Categoria: Exame

  • Relatório Rápido 52: Instituto Superior Técnico manipulou documentos enviados ao Tribunal Administrativo

    Relatório Rápido 52: Instituto Superior Técnico manipulou documentos enviados ao Tribunal Administrativo

    Mais um episódio caricato no processo de intimação do Instituto Superior Técnico que luta para não ceder relatório supostamente científico que causou alarme no Verão: a juíza fez hoje despacho para que seja enviado o original e não uma cópia com anotações a lápis. A manipulação do IST visaria convencer o tribunal de que se está perante um esboço, e não um relatório científico, mesmo se de duvidosa qualidade. Uma novidade deste despacho é que, finalmente, se sabe quantos relatórios o IST terá feito em articulação com a Ordem dos Médicos: 52. Se a sentença for inteiramente favorável ao PÁGINA UM, todos serão tornados públicos.


    A juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa, Telma Nogueira, ordenou hoje que o Instituto Superior Técnico lhe enviasse o relatório original sobre o impacte das festividades populares de Junho passado na incidência e mortalidade da covid-19 – cujas conclusões foram divulgadas pela Lusa e “viralizaram” na imprensa mainstream –, e não uma cópia manipulada com “anotações manuscritas a lápis”. 

    Este é o mais recente episódio de um inaudito processo de intimação que decorre naquele tribunal, por iniciativa do PÁGINA UM, após a recusa do presidente do IST, Rogério Colaço, em disponibilizar os dados estatísticos e o relatório escrito que serviram para a Lusa divulgar, em 28 de Julho passado, a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, enviou cópia manipulada ao Tribunal Administrativo. Foi hoje obrigado a enviar original sem qualquer anotação.

    Na verdade, como o PÁGINA UM destacou, naquele período observou uma tendência de redução significativa de casos positivos, pelo que surgiam assim dúvidas sobre o rigor científico daquele relatório feito por uma das mais prestigiadas faculdades públicas portuguesas em articulação com a Ordem dos Médicos.

    Em sede de processo em Tribunal Administrativo, o IST começou por afirmar que não divulgara qualquer relatório, e que apenas concebera um “esboço embrionário, consubstanciado num mero ensaio para um eventual relatório”. Com este expediente, Rogério Colaço e os outros investigadores daquela instituição universitária tentaram que juíza Telma Nogueira não concedesse direito de acesso ao PÁGINA UM, dado que a lei determina que um “esboço” não é considerado um documento administrativo.

    Além disso, o IST argumentava ainda que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Neste envelope, lacrado, o Instituto Superior Técnico enviou ao Tribunal Administrativo uma cópia do Relatório Rápido nº 52, mas com anotações a lápis, para dar a ideia que não estava concluído e que era um esboço. Juíza do processo exige agora envio do original.

    Porém, a juíza do processo de intimação decidiu analisar, pessoalmente, o conteúdo dos documentos em causa, o que foi feito esta semana pelo envelope lacrado com a classificação de confidencial.

    Através da leitura do despacho da juíza Telma Nogueira, denota-se que o IST tentou influenciar a decisão fazendo acrescentos à mão no documento enviado ao Tribunal Administrativo, para dar a ideia de que a versão impressa não era a final, e que se estaria perante um esboço.

    Com efeito, no seu despacho de hoje, a juíza ordena que se “notifique a Entidade demandada [IST] para, em cinco dias, juntar aos autos o original do Relatório Rápido nº 52 sem anotações manuscritas a lápis, em envelope lacrado, a entregar em mão no Tribunal dentro de outro envelope fechado ou a enviar via correio postal dentro de outro envelope fechado e a título confidencial”.

    Além dos sinais evidentes, independente do rigor científico, de se estar perante um verdadeiro relatório – daí a denominação Relatório Rápido n.º 52, pela primeira vez assumido pelo IST –, o despacho da juíza não deixa de ser revelador de uma certa incredulidade em redor deste processo, onde estão sobretudo em causa questões de semântica, nomeadamente sobre o que é um estudo, o que é um esboço e, agora, o que é o “Relatório Rápido nº 52”. Até porque a existência do relatório do IST foi confirmada pela direcção da agência noticiosa Lusa, e a notícia o cita, entre aspas, por sete vezes.

    Em todo o caso, mostra-se cada vez mais inquietante a postura do IST, como instituição universitária pública, por se manter firme numa postura obscurantista, recusando divulgar os dados em bruto e um relatório com impacte relevante – e que no Verão foi usado pela imprensa mainstream para criar alarme injustificado e eventualmente falso –, e tentando levar a crer que, em Julho passado, aquele não estava concluído, e que era apenas um esboço.

    Mas, mesmo que assim fosse, passaram entretanto quatro meses, entre Julho e Novembro. Quatro meses que seriam tempo mais do que suficiente para transformar esse alegado “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” num verdadeiro e conclusivo relatório. Quatro meses que, contudo, aparentemente, foram insuficientes para a equipa de cinco investigadores do IST, supervisionado pelo seu presidente, o catedrático Rogério Colaço.

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como mais tarde esclareceu.

    Independentemente da análise do Tribunal Administrativo de Lisboa sobre o enquadramento semântico do Relatório Rápido nº 52 (se é um relatório ou um esboço), saliente-se que o PÁGINA UM requereu ao IST, estando também para decisão do Tribunal Administrativo, os relatórios anteriores, elaborados em colaboração com a Ordem dos Médicos desde Junho de 2021.

    Como o IST não alegou, para nenhum dos outros 51, que se estava perante situações de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, tudo indica que pelo menos 51 relatórios serão disponibilizados, através de sentença, para uma avaliação independente da qualidade e rigor científico do IST durante a pandemia.   


    Citações (entre aspas) do Relatório Rápido nº 52 do Instituto Superior Técnico transcritas pela Lusa no take de 28 de Julho passado, que comprovam a existência de um relatório escrito, ou então estaremos perante uma “fraude” (transcrição de citações de um estudo inexistente). A Lusa recusou mostrar prova da existência do relatório, mas garante que existe. O PÁGINA UM apresenta as citações retiradas do artigo publicado pelo Diário de Noticias de 28 de Julho que transcreve o take da Lusa.

    1 – “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil

    2 – “não teriam impacto económico

    3 – “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida

    4 – “O efeito aqui é mais lento e menor do que o efeito das medidas gerais, pois afeta diretamente população mais jovem, mas leva a contágios em cascata que acabam por vitimar os mais suscetíveis a doença grave

    5 – “uma possível correlação com vagas de calor

    6 – “com tendência de atingirmos os valores mais baixos de 2022

    7 – “ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Ruas e debates civis tornam-se agora os (únicos) palcos na defesa dos direitos humanos

    Ruas e debates civis tornam-se agora os (únicos) palcos na defesa dos direitos humanos

    No espaço de 10 dias, Lisboa viu três concentrações e manifestações nas ruas em defesa dos direitos humanos, direitos civis e da democracia. Contestação contra as propostas de revisão constitucional levou a plataforma cívica Cidadania XXI a mobilizar-se em duas concentrações na capital, juntando mais de uma centena de pessoas. Já este Sábado, Lisboa juntou-se a muitas outras cidades do mundo numa Manifestação Mundial para os Direitos Humanos e Liberdade, com a presença de cerca de mais de uma centena e meia de pessoas.


    Estamos em plena Europa do século XXI, mais propriamente em 2022, mas não parece. A sociedade civil está a ter necessidade de regressar às ruas dos países ocidentais, em manifestações, para defesa dos direitos cívicos. Na Europa, berço da Democracia, incluindo Portugal. Duas concentrações em Lisboa, nas últimas duas semanas, são disso exemplo: uma contra as propostas de revisão constitucional; a outra, integrada na Manifestação Mundial pelos Direitos Humanos e a Liberdade (World Freedom Rally 2022). Ambas trouxeram às ruas não mais de duas centenas de pessoas; ainda poucas, por agora, mas as duas com muitas palavras de ordem em defesa dos direitos, liberdades e garantias, sempre com a democracia em pano de fundo.

    Mas além da manifestação e das concentrações, a sociedade civil mexe-se por outras vias. A plataforma cívica Cidadania XXI tem estado particularmente activa, tendo já feito chegar aos líderes dos dois maiores partidos políticos portugueses (PS e PSD) um manifesto/ petição intitulado Em Defesa da Liberdade da Constituição.

    Joana Amaral Dias, psicóloga, ex-deputada e activista, a discursar no dia 10 de Novembro numa concentração contra a revisão constitucional.

    Esta plataforma cívica é um movimento de cariz cívico que nasceu em 2020 e se notabilizou por diversas iniciativas de amplitude, sobretudo os debates denonimados Tertúlias da Junqueira, que reuniram notáveis da vida académica, médica, científica, jurídica e dos media para debater a censura e as muitas medidas ilegais e anticientíficas que foram adoptadas durante a pandemia. Além disso, organizaram uma grande manifestação no dia 25 de Abril de 2021 que desceu a Avenida da Liberdade, em plena pandemia.

    Na petição entregue a António Costa e Luís Montenegro, esta plataforma cívica manifesta “preocupação [com] o processo de Revisão Constitucional em curso e em particular a proposta que o Governo enviou à Assembleia da República do dia 9 de Novembro”.

    Salienta-se que, de entre as alterações propostas pelos dois principais partidos (que constituem maioria qualificada, ou seja, mais de dois terços dos deputados), está a possibilidade de detenção de um cidadão sem mandato judicial, algo que a Cidadania XXI considera uma “perigosa intenção” por “ficar aberta a possibilidade de um qualquer Governo prender um cidadão, com base em regras estipuladas por si, retirando a legitimidade e a autonomia fundamental dos Tribunais para decidir sobre os Direitos, Liberdades e Garantias”.

