A entidade responsável pela fiscalização e monitorização das contas dos partidos políticos defendeu, em respostas enviadas ao PÁGINA UM, que não fez nem vai fazer nenhuma recomendação sobre o uso de subvenções atribuídas aos grupos parlamentares porque considera que a lei é clara. A posição contraria a declaração do Presidente da República, que já foi presidente do Partido Social Democrata, sobre a existência de uma “zona cinzenta” na lei. A Entidade das Contas e Financiamentos Públicos, que opera no âmbito do Tribunal Constitucional e viu uma alteração legislativa em 2018 retirar-se alguns poderes de fiscalização, remete para a lei que estabelece que as subvenções atribuídas aos grupos parlamentares podem abranger tanto as despesas para representação política como de actividade partidária.
A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP), que fiscaliza as contas dos partidos e das campanhas eleitorais, defende que nunca fez uma recomendação aos partidos sobre o uso das subvenções atribuídas aos grupos parlamentares e deputados porque considera que a lei é clara, não existindo incompatibilidades no uso daquelas verbas para despesas dos seus funcionários ou assessores em actividades de âmbito partidário ou político.
Em respostas enviadas ao PÁGINA UM, aquela entidade independente, que opera junto do Tribunal Constitucional, declarou que, nunca fez uma recomendação aos partidos sobre a questão da aplicação das verbas por entender que a clareza da lei não o justifica.
Esta posição contraria as declarações do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa, no sentido de que existe uma “zona cinzenta” na legislação e que a lei precisa de ser clarificada.
A ECFP chegou a ter poderes para “definir, através de regulamento, as regras necessárias à normalização de procedimentos no que se refere à apresentação de despesas pelos partidos políticos e campanhas eleitorais”, mas estas competências foram-lhe retiradas em 2018, com a revogação do artigo 10.º da Lei de organização e funcionamento da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos.
O tema das subvenções, ou apoios estatais, dos grupos parlamentares tem estado debaixo de polémica devido às buscas mediáticas realizadas pelo Ministério Público à casa do ex-presidente do PSD, Rui Rio, e outras figuras do partido, bem como à sede do partido. A polémica operação terá partido de uma denúncia anónima e a investigação centra-se em suspeitas de que alegadamente o PSD pagou salários de funcionários do partido com verbas públicas (subvenções) atribuídas ao grupo parlamentar.
A operação policial recebeu fortes críticas pela sua mediatização e envolvimento da imprensa na divulgação das ações de busca.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou, citado pela imprensa, que existe uma zona cinzenta na lei, no que toca às subvenções, que é preciso clarificar.
Maria de Fátima Mata-Mouros, presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos
Mas, para a ECFP, que é liderada pela magistrada Maria de Fátima Mata-Mouros, a lei relativa ao “Financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais” não deixa margem para dúvidas: os funcionários e assessores que trabalhem em grupos parlamentares podem usar as verbas públicas de apoio aos grupos parlamentares para cobrir despesas de foro político ou partidário.
O PÁGINA UM questionou a ECFP sobre se alguma vez fez algum alerta ou recomendação aos partidos no sentido de não utilizarem fundos dos grupos parlamentares para o pagamento de despesas e salários nos partidos.
Na sua resposta, aquela entidade começa por esclarecer que “a ECFP pode emitir recomendações genéricas” nos termos previstos na lei, “com o objetivo de clarificar ou recomendar alguma prática que a lei, por si só, não esclareça”.
Ou seja, para a ECFP a lei é clara, pelo que “não foi emitida qualquer recomendação concernente à matéria regulada naquele preceito legal”.
Para a ECFP, “a questão colocada encontra resposta no n.º 4 do artigo 5.º do Lei 19/2003 de 20 de junho, na sua atual redação”, referente ao “Financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais”. O artigo 5.º diz respeito à “Subvenção pública para financiamento dos partidos políticos”.
Rui Rio, ex-presidente do PSD
No número 4.º deste artigo pode ler-se: “A cada grupo parlamentar, ao deputado único representante de um partido e ao deputado não inscrito em grupo parlamentar da Assembleia da República é atribuída, anualmente, uma subvenção para encargos de assessoria aos deputados, para a atividade política e partidária em que participem e para outras despesas de funcionamento, correspondente a quatro vezes o IAS [Indexante dos Apoios Sociais] anual, mais metade do valor do mesmo, por deputado, a ser paga mensalmente, nos termos do n.º 6”.
Os restantes grupos parlamentares, incluindo o do PS, não registam nenhuma despesa com pessoal mas contabilizam verbas avultadas referentes a pagamentos de “fornecimentos e serviços externos”. No caso do grupo parlamentar do PS, regista o “desvio” de 1,4 milhões de euros para pagamentos de “fornecimentos e serviços externos”, entre 2018 e 2022.
A ECFP foi criada em Janeiro de 2005 sobretudo para apoiar tecnicamente o Tribunal Constitucional na fiscalização das contas anuais dos partidos políticos e das contas das campanhas eleitorais.
Em 2018, aquela entidade passou a poder proferir decisões finais sobre as contas dos partidos e das campanhas, bem como a aplicação de coimas e decisões dos processos de contraordenação. Cabe ao Tribunal Constitucional apreciar, em sede de recurso, as decisões da ECFP em matéria de regularidade e legalidade das contas dos partidos políticos, nelas incluindo as dos grupos parlamentares.
