Categoria: Exame

  • Relatório Rápido 52: Original do “esboço embrionário” do Instituto Superior Técnico só há em versão digital

    Relatório Rápido 52: Original do “esboço embrionário” do Instituto Superior Técnico só há em versão digital

    Mais um episódio no processo de intimação do Instituto Superior Técnico (IST) que luta para não ceder o relatório supostamente científico que causou alarme no Verão passado: afinal, não há uma versão em papel do Relatório Rápido 52, mas apenas uma versão “digital”. Fica-se na dúvida se a ausência de versão original em papel se deve à falta de recursos (papel, impressora e/ou toner) no IST ou à falta de conhecimentos técnicos dos investigadores do IST para ordenar a impressão em papel timbrado de um ficheiro informático.


    Novos desenvolvimentos sobre o último relatório do Instituto Superior Técnico (IST), o número 52, considerado por esta instituição universitária como “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, uma denominação esdrúxula para evitar que o Tribunal Administrativo de Lisboa autorize, por sentença, o seu acesso pelo PÁGINA UM.

    De acordo com os autos do processo de intimação, o IST já terá entregado anteontem, em mão, a versão digital daquele que será o “original” exigido pela juíza Telma Nogueira. Recorde-se que a magistrada responsável pelo processo exigiu ter acesso ao documento original sem quaisquer “anotações manuscritas a lápis” em que o IST estimou, de forma surpreendentemente alarmista, o impacte das festividades populares de Junho passado na incidência e mortalidade da covid-19.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, enviou cópia manipulada ao Tribunal Administrativo. Foi agora obrigado a enviar original sem qualquer anotação, mas resolveu dizer que só há original em versão digital..

    Tendo em consideração as dúvidas científicas que se colocam em função da evolução epidemiológica naquele mês, o PÁGINA UM pretende conhecer em detalhe se houve rigor ou uma fraude científica por parte dos investigadores, coordenados pelo próprio presidente do IST, o catedrático Rogério Colaço. Como o PÁGINA UM já destacou, naquele período observou uma tendência de redução significativa de casos positivos, pelo que surgiam assim dúvidas sobre o rigor científico daquele relatório feito por uma das mais prestigiadas faculdades públicas portuguesas em articulação com a Ordem dos Médicos.

    Em finais de Julho, a Lusa divulgou as conclusões daquilo que disse ser um “estudo” do IST, ao qual garantiu ao PÁGINA UM existir mermo, tanto mais que coloca sete citações, e que viria a “viralizar” na imprensa mainstream.

    A entrega desta versão digital do original – que, na verdade, se transformará numa versão original em papel se houver uma ordem de computador ligado a uma impressora com toner para imprimir – será, em princípio, o último passo para a decisão de um inaudito processo de intimação que decorre naquele tribunal, por iniciativa do PÁGINA UM.

    Ofício do IST que acompanhou a versão original do “esboço do documento”.

    A decisão de levar este casos para tribunal surgiu após a recusa do presidente do IST, Rogério Colaço, em disponibilizar os dados estatísticos e o relatório escrito que serviram para a Lusa divulgar, em 28 de Julho passado, a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Em todo o caso, existindo agora, e de forma assumida pelo IST, uma versão original, a juíza sempre poderá tomar diligências suplementares, do ponto de vista informático, para apurar se houve, e quando houve, alterações no ficheiro informático, e se estas foram posteriores à data da divulgação da notícia da Lusa.

    Saliente-se também que ao longo dos últimos quatro meses o IST tem mantido uma inquietante postura obscurantista, nada habitual em instituições universitárias públicas, recusando divulgar os dados em bruto e um relatório com impacte relevante. Além disso, mesmo se se estivesse em finais de Julho em face de um alegado “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, quatro meses já deveria ter sido tempo suficiente para o transformar um “relatório”, ou então assumir o erro, algo que é aceitável (e recomendável) em Ciência.

    Independentemente da análise do Tribunal Administrativo de Lisboa sobre o enquadramento semântico do Relatório Rápido nº 52 (se é um relatório ou um esboço), saliente-se que o PÁGINA UM requereu ao IST, estando também para decisão do Tribunal Administrativo, os relatórios anteriores, elaborados em colaboração com a Ordem dos Médicos desde Junho de 2021.

    Como o IST não alegou, para nenhum dos outros 51, que se estava perante situações de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, tudo indica que pelo menos 51 relatórios serão disponibilizados, através de sentença, para uma avaliação independente da qualidade e rigor científico do IST durante a pandemia.   


    Citações (entre aspas) do Relatório Rápido nº 52 do Instituto Superior Técnico transcritas pela Lusa no take de 28 de Julho passado, que comprovam a existência de um relatório escrito, ou então estaremos perante uma “fraude” (transcrição de citações de um estudo inexistente). A Lusa recusou mostrar prova da existência do relatório, mas garante que existe. O PÁGINA UM apresenta as citações retiradas do artigo publicado pelo Diário de Noticias de 28 de Julho que transcreve o take da Lusa.

    1 – “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil

    2 – “não teriam impacto económico

    3 – “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida

    4 – “O efeito aqui é mais lento e menor do que o efeito das medidas gerais, pois afeta diretamente população mais jovem, mas leva a contágios em cascata que acabam por vitimar os mais suscetíveis a doença grave

    5 – “uma possível correlação com vagas de calor

    6 – “com tendência de atingirmos os valores mais baixos de 2022

    7 – “ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Filipe Froes está mesmo com um processo disciplinar à perna… mas a “marinar” desde Fevereiro

    Filipe Froes está mesmo com um processo disciplinar à perna… mas a “marinar” desde Fevereiro

    Estrela mediática durante a pandemia, Filipe Froes manteve-se como consultor da Direcção-Geral da Saúde, enquanto acumulava funções de consultor e palestrante de farmacêuticas com fortes interesses no negócio da covid-19. Assumia-se sempre como um perito independente sem conflitos de interesses, apesar de mais de uma vintena de farmacêuticas que, desde 2013, se mostraram interessadas nos seus préstimos. A Inspecção-Geral das Actividades de Saúde, depois de um processo de averiguações, abriu-lhe mesmo um processo disciplinar… que marca passo há mais de nove meses. Já nasceram as crianças que foram concebidas no mesmo dia em que o inspector-geral determinou a instauração deste processo.


    A Inspecção-Geral das Actvidades em Saúde confirmou hoje ao PÁGINA UM que o pneumologista Filipe Froes está mesmo a ser alvo de um processo disciplinar devido às suas ligações à indústria farmacêutica, mas o seu processo arrasta-se desde Fevereiro deste ano. A IGAS acrescenta que o processo disciplinar se encontra ainda em fase de instrução e, nessa medida, inacessível pela “natureza secreta do inquérito”.

    A IGAS não adianta quais os motivos de tantos meses para a instrução deste processo disciplinar, mas informa que este deriva das averiguações iniciadas em Setembro do ano passado a que foi sujeito este conhecido consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS), presença assídua na imprensa como alegado perito independente durante os anos da pandemia.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.

    De acordo com a entidade fiscalizadora, o processo disciplinar a Filipe Froes vem no seguimento da “informação de avaliação n.º 149/2022”, que mereceu um despacho em 19 de Fevereiro passado do inspector-geral das Actividades em Saúde, Carlos Carapeto, que deu instruções para ser iniciado um processo disciplinar, ignorando-se o “castigo” eventualmente a aplicar.

    A decisão de instauração de um processo disciplinar a Filipe Froes após um processo formal de averiguações – revelado em Novembro do ano passado pelos semanários O Novo e Expresso – mostra já, em todo o caso, a existência de fortes indícios de irregularidades e/ ou ilegalidades. De facto, o processo de averiguações só avançaria para uma fase posterior se se tivesse apurado matéria suficiente para uma “condenação” em processo disciplinar, o que não surpreenderá, tendo em conta o que se foi tornando público.

    Em 4 de Janeiro passado, o PÁGINA UM tinha já escalpelizado as declarações de Filipe Froes no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e cruzado com os relatórios e contas dos últimos anos da sua empresa – a Terra & Froes –, detectando sinais de alguma “contabilidade criativa” para que não fosse ultrapassada a média anual (no último quinquénio) de 50 mil euros de recebimentos da indústria farmacêutica. Esta é a fasquia monetária a partir da qual Froes ficaria impedido de ser consultor da DGS.

    Antologia de crónicas de Filipe Froes no Diário de Notícias teve o patrocínio (ainda não declarado) da farmacêutica Bial.

    Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também liderou o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia.

    De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, mais de 270 contratos comerciais, em seu nome ou na sua empresa Terras & Froes, com 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado ultrapassa os 400 mil euros. Nos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, valor superior ao que ganha como médico do SNS. Este ano, em 11 meses, vai com uma média mensal de 4.327 euros.

    O processo da IGAS pode assim vir a colocar em causa a manutenção de Froes como consultor da DGS e também manchar a sua credibilidade numa fase crucial das eleições para a Ordem dos Médicos. Com efeito, Filipe Froes é mandatário da candidatura de Carlos Cortes a bastonário.

    Filipe Froes (ao centro), entregou como mandatário, no dia 21 de Novembro, a candidatura de Carlos Cortes (quarto à esquerda) a bastonário da Ordem dos Médicos.

    Por outro lado, uma eventual “condenação” confirmaria ainda mais o seu papel de lobista, acusação que o tem constantemente perseguido. Por exemplo, Froes tem sido um defensor do uso do polémico remdesivir, dentro da equipa de consultores que define as terapêuticas anti-covid, e é, em simultâneo, consultor da farmacêutica (Gilead) especificamente para aquele medicamento. Froes também é um acérrimo defensor da vacinação contra a covid-19 em crianças e adolescentes – cujas vacinas são exclusivamente da Pfizer, farmacêutica para a qual este pneumologista tem passado muitas facturas para cobrar colaborações.

    Já este ano, em diversas ocasiões, Froes tem promovido, de forma entusiástica, o uso dos anticorpos monoclonais (produzidos pela Pfizer e pela Merck Sharpe & Dohme) e a integração da vacina da covid e da gripe numa só dose (comercializada pela Sanofi). Saliente-se que só este ano a Merck Sharpe & Dohme e a Sanofi já entregaram oficialmente a Froes um total de 22.261 e 13.583 euros, respectivamente. No total, o pneumologista terá já amealhado 47.602 euros ao longo de 2022.

