, a narrativa era de que se não houvesse 100% de vacinados, morríamos todos. E que a covid só ia embora quando todos tomassem a nova vacina “segura e totalmente eficaz” e sem defeitos nenhuns. Agora, a narrativa é de que a culpa da falta de empregos decentes, de habitação, dos baixos salários, da insegurança, e do crime é dos imigrantes. Se não fossem eles, a Europa era um paraíso. Se não fossem os não-vacinados, não havia covid. Se não houvesse aqui hindustânicos e brasileiros, as mulheres estavam seguras e nunca eram discriminadas, assediadas, violadas, espancadas e mortas. O problema são as mesquitas e as igrejas evangélicas.
Significa isto que não houve erros nas políticas de imigração? Significa isto que não há que rever as políticas nas fronteiras? Significa isto que não é preciso levar a cabo reais medidas de integração? Significa que não existem problemas? Claro que não. Mas a “culpa” não é dos “imigrantes”. É de anos de políticas extremistas nas fronteiras, que permitiram a entrada de migrantes sem filtro. É de políticas de imigração que não tiveram em conta que o sonho do multiculturalismo só se torna real se houver programas de integração realistas perante a necessidade de terem de coexistir culturas e religiões muito diferentes entre si. É de pactos que esconderam crimes e problemas envolvendo migrantes, o que criou maior desconfiança na população.
Mas, em última análise, estamos todos (população em geral) no barco, porque elegemos os governantes e muitos até apoiam a abertura total das portas à imigração, sem cautelas. Agora, há que agir para: tirar migrantes de redes de tráfico que os exploram; reunir comunidades em torno da integração possível de tão grande diversidade de culturas; acautelar que crimes são fortemente punidos, sejam cometidos por estrangeiros ou europeus.
A verdade é que o grande problema da Europa não são os imigrantes. Longe disso. São as políticas de bancos centrais que alimentaram uma economia virtual e transformaram a habitação num “activo” especulativo de luxo. O problema é o custo de vida que disparou com confinamentos e guerras eternas, alimentadas por ambiciosos e gananciosos políticos. São os milhares de milhões de euros que estão a começar a ser desviados dos bolsos das famílias europeias (incluindo com criação de nova dívida) para serem transferidos para a gigantesca e muito lucrativa indústria do armamento. O problema são os europeus e os imigrantes a viver nas ruas. São as famílias a viver em quartos. São a uberização do mercado de trabalho e a normalização da precariedade. São a corrupção e os interesses que roubam todos: os europeus e os imigrantes. São os desincentivos à natalidade. É o défice democrático crescente. Poderia continuar.
A imigração desregulada criou problemas que os governos da Europa precisam rapidamente corrigir com mão firme. Mas culpar os imigrantes pelo estado a que chegou a Europa é, no mínimo, ingénuo.
Só que o programa malicioso já está instalado. As “ovelhas” já escolheram o seu lado. O rebanho está unido e segue junto na mesma direcção. Tudo está tranquilo para os pastores. Os media — frequentemente desavindos com a realidade e os factos — falham o alvo e preferem o disco-riscado que os faz repetir a lenga-lenga: é “extrema-direita” para aqui e “radicais” para ali. Simplesmente triste, observar a escravidão a que a comunicação social está votada.
O que se passa hoje, faz-me lembrar um outro filme de culto protagonizado por Keanu Reeves: “O advogado do diabo”. Neste filme de 1997, o diabo (Al Pacino) consegue seduzir o novato e brilhante advogado (Reeves) usando o grande ego e a vontade de vencer do jovem em ascensão de carreira. O advogado consegue libertar-se do diabo depois de quase perder a alma. Mas o diabo nunca desiste. Volta à carga. No final, seduz de novo o advogado, aparecendo desta vez como um jornalista que quer entrevistar e, assim, “tornar famoso” o jovem vaidoso. Ego, vaidade, ganância.
Hoje, como na pandemia, usa-se o medo como isco. E o medo é ainda melhor “isco” do que a vaidade ou a ganância.
E, assim, se não se está atento às armadilhas, se vai caindo nas ciladas. Pois a verdadeira luta não é por dinheiro, por fama, por poder. É mais do que isso. É pelas almas. Pela Humanidade. Pelo melhor que há em nós, humanos. Pela nossa Luz. Para nos mantermos escravos de uma roda que não para de girar.
Já o escrevi antes e repito: as caças às bruxas são sempre de origem demoníaca. Seja de não-vacinados ou de imigrantes.
No filme “The Matrix”, Morpheus faz uma outra revelação a Neo sobre a realidade. “Tens de perceber: a maioria destas pessoas não está pronta para ser desligada [da Matrix]. E muitas delas estão tão habituadas, tão desesperadamente dependentes do sistema, que lutarão para o proteger”. Até que, por fim, sejam libertadas da sua escravidão e percebam, de uma vez, que é sempre o mesmo “inimigo” que enfrentamos há milénios. Na pandemia e hoje.
É possível que cristãos, agnósticos, judeus, hindus e muçulmanos vivam juntos em paz? É. Se assim quisermos. Se encontrarmos objectivos comuns e colocarmos de lado as diferenças. É possível respeitarmos e aprendermos com outras culturas? Claro que sim.
Vivemos na era do advento da Inteligência Artificial, que já está a dominar vastas áreas. Quanto mais depressa compreendermos onde é que temos de colocar o nosso foco, melhor. Permitirmos que nos distraiam, abre a porta à instalação de políticas “para o nosso bem” e quando delas nos quisermos libertar, aí sim, já poderá ser tarde.
E assim vai rodando a roda do ratinho. E assim, da segregação de não-vacinados à deportação de imigrantes se vai perdendo “a alma” mais um pouco. Se vai vivendo escravo sem saber. Está na altura de desinstalar esse programa. Porque juntos, europeus e “novos europeus” — imigrantes —, somos fortes. Juntos, nós humanos, somos fortes.
De repente, uma estranha simetria une dois dos fenómenos sociais mais fracturantes do nosso tempo recente: a pandemia de covid-19 e a actual crise em torno da imigração. À primeira vista, parecem realidades inconciliáveis: uma, sanitária e de impacte global; outra, demográfica e de impacte nacional.