Em tons cor-de-rosa, envolvendo desde políticos até desportistas e entertainers e remetendo para o trágico desfecho de uma jovem vida e para o apoio a estudantes carenciados, a Associação Sara Carreira é sobretudo uma bem oleada máquina de donativos. Em apenas 20 meses angariou quase 1,7 milhões de euros, sendo que as vendas apenas chegaram aos 100 mil euros. A associação, que recebeu um meteórico estatuto de utilidade pública, não aprecia, contudo, falar daquilo que faz e do que vai fazer, e detesta mostrar contas. Só divulgou os resultados da sua actividade de 2021 e 2022 na semana passada, depois de muita pressão. No final do ano passado, tinha no banco 1.266.986 euros. Partiu do zero. O PÁGINA UM analisa agora tudo.
Mesmo sem o “mínimo necessário exigível no âmbito de valores e princípios basilares que norteiam o jornalismo em Portugal”, que é como a Associação Sara Carreira nos cataloga, o PÁGINA UM conclui, ao fim de algumas semanas de investigação – mas ainda não no seu término – que há mesmo um verdadeiro e grande tabu, ou vários, rodeando as actividades desta nova entidade com estatuto de utilidade pública fundada em Março de 2021, em memória da filha do cantor Tony Carreira: o dinheiro.
Sem prejuízo das circunstâncias traumáticas que levaram à criação desta associação – uma tragédia que, infelizmente, não atingiu apenas a família Carreira, não sendo esse um motivo válido para “censurar” uma investigação jornalística –, existe uma evidente falta de transparência, o que não abona o seu objecto social, a sua projecção mediática e, sobretudo, dura lex sed lex, contraria as exigências legais por força de um meteórico reconhecimento de utilidade pública.
Não apenas meteórico, mas, diga-se, também estranho. O processo de reconhecimento já foi pedido pelo PÁGINA UM à Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos – e que, aliás, se não respondido, terá a mesma solução de outras recusas similares: uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa.
Tony Carreira e os dois filhos (Mickael e David) durante o espectáculo da 2ª edição da Gala dos Sonhos, que constitui uma fonte de receitas volumosa.
Muita água – embora talvez menos do que a habitual, por se estarmos em seca – já terá passado por debaixo das pontes desde que, em 19 de Junho, o PÁGINA UM entrou formalmente em contacto com a Associação Sara Carreira para, enfim, a questionar, legitimamente, sobre os requisitos prévios para o reconhecimento de utilidade pública.
Recorde-se que a Lei-Quadro determina que as entidades de utilidade pública “tenham uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.
E, por isso, pediram-se explicações para a falta desses documentos no site e apelou-se para o envio dos relatórios e contas de 2021 e de 2022. Além disso, pretendeu-se também saber, em detalhe quais são os montantes efectivamente disponibilizados por mês, no conjunto, dos bolseiros auxiliados pela associação – que tem sido, publicamente, a principal actividade de beneficência conhecida –, ou em alternativa o valor médio de apoio e o número actual de bolseiros. Nada de anormal: os regulamentos da generalidade das bolsas para estudantes divulga os valores, sem quaisquer problemas (vd. AQUI).
Carlos Moedas ao lado de Tony Carreira, durante a 2ª edição da Gala dos Sonhos em Dezembro passado.
Last but not the least, o PÁGINA UM quis saber também o número de associados e quais as condições em concreto para se ser sócio, uma vez que os estatutos de constituição e alteração são susceptíveis de “blindar” a entrada a novos sócios. Esse não é um pormenor: segundo a lei, uma entidade como a Associação Sara Carreira necessita, no mínimo, de 16 sócios efectivos para obter o estatuto de utilidade pública. Mas já lá iremos…
Desde 19 de Junho, como disse, muita água passou pelas pontes, debaixo. E também muita actividade pelo site da Associação Sara Carreira. Embora, na aparência, não se vislumbrem novidades há muito – a última entrada na secção das Notícias, e a única deste ano, é de 3 de Maio (conforme gravação de hoje) –, houve um grande corrupio, nem sempre perceptível, desde que o PÁGINA UM começou a fazer perguntas à Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e publicou a primeira notícia sobre este assunto.
No passado dia 27, um dia depois de o PÁGINA UM revelar que a Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros colocava a hipótese de retirar-lhe o estatuto de utilidade pública por não ter contas divulgadas, a Associação Sara Carreira colocou no site aquelas referentes ao ano de 2021. Mas onde? Em local inopinado: na secção dos Termos e Condições do site, e bem lá no fundo para (quase) ninguém achar. Achou o PÁGINA UM, que gravou.
E voltou a gravar para confirmar que esta primeira fase da transparência foi muito fugaz, porque três dias depois, no dia 30, já o relatório e contas de 2021 dali tinha desaparecido. Também se gravou. Só no dia 4 deste mês, talvez pelas insistências do PÁGINA UM, a Associação Sara Carreira decidiu que, afinal, tinha mesmo, a contragosto, de divulgar o relatório de actividades e de contas tanto de 2021 como de 2022. A legalidade quando nasce é para todos, mesmo quando se tem o Presidente da República a atender telefonemas para recolher donativos. Ou talvez, também, até por isso.
Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um fervoroso apoiante da família Carreira.
A leitura dos dois relatórios de actividades e de contas suscitam várias conclusões. E suscitaram ao PÁGINA UM muitas mais perguntas, nenhuma respondida pela Associação Sara Carreira, que, por e-mail no passado dia 4 (o terceiro, depois deste e deste), ainda acusou “a linha que [o PÁGINA UM] tem adotado no contacto com esta Associação], que “é demonstrativa de que, verdadeiramente, não pretende informação, mas sim, apenas e só, polémica e sensacionalismo, certamente, para que através disso venha a ser lido, visitado ou citado á custa do nosso bom nome, altruísmo e benevolismo [sic] públicos reconhecidos”.
E, continuando sem responder a qualquer pergunta, a assessoria de imprensa da Associação Sara Carreira acrescentou ainda que “assim sendo, a partir deste momento não iremos mais responder ao que quer que seja provindo dessa página da internet [sic], que desconhecíamos, ou por V. Exa. assinado, pois não lhe reconhecemos o mínimo necessário exigível no âmbito de valores e princípios basilares que norteiam o jornalismo em Portugal.”