    Saliente-se, contudo, que estes rendimentos podem pecar por defeito, uma vez que cada vez se torna mais patente que o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed apresenta falhas enormes, porque as farmacêuticas se “esquecem” de registar donativos e patrocínios a médicos e outras entidades, entre as quais os media mainstream, incumprindo o Estatuto do Medicamento.

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    Por exemplo, ainda este mês, Filipe Froes lançou um pequeno livro com as crónicas que foi publicando no Diário de Notícias, em co-autoria com Patrícia Akester, e o patrocínio da Bial. A farmacêutica portuguesa – que tem como chairman António Horta Osório, que é simultaneamente administrador da Impresa (dona do Expressso e SIC) ainda não colocou o valor do apoio no portal do Infarmed nem sequer respondeu a questões colocadas pelo PÁGINA UM.

    Recorde-se que o PÁGINA UM teve acesso, este mês, no decurso de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, a cerca de três dezenas de processos levantados pela IGAS, incluindo ao presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais, também por incompatibilidades relacionadas com farmacêuticas.

    Por estranhar que não se encontrava no lote o processo de Filipe Froes, o PÁGINA UM insistiu para que este fosse disponibilizado, o que não se mostra legalmente possível por se encontrar em fase de instrução. Contudo, se o processo disciplinar, agora em curso, não estiver concluído até 19 de Fevereiro do próximo ano, a IGAS terá, contudo, de disponibilizar pelo menos o processo de averiguação a Filipe Froes.

  • Nova sentença histórica: Governo esconde, mas Tribunal “desbloqueia” base de dados hospitalar com todos os doentes internados

    Nova sentença histórica: Governo esconde, mas Tribunal “desbloqueia” base de dados hospitalar com todos os doentes internados

    A base de dados dos grupos de diagnósticos homogéneos (BD-GDH) é, porventura, o mais importante sistema de informação sobre saúde em Portugal, com um potencial que permitirá avaliar o impacte real da pandemia a partir de 2020 e, sobretudo, detectar quais as causas do excesso de mortalidade em Portugal nos últimos meses. A análise dessa informação, de forma independente, tem capacidade para reescrever o que se passou nos últimos três anos. Não por acaso, a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) andou nos últimos quatro meses a lutar no Tribunal Administrativo de Lisboa para evitar ceder o acesso dessa base de dados ao PÁGINA UM. Valeu tudo; até mentiras sobre a impossibilidade de anonimização de dados nominativos. Perdeu…


    É a maior vitória em prol da transparência por parte do PÁGINA UM desde o seu nascimento. Uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, da passada sexta-feira, determinou que a Administração Central de Sistema de Saúde (ACSS) – um dos organismos centrais da gestão dos serviços hospitalares – tem de “facultar (…) o acesso ou cópia digital da base de dados do GDH [Grupos de Diagnósticos Homogéneos], expurgada dos dados pessoais que nela constem”.

    Esta base de dados (BD-GDH), gerida sem influência governamental, integra todos os doentes internados nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde, identificando o diagnóstico principal (aquele que, após o estudo do doente, revelou ser o responsável pela sua admissão no hospital), os diagnósticos secundários (todos os restantes diagnósticos associados à condição clínica do doente, podendo gerar a existência de complicações ou de comorbilidades), os procedimentos realizados, destino após a alta (transferido, saído contra parecer médico, falecido) e, no caso de recém-nascidos, o peso à nascença. Contém também dados de identificação (nome, idade e sexo), mas como em qualquer base de dados modernas, o expurgo de dados nominativos, neste caso o nome do doente, é uma opção prevista na concepção dos perfis de acesso, tornando assim os dados anonimizados e susceptíveis de todo o tipo de tratamento estatístico.

    Marta Temido (ex-ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. A antiga governante e o dirigente da ACSS foram companheiros durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

    Além de esclarecer, de forma clara, o efectivo impacte da pandemia e da covid-19 desde 2020, a BD-GDH possibilitará, à falta de outras bases de dados que o Ministério da Saúde continua a recusar disponibilizar – e que ainda se encontram em análise em outros processos no Tribunal Administrativo –, obter indicadores sobre as principais afecções e doenças que poderão estar a contribuir para o contínuo excesso de mortalidade, numa fase em que a covid-19 se encontra já em fase endémica.

    Esta vitória histórica do PÁGINA UM – que se sucede a outras sentenças favoráveis – surge no decurso de um longo processo de obstaculização por parte do presidente da ACSS, Victor Herdeiro – amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido –, que começou, em meados de Maio passado, por expurgar do Portal da Transparência do SNS uma base de dados pública sobre morbilidade e mortalidade hospitalar, uma versão manipulada e mais simplista da BD-GDH.

    A decisão de Victor Herdeiro – justificada pela necessidade nunca provada de “análise interna” – foi uma reacção política ao conjunto de artigos de investigação do PÁGINA UM sobre o desempenho hospitalar desde 2020, e não apenas relacionado com a covid-19.

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    Mesmo sendo uma simplificação da BD-GDH, essa base de dados que estava no Portal da Transparência permitira, através de análise estatística feita pelo PÁGINA UM, revelar que, até Janeiro deste ano, houvera menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a variante Ómicron tinha indicadores de letalidade inferiores aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    Após várias tentativas para “convencer” o Ministério da Saúde – que nunca quis rectificar a conduta de Victor Herdeiro –, o PÁGINA UM apresentou em 19 de Agosto passado uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa contra a ACSS, mas já não apenas para a reposição da versão original da base de dados da mortalidade e morbilidade – que fora entretanto reposta mas completamente “mutilada”. Com efeito, foi também solicitado o acesso à BD-GDH, por se ter considerado ser uma base de dados mais completa e muito mais “imune” a intervenções políticas.

    No dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho, o PÁGINA UM usou uma base de dados que esteve, durante um período, suspensa. A BD-GDH tem um potencial informativo muito superior.

    Desde logo, a ACSS – através do escritório de advogados BAS, que tem vencido uma quantidade significativa de contratos por ajuste directo de entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde – mostrou que não estava interessada em abrir mão à “secreta” BD-GDH. Alegando que já repusera a base de dados original da morbilidade e mortalidade hospitalar – o que, de facto, terá sucedido em meados de Agosto –, a ACSS começou por tentar iludir a juíza do processo, Ilda Maria Côco, fazendo crer ter já satisfeito o pedido integral do PÁGINA UM, e solicitou assim que a intimação fosse “totalmente julgada improcedente e indeferida, tudo com legais consequências”.

    Somente após um requerimento do advogado do PÁGINA UM, Rui Amores, provando que estava sobretudo em causa a continuada recusa do acesso à BD-GDH, a ACSS veio pronunciar-se sobre este assunto – ou seja, foi obrigada a justificar a recusa. Mas recorrendo à mentira.

    Com efeito, através da mesma sociedade de advogados, a ACSS defendeu que a BD-GDH continha “dados pessoais” e que “as funcionalidades dos sistemas de informação nos quais se encontram localizadas não permitem tecnicamente a respetiva consulta sem acesso aos dados pessoais em causa”, acrescentando que “reprodução (digital) da informação da base de dados com expurgo dos dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado que ultrapassa a simples manipulação”. E concluiu que, “associado à extensão dos dados em causa e à própria arquitetura dos sistemas de informação em que se suportam as bases de dados”, obrigar a anonimização “acarretaria para ACSS uma atuação administrativa, com gestão dos recursos disponíveis para a prossecução das respetivas atribuições legais em desvio dos princípios aplicáveis e pelos quais se deve reger a atividade administrativa, nomeadamente, os princípios do interesse público, da boa administração, da proporcionalidade e da razoabilidade”.

    Este arrazoado tinha, porém, apenas um fito: continuar a esconder a BD-GDH do escrutínio público, tentando convencer a juíza do processo de que a anonimização de uma base de dados deste género não é um processo corriqueiro, nem que basta seleccionar as variáveis que se pretenda e, nessa linha, excluir aquelas que não se pretendem. Destaque-se que o PÁGINA UM jamais teve a pretensão de revelar dados pessoais de doentes, sobretudo por não ser ético, mas também por ser de interesse nulo para quaisquer diagnósticos em saúde pública.

    Mas tinha também este arrazoado jurídico uma perna curta. De facto, a anonimização da BD-GDH é um procedimento tão corriqueiro e bem conhecido da ACSS, tanto assim que esse expediente administrativo costuma estar expressamente delegado num dos vice-presidentes para conceder acessos a investigadores. Por exemplo, no presente conselho directivo da ACSS, Victor Herdeiro delegou na sua vice-presidente Sandra Brás a competência “para autorizar o fornecimento de dados anonimizados provenientes da Base de Dados Nacional de Grupos de Diagnósticos Homogéneos (BD-GDH)”, conforme a Deliberação 835/2021 publicado em Diário da República em 9 de Agosto do ano passado.

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    Perante esta evidência, acabou por ser com naturalidade que a juíza Ilda Côco deu razão ao PÁGINA UM. De acordo com a magistrada, como a ACSS apenas se limitou a “alegar, de forma conclusiva, que o expurgo de dados pessoais implicaria a criação ou adaptação da base de dados com um esforço desproporcionado (…), mas sem que alegue quaisquer factos concretos que permitam concluir no sentido por si pretendido”, terá assim 10 dias para facultar o acesso à base de dados… carregando no teclado e/ ou no rato do computador para expurgar os dados nominativos.

    A ACSS poderá ainda recorrer desta sentença, o que a observar-se constituirá mais um sinal de obscurantismo no sentido de evitar uma avaliação independente das políticas de saúde nos últimos anos. O PÁGINA UM enviou a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa ao Ministério da Saúde para saber se o ministro Manuel Pizarro tomará alguma diligência junto da ACSS para libertar a BD-GDH ou para que recorra para o Tribunal Central Administrativo Sul. Sem resposta até agora, o que era uma situação habitual nos tempos de Marta Temido, e que não se modificou com a entrada em funções governamentais do médico Manuel Pizarro.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Os protestos na China são contra uma estratégia de saúde pública ou contra a pura opressão autoritária?

    Os protestos na China são contra uma estratégia de saúde pública ou contra a pura opressão autoritária?

    O PÁGINA UM analisa uma recente notícia da Associated Press sobre as manifestações em Xangai e outras cidades chinesas. E aponta as falhas, agora recorrentes, da imprensa mainstream, desde a falta de contextualização política até à ausência completa e absurda de um enquadramento que tenha em consideração os mais actuais avaliações sobre a pandemia .


    A pergunta é legítima: por que motivo a imprensa mainstream e mesmo as grandes agências noticiosas, mesmo internacionais, publicam agora notícias importantes que apresentam falhas graves de informação e carecem de contexto?

