António Morais acumula a presidência da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) com as funções de consultor da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed. Lei diz que só poderia acumular se a SPP recebesse das farmacêuticas no máximo 50.000 euros por ano em média no quinquénio anterior. A SPP recebeu no período 2017-2021 cerca de 870 mil euros, ou seja, 17 vezes mais.
A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) está a investigar o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais. A abertura formal de um “Processo de Esclarecimento, o qual se encontra em curso” foi admitida pelo inspector-geral desta entidade, António Carapeto, em carta a que o PÁGINA UM teve acesso.
De acordo com o IGAS, um processo de esclarecimento deste tipo constitui um “procedimento rápido e expedito destinado à recolha de elementos com vista ao esclarecimento de expediente geral, à verificação prévia de requisitos que habilitem a eventual decisão de instauração de acção inspectiva ou ao acompanhamento de acções inspectivas em curso dentro ou fora” desta entidade.
António Morais (ao centro), preside à Sociedade Portuguesa de Pneumologia, e é consultor da DGS e do Infarmed.
Na base da abertura desta investigação está a notícia do PÁGINA UM de 18 de Abril passado que denunciou que António Morais está a violar há três anos, desde que tomou posse como presidente da SPP, as regras de incompatibilidade que o deveriam impedir de se manter como consultor do Infarmed e da Direcção-Geral da Saúde. As decisões administrativas que tenham sido tomadas com base em pareceres em que este pneumologista tenha participado são juridicamente nulas.
António Morais – que desde 2016, e apresenta-se como tal no seu currículo, é consultor de doenças intersticiais pulmonares do Programa Nacional para as Doenças Respiratórias da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e membro da Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde do Infarmed – não poderia estar a acumular aquelas funções públicas com as de membro dos órgãos sociais de uma sociedade profissional com tão estreitas relações comerciais com farmacêuticas.
Um decreto-lei de 2014 estipula que consultores, membros de comissões, grupos de trabalho e júris de concursos com determinadas funções em organismos do Ministério da Saúde não podem ser, em simultâneo, membros de órgãos sociais de sociedades científicas – como é o caso da SPP – que “tenham recebido financiamentos de empresas produtoras, distribuidoras ou vendedoras de medicamentos ou dispositivos médicos, em média por cada ano num período de tempo considerado até cinco anos anteriores, num valor total superior a 50.000”.
Ora, António Morais preside à SPP desde 14 de Janeiro de 2019, e esta sociedade médica ultrapassa larguissimamente o patamar dos 50 mil euros anuais. Quando este pneumologista – que exerce no Hospital de São João e na Trofa Saúde, além de ser também professor na Faculdade de Medicina do Porto – tomou posse, a SPP tinha recebido no quinquénio anterior uma média de 799.634 euros do sector farmacêutico, ou seja, 16 vezes mais do que o limite imposto pela norma das incompatibilidades.
No quinquénio 2017-2021, que engloba já os três anos de presidência de António Morais, os montantes arrecadados pela SPP ainda aumentaram mais: situaram-se nos 870.512 euros por ano. Para este aumento muito contribuiu o ano passado em que a SPP recebeu um financiamento recorde vindo do sector farmacêutico: 1.301.972 euros.
Em 2022, até ao dia de hoje, de acordo com a Plataforma da Publicidade e Transparência do Infarmed, a SPP amealhou 499.228 euros, mas usualmente a maior fatia de patrocínios e contratos comerciais com a indústria farmacêutica regista-se no último trimestre de cada ano no âmbito do Congresso de Pneumologia.
A título pessoal, António Morais tem também relações comerciais com farmacêuticas. Este ano já recebeu 10.281 euros provenientes de sete farmacêuticas.
Apoios do sector farmacêutico (em euros) à Sociedade Portuguesa de Pneumologia entre 2017 e 2021. Fonte: Infarmed.
Para além de questões éticas, as incompatibilidades de António Morais têm consequências legais e jurídicas muito graves. De acordo com o artigo 5º do Decreto-Lei nº 14/2014, “os pareceres emitidos ou as decisões tomadas por comissões, grupos de trabalho, júris e consultores, em que intervenham elementos em situação de incompatibilidade não produzem quaisquer efeitos jurídicos”, o que significa, em consequência, que “as decisões dos órgãos deliberativos (…) são nulas”, caso se baseiem naqueles pareceres.
António Morais, por seu turno, pode vir também a ser sancionado, porque o artigo 6º do mesmo diploma legal determina a obrigatoriedade de ele cessar as suas funções de consultor a partir do dia de tomada de posse como presidente da SPP (14 de Janeiro de 2019). O PÁGINA UM teve acesso à sua última declaração, com data de 5 de Março de 2018 – numa altura, portanto, em que ainda não presidia à SPP, e não estaria a violar o regime de incompatibilidades –, e que ainda consta no site do Infarmed.
Por essa falha, a IGAS pode, de acordo com a lei, aplicar-lhe uma coima entre 2.000 e 3.500 euros. Ou, simplesmente, não fazer nada, e a SPP continuar a receber aqueles montantes das farmacêuticas, tendo um presidente a aconselhar a DGS e o Infarmed como se fosse um perito independente.
A necessidade de apresentar o longo percurso académico, profissional e pessoal de alguém, seguindo fórmulas exaustivas (muitas vezes maçadoras) sugere o desconhecimento completo da pessoa apresentada. Por isso comecemos com o essencial.
Carlos Moreira Azevedo tem 69 anos, nasceu em Milheirós de Poiares. Foi ordenado padre pelas mãos de Dom António Ferreira Gomes. Tem por hábito levantar-se cedo. Antes de sair de casa, gosta de deixar o almoço temperado – à carne (ou ao peixe) adiciona vinho branco, alho, sal, especiarias. É pontual. Rigoroso. Ao longo da manhã lê, estuda, escreve. Também reza.
Fala com muita gente; telefone, e-mail, redes sociais. Orgulha-se da vida de campo que viveu, das suas raízes. Herdou o jeito e o gosto de cozinhar e de servir os seus convidados. Não guarda para si o segredo escondido em cada receita. É bem-humorado e discreto. Exigente e austero. Durante a última década tem atravessado quase todos os dias a Praça de São Pedro, no Vaticano, para chegar ao gabinete onde trabalha.
Trabalha e dá trabalho aos outros. Organiza, dirige, exige, comanda. É acarinhado por todos. Quando lhe surge uma dúvida, esclarece-a ao procurar nos livros da sua biblioteca particular. Tem orgulho nela. Sabe e gosta de história, de arte, de cultura. É afectuoso.
Parte dos livros que adquire serve para investigar sobre temas que mais tarde apresenta. Aparentemente não gosta de estar parado e, por isso, as ideias obrigam-no a passar para o concreto da vida sob forma de texto, conferência, cultura.
Por culpa das restrições impostas durante os últimos dois anos, ficou limitado à sua casa. Mesmo assim, reuniu, ao longo desse tempo, as obras de Irene Vilar numa publicação que conseguiu concluir com a ajuda de muitos amigos. Ligou-lhes, um a um, pedindo fotografias das obras, de catálogos, de tudo… Manifestou gratidão referindo, no final do livro, cada um dos nomes em causa.
Esta rede, da qual se orgulha, é o reflexo da força mobilizadora que o caracteriza.
Enquanto passeia por Roma, dispensa a cruz peitoral, a batina e o solidéu. Troca-os por um chapéu de palha e por uma camisa de manga curta (na Primavera/Verão). Usa o cabeção.
Entusiasma-se quando leva os amigos a passear pela cidade. Noutros tempos, mostrava-lhes todas as igrejas, ruas e museus. Falava-lhes e ensinava-lhes História, Arte, Religião. Passou a fazê-lo num ritmo diferente.
Guarda saudades de Portugal, da família e dos amigos. Mas, em Roma, sente-se em casa. A sua presença é assídua nos arquivos Pontifício e do Santo Ofício. Gosta de olhar o passado para depois o tornar presente.