Por fim, termina a Associação Sara Carreira com uma ameaça velada: “Estaremos vigilantes aos textos que publique no sentido de vir a agir contra tudo o que, por falsidade, populismo e injustiça, vier a colocar em causa a seriedade e o bom nome desta Associação, dos seus Mecenas, dos seus Bolseiros, dos seus Colaboradores e todos aqueles que nos têm vindo a ajudar, incentivar e também a felicitar.”
Portanto, deixemos a falsidade, populismo e injustiça daqui arredados, e vamos a factos, que estes por definição não são falsos, nem apelam ao populismo, e sendo factos abduzo estão da injustiça. Pelo contrário, não escrever sobre factos é que se mostraria injusto, e omitir factos para “proteger” a imaculada imagem de um cantor popular é que seria populismo.
Donativos da denominada Gala dos Sonhos, transmitida pela SIC, têm um peso significativo nas receitas mas não explicam como em menos de dois anos a Associação Sara Carreira se tornou milionária.
Sejamos, portanto, objectivos. A Associação Sara Carreira tem sido, efectivamente, uma eficaz máquina de receitas – ou melhor dizendo, de donativos. E tanto assim é que, ao nível de rendimentos, já rivaliza com as duas empresas detidas pela família Carreira, a Regibusiness e a Regi-Concerto, sendo que esta é detida quase em exclusivo pela primeira.
No seu primeiro ano de existência, e abrangendo apenas oito meses – foi apresentada em 2 de Maio de 2021 –, e de acordo com o relatório de contas, finalmente disponibilizado, a Associação Sara Carreira conseguiu encaixar 676.908 euros de donativos, que constituíram a sua única receita. Quase 45% (303.465 euros) deste montante foi arrecadado durante a realização da denominada Gala dos Sonhos, no dia 1 de Dezembro daquele ano.
Esta foi a única actividade onde a associação anunciou activamente os valores de donativos relevantes que recebeu desde a sua existência. De resto, exceptuando a oferta de um carro pela Benecar e o anúncio do próprio Grupo Decisões e Soluções – uma empresa de consultadoria imobiliária –, já este ano, de ter doado 100 mil euros, nada se sabe dos montantes doados pelos outros mecenas conhecidos (Missão Continente, Altice, Fundação Santander e SIC).
Mas se o ano de arranque foi promissor, o ano de 2022 mostrou-se fantástico. No caso das vendas, sobretudo de merchandising relacionados com Sara Carreira, representaram quase 100 mil euros (99.098 euros), mas os donativos ainda dispararam mais, cifrando-se nos 983.921 euros. Somados estes itens, a Associação Sara Carreira amealhou 1.083.019 euros em 2022.
Na sua página do Facebook da Associação Sara Carreira anunciou ter reunido na semana passada com os mecenas.
A título de exemplo, a empresa gestora da carreira de Tony Carreira, a Regi-Concerto, facturou 1.325.682 euros em 2021 (as contas de 2022 ainda não estão disponíveis), embora com uma margem de lucro incomensuravelmente menor. Não se encontrou o valor dos donativos da segunda edição da Gala dos Sonhos, apesar de a Associação Sara Carreira garantir que divulgou um comunicado na Rádio Renascença.
Incompreensivelmente, nada é referido no relatório de actividade de 2022, e não se diga que foi por ter pouco relevo. Pelo contrário. O dito relatório revela vários indicadores de sucesso: cerca de 5,5 milhões de impressões dos posts, mais de 700 mil pessoas alcançadas e mais de dois milhões de interacções. E ainda se contabilizou “mais de 62 mil cliques e mais 500 mil seguidores”. Euros recebidos da campanha: nicles.
Se os rendimentos globais e os donativos recebidos pela Associação Sara Carreira acabam, finalmente, por se saber pela leitura dos relatórios e contas de 2021 e de 2022 – e particularmente pela demonstração de resultados e pelos fluxos de caixa –, já o mesmo não se verifica quanto à tipologia dos gastos e despesas. Saber quanto se gastou, isso sabe-se – e acredita-se nos montantes, tanto mais que as contas foram auditadas pela Pricewaterhouse Coopers & Associados –, mas não em quê nem como nem para para quê.
Depois de muita pressão, e situações rocambolescas, a Associação Sara Carreira fez aquilo que qualquer associação de utilidade pública só pode fazer: divulgar as contas e relatório de actividades de 2021 e de 2022. Sem, dramas nem acusações. Só assim, com transparência, se “paga” os benefícios fiscais que se recebe da sociedade.
Nem nos regulamentos nem nas muitas entrevistas concedidas sobretudo nos programas de entretenimento da SIC, nem no relatório de actividades existe a mínima menção aos valores concretos das bolsas de estudo que constituem, sempre, o leitmotiv da Associação Sara Carreira. Ajudar jovens desfavorecidos, embora seja tarefa desenvolvida por muitas outras associações e fundações (e de forma transparente), é mesmo um tema tabu.
Das diversas pesquisas, e perguntas do PÁGINA UM, a Associação Sara Carreira não responde. Nega-se até a explicar o motivo – que certamente haverá um, ou dois, ou 21, tantos quantos os bolseiros que estão integrados na primeira edição.
A segunda edição está numa fase de análise das candidaturas. Note-se que no relatório e contas, a Associação Sara Carreira diz que “temos connosco” actualmente 45 bolseiros, o que contradiz o que surge hoje no site. No entanto, diversas fotos no mural do Facebook, incluindo uma com bolseiros numa viagem turística aos Açores, em Abril deste ano, observam-se 34 jovens. No relatório de actividades de 2022 constam 36, com os respectivos nomes das “madrinhas” e dos “padrinhos”.