    É por os jornalistas que as escrevem não deterem conhecimentos e ignorarem o contexto? É por negligência ou mesmo incompetência de editores? É propositado por indicação da política editorial ou comercial das empresas de media?

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    Esta semana, de novo, volta a repetir-se um cenário que tem sido comum desde o início da pandemia: notícias de agências noticiosas internacionais, divulgadas em massa pelos restantes meios de comunicação social, apresentam graves falhas de informação e de contexto.

    O caso de divulgação de notícias com falta de contexto, e até tendenciosas, por parte de agências noticiosas, é mais grave devido ao fenómeno das notícias recicladas – denominado como churnalism. Notícias são replicadas até à exaustão sem a devida verificação de factos e sem que os meios de comunicação social que as replicam assumam qualquer responsabilidade pela sua veracidade e qualidade.

    Saliente-se, desde já, que as agências noticiosas são cruciais e o seu trabalho é de fundamental importância. Habitualmente, é através das agências que os restantes meios de comunicação social conseguem rapidamente obter informação de todo o Mundo sobre conflitos ou catástrofes repentinas, mas também sobre todo o tipo de temas da actualidade, por terem correspondentes sempre presentes. Mas as redacções destas agências têm vindo a ser emagrecidas. Jornalistas com mais experiência são demitidos e, quando substituídos, surgem outros com pouca experiência.

    O advento da Internet e das redes sociais teve um papel relevante, já que hoje muita informação surge diretamente de internautas. O Mundo está muito mais rápido. Mas nada disto serve como justificação para as falhas que noticias cruciais continuam a apresentar. E ainda mais nos últimos anos.

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    Paradigmática desta situação é, por exemplo, a tendência crescente para uma certa complacência e falta de contexto propositado na cobertura de notícias sobre a China e sobretudo da sua abordagem à gestão da pandemia da covid-19. Mas esta tendência para a chinezisação dos media ocidentais será tema a abordar em análise futura.

    Foquemo-nos num exemplo de uma recente notícia de uma conhecida agência internacional para demonstrar como se falha na independência e isenção jornalística. Trata-se de uma notícia de ontem da Associated Press (AP), intitulada “Protests over China’s COVID controls spread across country”. Em tradução livre: “Protestos sobre medidas covid-19 na China alastram no país”.

    Primeiro, vale a pena sublinhar que esta notícia só foi divulgada pela imprensa mainstream quando já circulavam em abundância na Internet relatos, fotos e vídeos sobre a existência daqueles protestos, como se pode confirmar no canal China Uncensored. Ou seja, as agências noticiosas só acordaram quando se mostrou visível que estavam estranhamente a “dormir” sobre o assunto. Mas avancemos.

    Em causa, segundo a AP, e segundo a sua notícia, estão “os protestos contra as medidas de controlo antivirais na China, que confinaram milhões de pessoas nas suas casas” e que “espalharam-se para Xangai e outras cidades” após denúncias de que um incêndio urbano em Urumqi teria causado um número superior de vítimas face à contabilidade oficial. Naquela região, a política de confinamentos impede a saída das pessoas em quaisquer circunstâncias.

    Notícia da Associated Press analisada pelo PÁGINA UM.

    Continuemos com a notícia da AP que nos revela que “a polícia de Xangai usou spray de gás-pimenta contra cerca de 300 manifestantes, segundo uma testemunha”. A notícia acrescenta ainda: “Vídeos publicados nas redes sociais que dizem ter sido filmados em Nanjing, no leste, e em Guangzhou, no sul, e pelo menos cinco outras cidades, mostraram manifestantes a lutar contra a polícia vestida com fatos de proteção brancos ou a desmantelar barricadas usadas para selar bairros”.

    Ao fim da leitura de um título e dos três primeiros parágrafos, a primeira grande falha mostra-se óbvia: nenhuma menção ao facto de a China ser uma ditadura, um regime totalitário, tradicionalmente repressor e autoritário.

    Num regime ditatorial – que persegue minorias e opositores políticos e onde não existe liberdade de expressão –, o facto de se estar a aprisionar em casa milhões de pessoas deveria merecer dúvidas sobre a real justificação para esse acto. Além disso, convém recordar que um regime totalitário tem como principais instrumentos o controlo de informação e a manipulação de dados. Aliás, a propaganda é crucial em qualquer regime totalitário, como é o caso da China. Assim, contextualizando a situação chinesa, o leitor ficaria logo prevenido quanto à fiabilidade dos dados vindos do Governo chinês. 

    Protestos repelidos pela polícia chinesa, vestida com fatos brancos.

    Mas a segunda falta de contexto na notícia da AP é ainda mais perniciosa, porque remete para mitos criados em todo o Mundo relativamente ao controlo da pandemia. No quarto parágrafo da notícia refere-se que “o Governo do Presidente Xi Jinping enfrenta uma raiva crescente com a sua política de “zero-covid”, que tem encerrado o acesso a áreas em toda a China, numa tentativa de isolar todos os casos numa altura em que outros Governos estão a aliviar os controlos e a tentar viver com o vírus”.

    Naquele parágrafo está um dos erros básicos cometidos por jornalistas na cobertura do combate à pandemia da covid-19: escrevem acriticamente, como se fossem relações-públicas de Governos e autoridades de saúde.

    Assim, quando a notícia refere “tentativa de isolar todos os casos”, não está a ser isenta. Deveria antes referir “alegadamente, numa tentativa de isolar todos os casos”. Porquê? Porque é o Governo chinês que diz que as medidas drásticas – que incluem barricar casas, prédios e bairros inteiros – tem o objetivo de “isolar todos os casos” de covid-19.

    Não é o jornalista, nem a AP, que o dizem. É o Governo. E ainda por cima o Governo chinês – que comanda uma ditadura – a dar aquela justificação. Ao escrever aquela frase na notícia, a impressão que passa para o leitor é que se justifica barricar bairros e aprisionar milhões de pessoas nas suas casas; que é uma justificação “verdadeira” e essencial, apesar de tudo. Na verdade, o que o jornalista sabe, é que aquela é uma justificação dada pelo Governo. Apenas isso. Não é a verdade. Não é um facto.

    Mas, no parágrafo seguinte da notícia da AP, surge a grande machadada no jornalismo: “Isso [os confinamentos] manteve a taxa de infecção da China mais baixa do que a dos Estados Unidos e a de outros países”. Ora, afirmar isto, assim, é extremamente grave.

    Primeiro, porque os dados divulgados na China estão sempre ensombrados pela dúvida, porque se trata de uma ditadura, que controla e manipula a informação de forma sistemática. Aliás, todos deveríamos questionar como um país de quase 1,5 mil milhões de pessoas, e que conta 1,45 milhões de casos positivos – ou seja, 0,1% da sua população – e contabiliza oficialmente 5.233 óbitos por covid-19 – que assim matou 0,00036% da sua população –, pode justificar, por razões de saúde pública, medidas tão draconianas. Ou mente nos números da incidência e letalidade; ou então mente na justificação para as medidas, que nada têm de protecção da saúde pública.

    Segundo, em outros países os confinamentos falharam no propósito de reduzir os casos de covid-19, como comprovam diversos estudos científicos. Para a imprensa mainstream custa cada vez mais assumir que o país com o maior sucesso na redução de casos e na gestão da pandemia a médio e longo prazo foi a Suécia, que recusou, em geral, os confinamentos, bem como o uso de máscaras faciais – e preferiu uma política sustentável de saúde pública enquadrando a covid-19 num contexto global do ponto de vista sanitário e socio-económico. Ao contrário do que a notícia da AP veicula para o público, os confinamentos não reduzem o número de casos nem são um instrumento sensato de se usar em sociedade.

    Assim, com este tipo de notícias, a AP assume, mesmo que inconscientemente, o papel de porta-voz do regime chinês, porque “a taxa de infecção da China” é aquela que o Governo chinês quiser, e quiser que se saiba. Deve sempre um jornalista, por isso, na cobertura de temas de regimes que controlam a informação, ter o cuidado de mencionar que os dados são os divulgados por autoridades sem crédito, uma vez que num regime como o chinês os dados de uma pandemia podem ser verdadeiros ou ser fabricados para impor uma qualquer política. Aliás, nem só em ditaduras, diga-se: veja-se as dificuldades do PÁGINA UM em aceder a bases de dados em Portugal, que o obriga mesmo ao recurso a tribunal.

    Mas continuemos na análise. A notícia da AP prossegue então com a seguinte frase: “Mas o Partido Comunista no poder enfrenta crescentes queixas sobre os custos económicos e humanos à medida que as empresas se fecham e as famílias ficam isoladas durante semanas com limitado acesso a alimentos e medicamentos”.

    Finalmente, aqui temos a primeira menção de que se trata de um regime “comunista”. No quinto parágrafo, contudo. E acrescenta ainda a AP que “alguns manifestantes surgiram em vídeos a gritar para Xi se demitir ou o partido no poder resignar”, sem sequer se preocupar em contextualizar a relevância destas manifestações num país onde a liberdade de expressão e de manifestação é zero. Ou seja, haver manifestações deste género em Xangai é de uma relevância política e social sem precedentes desde Tiananmen.

    Mais à frente, a notícia informa que “os líderes partidários [chineses] prometeram, no mês passado, tornar as restrições menos disruptivas, facilitando a quarentena e outras regras, mas disseram que mantinham a política de “covid zero”. Como têm alertado cientistas e médicos, é impossível atingir “zero covid”, e começam a surgir estudos científicos independentes que demonstram o seu fracasso do ponto de vista económico e social. Mas esta informação de contexto não surge em lado algum na notícia da AP.

    A notícia continua com erros de análise e falta de contexto. Escreve ainda o jornalista da AP: “Entretanto, um aumento das infecções, que empurrou os casos diários acima dos 30.000 pela primeira vez, levou as autoridades locais a impor restrições que os residentes reclamam exceder o que é permitido pelo Governo nacional”. Primeiro, há aqui mais uma (habitual) falta de rigor na contabilização e contextualização dos números da pandemia, que foi erro grave mas corriqueiro desde o início de 2020.

    Na China, as actuais contagens de casos positivos variam diariamente, havendo dias em que se ultrapassaram efectivamente os 30 mil casos, mas nos dias anteriores os números foram muito mais baixos, da ordem dos poucos milhares. Em rigor, a média dos últimos sete dias na China anda agora pelos 25 mil casos positivos por dia, estando ao nível do pico de Abril deste ano. Mas atenção, 25 mil casos num universo de quase 1,5 mil milhões de pessoas é quase nada.