Mas, ao observarmos os mecanismos sociais, políticos e comunicacionais, que ambas desencadearam, partilham algo de essencial: a intolerância como padrão de resposta colectiva. E daí parte-se para uma hostilidade crescente não apenas em relação às posições extremas opostas, mas — talvez ainda mais inquietante — contra quem tenta compreender, dialogar ou propor soluções de equilíbrio.
Durante a pandemia, bastava levantar uma dúvida sobre a proporcionalidade das medidas, questionar os confinamentos, interrogar a eficácia das vacinas ou simplesmente defender direitos constitucionais elementares para ser etiquetado de “negacionista”, “antivacinas”, “irresponsável” ou mesmo “assassino”. A emotividade pública, catalisada por uma comunicação social subserviente e por peritos promovidos ao estatuto de sacerdotes da verdade, interditava qualquer subtileza. O dogma instalou-se com uma eficácia capaz de ombrear com a Inquisição: quem não se ajoelhava perante o altar do medo era excomungado da vida cívica.
Hoje, algo semelhante sucede com o debate sobre imigração. Quem aponta os efeitos reais — e documentados — da imigração desordenada sobre o sistema de saúde, habitação, educação ou segurança, corre o risco de ser acusado de xenofobia ou racismo. Mas o contrário também se verifica: quem rejeita o alarmismo identitário e sublinha os direitos humanos, as histórias de vida dos migrantes ou a necessidade de políticas de integração bem desenhadas é de imediato classificado como “globalista”, “vendido ao sistema” ou “traidor da pátria”.
Pior ainda está quem ousa interrogar ambas as visões com prudência, tentando distinguir entre migração legal e tráfico humano, entre integração e guetização, entre impacto económico e vulnerabilidade social. Este é aquele que acaba por ser atacado de todos os lados — por traidor, por frouxo, por centrista táctico.
Na verdade, nos debates sobre a pandemia e agora sobre a imigração — e talvez noutros tantos campos — aquilo que se perdeu foi precisamente o que garante a sanidade de uma democracia: a capacidade de pensar o meio-termo, de analisar com rigor, de propor soluções ponderadas que evitem tanto a repressão cega como a permissividade ingénua.
A pulsão de radicalização em ambos os lados — alimentada por redes sociais, algoritmos de indignação e agendas políticas maniqueístas — transforma tudo em trincheira. Já não há adversários: há inimigos. E a posição intermédia, que sempre foi mais difícil de construir do que os extremos, parece hoje terreno minado.
Na pandemia, quem procurava uma via equilibrada — por exemplo, defendendo a protecção dos mais vulneráveis sem destruir as liberdades fundamentais — foi marginalizado, insultado, silenciado. Ou processado — como eu, que ainda este ano terei de responder judicialmente em três processos.
Na questão migratória, quem procura agora aplicar políticas sérias de controlo de fronteiras, mas ao mesmo tempo defender a dignidade humana — tanto dos imigrantes como dos autóctones —, sofre a mesma sorte: é demasiado duro para os progressistas e demasiado mole para os populistas.
O consenso tornou-se heresia.
Há nisto um paradoxo revelador. Se, teoricamente, os extremos se combatem melhor a partir do centro (não me refiro ao espectro ideológico) — com racionalidade, dados e proporcionalidade —, o que vemos hoje é o contrário: os extremos prosperam precisamente porque conseguiram minar o prestígio do centro, esvaziar-lhe a credibilidade, converter a prudência em tibieza e o pensamento crítico em traição. É a vitória do ressentimento contra o equilíbrio. Do ruído contra o discernimento. Do algoritmo contra o argumento.
As redes sociais, que durante a pandemia foram usadas como instrumentos de controlo emocional e repressão simbólica, agora funcionam como aceleradores de pânico moral e de fúria identitária. A lógica binária de “salva vidas” versus “negacionistas” foi apenas substituída por outra: “defensores da pátria” versus “traidores pró-imigração”. O molde é o mesmo; apenas se trocam os actores. E, mais curioso e preocupante, muitos daqueles que na pandemia sofreram penalidades por serem minorias, estão agora na linha da frente para serem algozes dos que pensam diferente na imigração.
E, como antes, quem tentar desmontar o jogo, desmontar o medo, desmontar a encenação, é eliminado do palco.
Talvez estejamos a assistir a um processo mais profundo: o esgotamento da razão pública como espaço de construção comum. O velho ideal iluminista de que podemos, pela razão e pela evidência, fundar consensos mínimos para enfrentar problemas complexos, está em erosão. Em seu lugar, estão a erguer-se afectos inflamados, tribalismos digitais e dogmas emocionais. E com eles vem a recusa do diálogo, a humilhação do outro, a purga dos moderados.
Na pandemia, fomos empurrados para o medo absoluto como forma de controlo. No debate migratório, estamos a ser empurrados para o medo difuso como forma de fragmentação. Em ambos os casos, o efeito é idêntico: o desaparecimento da política como espaço de ponderação e a sua substituição por actos reflexos emocionais e moralistas. No limite, deixa de haver verdade: apenas versões armadas da verdade.
É por isso que, mais do que escolher entre extremos, importa reconstruir o valor do meio. Não o meio-termo cómodo e inócuo, nem sequer ideológico, mas o meio ponderado, exigente — aquele que resiste à emotividade e se ancora na realidade.
A pandemia ensinou-nos, ou devia ter ensinado, que a histeria colectiva não é boa conselheira. A questão migratória exige agora essa mesma lição: sem tabus, mas também sem ódio. A liberdade — e a civilização — moram nesse equilíbrio precário que os radicais de ambos os lados querem demolir. Mas é lá que vale a pena continuar a construir. Mesmo que seja mais difícil — ou sobretudo por isso.
Aquando da subida ao poder do autoproclamado anarcocapitalista Javier Milei, em Dezembro de 2023, mais de cem economistas — entre os quais o inevitável Thomas Piketty — assinaram uma carta aberta publicada no jornal britânico The Guardian, alertando para os perigos das propostas do argentino. Diziam que Milei levaria a Argentina à “devastação económica”. A propaganda local garantia que o caos era iminente. A Iniciativa Liberal fugia de Milei a sete pés. O horror “ultraliberal” aproximava-se!
Passados 19 meses, o silêncio é ensurdecedor. Onde está a debandada de argentinos? Onde está a catástrofe social que, juravam, resultaria da eliminação de subsídios, do despedimento massivo de funcionários públicos, da extinção de ministérios e do corte na despesa pública? Onde estão os factos que sustentam a narrativa da “devastação”?