Como o relatório de actividades não explicita – nem a direcção da Associação Sara Carreira – os valores unitários e globais das bolsas, somente pela interpretação da demonstração do fluxo de caixa de 2022 será possível atribuir montantes prováveis.
Bolseiros da Associação Sara Carreira numa viagem aos Açores em Abril deste ano.
O dinheiro transferido para os bolseiros ou para as instituições de ensino estará, afinal, integrada no fluxo de pagamento a fornecedores (que, em 2022, atingiram 284.229 euros), não constituindo um pagamento ao pessoal (56.5454 euros, nesse ano). O valor que surge nas actividades operacionais como “Recebimentos de clientes e utentes” (que está com valor negativo), num total de 99.098 euros, será relativo às vendas de merchandising.
Independentemente das questões contabilísticas nem sempre serem cristalinas, certo é que o grosso das despesas da Associação Sara Carreira serviram, assim se assume, para obter os donativos. Ou para custear algumas das actividades pontuais que foi desenvolvendo, incluindo um luxuoso Jantar de Amigos no Salão Preto e Prata no Casino do Estoril em 17 de Setembro do ano passado. Mas falar destas despesas também foi tabu. Ninguém da associação quis esclarecer o PÁGINA UM.
Do total de mais de 325 mil euros já gastos em 2021 e 2022 para pagamentos a fornecedores e serviços externos, a fatia de leão é da rubrica “Trabalhos especializados”, com 174.901 euros. Que tipo de trabalhos especializados são esses, a Associação Sara Carreira não diz. E muito menos responde se alguma das empresas do universo da família Carreira é beneficiária por serviços realizados.
Demonstração de resultados de 2021 e 2002 da Associação Sara Carreira, divulgada apenas na semana passada, após cinco e-mails do PÁGINA UM e depois da Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros ter colocado a hipótese de retirar o estatuto de utilidade pública.
Pode-se admitir que seja todas os custos dos trabalhos especializados (49.273 euros em 2021 e 125.628 euros em 2022) respeitem às bolsas. Assim, se forem mesmo 45 os bolseiros apoiados, obtém-se um apoio médio de um pouco menos de 3.900 euros por ano. Isto não inclui os apoios que algumas empresas têm concedido, acredita-se que graciosamente.
Uma outra rubrica relevante refere-se a “rendas e alugueres”, que se cifraram nos 12.153 euros em 2021 e nos 54.719 euros em 2022. A Associação Sara Carreira também não revela a quem se destinaram estes valores, ignorando-se assim se uma parte se refere à renda da actual sede, compartilhada com a Regi-Concerto, a empresa de gestão da carreira de Tony Carreira.
Em todo o caso, no relatório de 2022 surge a referência de estar “em curso” uma “Parceria Pública para construção de Sede da Associação Sara Carreira”. Nada mais é adiantado que tipo de parceria e com que entidade e qual o custo e comparticipação estatal. Mais um dos muitos tabus.
Outras duas rubricas relevantes dos pagamentos a fornecedores e serviços externos em 2021 e 2022 são os honorários (não identificados, mas que não são de pessoal) no valor de cerca de 23 mil euros e as deslocações e estadas no valor de mais de 31 mil euros. O “material de escritório”, que não inclui artigos para oferta nem livros e documentação técnica, foram de quase 6.500 euros, dos quais 5.452 euros apenas no ano passado.
No relatório de actividades de 2022 constam diversas actividades pontuais da Associação Sara Carreira, como seja uma visita ao Zoo com alunos autistas de Lisboa, a ida de alguns bolseiros ao MEO SW, contributo (alimentação) a associações de apoio a animais, a oferta de roupa desportiva a crianças a Pampilhosa da Serra e o apoio a uma família ucraniana.
Todas estas despesas, apesar de elevadas, não terão afectado demasiado o desempenho financeiro da Associação Sara Carreira, que, em menos de dois anos de existência, acumulou lucros de 1.228.765 euros, registando, no final de 2022. Esse valor até é ligeiramente superior em termos de saldo bancário (caixa e depósitos): 1.266.986 euros.
Qual o destino a dar a estas verbas no futuro – reforçar as acções de beneficência ou constituir activos para rentabilizar, de modo a encontrar receitas para além dos donativos – é também outro dos tabus da Associação Sara Carreira.
Se vai evoluir para uma fundação – que exige uma dotação dos fundadores de 200 mil euros, o que já se ultrapassou, o que traria ainda mais benefícios e garantias de controlo familiar –, com uma eventual transferência de património da família Carreira – ou mesmo integração das suas empresas – também é questão não respondida.
Aliás, quando o PÁGINA UM insistiu em saber eventuais relações comerciais entre a Associação Sara Carreira e as empresas detidas pela família Carreira (Regibusiness e Regi-Concerto), a assessoria de imprensa respondeu que “se [o PÁGINA UM] entender por útil, deve contatar instituições ou pessoas coletivas que vem referindo para obter a informação que entender, atendendo que esta Associação não se pronuncia, muito menos daria qualquer informação sobre entidades à qual é completamente alheia.”
Menu do Jantar de Amigos no Salão Preto e Prata em Setembro do ano passado, no Casinho de Estoril.
Refira-se, porém, que a Regibusiness – que detém praticamente a totalidade (98%) da Regi-Concerto – tem três administradores: Tony Carreira (António Manuel Mateus Antunes), que preside, a sua ex-mulher Fernanda Antunes (Maria Fernanda da Silva Araújo Antunes) e o filho Mickael Carreira (Mickael Araújo Antunes). Ora, a direcção da Associação Sara Carreira tem cinco dirigentes, os três que são administradores – sendo que Fernanda Antunes é presidente, Tony Carreira é tesoureiro e Mickael Carreira é vogal). O quarto membro da direcção da Associação Sara Carreira é o também do clã Carreira, David Carreira.