O sentido crítico – que também o define – faz com que considere que se tenha perdido uma grande oportunidade de mudar alguma linguagem litúrgica, por exemplo, a propósito do novo Missal. Lamenta que as palavras continuem a ser exclusivas. Por ele, em vez de se dizer durante a missa “…fruto da videira e do trabalho do homem…” – expressão litúrgica que se mantém – deveria dizer-se “…fruto da videira e do trabalho da Humanidade…” – já que as “mulheres também trabalham”, conclui.
Perante a turbulência e a adversidade mostra-se sereno, confiante, directo. Diante dos homens permanece de pé. Diante de Deus, ajoelha.
Perdoem-me, enfim, se me alonguei em demasia.
Devia ter dito apenas que Dom Carlos Azevedo é um Bispo Católico, nomeado pelo Papa para assumir o cargo de Delegado do Conselho Pontifício para a Cultura, que foi diretor de revistas científicas, autor dezenas de livros e artigos, diretor de fundações e comissário de exposições, que apresentou inúmeras comunicações internacionais, e que, por tudo isso, além de ser conhecido por muitos homens e muitas mulheres, viu-se reconhecido pelo país, que lhe concedeu a Grã-Cruz da Ordem do Infante Dom Henrique…
Seis meses depois de fazer 175 anos, o Banco de Portugal “lembrou-se” de dar ao povo um concerto do músico João Gil acompanhado pela Orquestra Metropolitana de Lisboa. O concerto foi no sábado passado, pela tarde, mas a “borla” atraiu pouca gente. E no Terreiro do Paço, além de se ouvir música, viu-se como se pode gastar facilmente 130.995 euros.
“O Banco de Portugal foi criado por decreto régio em 19 de Novembro de 1846, com função de banco comercial e de banco emissor” – assim reza a História, e também o site desta instituição liderado agora por Mário Centeno, ex-ministro das Finanças do anterior Governo de António Costa.
Entre esse longínquo dia 19 de Novembro de 1846 e o dia 21 de Maio de 2022 – isto é, o sábado passado – passaram 175 anos, seis meses e dois dias.
Porém, os aniversários, como o Natal, são quando um homem (ou mulher) quer – e, assim sendo, o Banco de Portugal decidiu comemorar com o povo o seu 175º aniversário, mas seis meses e dois dias depois. E fez isso com um concerto do músico João Gil acompanhado pela Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Ao ar livre, numa tarde primaveril, em frente ao Tejo – mais precisamente, no majestático Terreiro do Paço, símbolo histórico do comércio e do poder.
Majestático, contudo, só o custo do concerto, porque, entre fãs de João Gil e mirones, o evento comemorativo não atraiu mais de meio milhar de pessoas – contadas com bonomia.
Pela produção, incluindo montagem e desmontagem do palco, a Sons em Trânsito – uma empresa de Aveiro de agenciamento e produção de espectáculos – levou dos cofres do Banco de Portugal 86.500 euros em dois contratos: um de 74.000 euros para a organização do evento e outro de 12.500 euros para pagamento do músico João Gil. Contabilizando o IVA, o total da factura chegou aos 106.395 euros.
Por sua vez, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, através da associação O Sentido dos Sons, teve direito a um contrato de 20.000 euros, que se fixou nos 24.600 euros com IVA.
Pelo concerto de cerca de duas horas, o Banco de Portugal despendeu, desse modo, um total de 130.995 euros – um montante quase duas vezes e meia da receita máxima de um concerto de João Gil agendado para o Coliseu dos Recreios, no próximo mês de Setembro. Mas aí quem quiser ir ver terá de pagar entre 20 e 40 euros, enquanto que no Terreiro do Paço foi tudo supostamente de borla, embora custando ao erário público mais de 250 euros por espectador que por ali passou, mirones de passagem incluídos.
O PÁGINA UM contactou o director de comunicação do Banco de Portugal, Bruno Proença, para saber quais os critérios que presidiram à escolha deste formato (apenas um pequeno concerto numa praça de grandes dimensões) e do músico em causa (João Gil) e aos gastos feitos, procurando também obter resposta sobre se a instituição considerava que os objectivos previstos para este evento tinham sido alcançados. Não houve resposta.
No âmbito da sua campanha em prol de um jornalismo independente e de uma Administração Pública mais transparente e aberta, o PÁGINA UM apresentou ontem mais dois processos de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa. São já cinco os processos intentados desde Abril.
Mais dois processos de intimação por iniciativa do PÁGINA UM deram ontem entrada no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar entidades com funções públicas a disponibilizarem documentos administrativos. Desde 12 de Abril passado, este é o quinto processo que visa concretizar, em pleno, os direitos de acesso a documentos por parte dos cidadãos em geral, e em particular dos jornalistas.
O primeiro processo por iniciativa do PÁGINA UM foi intentado contra o Conselho Superior da Magistratura em 12 de Abril passado, por recusa de acesso a um inquérito no âmbito da Operação Marquês. Os outros dois processos incidiram sobre o Infarmed: no primeiro processo, entrado ainda em Abril, está em causa a denegação do acesso a dados sobre reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir; no segundo processo, que deu entrada na passada semana no Tribunal, deveu-se ao facto de o regulador português alegar “confidencialidade” para recusar o acesso à correspondência entre esta entidade e a Agência Europeia dos Medicamentos.
Ana Paula Martins, antiga bastonária da Ordem dos Farmacêuticos (que trabalha agora para a Gilead), e Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos (na entrega dos Prémios Almofariz 2020), recusaram acesso a documentos administrativos de campanha milionária.
Agora, nestes dois processos mais recentes – que já foram distribuídos aos juízes Pedro de Almeida Moreira e Maria Carolina Duarte –, a Ordem dos Médicos é visada em ambos, tendo num deles a companhia da Ordem dos Farmacêuticos como co-réu.
No processo que envolve as duas ordens profissionais – que, por deterem funções públicas concedidas pelo Estado, estão abrangidas pela Lei de Acesso aos Documentos Administrativos –, está em causa a denegação do acesso ao PÁGINA UM dos documentos operacionais e contabilísticos da campanha “Todos por Quem Cuida”.
Nesta campanha de angariação de fundos no âmbito da pandemia terão sido recolhidos mais de 1,4 milhões de euros em 2020 e 2021, sendo que as verbas foram prometidas a profissionais de saúde e unidades do Serviço Nacional de Saúde. Entre os doadores contaram-se as farmacêuticas Merck – que alegadamente doou 380.000 euros em máscaras FFP2 – e a A. Menarini Portugal (donativo de 20.000 euros), que se encontram mencionadas no Portal da Transparência do Infarmed, além da Associação Portuguesa de Indústrias Farmacêuticas (Apifarma), que terá entregado 665.000 euros.
No entanto, nunca foi disponibilizado pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticos um relatório detalhado sobre o destino destes donativos, em dinheiro ou em géneros, nem sequer existindo provas de os donativos se terem concretizado e/ou direccionados para o fim em vista.
O PÁGINA UM já tinha obtido, em 20 de Abril passado, um parecer favorável da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos sobre a legitimidade do pedido de acesso ao PÁGINA UM, mas tanto a Ordem dos Médicos como a Ordem dos Farmacêuticos não acataram a decisão – por não ser vinculativa. No caso de uma decisão favorável do Tribunal Administrativo de Lisboa, o PÁGINA UM terá mesmo acesso aos documentos, tanto mais que o juiz poderá, como solicitado, aplicar uma multa diária por cada dia de atraso.
Recorde-se que, no âmbito do processo que levou ao parecer da CADA, o PÁGINA UM e o seu director foram acusados de adoptarem “um comportamento suscetível de integrar a prática de crimes [não especificados] para com a Ordem dos Médicos, o Bastonário (…) e alguns dos médicos seus membros, que, no tempo e lugar próprio, serão objecto da respectiva avaliação”.
