Categoria: Exame

  • Inédito: Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia alvo de processo de contra-ordenação

    Inédito: Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia alvo de processo de contra-ordenação

    O médico António Morais “vestiu-se” de perito independente da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed, enquanto, como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), fazia as farmacêuticas abrirem os cordões à bolsa para lhe patrocinar eventos. Em troca, sobretudo durante a pandemia, a SPP e os seus membros andaram a promover interesses económicos directos de várias farmacêuticas. A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde decidiu agora, após uma investigação do PÁGINA UM, que havia matéria (evidente) para a instauração de um processo de contra-ordenação por violação do regime de incompatibilidades.


    O presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), António Morais – que ainda na passada semana promoveu publicamente o uso do fármaco Paxlovid, o anti-viral da Pfizer contra a covid-19 – está a ser alvo de um processo de contra-ordenação por iniciativa da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). É a primeira vez que o líder de uma sociedade médica se encontra sujeito um processo desta natureza.

    Em causa está a violação do regime de incompatibilidades deste pneumologista do Hospital de São João (Porto), que preside aquela importante sociedade médica desde Janeiro de 2019, mas mantendo-se como consultor (alegadamente) independente da Direcção-Geral da Saúde e do Infarmed. António Morais poderá vir a ser sancionado com uma coima entre 2.000 e 3.500 euros, mas além das questões éticas, haverá consequências jurídicas muito relevantes.

    António Morais, ao centro, numa foto durante a cerimónia de posse como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia em Janeiro de 2019.

    De acordo com o artigo 5º do Decreto-Lei nº 14/2014, “os pareceres emitidos ou as decisões tomadas por comissões, grupos de trabalho, júris e consultores, em que intervenham elementos em situação de incompatibilidade não produzem quaisquer efeitos jurídicos”, o que significa, em consequência, que “as decisões dos órgãos deliberativos (…) são nulas”, caso se baseiem naqueles pareceres.

    A informação sobre o processo de contra-ordenação foi hoje transmitida ao PÁGINA UM pela própria IGAS após ter sido concluído primeiro um “processo de esclarecimento” que carreou provas suficientes contra António Morais. A nota da IGAS salienta que num despacho do inspector-geral das Actividades em Saúde, Carlos Carapeto, de 7 de Junho passado, foi tomada a decisão de “apresentar, na sequência imediata, uma proposta de instrutor para o processo de contra-ordenação” tendo como alvo os comportamentos do presidente da SPP.

    Durante o seu 37º Congresso, em Novembro do ano passado, a SPP publicou um jornal diário. Na edição nº 2, António Morais cumprimenta o secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, com um aperto de mão e sem máscara. Neste congresso ocorreu um surto de covid-19.

    Recorde-se que uma investigação do PÁGINA UM, publicada em 18 de Abril passado, revelou que António Morais estava a violar o regime de incompatibilidades que impedem os consultores daquelas entidades de integrarem os órgãos sociais de sociedades médicas que “tenham recebido financiamentos de empresas produtoras, distribuidoras ou vendedoras de medicamentos ou dispositivos médicos, em média por cada ano num período de tempo considerado até cinco anos anteriores, num valor total superior a 50.000”.

    Ora, António Morais preside à SPP desde 14 de Janeiro de 2019, e esta sociedade médica ultrapassa larguíssimamente o patamar dos 50 mil euros anuais. Considerando 2018, antes da tomada de posse da equipa de Morais, a SPP tinha recebido no quinquénio uma média anual de 799.634 euros do sector farmacêutico, ou seja, 16 vezes mais do que o limite imposto pela norma das incompatibilidades.

    No quinquénio 2017-2021, que engloba já os três anos de presidência de António Morais, os montantes arrecadados pela SPP ainda aumentaram mais, situando-se nos 870.512 euros por ano. Para este aumento muito contribuiu o ano passado em que a SPP recebeu um financiamento recorde vindo do sector farmacêutico de 1.301.972 euros. Uma parte considerável (320.000 euros) foi um patrocínio único da Pfizer para a promoção da vacina contra a pneumonia pneumocócica em plena campanha de vacinação contra a covid-19, da qual a farmacêutica norte-americana muito beneficiou.

    Este ano, em menos de sete meses, de acordo com a Plataforma da Publicidade e Transparência do Infarmed, a SPP já amealhou 541.228 euros – ou seja, uma verba mais do dobro daquela que a SPP poderia receber em cinco longos anos para que António Morais pudesse manter-se como consultor da DGS e do Infarmed.

    Em todo o caso, os patrocínios da SPP poderão ficar, mais uma vez, acima de um milhão de euros, ao longo de 2022, uma vez que usualmente a maior fatia de patrocínios e contratos comerciais com a indústria farmacêutica regista-se no último trimestre de cada ano no âmbito do Congresso de Pneumologia.

    Apoios do sector farmacêutico (em euros) à Sociedade Portuguesa de Pneumologia entre 2017 e 2021. Fonte: Infarmed.

    No despacho da IGAS consta a indicação de que a informação foi também encaminhada para o gabinete do secretário de Estado-Adjunto e da Saúde, Lacerda Sales.

    O PÁGINA UM solicitou ao gabinete da ministra da Saúde, Marta Temido, e também à directora-geral da Saúde, Graça Freitas, e ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, comentários sobre este processo de contra-ordenação, e quis saber se, nas actuais circunstâncias, mantinham a confiança em António Morais como consultor. Não houve resposta. Também a SPP foi contactada, mas também não respondeu.

    Saliente-se que António Morais apresentou em Março passado uma queixa à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) contra o PÁGINA UM, acusando os artigos deste jornal –  que têm abordado as ligações da SPP e de alguns dos seus mais destacados membros, como o pneumologista Filipe Froes, com a indústria farmacêutica –  de “acarret[arem] consequências para a saúde pública”.

    Filipe Froes coordena o Grupo de Trabalho de Infecciologia Respiratória da SPP. Não se conhece ainda as diligências da IGAS sobre o processo de averiguação instaurado no ano passado.

    O presidente da SPP escreveu também à ERC que o “tipo de jornalismo” do PÁGINA UM “põe em causa a credibilidade científica de uma sociedade que, durante o período da pandemia, se prestou para prestar verdadeiro serviço público, disponibilizando informação séria, tendo como base as evidências científicas mais atuais”. Esta queixa ainda não teve conclusão da ERC.

    Por sua vez, o PÁGINA UM solicitou em Abril passado que o regulador também desencadeasse “todas as medidas legais, no caso em apreço contra o senhor António Morais, conducentes à protecção do livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa (…), à protecção da sua independência perante os poderes político e económico e à protecção dos (…) direitos, liberdades e garantias, tanto mais necessários para garantir a efectiva expressão e o confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial deste jornal”.

  • Inédito: Portugal caminha para o nono mês consecutivo com mais de 10.000 mortes

    Inédito: Portugal caminha para o nono mês consecutivo com mais de 10.000 mortes

    A covid-19 tornou-se endémica, mas a mortalidade em Portugal mantém-se imparável. Desde Novembro do ano passado não houve ainda nenhum mês com menos de 10.000 óbitos. Os meses de Abril, de Maio e de Junho bateram recordes, e Julho caminha para essa funesta posição. Mas o problema tem sido a persistência, que mostra um inquestionável problema grave de Saúde Pública. Enquanto isto, o Governo adia uma avaliação independente e continua a obstaculizar as investigações do PÁGINA UM.


    É situação inédita, impensável e intolerável, sobretudo pelo silêncio do Governo: com a primeira quinzena de Julho a registar mais de 5.200 óbitos, Portugal arrisca-se a contabilizar o nono mês consecutivo com os meses acima de 10.000 mortes por todas as causas.

    De acordo com dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito, desde Novembro do ano passado, todos os meses têm estado acima da fasquia dos 10.000 óbitos, valores que sendo números aceitáveis no Inverno – face ao envelhecimento populacional e à maior prevalência de doenças letais dos aparelhos respiratório e circulatório –, são completamente atípicos nos meses de Primavera e Verão.

    leafless tree on green grass field

    Com efeito, considerando os dados mensais da mortalidade do SICO e do Instituto Nacional de Estatística a partir de 1980, antes da pandemia apenas por duas ocasiões se registou uma séries de quatro meses consecutivos com mais de 10.000 óbitos: entre Dezembro de 2014 e Março de 2015, e entre Dezembro de 2017 e Março de 2018.

    Mesmo a ocorrência de séries de três meses a suplantarem aquela fasquia eram bastante raros, identificando-se apenas seis desde 1980: Dezembro de 1995 a Fevereiro de 1996; Dezembro de 1998 e Fevereiro de 1999; Dezembro de 2001 e Fevereiro de 2002; Dezembro de 2006 e Fevereiro de 2007; e ainda Janeiro de 2012 a Março de 2012.

    Em plena pandemia registar-se-ia mais uma série de quatro meses com mortalidade sempre acima de 10.000 óbitos – Novembro de 2020 a Fevereiro de 2021 –, mas com uma dimensão sem precedentes, uma vez que, sobretudo Janeiro do ano passado contabilizou o pior saldo de sempre (19.649 óbitos). No total, naqueles quatro meses faleceram quase 57 mil pessoas. Nas outras duas séries com quatro meses sempre acima dos 10.000 óbitos, o saldo tinha sido menos nefasto: cerca de 45 mil mortes em cada.

    Mortalidade mensal desde Janeiro de 1980 até Junho de 2022 (barras a vermelho, valores acima de 10.000 óbitos). Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Por norma, uma elevada mortalidade durante um determinado período – neste caso, o primeiro ano da pandemia – deveria estar a “beneficiar” os períodos subsequentes por virtude de um “rejuvenescimento” da população por via da morte dos mais vulneráveis. Ademais, a variante Omicron – que surgiu em Novembro do ano passado – tem-se mostrado de menor letalidade, a que acresce a elevada taxa de vacinação contra a covid-19, que as autoridades de saúde recusam associar a efeitos adversos relevantes.

    Contudo, certo é, desde Novembro do ano passado, nunca se ficou abaixo dos cinco dígitos na contabilização de pessoas falecidas. Sendo certo que Dezembro e sobretudo Janeiro são meses em que habitualmente se ultrapassam os 10.000 óbitos – e em Novembro e Março ocorre com alguma regularidade nos anos pré-covid –, não é habitual estarem todos com elevada mortalidade.

    Abril com mais de 10.000 óbitos apenas ocorreu por uma vez, exactamente em 2020, no início da denominada primeira vaga, que também esteve associada a mortes por causas não-covid. Mas um Maio ou um Junho acima de 10.000 óbitos é completamente inédito. Se Julho mantiver o ritmo – a média diária é, por agora, de 349 óbitos –, baterá o recorde de 2020, a única  vez que se ultrapassara os 10.000 óbitos.