    Em Portugal, em Janeiro destes ano, chegámos aos 58 mil casos positivos (média móvel de sete dias) numa população de 10 milhões – ou seja, de menos de 1% da população chinesa. Haver 25 mil casos na China é como haver cerca de 173 casos por dia em Portugal. Actualmente, temos em Portugal uma média diária de 573 casos, o valor mais baixo do último ano.

    Onde está este tipo de enquadramento na notícia da AP?

    E depois, não acham estranho que em sete parágrafos da notícia da AP não surja nenhuma referência ao nível de vacinação contra a covid-19 na China? Não era suposto ser com a vacina que iria terminar com a pandemia e regressarmos à normalidade? Já agora, convém acrescentar que a vacinação contra a covid-19 na China é de 90,1%, segundo os mais recentes dados do Our World in Data. E mesmo assim justificam-se estes confinamentos atrozes? É tudo ainda por causa da covid-19? A AP nada questiona. A imprensa mainstream nada pergunta.

    Outra informação crucial ausente em toda a notícia da AP: o nível de letalidade da covid-19, a nível mundial e na China, antes e depois do surgimento das vacinas, antes e depois da dominância da variante Ómicron, e até por faixa etária, sabendo-se hoje, com Ciência, que os efeitos da pandemia foram praticamente nulos nas faixas mais jovens da população.

    Por exemplo, um artigo científico divulgado no mês passado, onde se destaca como autor John Ioannidis, o epidemiologista mais citado do Mundo, estimou, a partir de 31 estudos nacionais de seroprevalência sistematicamente identificados na era da pré-vacinação, que a taxa de mortalidade por infecção de covid-19 foi de 0,095% para os menores de 70 anos, sendo irrelevante nos grupos etários mais jovens. E apontou também que a taxa de letalidade global se situava entre 0,03% e 0,07% mesmo antes dos programas de vacinação e antes do surgimento da variante Ómicron.  Nada disto importou na notícia da Associated Press, bem como na generalidade das notícias da imprensa mainstream sobre a pandemia.

    Em suma, e sem prejuízo de relatar correctamente uma parte dos acontecimentos na China, a AP – tal como a generalidade da imprensa mainstream – continua a ser a imagem de uma comunicação social auto-sequestrada pela sua conduta durante a pandemia. E que justificou, mesmo no mundo ocidental, uma política de lockdowns nunca vista em tempo de paz, conduzindo a derivas totalitárias que hoje, com apreensão, vemos chegar a extremos na China. E que, a manter-se a falta de rigor informativo, exigível à comunicação social em democracias, podemos ver chegar à Europa um destes dias.

    Aliás, a mudança constitucional prometida pelo PS e pelo PSD, no que diz respeito à retirada de direitos civis em caso de supostas pandemias, não serve para fazer igual ao que se fez desde 2020; é para fazer bem pior. A China está ali para o demonstrar. E com a falta de rigor informativo, patente na imprensa mainstream ocidental, como aqui se demonstra, esse desfecho é não só possível como até aplaudido e comungado por jornalistas do regime.

  • Relatório Rápido 52: Instituto Superior Técnico manipulou documentos enviados ao Tribunal Administrativo

    Relatório Rápido 52: Instituto Superior Técnico manipulou documentos enviados ao Tribunal Administrativo

    Mais um episódio caricato no processo de intimação do Instituto Superior Técnico que luta para não ceder relatório supostamente científico que causou alarme no Verão: a juíza fez hoje despacho para que seja enviado o original e não uma cópia com anotações a lápis. A manipulação do IST visaria convencer o tribunal de que se está perante um esboço, e não um relatório científico, mesmo se de duvidosa qualidade. Uma novidade deste despacho é que, finalmente, se sabe quantos relatórios o IST terá feito em articulação com a Ordem dos Médicos: 52. Se a sentença for inteiramente favorável ao PÁGINA UM, todos serão tornados públicos.


    A juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa, Telma Nogueira, ordenou hoje que o Instituto Superior Técnico lhe enviasse o relatório original sobre o impacte das festividades populares de Junho passado na incidência e mortalidade da covid-19 – cujas conclusões foram divulgadas pela Lusa e “viralizaram” na imprensa mainstream –, e não uma cópia manipulada com “anotações manuscritas a lápis”. 

    Este é o mais recente episódio de um inaudito processo de intimação que decorre naquele tribunal, por iniciativa do PÁGINA UM, após a recusa do presidente do IST, Rogério Colaço, em disponibilizar os dados estatísticos e o relatório escrito que serviram para a Lusa divulgar, em 28 de Julho passado, a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, enviou cópia manipulada ao Tribunal Administrativo. Foi hoje obrigado a enviar original sem qualquer anotação.

    Na verdade, como o PÁGINA UM destacou, naquele período observou uma tendência de redução significativa de casos positivos, pelo que surgiam assim dúvidas sobre o rigor científico daquele relatório feito por uma das mais prestigiadas faculdades públicas portuguesas em articulação com a Ordem dos Médicos.

    Em sede de processo em Tribunal Administrativo, o IST começou por afirmar que não divulgara qualquer relatório, e que apenas concebera um “esboço embrionário, consubstanciado num mero ensaio para um eventual relatório”. Com este expediente, Rogério Colaço e os outros investigadores daquela instituição universitária tentaram que juíza Telma Nogueira não concedesse direito de acesso ao PÁGINA UM, dado que a lei determina que um “esboço” não é considerado um documento administrativo.

    Além disso, o IST argumentava ainda que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Neste envelope, lacrado, o Instituto Superior Técnico enviou ao Tribunal Administrativo uma cópia do Relatório Rápido nº 52, mas com anotações a lápis, para dar a ideia que não estava concluído e que era um esboço. Juíza do processo exige agora envio do original.

    Porém, a juíza do processo de intimação decidiu analisar, pessoalmente, o conteúdo dos documentos em causa, o que foi feito esta semana pelo envelope lacrado com a classificação de confidencial.

    Através da leitura do despacho da juíza Telma Nogueira, denota-se que o IST tentou influenciar a decisão fazendo acrescentos à mão no documento enviado ao Tribunal Administrativo, para dar a ideia de que a versão impressa não era a final, e que se estaria perante um esboço.

    Com efeito, no seu despacho de hoje, a juíza ordena que se “notifique a Entidade demandada [IST] para, em cinco dias, juntar aos autos o original do Relatório Rápido nº 52 sem anotações manuscritas a lápis, em envelope lacrado, a entregar em mão no Tribunal dentro de outro envelope fechado ou a enviar via correio postal dentro de outro envelope fechado e a título confidencial”.

    Além dos sinais evidentes, independente do rigor científico, de se estar perante um verdadeiro relatório – daí a denominação Relatório Rápido n.º 52, pela primeira vez assumido pelo IST –, o despacho da juíza não deixa de ser revelador de uma certa incredulidade em redor deste processo, onde estão sobretudo em causa questões de semântica, nomeadamente sobre o que é um estudo, o que é um esboço e, agora, o que é o “Relatório Rápido nº 52”. Até porque a existência do relatório do IST foi confirmada pela direcção da agência noticiosa Lusa, e a notícia o cita, entre aspas, por sete vezes.

    Em todo o caso, mostra-se cada vez mais inquietante a postura do IST, como instituição universitária pública, por se manter firme numa postura obscurantista, recusando divulgar os dados em bruto e um relatório com impacte relevante – e que no Verão foi usado pela imprensa mainstream para criar alarme injustificado e eventualmente falso –, e tentando levar a crer que, em Julho passado, aquele não estava concluído, e que era apenas um esboço.

    Mas, mesmo que assim fosse, passaram entretanto quatro meses, entre Julho e Novembro. Quatro meses que seriam tempo mais do que suficiente para transformar esse alegado “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” num verdadeiro e conclusivo relatório. Quatro meses que, contudo, aparentemente, foram insuficientes para a equipa de cinco investigadores do IST, supervisionado pelo seu presidente, o catedrático Rogério Colaço.

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como mais tarde esclareceu.

    Independentemente da análise do Tribunal Administrativo de Lisboa sobre o enquadramento semântico do Relatório Rápido nº 52 (se é um relatório ou um esboço), saliente-se que o PÁGINA UM requereu ao IST, estando também para decisão do Tribunal Administrativo, os relatórios anteriores, elaborados em colaboração com a Ordem dos Médicos desde Junho de 2021.

    Como o IST não alegou, para nenhum dos outros 51, que se estava perante situações de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, tudo indica que pelo menos 51 relatórios serão disponibilizados, através de sentença, para uma avaliação independente da qualidade e rigor científico do IST durante a pandemia.   


    Citações (entre aspas) do Relatório Rápido nº 52 do Instituto Superior Técnico transcritas pela Lusa no take de 28 de Julho passado, que comprovam a existência de um relatório escrito, ou então estaremos perante uma “fraude” (transcrição de citações de um estudo inexistente). A Lusa recusou mostrar prova da existência do relatório, mas garante que existe. O PÁGINA UM apresenta as citações retiradas do artigo publicado pelo Diário de Noticias de 28 de Julho que transcreve o take da Lusa.

    1 – “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil

    2 – “não teriam impacto económico

    3 – “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida

    4 – “O efeito aqui é mais lento e menor do que o efeito das medidas gerais, pois afeta diretamente população mais jovem, mas leva a contágios em cascata que acabam por vitimar os mais suscetíveis a doença grave

    5 – “uma possível correlação com vagas de calor

    6 – “com tendência de atingirmos os valores mais baixos de 2022

    7 – “ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Ruas e debates civis tornam-se agora os (únicos) palcos na defesa dos direitos humanos

    Ruas e debates civis tornam-se agora os (únicos) palcos na defesa dos direitos humanos

    No espaço de 10 dias, Lisboa viu três concentrações e manifestações nas ruas em defesa dos direitos humanos, direitos civis e da democracia. Contestação contra as propostas de revisão constitucional levou a plataforma cívica Cidadania XXI a mobilizar-se em duas concentrações na capital, juntando mais de uma centena de pessoas. Já este Sábado, Lisboa juntou-se a muitas outras cidades do mundo numa Manifestação Mundial para os Direitos Humanos e Liberdade, com a presença de cerca de mais de uma centena e meia de pessoas.