Ordem dos Médicos quer decidir na “secretaria” quais os pareces que podem ou não ser disponibilizados ao PÁGINA UM.
O segundo processo de intimação, ontem apresentado, visa apenas a Ordem dos Médicos e refere-se à recusa pelo bastonário Miguel Guimarães em disponibilizar ao PÁGINA UM a totalidade dos pareceres técnicos emitidos desde 2020 pelos Colégios, Secções dos Colégios e demais órgãos técnicos e consultivos desta associação profissional.
Apesar de também, neste caso, a CADA ter concedido, em Janeiro passado, um parecer favorável ao PÁGINA UM, a Ordem dos Médicos apenas disponibilizou no início do presente mês, após nova insistência, um conjunto de 168 pareceres dos diversos Colégios de Especialidade – que constam no site desta entidade –, mas confessando que existiram outros sujeitos a reserva por alegadamente estarem em causa “documentos nominativos”.
No entanto, a Ordem dos Médicos nem sequer os identifica, ademais sabendo-se que os dados nominativos podem, se entrarem na esfera da intimidade, ser expurgados. Aliás, pretensão que o PÁGINA UM destacou aquando do pedido.
Tendo em consideração que a mera alegação da existência de supostos dados nominativos pode ser um subterfúgio para esconder pareceres sensíveis para a actuação da Ordem dos Médicos e do seu bastonário, o PÁGINA UM tomou a decisão de encaminhar o processo de intimação para o Tribunal Administrativo de Lisboa com vista a que todos os pareceres sejam mesmo disponibilizados ou, pelo menos, conhecido os seus teores e/ou conclusões.
Estes processos de intimação – formalmente denominados “intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões” – é um processo urgente, regulado pelo Código de Processo nos Tribunais Administrativos, servindo para garantir judicialmente os exercícios de dois direitos: o direito de acesso à informação procedimental e o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos.
Considerados processos urgentes, os prazos são bastante curtos: o pedido de intimação deve ser apresentado no prazo de 20 dias a contar da não satisfação integral do pedido no prazo devido, tendo a entidade pública responsável visada (como réu) de responder ao juiz num prazo de 10 dias, devendo a decisão, se outras diligências não forem necessárias, ser proferida em cinco dias.
Caso a entidade pública continue sem satisfazer o pedido, após ser intimada pelo tribunal para o fazer, o juiz deve determinar a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, podendo ainda haver lugar a responsabilidade civil, disciplinar ou mesmo criminal.
Recorde-se que os processos de intimação do PÁGINA UM têm tido o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO. Na próxima semana serão entregues outros processos, em prol da transparência da Administração Pública, a anunciar.
Para apoios exclusivamente dos custos processuais e de defesa em tribunais, apoie o PÁGINA UM na plataforma do FUNDO JURÍDICO ou contacte através do e-mail geral@paginaum.pt.
O PÁGINA UM analisou o desempenho do Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao longo da pandemia, entre Março de 2020 e Janeiro de 2022, face aos períodos anteriores. Duas evidências: Janeiro de 2021 foi um descalabro inimaginável nos hospitais portugueses; e a culpa não foi apenas da covid-19. Houve “departamentos” hospitalares importantes que pioraram as taxas de mortalidade ao longo da pandemia, mesmo com muito menos doentes.
O colapso do Serviço Nacional de Saúde durante a pandemia, sobretudo no Inverno de 2020-2021 – em que se assistiu a um recorde de mortes nos hospitais portugueses –, não se deveu somente aos casos de covid-19.
Mais uma análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do SNS revela, desta vez, que o incremento na mortalidade hospitalar, em especial em Janeiro de 2021, atingiu níveis elevados sobre os internados com covid-19. Mas também os internados por doenças do aparelho respiratório e por doenças infecciosas e parasitárias (códigos A e B da CID – Classificação Internacional de Doenças), e outras doenças, tiveram menores chances de sobrevivência do que aqueles que sofreram dos mesmos males antes da pandemia.
De acordo com os registos dos internamentos e dos óbitos por mês, desde 2017, para cada grupo de doenças, o mês de Janeiro do ano passado mostrou uma situação catastrófica nos hospitais portugueses, com uma taxa de mortalidade global de 14,1%. Em termos comparativos, o mês homólogo nos quatro anos anteriores situou-se entre 6,9% em 2020 e 7,6% em 2017. Este ano, este rácio “normalizou”, fixando-se em 7,5%.
O peso da covid-19 para este descalabro foi importante, mas longe de ser único. Com efeito, em Janeiro de 2021, efectivamente a mortalidade hospitalar dos internados atingiu valores máximos (31,7%), muito acima do valor médio desta doença desde que surgiu em Portugal a partir de Março de 2020 (22,4%).
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para todas as doenças. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Porém, sobretudo nas doenças infecciosas e parasitárias, e também nas doenças do aparelho respiratório, o mês de Janeiro de 2021 foi também de hecatombe. Ou seja, quem esteve internado com doenças daqueles tipos nos hospitais viu a sua chance de sobrevivência baixar significativamente.
No caso dos internados por doenças do aparelho respiratório, a taxa de mortalidade em Janeiro de 2021 foi de 27,8%, muito mais do dobro dos valores registados no mês homólogo dos quatros anos anteriores.
De facto, no ano imediatamente anterior – em vésperas da chegada da covid-19 e num período em que a gripe e subsequentes infecções respiratórias estavam pouco agressivas –, a taxa de mortalidade hospitalar situou-se apenas nos 11,8%. Nos anos anteriores foi um pouco mais elevada, mas longe do desastre de 2021: atingiu os 14,2% em 2017 (com um surto gripal de alguma agressividade), e foi de 12,7% e 12,9% em 2018 e 2019, respectivamente.
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para as doenças do aparelho respiratório. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Este ano, a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias foi de 16,1%, muito inferior ao valor do ano passado, mas mesmo assim bastante superior aos valores normais para esta época do ano.
Relativamente às doenças infecciosas e parasitárias dos grupos A e B do CID, a situação em Janeiro de 2021 foi também dramática, tendo a taxa de mortalidade hospitalar atingido os 38,7%, ou seja, mesmo acima da covid-19 para aquele mês. No mês homólogo de 2017 a 2020, esta taxa situou-se no intervalo entre 24,5% e 27,0%. Em Janeiro deste ano, este rácio já se normalizou, tendo ficado nos 27,1%.
Embora o mês de Janeiro de 2021 evidencie um agravamento colossal – na verdade, um colapso – da capacidade de resposta do SNS, apesar da redução de 270 mil internados em 2020 e 2021 face ao biénio anterior, ao longo da pandemia as taxas de mortalidade pioraram em quase todos os grupos de doenças.
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para as doenças infecciosas e parasitárias (códigos A e B). Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Com efeito, de entre os grupos de doenças de prognóstico de internamento mais incerto – com taxa de mortalidade hospitalar acima dos 10% antes da pandemia –, apenas nas neoplasias se observou uma ligeira redução, passando de 12,5% nos 23 meses anteriores à pandemia (Abril de 2018 a Fevereiro de 2020) para os 11,9% entre Março de 2020 e Janeiro de 2022 (23 meses).
Contudo, durante a pandemia, face ao período anterior, foram internadas menos 33.175 pessoas com doenças oncológicas. Ou, pelo menos, não foram internadas como sofrendo de cancros. Nem os óbitos, se ocorreram, tiveram essa causa apontada.
Variação da taxa de mortalidade hospitalar (%) por mês para a covid-19 e para as neoplasias. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Mas nos casos das doenças infecciosas e parasitárias dos grupos A e B e das doenças do aparelho respiratório a taxa de mortalidade média durante a pandemia foi substancialmente superior à do período anterior. No primeiro grupo subiu de 20,0% para 25,6%; no segundo grupo cresceu de 13,1% para 17,2%.