O único dirigente “estranho” da Associação Sara Carreira à família de Tony Carreira é a vogal Odile Pereira, mulher de Armando Pereira, um dos co-fundadores da Altice, que aliás é um dos principais mecenas.
Na verdade, nem sequer se sabe se Odile Pereira é sócia da Associação Sara Carreira, porque os estatutos, até para evitar entrada de sócios não controláveis – até pelos montantes já angariados –, estão completamente blindados. O artigo 4º dos Estatutos, sobre os quais não foi colocado nenhum entrave aquando do reconhecimento do estatuto de utilidade pública, diz apenas que “podem ser Associados todas as pessoas singulares e pessoas coletivas públicas ou privadas que, através de donativos, deem uma contribuição especialmente relevante para a realização dos fins da associação.” E prevê-se que os corpos sociais podem ser ocupados por “pessoas estranhas à associação” propostas por sócios.
Tony Carreira é simultaneamente administrador da Regibusiness, a sociedade anónima familiar, e tesoureiro da Associação Sara Carreira. Tanto as empresas como a associação são controladas em exclusivo pela família Carreira. Porém, a assessoria de imprensa da associação tenta passar a ideia de não haver ligação entre uma e outra.
O relatório de actividades de 2022 não refere o número de sócios – nem a Associação Sara Carreira quis esclarecer também esta questão –, mas o de 2021, aprovado quando já estava em curso a análise do estatuto de utilidade pública, lista os quatro então existentes: os elementos da família Carreira.
Isso coloca também um problema legal: a lei-quadro do estatuto de utilidade pública exige, como requisito prévio, que as associações ou cooperativas “devem reunir, respectivamente, um número de associados ou de cooperantes que exceda o dobro do número de membros que exerçam cargos nos órgãos sociais, para que lhes possa ser atribuído o estatuto de utilidade pública.”
Como além dos cinco membros da Direcção, a Associação Sara Carreira conta com três membros da Assembleia Geral (José Fortunato, presidente da Missão Continente; Miguel Osório, actual administrador da Media Capital e ex-quadro da Sonae; e o advogado André Matias de Almeida), significa que, para lhe ser atribuído o estatuto, teria de ter 16 ou mais sócios efectivos, todos com os mesmos direitos de voto e, potencialmente, de gestão dos donativos. Ora, o relatório de actividades de 2021, aprovado em 29 de Abril de 2022, não coloca dúvidas: só havia quatro sócios. E provavelmente será um número a manter-se, tendo em conta tamanha obstinação em recusar informações.
Apoio institucional e político à Associação Sara Carreira tem sido ao mais alto nível, permitindo um meteórico mas muito duvidoso reconhecimento de utilidade pública.
Saliente-se que com o estatuto de utilidade pública a Associação Sara Carreira passou a usufruir de um vasto conjunto de isenções, não pagando imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e até isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos. E também obter os proveitos da consignação de 0,5% do IRS.
Além disso, com esse estatuto de utilidade pública os mecenas passam a usufruir de deduções significativas para efeitos de determinação do lucro tributável. Um mecenas, que pode mesmo ser uma das empresas de Tony Carreira, passa a poder considerar como custos em valor correspondente a 130% do respectivo total.
Por exemplo, se considerarmos um lucro hipotético de 100 euros (por facilitismo), uma empresa pagaria 21 euros de IRC, mas se fizer um donativo desses 100 euros, deixa obviamente de pagar os 21 euros, e ainda fica com um “crédito” de 6,3 euros por conta dos 30 euros de despesas justificadas (em caso de ter mais lucros). Claro que um mecenas normal, que concede um donativo, vê sair dinheiro da sua esfera de controlo, contabilisticamente falando, dinheiro, porque mesmo sem impostos o saldo é negativo. Porém, se o donativo for destinado a uma associação de utilidade pública que seja controlado pelo doador, uma transferência de lucros (e até de património) pode ser um excelente negócio. Mesmo sabendo-se que uma associação não pode distribuir lucros, pode ter lucros (e bastantes), e haver dissipação de fundos através de despesas decididas e controladas pelos sócios.
N.D. Fez-se uma correcção da notícias pelas 12:40 horas do dia 11 de Julho, por se constatar que o valor dos Recebimentos de clientes utentes se referia às vendas de merchandising. O lapso advém também de um lapso na apresentação do fluxo de caixa das actividades operacionais. Deste modo, o pagamento das bolsas estará na parte dos fornecedores, mais propriamente na rubrica dos trabalhos especializados.
Em causa está o acesso ao inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês, e o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação de Portugal que não aceitou um NÃO do todo-poderoso Conselho Superior da Magistratura. E foi à luta pelos direitos de acesso à informação. Primeiro, na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos. Venceu, mas o CSM recusou. Segundo, no Tribunal Administrativo de Lisboa. Venceu, mas o CSM recorreu. E o PÁGINA UM viu agora três desembargadores darem-lhe razão. Terceira vitória. Haverá novo despique, agora no Supremo Tribunal Administrativo, para um provável 4-0, ou o CSM vai aceitar que se vive numa democracia?
A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, anunciada em Junho do ano passado era já claríssima: “Em face do que antecede, julgo a presente acção intentada por Pedro Almeida Vieira [director do PÁGINA UM] procedente e, em consequência, intimo o Conselho Superior da Magistratura [CSM] a, no prazo de 10 dias, facultar-lhe o acesso aos documentos por aquele solicitados através do seu requerimento de 2 de Dezembro de 2021”.