    Porém, o principal problema nem sequer são os recordes mensais, mas sobretudo a persistência de elevados valores em tantos meses.

    Mortalidade mensal desde Julho de 2017 até Junho de 2022 (barras a vermelho, valores acima de 10.000 óbitos). Fonte: INE e SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Apesar desta situação, o Governo mantém-se impávido, recusando disponibilizar os dados brutos do SICO – o que implicou o recurso ao Tribunal Administrativo por parte do PÁGINA UM, através de um processo de intimação –, o que permitiria identificar as causas de mortes que se têm vindo a destacar e a justificar estes números.

    Além disso, recentemente, o presidente da Administração Central do Sistema de Saúde, Victor Herdeiro – amigo de longa data da ministra da Saúde, Marta Temido – retirou a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar do Portal da Transparência do SNS, impedindo assim o PÁGINA UM de escrutinar qual o grupo de doenças que se mostram agora com maior letalidade das unidades de saúde.

    Anteontem, a ministra da Saúde referiu aos jornalistas que o Governo está “totalmente empenhado em conhecer aquilo que é a mortalidade, conhecer as suas causas e atuar sobre as suas causas”, alegando que para as análises serem sérias, demoram muitas vezes tempo, e como tal é necessária “alguma prudência”. Marta Temido acrescentou querer “chegar a conclusões céleres”, mas que estas “não são possíveis quando são sobre fenómenos complexos e necessitam de tempo e de análise técnica”.

    Na verdade, fazer análises desta natureza, ainda mais com o detalhe que os dados do SICO permitem, não demora assim muito tempo.

    Basta vontade política. E transparência.

  • Desde finais de Fevereiro, morreram a mais 5.700 pessoas (e foi antes da onda de calor)

    Desde finais de Fevereiro, morreram a mais 5.700 pessoas (e foi antes da onda de calor)

    Para a “prova dos 9”, o PÁGINA UM solicitou a um professor de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências que analisasse a mortalidade deste ano em comparação com os últimos cinco anos, incluindo os primeiros dois anos de pandemia. Os resultados confirmam uma mortalidade excessiva, mas pior ainda: uma persistência inaudita. O calor desta semana complicará mais esta tragédia, mas não pode ser o bode expiatório. Afinal, o que esconde o Ministério da Saúde, quando não disponibiliza ao PÁGINA UM os dados em bruto do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito? De que estão a morrer os portugueses? Irá a culpa continuar a morrer solteira?


    Desde 21 de Fevereiro até 10 de Julho – antes da actual onda de calor –, o excesso de mortalidade por todas as causas já terá atingido quase 5.700 óbitos, de acordo com cálculos, a solicitação do PÁGINA UM, de João José Gomes, professor do Departamento de Estatística e Investigação Operacional da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

    Utilizando estatística mais elaborada, e analisando semanalmente os níveis de mortalidade desde o início do presente ano e comparando com períodos homólogos dos cinco anos anteriores (2017-2021) – incluindo, portanto, os dois primeiros anos da pandemia –, os cálculos deste investigador universitário destacam de forma ainda mais marcante a elevada e incompreensível mortalidade sobretudo desde o início de Março, e que se tem prolongado pela Primavera e Verão. Estas épocas do ano costumam ser as de menor mortalidade, só de quando em vez interrompidas, de forma curta, por alguma onda de calor.

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    Com efeito, a anormalidade deste ano mostra-se, sobretudo, por não estar associada a nenhum evento extraordinário, embora oficialmente tenha subsistido uma relativa mortalidade causada oficialmente pela covid-19, embora inédita, porquanto Portugal é um dos países europeus com maior taxa de vacinação contra esta doença e com maior contacto com o SARS-CoV-2.

    Segundo os cálculos de João José Gomes, o mês de Janeiro deste ano até foi bastante “ameno” – com um “défice de mortalidade” que chegou aos 677 na terceira semana. A situação de menor mortalidade face à média ainda se manteve até à semana 7 – mas já com uma aproximação à média do período 2017-2021 a partir do início de Fevereiro.

    Porém, sem qualquer evento meteorológico associado com implicações na saúde, Março foi o início de um inusitado processo atípico: em vez de uma redução, a mortalidade manteve-se em níveis quase similares ao Inverno. Significou isso, que o excesso de mortalidade se foi evidenciando.

    Mortalidade semanal em 2022 comparada com intervalos de confiança de 95% construídos com base nos anos 2017-2021. Fonte: SICO. Análise: João José Gomes (FC-UL)

    E de uma forma abismal. De facto, a partir da semana 12, iniciada a 22 de Março, a mortalidade total diária esteve quase invariavelmente acima da média do período homólogo entre 2017 e 2021. A situação ainda piorou mais entre a semana 21, que começou a 24 de Maio, e a semana 25, que terminou em 27 de Junho. Neste período de transição da Primavera para o Verão – que inclui Junho, o segundo mês menos mortífero do ano, a seguir a Setembro, pela sua amenidade –, o valor mínimo diário em 2022 esteve quase sempre acima do limite superior do intervalo de confiança de 95%. Isto sistematicamente. Pior seria impossível.

    De acordo com os cálculos de João José Gomes, é sobretudo a persistência de um longo período de excesso de mortalidade num período do ano caracterizado pela baixa mortalidade que causa estupefacção.

    Estimativa do défice (verde) e excesso (vermelho) de mortalidade por semana em 2022 face à média do período 2017-2021. Fonte: SICO. Análise: João José Gomes.

    Entre as semanas 12 e 27, apenas em duas se excedeu as 200 mortes no respectivo período de sete dias. A mortalidade excedeu em mais de 60 óbitos por dia (ou seja, mais de 420 óbitos em sete dias) na semana 25 (21 a 27 de Junho, com 676 óbitos a mais, isto é, quase 97 por dia), na semana 24 (14 a 20 de Junho, com 563 óbitos a mais), na semana 20 (17 a 23 de Maio, com 468 óbitos a mais), na semana 23 (7 a 13 de Junho, com 467 óbitos a mais) e na semana 21 (24 a 30 de Maio, com 424 óbitos a mais).

    Para reconfirmar a persistência da mortalidade sempre em valores muito acima do perfil normal – em que, no período primaveril e estival se sucedem largos períodos com óbitos diários a rondar os 280 por dia –, saliente-se que este ano apenas se verificaram, até hoje, 15 de Julho, sete dias com menos de 300 óbitos. Significa que se contabilizaram já 189 dias com mais de 300 óbitos, muito acima dos 161 registados em 2020, quando a primeira vaga encontrou uma população completamente desprevenida. No ano passado, que contabilizavam-se, neste período, já 104 dias abaixo dos 300 óbitos, embora tal se tenha devido em grande medida ao morticínio dos meses de Janeiro e Fevereiro.

    Número de dias com 300 ou mais óbitos e com menos de 300 óbitos entre 2009 e 2022 até 15 de Julho. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Note-se que, na quase totalidade do período analisado, o índice Ícaro – que mede o risco de acréscimo de mortalidade devido a temperatura elevadas – esteve quase sempre com o valor de zero. Até 8 de Julho apenas em um dia esteve acima de 0,1 (ou seja, com impacte quase irrelevante), e somente na última semana esteve consecutivamente positivo. Em todo o caso, ainda não superou o valor de 1, que constitui já uma fasquia de grande perigo.

    Esta análise demonstra, de forma categórica, que o excesso de mortalidade nos últimos dias associada exclusivamente à onda de calor em curso está profundamente errada. E que o comunicado de imprensa de ontem à tarde da Direcção-Geral da Saúde, apontando para um excesso de 238 óbitos no período de 7 a 13 de Julho em função exclusivamente das condições meteorológicas, e omitindo o passado mais recente (e os problemas estruturais do SNS), constitui, na verdade, uma manobra de diversão.

    Na verdade, se é previsível (aliás, seria estranho o contrário) que a mortalidade total venha a ser extremamente elevada por estes dias – ontem, segundo dados provisórios, terão morrido 436 pessoas, o que a confirmar-se será o quarto dia mais mortífero de 2022 –, mostra-se evidente que o “ponto de partida”, ou seja, a base de mortalidade (por factores ainda ignorados) está muito acima do expectável. Portanto, acabando a onda de calor, continuará elevada a mortalidade, porque não é a temperatura que está a desequilibrar. Excepto, se enfim, alguém obrigar o Ministério da Saúde a revelar as causas deste contínuo morticínio, e a encontrar rapidamente uma solução.

  • Desde Janeiro, já morreu um em cada 10 idosos com mais de 85 anos

    Desde Janeiro, já morreu um em cada 10 idosos com mais de 85 anos

    Nada tem a ver com a onda de calor em curso. No passado domingo, a mortalidade acumulada nos mais idosos (acima dos 85 anos) desde Janeiro deste ano ultrapassou os atrozes valores de 2021, quando então se bateram recordes de óbitos em Janeiro e Fevereiro. Mas, ao contrário do que sucedeu em 2021, o morticínio nos mais velhos está a acontecer na Primavera e no Verão de forma persistente e silenciosa, contrariando aquilo que seria expectável. E tem sido um evento silenciado. Na verdade, não está ser apenas um morticínio; está a ser um gerontocídio. O PÁGINA UM apresenta uma análise detalhada daquilo que está a suceder, a exigir investigação, que pode ser judicial.


    Gerontocídio – a palavra existe no léxico, embora seja pouco usada. Mas sendo pouco ou nada usual ouvi-la e vê-la escrita, tem agora andado a pairar por todo o lado no nosso país, de norte a sul, de este a oeste, apesar das autoridades de Saúde, e particularmente o Governo, nem sequer queiram proferir um qualquer eufemístico sinónimo. Nada. Silêncio. Um atroz silêncio: é esta a reacção de um Estado democrático perante uma mortandade sem precedente atinge níveis inauditos numa franja que já deu muito ao país: os super-idosos, os maiores de 85 anos.

    De acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM, incluindo tratamento estatístico, aos dados disponíveis do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), os óbitos acumulados desde 1 de Janeiro deste ano neste grupo etário ultrapassaram, no passado domingo (dia 10 de Julho), os números já colossais de 2021, que incluíram Janeiro e Fevereiro, no auge da pandemia da covid-19.

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    Com os números provisórios até 12 de Julho, terão já morrido este ano um total de 30.648 pessoas com mais de 85 anos, o que representa quase 10% dos idosos daquela faixa etária, que nos últimos anos estava em contínuo crescimento. De acordo com as estimativas do Instituto Nacional de Estatística viviam em Portugal 328 mil pessoas com mais de 85 anos em 2020, sendo que, naquele ano, mais de 56 mil tinham apagado oito dezenas e meia de velas.