Vamos aos números. Quando Milei subiu ao poder, a inflação mensal era de 25,5%. Sim, mensal. Isso equivalia a uma inflação anual superior a 1.400% — mais precisamente, 1.427%. Traduzido: um bem que custava 100 pesos no início do ano passaria a custar 1.526 pesos no final. Uma hiperinflação clássica, das que arrasam salários, poupanças e vidas.
Hoje, a inflação ronda os 1,5% ao mês, ou seja, cerca de 20% ao ano. É ainda alta? Claro que sim. Mas é um corte de mais de 90% em termos anuais — em menos de dois anos. Um feito. Especialmente tendo em conta que não se tratou de um ajuste gradualista à europeia, mas de uma guinada radical contra o mais perverso parasitismo estatal: a inflação.
Em 2024, o Estado argentino registou um superavit fiscal de 0,3% do PIB. Relembremos: em apenas um ano, saiu-se de um défice de 17% para um saldo positivo! Um corte de 17 pontos percentuais aproximadamente. Quase sem paralelo na história recente de qualquer país dito “democrático”.
Tudo isto foi conseguido sem recorrer à emissão de mais dívida pública, sem recorrer à chantagem moral do “direito à habitação”, do “direito ao subsídio”, ou do “direito à educação” — e, acima de tudo, sem medo de enfrentar a besta estatal.
Mas nem tudo é perfeito. Para um libertário, duas instituições são incompatíveis com a liberdade: a despesa pública — que confisca o fruto do trabalho — e o Banco Central, esse cartel criminoso com autorização legal para falsificar moeda.
Quando o governo emite dívida, o Banco Central compra-a com dinheiro criado do nada. Quem recebe este dinheiro novo primeiro — os bancos, os políticos, os plutocratas — consegue usá-lo antes que os preços subam.
Os pobres, quando finalmente recebem o novo papel, já nada conseguem comprar com ele. É um roubo legalizado. Foi isso que aconteceu em Portugal durante a putativa pandemia, com a impressão massiva do BCE e a destruição silenciosa do poder de compra dos salários e poupanças.
Milei atacou a despesa pública — e fê-lo com coragem. Mas não fechou o Banco Central, apesar de o ter prometido, que era inegociável. Enquanto o Banco Central existir, continuará a ser o instrumento por excelência de controlo, confisco e empobrecimento. Permite ao Estado evitar o controlo orçamental e garantir o financiamento das elites próximas do poder. Permite manipular taxas de juro, controlar fluxos de capitais, e condicionar toda a economia com um simples clique.
Não basta reduzir o Estado: é preciso extirpá-lo pela raiz. Não basta cortar na despesa: é preciso remover o princípio do confisco legal. O Banco Central é a espinha dorsal do sistema estatista moderno. Sem ele, não haveria guerras intermináveis, programas sociais insustentáveis, nem um exército permanente de burocratas a parasitar a população. O Banco Central é a máquina que imprime os meios com que o Estado compra a obediência. A sua existência não é apenas um erro técnico: é uma imoralidade.
A solução é clara: privatizar a produção de moeda, restabelecer o padrão-ouro (ou a concorrência entre moedas privadas) e abolir o monopólio do Banco Central. Num sistema livre, cada indivíduo escolheria em que moeda confiar, e os bancos que praticassem reservas fraccionárias sem consentimento seriam tratados como falsificadores.
Milei prometeu fechar o Banco Central. Chamou-o de “o cancro da economia argentina”. Repetiu em debates, entrevistas e comícios que isso era “não negociável”. Mas o cancro continua lá. Domesticado, talvez. Vigiado, sem dúvida. Mas vivo. Enquanto viver, será sempre um instrumento de opressão.
O verdadeiro teste a Milei será esse. Não basta despedir funcionários ou cortar subsídios. Não basta privatizar empresas ou liberalizar importações. O verdadeiro teste é desmantelar a máquina de falsificação monetária. É devolver ao povo argentino o direito de escolher a sua moeda. De proteger a sua poupança. De viver sem ser espoliado todos os meses por um imposto invisível.
Se Milei quer realmente ser recordado como o primeiro governante libertário da história moderna, terá de ir até ao fim. Terá de fazer o que nenhum outro fez: abolir o Banco Central e permitir que os argentinos seleccionem a sua moeda livremente, sem imposição estatal — ouro, prata, Bitcoin, ou qualquer outra moeda escolhida livremente pelos indivíduos.
Só assim terminará a farsa. Só assim haverá verdadeira liberdade económica. Só assim, talvez, os libertários poderão dizer: “Pela primeira vez, um de nós chegou ao poder — e não cedeu.”
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Durante décadas, Portugal debateu-se com a desertificação do interior, o envelhecimento galopante da população, o encerramento de escolas por falta de crianças, a perda de jovens qualificados para a emigração, a estagnação do mercado interno e a degradação progressiva da sua pirâmide etária. A narrativa dominante nas instituições e nos media era — e em muitos casos ainda é — de que Portugal precisava desesperadamente de gente. Precisava de imigrantes. Precisava de população activa. Precisava de fertilidade — ou, na falta dela, de uma infusão humana vinda de fora para compensar o seu destino estatístico de nação decadente.
E, aparentemente, conseguimos isso.
Só nos últimos três anos, entre 2021 e 2023, o país registou um saldo migratório líquido de mais de 400 mil pessoas. Nunca, em democracia, se exceptuarmos o período da descolonização — que remete para um período complexo da vida social e económica do país — se tinha registado um fluxo migratório tão intenso. Mas as diferenças são abissais, não apenas porque os imigrantes do pós-25 de Abril tinham raízes lusófonas e, em certa medida, culturais, como também porque o saldo natural ainda era fortemente positivo: nasciam, naquele período, cerca de 200 mil crianças — e agora são pouco mais de 80 mil.
Aliás, nos últimos três anos, apesar de todas as campanhas de incentivo à natalidade e da tão proclamada retoma pós-pandémica, o saldo natural (diferença entre nascimentos e mortes) manteve-se consistentemente negativo em cerca de 100 mil pessoas. Ainda assim, a população total cresceu, passando de 10,4 milhões para 10,7 milhões.