    António Jorge Nogueira, fundador e presidente da Plataforma Cívica – Cidadania XXI (à direita), entregou um manifesto contra a proposta de revisão constitucional ao primeiro-ministro, António Costa.

    Segundo esta plataforma cívica, com uma Constituição nos termos propostos, “estaremos perante um regime constitucional em que o Governo poderá exercer sobre os cidadãos o mesmo tipo de autoritarismo totalitário que actualmente vigora no regime chinês”.

    A possibilidade de detenção de cidadãos sem mandato judicial, apenas por ordem das autoridades sanitárias, surge após ter sido considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional os confinamentos forçados de cidadãos, a coberto de alegados riscos, durante a pandemia da covid-19. Visto que as detenções sem mandato judicial violaram a Constituição, o Governo decidiu assim aproveitar para propor uma alteração à Lei Fundamental do país.

    Vários juristas têm vindo, contudo, a alertar para os perigos desta revisão constitucional. O próprio bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, denunciou que, caso PS e PSD avancem com a aprovação desta revisão, “está em causa a supressão de direitos, de liberdades e de garantias”.

    Uma das concentrações contra a proposta de revisão da Constituição, em que participou a Cidadania XXI, juntou mais de uma centena de pessoas, durante a noite do passado dia 10 de Novembro, junto ao Hotel Epic Sana Marquês, onde decorreu o Conselho Nacional Extraordinário do PSD. A Cidadania XXI entregou a sua petição a alertar para os perigos levantados pelas propostas de revisão constitucional ao presidente do PSD, Luís Montenegro.

    António Jorge Nogueira, presidente da Cidadania XXI (à esquerda), entregou um manifesto contra as propostas de revisão constitucional ao presidente do PSD, Luís Montenegro.

    A plataforma cívica deslocou-se também à sede do PS, no Largo do Rato, entregando o mesmo documento ao primeiro-ministro e secretário-geral do PS, António Costa, e ao presidente do partido que sustenta o Governo, Carlos César. Este documento também será entregue ao Presidente da Assembleia da República, aos Grupos Parlamentares, ao Presidente da República, à Ordem dos Advogados, ao Conselho Superior da Magistratura “e a diversas outras instituições da sociedade portuguesa”, segundo António Jorge Nogueira.

    “Não nos podemos esquecer que durante dois anos o Presidente da República, o Governo e diversas instituições actuaram conscientemente e sistematicamente contra a Constituição, conforme já declarado 23 vezes por juízes do Tribunal Constitucional”, afirmou António Jorge Nogueira ao PÁGINA UM. Com este projecto de revisão da Constituição, “já não estamos em modo democrático”, lamentou.

    No âmbito destas iniciativas, a Cidadania XXI vai organizar ainda outros eventos públicos, onde se incluirá um novo ciclo de Tertúlias da Junqueira em torno do tema da defesa dos direitos, liberdades e garantias. A plataforma pretende também reunir com os diferentes grupos com assento parlamentar.

    Joana Amaral Dias, antiga deputada, psicóloga e activista, que marcou presença nas concentrações e na manifestação de sábado, tem sido uma acérrima crítica das posições de PS e PSD. “Repare-se que em nenhuma circunstância, mesmo que se reúnam dois terços dos deputados ou a totalidade dos parlamentares, é permitido alterar ou abolir esses mesmos direitos”, escreveu esta psicóloga em artigo de opinião no semanário O Novo. “O artigo 288.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) constitui uma barreira intransponível, bloqueia em absoluto qualquer tentativa de os adulterar”, adiantou, frisando: “a razão é simples: mexer-lhes, alterar o contemplado no artigo 24.º, é atacar o magma da democracia” e que “sem esses direitos não há Estado de direito e, por isso, o tal 288 não o permite em circunstância alguma”.

    Manifestação Mundial levou para as ruas cidadãos em diversas cidades do mundo, no passado Sábado.
    (Fotos em cima: Manifestação em Lisboa. Foto em baixo: Manifestação em Toronto, no Canadá)

    A ex-deputada do Bloco de Esquerda foi, aliás, uma das individualidades que subiu ao palco para discursar no âmbito da Manifestação Mundial pelos Direitos Humanos e a Liberdade (World Freedom Rally 2022) no passado sábado, a par da médica Margarida Oliveira, que foi alvo de processo pela Ordem dos Médicos, por delito de opinião, apesar de defender medidas com base na evidência científica.

    Recorde-se que a Ordem dos Médicos e o seu bastonário, Miguel Guimarães, tiveram, durante a pandemia, um papel de relevo na tentativa de silenciar e punir médicos que se mostraram contra medidas e recomendações do Governo e da Direcção-Geral da Saúde.

    Desde 2020, que cidadãos em diversos países têm participado em manifestações e marchas em defesa dos direitos humanos e civis, perante as medidas drásticas e ilegais que foram adotadas por Governos alegadamente para combater a pandemia de covid-19, incluindo a política de segregação criada com a introdução do chamado “certificado digital” ou “passaporte covid-19” e vacinação obrigatória em diversos setores.

    A Suécia, um país que geriu com sucesso a pandemia, foi a excepção, tendo recusado aderir a confinamentos e máscaras faciais, em geral, nem impôs medidas drásticas como a maioria dos restantes países, registando menos óbitos com covid-19, menores impactos económicos e menos mortes em excesso, comparando com pares na Europa.

    Manifestação em Lisboa no âmbito do World Wide Rally for Freedom

    Hoje, sabe-se, com base em dados e em estudos científicos, que os confinamentos tiveram um impacto devastador na saúde e na economia, tendo sido uma política errada a seguir, como cientistas tinham avisado logo em março de 2020.

    Por outro lado, os dados revelam ainda haver em 2022 milhares de mortes em excesso sem explicação em vários países, como Portugal, faltando investigações independentes ao tema. Enquanto isso, diversos países começam a recuar na vacinação de certas camadas e faixas etárias da população, enquanto mais estudos e dados mostram que riscos de reacções adversas aconselham cautela na vacinação com as novas vacinas, sobretudo em determinados grupos de pessoas, como homens e crianças e jovens.

    Mas, apesar das medidas erradas adoptadas, os direitos humanos e civis que foram amputados desde 2020 não foram repostos na maioria dos países, e teme-se que possam mesmo ser definitivamente abolidos em países como Portugal, com as propostas de revisão constitucional. Por outro lado, também há receios de que a onda de medidas totalitárias seja reforçada agora para gerir a crise ambiental que se anuncia.


    N.D.: A jornalista e cronista do PÁGINA UM Elisabete Tavares é membro fundador da Plataforma Cívica – Cidadania XXI, embora não exerça papel activo nesta associação desde Outubro de 2021.

  • Nos últimos três anos, morreram a mais 102 jovens, mesmo com menor letalidade das doenças respiratórias

    Nos últimos três anos, morreram a mais 102 jovens, mesmo com menor letalidade das doenças respiratórias

    Ao terceiro ano da pandemia, mostra-se cada vez mais evidente que a mortalidade total em Portugal apenas se agravou nas faixas etárias acima dos 55 anos, embora somente com relevância estatística na população em idade de reforma e, nesta, sobretudo nos maiores de 85 anos. Mas há uma gritante excepção, apesar do ensurdecedor silêncio do Governo e dos “peritos da pandemia”: no grupo dos adolescentes e jovens adultos, entre os 15 e os 24 anos, há um inexplicável e surpreendente incremento da mortalidade. Apesar de apenas se terem registado, neste grupo, cinco mortes por covid-19 e as doenças respiratórias até terem sido menos letais durante a pandemia, no somatório dos 10 primeiros meses do triénio 2020-2022 contabilizam-se mais 102 óbitos em comparação com o período homólogo anterior à pandemia. Em todos os outros grupos etários abaixo dos 55 anos, ao invés, observam-se reduções na mortalidade total.


    Mantém-se o silêncio oficial, continua o excesso de mortalidade. Os óbitos registados nos dez primeiros meses deste ano continuam a surpreender no grupo etário dos 15 aos 24 anos, e mostram a contínua “sangria” nos mais idosos, sobretudo dos maiores de 85 anos.

    De acordo com (mais) uma análise do PÁGINA UM, a mortalidade nos adolescentes e jovens adultos (entre os 15 e os 24 anos), que desde 2014 – ano a partir do qual existe informação diária fornecida pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO) – nunca excedera até Outubro os 290 óbitos, atingiu este ano os 321 óbitos. Parecendo uma subida absoluta pequena, a sua dimensão é extremamente relevante.

    three women sitting wooden bench by the tulip flower field

    Com efeito, a mortalidade neste grupo etário – que, nos tempos modernos, e por razões compreensíveis, era inferior a uma morte por dia – está este ano a atingir dimensões surpreendentes. E não podem ser imputadas directamente ao SARS-CoV-2, uma vez que os dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, que constam no Portal da Transparência do SNS, indicam apenas cinco óbitos por covid-19 entre os 15 e os 24 anos até Setembro passado. Globalmente, tendo em conta os 866 óbitos por todas as causas neste período, a covid-19 representou 0,6% do total.

    Convém referir, contudo, que a mortalidade por doenças do aparelho respiratório nesta faixa etária diminuiu bastante durante a pandemia. Entre Março de 2020 e Setembro deste ano, a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar aponta para a ocorrência de 31 óbitos, menos 25 dos que aqueles contabilizados no período homólogo imediatamente anterior à pandemia (Março de 2017 a Setembro de 2019).