    Este grupo etário esteve em contínuo crescimento nas últimas décadas, fruto das melhorias nos cuidados médicos, tendo duplicado mesmo o seu número entre 2004 (quando então viviam apenas cerca de 16 mil pessoas com mais de 85 anos) e 2020. Esse crescimento será quebrado, certamente agora, com o excesso de óbitos em 2021 e 2022.

    O valor da mortalidade acumulada dos mais idosos em 2022 excede, por agora, em pouco menos de uma centena (97) os números do ano passado (30.551 óbitos). Encontram-se também substancialmente acima do primeiro ano da pandemia (27,866 óbitos) e são muitíssimo superiores ao período pré-pandemia (25.493 óbitos em média entre 2015 e 2019).

    Recorde-se que o ano passado foi particularmente mortífero para os mais idosos. Nos dois primeiros meses do ano passado, a mortalidade total atingiu patamares inéditos: em Janeiro morreram 19.649 pessoas e em Fevereiro 12.784. Destas, 46% (14.809) eram idosos com idade igual ou superior a 85 anos.

    Apesar disso, este ano a situação de Saúde Pública dos mais idosos está a assumir contornos ainda mais catastróficos, porque o morticínio não se iniciou nos meses de Inverno – associado a doenças mais letais neste grupo etário –, tendo-se sim intensificado, de forma espantosa e imparável, sobretudo a partir de Março.

    Não se registou assim a habitual diminuição dos óbitos ao longo da Primavera e Verão; pelo contrário. Neste momento, os níveis de mortalidade nesta faixa etária estão próximos dos valores de Inverno, e com um excesso significativo face aos anos anteriores e sobretudo aos períodos homólogos pré-pandemia.

    O início deste ano até aparentava vir a ser “ameno” para os mais idosos, após a pandemia ter causado um excesso de mortalidade sem precedentes. De facto, o último Janeiro teve uma mortalidade diária para os maiores de 85 anos até ligeiramente abaixo da média do período pré-pandemia: 167 óbitos vs. 174. O mês de Fevereiro esteve já um pouco acima, mas, mesmo assim, até ao dia 25 daquele mês tinham morrido menos 4.828 idosos desta faixa etária do que em igual período de 2021.

    Aquilo que sucedeu depois mostra-se ainda inexplicável, pela sua dimensão e persistência, e por mais especulações que as autoridades de Saúde façam, enquanto se recusam a investigar ou impedem ostensivamente que haja investigações independentes. Este ano, entre Março e 12 de Julho, morreram 20.647 idosos com mais de 85 anos, um valor que excede em 4.901 os óbitos registados em 2021, em 2.227 os contabilizados em 2020 (que inclui o início da pandemia), e em 5.004 os que se registaram em média no período entre 2015 e 2019. Em relação à fase pré-pandemia, os óbitos neste grupo etário incrementaram em 32% no período do ano geralmente pouco mortífero.

    Evolução do diferencial de óbitos acumulados entre 2022 e 2021 até 12 de Julho no grupo etário dos maiores de 85 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    De facto, o perfil da mortalidade deste ano para os mais idosos é completamente atípica. Desde Março, a mortalidade diária dos maiores de 85 anos tem variado entre uma média diária de 149 óbitos em Julho (nos 12 primeiros dias) e os 160 em Março. A média diária no período pré-pandemia (2015-2019) situa-se, para este intervalo de tempo, entre os 99 óbitos em Julho e os 135 em Março.

    Ou seja, desde Junho observa-se um excesso de mortalidade neste grupo etário a rondar 50 óbitos em cada dia. Em dois meses são cerca de três mil mortes a mais. Não há explicação oficial, justificada por estudos técnicos, para estes números.

    Esta hecatombe ainda assume pior intensidade, por duas razões: por um lado, nenhum outro grupo etário apresenta este perfil de mortalidade ao longo deste ano; por outro lado, o morticínio dos últimos meses sucede a um longo e (quase) contínuo período de excesso de mortalidade desde o surgimento da pandemia. Ademais, praticamente todo este grupo populacional se encontra com imunidade vacinal contra a covid-19 com três ou quatro doses.

    Mortalidade média diária por mês dos maiores de 85 anos no período 2015-2019 (média), 2020, 2021 e 2022 (Julho até dia 12). Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Com efeito, analisando todos os grupos etários do SICO, aqueles que são subsequentes aos maiores de 85 anos até estão em situação muito mais favorável relativamente ao ano passado. Apesar de os valores ainda estarem algo acima da média pré-pandemia, se comparamos a mortalidade acumulada até 12 de Julho deste ano com o período homólogo do ano passado para o grupo etário dos 75 aos 84 anos, observa-se até um decréscimo de 1.504 óbitos. Para o grupos dos 65 aos 74 anos a redução é de 839.

    A relativa redução na mortalidade entre os 65 aos 84 anos justifica, assim, que o total de óbitos na população portuguesa até 12 de Julho de 2022 ainda seja bastante inferior ao ano passado: 67.939 óbitos contra 70.677, ou seja, menos 2.728.

    Porém, esse mesmo diferencial, confirma ainda mais que o problema se concentra em exclusivo nos mais idosos, embora seja questão menos mediatizável por atingirem pessoas que já vivem acima da esperança média de vida. Em todo o caso, fica patente que o suposto “efeito rejuvenescimento” – devido à morte dos mais “fracos” ao longo da pandemia – não foi assim suficiente para estancar um “inesgotável morticínio”.

    Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos mais idosos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    A constatação de se estar perante um silencioso e silenciado problema em exclusivo para os mais idosos ainda se evidencia mais numa análise aos grupos etários das pessoas com menos de 65 anos – onde, felizmente, a mortalidade em qualquer caso é muito inferior. No grupo dos 55 aos 64 anos – em que a mortalidade em 2022 ainda está acima do período pré-pandemia –, no presente ano contabilizam-se menos 320 óbitos do que no ano passado.

    Para os menores de 55 anos, o ano de 2022 está dentro de valores considerados normais, incluindo os anos anteriores à pandemia. Na verdade, durante 2020 e 2021, a mortalidade nos menores de 55 anos foi mesmo geralmente mais baixa do que no período pré-pandemia (2015-2019), com uma excepção (pouco relevante do ponto de vista estatístico) no grupo etários dos 15 aos 24 anos.

    No caso dos menores de 15 anos, ao longo da pandemia a mortalidade – já de si muito reduzida em situações normais – esteve sempre mais baixa. Na verdade, a taxa de mortalidade infantil desceu mesmo nos dois primeiros anos da pandemia, e o ligeiro crescimento deste ano face a 2021 não é (ainda) preocupante numa perspectiva de Saúde Pública.

    Comparação entre a mortalidade acumulada (até 12 de Julho) em 2020 e de 2021 e da média pré-covid (2015-2019) por grupo etário dos menores de 65 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Em suma, por covid-19, por outras doenças, por negligência das autoridades de outros responsáveis políticos, certo é que os maiores de 85 anos estão a acelerar a partida deste mundo – depois de décadas de esforço na melhoria dos cuidados de saúde, que tornaram Portugal num país moderno e civilizado. E aparentemente não há quem deseje investigar as causas.

    Sendo certo que a covid-19 teve o seu peso no excesso de mortalidade após Março de 2020, não se encontra (ainda) justificação (técnica e científica, excluindo bitaites mesmo se de “peritos”) para os actuais níveis de mortalidade nos maiores de 85 anos. Mostra-se assim necessário investigar em vez de especular; é necessário pegar nos dados brutos do SICO e analisar as causas de mortes antes e durante a pandemia para todas as faixas etárias.

    E acabar com o alarmismo e o fomento do medo que anestesiou toda uma população, a tal ponto que a convenceu que a covid-19 era a “doença”, a única, a globalmente perigosa. O impacte da pandemia está por fazer, bem como as soluções, que não incluem apenas o ataque à doença, mas também uma análise crítica à gestão da pandemia, ou seja, as consequência da suspensão do Serviço Nacional de Saúde e mesmo os efeitos não estudados dos sucessivos boosters das vacinas contra a covid-19 nos mais idosos e nos outros grupos etários.

    greyscale photo of woman standing behind woman sitting on chair

    Aliás, mostra-se fundamental mostrar que a covid-19, tendo sido um problema de Saúde Pública grave, teve níveis de gravidade completamente distintos, e que todas as acções implementadas de forma generalizada foram erradas.

    O PÁGINA UM fez, aliás, uma “simples” e rápida análise comparativa da mortalidade por grupo etário em dois períodos homólogos: entre 1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019 (fase pré-pandemia) e entre 1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022 (fase da pandemia). Os valores absolutos comprovam que em Portugal se viveu um pânico colectivo sem justificação e que terá sido bastante contraproducente para uma gestão eficaz e eficiente.

    Assim, no grupo dos menores de 1 ano, dos 1 aos 4 anos, dos 5 aos 14 anos, dos 25 aos 34 anos, dos 35 aos 44 anos e dos 45 aos 54 anos – ou seja, com excepção do grupo dos 15 aos 24 anos (situação que deveria ser também investigada) –, a pandemia não teve qualquer impacte, ou até mesmo paradoxalmente “positivo”. A mortalidade foi mesmo inferior. No caso dos menores de 1 ano, a redução até foi de 22% (na realidade um pouco menor, porque a taxa de natalidade desceu).

    De resto, o impacte nos maiores de 55 anos foi muito distinto, mas a merecer prudência em assacar responsabilidades exclusivas à covid-19. Com efeito, o incremento da mortalidade nestes dois períodos foi muito distinto e não foi linear, como seria de supor se o SARS-CoV-2 fosse a única explicação.

    Mortalidade por grupo etário na fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e na fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.

    No grupo dos 55 aos 64 anos e dos 75 aos 84 anos, o acréscimo de mortalidade entre a fase pré-pandemia e fase de pandemia foi de 8%, mas estranhamente foi de 12% no grupo dos 65 aos 74 anos. Ou seja, seria expectável – caso a covid-19 fosse o único factor a explicar este acréscimo – que a subida da mortalidade neste grupo etário estivesse algures entre o valor do grupo que o precede (55 aos 64 anos) e o que lhe segue (75 aos 84 anos).

    Por outro lado, observa-se que o incremento da mortalidade nos maiores de 85 anos concentra o maior crescimento, o que tendo em consideração que é o grupo etário com maior peso absoluto. De facto, são quase 20 mil mortes a mais (128.224 na fase da pandemia vs. 108.559 na fase pré-pandemia). Tendo em conta que estamos a falar de 864 dias, significa um acréscimo de quase 23 óbitos em excesso por dia. Não foi tudo, certamente da covid-19. Nem o que está agora a acontecer tem essa tão singela explicação. Nem pode a onda de calor, que está agora por aí, levar com as culpas.