Este deveria ter sido o corolário de sete meses de legítima pressão do PÁGINA UM – consubstanciada na Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e da Lei da Imprensa – sobre o CSM para a obtenção do célebre inquérito à distribuição do processo da Operação Marquês em 2014 – então entregue sem sorteio ao juiz Carlos Alexandre, e que culminaria então com a detenção do ex-primeiro-ministro, José Sócrates.
Conselho Superior da Magistratura quis sempre manter secretismo sobre os meandros da Operação Marquês.
Mas não foi, Na verdade, foi preciso mais um ano, muito mais papel, mais um parecer do Ministério Público, e um acórdão de três juízes desembargadores de 23 páginas para fazer cumprir um direito óbvio de acesso a documentos administrativos e ao exercício da liberdade de imprensa.
O “caso” foi espoletado pelo PÁGINA UM em finais de 2021, mas era uma história antiga. Sistematicamente, o CSM recusava a divulgação do famoso inquérito à entrega ao juiz Carlos Alexandre do mais famoso processo judicial em tempos de democracia, a Operação Marquês. Este inquérito tinha feito já correr muita tinta, incluindo um processo judicial de José Sócrates contra o Carlos Alexandre, que acabou arquivado pelo Tribunal da Relação em Maio do ano passado.
Porém, nunca este inquérito viu a “luz do dia”, como se fosse um segredo de Estado, e não um episódio fundamental para percebermos os bastidores da Justiça em Portugal.
O PÁGINA UM não aceitou e foi dar luta ao CSM onde se deve fazer num Estado de Direito: nos palcos da lei e a ordem, enfrentando uma das cúpulas da Justiça – ou seja, exercendo a nobre função do Jornalismo
Primeira página do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul concedendo o direito de acesso ao PÁGINA UM.
Primeiro, pedindo formalmente os documentos, corria o mês de Dezembro de 2021. Em 21 desses mês, a juíza Ana Sofia Wengorovius, adjunta do CSM, recusou liminarmente, emitindo um parecer alegando que o acesso por um jornalista àqueles documentos violaria ou afectaria “os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”, salientando que, para alguém poder consultar o inquérito, teria obrigatoriamente de invocar um “interesse atendível ou legítimo”.
O PÁGINA UM recorreu então à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira, que viria a dar razão ao PÁGINA UM em 17 de Fevereiro de 2022.
Mas nem assim o CSM se disponibilizou a ceder os documentos do inquérito, advogando que o parecer da CADA não era vinculativo, acabando mesmo por “convidar” o PÁGINA UM a recorrer para o Tribunal Administrativo de Lisboa.
O órgão superior de gestão e disciplina dos juízes dos tribunais judiciais portugueses considerou então, através da também juíza Ana Cristina Chambel Matias que “o Requerente [director do PÁGINA UM] não invocou, nem demonstrou que o acesso aos documentos constantes do processo de averiguações em causa são necessários para a tutela de um qualquer seu direito ou interesse legalmente protegido para que lhe seja conferido o direito a esse acesso”, acrescentando que “apesar de notificado por mais de uma vez pelo CSM, não concretizou cabalmente os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e não esclareceu qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos”.
Na verdade, o PÁGINA UM sempre alegou que o estatuto de jornalista era suficiente, tendo sim recusado justificar se a consulta se consubstanciaria em notícia ou não.
O PÁGINA UM decidiu então seguir para a verdadeira luta judicial: o Tribunal Administrativo, naquele que viria a ser o primeiro processo de intimação financiado pelos seus leitores, através do FUNDO JURÍDICO,
Em sede de contestação, o CSM insistiu na tese da existência de “dados nominativos” nos documentos do inquérito. Porém, em vez de acreditar piamente no CSM, o juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, Pedro Almeida Moreira, exigiu que lhe fosse enviado “em envelope selado, cópia dos documentos a que o Requerente [director do PÁGINA UM] pretende aceder, de molde a permitir a este Tribunal aquilatar se os mesmos contêm ou não ‘múltiplos dados pessoais’ e, ‘se a isso se chegar, tecer um juízo de proporcionalidade concernente aos interesses que aqui se encontram concretamente em jogo’”.
A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, em 30 de Junho do ano passado, foi o primeiro revés para o CSM, uma vez que o juiz Pedro Almeida Moreira considerou, consultando o inquérito à distribuição da Operação Marquês, que este “não configura um documento nominativo, em sentido próprio”, uma vez que “em causa estão unicamente dados atinentes aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada”.
O juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa tecia mesmo duras críticas às alegações do CSM, considerando que “a vingar a interpretação que aqui é propugnada pelo Requerido [CSM], isso significaria que o mero nome de um funcionário público que tenha intervindo num qualquer procedimento administrativo apenas poderia ser tornado acessível aos interessados após a ponderação dos interesses em jogo no âmbito de um juízo de proporcionalidade, o que não se mostra aceitável em face das exigências de transparência que impendem sobre a Administração, nos termos constitucional e infraconstitucionalmente consagrados.”
Mas o CSM não se deu por vencido com a opinião da CADA e do Tribunal Administrativo de Lisboa, recorrendo – e obrigando o PÁGINA Um a suportar mais encargos judiciais – para o Tribunal Central Administrativo Sul. E o acórdão demorou, mas saiu no final da passada semana. E é um acórdão demolidor.
Más notícias, portanto, para os conselheiros do CSM.
Mas óptimas notícias para a transparência pública e para a liberdade de imprensa num sistema democrático.
Sentença do juiz Pedro Almeida Moreira foi “validada” por três desembargadores do Tribunal Central Administrativo Sul, que lançam críticas à atitude do Conselho Superior da Magistratura.
O acórdão, votado por unanimidade pelos desembargadores Lina Costa (que foi a relatora), Catarina Vasconcelos e Rui Pereira em 29 de Junho passado, arrasa em toda a linha a argumentação que o CSM usou para evitar o acesso ao inquérito.