    Daí que o baixo contributo da covid-19 e até a situação mais “benigna” das doenças do aparelho respiratório mais adensam o “mistério”, que não parece do interesse do Governo ver desvendado, não apenas porque o Ministério da Saúde tem procrastinado uma análise independente como também porque recusa disponibilizar publicamente os dados anonimizados em bruto do SICO.

    Mortalidade total por grupo etário (idades) nos primeiros 10 meses de cada ano (Janeiro a Outubro) entre 2014 e 2022. Fonte: SICO

    Certo é que algo de estranho se passa neste grupo etário desde o início da pandemia – e não é, efectivamente, por culpa da covid-19. A mortalidade já tinha sido elevada em 2020 em comparação com os anos anteriores, tendo sempre como referência o período de Janeiro a Outubro. No primeiro ano da pandemia registaram-se 289 mortes neste grupo jovem, que confrontava com uma média de 256 mortes no quinquénio anterior (2015-2019). Em 2021 os valores regressaram para níveis “normais” (256), mas voltaram a disparar, e muito, em 2022.

    Caso se junte os três anos mais recentes (2020-2022), os 10 primeiros meses totalizam 866 mortes, enquanto no triénio anterior homólogo (2017-2019) se contabilizaram 764 mortes, ou seja, verifica-se um acréscimo de 102 mortes.

    Este fenómeno não se explica sequer por via do envelhecimento populacional – que justifica uma parte do aumento absoluto dos óbitos na faixa dos mais idosos, porque estão, efectivamente, a crescer nas últimas décadas, em virtude da melhoria da esperança de vida. Na verdade, como tem ocorrido uma redução nos nascimentos nas últimas décadas – e especialmente desde o início do presente século –, seria até expectável uma muito ligeira redução na mortalidade absoluta de jovens, mesmo se a taxa de mortalidade se mantivesse estável.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Além disso, a mortalidade no grupo dos 15 aos 24 anos surpreende por não encontrar correspondência nas faixas etárias adjacentes. Com efeito, confrontando os 10 primeiros meses deste ano com os períodos de 2017-2021 (incluindo assim os dois primeiros anos da pandemia) e de 2015-2019 (quinquénio anterior à pandemia), os menores de 15 anos registam uma redução nos óbitos contabilizados por todas as causas. No caso dos bebés com menos de um ano, mesmo se a mortalidade deste ano está acima da registada em 2020 e 2021, os valores são bastante mais baixos face ao período pré-pandémico (-11,8%).

    No grupo imediatamente superior – dos 25 aos 34 anos –, a mortalidade total em 2022 pode considerar-se dentro de uma certa normalidade, tanto em relação aos dois primeiros anos da pandemia como ao período pré-pandémico.

    Para aumentar a estranheza dos números registados entre os 15 e os 24 anos, também nos grupos etários dos 35 aos 44 anos e dos 45 aos 54 anos se observa uma significativa redução na mortalidade total ao longo dos primeiros 10 meses deste ano. Face ao período pré-pandémico, a redução no primeiro grupo etário é de 11,3% e do segundo de 5,9%.

    Comparação (variação percentual) nos grupos etários (idades) entre a mortalidade nos 10 primeiros meses de 2022 face à média dos quinquénios 2017-2021 e 2015-2019 e entre a mortalidade nos triénios de 2020-2022 e 2017-2019. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM

    Apenas a partir dos 55 anos se observa novamente um incremento da mortalidade face ao período pré-pandémico, embora com especificidades. Com efeito, embora o número de óbitos ainda esteja fora da normalidade face ao período anterior a 2020, entre os 55 e os 84 anos já se observam este ano valores mais baixos de mortalidade total do que em 2021.

    No confronto entre 2022 e 2021 nos primeiros 10 meses, para o grupo dos 55 aos 64 anos registaram-se menos 252 mortes, no grupo subsequente (65-74 anos) menos 517 e no grupo dos 75 aos 84 anos houve menos 951 óbitos. Em todo o caso, os valores de 2022 ainda continuam a ser bastante mais elevados do que antes da pandemia.

    Apenas no grupo dos maiores de 85 anos – aquele que, paradoxalmente, mais vacinado foi contra a covid-19 –, as mortes continuam a bater recordes. Nos 10 primeiros meses deste ano morreram mais 781 idosos desta faixa etária do que em 2021. Nos três anos da pandemia (2020-2022), no período de Janeiro a Outubro foram contabilizados 132.077 óbitos, que contrasta com as 114.552 mortes no triénio imediatamente anterior à pandemia (2017-2019). Ou seja, um incremento de 15,3%.

    two girls standing while holding her hips

    Em termos relativos, este aumento foi muito próximo do registado para o grupo dos 15 aos 24 anos (13,4%), com a agravante de que todos os outros grupos etários abaixo dos 55 anos tiveram mesmo quedas na mortalidade total durante a pandemia.  

    O PÁGINA UM contactou o Ministério da Saúde, no passado dia 4, para comentar estes valores, e também para saber se o estudo anunciado em Agosto pela ex-ministra Marta Temido sobre o excesso de mortalidade estava mesmo em curso, qual era a equipa (nomes) e qual o período previsto de conclusão. Não houve resposta, o que se mostra um “clássico de reacção” deste organismo governamental, que não se modificou com a entrada em funções de Manuel Pizarro.

  • “Nós, os Humanos”, e mais a interferência dos políticos na Medicina

    “Nós, os Humanos”, e mais a interferência dos políticos na Medicina

    A apresentação de uma reflexão sobre a Humanidade, escrita pelo vice-presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia, Jacinto Gonçalves, acabou por ser o mote para um debate sobre a gestão da covid-19. Nós, os Humanos, foi apresentado este sábado na sede da Ordem dos Médicos, é uma obra que constitui uma síntese da História da Humanidade e também um alerta para a necessidade da defesa do Planeta. No debate de apresentação do livro, no auditório da Ordem dos Médicos, falou-se da pandemia, da liberdade de expressão e de opinião, das farmacêuticas e também da ingerência dos políticos em questões de Medicina.


    Com o subtítulo “Quem somos, de onde vimos, para onde vamos?”, o novo livro de Jacinto Gonçalves, Nós, os Humanos, apresentado no sábado passado, é sobretudo uma “reflexão sobre a História da Humanidade e sobre os momentos marcantes da nossa evolução”, explicou o autor ao PÁGINA UM.

    “Precisamos mudar de rumo no respeito pela vida e pelos valores humanos em que acreditamos”, defende o autor. Sobre a influência da sua longa carreira como médico e professor na criação do livro, Jacinto Gonçalves diz que o livro constitui o resultado de 23 anos de ensino e de falar em público. “Temos de tornar as noções complexas em noções simples que sejam facilmente transmitidas e captadas”, diz.

    Jacinto Gonçalves na sessão de autógrafos do lançamento do seu livro Nós, os Humanos. Foto: ©Tozé Canaveira

    Uma das preocupações mostradas por Jacinto Gonçalves, em jeito de conclusão no seu livro, prende-se com a Revolução Industrial, que está a “provocar uma destruição maciça de ecossistemas e redução da biodiversidade”. Para o autor, o livro constitui um alerta para “a necessidade de as pessoas terem uma intervenção, se for possível, política, para defenderem o planeta”.

    António Pedro Machado, um dos convidados na apresentação desta obra, considera que o livro de Jacinto Gonçalves revela “a metodologia de um pedagogo e a escrita de um homem muito culto, que dedicou a vida não só à Medicina e aos doentes como também à Cultura, o que é próprio da sua geração”.

    Para este especialista em Medicina Interna, Nós, os Humanos é um livro que faz a cronologia dos acontecimentos, “mas que volta-e-meia faz-nos mergulhar naquilo que eu chamo um poço onde descemos milhares, por vezes, milhões de anos e depois faz-nos subir”. E acrescenta que “à medida que subimos no tempo, vamos relacionando fenómenos onde vamos percebendo melhor a evolução das coisas”.

    A apresentação do livro contou também com a presença da psicóloga Joana Amaral Dias, que aproveitou para revelar uma “inconfidência” sobre como conheceu o médico Jacinto Gonçalves. “Foi num período bastante crítico na minha vida no que diz respeito à minha consideração, confiança e respeito pela classe médica.”

    A psicóloga relembra que “no meio da crise de gestão da covid-19, fiquei perplexa porque apareceu-me um médico já de alguma idade, mas que era extremamente jovem, no sentido mais completo da palavra”. Joana Amaral Dias diz que foi graças a Jacinto Gonçalves e a outros médicos que restabeleceu essa confiança.

    Sobre a abordagem ao livro e ao seu autor, Joana Amaral Dias considerou que “não é a cultura, não é o conhecimento, não é o dinheiro que faz de nós humanos; é o serviço à Humanidade”.  E explicou que “a ética da Medicina, mostrada por Jacinto Gonçalves, e que me fez restaurar a consideração pela classe médica, é por revelar que essa Medicina não está ao serviço do dinheiro”. E concluiu: “A Medicina é, por vezes, uma serva, uma sabuja de grandes poderes económicos”.

    Embora o livro aborde uma temática global sobre o percurso da Humanidade, a pandemia acabou por interferir de uma forma indirecta, concedendo a Jacinto Gonçalves mais tempo para a escrita. Mas também para a reflexão sobre a gestão da crise sanitária, que considera ter “amputado liberdades e garantias”.

    Para este cardiologista, que exerce há mais de meio século, diz manter as suas posições críticas à forma como o SARS-CoV-2 se tornou omnipresente nas nossas vidas. “Daqui a seis meses, a covid-19 já passou, e já arranjaram outra coisa para nos entreter”, salienta, para acrescentar que, na sua opinião, foi “um meio, tal como sucederá com as alterações climáticas, para procurar controlar as pessoas”.