À superfície, este crescimento por via da imigração pareceria um sucesso. Um sinal de revitalização. Uma inversão histórica da decadência demográfica das últimas duas décadas. Mas é precisamente esta leitura apressada, quase eufórica, que precisa de ser contrariada — mas numa óptica de planeamento (futuro) e não de ideologia,que inquina qualquer debate sério.
Na verdade, nos últimos anos Portugal não assistiu a um qualquer crescimento planeado, equilibrado e sustentável. Deparou-se, pelo contrário, com um choque migratório desorganizado, com profundas assimetrias regionais, impactos negativos na habitação, sobrecarga dos serviços públicos, polarização social e nenhuma correspondência com uma política estruturada de acolhimento e integração.
A questão não está, pois, em discutir se o país precisa de população. Está, isso sim, em perceber que tipo de crescimento demográfico é possível e desejável num Estado social europeu com limites orçamentais, um parque habitacional envelhecido, um tecido económico frágil e serviços públicos a rebentar pelas costuras.
Porque — e convém que se diga sem rodeios — crescer demograficamente não é, por si, sinal de progresso.
Vejamos, numa síntese, aquilo que está em causa
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Um crescimento sem mapa
Em teoria, uma população pode crescer de forma equilibrada se o ritmo for ‘absorvível’: isto é, se os serviços de saúde, educação, habitação e transportes forem capazes de acompanhar a nova procura. Países com forte planeamento estratégico (como os escandinavos) conseguiram manter durante décadas ritmos de crescimento populacional moderados — na ordem dos 0,7% a 1,0% ao ano —, mas alinhados com investimentos em infraestruturas, formação de quadros, habitação pública e redes de mobilidade.
Portugal, em contraste, teve nos últimos três anos um crescimento médio superior a 1,2% ao ano apenas por via da imigração, sem que o Estado ou as autarquias tivessem feito qualquer planeamento prévio. Em Lisboa, na Amadora, em Loures ou em partes do Algarve, e mesmo em zonas mais rurais (Odemira é um exemplo gritante, com um crescimento de mais de 3% ao ano), o número de residentes cresceu de forma abrupta, mas sem novas escolas, sem reforço dos centros de saúde, sem redes de transportes ajustadas, sem parques habitacionais acessíveis.
A resposta do Estado foi a de sempre: nenhuma.
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Polarização territorial: crescimento desigual e desertificação persistente
Enquanto se celebrava o crescimento da população ao nível nacional, ignorava-se o facto de que esse aumento foi profundamente desigual.
Os grandes centros urbanos e metropolitanos absorveram quase todo o acréscimo populacional, alavancados por fluxos migratórios intensos, sobretudo de imigrantes em situação económica vulnerável. Lisboa, por exemplo, registou mais de 24 mil novos residentes entre 2021 e 2024, o que equivale a mais de 22 pessoas por dia, invertendo,de forma abrupta e sem qualquer planeamento, um declínio populacional de quatro décadas. O Porto, Sintra, Braga, Seixal, Amadora ou Cascais seguiram tendência semelhante. Nessas zonas, o crescimento agravou os problemas pré-existentes: congestionamento habitacional, encarecimento da habitação, pressão sobre escolas e centros de saúde, sobrelotação de transportes.
Em contrapartida, cem concelhos — quase um terço do país — perderam população nesse mesmo período, confirmando a persistência da desertificação e o falhanço continuado das políticas de coesão territorial. Municípios do interior centro e norte, bem como várias zonas do Alentejo e do interior algarvio, viram partir os poucos jovens que ainda restavam, enquanto a população envelhecida se reduzia naturalmente. Esta erosão silenciosa, muitas vezes fora do radar mediático, representa uma perda real de futuro.
Ou seja, cresceu a pressão nos territórios já saturados e aumentou o deserto nos territórios já esvaziados. É o paradoxo português por excelência: conseguimos perder coesão territorial ao mesmo tempo que ganhámos população.
E nem o Governo nem as autarquias fizeram algo de significativo para inverter ou atenuar esta tendência. Não houve incentivos sérios à fixação no interior. Não houve reconversão de habitação devoluta. Não houve planeamento dos fluxos migratórios por concelho. Houve, sim, omissão deliberada e aproveitamento político da ilusão de “crescimento populacional saudável”.
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Mercado habitacional: da crise à catástrofe
Basta olhar para o que se passa no mercado de habitação para se perceber que este crescimento populacional, longe de resolver problemas, amplificou-os até ao limite.
Com mais de 400 mil pessoas a entrarem no país em três anos — grande parte delas em zonas urbanas — o desequilíbrio entre oferta e procura disparou. O número de fogos construídos anualmente continua a ser residual face às necessidades, e a habitação pública é quase inexistente.
Resultado: os preços de venda subiram, as rendas explodiram, o alojamento local avançou sobre os bairros populares e muitos migrantes foram empurrados para zonas degradadas, insalubres ou para situações de sobrelotação ou informalidade.
Sim, Portugal cresceu. Mas à custa de bairros precários, tendas improvisadas, sobrecarga de transportes e famílias portuguesas a serem empurradas para longe dos centros onde vivem há décadas.
Note-se que, em zonas urbanas, se critica o exagero do alojamento local como causa para a escassez de casas, esquecendo, porém, dois aspectos essenciais. Primeiro, grande parte dos alojamentos locais no casco histórico são fogos de pequena dimensão (T0, T1) ou com características pouco atractivas para famílias jovens (p. ex., sem elevadores, com escadas íngremes, sem estacionamentos, com tráfego condicionado), pelo que só marginalmente contribuem para a crise habitacional — e já sem explorar muito que o parque habitacional de Lisboa e Porto foi recuperado com o boom turístico. Segundo, grande parte dos imigrantes em zonas urbanas — em zonas rurais é a actividade agrícola —, a imigração está associada directa ou indirectamente ao turismo, através da prestação de serviços.
Limitar ainda mais o alojamento local ou o turismo — cujo crescimento tem de ser limitado, mas por outras razões relacionadas com a própria capacidade de carga dos ‘bens turísticos’ — seria afectar dramaticamente o emprego dessa ‘massa’ de imigrantes, uma vez que a esmagadora maioria ocupa funções de trabalho menos qualificado.
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Serviços públicos: a pressão (in)visível
A entrada de centenas de milhares de pessoas numa rede de serviços públicos já fragilizada por anos de subfinanciamento e má gestão resultou naquilo que era previsível: congestionamento.