Em termos globais, incluindo a covid-19, e confrontando os dois períodos acima referidos, a taxa de mortalidade hospitalar subiu de 6,1% para 7,3%. Significa que a taxa de mortalidade hospitalar sofreu um agravamento de 20%. Porém, se se retirar os internamentos e óbitos da covid-19, o agravamento para as outras doenças também se verifica, embora em menor grau (mais 9%), passando de 6,1% para 6,6%.
Taxas de mortalidade hospitalar por grupo de doenças no período pré-pandémico (Abril de 2018 a Fevereiro de 2020) e pandémico (Março de 2020 a Janeiro de 2022) e variações de internados e de óbitos. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Convém, contudo, destacar que, se se não contabilizar os internados-covid, os internamentos por todas as outras doenças entre Março de 2020 e Janeiro de 2022 decaíram 21,4% (menos 360.266 internamentos) face ao período entre Abril de 2018 e Fevereiro de 2020.
Essa variação deve-se sobretudo à queda nos internamentos das doençasdo aparelho respiratório, em parte devido ao “desaparecimento”da gripe (e das pneumonias associadas) durante a pandemia.
Mas assistimos asima um estranho paradoxo: uma menor pressão hospitalar nas áreas dedicadas a doenças não-covid acabou por resultar, afinal, num agravamento das respectivas taxas de mortalidade, o que mostra que nem todas as responsabilidades sobre o excesso de mortalidade se pode assacar ao SARS-CoV-2 e à covid-19.
Existe, contudo, um aspecto que deverá merecer maior investigação.
O agravamento das taxas de mortalidade nas outras doenças não se deveu a um maior número de óbitos – na maior parte dos grupos de doenças houve um decréscimo absoluto –, o que pode indiciar que tanto os internamentos como os óbitos em determinadas doenças estarão subestimados porque foram “endossados” à covid-19 apenas devido a, no momento da hospitalização, os doentes estavam com teste positivo.
Nota: Nesta análise, as taxas de mortalidade foram calculadas em função do número de óbitos e de internamentos ocorridos em cada mês. Obviamente, este indicador mensal não reflecte a taxa efectiva de mortalidade durante cada um dos períodos (ou, se assim se desejar, o risco de morte por internamento), porque os óbitos ocorridos em determinado mês são também de doentes internados em meses anteriores. No entanto, este rácio, assim calculado, e na falta de dados mais discriminados, constitui um adequado indicador de desempenho do SNS.
Uma análise de dados oficiais feita pelo PÁGINA UM revela que dar prioridade máxima ao tratamento da covid-19 teve um efeito secundário inesperado (ou não): os internados por doenças respiratórias não-covid tiveram um risco acrescido de morte. E a grande surpresa é que, em determinados períodos, sobretudo na Primavera e Verão de 2020 e 2021, as doenças respiratórias até registaram taxas de mortalidade hospitalar superiores à da covid-19. E mais: a opção inicial de entubar doentes idosos terá sido catastrófica.
Durante a pandemia, entre Março de 2020 e Janeiro de 2022, a taxa de mortalidade hospitalar dos doentes-covid foi apenas 30% superior à registada nos internados com doenças respiratórias. Esta é uma das principais revelações da análise feita pelo PÁGINA UM aos dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Mas esta situação deveu-se também a um outro problema: com a pandemia, e uma priorização à covid-19, os doentes com doenças respiratórias não-covid viram a sua chance de sobrevivência diminuir.
De acordo com a análise, a taxa de mortalidade hospitalar dos internados-covid – medida de uma forma simplista, face à ausência de informação mais detalhada, pelo número de mortes em cada mês em função dos internados nesse mês – foi de 22,4% entre Março de 2020 e Janeiro deste ano. Ou seja, em cada 1.000 internados acabaram por morrer 224.
Essa taxa é calculada face ao número oficial de internamentos por covid-19 nos hospitais públicos naquele período (59.916 pessoas) e ao número efectivo de óbitos nos hospitais do SNS causados por covid-19 (13.397 mortes).
Convém referir que o Ministério da Saúde não explicou ainda como cerca de um terço dos óbitos por covid-19 anunciados pela Direcção-Geral da Saúde não ocorreram afinal numa unidade de saúde, face à infecciosidade da doença e ao facto de o agravamento do estado de saúde recomendar sempre um internamento.
Em todo o caso, esta taxa de mortalidade hospitalar da covid-19 (22,4%) pode ser considerada bastante mais elevada face ao que se registava no período pré-pandemia para as outras doenças respiratórias, mas já não tanto naquilo que veio a suceder durante o período pandémico.
Com efeito, segundo os dados do SNS, entre Janeiro de 2017 e Fevereiro de 2020 (38 meses), a taxa de mortalidade hospitalar em internados por doenças respiratórias foi de 13,2%, correspondente a 43.715 óbitos em 330.341 internados.
No entanto, com o surgimento da pandemia – e a menor atenção concedida a todas as outras afecções –, a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias deu um pulo, atingindo um agravamento de 4 pontos percentuais.
Ou seja, se antes da pandemia, por cada 1.000 internados por doenças respiratórias morriam 132 pessoas, após Março de 2020 passaram a morrer 173 por cada mil. Este agravamento também se observa pela variabilidade da taxa de mortalidade.
Taxa de mortalidade (%) geral dos internados nos hospitais do SNS por mês desde Janeiro de 2017 por doenças do aparelho respiratório e por covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Se antes da pandemia, o risco de mortes nos hospitais por doenças respiratórias não sofria grandes variações ao longo do ano – variando entre os 11% e os 16% –, os “desarranjos” nos hospitais do SNS causaram oscilações caóticas, superando em alguns meses os 20%.
Em determinados períodos, a taxa de letalidade das doenças respiratórias chegou a ser mesmo superior à da covid-19 em dois períodos longos: entre Março e Setembro de 2020 e entre Março e Agosto de 2021.
Mesmo no pico da letalidade da covid-19 – Janeiro de 2021 –, em que a taxa de mortalidade desta doença atingiu um máximo de 31,7% (ou seja, quase uma em cada três pessoas internadas por causa do SARS-CoV-2 acabaram por não sobreviver), a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias alcançou os 24%, isto é, o dobro da situação habitual num Inverno.
Mas a análise do PÁGINA UM também conseguiu destacar os níveis diferentes de letalidade em função da idade dos internados, confirmando não apenas que o risco é incomensuravelmente superior nos mais idosos, mas também indiciando que, na fase inicial da pandemia, algo terá corrido mesmo muito mal nas decisões terapêuticas, sobretudo nos maiores de 65 anos.
De facto, se se confrontar a taxa de mortalidade dos menores de 65 anos, a covid-19 não se mostrou uma catástrofe em termos efectivos nesta faixa etária: em cada 1.000 internados, 58 não sobreviviam. Se se analisar os mais jovens, então o risco de morte foi extremamente baixo.
Taxa de mortalidade (%) dos internados com menos de 65 anos nos hospitais do SNS por mês desde Janeiro de 2017 por doenças do aparelho respiratório e por covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Contudo, mesmo assim também a gestão hospitalar no período pandémico permitiu que as doenças respiratórias neste grupo etário se agravassem. Se antes da pandemia, raramente a taxa de mortalidade hospitalar por doenças respiratórias nos menores de 65 anos se situava acima dos 3%, com o surgimento do SARS-CoV-2 o panorama mudou.
Em alguns meses, as doenças respiratórias não-covid registaram uma taxa de letalidade nesta faixa etária acima dos 5%, atingindo mesmo os 8,3% em Janeiro de 2021. Releve-se, contudo, que naquele mês a covid-19 atingiu um pico de 9,9% de mortalidade nos internados nesta faixa etária, mas esse foi um período de completo colapso do SNS.