    Num auditório para mais de meia centena de assistentes, Jacinto Gonçalves garantiu ser “um homem para todas as estações. Não mudo de opinião na Primavera”, lamentando ainda que os médicos se tenham “acomodado excessivamente ao poder político”, como sucedeu durante a pandemia. “Houve erros na gestão, principalmente na parte pré-hospitalar, porque se apostou numa única forma de combater a doença, que é a vacina”.

    O lançamento do livro contou com a presença, da esquerda para a direita, de Joana Amaral Dias, Jacinto Gonçalves, Alexandre Loureço (Ordem dos Médicos) e António Pedro Machado. Foto: ©Tozé Canaveira

    E confessando ter levado as duas primeiras doses da vacina contra a covid-19, o também vice-presidente da Fundação de Cardiologia diz agora que, com este tipo de vacinas, não está “disponível para continuar a levar reforços de seis em seis meses.” E critica também “a atitude impensável de juntar a vacina da gripe, com a qual eu concordo plenamente, com um reforço da covid-19”, assegurando que “se anda a brincar aos feiticeiros”.

    Sobre a liberdade de expressão, que foi coarctada durante a pandemia, Jacinto Gonçalves lamenta que muitas opiniões válidas tenham sido “ocultadas ou impedidas de serem divulgadas”, e que poderiam ter sido implementadas. E exemplifica: “o primeiro grande erro foi o da prevenção, ao não utilizar-se medicamentos que são baratos e seguros, como é o caso da ivermectina. E depois foi o erro na fase pré-hospitalar, pois se um doente fosse testado positivo era mandado para casa com paracetamol; eu acho que isso foi criminoso”.

    Sobre a indústria farmacêutica, Jacinto Gonçalves considera também que “houve ganhos que foram pouco honestos sobre a promoção excessiva de um único meio”, exemplificando como a vacina rendeu milhões. “As acções da Pfizer aumentaram cinco vezes”, destaca. Contudo, o médico não pretende contribuir para diabolizar esta indústria “tantas vezes denegrida”, relembrando o seu papel extraordinário na melhoria das condições de saúde.

    Carlos Alberto Gomes à conversa com Jacinto Gonçalves sobre o livro Nós, os Humanos. Foto: ©Tozé Canaveira

    Para o cardiologista, “houve uma enorme evolução dos anos 50 para os anos 90; em cada década aparecia uma nova classe de medicamentos”, graças às farmacêuticas, defende Jacinto Gonçalves. “Não foram os organismos estatais que conseguiram essa evolução, mas sim as empresas farmacêuticas, que, obviamente têm de dar lucro”, acrescenta.

    Mas quanto aos políticos Jacinto Gonçalves não poupa críticas: “Lavam sempre as mãos como Pôncio Pilatos”, mostrando a sua preocupação por “a emergência sanitária estar a ser empurrada pelos poderes políticos, não só nacionais, como supranacionais”.

    “Os direitos, liberdades e garantias que estão salvaguardados na Constituição desaparecem quando uns senhores quaisquer da Assembleia da República determinarem que há uma emergência sanitária. E isso não pode suceder”, adverte.

  • Lobby das farmacêuticas na Ordem dos Médicos perde e presidente do Colégio de Pediatria acaba ilibado

    Lobby das farmacêuticas na Ordem dos Médicos perde e presidente do Colégio de Pediatria acaba ilibado

    Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, foi um dos muitos clínicos que criticou a estratégia da Direcção-Geral da Saúde em recomendar a vacinação universal de crianças contra a covid-19. Por causa da sua opinião, a Ordem dos Médicos instaurou-lhe um processo disciplinar por pressão do bastonário, Miguel Guimarães, através dos membros do seu Gabinete de Crise para a Covid-19, encabeçado por Filipe Froes e outros médicos com ligações comerciais com as farmacêuticas. A campanha de denegrir a imagem pública de Jorge Amil Dias surtiu efeito, mas o procedimento disciplinar caiu esta semana por terra. O presidente do Colégio de Pediatria espera que esta decisão faça “jurisprudência” para que, no futuro, não volte a haver tentativas de silenciamento de médicos pela via da “secretaria”.


    É mais uma derrota para o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. E é mais uma evidência dos meandros nebulosos que circundaram o “mundo dos médicos” desde 2020, com clínicos a comportarem-se como porta-estandartes da indústria farmacêutica sobretudo desde o surgimento da pandemia da covid-19.

    Esta semana caiu por terra a queixa apresentada na Ordem dos Médicos contra o presidente do Colégio de Pediatria, Jorge Amil Dias, por um grupo de médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêutica, entre os quais se destacam Filipe Froes, Carlos Robalo Cordeiro e Luís Varandas.

    Jorge Amil Dias, pediatra e presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos.

    A queixa destes médicos e de mais outros 13 levou à abertura de um processo disciplinar contra o reputado pediatra, que está agora a caminho do arquivamento. O relator do processo, João Branco, membro efectivo do Conselho Disciplinar Regional do Sul, conclui , de forma clara e evidente, “não ter havido violação das leges artis ou do Código Deontológico por parte do médico participado”.

    O “crime” que estava em causa por este renomado especialista em gastroenterologia pediátrica é simples de explicar: tomou posição pública, a título pessoal, ao considerar a vacinação de crianças “desproporcionada” e “desnecessária”, além de advogar a relevância da imunidade natural. Além disso, foi um dos subscritores de um abaixo-assinado que integrou quase uma centena de médicos e outros profissionais de saúde, alertando também para os riscos da vacinação num grupo etário de baixíssimo risco.

    O processo disciplinar contra o presidente do Colégio de Especialidade de Pediatria – que não é escolhido, assim como nos outros colégios, nas mesmas eleições do bastonário, e beneficia de independência – resultou de uma carta-denúncia no início de Fevereiro, assinada por médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêuticas.

    Miguel Guimarães (à direita), urologista e bastonário da Ordem dos Médicos, ao lado de Carlos Robalo Cordeiro, um dos subscritores da queixa contra Jorge Amil Dias.

    Neste grupo estão incluídos todos os membros do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 que solicitaram “a avaliação da conduta, por eventual infração disciplinar” de Amil Dias.

    Miguel Guimarães, que se manifestou incomodado por pediatras contrariarem as suas posições de médico urologista a falar de assuntos de pediatria, anunciou mesmo que levaria o assunto a reunião do Conselho Nacional Executivo para depor a destituição de Amil Dias como presidente do Colégio de Pediatria, algo que nunca sucedeu.

    Mais do que qualquer castigo relevante que pudesse atingir Jorge Amil Dias, este processo da Ordem dos Médicos revelava então o “clima de guerra” que alimenta as relações entre estes profissionais de saúde no mandato de Miguel Guimarães, que escancarou portas a procedimentos inquisitoriais por meros delitos de opinião, sobretudo com o advento da pandemia.

    Miguel Guimarães tem sido, além disso, criticado internamente por não acatar os pareceres técnicos dos Colégios de Especialidade – e até de os esconder publicamente –, optando antes por criar órgãos de consulta não-estatutários.

    O pediatra Jorge Amil Dias afirmou ao PÁGINA UM que considera que “o parecer do Relator é muito claro e desmonta ponto por ponto as acusações” que lhe eram feitas, não vendo qualquer violação do ponto de vista deontológico nem de ter violado “os bons princípios e as boas práticas”. Para Amil Dias, seria bom se esta decisão “fizesse alguma jurisprudência quanto às tentativas de calar [médicos] na ‘secretaria’, para os silenciar”.

    Extracto do relatório da proposta de arquivamento do processo contra Amil Dias.

    De acordo com a proposta de arquivamento a que o PÁGINA UM teve acesso, o relator do processo disciplinar dá plena razão a Jorge Amil Dias em diversos pontos.

    João Branco começa por lembrar que “à data dos factos em apreciação no presente processo disciplinar, existia, na comunidade médica em geral, e nos médicos pediatras em particular, uma
    divisão sobre o tema da vacinação contra a SARS-Cov-2 em crianças e
    adolescentes, nomeadamente no que respeita à necessidade desta, ao grau de
    proteção conferido e respetivos efeitos adversos”.

    E adiante, em seguida, que “são compreensíveis e aceitáveis” as preocupações transmitidas por Jorge Amil Dias em relação aos possíveis efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 nas crianças, “uma vez que, em 29 de Outubro de 2021, foi emitida uma autorização para o uso de emergência da vacina da Pfizer-BioNtech para a prevenção da covid-19 em crianças entre os 5 e os 11 anos de idade”.

    “Ora, tal significa”, continua o relator, “que o processo de licenciamento da vacina para administração em crianças foi acelerado em relação ao normal processo de licenciamento, pelo que as reações adversas de médio e longo prazo, poderiam ainda não ser, à data, integralmente conhecidas, com os inerentes riscos”, frisou no seu parecer.

    Sobre a queixa de Filipe Froes e demais médicos relativa a declarações prestadas por Amil Dias sobre o Hospital D. Estefânia, o relator considerou que até “poderão ser pertinentes” as questões levantadas pelo pediatra.

    Na opinião de João Branco, “não se deve considerar que o médico participado [Jorge Amil Dias] estava a colocar em causa as competências profissionais dos colegas do Hospital de D. Estefânia, mas somente que aquele terá procurado esclarecer a veracidade dos números de doentes internados com covid-19 revelados numa entrevista e divulgados pela comunicação social, os quais, posteriormente, se terá comprovado não corresponderem aos dados reais”.

    Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos.

    E salienta ainda que os comentários do presidente do Colégio de Pediatria “realizados pelo médico participado “no que respeita à metodologia dos estudos do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) são pertinentes, bem como são justificadas as questões clínicas levantadas”.