    Mas a ignorância sobre toda esta situação é imensa, tanto mais que é fomentada pela própria Direcção-Geral da Saúde, instituição que nem permite sequer que se saiba qual o peso efectivo da covid-19 nos maiores de 85 anos – e também nos outros grupos etários.

    Variação da mortalidade (%) por grupo etário entre a fase pré-pandemia (1 de Março de 2017 e 12 de Julho de 2019) e a fase da pandemia (1 de Março de 2020 e 12 de Julho de 2022). Fonte: SICO, Análise: PÁGINA UM.

    Desde o início da pandemia, o Governo desfasou, com o claro propósito de obstaculizar qualquer análise séria, os dados da mortalidade total (contabilizados no SICO) e da mortalidade por covid-19. Assim, por exemplo, sabe-se quantas pessoas com mais de 80 anos morreram de covid-19, mas não se consegue calcular o contributo da doença na mortalidade total, porque os grupos etários usados no SICO vão dos 75 aos 84 anos e depois dos maiores de 85 anos.

    Saber quais as doenças que determinaram, por exemplo, este desvio seria essencial, mas o Governo esconde os dados. Tal como esconde todos os dados e toda a informação, por amiguismo ou protecção política, que procurem fazer um diagnóstico dos problemas e encontrar soluções.

    E um Governo que intencionalmente faz isto, faz isso para esconder a verdade. E uma sociedade que admite isto, aceita um Governo a fazer tudo.

  • Ordem para expurgar informação comprometedora para o Ministério da Saúde veio de amigo de longa data de Marta Temido

    Ordem para expurgar informação comprometedora para o Ministério da Saúde veio de amigo de longa data de Marta Temido

    Continua sem existir uma justificação documental (e plausível) para o desaparecimento da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar retirada do Portal da Transparência pelo presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Do gabinete da ministra da Saúde remete-se a responsabilidade para a ACSS, presidida por um amigo de longa data de Marta Temido, com quem esteve lado a lado no passado dia 7 na apresentação do novo Estatuto do SNS. A ministra nega razões políticas, mas não responde sobre se vai fazer algo para que seja retomado o acesso público daquela base de dados.


    Victor Marnoto Herdeiro, presidente da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), continua sem identificar quais foram as razões técnicas que levaram aquele instituto público –  sob alçada directa da ministra Marta Temido, sua amiga de longa de longa – a expurgar a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, onde constam dados que revelam a situação caótica do Serviço Nacional de Saúde e desmentem muitos aspectos da narrativa oficial do Governo.

    A base de dados permitiu ao PÁGINA UM elaborar um dossier de investigação jornalística, que já contava com nove artigos, publicados entre 13 de Maio e 23 de Junho. O seu expurgo impede o acesso a dados mais actuais, posteriores a Janeiro deste ano, impossibilitando assim uma melhor avaliação do desempenho do SNS e das políticas públicas do actual Governo.

    Da esquerda para a direita: Rui Ivo (presidente do Infarmed), as ministras Mariana Vieira da Silva e Marta Temido, Victor Herdeiro (presidente da ACSS) e Fernando Alfaiate (presidente da Estrutura de Missão Recuperar Portugal) na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho.

    Esta base de dados foi criada em 2018, sendo um sistema de informação de suporte à monitorização do desempenho dos hospitais do SNS.

    Em concreto, este sistema recolhe dados administrativos, incluindo codificação clínica, permitindo apurar a evolução mensal, desde Janeiro de 2017, de episódios de internamentos, ambulatório e óbitos por capítulo de diagnóstico (por grande grupo de doença) em cada hospital ou centro hospitalar, por grupo etário e sexo. Tem também a particularidade de conseguir identificar a evolução dos internamentos e desfechos da covid-19, uma vez que, neste caso concreto, esta é a única doença do grupo denominado “Códigos para fins especiais”.

    Certo é que o responsável da ACSS – que assumiu sem esclarecer a retirada da base de dados da Plataforma da Transparência, alegando “análise interna” – foi uma escolha directa e pessoal da actual ministra para aquele posto. Aliás, Marta Temido presidiu àquele instituto desde 2016, quando em 2018 foi convidada por António Costa para integrar o Governo.

    Victor Herdeiro demorou três anos a conseguir o cargo antes ocupado pela sua amiga Marta Temido, quando então ocupava a vice-presidência da Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica, uma entidade pública, mas com ligações à APIFARMA. Antes daquele cargo, Herdeiro tinha sido presidente da Unidade Local de Saúde de Matosinhos, que gere o Hospital Pedro Hispano.

    Printscreen de apresentação da base de dados expurgada pela ACSS (imagem arquivada). Fonte: Internet Archive.

    Os laços entre Marta Temido e Victor Herdeiro são bastante estreitos e de longa data. Ambos tiraram o curso de Direito, tendo-se cruzado nos corredores da Universidade de Coimbra, embora o actual presidente da ACSS seja mais velho (nasceu em 1969, enquanto Temido nasceu no início de 1974). No entanto, passaram a ter contactos estreitos há cerca de duas décadas, porque ambos ingressaram na carreira de administradores hospitalares.

    Na Associação Nacional de Administradores Hospitalares (APAH) – uma poderosa agremiação por via das ligações políticas e dos financiamentos das farmacêuticas –, Victor Herdeiro e Marta Temido compartilharam mesmo três mandatos ao longo de nove anos: 2008-2011, 2011-2013 e 2013-2016.

    Nos dois primeiros, Temido foi tesoureira e Herdeiro vogal, enquanto naquele último triénio a actual ministra presidiu à APAH, mantendo-se Herdeiro como vogal. Já sem Marta Temido nos órgãos sociais desta associação, Victor Herdeiro foi vice-presidente no mandato de 2016-2019. Ambos são também “responsáveis” pelo convite a Alexandre Lourenço para presidir à APAH há seis anos, como o próprio confessou em Março último.

    Mandatos em que Marta Temido e Victor Herdeiro coincidiram na Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares. Fonte: APAH.

    Apesar destas relações íntimas, e do expurgo da base de dados da Morbilidade e da Mortalidade Hospitalar beneficiar Marta Temido, o Ministério da Saúde insiste nada ter a ver com a decisão de Victor Herdeiro, que se mantém silencioso, não apresentando ao PÁGINA UM, conforme solicitado, qualquer documento que ateste a necessidade de uma “análise interna” da informação que esteve até Maio no Portal da Transparência.

    Por insistência do PÁGINA UM, um porta-voz da ministra da Saúde insiste que “não houve qualquer intervenção de qualquer membro do Governo ou dos seus gabinetes na retirada do referido indicador do Portal da Transparência, nem tal intervenção foi suscitada pela ACSS, seguramente em razão de tal retirada ter obedecido a critérios estritamente técnicos e na esfera da competência da ACSS”. E acrescenta que, “dessa forma, não se suscita qualquer comentário político sobre a matéria.”

    Tendo em consideração que actos técnicos desta natureza necessitam de ordens escritas expressas – até porque manifestamente terão de ser justificados os procedimentos inerentes à tal “análise interna” –, o PÁGINA UM irá recorrer ao Tribunal Administrativo para que Victor Herdeiro seja obrigado a justificar-se. Ou, pelo menos, a admitir publicamente que a sua ordem foi verbal, e portanto sem justificação técnica, embora com óbvios benefícios político-partidários.

  • Esquecidos estavam, esquecidos continuam

    Esquecidos estavam, esquecidos continuam

    O PÁGINA UM desafiou Joaquim Magalhães de Castro, jornalista em Macau e autor de um vasto conjunto de obras de viagens e sobre o passado dos portugueses na Ásia, a escrever sobre a perseguição de luso-descendentes em Myanmar, antiga Birmânia. Os bayingyis são uma comunidade que está a ser massacrada nos últimos meses perante a passividade das autoridades portuguesas e da imprensa mainstream. Com excepção da primeira, todas as fotografias foram tiradas por habitantes locais das aldeias de Chaung Yoe e Chan-tha-ywa, a norte de Mandalay, após ataques perpetrados por militares birmaneses em Fevereiro e Maio deste ano. A veracidade das fotos foi confirmada ao PÁGINA UM por Joaquim Magalhães de Castro.


    Enquanto a guerra na Ucrânia domina as atenções dos media e das organizações internacionais, prossegue impune a repressão da Junta Militar do Myanmar em relação a todos os que se opõem ao seu tirânico regime.

    Entre eles estão os membros de uma comunidade luso-descendente com quase 450 anos de existência, gente rural, conhecidos localmente como bayingyis.

    Várias das suas aldeias foram já inteiramente queimadas, os seus bens destruídos e houve até quem fosse assassinado a sangue-frio. Aterrorizados pela acção da soldadesca e dos tiros da artilharia, os aldeões fugiram e encontram-se agora refugiados nas instalações da diocese em Mandalay, a segunda cidade do país.

    Rosto de um habitante da comunidade bayingyi, que mantém um apelido bem luso (Abreu). Foto: ©Joaquim Magalhães de Castro

    Desabafo de um dos seus residentes, chamemos-lhe Paulo: “temos imenso orgulho das nossas raízes portuguesas, mas Portugal não quer saber de nós!”. Diz isto, pois desde o final do ano passado tem estado em contacto comigo fornecendo-me provas das atrocidades cometidas, provas essas que em vão tentei fazer chegar a alguns dos principais órgãos de comunicação social.

    Não demonstraram qualquer interesse pela matéria até há umas semanas, quando lhes fiz chegar a mensagem que recebera do Paulo, logo pela manhã: “Ontem, um contingente militar de 150 soldados entrou em Chan-thar-ywa, uma grande aldeia bayingyi na região de Sagaing, disparando mais de três tiros de artilharia. Às 15 horas começaram a queimar a aldeia. A minha casa e muitas outras foram incendiadas… O pároco, as religiosas e os aldeões estão agora em fuga, deixando para trás todos os seus bens. Avistamos muito fumo do local onde nos escondemos”.

    Dias depois, já na capital Yangon, Paulo informava-me que a Junta Militar cortara a Internet e as comunicações de rede móvel na região onde se situam as aldeias dos luso-descendentes. Ou seja, a partir de então essa gente ficou ainda mais isolada.

    As imagens que o Paulo me fez chegar mexeram comigo, tocaram-me no fundo da alma, entristeceram-me profundamente.

    Conheci bem aquelas aldeias, dormi naquelas casas de teca e recebi da gente que as habitava toda a hospitalidade do mundo e arredores. Eu representava o Portugal mítico que, durante séculos, os bayingyis transportaram (e transportam ainda) consigo, apesar da maior parte deles ser incapaz de indicar num mapa onde fica Portugal.

    O Paulo era miúdo ainda quando pela primeira vez visitei essas aldeias, em 1993… Mais tarde, teve oportunidade de viajar e, numa passagem por Macau, veio à minha procura. “Lembro-me bem de si. Era criança ainda”, disse ele quando nos sentámos para beber um café e evocar recordações antigas.