Quanto ao risco de morte por covid-19 nos internados com mais de 65 anos, a análise do PÁGINA UM apurou que foi mais de cinco vezes superior (12.178 óbitos em 38.797 internados, ou seja, 31,4%) ao da faixa etária dos menores de 65 anos. Neste caso, se se comparar com a letalidade das doenças respiratórias, a covid-19 teve, sem dúvida um impacte significativo, mas longe de constituir uma catástrofe inédita.
Com efeito, no período de Janeiro de 2017 a Fevereiro de 2020, a taxa de mortalidade destas doenças rondavam os 192 óbitos por 1.000 internamentos. Significa, assim, que a covid-19 constituiu um acréscimo de risco de morte 64% face às doenças do aparelho respiratório para o grupo dos mais vulneráveis.
Taxa de mortalidade (%) dos internados com mais de 65 anos nos hospitais do SNS por mês desde Janeiro de 2017 por doenças do aparelho respiratório e por covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Porém, a pandemia trouxe também, como atrás referido, um agravamento significativo do risco de morte pelas habituais doenças respiratórias, uma vez que a taxa de mortalidade hospitalar subiu, nesta faixa etária, para 24,5%, quando antes da pandemia se situava nos 19,2%.
Relevante também é observar que a taxa de mortalidade atingiu valores perfeitamente absurdos em dois períodos para os maiores de 65 anos: em Janeiro de 2021 (com uma taxa de 40,1%) e em Março de 2020 (55,9%). No primeiro caso, deveu-se, em grande medida ao enorme fluxo de internamentos, a par de uma vaga de frio e do colapso do SNS.
Já quanto a Março de 2020 – o primeiro mês da pandemia em Portugal –, a elevada taxa de mortalidade hospitalar terá sido devido à opção, então seguida em outros países, como a Itália, de colocar todos os doentes com dificuldades respiratórias, mesmo idosos, em ventilação mecânica. A prática médica viria a revelar que esta foi uma opção com graves efeitos negativos.
Nota: Saliente-se que a taxa de mortalidade hospitalar não deve ser confundida com a taxa de letalidade de uma doença, que se mede em função dos óbitos por caso positivo, e independentemente do grau de gravidade. Não deve ser também confundido com a taxa de internamento. Destaque-se que até Janeiro deste ano se registaram cerca de 2,7 milhões de casos positivos, pelo que, tendo havido 59.916 internamentos, se contabiliza apenas uma taxa de internamento de 2,2%. Ou seja, por cada 1.000 casos positivos, 22 são internados. Se 22,4% dos internados acabam por não sobreviver, a taxa de letalidade é, deste modo, de 0,5%. Ou seja, 5 óbitos por cada 1.000 casos positivos.
A pandemia da covid-19 e a invasão da Ucrânia pela Rússia foram dois autênticos “terramotos” na vida do Velho Continente, com a União Europeia a assumir um protagonismo nunca anteriormente visto sobre os países-membros e os seus cidadãos. Conseguirá a democracia sobreviver neste processo?
Num debate organizado pela Cidadania XXI, na passada terça-feira, o advogado José Luís da Cruz Vilaça e a jurista Maria Vieira da Silva discutiram (e discordaram) sobre a actuação da União Europeia (UE) na salvaguarda das liberdades e garantias dos cidadãos. As decisões tomadas durante a pandemia, como a criação do certificado digital, estiveram “sob escrutínio”.
Especializada em Direito da UE, Maria Vieira da Silva lançou duras críticas à Comissão Europeia e ao Conselho Europeu, e a algumas das suas últimas directivas, comparando mesmo muitas das decisões das instituições comunitárias com as do Partido Comunista Chinês. “Não reconheço a actual UE e é doloroso dizê-lo”, afirmou a jurista, acrescentando que “quando falamos em democracia falamos em separação de poderes, e na UE já não existe essa separação”.
Debate colocou em confronto as opiniões de José Luís da Cruz Vilaça e Maria Vieira da Silva, em debate moderado por Carlos Gomes.
Considerando ainda que no seio da UE apenas já se usa a “liberdade como um slogan”, e que se vende os “direitos fundamentais como meras mercadorias a empresas privadas” – citando o exemplo do Facebook –, Maria Vieira da Silva questionou “onde fica a liberdade de expressão” aludindo, como exemplo, à Lei dos Serviços Digitais.
Recorde-se que esta legislação delega aos proprietários das redes sociais a capacidade de determinar os conteúdos que podem ou não ser publicados. Ou seja, é uma “autoridade extra-judicial, que tem a tarefa de estabelecer o que é falso ou verdadeiro, legal ou ilegal”, destacou Maria Vieira da Silva.
Posição distinta neste debate teve José Luís da Cruz Vilaça, advogado e antigo juiz do Tribunal de Justiça da UE, que disse não ter “uma visão apocalíptica do estado de direito“ na principal instituição do Velho Continente. “Não existe um problema sistémico de proteção dos direitos”, defendeu, tendo destacado a importância do Tribunal de Justiça da UE na definição jurisprudencial dos direitos fundamentais dos cidadãos europeus.
No que diz respeito à polémica regulamentação do espaço digital, José Luís da Cruz Vilaça disse que “o problema tem sido o de conciliar os vários direitos fundamentais”, podendo, neste processo, “haver direitos que entrem em confronto“, como a liberdade de expressão e a segurança dos utilizadores. O advogado ressaltou ainda que se “devem aplicar aos meios digitais os mesmos princípios que se aplicam fora desses meios“.
Neste debate houve, também, espaço para questionar a integridade da UE, aspecto em que Maria Vieira da Silva acusou a instituição de se deixar corromper pela influência do lobbying: “existem cerca de 30 mil lobistas activos em Bruxelas que exercem mais influência sobre as instituições comunitárias do que todos os eurodeputados”. Para esta jurista, a “UE foi concebida segundo os direitos democráticos, mas foi privada da capacidade de lhes dar resposta”.
As decisões da UE em reacção à invasão da Ucrânia pela Rússia também estiveram em discussão, merecendo, de igual modo, a reprovação de Maria Vieira da Silva. “Achei escandaloso o facto de a Comissão Europeia suspender os canais russos, só porque Van der Leyen achou que manipulam a verdade dos factos”, considerou.
Defendendo a liberdade de expressão como necessária às sociedades democráticas e o artigo 11 da Carta dos Direitos Fundamentais, a jurista manifestou ainda preocupação com “o risco de deitarmos fora os valores ocidentais”.
Por sua vez, José Luís da Cruz Vilaça optou por fazer a apologia de que ”somos todos mais fortes com a UE”, defendendo que essa “cidadania [comunitária] acrescenta muitos mais direitos do que deveres às cidadanias nacionais”. O antigo juiz do Tribunal de Justiça da UE admitiu, porém, que “a guerra veio alterar um pouco” o panorama jurídico europeu.
Num ponto houve consenso. Cruz Vilaça e Maria Vieira da Silva posicionaram-se contra o silenciamento mediático daqueles que, por criticarem a gestão da pandemia, foram rotulados com o epíteto de “negacionistas”. Nesse aspecto, o advogado considerou “lamentável que nem todas as pessoas possam exprimir-se da mesma forma”.
A gestão da pandemia, com a criação dos “covidários” e o adiamento de muitas intervenções cirúrgicas não aliviou apenas os hospitais; fez “desaparecer” hospitalizações em todas as unidades de tratamento de doenças. Se nas alas covid e nas unidades de cuidados intensivos se deu o ‘litro’, em muitos outros departamentos houve médicos e outros profissionais de saúde que tiveram vida folgada durante a pandemia. Um paradoxo, porque em 2020 e 2021 se registou um acréscimo de mortalidade de 23 mil óbitos em Portugal, dos quase 19 mil atribuída à covid-19, embora para estes casos aplicando-se critérios muito discutíveis.