    Relativamente às Cartas Abertas subscritas por Amil Dias, com data de 25 de Janeiro e de 3 de Fevereiro de 2022, o Relator defende que “os médicos, enquanto médicos e cidadãos, têm o direito de escrever cartas abertas, divulgando a sua posição, ainda que esta seja contrária à orientação da Ordem dos Médicos, do Senhor Bastonário, do Gabinete de Crise para o [sic] covid-19 e da Direção-Geral da Saúde”.

    João Branco salienta também que “a divergência de opiniões sobre a vacinação infantil não se verificou só em Portugal, sendo de realçar que no Reino Unido, após ter sido assumida uma recomendação de vacinação das crianças dos 5 aos 11 anos de idade, um grupo de 18 médicos também se dirigiu publicamente às autoridades de saúde manifestando preocupação, não tendo tal sido considerado ofensivo ou atentatório da verdade científica”.

    girl covering her face with both hands

    Neste enquadramento, e salvaguardando que é pessoalmente “favorável à vacinação”, João Branco deefnde que “as questões metodológicas e clínicas levantadas pelo médico participado foram pertinentes, entendendo que as mesmas não devem ser consideradas ofensivas para os Colegas, para a Ordem dos Médicos, para o seu Bastonário, ou para o Gabinete de Crise para a Covid-19, apenas traduzindo divergência de opiniões, sendo, no contexto em que foram proferidas, aceitáveis”.

    Apesar de se mostrar satisfeito com a recomendação de arquivamento do processo disciplinar instaurado contra si, Amil Dias condena o facto de os media ajudarem a enxovalhar em público quem é sujeito a este tipo de acusações. E que, depois, nota o pediatra, quando sai uma decisão favorável que deita por terra as acusações, a imprensa em geral, com algumas excepções,”publica uma pequena notícia na página 54″. “Isto é feio”, conclui.

  • Sentença: PÁGINA UM ganha processo em prol da transparência contra Entidade Reguladora para a Comunicação Social

    Sentença: PÁGINA UM ganha processo em prol da transparência contra Entidade Reguladora para a Comunicação Social

    Em Agosto passado, o regulador dos media acusou o director do PÁGINA UM de ser um “cidadão” que se intitulava jornalista e que tinha “comportamentos nos quais, consideramos, que a classe jornalística não se revê”. E tinha razão: nunca nenhum outro jornalista foi tão longe para obrigar a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a mostrar documentos administrativos que queria esconder. O Tribunal Administrativo de Lisboa acaba de conceder a quinta vitória do PÁGINA UM em processos em prol da transparência da Administração Pública.


    Como habitual, tudo valeu. A sociedade de advogados contratada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – a Vaz Mendes & Associados – até chegou a alegar que o requerimento do PÁGINA UM para o processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa do PÁGINA UM não cumpria as regras, porque “ao invés de numerais ordinais, usualmente utilizados no articulado legal, o Requerente utiliza numeração composta por numerais cardinais”.

    Mas, nem esse comezinho expediente surtiu efeito: na sentença decretada esta semana pela juíza Maria Carolina Duarte o Tribunal é bastante claro e pouco abonatório para a entidade que regula os media e que, ainda por cima, é presidida por um juiz conselheiro: a ERC vai mesmo ter de revelar os documentos onde consta a identidade de todas as empresas de comunicação social (e argumentos aduzidos) que solicitaram confidencialidade de dados financeiros no Portal de Transparência dos Media, de modo a esconder relações de dependência económica.

    printing machine

    A sentença determina que, nos processos já concluídos, a ERC poderá, no máximo, apagar “dados pessoais e outros que revelem segredos comerciais ou sobre a vida interna das empresas, mas terá sempre de justificar, caso a caso, “o motivo do expurgo”. Relativamente aos processos não concluídos, a sentença permite que se possa diferir “a entrega dos documentos até à tomada da decisão ou ao arquivamento do processo”, embora dentro de um limite temporal específico.

    Este é o culminar de mais um processo litigioso em prol da transparência protagonizado pelo PÁGINA UM, neste caso incidindo no modus operandi da ERC. Em finais de Julho, o PÁGINA UM solicitara ao juiz conselheiro Sebastião Póvoas, presidente do regulador desde Dezembro de 2017, “o acesso a cópia digital ou analógica de todos os requerimentos – desde 2017 até à data – das empresas de comunicação social que solicita[ram] confidencialidade dos principais fluxos financeiros e identificação das pessoas singulares ou colectivas que representam mais de 10% dos rendimentos totais e mais de 10% do montante total de passivos no balanço e dos passivos contingentes.”

    A promoção da transparência da titularidade, da gestão e dos meios de financiamento das entidades que prosseguem atividades de comunicação social tem sido uma das matérias mais sensíveis nos últimos anos no sector da comunicação social. Em 2015, uma lei aprovada na Assembleia da República estipulou que as empresas detentoras de órgãos de comunicação social disponibilizassem, no denominado Portal da Transparência dos Media, a relação de titulares e de detentores, discriminando as percentagens de participação social e identificando toda a cadeia de entidades a quem uma participação de pelo menos 5% pudesse ser imputada.

    Por outro lado, ficou também estipulada a obrigatoriedade de comunicar à ERC a informação relativa aos principais fluxos financeiros daquelas entidades (com contabilidade organizada). Esta obrigação deveria, por lei, incluir “a relação das pessoas individuais ou coletivas que tenham, por qualquer meio, individualmente contribuído em, pelo menos, mais de 10% para os rendimentos apurados nas contas de cada uma daquelas entidades ou que sejam titulares de créditos suscetíveis de lhes atribuir uma influência relevante sobre a empresa”, mas em “termos a definir no regulamento da ERC”.

    Efectivamente, a ERC criaria um regulamento em Outubro de 2020, onde, além de estabelecer a obrigação do envio do relatório anual de governo societário (RGS), concedia excepções arbitrárias que, na prática, destruíam o princípio da transparência. Com efeito, no artigo 8º do regulamento – que não teve de passar pela Assembleia da República – refere-se que “atendendo à sensibilidade e ao caráter sigiloso de alguns dados solicitados, as entidades poderão solicitar à ERC a aplicação do regime de exceção”.

    Em 6 de Julho passado, no decurso de um pedido de confidencialidade da TVI S.A. – empresa detentora da TVI e da CNN Portugal –, que o PÁGINA UM noticiou em primeira mão, a ERC não quis identificar quais as outras empresas que solicitaram igual tratamento.

    Última página da sentença favorável ao PÁGINA UM contra a Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    O regulador adiantou então apenas que “os pedidos podem incidir sobre informação muito específica ou cumulativamente sobre vários elementos comunicados em cumprimento das obrigações legais da transparência”, acrescentando ainda que “os requerentes invocam, genericamente, (…) a sensibilidade dos dados e antecipam impactos negativos resultantes da sua divulgação, relacionados com estratégias de negócio, estruturas de receitas e a sustentabilidade económico-financeira do meio, em particular em mercados locais.”

    A ERC também não indicava o número absoluto de pedidos entre 2017 e 2021, dando somente dados relativos. Segundo o regulador, naquele quinquénio, mais de três quartos dos pedidos de confidencialidade (77%) tinham sido indeferidos pelo Conselho Regulador, “que entendeu que os argumentos apresentados não justificavam a não disponibilização da informação”.

    Perto de 12% dos pedidos foram deferidos, “salientando-se que uma parte incidia sobre uma informação muito específica, como a percentagem que representa um cliente relevante”. Em perto de 11% das situações o Conselho Regulador concedeu deferimento parcial. No entanto, não sabe o número absoluto que esses 23% representam nem que dados ficaram assim escondidos e porquê.

    Já quanto ao presente ano, no início de Julho a ERC informava que recebera 22 pedidos de confidencialidade submetidos por entidades de comunicação social, que incluía o da TVI S.A., que veio entretanto a ser indeferido. No entanto, desconhece-se a identidade das outras 21 empresas, e quais foram as decisões da ERC.

    Por esse motivo, o PÁGINA UM decidiu, em finais de Julho, formalizar um pedido expresso ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. Inicialmente, a ERC nem reagiu ao requerimento, tendo optado por iniciar uma campanha de descredibilização do PÁGINA UM, fabricando inopinados incidentes envolvendo o seu director.

    Recorde-se que num comunicado em 9 de Agosto, a ERC chegou a acusar explicitamente o director do PÁGINA UM de “insultar os membros do Conselho Regulador” e de “exercer coação sobre os funcionários que o atendem” a pretexto da consulta de outros processos naquela entidade reguladora. A ERC conseguiu mesmo que a agência Lusa fizesse uma notícia, através de um comunicado de imprensa, em que identificava o director do PÁGINA UM como um “cidadão” que “intitulando-se jornalista (…) tenta legitimar comportamentos nos quais, consideramos, que a classe jornalística não se revê”.

    person holding brown eyeglasses with green trees background

    Mais tarde, já com o processo de intimação no Tribunal Administrativo, O presidente da ERC acabou por defender a pretensão do PÁGINA UM por razões de “inutilidade, desrazoabilidade e não economia processual”.

    Porém, em sede de Tribunal Administrativo, nem o pedido do PÁGINA UM foi considerado, inútil, nem desrazoável, nem a juíza Maria Carolina Duarte encontrou razões para se invocar qualquer preceito relacionado com economia ou deseconomia processual.