E até aborda em detalhe o argumento do CSM de que o director do PÁGINA UM não tinha justificado – porque se recusou a justificar, por ser óbvio aquilo que um jornalista faz – a finalidade dos documentos requeridos.
Para os desembargadores, a sentença inicial do juiz Pedro Almeida Moreira é para manter em toda a linha, concluindo que não houve qualquer “erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação, além de não ter havido qualquer “erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado”.
O acórdão mostra-se, aliás, particularmente importante por clarificar a questão da suposta protecção de dados nominativos, que tem estado a ser levado ao extremo, através da recusa de acesso ou à eliminação até do nome de funcionários públicos em documentos administrativos, como se tem observado no Portal Base com os contratos públicos.
Nessa linha, os desembargadores salientam que “essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [o referido nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo Recorrente, “enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido (…) e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes”, o CSM deveria ter permitido logo o acesso.
Porém, “não o fez”, como escrevem os desembargadores, “recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD (Regulamento Geral da Protecção de Dados], como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.”
Os desembargadores concluem que o CSM não poderia ter decido assim, uma vez que o PÁGINA UM, “ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretend[ia] saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos], até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.”
O CSM foi ainda condenado a pagar as custas do processo, mas pode ainda recorrer para a última instância para o Supremo Tribunal Administrativo. Essa opção implicaria novo atraso num processo que é considerado urgente – mas que já vem de 2021 – e mais custos para o PÁGINA UM.
Mas, se tal suceder, o CSM arrisca também perder uma quarta vez, depois de uma deliberação da CADA, de uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa e deste recente acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.
N.D. Os processos de intimação do PÁGINA UM só são possíveis com o apoio dos leitores. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 18 processos em curso, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.
Para ajudar a organizar em Portugal a reunião do Clube de Bilderberg em Maio passado, Durão Barroso e José Luís Arnaut juntaram 20 euros e criaram uma empresa. No primeiro ano, em 2022, não se saíram mal: através de prestação de serviços (não conhecidos) amealharam quase 216 mil euros para suportar gastos do encontro de verdadeiros influencers de um mundo globalizado. E ainda pagaram impostos. O PÁGINA UM revela, em primeira mão, as contas de 2022 da Bild, a novel empresa de organização de eventos dos dois antigos governantes.
Já foram mais secretas – e também selectas –, mas nunca deixaram de arrastar uma aura de mistério e conspiração. As reuniões anuais do Clube de Bilderberg, um grupo de elite de políticos e empresários – ou de ex-políticos que se tornaram empresários, e também de empresários que rondam a política – servem, oficialmente, apenas para debater assuntos de interesse global.
No site do Bilderberg Meetings afiança-se que as reuniões constituem apenas “um fórum para discussões informais para promover o diálogo entre a Europa e a América do Norte”, congregando “aproximadamente 130 líderes políticos e especialistas da indústria, finanças, trabalho, academia e media”, segundo regras específicas: os participantes são livres de usar as informações recebidas, mas nem as identidades nem as afiliações dos palestrantes ou de qualquer outro participante podem ser reveladas.
José Manuel Durão Barroso
Como os encontros são privados, no site diz-se ainda que “as participações são individuais e não em representação de qualquer função oficial”, não havendo assim agenda detalhada, nem nenhuma resolução e muito menos votação ou declaração política.
Mas a tradição já não é o que era, e sobretudo nos últimos anos começaram a ser divulgadas as presenças mais sonantes – e sobretudo os convites a portugueses, primeiro sob a “égide” de Francisco Pinto Balsemão, e mais recentemente de Durão Barroso – e mesmo a lista de temas em discussão.
Por exemplo, além de personalidades estrangeiras, a mais recente reunião em solo nacional – a anterior tinha ocorrido em 1999 – contou com um vasto contingente lusitano: além dos habitués Balsemão, Durão Barroso e Arnaut, foram convidados os directores executivos da EDP (Miguel Stilwell de Andrade), da Galp (Filipe Silva), da Feedzai (Nuno Sebastião) e da Zeno Partners (Duarte Moreira).
E até os gastos são revelados?
Hotel Pestana, em Lisboa, local apontado da reunião do Clube de Bilderberg em Maio passado.
Neste último caso, convém não exagerar. Os financiamentos dos chamados Bilderberg Meetings não são propriamente públicos. De acordo com o Clube de Bilderberg, “as contribuições anuais dos membros do Steering Committee [actualmente com 32 membros, entre os quais o português Durão Barroso] cobrem os custos anuais de um pequeno secretariado”, para suportar despesas administrativas e de pessoal.
Já em relação à reunião anual, as responsabilidades cabem ao denominado Comité Director do país anfitrião, não havendo taxa de participação, embora os convidados custeiem, segundo o site do Bilderberg Meetings, os “seus próprios custos de viagem e acomodação”.
Assim, para a reunião deste ano em Lisboa, entre 18 e 21 de Maio, ao que tudo indica no Hotel Pestana, a reunião anual do Clube de Bilderberg contou com uma novel empresa de organização de eventos na rectaguarda: a Bild – Encontro Internacional 2023, Lda..
Criada em 11 de Março do ano passado, esta empresa tem uma génese curiosa, pois conta como sócios duas figuras portuguesas de destaque: José Manuel Durão Barroso – actual presidente (Board Chair) da Gavi – The Vaccine Alliance, ex-presidente da Goldman Sachs, ex-presidente da Comissão Europeia e ex-primeiro-ministro português – e o “seu” ministro adjunto José Luís Arnaut.