    Na verdade, ando desde meados da década de 1990 a falar da comunidade bayingyi, a mais reputada das comunidades luso-descendentes do Myanmar. Dei a conhecer a sua existência e os seus anseios com artigos nos jornais e revistas, exposições fotográficas, dois livros, um documentário, depoimentos nas rádios e televisões e nas inúmeras conversas com amigos e desconhecidos.

    Em Macau, Portugal e onde foi possível chegar no Mundo. Mesmo assim, ainda há quem teime em ignorar a sua existência e as suas justas reivindicações históricas. É o caso da maioria dos media (sobretudo das televisões) e das nossas autoridades, ao mais alto nível, todas elas ao corrente da situação. Presidência da República, Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), Assembleia da República: um ensurdecedor silêncio; prova provada de que Portugal abdicou da sua política externa.

    Depois de registar o meu testemunho sobre o processo em curso, que visa, no mínimo, a desagregação e desenraizamento dessa comunidade orgulhosamente distinta das restantes (ou até, porventura, a sua aniquilação completa), uma jornalista da Lusa foi ouvir o que tinha a dizer o nosso MNE: “Questionado pela agência Lusa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros recordou que, desde o primeiro instante, Portugal condenou o golpe militar de 1 de Fevereiro de 2021, praticado pelas autoridades militares do Myanmar, uma violação flagrante da vontade da população, expressa nas eleições gerais de 8 de Novembro de 2020”.

    E prossegue a nota do Palácio das Necessidades: “A violência por motivos étnico-religiosos ou a violação da liberdade religiosa é injustificável e inaceitável, em todas as suas formas. Myanmar está no topo da agenda da União Europeia e Portugal continuará a participar activamente no esforço colectivo da comunidade internacional para pôr termo a este conflito e auxiliar as populações vulneráveis”.

    Ou seja, sobre a comunidade bayingyi – que mantém a chama da portugalidade há mais de 400 anos, e que agora perdeu tudo o que tinha (casas, bens, animais, colheitas e, alguns, familiares também) – nem uma palavra!

    E tudo indica que razão desse silêncio se deve a rumores que nas Necessidades disseminaram a disparatada ideia de que a assumida origem lusitana dos bayingyis não tinha razão de ser e que tudo não passava de uma invenção de “alguns oportunistas”, daí que os nossos governantes optassem por não individualizar a questão, preferindo diluí-la no protesto comum da União Europeia pela continuada repressão às minorias éticas.

    Face a este delírio, só me ocorre dizer o seguinte: ou estamos perante alguém com uma enorme má-fé (inclino-me para esta hipótese) ou então com sérios problemas cognitivos.

    É sabido que a gente mesquinha e torpe, por norma não lê, não estuda, não conhece, e tem raiva de quem lê, estuda e conhece. Daí a sua tendência para a má-língua e a difamação. Pois bem, a origem portuguesa dos bayingyis (e de outras comunidades luso-descendentes do Myanmar, nomeadamente a de Arracão, que também conheço bem) está mais do que comprovada.

    Basta ler, por exemplo, alguns dos capítulos da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ou a nossa contemporânea investigadora Maria Ana Marques Guedes, especialista da relação histórica entre Portugal e a Birmânia. Está lá tudo explicadinho.

    Entretanto, e para os mais preguiçosos, deixo aqui, em jeito de introito histórico, uma breve resenha que, espero, ajudará a contextualizar sobre quem são exactamente os bayingyis. E como surgiram.

    A Ilha dos Portugueses

    – Se vai ao meu país, não se esqueça de visitar a ilha dos portugueses. – Foi com estas palavras que se despediu de mim o jovem secretário da embaixada de Myanmar em Pequim quando, no início da década de 1990, aí fui solicitar um visto de turista.

    Dessa vez, não chegaria a utilizá-lo, mas aquilo da “ilha dos portugueses” ficou-me na ideia durante algum tempo.

    Quando, poucos anos depois, visitei pela primeira vez essa nação que já se chamou Birmânia, e que um punhado de generais teimava em considerar feudo seu, levava a lição minimamente estudada, graças à informação que em Macau me fora fornecida por um amigo entusiasta dessas coisas das miscigenações.

    Quem primeiro nos relata o pioneirismo dos portugueses na Birmânia é o cronista Duarte Barbosa, que em 1501 ruma à Índia com uma frota de várias dezenas de navios, só regressando a Portugal quinze anos depois.

    No decorrer da sua viagem pelo subcontinente e pelo Sudeste asiático refere-se, por diversas ocasiões, ao reino da Birmânia, com “os seus habitantes de pele escura que andam nus da cintura para cima”, e aos «mouros e pagãos» (entre estes últimos estavam incluídos os chineses), os grandes comerciantes da época, rivais dos portugueses.

    Barbosa é, provavelmente, o primeiro europeu a mencionar a existência da Birmânia, na altura, o nome dado ao principado de Tangu, que, juntamente com Ava, Pegu e Arracão, era um dos mais importantes reinos da região que hoje constitui o estado de Myanmar.

    Em 1511, os mon (uma das muitas etnias da região) estabeleceriam um tratado comercial e de amizade com Afonso de Albuquerque, que lhes enviou um mensageiro chamado Rui Nunes, procurando, com isso, o apoio dos gentios contra o inimigo comum: os muçulmanos. Pegu, reino budista, era um aliado precioso.

    Em Agosto de 1512, Pêro Pais e Jorge Álvares rumam ao Pegu a bordo do junco São João. Estava assim iniciada uma prática corrente de compra de juncos para Malaca, que daria origem a uma rota de duas semanas, com escala, para carregamento de pimenta no porto de Pacém, ilha de Samatra.

    Passaram a ser construídas em Martavão, a partir de então, inúmeras dessas embarcações que seriam escoadas para Malaca, de maneira que esta pudesse responder de forma eficiente às intensas relações marítimas que mantinha com vários portos da Ásia e da Insulíndia. Por vezes, eram os malaqueiros que rumavam a Pegu em busca de juncos; outras, eram os pegus que se dirigiam para Malaca, onde os vendiam depois de saldado o trato.

    Na sua Peregrinação, Fernão Mendes Pinto refere-nos as riquezas da Birmânia, chamariz para mercadores portugueses, que ali demandavam a partir de Malaca, em busca das afamadas madeiras, cereais, laca e pedras preciosas, como os rubis ou as safiras, entre tantos outros produtos, e visitavam no processo o arquipélago de Mergui, as cidades de Tavoy, Sirião, Cosmim, Akyab, tornando-se aliados do rei de Pegu. Chegaram acompanhados pelos respectivos capelões, e assim se foi instalando o cristianismo na região.

    Estabelecido em Martavão, o feitor português Duarte Peçanha de Alenquer acabaria por bater em retirada, após escaramuças com a população local e os portugueses aí residentes. Eram as primeiras manifestações do poder dos lançados ou homiziados, que em toda aquela região comerciavam por conta própria e que desde sempre ofereceram resistência à tentativa monopolizadora do Estado da Índia.

    Fossem eles mercadores ou soldados, teriam um papel fundamental na formação política da Birmânia, nomeadamente na conquista de Pegu, em 1598, pelas forças aliadas birmanesas dos reinos de Tangu e de Arracão.

    Em 1519, na sequência de um novo tratado de paz e comércio, assinado por António Correia, representante do rei português, e o soberano de Pegu, as trocas intensificar-se-iam ainda mais. De acordo com os relatos de Faria de Sousa, na sua Ásia Portuguesa, as relações comerciais entre Portugal e os reinos de Ava e Pegu expandiram-se de tal maneira que, por volta de 1556, se encontravam já “ao serviço do rei Bayinnaung mais de um milhar de soldados e marinheiros portugueses sob as ordens de António Ferreira de Braganza”.

    Em alguns dos capítulos da Peregrinação, Mendes Pinto relata-nos vários episódios envolvendo estes mercenários e cita até o nome de muitos deles. Ele próprio exercia na altura a função de mercenário e, ao chegar ao porto de Cosmim, após uma atribulada travessia do país, deparou com uma pequena colónia de católicos, precisamente o resultado dos casamentos inter-raciais, entretanto efectuados pelos soldados e mercadores portugueses ali estabelecidos.

    Curiosamente, o primeiro religioso a pregar entre os birmaneses era um franciscano francês, Pierre Bonfer, capelão dos marinheiros e comerciantes lusos, de 1554 a 1557, em Sirião, à época, o principal porto da região. Escusado será dizer que as pioneiras tentativas de missionação caíram em saco roto.

    Esse porto, na embocadura do rio Irrauadi, frente a Yangon, ficaria para sempre ligado ao nome de Portugal e dos portugueses, graças ao controverso desempenho de um aventureiro chamado Filipe de Brito, que, de 1600 a 1613, fez o que muito bem lhe apeteceu em Sirião e na vizinha zona costeira. Brito tinha absoluto poder sobre a região e seus habitantes, tendo sido sob a sua protecção e auspícios que os capelões jesuítas puderam dar início ao processo de “evangelização entre os gentios”, como se dizia então.

    Filipe de Brito não foi o único, mas tratou-se seguramente do mais famoso dos lusos aventureiros que pululavam naquela e noutras regiões da Ásia.

    Os descendentes desses soldados portugueses, que na época de seiscentos lutaram ao lado dos soberanos de Ava e do Pegu, ou que faziam parte do pequeno exército de Filipe de Brito, ou do seu companheiro de armas, Salvador Ribeiro de Sousa, senhores feudais em terras do Oriente, ambos empossados com o título de «rei do Pegu», são hoje conhecidos em Myanmar como bayingyis.

    O legado de Filipe de Brito

    Gerir os destinos da feitoria do Sirião foi a recompensa obtida pela participação de Brito (ao serviço do soberano de Arracão, reino situado na costa do golfo de Bengala) na conquista do Pegu, facto histórico que viria a ser retratado num mural de um relicário contíguo ao templo Ananda, na cidade de Bagan, e que nos mostra Brito e companheiros a bordo de juncos.

    No entanto, o militar português, insatisfeito com o seu quinhão, da feitoria fez fortaleza – “começando no ano de 1599 por uma tranqueira de madeira, no ano de 1602 o fez de pedra e com muita artilharia e munições a pôs em estado para se poder defender de todos os inimigos”, como escreve o cronista Bocarro – e, em revolta aberta contra Arracão, não só se assenhorou da zona do delta e da sua população, como tentou apoderar-se dos portos de mar de Cosmim e Martavão, locais onde projectara erguer fortalezas.

    Assegurar a posse dessa zona estratégica equivalia à possibilidade de controlar toda a região, como, de facto, o fizeram os portugueses. Filipe de Brito soube conquistar também a simpatia dos soberanos de etnia mon; preocupando-se em povoar as terras ermas, ofereceu-as depois, isentas de impostos, aos habitantes.