    Estamos em plena Europa do século XXI, mais propriamente em 2022, mas não parece. A sociedade civil está a ter necessidade de regressar às ruas dos países ocidentais, em manifestações, para defesa dos direitos cívicos. Na Europa, berço da Democracia, incluindo Portugal. Duas concentrações em Lisboa, nas últimas duas semanas, são disso exemplo: uma contra as propostas de revisão constitucional; a outra, integrada na Manifestação Mundial pelos Direitos Humanos e a Liberdade (World Freedom Rally 2022). Ambas trouxeram às ruas não mais de duas centenas de pessoas; ainda poucas, por agora, mas as duas com muitas palavras de ordem em defesa dos direitos, liberdades e garantias, sempre com a democracia em pano de fundo.

    Mas além da manifestação e das concentrações, a sociedade civil mexe-se por outras vias. A plataforma cívica Cidadania XXI tem estado particularmente activa, tendo já feito chegar aos líderes dos dois maiores partidos políticos portugueses (PS e PSD) um manifesto/ petição intitulado Em Defesa da Liberdade da Constituição.

    Joana Amaral Dias, psicóloga, ex-deputada e activista, a discursar no dia 10 de Novembro numa concentração contra a revisão constitucional.

    Esta plataforma cívica é um movimento de cariz cívico que nasceu em 2020 e se notabilizou por diversas iniciativas de amplitude, sobretudo os debates denonimados Tertúlias da Junqueira, que reuniram notáveis da vida académica, médica, científica, jurídica e dos media para debater a censura e as muitas medidas ilegais e anticientíficas que foram adoptadas durante a pandemia. Além disso, organizaram uma grande manifestação no dia 25 de Abril de 2021 que desceu a Avenida da Liberdade, em plena pandemia.

    Na petição entregue a António Costa e Luís Montenegro, esta plataforma cívica manifesta “preocupação [com] o processo de Revisão Constitucional em curso e em particular a proposta que o Governo enviou à Assembleia da República do dia 9 de Novembro”.

    Salienta-se que, de entre as alterações propostas pelos dois principais partidos (que constituem maioria qualificada, ou seja, mais de dois terços dos deputados), está a possibilidade de detenção de um cidadão sem mandato judicial, algo que a Cidadania XXI considera uma “perigosa intenção” por “ficar aberta a possibilidade de um qualquer Governo prender um cidadão, com base em regras estipuladas por si, retirando a legitimidade e a autonomia fundamental dos Tribunais para decidir sobre os Direitos, Liberdades e Garantias”.

    António Jorge Nogueira, fundador e presidente da Plataforma Cívica – Cidadania XXI (à direita), entregou um manifesto contra a proposta de revisão constitucional ao primeiro-ministro, António Costa.

    Segundo esta plataforma cívica, com uma Constituição nos termos propostos, “estaremos perante um regime constitucional em que o Governo poderá exercer sobre os cidadãos o mesmo tipo de autoritarismo totalitário que actualmente vigora no regime chinês”.

    A possibilidade de detenção de cidadãos sem mandato judicial, apenas por ordem das autoridades sanitárias, surge após ter sido considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional os confinamentos forçados de cidadãos, a coberto de alegados riscos, durante a pandemia da covid-19. Visto que as detenções sem mandato judicial violaram a Constituição, o Governo decidiu assim aproveitar para propor uma alteração à Lei Fundamental do país.

    Vários juristas têm vindo, contudo, a alertar para os perigos desta revisão constitucional. O próprio bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, denunciou que, caso PS e PSD avancem com a aprovação desta revisão, “está em causa a supressão de direitos, de liberdades e de garantias”.

    Uma das concentrações contra a proposta de revisão da Constituição, em que participou a Cidadania XXI, juntou mais de uma centena de pessoas, durante a noite do passado dia 10 de Novembro, junto ao Hotel Epic Sana Marquês, onde decorreu o Conselho Nacional Extraordinário do PSD. A Cidadania XXI entregou a sua petição a alertar para os perigos levantados pelas propostas de revisão constitucional ao presidente do PSD, Luís Montenegro.

    António Jorge Nogueira, presidente da Cidadania XXI (à esquerda), entregou um manifesto contra as propostas de revisão constitucional ao presidente do PSD, Luís Montenegro.

    A plataforma cívica deslocou-se também à sede do PS, no Largo do Rato, entregando o mesmo documento ao primeiro-ministro e secretário-geral do PS, António Costa, e ao presidente do partido que sustenta o Governo, Carlos César. Este documento também será entregue ao Presidente da Assembleia da República, aos Grupos Parlamentares, ao Presidente da República, à Ordem dos Advogados, ao Conselho Superior da Magistratura “e a diversas outras instituições da sociedade portuguesa”, segundo António Jorge Nogueira.

    “Não nos podemos esquecer que durante dois anos o Presidente da República, o Governo e diversas instituições actuaram conscientemente e sistematicamente contra a Constituição, conforme já declarado 23 vezes por juízes do Tribunal Constitucional”, afirmou António Jorge Nogueira ao PÁGINA UM. Com este projecto de revisão da Constituição, “já não estamos em modo democrático”, lamentou.

    No âmbito destas iniciativas, a Cidadania XXI vai organizar ainda outros eventos públicos, onde se incluirá um novo ciclo de Tertúlias da Junqueira em torno do tema da defesa dos direitos, liberdades e garantias. A plataforma pretende também reunir com os diferentes grupos com assento parlamentar.

    Joana Amaral Dias, antiga deputada, psicóloga e activista, que marcou presença nas concentrações e na manifestação de sábado, tem sido uma acérrima crítica das posições de PS e PSD. “Repare-se que em nenhuma circunstância, mesmo que se reúnam dois terços dos deputados ou a totalidade dos parlamentares, é permitido alterar ou abolir esses mesmos direitos”, escreveu esta psicóloga em artigo de opinião no semanário O Novo. “O artigo 288.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) constitui uma barreira intransponível, bloqueia em absoluto qualquer tentativa de os adulterar”, adiantou, frisando: “a razão é simples: mexer-lhes, alterar o contemplado no artigo 24.º, é atacar o magma da democracia” e que “sem esses direitos não há Estado de direito e, por isso, o tal 288 não o permite em circunstância alguma”.

    Manifestação Mundial levou para as ruas cidadãos em diversas cidades do mundo, no passado Sábado.
    (Fotos em cima: Manifestação em Lisboa. Foto em baixo: Manifestação em Toronto, no Canadá)

    A ex-deputada do Bloco de Esquerda foi, aliás, uma das individualidades que subiu ao palco para discursar no âmbito da Manifestação Mundial pelos Direitos Humanos e a Liberdade (World Freedom Rally 2022) no passado sábado, a par da médica Margarida Oliveira, que foi alvo de processo pela Ordem dos Médicos, por delito de opinião, apesar de defender medidas com base na evidência científica.

    Recorde-se que a Ordem dos Médicos e o seu bastonário, Miguel Guimarães, tiveram, durante a pandemia, um papel de relevo na tentativa de silenciar e punir médicos que se mostraram contra medidas e recomendações do Governo e da Direcção-Geral da Saúde.

    Desde 2020, que cidadãos em diversos países têm participado em manifestações e marchas em defesa dos direitos humanos e civis, perante as medidas drásticas e ilegais que foram adotadas por Governos alegadamente para combater a pandemia de covid-19, incluindo a política de segregação criada com a introdução do chamado “certificado digital” ou “passaporte covid-19” e vacinação obrigatória em diversos setores.

    A Suécia, um país que geriu com sucesso a pandemia, foi a excepção, tendo recusado aderir a confinamentos e máscaras faciais, em geral, nem impôs medidas drásticas como a maioria dos restantes países, registando menos óbitos com covid-19, menores impactos económicos e menos mortes em excesso, comparando com pares na Europa.

    Manifestação em Lisboa no âmbito do World Wide Rally for Freedom

    Hoje, sabe-se, com base em dados e em estudos científicos, que os confinamentos tiveram um impacto devastador na saúde e na economia, tendo sido uma política errada a seguir, como cientistas tinham avisado logo em março de 2020.

    Por outro lado, os dados revelam ainda haver em 2022 milhares de mortes em excesso sem explicação em vários países, como Portugal, faltando investigações independentes ao tema. Enquanto isso, diversos países começam a recuar na vacinação de certas camadas e faixas etárias da população, enquanto mais estudos e dados mostram que riscos de reacções adversas aconselham cautela na vacinação com as novas vacinas, sobretudo em determinados grupos de pessoas, como homens e crianças e jovens.

    Mas, apesar das medidas erradas adoptadas, os direitos humanos e civis que foram amputados desde 2020 não foram repostos na maioria dos países, e teme-se que possam mesmo ser definitivamente abolidos em países como Portugal, com as propostas de revisão constitucional. Por outro lado, também há receios de que a onda de medidas totalitárias seja reforçada agora para gerir a crise ambiental que se anuncia.


    N.D.: A jornalista e cronista do PÁGINA UM Elisabete Tavares é membro fundador da Plataforma Cívica – Cidadania XXI, embora não exerça papel activo nesta associação desde Outubro de 2021.

  • Nos últimos três anos, morreram a mais 102 jovens, mesmo com menor letalidade das doenças respiratórias

    Nos últimos três anos, morreram a mais 102 jovens, mesmo com menor letalidade das doenças respiratórias

    Ao terceiro ano da pandemia, mostra-se cada vez mais evidente que a mortalidade total em Portugal apenas se agravou nas faixas etárias acima dos 55 anos, embora somente com relevância estatística na população em idade de reforma e, nesta, sobretudo nos maiores de 85 anos. Mas há uma gritante excepção, apesar do ensurdecedor silêncio do Governo e dos “peritos da pandemia”: no grupo dos adolescentes e jovens adultos, entre os 15 e os 24 anos, há um inexplicável e surpreendente incremento da mortalidade. Apesar de apenas se terem registado, neste grupo, cinco mortes por covid-19 e as doenças respiratórias até terem sido menos letais durante a pandemia, no somatório dos 10 primeiros meses do triénio 2020-2022 contabilizam-se mais 102 óbitos em comparação com o período homólogo anterior à pandemia. Em todos os outros grupos etários abaixo dos 55 anos, ao invés, observam-se reduções na mortalidade total.


    Mantém-se o silêncio oficial, continua o excesso de mortalidade. Os óbitos registados nos dez primeiros meses deste ano continuam a surpreender no grupo etário dos 15 aos 24 anos, e mostram a contínua “sangria” nos mais idosos, sobretudo dos maiores de 85 anos.