A covid-19 causou uma paradoxal redução generalizada dos internamentos em todas as valências hospitalares. De acordo com a análise do PÁGINA UM à base de dados da morbilidade e mortalidade do Serviço Nacional de Saúde (SNS), durante 2020 e 2021 – os dois primeiros anos da pandemia – registaram-se quase menos 280 mil pessoas internadas do que nos dois anos anteriores (2018 e 2019).
Isto mesmo considerando que a covid-19 – a única doença que integra o grupo de “códigos para fins especiais” –, que só surgiu no final do primeiro trimestre de 2020 contribuiu com 57.227 internados entre Fevereiro de 2020 e Dezembro de 2021.
Um dos aspectos mais surpreendentes destes dados, agora analisados pelo PÁGINA UM, é a forte queda de internamentos por todas as causas, e envolvendo mesmo áreas sem qualquer ligação directa à covid-19.
Em certa medida, esta redução deveu-se à criação dos “covidários”, para onde seguiam, independentemente da gravidade, todas as pessoas a necessitarem de cuidados médicos, mesmo se sofressem de outros problemas de saúde mais prementes.
Contudo, também se deveu muito à redução das intervenções cirúrgicas com internamento – que resultaram de uma estratégia política – e, de igual modo, ao medo incutido que afastou muitas pessoas de irem aos hospitais mesmo em caso de sintomas agudos de elevada gravidade. Muitos terão morrido por esta opção. Recorde-se que se registou um acréscimo de mortalidade no biénio 2020-2021, face a 2018-2019, de 23.017 óbitos, sendo que 18.974 foram atribuídos à covid-19.
A queda no número de internados por todas as causas observou-se de forma marcante logo em Março de 2020. Com efeito, nos três anos anteriores à pandemia, os hospitais do SNS recebiam habitualmente entre 70 mil e 80 mil pessoas a necessitarem de internamento em cada mês, mas no início da pandemia, em Março de 2021, baixou para um pouco menos de 65 mil. Curiosamente, os dados do SNS indicam que houve um doente internado com covid-19 ainda em Fevereiro de 2020.
Em Abril de 2020 ainda desceu mais: 46.558 pessoas foram hospitalizadas. Nos meses seguintes, e até Dezembro do ano passado, o número de pessoas hospitalizadas por mês nunca recuperaram para os níveis pré-pandémicos.
Durante a pandemia, o mês com mais internados por todas as causas foi Outubro de 2020 com 67.080 pessoas. Em Dezembro do ano passado foram hospitalizadas apenas de 55.070 pessoas, um valor atípico. Por exemplo, no último Dezembro antes da chegada da pandemia tinham sido internadas 74.087 pessoas.
Número de pessoas internadas por mês (entre Janeiro de 2017 e Dezembro de 2021) por todas as causas em hospitais públicos. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
As unidades de tratamento hospitalar das doenças do aparelho respiratório não-covid foram as que mais “beneficiaram” com o surgimento da pandemia, sem prejuízo da covid-19 exigir uma logística e tratamento mais complexo. No entanto, tendo em conta que o SARS-CoV-2, a par com as medidas não-farmacológicas – uma redução substancial (ou desaparecimento efectivo) de vírus e bactérias causadoras de doenças respiratórias, os hospitais acabaram por beneficiar, nesse aspecto, de uma redução significativa da procura para tratamento.
Com efeito, de acordo com os dados do SNS, no biénio 2020-2021 foram internadas por doenças respiratórias não-covid menos 76.119 pessoas do que em 2018-2019. Significa isto que se se juntar os internados por covid-19 em 2019 e 2020 (um total de 57.227) aos internados por doenças respiratórias não-covid nesse período, então conclui-se que em 2018-2019 as unidades de pneumologia do SNS tiveram um fluxo maior de doentes.
Número de internados por mês (desde Janeiro de 2017 a Dezembro de 2021) de doenças do aparelho respiratório e de covid-19. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Na verdade, embora com taxa de letalidade maior do que a das pneumonias vulgares para as populações mais idosas, a covid-19 não implicou uma pressão descomunalmente superior nos hospitais do SNS, uma vez que se registou uma profunda queda no número de internados por pneumonias e doenças afins.
Se no período de 2017-2019 o número de internados por mês devido a doenças respiratórias se situava entre os 5.000 e os 15.000 – com os valores mais baixos a ocorrerem no Verão e os mais elevados no Inverno –, este padrão modificou-se substancialmente nos últimos dois anos.
Com o surgimento da covid-19, mesmo no Verão o decréscimo de doentes foi brutal. E no Inverno, as quedas foram completamente atípicas. Aliás, os dois piores meses da pandemia – Janeiro e Fevereiro de 2021, com 10.137 e 10.457 internados, respectivamente – coincidiram com os mais baixos números de internados por doenças respiratórias: para aqueles dois meses foram de apenas 4.396 e 3.558, respectivamente.
Se se comparar o número de internados por doenças respiratórias nos dois primeiros meses de 2021 – um total de 7.954 – com os internados nos meses de Janeiro e Fevereiro 2017 – com um surto gripal relevante, que levou à hospitalizações de 25.821 pessoas –, fica-se com uma ideia clara do impacte ao nível da pressão hospitalar do “desaparecimento” da gripe durante a pandemia.
No entanto, a pandemia aliviou fortemente outras áreas hospitalares como foram sobretudo os casos das unidades de tratamento de doenças do aparelho circulatório e digestivo e também de neoplasias (cancros).
Segundo os dados do SNS, confrontando o período 2018-2019 com 2020-2021, houve menos 37.800 internados (redução de 15,7%) por doenças do aparelho circulatório, menos 34.443 internados (redução de 19,5%) por doenças do aparelho digestivo e menos 30.759 internados (redução de 17,4%) por neoplasias.
Número total de internados por grupo de doenças nos biénios 2018-2019 e 2020-2021. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
O cenário, contudo, foi generalizado para todas as doenças e afecções, mesmo até em internamentos por lesões, acidentes, transtornos mentais e doenças dos olhos. Na análise realizada pelo PÁGINA UM, observam-se nove grupos de doenças com reduções superiores a 20%
Esse efeito observou-se mesmo nos internamentos relacionados com a gravidez (menos 12,4%), malformações congénitas e similares (menos 17,8%) e condições originadas no período perinatal (-29,0%), mas aí a causa foi outra: as opções da estratégia política do Governo que resultou numa incerteza económica que retraiu os casais na decisão de terem filhos.
Pela segunda vez em dois meses, o PÁGINA UM coloca um processo de intimação no Tribunal Administrativo contra o Infarmed por recusa na disponibilização de documentos administrativos. Agora está em causa o acesso à correspondência trocada pelo regulador português, criado para defender os interesses dos cidadãos, e a Agência Europeia de Medicamentos. O Infarmed defende que é tudo “confidencial”.
O PÁGINA UM intentou ontem um novo processo de intimação contra o Infarmed junto do Tribunal Administrativo de Lisboa. Esta é a segunda vez que o regulador do medicamento terá de se justificar perante a Justiça sobre as razões para não ceder o acesso à consulta de documentos administrativos relevantes na esfera da saúde individual e pública.
No mês passado, o PÁGINA UM intentou um processo similar porque o regulador recusou o acesso à base de dados dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir. Esta decisão do Tribunal Administrativo está prevista para breve, por se tratar de um caso urgente.
Desta vez, o PÁGINA UM teve de recorrer novamente ao Tribunal porque o Conselho Directivo do Infarmed – liderado por Rui Santos Ivo, que já ocupou o cargo de director executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA) – se recusou a facultar qualquer tipo de correspondência, desde 2020, entre esta entidade reguladora nacional e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA).
No âmbito deste pedido, o PÁGINA UM também desejava, em concreto, que o Infarmed identificasse, através de cópia da comunicação da EMA, qual o defeito de qualidade detectado no lote 000190A da vacina COVID-19 Spikevax, que foi retirada do mercado em Abril passado, uma vez que o comunicado público transmitido pela entidade chefiada por Rui Santos Ivo referiu apenas que se tratava de um “corpo estranho no frasco da vacina”.