    Na extensa sentença de 35 páginas, a juíza relembra o papel da comunicação social como “um dos pilares da democracia”, defendendo também que a sua natureza “justifica que os agentes que nele operam estejam adstritos a especiais deveres de reporte de informação e transparência”, para depois admitir que, embora a ERC possa permitir a confidencialidade de alguma informação, esse “argumento não legitima a recusa de acesso in totum”, ou seja, no seu todo. E depois determina as condições para que o regulador forneça a informação que tem vindo a recusar.

    black video camera

    Além da condenação ao pagamento das custas processuais, a juíza determinou a notificação da sentença ao “Dr. Sebastião José Coutinho Póvoas e ao Dr. Pedro Correia Gonçalves, membros da direção executiva da entidade requerida [ERC], advertindo-os de que devem diligenciar pelo cumprimento da intimação, sob pena de não o fazendo, sem justificação aceitável, poderem vir a ser condenados em sanção pecuniária compulsória (…), sem prejuízo do apuramento da responsabilidade civil, disciplinar e criminal a que haja lugar”.

    A ERC tem um prazo de 10 dias para cumprir esta sentença, podendo também – tanto mais que gere dinheiros públicos e aqueles que são provenientes das taxas da comunicação social – optar pelo recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, pagando assim também mais 42,88 euros, a que acresce IVA à taxa legal em vigor, à sociedade de advogados Vaz Mendes & Associados, que foi quem patrocinou a causa em primeira instância.


    Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 14 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 12.115 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido.

    Na secção TRANSPARÊNCIA começámos a divulgar todas as peças principais dos processos em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico da Entidade Reguladora para a Comunicação Social ficará disponível nos próximos dias.

  • ‘Rigor informativo de uma notícia não assenta exclusivamente na veracidade’, defende SIC para justificar imagens falsas

    ‘Rigor informativo de uma notícia não assenta exclusivamente na veracidade’, defende SIC para justificar imagens falsas

    Já são três as deliberações, envolvendo quatro canais televisivos. A Guerra da Ucrânia tem sido o palco para absurdos e propaganda dos media mainstream portugueses, incluindo uso de imagens de videojogos para retratar a suposta realidade. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social lança farpas às televisões, mas para estas parece estar tudo bem. A SIC até defende que se pode ser rigoroso mesmo com imagens falsas.


    Depois da CNN Portugal, agora foi a vez da SIC, da SIC Notícias e da RTP levarem um “puxão de orelhas” da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), através de duas deliberações distintas, por terem transmitido imagens falsas sobre a guerra na Ucrânia.

    No caso da SIC e da SIC Notícias, a ERC deliberou sobre uma queixa contra os canais de televisão do grupo Impresa devido à transmissão de uma “peça sobre um piloto ucraniano apelidado de ‘Fantasma de Kiev’”. Os dois canais televisivos abordaram, no passado dia 25 de Fevereiro, a história de “um piloto ucraniano, apelidado de ‘Fantasma de Kiev’, que alegadamente abatera vários caças russos”. As imagens usadas para ilustrar as notícias não eram reais, antes eram imagens de um jogo de vídeo de simulador de voo. E o “Fantasma de Kiev” era um verdadeiro fantasma: nunca ninguém o vira.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Na verdade, a ERC confirma o teor da queixa: as imagens transmitidas foram retiradas de “um vídeo de YouTube, [o] que demonstra que as peças (…) não reproduzem o atual conflito”. Embora o regulador esclareça na deliberação que este vídeo já não se encontra acessível, “antes da sua remoção foi possível identificar a peça em causa e apreender os fundamentos da presente participação”.

    No caso da RTP, a queixa feita junto da ERC diz respeito a uma peça emitida a 1 de Março sobre a “utilização de cocktails Molotov por civis ucranianos contra carros de combate russos”. Também as imagens eram falsas, por não retratarem a realidade então vigente. Segundo o denunciante, as imagens eram iguais às de um vídeo de YouTube, onde se exibiam imagens de um conflito anterior, de 2014, e não as do actual conflito. De facto, as imagens retratam as manifestações na Praça Maidan em 24 de Fevereiro de 2014, um conflito interno que viria a depois derrubar um governo ucraniano pró-russo.

    Deste modo, em ambos os casos, a ERC não tem dúvidas em garantir que foram difundidas imagens falsas, considerando que “a utilização destas imagens põe em causa o rigor informativo”. Recorde-se que o regulador também já detectara o uso de imagens falsas na CNN envolvendo também o uso de imagens de um videojogo.

    SIC e SIC Notícias divulgaram propaganda ucraniana, através de uma história inverídica e com imagens de um videojogo.

    Assim, o regulador deu “por verificado que a RTP, na emissão de 1 de março de 2022, exibiu imagens de um conflito de 2014, publicadas no Youtube há vários anos, referindo-se às mesmas como imagens do atual conflito na Ucrânia, induzindo os telespetadores em erro quanto à sua atualidade e proveniência”.

    Na análise que fez, a ERC nota que as imagens em causa foram “transmitidas no final da reportagem, por 40 segundos, sem qualquer relato jornalístico sobreposto, apenas se ouvindo o som das explosões”, ou seja, “durante 40 segundos aquele vídeo é verdadeiramente a notícia e o telespectador médio considerará, necessariamente, que são imagens atuais, o que não é o caso”.

    Em sua defesa, a RTP alegou que a ERC não teve em conta “convenções mais correntes e comummente aceites no jornalismo televisivo em todo o mundo no que respeita à distinção entre imagens notícia e imagens meramente ilustrativas”, e argumentou que “nem todas as imagens são notícia”.

    Quanto à SIC, na sua deliberação final, a ERC dá “por verificado que a peça transmitida pela SIC e SIC Notícias utilizou imagens de um jogo de vídeo de simulador de voo para retratar o atual conflito na Ucrânia”. Conclui ainda que “a utilização destas imagens põe em causa o rigor informativo da peça jornalística, imposto” pela Lei da Televisão de Serviços Audiovisuais a Pedido.

    Na deliberação, a ERC considera “que é essencial que, no ambiente atual em que prolifera a desinformação, os media noticiosos ditos tradicionais garantam uma informação rigorosa e pugnem por alcançar a máxima credibilidade junto do público”. Diz também que os media mainstream “devem posicionar-se como portos seguros onde se encontra informação de qualidade”.

    O regulador decidiu “instar a SIC e a SIC Notícias a respeitarem o rigor informativo, sobretudo na cobertura noticiosa de guerra e conflitos armados, devendo assegurar a idoneidade e a atualidade de imagens ou discursos provenientes de fontes de informação oficiais e não oficiais, de forma a não veicularem conteúdos de desinformação ou propaganda”.

    Aliás, com base já nas três deliberações sobre má conduta de quatro canais televisivos (CNN Portugal, RTP, SIC e SIC Notícias), a ERC aproveitou para divulgar novamente a sua directiva sobre cobertura informativa televisiva de guerras e conflitos armados, aprovada em Agosto passado,

    Imagens de Fevereiro de 2014 na Praça Maidan, em Kiev, foram transmitidas pela RTP como se fossem de 2022.

    O regulador ainda decidiu “recomendar à SIC e à SIC Notícias que, nos fact-checks que realizem sobre conteúdos que também divulgaram, assumam o facto de também terem transmitido informação incorreta, reconhecendo o seu erro perante o público”. Isto porque a SIC Notícias, em parceria com o Polígrafo, até acabou por desmentir a história do “Fantasma de Kiev”, mas somente 20 dias depois e nunca revelando que também cometera esse erro, e que não tinha sido algo apenas das redes sociais.

    Na verdade, o mais curioso nestes dois processos acaba por ser os argumentos defendidos pelos canais televisivos.

    Por exemplo, notificada a pronunciar-se sobre as imagens falsas, a SIC admite-as, mas ainda argumentou que, “aquando da elaboração da peça, foram respeitados os deveres” jornalísticos. A SIC defende mesmo que “o rigor informativo de uma notícia não assenta exclusivamente na veracidade, o modo de construção da notícia respeitou os padrões de exigência e rigor jornalístico – ainda que se tenha vindo a provar que as imagens não eram reais – não só por a notícia ter sido apresentada de modo dubitativo, ou pelo menos não confirmado, mas outrossim por se tratar de uma notícia amplamente difundida, em particular por fontes oficiais ucranianas”.

    blue and brown hand painting

    A estação de televisão justificou o erro na difusão da notícia com o facto de estar no início do conflito. Explicou que a “notícia surgiu na sequência da publicação online do vídeo em causa”, a par “de fotografias de um piloto ucraniano – publicadas em 2019 pelo Ministério da Defesa ucraniano –, com a indicação de que um piloto ucraniano teria abatido sete caças russos”. E culpa as redes sociais, destacando que a “informação” foi “difundida, nas redes sociais, por várias contas ucranianas, assim como por órgãos informativos tidos por fidedignos”.

    Mas a SIC admitiu que “como se veio a perceber dias depois […] as imagens e a notícia foram veiculadas no âmbito da guerra de propaganda em curso nas redes sociais, utilizando imagens de um simulador de voo e imagens de um piloto ucraniano, de 2019”.

    Mas estes argumentos não foram acolhidos pela ERC, que enfatizou, na sua deliberação, que “a exibição de imagens virtuais como sendo imagens reais não configura um ‘modo dubitativo’ [como alegou a SIC], mas antes uma violação grosseira do dever de assegurar o rigor informativo”.

    O regulador salientou ainda que “o dever de rigor informativo impõe a verificação da autenticidade das imagens exibidas, de forma a detetar imagens virtuais, manipuladas digitalmente, etc.”, sustentando ser “necessário exercer um especial cuidado na utilização de imagens retiradas de redes sociais, nomeadamente através da confirmação da sua veracidade, sob pena de a sua exibição configurar desinformação”.

    man in white dress shirt wearing black framed eyeglasses

    Sobre a alegação da SIC, de que a notícia foi desmentida, tendo o programa ‘Polígrafo SIC’ abordado o assunto no dia 14 de março, a ERC discorda que se trate de uma rectificação.