    De acordo com (mais) uma análise do PÁGINA UM, a mortalidade nos adolescentes e jovens adultos (entre os 15 e os 24 anos), que desde 2014 – ano a partir do qual existe informação diária fornecida pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO) – nunca excedera até Outubro os 290 óbitos, atingiu este ano os 321 óbitos. Parecendo uma subida absoluta pequena, a sua dimensão é extremamente relevante.

    three women sitting wooden bench by the tulip flower field

    Com efeito, a mortalidade neste grupo etário – que, nos tempos modernos, e por razões compreensíveis, era inferior a uma morte por dia – está este ano a atingir dimensões surpreendentes. E não podem ser imputadas directamente ao SARS-CoV-2, uma vez que os dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, que constam no Portal da Transparência do SNS, indicam apenas cinco óbitos por covid-19 entre os 15 e os 24 anos até Setembro passado. Globalmente, tendo em conta os 866 óbitos por todas as causas neste período, a covid-19 representou 0,6% do total.

    Convém referir, contudo, que a mortalidade por doenças do aparelho respiratório nesta faixa etária diminuiu bastante durante a pandemia. Entre Março de 2020 e Setembro deste ano, a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar aponta para a ocorrência de 31 óbitos, menos 25 dos que aqueles contabilizados no período homólogo imediatamente anterior à pandemia (Março de 2017 a Setembro de 2019).

    Daí que o baixo contributo da covid-19 e até a situação mais “benigna” das doenças do aparelho respiratório mais adensam o “mistério”, que não parece do interesse do Governo ver desvendado, não apenas porque o Ministério da Saúde tem procrastinado uma análise independente como também porque recusa disponibilizar publicamente os dados anonimizados em bruto do SICO.

    Mortalidade total por grupo etário (idades) nos primeiros 10 meses de cada ano (Janeiro a Outubro) entre 2014 e 2022. Fonte: SICO

    Certo é que algo de estranho se passa neste grupo etário desde o início da pandemia – e não é, efectivamente, por culpa da covid-19. A mortalidade já tinha sido elevada em 2020 em comparação com os anos anteriores, tendo sempre como referência o período de Janeiro a Outubro. No primeiro ano da pandemia registaram-se 289 mortes neste grupo jovem, que confrontava com uma média de 256 mortes no quinquénio anterior (2015-2019). Em 2021 os valores regressaram para níveis “normais” (256), mas voltaram a disparar, e muito, em 2022.

    Caso se junte os três anos mais recentes (2020-2022), os 10 primeiros meses totalizam 866 mortes, enquanto no triénio anterior homólogo (2017-2019) se contabilizaram 764 mortes, ou seja, verifica-se um acréscimo de 102 mortes.

    Este fenómeno não se explica sequer por via do envelhecimento populacional – que justifica uma parte do aumento absoluto dos óbitos na faixa dos mais idosos, porque estão, efectivamente, a crescer nas últimas décadas, em virtude da melhoria da esperança de vida. Na verdade, como tem ocorrido uma redução nos nascimentos nas últimas décadas – e especialmente desde o início do presente século –, seria até expectável uma muito ligeira redução na mortalidade absoluta de jovens, mesmo se a taxa de mortalidade se mantivesse estável.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    Além disso, a mortalidade no grupo dos 15 aos 24 anos surpreende por não encontrar correspondência nas faixas etárias adjacentes. Com efeito, confrontando os 10 primeiros meses deste ano com os períodos de 2017-2021 (incluindo assim os dois primeiros anos da pandemia) e de 2015-2019 (quinquénio anterior à pandemia), os menores de 15 anos registam uma redução nos óbitos contabilizados por todas as causas. No caso dos bebés com menos de um ano, mesmo se a mortalidade deste ano está acima da registada em 2020 e 2021, os valores são bastante mais baixos face ao período pré-pandémico (-11,8%).

    No grupo imediatamente superior – dos 25 aos 34 anos –, a mortalidade total em 2022 pode considerar-se dentro de uma certa normalidade, tanto em relação aos dois primeiros anos da pandemia como ao período pré-pandémico.

    Para aumentar a estranheza dos números registados entre os 15 e os 24 anos, também nos grupos etários dos 35 aos 44 anos e dos 45 aos 54 anos se observa uma significativa redução na mortalidade total ao longo dos primeiros 10 meses deste ano. Face ao período pré-pandémico, a redução no primeiro grupo etário é de 11,3% e do segundo de 5,9%.

    Comparação (variação percentual) nos grupos etários (idades) entre a mortalidade nos 10 primeiros meses de 2022 face à média dos quinquénios 2017-2021 e 2015-2019 e entre a mortalidade nos triénios de 2020-2022 e 2017-2019. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM

    Apenas a partir dos 55 anos se observa novamente um incremento da mortalidade face ao período pré-pandémico, embora com especificidades. Com efeito, embora o número de óbitos ainda esteja fora da normalidade face ao período anterior a 2020, entre os 55 e os 84 anos já se observam este ano valores mais baixos de mortalidade total do que em 2021.

    No confronto entre 2022 e 2021 nos primeiros 10 meses, para o grupo dos 55 aos 64 anos registaram-se menos 252 mortes, no grupo subsequente (65-74 anos) menos 517 e no grupo dos 75 aos 84 anos houve menos 951 óbitos. Em todo o caso, os valores de 2022 ainda continuam a ser bastante mais elevados do que antes da pandemia.

    Apenas no grupo dos maiores de 85 anos – aquele que, paradoxalmente, mais vacinado foi contra a covid-19 –, as mortes continuam a bater recordes. Nos 10 primeiros meses deste ano morreram mais 781 idosos desta faixa etária do que em 2021. Nos três anos da pandemia (2020-2022), no período de Janeiro a Outubro foram contabilizados 132.077 óbitos, que contrasta com as 114.552 mortes no triénio imediatamente anterior à pandemia (2017-2019). Ou seja, um incremento de 15,3%.

    two girls standing while holding her hips

    Em termos relativos, este aumento foi muito próximo do registado para o grupo dos 15 aos 24 anos (13,4%), com a agravante de que todos os outros grupos etários abaixo dos 55 anos tiveram mesmo quedas na mortalidade total durante a pandemia.  

    O PÁGINA UM contactou o Ministério da Saúde, no passado dia 4, para comentar estes valores, e também para saber se o estudo anunciado em Agosto pela ex-ministra Marta Temido sobre o excesso de mortalidade estava mesmo em curso, qual era a equipa (nomes) e qual o período previsto de conclusão. Não houve resposta, o que se mostra um “clássico de reacção” deste organismo governamental, que não se modificou com a entrada em funções de Manuel Pizarro.

  • “Nós, os Humanos”, e mais a interferência dos políticos na Medicina

    “Nós, os Humanos”, e mais a interferência dos políticos na Medicina

    A apresentação de uma reflexão sobre a Humanidade, escrita pelo vice-presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia, Jacinto Gonçalves, acabou por ser o mote para um debate sobre a gestão da covid-19. Nós, os Humanos, foi apresentado este sábado na sede da Ordem dos Médicos, é uma obra que constitui uma síntese da História da Humanidade e também um alerta para a necessidade da defesa do Planeta. No debate de apresentação do livro, no auditório da Ordem dos Médicos, falou-se da pandemia, da liberdade de expressão e de opinião, das farmacêuticas e também da ingerência dos políticos em questões de Medicina.


    Com o subtítulo “Quem somos, de onde vimos, para onde vamos?”, o novo livro de Jacinto Gonçalves, Nós, os Humanos, apresentado no sábado passado, é sobretudo uma “reflexão sobre a História da Humanidade e sobre os momentos marcantes da nossa evolução”, explicou o autor ao PÁGINA UM.

    “Precisamos mudar de rumo no respeito pela vida e pelos valores humanos em que acreditamos”, defende o autor. Sobre a influência da sua longa carreira como médico e professor na criação do livro, Jacinto Gonçalves diz que o livro constitui o resultado de 23 anos de ensino e de falar em público. “Temos de tornar as noções complexas em noções simples que sejam facilmente transmitidas e captadas”, diz.

    Jacinto Gonçalves na sessão de autógrafos do lançamento do seu livro Nós, os Humanos. Foto: ©Tozé Canaveira

    Uma das preocupações mostradas por Jacinto Gonçalves, em jeito de conclusão no seu livro, prende-se com a Revolução Industrial, que está a “provocar uma destruição maciça de ecossistemas e redução da biodiversidade”. Para o autor, o livro constitui um alerta para “a necessidade de as pessoas terem uma intervenção, se for possível, política, para defenderem o planeta”.

    António Pedro Machado, um dos convidados na apresentação desta obra, considera que o livro de Jacinto Gonçalves revela “a metodologia de um pedagogo e a escrita de um homem muito culto, que dedicou a vida não só à Medicina e aos doentes como também à Cultura, o que é próprio da sua geração”.

    Para este especialista em Medicina Interna, Nós, os Humanos é um livro que faz a cronologia dos acontecimentos, “mas que volta-e-meia faz-nos mergulhar naquilo que eu chamo um poço onde descemos milhares, por vezes, milhões de anos e depois faz-nos subir”. E acrescenta que “à medida que subimos no tempo, vamos relacionando fenómenos onde vamos percebendo melhor a evolução das coisas”.

    A apresentação do livro contou também com a presença da psicóloga Joana Amaral Dias, que aproveitou para revelar uma “inconfidência” sobre como conheceu o médico Jacinto Gonçalves. “Foi num período bastante crítico na minha vida no que diz respeito à minha consideração, confiança e respeito pela classe médica.”

    A psicóloga relembra que “no meio da crise de gestão da covid-19, fiquei perplexa porque apareceu-me um médico já de alguma idade, mas que era extremamente jovem, no sentido mais completo da palavra”. Joana Amaral Dias diz que foi graças a Jacinto Gonçalves e a outros médicos que restabeleceu essa confiança.

    Sobre a abordagem ao livro e ao seu autor, Joana Amaral Dias considerou que “não é a cultura, não é o conhecimento, não é o dinheiro que faz de nós humanos; é o serviço à Humanidade”.  E explicou que “a ética da Medicina, mostrada por Jacinto Gonçalves, e que me fez restaurar a consideração pela classe médica, é por revelar que essa Medicina não está ao serviço do dinheiro”. E concluiu: “A Medicina é, por vezes, uma serva, uma sabuja de grandes poderes económicos”.

    Embora o livro aborde uma temática global sobre o percurso da Humanidade, a pandemia acabou por interferir de uma forma indirecta, concedendo a Jacinto Gonçalves mais tempo para a escrita. Mas também para a reflexão sobre a gestão da crise sanitária, que considera ter “amputado liberdades e garantias”.