Este lote continha 746.900 doses e os frascos tinham sido distribuídos pela Noruega, Polónia, Suécia e Espanha a partir de uma fábrica de Málaga. O Infarmed nem sequer quis confirmar se era verdade que fora encontrado um mosquito dentro de um dos frascos, ou se afinal o problema era mais vasto.
Apesar do evidente interesse público, ademais tendo o pedido sido feito por um órgão de comunicação social – cujo acesso à informação surge consagrado na Constituição, com um estatuto jurídico muito superior a qualquer decreto-lei –, o regulador declarou ao PÁGINA UM, em final de Abril passado, que o diploma que regula os medicamentos “prevê um dever de confidencialidade que se traduz num regime especial em matéria de acesso a documentos administrativos apresentados ao Infarmed ou a este transmitidos pela Agência ou pela autoridade competente de outro Estado Membro”.
Saliente-se que o diploma em causa – o Decreto-Lei nº 176/2006 – tem como objectivo, segundo o preâmbulo, “permitir uma maior oferta e concorrência, no mercado nacional”, mas “sem prejuízo da necessidade de assegurar o respeito pela saúde pública e pelos interesses dos consumidores”.
Ou seja, para assegurar o respeito pela saúde pública e o interesse dos consumidores mostra-se fundamental o acesso às comunicações integrais, sem qualquer censura, entre as entidades nacionais e externas, sobretudo quando estão em causa defeitos em medicamentos que levam mesmo à sua retirada do mercado.
O PÁGINA UM poderia ter optado, como habitualmente, por recorrer à Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA), mas como o parecer desta entidade não é vinculativo – e o Infarmed já negou uma vez cumprir as determinações daquela entidade –, foi então tomada a decisão de proceder de imediato ao processo de intimação, que é considerado urgente e alvo de uma sentença.
Este segundo processo no Tribunal Administrativo (Processo 1335/22.7BELSB) foi já distribuído ao juiz João Cristóvão que deverá agora, no início da próxima semana, conceder um prazo de 10 dias para o Infarmed, como réu, se justificar factualmente.
Recorde-se que os processos de intimação do PÁGINA UM têm tido o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO. Na próxima semana serão entregues outros processos, em prol da transparência da Administração Pública, a anunciar.
Para apoios exclusivamente dos custos processuais e de defesa em tribunais, apoie o PÁGINA UM na plataforma do FUNDO JURÍDICO ou contacte através do e-mail geral@paginaum.pt.
São 14 os gráficos. O PÁGINA UM faz nova análise à base de dados da morbilidade e mortalidade do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS), desta vez pesquisando um indicador fundamental da pressão hospitalar: o número de dias de internamentos por mês desde 2017. Vimos cada um dos hospitais… em, pois bem, durante os dois primeiros anos da pandemia, houve muitos hospitais do SNS, a começar pelos de Lisboa, que nunca tiveram tanto “descanso”. O Ministério da Saúde fez-nos crer o contrário.
A pressão hospitalar sempre foi tema quente desde a chegada da pandemia da covid-19 a Portugal. Está de novo na hora do dia, graças a um histriónico director das urgências do Hospital de São João do Porto a pré-anunciar uma catástrofe apenas por um ligeiro acréscimo no fluxo de doentes nas últimas semanas. Como noutras ocasiões, desde Março de 2020.
A mensagem política e social ao longo da pandemia foi sempre no sentido de a covid-19 não sobrecarregar os serviços hospitalares e sobretudo as urgências, num país com mais de um milhão de pessoas sem médico de família.
Ficaram mesmo célebres as ambulâncias em frente ao Hospital de Santa Maria. Meta-se as palavras “hospitais” e “entupidos” no Google News, e encontraremos uma lista de notícias, umas mais clássicas anteriores à pandemia, outras mais recentes, de 2020, 2021 e mesmo deste ano.
Mas será isto mesmo verdade? Teremos médicos, enfermeiros e mesmo administradores hospitalares à beira da exaustão, como se nada houvesse parecido àquilo que sucedeu nos últimos dois anos.
Fomos fazer contas à vida nos locais onde se evita a morte. Melhor dizendo, o PÁGINA UM foi analisar, em detalhe, um dos indicadores fundamentais da pressão hospitalar: o número de dias acumulados de internamento nas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Os dias de internamento constituem não um retrato, como sucede nos picos conjunturais de afluência, mas sim um balanço de um período alargado (geralmente, um mês, um trimestre, um ano), permitindo aferir se existe uma variação relevante na procura de recursos materiais e humanos (médicos, enfermeiros, técnicos de saúde e auxiliares) para tratamento de doentes em situação mais delicada.
Para isso, recorremos a dados indesmentíveis – ou, pelo menos não desmentíveis, porque oficiais – pelo Ministério da Saúde ou pela imprensa que segue a “espuma dos dias”: a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Independentemente de ter ocorrido, efectivamente, uma maior pressão em diversos sectores hospitalares – sobretudo dos profissionais de saúde que estiveram alocados ao tratamento dos doentes-covid, em grande parte pela maior logística e disponibilidade que exigiu –, os dados do SNS afinal revelam, globalmente, uma evidência que destoa da visão mais “popular”: desde 2017 – período a partir do qual existem registos mensais contabilizando dias acumulados de internamento –, o ano com menor pressão foi o ano passado.
Com efeito, no total dos 12 meses de 2021, contabilizaram-se 5.931.618 dias de internamento, o que contrasta com 6.411.908 dias registados em 2020, que incorporou 10 meses (Março a Dezembro) já afectados pela pandemia. Se considerarmos a média mensal de 2020-2021 (cerca de 514.313 dias de internamento) com a de 2017-2019 (597.694 dias), a queda é de 14%.
Na verdade, antes da pandemia, a pressão hospitalar – medida pela “procura” (ou ocupação) de camas para internamento –, mantinha-se mais ou menos estável, até porque dependia da disponibilidade dos hospitais, tanto em camas “físicas” como em pessoal para tratar os doentes.
De acordo com a base de dados do SNS, os dias de internamento por mês entre Janeiro de 2017 até Fevereiro de 2020 – em vésperas da chegada do SARS-CoV-2 a Portugal – variavam entre os 540 mil e os 660 mil, com os valores mais elevados a ocorrerem, geralmente, no primeiro trimestre de cada ano.
Porém, com a chegada da pandemia em Março de 2020, tudo mudou, sobretudo no mês seguinte, onde quem estava doente via um hospital como se fosse o diabo a ver uma cruz: fugia. Por esse motivo, Abril de 2020 nem sequer contabilizou 440 mil dias de internamento, uma descida de quase 27% face ao mês anterior.
Número de dias de internamento em cada mês na totalidade das unidades do Serviço Nacional de Saúde desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Nos meses seguintes registar-se-ia um ligeiro aumento do número de dias de internamento, até que em Outubro de 2020 a pressão hospitalar atingiu valores considerados normais.
Contudo, com a intensificação da pandemia, e sobretudo com o surgimento da pior fase da covid-19 entre Dezembro de 2020 e Fevereiro de 2021, registou-se nova redução neste indicador.
Mas passada a tempestade, e apesar da manutenção das restrições, justificadas em parte para não sobrecarregar os hospitais com doentes-covid, o número de dias de internamento foram suavemente diminuindo. E mesmo com a chegada do último Inverno. Na verdade, desde Maio de 2021 o número acumulado de dias de internamento estiveram sempre abaixo dos 500 mil por mês. Ora, entre 2017 e 2019 contabilizam-se 16 meses acima de 600 mil dias de internamento.
As realidades foram, contudo, bastante distintas de unidade de saúde para unidade de saúde.