    “Tendo sido visionado o programa ‘Polígrafo SIC’, verifica-se que, de facto, a história foi desmentida”, salienta o regulador, relembrando, porém, que a SIC não aproveitou a oportunidade para referir que aquelas imagens tinham também sido transmitidas naquele canal. “Na verdade, não procedeu à devida retificação da sua notícia”, conclui a entidade presidida pelo juiz conselheiro Sebastião Póvoas.

    Quanto à alegação dos canais da Imprensa de a sua peça ter sido apresentada em tom dubitativo, o regulador entende que “perante as dúvidas existentes quanto a veracidade da história e daquelas imagens, deveria a SIC ter refletido sobre a pertinência de contar aquela história”.

    Para a ERC, com a difusão daquela notícia falsa, “a SIC acaba por aderir à propaganda ucraniana”. E frisa que “não parece, assim, que fosse necessário um trabalho jornalístico minucioso para verificar que se tratava de imagens de um simulador de jogo, e não imagens reais”.

    Saliente-se, contudo, que apesar de ter esse poder, a ERC não obrigou a SIC, a SIC Notícias e a RTP, tal como já sucedera com a CNN Portugal, a pedirem desculpas aos telespectadores.

  • Juíza quer ver com os próprios olhos se o Instituto Superior Técnico tem um “esboço embrionário” ou uma desculpa esfarrapada

    Juíza quer ver com os próprios olhos se o Instituto Superior Técnico tem um “esboço embrionário” ou uma desculpa esfarrapada

    Assumindo a sua “autoridade científica”, o Instituto Superior Técnico começou, primeiro de forma sobranceira, a recusar ao PÁGINA UM o acesso a um relatório alarmista sobre a covid-19 disponibilizado à Lusa. Intimado através do Tribunal Administrativo de Lisboa, a instituição tem alegado que só fez um “esboço embrionário”. A juíza quer saber se é verdade. E obrigou esta entidade universitária presidida pelo catedrático Rogério Colaço a entregar-lhe o documento, em envelope lacrado, para o analisar.


    A juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa, Telma Nogueira, exige ver o alegado estudo do Instituto Superior Técnico divulgado pela imprensa em finais de Julho que estimava a ocorrência de centenas de mortes por causa das festas populares e festivais de música em Junho passado, numa altura em que, na verdade, se observou uma tendência de redução significativa de casos positivos.

    Em causa estão as estimativas e análises sobre a pandemia elaboradas pelo Instituto Superior Técnico desde Junho de 2021, em parceria com a Ordem dos Médicos, que inclui aquele que se debruçou sobre os efeitos das festividades de Junho, mas que agora a instituição universitária diz não ser, afinal, um relatório, apesar de a agência Lusa ter garantido ao PÁGINA UM que assim é. As estimativas apontavam para a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

    Durante o processo judicial no Tribunal Administrativo, o Instituto Superior começou por defender que não tem o dever de disponibilizar os documentos ao PÁGINA UM – incluindo os dados em bruto e a metodologia – por se estar perante um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Já na semana passada, o Instituto Superior Técnico veio argumentar, também em sede do processo de intimação instaurado pelo PÁGINA UM, dizendo que “o requerido [IST] nunca negou ter elaborado um ensaio, apenas afirmou que não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso que era um esboço”. E dizia ainda que a pretensão do PÁGINA UM “já se encontra satisfeita”, alegando que “o conteúdo do esboço foi dado a conhecer ao requerente [director do PÁGINA UM] assim que foi solicitado”.

    A instituição universitária presidida pelo catedrático Rogério Colaço argumentava, por fim, que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como agora esclarece.

    Mas agora a juíza Telma Nogueira quer mesmo saber se o Instituto Superior Técnico está a contar a verdade. No seu despacho, e “com vista a apurar se o documento em causa nos autos constitui um ‘esboço’ conforme alegado”, a juíza ordena que o Instituto Superior Técnico entregue, num prazo de 10 dias, “o referido documento que designa de ‘esboço’, em envelope lacrado” e dentro de outro envelope. A juíza dá a alternativa desse documento chegar ao Tribunal em mão ou via correio postal.

    Se o Instituto Superior Técnico conseguir convencer a juíza de que o documento em causa é um esboço – por exemplo, um guardanapo de papel com meros tópicos rascunhados é considerado um “esboço” –, a lei não o obriga a cedê-lo para consulta, mas ficará assim patente que a imprensa mainstream divulgou informação imprecisa, incompleta e errada, com a agravante de lhe chamar relatório. Se o documento estiver minimamente estruturado, então a equipa liderada pelo matemático Henrique Oliveira, e supervisionada pelo próprio presidente da instituição, poderá ser escrutinada sob o ponto de vista científico.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

    Relembre-se que o PÁGINA UM viu-se na necessidade de recorrer às instâncias judiciais perante a recusa expressa do Instituto Superior Técnico – incluindo do seu presidente, Rogério Colaço – em ceder tanto esse como os restantes relatórios elaborados desde Junho do ano passado em parceria com a Ordem dos Médicos.

    O PÁGINA UM também viu recusado o pedido de acesso aos dados brutos e à metodologia estatística usada. O PÁGINA UM não fez mais do que pedir elementos essenciais comummente usados em instituições académicas para validação científica – aliás, esta é uma prática pacífica e aceite com respeito mútuo pelo requerido e pelo requerente em meios universitários.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM, contando com o FUNDO JURÍDICO, está envolvido em 13 processos de intimação junto do Tribunal Administrativo, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 12.025 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Covid-19: Assintomáticos infectam 30% menos e originam três vezes mais casos sem gravidade, diz estudo norueguês

    Covid-19: Assintomáticos infectam 30% menos e originam três vezes mais casos sem gravidade, diz estudo norueguês

    Em artigo científico publicado ontem em prestigiada revista científica, investigadores do Instituto Norueguês de Saúde Pública concluíram que pessoas sem sintomas transmitem muito menos o SARS-CoV-2. Além disso, quando ocorre contágio nestas circunstâncias, a probabilidade de originar formas de doença menos grave (assintomáticos) é três vezes superior. O estudo norueguês revelou também que os casos assintomáticos eram, em média, mais frequentes nas faixas etárias jovens, em homens e em pessoas com menos doses de vacina em comparação com os casos sintomáticos.


    As pessoas infectadas pelo vírus SARS-CoV-2 que não apresentam sintomas transmitem quase 30% menos o vírus do que os sintomáticos, revelou ontem um artigo científico publicado na prestigiada revista BMC Medicine, pertencente à Springer Nature, que também edita a Nature. Os investigadores noruegueses – que analisaram mais de 27 mil casos positivos de covid-19 em Oslo entre Setembro de 2020 e Agosto de 2021 – revelam ainda que as pessoas contagiadas por assintomáticos tiveram três vezes maior probabilidade de também serem assintomáticas em comparação com a transmissão por um sintomático.

    Estas conclusões são extremamente importantes, uma vez que apontam para um menor nível de perigosidade do vírus no contágio por pessoas sem sintomas, pondo também em causa parte das medidas não-farmacológicas. Recorde-se que a maioria das autoridades de saúde chegaram a decretar o confinamento de pessoas com “contactos de risco” mesmo sem sintomas de covid-19.

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    Como o risco de transmissão era menor, mas mesmo existindo, as consequências eram menores, o confinamento aparenta não ter sido a melhor opção do ponto de vista da saúde pública. Ou seja, se houvesse maior transmissão por assintomáticos, que originam um maior rácio de infecções assintomáticas – em comparação com a transmissão por sintomáticos –, haveria, certamente, uma maior percentagem de pessoas a não desenvolverem formas graves de doença e a criarem assim imunidade natural útil para enfrentar posteriores infecções por sintomáticos.    

    A este respeito, o artigo, publicado já depois de revisto por pares (peer review), intitulado “Lower transmissibility of SARS-CoV-2 among asymptomatic cases” (em tradução livre, Menor transmissibilidade do SARS-CoV-2 entre casos assintomáticos) diz claramente que os “casos sintomáticos espalham o vírus em maior medida do que os assintomáticos, e que os infeciosos são mais propensos a serem assintomáticos se o seu infecioso assumido fosse assintomático”.

    Estudo foi ontem publicado na revista BMC Medicine.

    Os autores deste estudo – Fredrik Methi e Elisabeth Henie Madslien, ambos consultores do Instituto Norueguês de Saúde Pública – basearam a sua pesquisa em dados de rastreio de contactos na capital norueguesa, estimando “a dinâmica de transmissão e susceptibilidade entre casos sintomáticos e assintomáticos e os seus contactos identificados” a partir de 27.473 casos positivos e 164.153 contactos próximos.

    E estimaram, com rigor, que a taxa de ataque secundário (SAR) era 28% mais baixa por exposição assintomática em comparação com a exposição sintomática. Com efeito, no caso dos assintomáticos a taxa era de apenas 13%, valor que contrastava com os 18% no caso dos sintomáticos.

    Esse aspecto nem era o mais relevante. “As pessoas infectadas por pessoas assintomáticas eram quase três vezes mais propensos a serem [também] assintomáticas em comparação com as infetadas por casos sintomáticos”, adiantam os investigadores noruegueses.

    Por outro lado, os investigadores descobriram que, estranhamente, as pessoas com sintomas tinham mais doses de vacinas do que as pessoas sem sintomas – algo que entra em contradição com a propalada eficácia das vacinas na redução das formas graves de doença –, acrescentando assim que “os casos assintomáticos eram, em média, mais jovens e maioritariamente do sexo masculino.