Quase não houve novos centros de saúde planeados com base nas novas densidades demográficas. Não houve reforço efectivo dos recursos humanos nos agrupamentos escolares onde a pressão aumentou. A expansão de linhas de transportes urbanos segue a conta gotas. Os serviços públicos, em geral, estão a prestar piores serviços, mesmo com a ajuda tecnológica — aliás, paradoxalmente, por vezes parece que funcionam pior por causa disso.
O resultado é o que qualquer utente percebe: esperas eternas nos serviços de saúde, turmas sobrelotadas, comboios a abarrotar, urbanizações novas sem transportes.
Estamos a viver o efeito de um crescimento súbito sem contrapartida de investimento público.
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Um Estado passivo e um discurso simplista
O mais grave de tudo isto é que, perante este cenário, a comunicação oficial continua a vender a ideia de que Portugal está “a inverter a crise demográfica”, que a imigração está a “compensar a baixa natalidade”, e que “temos finalmente mais população” — e, pior, que debater estes temas da imigração e do crescimento abrupto é coisa para instigar o ódio e fazer o serviço à direita radical e populista (ou, para simplificar e envenenar qualquer discussão, a extrema direita). Isto, sem colocar em causa o discurso a roçar a xenofobia e a discriminação por parte do Chega — mas este é o grande problema: digladiam-se soundbites, não se confrontam ideias.
E, no entanto, estamos perante realidades cada vez mais incómodas:
Que a baixa natalidade continua crónica, com um índice de fertilidade entre os piores da Europa (cerca de 1,4 filhos por mulher);
Que o saldo natural permanece negativo, com mais de 30 mil mortes a mais do que nascimentos por ano;
Que a maior parte dos imigrantes chega em condições de precariedade, não como resposta a uma estratégia nacional de qualificação, fixação territorial e sustentabilidade fiscal.
Um dos grandes desafios de um país é saber questionar-se para onde quer ir. Como quer crescer e definir um equilíbrio entre o presente e o futuro. E isso requer perceber, como até faz uma família, em perceber que uma comunidade tem de ser demograficamente equilibrada — e no caso português, seria necessário:
Que o crescimento fosse lento, previsível e absorvível (entre 0,7% e 1,0% ao ano);
Que houvesse planeamento infraestrutural antecipado, com metas em educação, saúde, habitação, mobilidade e coesão social;
Que o Estado regulasse e distribuísse os fluxos, incentivando a fixação em territórios periféricos ou em desertificação;
Que se apostasse na integração efectiva e no combate à precariedade, em vez de aceitar a marginalidade como inevitável;
E que se fomentasse, paralelamente, uma estratégia séria de incentivo à natalidade, com políticas de conciliação familiar, creches acessíveis e rendimentos dignos para jovens.
Nada disso está a acontecer.
Estamos a crescer — mas como um corpo descompensado, que incha num lado e emagrece noutro. Um crescimento assim não fortalece: deforma.
Podem definir-se diversos modelos para prever o que sucede a um país com o ‘quadro de partida’ de Portugal em 2025. Com este tipo de país, se este crescimento demográfico (e com as bases em que se sustenta), não for acompanhado por um planeamento coerente e por investimento público proporcional, o que parece um sinal de vitalidade poderá transformar-se numa bomba de pressão social e orçamental. E sem incluir a parte social e de choque cultural.
Com base numa simulação desenvolvida para este cenário, avaliando os efeitos entre 2025 e 2035, fiz uma análise simples, apenas para exemplificar, em quatro eixos principais: cuidados à população idosa, construção de escolas, reforço de centros de saúde e expansão habitacional. A abordagem parte de rácios realistas — e até conservadores — de prestação de serviços e de custos médios por unidade funcional.
1. O envelhecimento que não desaparece
Apesar do aumento líquido da população, a estrutura etária mantém-se envelhecida, com cerca de 23% da população acima dos 65 anos — ou seja, mais de 2,6 milhões de idosos em 2025 e quase 2,7 milhões em 2035. Este grupo consome, naturalmente, mais recursos de saúde, pensões e cuidados continuados. Assumindo um custo anual médio de 4.000 euros por idoso para cuidados públicos (entre lares, apoio domiciliário e saúde crónica), Portugal já gasta perto de 10 mil milhões de euros por ano só neste segmento — valor que aumentará para mais de 11 mil milhões em 2035.
Ou seja, só o envelhecimento populacional representa quase 5% do PIB actual em despesa social contínua, mesmo sem considerar aumentos salariais, inflação médica ou necessidades específicas de dependência severa.
2. Educação: crescer sem lugar nas escolas
A pressão sobre o sistema educativo será desigual. Embora a natalidade se mantenha baixa, o fluxo migratório — em particular de famílias jovens — tenderá a criar focos de aumento de procura escolar nas zonas urbanas e periurbanas, onde o parque escolar é antigo, subdimensionado ou desajustado.
A simulação indica que será necessário planear entre 43 e 46 novas escolas básicas ao longo da década para dar resposta ao crescimento projectado. Cada unidade representa, em média, 6 milhões de euros de investimento em construção, apetrechamento e pessoal de arranque. Isso traduz-se numa despesa anual da ordem dos 260 a 275 milhões de euros. Estes valores, ainda que relativamente modestos em termos agregados, tornam-se cruciais se forem ignorados — pois qualquer atraso resultará em sobrelotação, degradação da qualidade pedagógica e fuga para o privado, ampliando desigualdades.
3. Centros de saúde: serviços já saturados
Actualmente, a maioria dos centros de saúde nas áreas metropolitanas opera no limite da capacidade. Com o crescimento populacional previsto, será necessário construir pelo menos 10 a 12 novos centros de saúde até 2035, apenas para manter a mesma proporção de cobertura (1 por cada 100 mil habitantes, renovado a cada 10 anos). Cada centro exige cerca de 3,5 milhões de euros, totalizando um investimento acumulado de 35 a 42 milhões por ano. No entanto, esse número esconde a realidade: não basta construir paredes — é preciso recrutar médicos, enfermeiros, técnicos e garantir funcionamento efectivo. Os custos operacionais serão, provavelmente, superiores ao investimento em infraestruturas.