Para fazer uma análise mais fina, o PÁGINA UM seleccionou os centros hospitalares ou hospitais que, entre 2017 e 2019, registaram mais de 500 mil dias de internamento. De forma clara, evidenciam, em quase todos, um impacte brutal entre Março e Abril de 2020, no período de maior pânico, mas as evoluções são depois muito distintas.
Por exemplo, no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, a queda no internamento foi impressionante. Antes da pandemia, raramente havia um mês com menos de 40 mil dias de internamento. Em Abril de 2020 desceu para apenas 24.393 dias, uma redução da ordem dos 40%.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Ao longo de 2020, a pressão hospitalar, medida por este indicador, aumentou mas nunca chegou ao patamar da “normalidade” anterior à pandemia. Em Dezembro ultrapassou-se ligeiramente os 36 mil dias. Em seguida, ao longo de todo o ano de 2021, observou-se uma tendência de decréscimo, bastante acentuada mês após mês, de sorte que, em Dezembro do ano passado, se atingiu um novo mínimo desde 2017: somente 23.468 dias de internamento.
Situação ainda mais drástica observou no Centro Hospitalar de Lisboa Central – que agrega, entre outros, os hospitais de São José, D. Estefânia, Curry Cabral e Santa Marta. Com número de dias de internamento por mês a situar-se, geralmente, entre os 30 mil e os 40 mil antes da pandemia, a quebra foi bastante acentuada logo em Abril de 2020: contabilizaram-se um pouco menos de 25 mil. Uma queda de quase 33% face ao mês anterior.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Até Dezembro desse ano, o indicador manteve-se sempre em redor dos 25 mil dias, iniciando depois nova queda acentuada, com excepção de Março de 2021. O mês de Dezembro do ano passado foi um período nunca visto desde 2017: somente 11.566 dias de internamento. Face ao máximo mensal registado no período (40.609 dias em Março de 2018), significa uma queda de 72%.
O padrão do “vizinho” Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte – que integra, entre outros, os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente – foi idêntico, embora com uma queda ainda mais acentuada após a chegada do SARS-CoV-2, que trouxe uma debandada geral às unidades de saúde.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Se antes da pandemia, o fluxo de internamentos mensais situava-se entre os 25 mil e os 32 mil, em Abril de 2020 decaiu para baixo dos 16 mil, um tombo de 47% face ao mês anterior. Houve depois uma “recuperação” nos meses seguintes até Outubro desse ano, mas seguiu-se uma acentuada tendência de descida nos dias de internamento, incluindo mesmo nos meses de pico da pandemia do Inverno de 2020-2021, quando o Hospital de Santa Maria era palco mediático de ambulâncias em fila indiana para “despejar” doentes. Problemas de logística, na verdade. Os últimos dois meses de 2021 ficaram ambos abaixo dos 15 mil dias de internamento – valores que representam cerca de metade da “normalidade” pré-pandemia.
O Centro Hospitalar Lisboa Ocidental destoa deste padrão. Houve efectivamente uma queda abrupta entre Março e Abril de 2020, mas rapidamente se passou para um padrão de “normalidade” pré-pandemia, sobretudo ao longo do ano passado. Porém, até Dezembro de 2021 nunca se chegou a ultrapassar os 20 mil dias de internamento em qualquer mês, algo que sucedeu por vezes no período 2017-2019.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Ocidental desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Fora dos grandes centros urbanos, alguns centros hospitalares também mostraram este padrão. Foi o caso do de Tondela-Viseu. Neste caso, a queda de dias de internamento no início da pandemia foi mais curto – apenas entre Abril e Setembro de 2020 –, mas quando se pensava que os valores deste indicador começariam a estar próximos da “normalidade”, houve nova e mais persistente queda. No último mês do ano passado contabilizaram-se apenas 8.241 dias de internamento, uma queda de 58% face ao mês com maior pressão hospitalar desde 2017 (Julho de 2019).
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Tondela-Viseu desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Muito parecida foi a evolução das unidades de saúde na Região Autónoma da Madeira: uma descida abrupta em Abril de 2020, seguindo-se uma “recuperação” para níveis próximos da “normalidade” pré-pandémica, que perdurou até Março de 2021. A partir desse mês registou-se uma queda acentuadíssima, com o valor de Dezembro do ano passado a rondar apenas os seis mil dias de internamento.
Número de dias de internamento em cada mês nas unidades de saúde da Madeira desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No concelho do Porto observaram-se duas situação muito díspares. No Centro Hospitalar Universitário do Porto, que integra o Hospital de Santo António, registou-se mesmo, após o “susto” inicial de Abril de 2020, um aumento da média de dias de internamento, com um pico em Outubro daquele ano. Porém, a partir de Agosto do ano passado, este indicador desceu para valores bastante baixos, inferiores a 15 mil dias de internamento.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário do Porto desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Já no outro hospital da cidade do Porto, o do São João, o cenário foi bastante diferente: apenas os meses de Abril, Maio e Junho de 2020 se registaram dias de internamento abaixo da “normalidade” pré-pandemia, ficando depois sempre em valores sensivelmente idênticos ao período 2017-2019.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário de São João desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Na mesma linha se encontra o Centro Hospitalar Universitário do Algarve – que integra os hospitais de Faro, Portimão e Lagos –, que após uma repentina descida de um pouco mais de 20% nos dias de internamento entre Março e Abril de 2020, foi depois caminho para uma “normalidade” pré-pandémica.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar Universitário do Algarve desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No Hospital Amadora-Sintra a situação também foi quase similar. Se antes da pandemia o número de dias de internamento se situava quase sempre entre os 20 mil e 25 mil dias por mês, a emergência da covid-19 provocou um abaixamento nas hospitalizações, com o mínimo a ser atingido em Junho de 2020 (16.381 dias). A partir desse mês, o crescimento tem sido gradual, mas ainda não chegou sequer aos 23 mil dias de internamento.
Número de dias de internamento em cada mês no Hospital Amadora-Sintra desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
No Hospital Garcia de Orta, em Almada, a pandemia não trouxe alterações relevantes na pressão hospitalar. É certo que houve uma queda percentualmente relevante logo no início da pandemia (entre Março e Abril de 2020), mas a a seguir as variações estão dentro de um padrão de “normalidade”.
Número de dias de internamento em cada mês no Hospital Garcia de Orta (Almada) desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Situação semelhante se viveu no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro – que integra os hospitais de Vila Real, Chaves e Lamego. Houve, efectivamente, uma queda na pressão hospitalar acentuada nos primeiros meses da pandemia, passando de cerca de 14 mil dias de internamento em Março de 2020 para 10 mil em Maio daquele ano, mas depois os valores regressaram aos padrões de “normalidade”.
Número de dias de internamento em cada mês no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Por fim, o Hospital de Braga foi o único, de entre os seleccionados, que acabou o ano de 2021 com níveis de pressão, medidos em termos de dias de internamento, ligeiramente acima do “normal” antes da pandemia. No mês de Dezembro do ano passado registaram-se 20.294 dias de internamento, o segundo valor mensal mais elevado desde 2017.
No entanto, o percurso deste hospital nortenho foi semelhante aos demais com a chegada da pandemia: queda abrupta dos internamentos entre Março e Abril de 2020. Depois continuou sempre em crescimento até atingir valores ligeiramente acima da “normalidade”.
Número de dias de internamento em cada mês no Hospital de Braga desde 2017 até 2022. Fonte: SNS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.
Em suma, a análise do PÁGINA UM mostra, com base em dados oficiais, que foi criado um mito em redor de uma alegada existência de uma pressão hospitalar incomportável criada pela pandemia, e que justificaria restrições sociais e a suspensão de operações programadas.
Na verdade, uma das explicações para esta quebra nos internamentos em grande parte dos hospitais será mesmo a redução de intervenções cirúrgicas programadas, e que resultariam em internamentos de recuperação. Quais as consequências destes adiamentos? O Ministério da Saúde poderá, certamente, responder. Ou melhor, deveria responder.