    Os autores referem que “existem várias razões para os casos assintomáticos poderem ser menos transmissíveis do que os sintomáticos”, apontando “a falta de tosse, espirros e outros sintomas respiratórios [que] podem reduzir a disseminação de gotículas respiratórias”, além da existência de “diferenças na carga viral e excreção viral entre [esses] dois grupos”.

    No entanto, salientam que “até agora, a literatura [científica] sobre a relação entre carga viral e gravidade da doença é inconclusiva. E dizem ainda que “pode haver diferenças nos padrões comportamentais de pessoas sintomáticas e assintomáticas”, embora acrescentem que, em Oslo, não as encontraram.

  • Instituto Superior Técnico já diz agora que o seu “esboço” que associou mortes às festividades de Junho “pode não conter informações exactas e precisas”

    Instituto Superior Técnico já diz agora que o seu “esboço” que associou mortes às festividades de Junho “pode não conter informações exactas e precisas”

    Desde Junho de 2021, o Instituto Superior Técnico, investido da sua autoridade científica, elaborou relatórios sobre pandemia em parceria com a Ordem dos Médicos. No último estudo conhecido, divulgado há pouco mais de dois meses pela imprensa, atribuía directamente às festas populares e aos concertos em Junho várias centenas de mortes por covid-19, numa altura em que os casos positivos até apresentavam, afinal, forte tendência decrescente. Perante a recusa em ceder a informação, o PÁGINA UM apresentou um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa. Independentemente do seu resultado prático – acesso à informação –, este processo acaba por ser revelador de uma certa forma de “fazer” Ciência em Portugal, e da postura dos denominados “peritos”.


    Em processo que corre no Tribunal Administrativo de Lisboa (TAL) – intentado pelo PÁGINA UM para aceder a um alegado estudo (incluindo dados numéricos e metodologia) que associava as festas populares de Junho passado a um incremento directo de mortes por covid-19 –, o Instituto Superior Técnico (IST) veio agora reinterpretar o significado de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, conceito que usara inicialmente para classificar um relatório profusamente divulgado pela imprensa em final de Julho.

    A notícia original foi elaborada pela agência Lusa – que garantiu ao PÁGINA UM que “o relatório (…) existe, naturalmente, caso contrário (…) não teria feito notícia” – e reproduzido então por mais de uma dezena de órgãos de comunicação social de âmbito nacional.

    Relembre-se que o PÁGINA UM viu-se na necessidade de recorrer às instâncias judiciais perante a recusa expressa do Instituto Superior Técnico – incluindo do seu presidente, Rogério Colaço – em ceder tanto esse como os restantes relatórios elaborados desde Junho do ano passado em parceria com a Ordem dos Médicos. O PÁGINA UM também viu recusado o pedido de acesso aos dados brutos e à metodologia estatística usada. Saliente-se que o PÁGINA UM não fez mais do que pedir elementos essenciais comummente usados em instituições académicas para validação científica – aliás, esta é uma prática pacífica e aceite com respeito mútuo pelo requerido e pelo requerente.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

    Numa alegação entregue na passada quarta-feira no TAL, a advogada mandatada por Rogério Colaço veio agora dizer que “o requerido [IST] nunca negou ter elaborado um ensaio, apenas afirmou que não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso que era um esboço”. E diz ainda que a pretensão do PÁGINA UM “já se encontra satisfeita”, alegando que “o conteúdo do esboço foi dado a conhecer ao requerente [PÁGINA UM] assim que foi solicitado”.

    Saliente-se, porém, que o PÁGINA UM apenas recebeu de um dos investigadores do Instituto Superior Técnico uma explicação vaga sobre a suposta metodologia, mas nunca lhe foi remetido qualquer parte do alegado relatório escrito – que chegou mesmo a merecer citações expressas no take da Lusa, difundido pela restante imprensa – nem qualquer ficheiro com dados numéricos que possibilitasse qualquer conclusão.

    De acordo com a notícia da Lusa, de 28 de Julho passado – que continha sete citações expressas (vd. em baixo) do suposto relatório –, os peritos do Instituto Superior Técnico – supervisionados pelo próprio presidente – apontavam, entre outros aspectos, para a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como agora esclarece.

    Sucede, porém, que na realidade ao longo do mês de Junho se registou uma redução sistemática do número de casos positivos e de mortes atribuídas à covid-19, tornando paradoxal, e pouco sustentável cientificamente, que as festividades tivessem tido um impacte agravante. Ou seja, o levantamento das restrições e a maior proximidade física das pessoas sem máscara não foi acompanhada de um acréscimo de casos nem de óbitos.

    Foi exactamente para averiguar o cumprimento de preceitos de rigor científico que o PÁGINA UM pretendeu aceder ao suposto relatório do Instituto Superior Técnico, que a Lusa diz existir, e que a instituição universitária pública esclarece agora que “não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso (…) era um esboço”.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

    No entanto, esboço ou qualquer outra coisa que seja, certo é que o Instituto Superior Técnico nunca veio a público negar a validade das notícias da Lusa e dos outros órgãos de comunicação social, mesmo se agora a sua advogada garanta que desconhece como aquele (esboço ou relatório) “chegou à comunicação social”.

    Convém, aliás, notar que, na troca de e-mails no final de Julho passado entre o PÁGINA UM e o investigador Henrique Oliveira – coordenador da equipa de peritos do Instituto Superior Técnico –, aquele matemático não ignorava, pelo contrário, a repercussão mediática daquele esboço ou relatório.

    Com efeito, argumentando que toda a equipa estava de férias – e que ele era “o único do grupo de trabalho mandatado a falar sobre esses assuntos de análise” –, Henrique Oliveira fez mesmo gala de ter recusado “diversos convites” da imprensa, “nomeadamente de três televisões nacionais para falar sobre o assunto”. E a sua recusa para falar às televisões não fora por não reconhecer o relatório – ou por não o considerar válido ou validado –, mas sim porque, adiantava ao PÁGINA UM, “entrei de férias e as férias são, digamos, pouco científicas”.

    Resposta de Henrique Oliveira em 29 de Julho ao PÁGINA UM, em que informa ter recusado convites para falar com três televisões nacionais por estar de férias, nunca se demarcando da divulgação de informação não autorizada ou não validada cientificamente pela instituição universitária.

    Acrescente-se também que o PÁGINA UM seguiu o conselho de Henrique Oliveira e pediu o relatório e os dados em bruto ao gabinete de imprensa do Instituto Superior Técnico, mas este não foi satisfeito. Essa recusa seria mesmo reiterada por Rogério Colaço por mensagem enviada do seu telemóvel. Um posterior pedido formal, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, nem mereceu resposta, razão pela qual o PÁGINA UM fez entrar um processo de intimação junto do TAL.

    Mas agora o Instituto Superior Técnico ainda defende que, independentemente da classificação do documento em causa – relatório, ensaio, esboço ou outro qualquer termo –, o PÁGINA UM não deve ter acesso. “Considerando o princípio da proporcionalidade, salvo melhor opinião, não nos parece que o direito à informação do requerente [PÁGINA UM] se revele suficientemente relevante para justificar o acesso a um documento em estado embrionário, um estudo sem estar concluído”, acrescenta a defensora do Instituto Superior Técnico.

    Um relatório anterior do Instituto Superior Técnico alertava que haveria um aumento das infecções com as festividades, mas tal não sucedeu. O suposto relatório de finais de Julho pretendia convencer o público que afinal as previsões estavam quase certas. Mas, na hora de mostrar a base científica dessas conclusões, a instituição universitário optou por recusar essa validação externa. As festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos positivos de covid-19 regrediram face a Maio.

    E conclui ainda que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Saliente-se que a única pretensão do PÁGINA UM, neste caso, é analisar a qualidade da produção científica do Instituto Superior Técnico que, em articulação com a Ordem dos Médicos, ao longo dos meses apresentou e divulgou estudos sobre a pandemia. E sobretudo perceber se esta instituição científica fez algo para evitar que o seu nome fosse usado mediaticamente para transmitir informação errada ou inexacta, tanto mais que é o próprio Instituto Superior Técnico que admite que o seu (assim classificado) “ensaio de projeção/ estimativa” afinal “pode não conter informações exatas e precisas”.

    Em Março passado, Henrique Oliveira, que é professor do Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico, zurziu no relatório semanal da Direcção-Geral da Saúde, dizendo que era pobre. Em declarações à CNN Portugal disse mesmo que tinha “muito pouca qualidade, nebuloso mesmo”, e que, “como matemático, não hesitaria em chumbar um aluno que me apresentasse um relatório destes”. Sobre os relatórios do próprio Henrique Oliveira, em breve o PÁGINA UM saberá da sua qualidade, se a sentença do Tribunal for favorável a esse conhecimento público.


    Citações (entre aspas) do (suposto) relatório do Instituto Superior Técnico transcritas pela Lusa no take de 28 de Julho passado, que comprovam a existência de um relatório escrito, ou então estaremos perante uma “fraude” (transcrição de citações de um estudo inexistente). A Lusa recusou mostrar prova da existência do relatório, mas garante que existe. O PÁGINA UM apresenta as citações retiradas do artigo publicado pelo Diário de Noticias de 28 de Julho que transcreve o take da Lusa.

    1 – “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil

    2 – “não teriam impacto económico

    3 – “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida

    4 – “O efeito aqui é mais lento e menor do que o efeito das medidas gerais, pois afeta diretamente população mais jovem, mas leva a contágios em cascata que acabam por vitimar os mais suscetíveis a doença grave

    5 – “uma possível correlação com vagas de calor

    6 – “com tendência de atingirmos os valores mais baixos de 2022

    7 – “ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM, contando com o FUNDO JURÍDICO, está envolvido em 13 processos de intimação junto do Tribunal Administrativo, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 12.025 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.