    Para este cardiologista, que exerce há mais de meio século, diz manter as suas posições críticas à forma como o SARS-CoV-2 se tornou omnipresente nas nossas vidas. “Daqui a seis meses, a covid-19 já passou, e já arranjaram outra coisa para nos entreter”, salienta, para acrescentar que, na sua opinião, foi “um meio, tal como sucederá com as alterações climáticas, para procurar controlar as pessoas”.

    Num auditório para mais de meia centena de assistentes, Jacinto Gonçalves garantiu ser “um homem para todas as estações. Não mudo de opinião na Primavera”, lamentando ainda que os médicos se tenham “acomodado excessivamente ao poder político”, como sucedeu durante a pandemia. “Houve erros na gestão, principalmente na parte pré-hospitalar, porque se apostou numa única forma de combater a doença, que é a vacina”.

    O lançamento do livro contou com a presença, da esquerda para a direita, de Joana Amaral Dias, Jacinto Gonçalves, Alexandre Loureço (Ordem dos Médicos) e António Pedro Machado. Foto: ©Tozé Canaveira

    E confessando ter levado as duas primeiras doses da vacina contra a covid-19, o também vice-presidente da Fundação de Cardiologia diz agora que, com este tipo de vacinas, não está “disponível para continuar a levar reforços de seis em seis meses.” E critica também “a atitude impensável de juntar a vacina da gripe, com a qual eu concordo plenamente, com um reforço da covid-19”, assegurando que “se anda a brincar aos feiticeiros”.

    Sobre a liberdade de expressão, que foi coarctada durante a pandemia, Jacinto Gonçalves lamenta que muitas opiniões válidas tenham sido “ocultadas ou impedidas de serem divulgadas”, e que poderiam ter sido implementadas. E exemplifica: “o primeiro grande erro foi o da prevenção, ao não utilizar-se medicamentos que são baratos e seguros, como é o caso da ivermectina. E depois foi o erro na fase pré-hospitalar, pois se um doente fosse testado positivo era mandado para casa com paracetamol; eu acho que isso foi criminoso”.

    Sobre a indústria farmacêutica, Jacinto Gonçalves considera também que “houve ganhos que foram pouco honestos sobre a promoção excessiva de um único meio”, exemplificando como a vacina rendeu milhões. “As acções da Pfizer aumentaram cinco vezes”, destaca. Contudo, o médico não pretende contribuir para diabolizar esta indústria “tantas vezes denegrida”, relembrando o seu papel extraordinário na melhoria das condições de saúde.

    Carlos Alberto Gomes à conversa com Jacinto Gonçalves sobre o livro Nós, os Humanos. Foto: ©Tozé Canaveira

    Para o cardiologista, “houve uma enorme evolução dos anos 50 para os anos 90; em cada década aparecia uma nova classe de medicamentos”, graças às farmacêuticas, defende Jacinto Gonçalves. “Não foram os organismos estatais que conseguiram essa evolução, mas sim as empresas farmacêuticas, que, obviamente têm de dar lucro”, acrescenta.

    Mas quanto aos políticos Jacinto Gonçalves não poupa críticas: “Lavam sempre as mãos como Pôncio Pilatos”, mostrando a sua preocupação por “a emergência sanitária estar a ser empurrada pelos poderes políticos, não só nacionais, como supranacionais”.

    “Os direitos, liberdades e garantias que estão salvaguardados na Constituição desaparecem quando uns senhores quaisquer da Assembleia da República determinarem que há uma emergência sanitária. E isso não pode suceder”, adverte.

  • Lobby das farmacêuticas na Ordem dos Médicos perde e presidente do Colégio de Pediatria acaba ilibado

    Lobby das farmacêuticas na Ordem dos Médicos perde e presidente do Colégio de Pediatria acaba ilibado

    Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, foi um dos muitos clínicos que criticou a estratégia da Direcção-Geral da Saúde em recomendar a vacinação universal de crianças contra a covid-19. Por causa da sua opinião, a Ordem dos Médicos instaurou-lhe um processo disciplinar por pressão do bastonário, Miguel Guimarães, através dos membros do seu Gabinete de Crise para a Covid-19, encabeçado por Filipe Froes e outros médicos com ligações comerciais com as farmacêuticas. A campanha de denegrir a imagem pública de Jorge Amil Dias surtiu efeito, mas o procedimento disciplinar caiu esta semana por terra. O presidente do Colégio de Pediatria espera que esta decisão faça “jurisprudência” para que, no futuro, não volte a haver tentativas de silenciamento de médicos pela via da “secretaria”.


    É mais uma derrota para o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. E é mais uma evidência dos meandros nebulosos que circundaram o “mundo dos médicos” desde 2020, com clínicos a comportarem-se como porta-estandartes da indústria farmacêutica sobretudo desde o surgimento da pandemia da covid-19.

    Esta semana caiu por terra a queixa apresentada na Ordem dos Médicos contra o presidente do Colégio de Pediatria, Jorge Amil Dias, por um grupo de médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêutica, entre os quais se destacam Filipe Froes, Carlos Robalo Cordeiro e Luís Varandas.

    Jorge Amil Dias, pediatra e presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos.

    A queixa destes médicos e de mais outros 13 levou à abertura de um processo disciplinar contra o reputado pediatra, que está agora a caminho do arquivamento. O relator do processo, João Branco, membro efectivo do Conselho Disciplinar Regional do Sul, conclui , de forma clara e evidente, “não ter havido violação das leges artis ou do Código Deontológico por parte do médico participado”.

    O “crime” que estava em causa por este renomado especialista em gastroenterologia pediátrica é simples de explicar: tomou posição pública, a título pessoal, ao considerar a vacinação de crianças “desproporcionada” e “desnecessária”, além de advogar a relevância da imunidade natural. Além disso, foi um dos subscritores de um abaixo-assinado que integrou quase uma centena de médicos e outros profissionais de saúde, alertando também para os riscos da vacinação num grupo etário de baixíssimo risco.

    O processo disciplinar contra o presidente do Colégio de Especialidade de Pediatria – que não é escolhido, assim como nos outros colégios, nas mesmas eleições do bastonário, e beneficia de independência – resultou de uma carta-denúncia no início de Fevereiro, assinada por médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêuticas.

    Miguel Guimarães (à direita), urologista e bastonário da Ordem dos Médicos, ao lado de Carlos Robalo Cordeiro, um dos subscritores da queixa contra Jorge Amil Dias.

    Neste grupo estão incluídos todos os membros do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 que solicitaram “a avaliação da conduta, por eventual infração disciplinar” de Amil Dias.

    Miguel Guimarães, que se manifestou incomodado por pediatras contrariarem as suas posições de médico urologista a falar de assuntos de pediatria, anunciou mesmo que levaria o assunto a reunião do Conselho Nacional Executivo para depor a destituição de Amil Dias como presidente do Colégio de Pediatria, algo que nunca sucedeu.

    Mais do que qualquer castigo relevante que pudesse atingir Jorge Amil Dias, este processo da Ordem dos Médicos revelava então o “clima de guerra” que alimenta as relações entre estes profissionais de saúde no mandato de Miguel Guimarães, que escancarou portas a procedimentos inquisitoriais por meros delitos de opinião, sobretudo com o advento da pandemia.

    Miguel Guimarães tem sido, além disso, criticado internamente por não acatar os pareceres técnicos dos Colégios de Especialidade – e até de os esconder publicamente –, optando antes por criar órgãos de consulta não-estatutários.

    O pediatra Jorge Amil Dias afirmou ao PÁGINA UM que considera que “o parecer do Relator é muito claro e desmonta ponto por ponto as acusações” que lhe eram feitas, não vendo qualquer violação do ponto de vista deontológico nem de ter violado “os bons princípios e as boas práticas”. Para Amil Dias, seria bom se esta decisão “fizesse alguma jurisprudência quanto às tentativas de calar [médicos] na ‘secretaria’, para os silenciar”.

    Extracto do relatório da proposta de arquivamento do processo contra Amil Dias.

    De acordo com a proposta de arquivamento a que o PÁGINA UM teve acesso, o relator do processo disciplinar dá plena razão a Jorge Amil Dias em diversos pontos.

    João Branco começa por lembrar que “à data dos factos em apreciação no presente processo disciplinar, existia, na comunidade médica em geral, e nos médicos pediatras em particular, uma
    divisão sobre o tema da vacinação contra a SARS-Cov-2 em crianças e
    adolescentes, nomeadamente no que respeita à necessidade desta, ao grau de
    proteção conferido e respetivos efeitos adversos”.

    E adiante, em seguida, que “são compreensíveis e aceitáveis” as preocupações transmitidas por Jorge Amil Dias em relação aos possíveis efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 nas crianças, “uma vez que, em 29 de Outubro de 2021, foi emitida uma autorização para o uso de emergência da vacina da Pfizer-BioNtech para a prevenção da covid-19 em crianças entre os 5 e os 11 anos de idade”.

    “Ora, tal significa”, continua o relator, “que o processo de licenciamento da vacina para administração em crianças foi acelerado em relação ao normal processo de licenciamento, pelo que as reações adversas de médio e longo prazo, poderiam ainda não ser, à data, integralmente conhecidas, com os inerentes riscos”, frisou no seu parecer.

    Sobre a queixa de Filipe Froes e demais médicos relativa a declarações prestadas por Amil Dias sobre o Hospital D. Estefânia, o relator considerou que até “poderão ser pertinentes” as questões levantadas pelo pediatra.

    Na opinião de João Branco, “não se deve considerar que o médico participado [Jorge Amil Dias] estava a colocar em causa as competências profissionais dos colegas do Hospital de D. Estefânia, mas somente que aquele terá procurado esclarecer a veracidade dos números de doentes internados com covid-19 revelados numa entrevista e divulgados pela comunicação social, os quais, posteriormente, se terá comprovado não corresponderem aos dados reais”.

    Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos.

    E salienta ainda que os comentários do presidente do Colégio de Pediatria “realizados pelo médico participado “no que respeita à metodologia dos estudos do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) são pertinentes, bem como são justificadas as questões clínicas levantadas”.

    Relativamente às Cartas Abertas subscritas por Amil Dias, com data de 25 de Janeiro e de 3 de Fevereiro de 2022, o Relator defende que “os médicos, enquanto médicos e cidadãos, têm o direito de escrever cartas abertas, divulgando a sua posição, ainda que esta seja contrária à orientação da Ordem dos Médicos, do Senhor Bastonário, do Gabinete de Crise para o [sic] covid-19 e da Direção-Geral da Saúde”.