    Assim, em redor da fortaleza foi crescendo a povoação. Em Outubro de 1602, haveria no Sirião, sob guarida portuguesa, entre catorze a quinze mil pessoas.

    Originários de uma região que se estende ao longo do golfo de Martavão, delimitada a leste por uma cadeia montanhosa, os mon acabariam, ao longo da sua história, por ser absorvidos pelos povos vizinhos, fossem eles birmanes ou siameses.

    Porém, curiosamente, não só a cultura mon sobreviveria a toda essa absorção, como acabaria por moldar a dos povos invasores. Foi de Thaton, antiga capital mon, que partiu o budismo para, em Bagan, se tornar a religião do império.

    Fiel a uma estratégia previamente delineada, e uma vez assegurada a aliança com os mon, Filipe de Brito de Nicote tratou logo de estabelecer parceria com Nat shin Naung, rei do Tangu, familiar e rival do de Ava, pois pretendia utilizar esse reino como trampolim para o interior, de onde sabia virem as riquezas que se comerciavam nos portos do Pegu, em Arracão e na costa sul.

    Situado na zona limítrofe entre a Baixa e a Alta Birmânia, o reino de Tangu constituía um empecilho aos desejos de domínio do rei de Ava, que tencionava avançar também sobre o Sirião. A relação de Brito com Nat Shin Naung era de tal forma próxima que, alegadamente, este ter-se-ia convertido ao cristianismo, chegando mesmo a receber o baptismo.

    Uns consideravam-nos “irmãos de sangue”; outros, simples cunhados, pois Brito de Nicote viria a casar-se com a irmã do birmanês, que, depois de convertida, adoptaria o nome de dona Maria de Saldanha.

    Verdadeiro “lançado”, senhor do seu destino, Filipe de Brito sonhava com a criação de um estado equivalente ao Estado da Índia, mas no Sudeste asiático. O reino de Ava, porém, antecipou-se, ocupando Tangu em 1609.

    Por solicitação do cunhado destronado, Brito marchou sobre a cidade, resgatou Nat Shin Naung, fez o devido saque e refugiou-se em Sirião. Furibundo, Anauk-hpet-lung, rei de Ava, retaliaria, conquistando, após prolongado cerco, o estabelecimento português em 1613 e pondo assim fim ao reinado do capitão.

    Acusados de corruptores da religião, os dois amigos morreriam por ordem de Anauk-hpet-lung nesse mesmo ano. A Nat Shin Naung, abriram-lhe o peito; ao português coube a cruel morte por empalação, tendo passado “três dias em agonia antes de perecer”, como relatam as crónicas da época.

    Faria de Sousa conta-nos que não era intenção inicial do monarca avanês poupar a vida aos habitantes de sirião, mas que, “depois de acalmado, decidiu enviá-los para norte, para Ava, como escravos”. Um trajecto de mais de setecentos quilómetros, percorrido a pé pelos seguidores de Filipe de Brito, que, nas palavras do cronista, “eram constituídos por portugueses, euro-asiáticos, negros e malabares”. Totalizavam alguns milhares, entre os quais apenas quatrocentos seriam inteiramente portugueses.

    Este quantitativo é, no entanto, fortemente contestado por quem se debruça com mais atenção sobre o tema em causa. Ao que consta, o número de portugueses seria bem mais elevado, sendo que, nessa sua penosa jornada, tiveram o apoio moral e a companhia dos franciscanos Gonçalo Machado e Manuel da Fonseca. este último terá enviado uma carta, datada de 26 de Dezembro de 1616, ao vice-rei de Goa, relatando as dificuldades pelas quais passaram os prisioneiros nessa jornada.

    Em 1635, partiria para Ava o dominicano e lisboeta Agostinho de Jesus, ao saber que ali se encontravam quatro mil cativos, desprovidos de qualquer assistência espiritual.

    A esse respeito, relatam as crónicas o seguinte: “Se pôs a caminho daquela cidade, em que gastou três meses pela Ganga acima, sujeitando-se ao rigor da mesma prisão por acompanhar os cristãos nos seus trabalhos, administrar-lhes a consolação de que careciam, e com eles esteve cumprindo no mesmo trabalho muitos anos, nos que ia também tirou da sua cegueira a muitos gentios, e conseguida a liberdade passou aos reinos de Bengala.”

    A comunidade cristã ter-se-ia, entretanto, multiplicado. Para prevenir uma proliferação excessiva, o rei Tahlun Min, irmão de Anauk-hpet-lung, entretanto assassinado pelo próprio filho, seleccionara os mais dotados na arte bélica e integrara-os na sua guarda pessoal, exilando os restantes para a povoação de Preinma, na margem leste do rio Chindwin, afluente do Irrauadi.

    Daí, seriam enviados para o vale do Mu, onde fundaram oito aldeias, sendo autorizados a praticar livremente o seu culto. Trabalhavam as terras livres de impostos, sendo requisitados para o exército em tempo de guerra.

    O cronista António Bocarro refere, a propósito, que “ficaram cativos d’el rei e foram postos em aldeias ou espalhados pelo reino. Como cativos eram invioláveis, padecendo o único mal de não poderem sair do país”. Incorporados em unidades militares hereditárias de elite, constituíram até ao fim do século XVII a base da artilharia do II império Tangu.

    Mas Agostinho de Jesus e Gonçalo Machado foram excepção à regra, pois o Estado da Índia ignorou sempre os insistentes apelos no sentido de serem enviados padres para o interior, ficando a comunidade irremediavelmente abandonada à sua sorte durante quase meio século.

    Seriam os padres barnabitas italianos quem colmataria a lacuna e estruturaria o catolicismo, fundando escolas, onde se ensinava, para além do português, o latim e o italiano. No processo, criaram tipografias, onde eram impressas gramáticas, compêndios de história e dicionários, entre os quais um dicionário de latim-português-birmanês, ao mesmo tempo que faziam constantes pedidos para que da Europa lhes enviassem livros em português.

    Graças aos barnabitas, a nossa língua foi uma realidade na Birmânia até ao final do século XIX, tendo, a partir de então, caído no total esquecimento. Sabe-se também que os portugueses continuaram a gozar de um estatuto privilegiado junto da corte de Ava, graças a relatos de enviados europeus, que, por exemplo, mencionavam a presença do armador Simão de Vargas, “que falava fluentemente o birmanês e o siamês”, e de António Camarata, chefe da guarda-real, que “tinha autorização para andar armado na presença do rei”.

    Fruto do trabalho dos barnabitas, são recordados ainda hoje ilustres filhos da terra, como Ambrósio de Rosário, que em Roma foi cirurgião reputado; ou o padre George d’Cruz, responsável pela construção de um colégio e uma tipografia em Cosmim; ou ainda Inácio de Brito, o primeiro barnabita birmanês, poliglota, médico, escritor e, sobretudo, músico. Foram inúmeros os hinos religiosos que compôs e que até muito recentemente se cantavam, em português, nas igrejas de todo o país.

    Figura quase mítica, Filipe de Brito passaria para os anais portugueses e birmaneses (onde surge sob a designação Nga Zinga ou Kala), ora como herói, ora como traidor. O retrato pela negativa deve-se, quase sempre, ao seu procedimento hostil em relação ao culto oficial do império birmane.

    No pagode de Maha Kalyani, na cidade de Bago (antiga Pegu), por exemplo, existe ainda uma sala de ordenação construída em 1476 e que, em 1599, durante o ataque à cidade, o capitão português mandou queimar. Esta foi a primeira de outras quatro centenas de salas de ordenação similares disseminadas por todo o país, com base em cópias de plantas trazidas do Ceilão.

    Se era conflituosa a relação de Brito com a hierarquia budista, com a cristã revelou-se cordialíssima, representada aqui pela Companhia de Jesus, junto da qual o renegado gozava de grande prestígio, pois dera aos religiosos terra numa das ilhas do delta. Chegariam posteriormente dominicanos, agostinhos e franciscanos.

    O comportamento de ambas as partes – capitão e missionários – interferiria irremediavelmente na vida da região, do país e até na política seguida pelo Estado da Índia, de modo que este não só reconheceu os feitos do capitão, como encorajou pobres, renegados e aventureiros a procurarem refúgio em sirião.

    Nesse contexto, Filipe de Brito mandou erguer no interior da fortaleza a igreja de Nossa Senhora do Monte, acerca da qual existem raros registos, mas que se sabe ter sido incendiada pelos exércitos conjuntos de Arracão e de Tangu, a 11 de Abril de 1607.

    Com a derrocada do feudo do português, o catolicismo sofreu um enorme revés, tendo a perpetuação do culto ficado entregue a religiosos goeses, que não sabiam birmanês e apenas pregavam em português-patuá, facto que só os hostilizava junto da população.

    Os primeiros missionários europeus que regressaram ao Sirião – dois franceses, em 1689 – ainda chegaram a abrir um dispensário, mas, acusados de espionagem, foram afogados no Irrauadi. A imagem dos representantes do clero que entretanto ali se mantinham, sob a supervisão da diocese de Madras, na Índia, não era a melhor, pelo menos se dermos credibilidade a relatos como o que se segue, feito por um navegador inglês do início do século XVIII eivado do puritanismo que caracterizava esse povo: “Há aqui cristãos de origem portuguesa e alguns arménios. Os portugueses possuem uma igreja, mas as vidas escandalosas que os padres levam tornam-nos desprezíveis aos olhos do povo.”

    Conclusão

    Os bayingyis de hoje constituem uma das várias comunidades católicas minoritárias (a maioria delas de origem portuguesa) que podemos encontrar do norte ao sul, do leste ao oeste desse enorme país maioritariamente budista que é o Myanmar, a antiga Birmânia.

    Os bayingyis habitam treze aldeias no norte do país, disseminadas por uma vasta planície entre os rios Chindwin e Mu, e subsistem sobretudo da agricultura. Distinguem-se dos restantes birmaneses pelos seus óbvios traços caucasianos – narizes proeminentes, olhos claros e profundos, maior pelugem no corpo, etc. –, muito embora o português tenha caído em desuso e os seus nomes e apelidos foram esquecidos (subsistem, estes últimos, nas placas funerárias e nos registos paroquiais).

    A prática do catolicismo é, sem dúvida, o traço mais distintivo dos bayingyis. Seguem o calendário litúrgico, praticam muitas das nossas tradições e mantêm aceso um enorme orgulho das suas raízes portuguesas.  

    De facto, como se comprova pelo cobarde silêncio que por aí paira, não os merecemos.