4. Habitação: o verdadeiro elefante na sala
O crescimento de 1 milhão de pessoas em 10 anos exigirá pelo menos 400.000 novas habitações, assumindo uma média de 2,5 pessoas por casa. Isso corresponde a 40.000 casas por ano, muito acima da capacidade actual de construção em Portugal, que tem oscilado entre 15 mil e 20 mil fogos. A discrepância entre procura e oferta acentuará a inflação imobiliária, expulsará famílias da classe média dos centros urbanos, e potenciará fenómenos de guetização e habitação informal.
Mesmo assumindo um custo médio de 125 mil euros por unidade habitacional (preço de construção, excluindo especulação e lucro de promotores), isso implicaria investimentos da ordem dos 5 mil milhões de euros por ano, seja por privados, seja com apoio público. A ausência de uma política habitacional estruturada transforma este valor em potencial bolha social.
5. Pressão fiscal e armadilha do crescimento deficitário
Com um custo anual cumulativo (cuidados a idosos, educação e saúde) a ultrapassar 11,5 mil milhões de euros em 2035 — ou seja, mais de 15% do valor actual —, e com o investimento habitacional exigido a aproximar-se de outros 5 mil milhões por ano, o país enfrentará um desafio orçamental de enorme envergadura. Isso só será sustentável com:
Um aumento significativo de contribuintes líquidos no saldo migratório;
Um mercado de trabalho que absorva imigrantes com estabilidade e salários dignos;
E uma redução da informalidade e da precariedade no trabalho migrante.
Sem isso, Portugal crescerá populacionalmente e empobrecerá estruturalmente — pois as receitas fiscais não acompanharão o custo do novo modelo social. Em suma, poderá haver mais gente, mas menos coesão, menos redistribuição e mais desigualdade.
Perante este cenário, queremos mesmo, como povo (e contribuintes) continuar a meter ideologia pelo meio — com as suas diatribes partidárias e guerrilhas infantis — ou já será tempo de exigir que os políticos se comportem como adultos e deixem de disputar o poder de um país que ameaça ruína?
Numa qualquer semana estival, entre festas de aldeia e campanhas com cânticos ecológicos, volta e meia sopra um ventozinho moral que gela a espinha dos que ainda pensam. Não por causa do que se diz — até porque já se espera tudo —, mas por aquilo que se esquece. E se há caso paradigmático da moral selectiva e da indignação plastificada das consciências contemporâneas, esse caso tem nome: Tesla. E um rosto catalisador: Elon Musk.
Convém recordar — porque a memória mediática é de curta duração e a moral pública é de plástico biodegradável — que, nos últimos anos, a Tesla tem sido alvo de campanhas de desdém e boicote, não por aquilo que produzia (carros eléctricos, limpos, bonitos e até eficientes), mas por causa do seu CEO. Com efeito, ainda recentemente, e depois de a compra do X (ex-Twitter) ter desencadeado uma onda contra a Tesla, o ódio dos media e de uma certa clique piorou porque, a certa altura, Elon Musk teve o desplante de estar próximo de Donald Trump — imagine-se, o pária-mor da civilização ocidental.
Ainda no início do ano, antes mesmo de se saber a causa — o suicídio de um militar veterano norte-americano — uma explosão em Las Vegas serviu durante dois dias para colocar a Tesla no centro das atenções, induzindo a ideia de que o problema estava no carro — e afinal, por triste ironia, foi a estanquicidade do Cybertruck a evitar danos envolventes maiores.
Sobretudo ao longo do último ano, tenho assistido a uma verdadeira maré moralista, onde desaguaram todas as figuras da ‘nova espiritualidade parvinha’. Recordo, entre tantas figuras menores, João Manzarra, que não hesitou em declarar publicamente que ia vender o seu Tesla por razões de consciência. À data, as notícias correram, os likes brotaram, os moralistas aplaudiram: o espírito crítico meditava ao volante da coerência. O problema? Não se sabe se vendeu, nem se trocou por um Renault Clio a gasóleo ou por uma bicicleta com travões de cortiça orgânica.
A verdade é esta: os modismos de indignação funcionam como nuvens de Verão — carregadas de trovões, mas sem consistência. Parece que anunciam o Inverno, mas duram meia hora e desaparecem ao primeiro raio de sol. Os apóstolos da consciência ecológica, tão velozes a apontar o dedo a Musk e ao seu imaginário político, nunca se detiveram a pensar que, se há empresa que verdadeiramente revolucionou o transporte ligeiro — mesmo com impactes ambientais significativos (v.g., baterias de lítio) —, foi a Tesla, com inovação real e lógica disruptiva.
Esta é, contudo, apenas a face anedótica de um fenómeno mais grave: a hipocrisia que governa o discurso político e ideológico sobre o ambiente, em particular sobre o clima. Como tenho repetido ao longo das últimas décadas — bem antes de a Greta Thunberg saber apontar para um mapa —, as alterações climáticas são uma realidade, independentemente da causa, mas a noção de emergência climática é uma falácia e acabou por ser criada como instrumento político: serve para abrir caminho à desresponsabilização dos governos e à concentração de fundos públicos em projectos de duvidosa eficácia ambiental, mas altamente rentáveis para empresas amigas. Um mercado paralelo de virtudes.
E, se dúvida restasse, a realidade tem-se encarregado de a dissipar. A Comissão Europeia, com os seus ‘ministros do carbono’ e os seus ‘comissários do catastrofismo’, vive obcecada com a liderança verde, embora a sua capacidade política e diplomática valha zero sobre políticas ambientais de âmbito mundial. Por exemplo, nas emissões de gases com efeito de estufa, os países da União Europeia emitem cerca de 8% e não determinam aquilo que os Estados Unidos, a Índia e a China emitem, por muito que esbracejem.
Não liderando nada, a Europa tem vindo, sim, e lamentavelmente, a tornar-se a vanguarda da fraude ambiental — e o sector automóvel é a ilustração suprema desta decadência.
Depois do escândalo do Dieselgate — cujo impacte em termos de saúde pública não foi irrelevante, havendo um estudo que aponta para a causa de 124 mil mortes prematura —, em que a Volkswagen foi apanhada a aldrabar os testes de emissões com softwares aldrabões, parecia que se tinha aprendido a lição. Parecia.