    João Branco salienta também que “a divergência de opiniões sobre a vacinação infantil não se verificou só em Portugal, sendo de realçar que no Reino Unido, após ter sido assumida uma recomendação de vacinação das crianças dos 5 aos 11 anos de idade, um grupo de 18 médicos também se dirigiu publicamente às autoridades de saúde manifestando preocupação, não tendo tal sido considerado ofensivo ou atentatório da verdade científica”.

    girl covering her face with both hands

    Neste enquadramento, e salvaguardando que é pessoalmente “favorável à vacinação”, João Branco deefnde que “as questões metodológicas e clínicas levantadas pelo médico participado foram pertinentes, entendendo que as mesmas não devem ser consideradas ofensivas para os Colegas, para a Ordem dos Médicos, para o seu Bastonário, ou para o Gabinete de Crise para a Covid-19, apenas traduzindo divergência de opiniões, sendo, no contexto em que foram proferidas, aceitáveis”.

    Apesar de se mostrar satisfeito com a recomendação de arquivamento do processo disciplinar instaurado contra si, Amil Dias condena o facto de os media ajudarem a enxovalhar em público quem é sujeito a este tipo de acusações. E que, depois, nota o pediatra, quando sai uma decisão favorável que deita por terra as acusações, a imprensa em geral, com algumas excepções,”publica uma pequena notícia na página 54″. “Isto é feio”, conclui.

  • Sentença: PÁGINA UM ganha processo em prol da transparência contra Entidade Reguladora para a Comunicação Social

    Sentença: PÁGINA UM ganha processo em prol da transparência contra Entidade Reguladora para a Comunicação Social

    Em Agosto passado, o regulador dos media acusou o director do PÁGINA UM de ser um “cidadão” que se intitulava jornalista e que tinha “comportamentos nos quais, consideramos, que a classe jornalística não se revê”. E tinha razão: nunca nenhum outro jornalista foi tão longe para obrigar a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a mostrar documentos administrativos que queria esconder. O Tribunal Administrativo de Lisboa acaba de conceder a quinta vitória do PÁGINA UM em processos em prol da transparência da Administração Pública.


    Como habitual, tudo valeu. A sociedade de advogados contratada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – a Vaz Mendes & Associados – até chegou a alegar que o requerimento do PÁGINA UM para o processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa do PÁGINA UM não cumpria as regras, porque “ao invés de numerais ordinais, usualmente utilizados no articulado legal, o Requerente utiliza numeração composta por numerais cardinais”.

    Mas, nem esse comezinho expediente surtiu efeito: na sentença decretada esta semana pela juíza Maria Carolina Duarte o Tribunal é bastante claro e pouco abonatório para a entidade que regula os media e que, ainda por cima, é presidida por um juiz conselheiro: a ERC vai mesmo ter de revelar os documentos onde consta a identidade de todas as empresas de comunicação social (e argumentos aduzidos) que solicitaram confidencialidade de dados financeiros no Portal de Transparência dos Media, de modo a esconder relações de dependência económica.

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    A sentença determina que, nos processos já concluídos, a ERC poderá, no máximo, apagar “dados pessoais e outros que revelem segredos comerciais ou sobre a vida interna das empresas, mas terá sempre de justificar, caso a caso, “o motivo do expurgo”. Relativamente aos processos não concluídos, a sentença permite que se possa diferir “a entrega dos documentos até à tomada da decisão ou ao arquivamento do processo”, embora dentro de um limite temporal específico.

    Este é o culminar de mais um processo litigioso em prol da transparência protagonizado pelo PÁGINA UM, neste caso incidindo no modus operandi da ERC. Em finais de Julho, o PÁGINA UM solicitara ao juiz conselheiro Sebastião Póvoas, presidente do regulador desde Dezembro de 2017, “o acesso a cópia digital ou analógica de todos os requerimentos – desde 2017 até à data – das empresas de comunicação social que solicita[ram] confidencialidade dos principais fluxos financeiros e identificação das pessoas singulares ou colectivas que representam mais de 10% dos rendimentos totais e mais de 10% do montante total de passivos no balanço e dos passivos contingentes.”

    A promoção da transparência da titularidade, da gestão e dos meios de financiamento das entidades que prosseguem atividades de comunicação social tem sido uma das matérias mais sensíveis nos últimos anos no sector da comunicação social. Em 2015, uma lei aprovada na Assembleia da República estipulou que as empresas detentoras de órgãos de comunicação social disponibilizassem, no denominado Portal da Transparência dos Media, a relação de titulares e de detentores, discriminando as percentagens de participação social e identificando toda a cadeia de entidades a quem uma participação de pelo menos 5% pudesse ser imputada.

    Por outro lado, ficou também estipulada a obrigatoriedade de comunicar à ERC a informação relativa aos principais fluxos financeiros daquelas entidades (com contabilidade organizada). Esta obrigação deveria, por lei, incluir “a relação das pessoas individuais ou coletivas que tenham, por qualquer meio, individualmente contribuído em, pelo menos, mais de 10% para os rendimentos apurados nas contas de cada uma daquelas entidades ou que sejam titulares de créditos suscetíveis de lhes atribuir uma influência relevante sobre a empresa”, mas em “termos a definir no regulamento da ERC”.

    Efectivamente, a ERC criaria um regulamento em Outubro de 2020, onde, além de estabelecer a obrigação do envio do relatório anual de governo societário (RGS), concedia excepções arbitrárias que, na prática, destruíam o princípio da transparência. Com efeito, no artigo 8º do regulamento – que não teve de passar pela Assembleia da República – refere-se que “atendendo à sensibilidade e ao caráter sigiloso de alguns dados solicitados, as entidades poderão solicitar à ERC a aplicação do regime de exceção”.

    Em 6 de Julho passado, no decurso de um pedido de confidencialidade da TVI S.A. – empresa detentora da TVI e da CNN Portugal –, que o PÁGINA UM noticiou em primeira mão, a ERC não quis identificar quais as outras empresas que solicitaram igual tratamento.

    Última página da sentença favorável ao PÁGINA UM contra a Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    O regulador adiantou então apenas que “os pedidos podem incidir sobre informação muito específica ou cumulativamente sobre vários elementos comunicados em cumprimento das obrigações legais da transparência”, acrescentando ainda que “os requerentes invocam, genericamente, (…) a sensibilidade dos dados e antecipam impactos negativos resultantes da sua divulgação, relacionados com estratégias de negócio, estruturas de receitas e a sustentabilidade económico-financeira do meio, em particular em mercados locais.”

    A ERC também não indicava o número absoluto de pedidos entre 2017 e 2021, dando somente dados relativos. Segundo o regulador, naquele quinquénio, mais de três quartos dos pedidos de confidencialidade (77%) tinham sido indeferidos pelo Conselho Regulador, “que entendeu que os argumentos apresentados não justificavam a não disponibilização da informação”.

    Perto de 12% dos pedidos foram deferidos, “salientando-se que uma parte incidia sobre uma informação muito específica, como a percentagem que representa um cliente relevante”. Em perto de 11% das situações o Conselho Regulador concedeu deferimento parcial. No entanto, não sabe o número absoluto que esses 23% representam nem que dados ficaram assim escondidos e porquê.

    Já quanto ao presente ano, no início de Julho a ERC informava que recebera 22 pedidos de confidencialidade submetidos por entidades de comunicação social, que incluía o da TVI S.A., que veio entretanto a ser indeferido. No entanto, desconhece-se a identidade das outras 21 empresas, e quais foram as decisões da ERC.

    Por esse motivo, o PÁGINA UM decidiu, em finais de Julho, formalizar um pedido expresso ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. Inicialmente, a ERC nem reagiu ao requerimento, tendo optado por iniciar uma campanha de descredibilização do PÁGINA UM, fabricando inopinados incidentes envolvendo o seu director.

    Recorde-se que num comunicado em 9 de Agosto, a ERC chegou a acusar explicitamente o director do PÁGINA UM de “insultar os membros do Conselho Regulador” e de “exercer coação sobre os funcionários que o atendem” a pretexto da consulta de outros processos naquela entidade reguladora. A ERC conseguiu mesmo que a agência Lusa fizesse uma notícia, através de um comunicado de imprensa, em que identificava o director do PÁGINA UM como um “cidadão” que “intitulando-se jornalista (…) tenta legitimar comportamentos nos quais, consideramos, que a classe jornalística não se revê”.

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    Mais tarde, já com o processo de intimação no Tribunal Administrativo, O presidente da ERC acabou por defender a pretensão do PÁGINA UM por razões de “inutilidade, desrazoabilidade e não economia processual”.

    Porém, em sede de Tribunal Administrativo, nem o pedido do PÁGINA UM foi considerado, inútil, nem desrazoável, nem a juíza Maria Carolina Duarte encontrou razões para se invocar qualquer preceito relacionado com economia ou deseconomia processual.

    Na extensa sentença de 35 páginas, a juíza relembra o papel da comunicação social como “um dos pilares da democracia”, defendendo também que a sua natureza “justifica que os agentes que nele operam estejam adstritos a especiais deveres de reporte de informação e transparência”, para depois admitir que, embora a ERC possa permitir a confidencialidade de alguma informação, esse “argumento não legitima a recusa de acesso in totum”, ou seja, no seu todo. E depois determina as condições para que o regulador forneça a informação que tem vindo a recusar.

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    Além da condenação ao pagamento das custas processuais, a juíza determinou a notificação da sentença ao “Dr. Sebastião José Coutinho Póvoas e ao Dr. Pedro Correia Gonçalves, membros da direção executiva da entidade requerida [ERC], advertindo-os de que devem diligenciar pelo cumprimento da intimação, sob pena de não o fazendo, sem justificação aceitável, poderem vir a ser condenados em sanção pecuniária compulsória (…), sem prejuízo do apuramento da responsabilidade civil, disciplinar e criminal a que haja lugar”.

    A ERC tem um prazo de 10 dias para cumprir esta sentença, podendo também – tanto mais que gere dinheiros públicos e aqueles que são provenientes das taxas da comunicação social – optar pelo recurso para o Tribunal Central Administrativo Sul, pagando assim também mais 42,88 euros, a que acresce IVA à taxa legal em vigor, à sociedade de advogados Vaz Mendes & Associados, que foi quem patrocinou a causa em primeira instância.


    Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 14 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 12.115 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido.

    Na secção TRANSPARÊNCIA começámos a divulgar todas as peças principais dos processos em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico da Entidade Reguladora para a Comunicação Social ficará disponível nos próximos dias.