  • Ordem dos Médicos sentenciada pelo Tribunal Administrativo a entregar ao PÁGINA UM os pareceres escondidos por Miguel Guimarães

    Ordem dos Médicos sentenciada pelo Tribunal Administrativo a entregar ao PÁGINA UM os pareceres escondidos por Miguel Guimarães

    É o segundo processo de intimação ganho nos últimos 10 dias pelo PÁGINA UM. A Ordem dos Médicos recusava desde Outubro do ano passado a revelar todos os pareceres técnicos dos seus órgãos colegiais, alegando que alguns continham matéria reservada. Tem agora 10 dias para os entregar. No âmbito deste processo, o bastonário Miguel Guimarães também acusou o director do PÁGINA UM de litigância de má-fé. Também aqui perdeu. Os processos do PÁGINA UM têm sido apoiadas pelo seu FUNDO JURÍDICO, suportado pelos leitores.


    A Ordem dos Médicos foi sentenciada hoje pelo Tribunal Administrativo de Lisboa a disponibilizar ao director do PÁGINA UM, no prazo de 10 dias, “o acesso à totalidade dos pareceres técnicos concedidos ao longo de 2020 e 2021, emitidos pelos seus Colégios, Secções dos Colégios e demais órgãos técnicos e consultivos, homologados pelo Conselho Nacional em processo administrativo, expurgados da informação relativa à matéria reservada”.

    A associação profissional que tem funções públicas, liderada pelo urologista Miguel Guimarães, foi também condenada a pagar as custas processuais.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, queria ver o director do PÁGINA UM condenado por “litigância de má-fé”.

    O processo pode ainda ter recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul, com efeitos suspensivos, mas cai já por terra a pretensão da Ordem dos Médicos que pagou a um gabinete de advogados para tentar convencer o Tribunal Administrativo a condenar o director do PÁGINA UM por “litigância de má-fé”, tendo mesmo solicitado que este fosse “condenado em multa e indemnização”.

    Em causa está um pedido feito em 29 de Outubro do ano passado – quando o PÁGINA UM estava a preparar o seu arranque – para que a Ordem dos Médicos concedesse o acesso aos pareceres emitidos durante a pandemia, uma vez que existiam informações de o bastonário não estar a revelar todos aqueles que iam sendo elaborados e aprovados.

    A Ordem dos Médicos recusou revelar aqueles que, segundo os seus serviços, continham “dados nominativos”, mas nunca se disponibilizou a identificar quantos e quais eram esses pareceres nem a expurgar as partes que contivessem matéria reservada, i.e., identificação concreta de pessoas, o que pode ser feita através de uma simples rasura.

    Primeira página da sentença que condena a Ordem dos Médicos a entregar pareceres escondidos.

    Mesmo após um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) em 20 de Janeiro passado, a Ordem dos Médicos manteve-se irredutível em disponibilizar os pareceres, apenas reagindo após um novo requerimento do PÁGINA UM em 27 de Abril passado.

    Apesar de o gabinete de Miguel Guimarães ter então, finalmente, enviado uma lista de várias dezenas de pareceres, mas nem todos, confessando que existiam pareceres que não divulgava por estarem sob reserva.

    Contudo, não esclarecia quantos nem sobre o que versavam esses pareceres sob reserva nem quais os motivos para não serem expurgadas essas partes para posterior disponibilização.

    O juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa que analisou o processo de intimação veio agora dar razão ao PÁGINA UM, defendendo que “para a recusa de acesso a documento (…) não basta a mera alegação, vaga e genérica, desprovida de qualquer concretização factual, mas antes sendo exigido que a entidade sujeita ao dever de informação concretize, de modo fundamentado, que os documentos contêm segredos comerciais, industriais e dados internos da vida da empresa, visto estar em causa a restrição a um direito com assento constitucional”.

    A sentença refere ainda que a Ordem dos Médicos apenas poderia recusar o acesso, caso a caso, de alguns dos pareceres se os identificasse e justificasse “os concretos motivos” pelos quais continham matéria reservada, algo que o gabinete de Miguel Guimarães nunca fez. O juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa diz mesmo que agir como a Ordem dos Médicos fez é “de uma opacidade que não se mostra compaginável com o princípio da administração aberta constitucionalmente plasmado.”

    E, em consequência, determinou também a “correlativa improcedência do pedido de condenação do Requerente [director do PÁGINA UM] por litigância de má-fé”, frustrando assim os intentos de Miguel Guimarães em ver punida a liberdade de investigação jornalística num país democrático.

    Recorde-se que corre ainda outro processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa contra a Ordem dos Médicos, e que envolve também a Ordem dos Farmacêuticos, por denegação do acesso ao PÁGINA UM dos documentos operacionais e contabilísticos da campanha “Todos por Quem Cuida”.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso.

  • Atletas e treinadores de judo não-vacinados pagam mais por participação na Taça da Europa de Seniores em Coimbra

    Atletas e treinadores de judo não-vacinados pagam mais por participação na Taça da Europa de Seniores em Coimbra

    A Federação Portuguesa de Judo (FPJ) enviou ontem uma norma para treinadores e atletas impondo uma discriminação entre quem se vacinou e não se vacinou contra a covid-19, que se reflecte no custo da pernoita em dois hotéis de Coimbra. A justificação para a diferença está, segundo a FPJ, nas diferenças de preços entre testes de antigénio (para quem foi vacinado) e PCR (para não-vacinados), algo que não encontra respaldo na lei portuguesa nem nas actuais normas da Federação Internacional de Judo. Hotéis garantem que nada têm a ver com esta política discriminatória.


    Para participarem na Taça da Europa de Seniores, que se realizará em Coimbra nos próximos dias 27 e 28 de Agosto, a Federação Portuguesa de Judo (FPJ) está a exigir que atletas e treinadores não-vacinados paguem em certos casos mais do dobro pela pernoita em dois hotéis da cidade em comparação com os vacinados.

    A discriminação explícita de preços consta da circular nº 117/22, assinada ontem pelo próprio presidente da FPJ, Jorge Fernandes, onde, além de se indicarem normas de participação, se impõe a obrigatoriedade de envio do certificado de vacinação ou de recuperação por parte de atletas e treinadores, de modo a assim permitir destrinçar depois o tipo de exigências à chegada para a competição. Estar ou não vacinado tem repercussões no preço da estadia nos dois hotéis escolhidos oficialmente pela FPJ: Villa Galé e D. Luís.

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    Com efeito, embora a todos os atletas e respectivos treinadores seja exigido um teste PCR negativo feito há menos de 48 horas antes da chegada ao hotel oficial, a FPJ impõe depois uma discriminação imediata entre vacinados (incluindo recuperados há menos de seis meses) e não-vacinados (incluindo aqueles sem esquema vacinal completo).

    Para os primeiros, a FPJ diz que têm de fazer ainda “um teste antigénio à chegada ao hotel oficial”, enquanto os segundos têm de fazer “um teste PCR”. Os custos são distintos: os testes de antigénio, se forem realizados sem credencial do SNS (nesse caso são gratuitos), podem ter um preço de 18 euros (valor cobrado pela Cruz Vermelha Portuguesa) e os PCR rápidos (com resultados em 30 minutos) chegam aos 70 euros. Ou seja, uma diferença de 52 euros.

    Contudo, saliente-se que aquilo que distingue os testes PCR e de antigénio residente são a melhor sensibilidade e especificidade dos primeiros – ou seja, teoricamente, dão menos falsos positivos e falsos negativos. Deste modo, não existe nenhum argumento científico que permita afirmar que um teste de antigénio seja o método mais adequado para uma pessoa vacinada, e que, para se detectar uma eventual infecção de uma não-vacinada, terá que se usar sempre um teste PCR.

    Extracto da circular nº 117/22 da Federação Portuguesa de Judo impondo preços distintos na estadia para atletas e treinadores em função do estado vacinal.

    O diferencial de preços nos testes exigidos aos dois grupos implica assim que a estadia tenha preços distintos. Por exemplo, um quarto individual para um atleta no Vila Galé custará 117 euros para um atleta vacinado e 190 euros para um atleta não-vacinado – ou seja, uma diferença de 73 euros. A mesma diferença (73 euros) se observa no Hotel D. Luís entre vacinados e não-vacinados. Ou seja, a preços de mercado, mesmo que houvesse necessidade de aplicar métodos distintos, os não-vacinados estariam a pagar sempre mais.

    Miguel Galhardas, responsável da comunicação da FPJ, alega que os valores mais elevados pela pernoita dos atletas e treinadores “não é uma discriminação”, devendo-se apenas “as normas exigidas pelas organizações internacionais de judo”, designadamente a European Judo Union (EJU) e a Internacional Judo Federation (IJF).

    Sucede, porém, que essas normas são já conflituantes. Com efeito, as normas da EJU prevêem um tratamento discriminatório aos não-vacinados, exigindo que façam um teste PCR (ao custo de 80 euros), enquanto que ao vacinados exige apenas um teste de antigénio, mesmo assim a um preço bem acima do mercado (40 euros). Já as normas do IJF não fazem discriminação, exigindo testes PCR para atletas e treinadores, independentemente do estado vacinal.

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    No meio desta política discriminatória, os dois hotéis escolhidos pela FPJ mostram-se surpreendidos. Em declarações ao PÁGINA UM, o gerente do Hotel D. Luís em Coimbra diz que nunca houve qualquer política de discriminação de preços com base na vacinação contra a covid-19. “Para nós as pessoas são todas iguais, não fazemos discriminação”, garante Luís Ribeiro da Silva, explicando ainda que “se um hóspede estiver doente, o que fazemos é apenas levar-lhe a comida ao quarto, mas até nessas circunstâncias os preços são iguais “.

    Por sua vez, o Hotel Vila Galé Coimbra esclarece também que os preços praticados pela empresa são sempre idênticos para vacinados e não-vacinados. “Não fazemos preços diferentes nem estamos a perguntar às pessoas se têm a vacina ou se não têm”, frisou André Pereirinha, assistente de direcção daquela unidade hoteleira.

  • Partido Socialista está em falência técnica desde 2013

    Partido Socialista está em falência técnica desde 2013

    Mesmo tendo recebido 52 milhões de euros de subvenção pública nos últimos 10 anos, o Partido Socialista está com os seus capitais próprios negativos há nove ininterruptos anos. Desde que António Costa assumiu a liderança do país, a situação financeira do seu partido tem melhorado – como sempre que o PS está no Governo –, mas mesmo assim vai precisar de mais seis anos no poder para o partido da rosa sair do vermelho.


    O Partido Socialista (PS) – que governa ininterruptamente Portugal desde Novembro de 2015 – apresenta capitais próprios negativos desde 2013, apesar de ter recebido mais de 52 milhões de euros na última década de subvenção pública do Estado, que constitui actualmente cerca de três quartos das suas receitas.