Esta semana, soube-se que a Justiça francesa abriu um novo processo contra a Peugeot e a Citroën (ambas do grupo Stellantis), por fraude agravada. O motivo? A comercialização, durante anos, de veículos a gasóleo com sistemas informáticos programados para contornar os testes de emissões de óxidos de azoto.
Segundo a acusação, os veículos estavam “especialmente calibrados” para se comportarem bem apenas durante o teste de homologação — como estudantes que decoram a resposta certa para o exame, mas nada sabem da matéria. No uso real, os níveis de emissão superavam largamente os limites regulamentares, com consequências para a saúde pública: doenças respiratórias e degradação ambiental.
A acusação vai mais longe: a burla é qualificada como agravada por colocar em risco a saúde humana. E, mais uma vez, os autores da fraude foram empresas acolhidas com louvores em Bruxelas, promovidas como campeãs da inovação sustentável. Em 2021, estas mesmas empresas já tinham sido acusadas por factos semelhantes. O modus operandi repete-se. E repete-se também o silêncio da imprensa portuguesa — sobretudo da mainstream — que há muito se enamorou por figuras como Carlos Tavares, ex-presidente da Peugeot, que deixou de ser CEO da Stellantis em finais do ano passado.
Na imprensa nacional, Tavares é descrito como uma coqueluche da gestão, um génio da eficiência e da competitividade. Um português de sucesso no Mundo. Mas, à luz dos processos agora abertos, talvez devêssemos perguntar: será uma coqueluche da gestão ou da encenação, do ultraje e da fraude?
A resposta é incómoda. Mas as evidências são claras. Enquanto se apontam dedos a Musk por piadas ou posicionamentos políticos — e ele põe-se a jeito em muitos casos —, escondiam-se crimes ambientais sistemáticos na santa Europa. Enquanto se vendia a narrativa de que a União Europeia era líder da sustentabilidade, enterravam-se debaixo do tapete os dados reais de emissões poluentes do sector automóvel. E enquanto se usava o selo verde para certificar negócios bilionários, envenenava-se o ar dos cidadãos.
A moral da história — e é sempre preciso haver uma — é que a verdade ambiental não se mede pelos slogans, mas pelos actos. A Tesla, goste-se ou não do seu CEO, mudou radicalmente a indústria automóvel em direcção à electrificação. As grandes marcas europeias, com décadas de privilégios e lobbying, enganaram clientes e reguladores. E hoje, no pico do Verão, são elas que anunciam o Inverno — não o das alterações climáticas, mas o da confiança pública nas elites políticas, tecnocráticas e industriais.
Sejamos claros: a hipocrisia ambiental mata mais do que o dióxido de carbono — e quem o diz sou eu, que defendo uma melhoria na eficiência energética e uma contenção no consumo de petróleo (a começar por ser uma matéria-prima demasiado preciosa para ser simplesmente queimada em motores de propulsão). A hipocrisia ambiental, de facto, mata a confiança, mata o rigor, mata o sentido de urgência verdadeiro. E por isso me irrita tanto ver que, enquanto os Manzarras desta vida se preocupam em dar lições de moral ao volante dos seus Teslas de segunda mão, os verdadeiros poluidores continuam a circular à vontade, com selo europeu — e aplausos.
Infelizmente, ainda, neste novo teatro do mundo, aquilo que parece contar não é a verdade — é a encenação.
O CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão – que se entretém a fazer podcast informativos no semanário Expresso sem ter carteira da CCPJ, enquanto vende e recompra e volta a vender o edifício-sede para não entrar em bancarrota – decidiu convidar ontem para o seu ‘Geração de 80’ o intensivista Gustavo Carona, de quem diz ser “provavelmente o primeiro verdadeiro herói com quem fala”.
Na imagem partilhada pelo Expresso e pelo próprio Gustavo Carona, o dito não está em estúdio mas repousa em casa, deitado, coberto por uma manta e apoiado num suporte hospitalar de computador Apple. E lê-se uma pergunta retórica que serve de mote a este texto: “Se é proibido fazer comentários racistas, ser xenófobo, porque é que não é proibido desacreditar a Ciência?”. Existem outras frases tão ou mais aterradoras do que estas, mas quero centrar-me nesta por ter ganhado escola duramente a pandemia da covid-19 e estar a servir como argumento principal em qualquer debate.
A frase, aparentemente ingénua ou “inspiradora” – como muitos admiradores deste herói, feito mártir, julgarão –, encarna o perigo maior da era que atravessamos: a tentativa de blindar a Ciência contra a crítica, elevando-a não ao patamar do rigor, mas ao altar da infalibilidade. E, pior ainda, subentende-se que quem a questiona deva ser, senão punido judicialmente, pelo menos ostracizado, silenciado, deslegitimado.
Tenho razões pessoais para abordar este tema sem subterfúgios: sou arguido num processo judicial por suposta difamação a Gustavo Carona, movido na sequência de críticas públicas que lhe dirigi durante a pandemia da covid-19 — críticas essas sempre sustentadas em dados epidemiológicos, estudos internacionais e análises racionais. O processo irá a julgamento em Setembro – e sou acusado de mais de 30 crimes e um pedido de indemnização de 40 mil euros, porque Gustavo Carona culpa-me de ser o responsável (presumo único) da sua condição de saúde. De entre os crimes até estão críticas que lhe fiz, gozando, à sua veia (variz) poética.
Enfim, mas uma coisa deve ficar clara: nada disso me calará – e mesmo se a sua condição de saúde de dá alguma comiseração, não fragilizas as minhas convicções, sobretudo quando o homem diz mais do que disparates: diz coisas perigosíssimas. Aliás, convém referir que a intimidação judicial, quando motivada por divergência de ideias e interpretação científica, é a arma dos que se sentem inseguros na sua posição — ou, pior, dos que confundem prestígio mediático com autoridade epistémica.
Ora, vamos ao busílis: a frase de Carona é perigosa não apenas pela sua arrogância, mas sobretudo pela sua ignorância. Equiparar “desacreditar a Ciência” a actos de racismo ou xenofobia revela uma incompreensão básica sobre o que é a Ciência, como esta progride, e por que razão deve ser constantemente posta em causa. A comparação, além disso, é altamente falaciosa: o racismo e a xenofobia são ofensas morais e jurídicas, que atingem directamente a dignidade humana. Já criticar ou pôr em causa determinadas posições científicas — ou políticas sustentadas sob o manto da Ciência — é um exercício fundamental da liberdade de pensamento, motor do progresso e da descoberta.
A frase de Carona é, em si mesma, também uma forma de obscurantismo moderno, travestido de zelo científico. Substitui-se o tribunal da razão pelo tribunal da opinião pública domesticada. Substitui-se o diálogo académico pelo anátema moral. Substitui-se o debate empírico pela acusação de “negacionismo”.
É fundamental aqui recordar que a Ciência não é um corpo dogmático de verdades, mas um método de aproximação à verdade, sempre falível, sempre provisório. Procura minimizar o erro, mas não tendo medo de errar. Nenhuma afirmação científica é imune à refutação. Até mesmo os paradigmas mais consolidados — heliocentrismo, evolução das espécies, estrutura do átomo — foram, em tempos, considerados “desacreditadores” da ciência vigente. Aquilo que Carona sugere, com retórica de vigilante moral, é que apenas deve ser permitida a crítica “interna”, a dúvida “tolerável” — como se a dissidência só fosse legítima quando aprovada pelo comissariado do consenso.
Galileu Galilei
Durante a pandemia, houve quem tivesse tentado — com dados e artigos revistos por pares — para os exageros estatísticos, erros metodológicos, medidas desproporcionadas, conflitos de interesse na investigação e distorções mediáticas da evidência científica. Muitos destes nunca negaram o vírus. Não negaram a existência da doença. Aquilo que se negou foi a ideia de que os modelos matemáticos erráticos, as projeções catastrofistas, as vacinas tratadas como panaceia sem robusto escrutínio de risco-benefício ou os confinamentos massivos tivessem um estatuto de verdade inquestionável.
O tempo tem dado razão a muitas dessas críticas. Hoje, muitos cientistas e mesmo autoridade nacionais e internacionais admitem que houve exagero e má gestão da informação científica, reconhecendo falhas na comunicação de risco, na avaliação de eficácia vacinal, e na imposição de medidas que ignoraram a complexidade dos determinantes sociais da saúde. Mas no meio dessa revisão tardia, figuras como Gustavo Carona continuam como paladinos de uma ciência dogmática, reclamando uma imunidade moral e judicial da narrativa dominante, como se estivessem acima do contraditório.
Do ponto de vista epidemiológico, o pensamento de Carona é igualmente anacrónico. “Desacreditar a Ciência”, no contexto pandémico, tornou-se um epíteto para tudo o que fosse discordância da ortodoxia governamental. Falar de taxas de letalidade estratificadas por idade? Negacionismo. Mencionar que o risco de hospitalização em jovens saudáveis era ínfimo? Anticiência. Questionar a eficácia das máscaras em espaços abertos? Crime. Interrogar-se sobre efeitos adversos das vacinas de mRNA? Heresia.
Mas o que diz a epidemiologia de boa cepa? Diz que a Ciência da Saúde Pública e a Epidemiologia – que é uma Ciência multidisciplinar mais próxima (e ‘bebe’ mais) da Estatística do que da Medicina – deve equilibrar risco individual e colectivo, considerando o contexto, a vulnerabilidade, a proporcionalidade das intervenções, e os efeitos secundários das medidas. Nada disto foi feito com rigor. A gestão do medo, a par com a sacralização de figuras mediáticas e o apelo à obediência, substituiu o espírito de prudência. E quando se mistura ciência com medo, o resultado é sempre tecnocracia autoritária, não saúde pública.
Do ponto de vista filosófico, o apelo à proibição do “desacreditar da Ciência” é uma regressão ao positivismo mais primário, combinado com a pulsão inquisitorial. É a morte do espírito socrático, do método cartesiano, da dúvida metódica. É o triunfo de uma nova religião, em que os cientistas não são investigadores, mas sacerdotes; os consensos, não aproximações, mas dogmas; os críticos, não colegas, mas apóstatas.
Aquilo que Gustavo Carona – seguindo a linha de muitos outros que ‘nasceram’ mediaticamente na pandemia – propõe é que se substitua o Estado laico e pluralista por uma espécie de teocracia científica, onde só há lugar para a fé no consenso e para a liturgia dos gráficos apresentados no telejornal. Mas a verdadeira Ciência — aquela que constrói conhecimento — nasce sempre da fricção entre ideias, da ousadia de pensar diferente, da coragem de enfrentar a maioria. O que seria de John Snow, de Ignaz Semmelweis e de Barry Marshall ou de tantos outros se o “desacreditar a Ciência” fosse criminalizado?
A frase de Gustavo Carona revela a deriva perigosa de uma geração de médicos-mediáticos que confundiram protagonismo com sapiência, e influência com autoridade intelectual. Não é por acaso que, nos últimos anos, alguns destes arautos da Ciência televisiva recusaram abertamente qualquer contraditório, afastaram-se de debates abertos e, em alguns casos, responderam com processos judiciais às vozes dissonantes.
Este episódio deveria servir de alerta: quando a crítica fundamentada à Ciência se torna passível de sanção moral ou judicial, já não estamos no domínio da Ciência — mas no da repressão ideológica. E quando se começa a perguntar, com aparente candura, “porque não criminalizar os que desacreditam a ciência?”, o passo seguinte é perguntar “porque não prendê-los?”, ou “porque não bani-los da vida pública?”. A História conhece bem esse caminho. E nunca acaba bem.
A Ciência verdadeira não precisa de escudos penais, nem de clérigos corporativos. Precisa de abertura, pluralismo, humildade e debate. Tudo o resto é superstição moderna, com bata branca.
Nota final: O podcast de Francisco Pedro Balsemão, editado no Expresso, chama-se Geração de 80, porque o CEO da Impresa que nasceu em 1980. Ora, 1980 é geração de 70.
Nota final 2: Carona informa que sofre dores crónicas resultantes de síndrome de Lyme pós-tratamento (SLPT). Se fosse mesmo um Homem de Ciência, deveria colocar, mesmo se por hipótese académica, que é uma das vítimas indesejadas (e silenciadas) das vacinas contra a covid-19, sem prejuízo de defender, como defende, que a vacina salvou vida. Aliás, talvez lhe fizesse bem, pelo menos em perceber como funciona a Ciência, a ler estes dois artigos científicos (aqui e aqui) que tratam da doença que o atormenta. Em todo, pode sempre negar lê-los.