    Esta é a principal conclusão de uma análise financeira do PÁGINA UM às contas dos partidos políticos desde 2003, que se encontram arquivadas na Entidade das Contas e Financiamentos Políticos. Nas próximas semanas serão apresentadas análises similares sobre os principais partidos políticos.

    António Costa, secretário-geral do Partido Socialista e primeiro-ministro de Portugal.

    Em termos práticos, esta situação financeira do partido cujo secretário-geral é o primeiro-ministro português significa que se encontra em falência técnica há já nove anos, porquanto o valor do passivo é superior aos activos desde 2013.

    Numa acepção economico-financeira não significa que esteja em via de ficar insolvente, ou de falir, até porque desde 2016 os seus resultados positivos têm sido positivos, embora ainda muito insuficientes para tapar o “buraco” onde ainda se encontra. De facto, o PS só não abre falência por via dos contínuos financiamentos externos, de instituições bancárias, e do protelamento de pagamentos.

    Na verdade, pese embora os lucros dos últimos anos, desde 2013 o passivo do PS tem estado quase sempre a rondar os 20 milhões de euros. Esta é sobretudo ainda uma herança de 2013. Então na oposição ao Governo de Pedro Passos Coelho, o PS ficou endividado de forma repentina, tendo o seu passivo pulado de cerca de 8,6 milhões de euros para 29 milhões, sobretudo por causa da degradação da rubrica relativa às estruturas partidárias e campanhas eleitorais. Nunca mais recuperou a situação anterior, contrariando o que sucedera em 2009. Então em pleno mandato de José Sócrates, o PS subiu o seu passivo de 3,8 milhões de euros em 2008 para os 35,8 milhões em 2009, mas desceria depois, no ano seguinte para os 7,1 milhões.

    Capital próprio (em euros) do Partido Socialista desde 2003. Fonte: Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

    Com variações ao longo dos últimos nove anos, o seu passivo nunca baixou dos 18 milhões de euros, situando-se no final de 2021 em quase 22,9 milhões, quase mais 3 milhões do que em 2020.

    Uma parte considerável da degradação das contas, vem assim directamente do elevado passivo, devido ao pagamento de juros. Por exemplo, no ano de 2012 – antes do endividamento de 2013 – o PS gastou um pouco menos de 220 mil euros em juros e gastos similares. No ano passado chegou aos 410 mil euros.

    No entanto, a situação financeira até tem estado em recuperação desde que o PS retomou as rédeas do poder, estando agora com menores custos com pessoal do que quando estava na oposição, o que se compreende por ser habitual as estruturas partidárias se encaixarem no aparelho do Estado. Por exemplo, em 2013, na oposição, os gastos com pessoal foi de quase 2,5 milhões de euros, enquanto no ano passado (no poder) se cifraram apenas nos 1,8 milhões de euros.

    Estar no Governo tem sido, aliás, a tábua de salvação das contas do PS. Além da redução nos custos de pessoal, também os fornecimentos e serviços externos diminuíram. Em 2012 e 2013 – em pleno mandato de Passos Coelho –, o PS gastou, em cada um desses anos, cerca de 4,3 milhões de euros nessa rubrica. Nos dois mais recentes anos, no poder, as contas para essa rubrica situam-se em redor dos 3 milhões de euros.

    Passivo (em euros) do Partido Socialista desde 2002. Fonte: Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

    Mesmo se os actos eleitorais – que coincidem sempre com um aumento significativo de donativos mas também de custos – não são necessariamente um bom negócio para os partidos, o day after tem sido importante no caso do PS: poder significa desafogo financeiro; oposição resulta em consequente aflição financeira nos anos seguintes. Até porque as subvenções estatais estão associadas a esta relevante variável.

    Com efeito, analisando os resultados líquidos desde 2003, observa-se que nos 15 anos em que o PS esteve no poder em grande parte ou na totalidade do ano económico (entre 2005 e 2010, e desde 2016), apenas em 2009 registou prejuízo (quase 2,2 milhões de euros). Nos outros, os lucros variaram entre os 264 mil euros (em 2018) e os 2,3 milhões (em 2006).

    Em todo o caso, os seis anos económicos completos de José Sócrates na liderança do PS foram em média melhores do que os seis anos de António Costa: 1,1 milhões de euros contra 468 mil euros. No entanto, Sócrates teve um ano económico completo de prejuízo (2006) e deixou uma herança pesada quando em Junho de 2011 “entregou” o poder ao PSD. Nesse ano, o PS registou um prejuízo de quase 3,2 milhões de euros – mesmo assim menor do que os de 2012 e 2014, quando António José Seguro foi líder.

    Resultados líquidos (em euros) do Partido Socialista desde 2002. Fonte: Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.

    Em contraste, nos anos económicos (ou na maior parte dos meses) em que o PS se encontrava no estatuto de oposição, os resultados financeiros foram, geralmente um desastre: apenas em 2012 não ficaram no vermelho – com um lucro de quase 590 mil euros – mas depois do “desastre” de 3,1 milhões de euros de prejuízo no ano anterior, que obrigou, em consequência, a um corte para quase metade nas despesas com fornecimentos e serviços externos.

    Mesmo assim, ao ritmo em que os lucros dos últimos seis anos – uma média anual de 469 mil euros –, o PS vai precisar de mais seis anos para que os capitais próprios fiquem novamente positivos. Mas têm de ser sempre seis anos de poder, porque na oposição a situação tende a piorar, como mostra a sua História.

  • Expurgo foi selectivo e justificado por “análise interna”. Ministra da Saúde garante não ter dado ordens

    Expurgo foi selectivo e justificado por “análise interna”. Ministra da Saúde garante não ter dado ordens

    O PÁGINA UM quis consultar as ordens (políticas ou técnicas) que determinaram a suspensão da base de dados pública que permitia avaliar o desempenho do Serviço Nacional de Saúde (SNS) durante a pandemia, incluindo sobre a covid-19. Marta Temido diz que não deu ordens. E a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) justificou hoje o acto de expurgo por razões de “análise interna” mas sem indicar motivos nem apontar outra qualquer base de dados com processo similar.


    O conselho directivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) – presidido por Victor Herdeiro, nomeado em Março do ano passado por Marta Temido e pelo então ministro das Finanças, João Leão – assume que expurgou a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar do Portal da Transparência do Serviço Nacional de Saúde.

    A base de dados permitiu ao PÁGINA UM elaborar um dossier de investigação jornalística, que já contava com nove artigos, publicados entre 13 de Maio e 23 de Junho. O seu expurgo impede o acesso a dados mais actuais, posteriores a Janeiro deste ano, impossibilitando assim uma melhor avaliação do desempenho do SNS e das políticas públicas do actual Governo.

    Marta Temido, ministra da Saúde, garante não ter dado ordens para expurgar base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, mas beneficia do desaparecimento daquela fonte de informação.

    Esta base de dados foi criada em 2018, sendo um sistema de informação de suporte à monitorização do desempenho dos hospitais do SNS.

    Em concreto, este sistema recolhe dados administrativos, incluindo codificação clínica, permitindo apurar a evolução mensal, desde Janeiro de 2017, de episódios de internamentos, ambulatório e óbitos por capítulo de diagnóstico (por grande grupo de doença) em cada hospital ou centro hospitalar, por grupo etário e sexo. Tem também a particularidade de conseguir identificar a evolução dos internamentos e desfechos da covid-19, uma vez que, neste caso concreto, esta é a única doença do grupo denominado “Códigos para fins especiais”.

    A assumpção pela ACSS da autoria da retirada daquela base de dados do Portal da Transparência do SNS surgiu hoje, após a Secretaria-Geral do Ministério da Saúde ter garantido ao PÁGINA UM “não [ter] havido indicação, ordem ou despacho por parte da Sra. Ministra da Saúde [Marta Temido] que determine a inclusão ou supressão de quaisquer dados naquele Portal e, em concreto, referentes à morbilidade e mortalidade hospitalar”.

    Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, entretanto expurgada.

    O PÁGINA UM decidiu solicitar, no passado dia 22 de Junho, o Ministério da Saúde, a Direcção-Geral da Saúde (DGS), os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e a ACSS que disponibilizasse a consulta “da ordem emanada – ou ordens emanadas – que determin[aram], em data ignorada (…) neste segundo trimestre de 2022, a exclusão (ou retirada) na Plataforma da Transparência do SNS da base de dados relativa à Morbilidade e Mortalidade Hospitalar”.

    Apenas hoje, último dia do prazo determinado pela Lei do Acesso aos Documentos Administrativos para uma resposta, houve uma reacção do Ministério da Saúde e da SPMS – que remeteu responsabilidades pelo expurgo à ACSS.

    Confrontado com a posição do Ministério da Saúde – que assim garante não ter ocorrido qualquer ordem política para a retirada de dados comprometedores sobre o desempenho do SNS durante a pandemia –, o gabinete de comunicação da entidade presidida por Victor Herdeiro alega que “desde o início de 2022, a informação disponibilizada neste Portal [da Transparência], relativamente aos indicadores que estão sob a responsabilidade da ACSS, incluindo os dados da morbilidade hospitalar, está a ser submetida a um processo de análise interna”.

    A mesma fonte oficial refere que “foi este processo que ditou a interrupção temporária deste fluxo informativo sendo que, uma vez terminada a referida análise, será expectável que os dados em causa voltem a estar disponíveis”.

    A alegação da ACSS é, contudo, falsa. Na verdade, esta entidade – que gere cerca de seis dezenas de entre as 150 base de dados do Portal da Transparência do SNS – apenas retirou a informação da morbilidade e mortalidade hospitalar do sistema.

    Ou seja, o expurgo – não assumidamente feito por razões políticas – da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar foi único, e ocorreu imediatamente após os recentes artigos de investigação do PÁGINA UM que usava dados até Janeiro deste ano.

    O PÁGINA UM insistiu junto do gabinete de Victor Herdeiro para que indicasse uma outra qualquer base de dados sob sua administração que tenha sido retirada, desde a sua nomeação, para similar “processo de análise interna”. Não houve resposta nem foi sequer indicado um prazo para a reposição dos dados no Portal da Transparência.

    Printscreen de apresentação da base de dados expurgada pela ACSS (imagem arquivada). Fonte: Internet Archive.

    Saliente-se que a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar foi disponibilizado ao público em Março de 2018, e esteve sempre disponível desde então no Portal da Transparência, sendo actualizado mensalmente com um deferimento de apenas cerca de três meses. Isso permitiu que em Maio deste ano já estivessem disponíveis os dados recolhidos entre Janeiro de 2017 e Janeiro de 2022.

    Caso a ACSS não disponibilize voluntariamente o documento administrativo que ordenou, fundamentadamente, o expurgo da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar – ou assuma que a ordem foi meramente oral –, o PÁGINA UM recorrerá ao Tribunal Administrativo com um processo de intimação.