Tendo como objecto social a “organização, produção e promoção de eventos”, a Bild, Lda. constituiu-se com um capital social de uma refeição de tasca: Barroso deu 10 euros; Arnaut outros 10. Na verdade, Arnaut deu mais: a Bild está sedeada na selecta Rua Castilho, no número 50, ou seja, nas instalações da conhecida sociedade de advogados CSM Rui Pena & Arnaut, da qual o ex-ministro de Durão é managing partner.
Recorde-se que Arnaut é, além de consultor da Goldman Sachs, o presidente da ANA – Aeroportos de Portugal e ainda preside à Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Futebol.
Embora se desconheça em concreto as actividades da Bild até à realização da reunião do Clube de Bilderberg em Maio deste ano, uma vez que José Luís Arnaut não respondeu ainda às questões colocadas pelo PÁGINA UM, pode-se em todo o caso garantir que Portugal bem melhor estaria se só tivesse empresários tão produtivos como os sócios desta empresa.
Com efeito, apenas com os saberes de Arnaut e Barroso, e sem empregados oficiais, a Bild conseguiu, a partir de 20 euros de capital social, trazer um rendimento de 215.813 euros por prestação de serviços ao longo de nove meses de 2022. Quais foram os clientes, ou o serviço prestado, não se sabe, mas uma coisa é certa: não foi por donativos, conforme se observa nas demonstrações financeiras da empresa a que o PÁGINA UM teve acesso.
José Luis Arnaut
Sendo expectável que a Bild tenha tido mais rendimentos este ano, e também gastos, o ano passado trouxe também já muitas despesas, mas nem sequer foi em salários. Quase todas as despesas resultaram de pagamentos a fornecedores e serviços externos. A demonstração de resultados de 2022 aponta para gastos de cerca de 153.520 euros. Curiosamente, nos gastos não se vislumbram despesas para reforçar activos. Na verdade, a empresa não tem um cêntimo em activos tangíveis ou outros activos não correntes.
No meio disto, o Estado não se pode queixar destes investidores de 20 euros: a empresa de Durão Barroso e José Luís Arnaut teve um resultado operacional positivo superior a 62 mil euros, o que implicou, para já, o pagamento de 13.081 euros em impostos. Mas faltam ainda as contas de 2023, e saber se a empresa se dissolverá logo a seguir.
Nas contas consultadas pelo PÁGINA UM diz-se, contudo, que, apesar de “a economia revela[r] atualmente um enorme estado de incerteza, cuja duração e consequências são ainda imprevisíveis”, os gerentes da Bild (Durão Barroso e Arnaut) defendem que “com os elementos disponíveis, consideramos que estão criadas as condições operacionais para a manutenção da atividade da Empresa, estando assegurados os compromissos financeiros assumidos.” Promessas, contudo, são promessas…
Esteve um ano a liderar a informação da Direcção-Geral da Saúde, abandonou o serviço em meados de 2021 para concluir o doutoramento e regressou este mês, como subdirector em regime de substituição, para ganhar currículo e tentar apanhar o lugar de Graça Freitas, cujo concurso decorre. André Peralta-Santos amealhou, entretanto, uns trocos com a Pfizer, enquanto concluía um doutoramento num centro da Universidade de Washington que tem a Organização Mundial de Saúde e a Fundação Bill Gates como clientes. E já está a mostrar serviço: num ofício de anteontem, a pretexto da intimação do PÁGINA UM para acesso aos contratos das vacinas contra a covid-19, que Manuel Pizarro quer manter secretos, Peralta-Santos defendeu que se deve convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa a considerar-se incompetente para analisar o processo, por haver cláusulas de confidencialidade nos acordos globais estabelecidos pela Comissão von der Leyen e as farmacêuticas. Se a tese pegar, o acesso a documentos de interesse nacional podem deixar de ser conhecidos se tudo for tratado nas sombras dos gabinetes da Comissão Europeia.
O novo subdirector-geral da Saúde, André Peralta-Santos – um dos principais candidatos a substituir Graça Freitas como Autoridade de Saúde Nacional –, que colaborou no ano passado por quatro vezes com a farmacêutica Pfizer, defendeu ontem que o Ministério da Saúde deveria, “para efeitos de contestação” à intimação do PÁGINA UM para acesso aos contratos de compras de vacinas e outros documentos associado às aquisições, “questionar, mesmo nesta fase do processo, se os Tribunais nacionais serão os competentes para julgar esta matéria”. A Pfizer foi a empresa farmacêutica que mais vendas terá efectuado a Portugal.
A posição de Peralta-Santos – que substituiu este mês Rui Portugal, que se demitiu repentinamente em final de Maio – consta de um ofício entregue ao Tribunal Administrativo de Lisboa, onde a Direcção-Geral da Saúde (DGS) tenta justificar a razão de quatro contratos de aquisição de vacinas contra a covid-19 terem estado durante meses no Portal Base e depois terem sido retirados aquando da intimação do PÁGINA UM para conhecer a totalidade dos contratos, bem como as guias de remessa e a correspondência entre entidades do Ministério da Saúde e as farmacêuticas.
André Peralta-Santos, actual subdirector-geral da Saúde.
O Ministério da Saúde insiste em não facultar os contratos de aquisição de vacinas com as farmacêuticas, solicitados pelo PÁGINA UM em Novembro do ano passado, desconhecendo-se assim as quantidades adquiridas, os compromissos de compras futuras, os montantes pagos e a pagar, os preços unitários dos diversos lotes ao longo do tempo ou mesmo eventuais comissões.
No ofício assinado por André Peralta-Santos – que esteve afastado da DGS durante alguns meses, aproveitando para, entre outras actividades (incluindo a conclusão do doutoramento), desenvolver actividades pagas pela Pfizer –, advoga que os acordos assinados entre a Comissão von der Leyen e as farmacêuticas “contêm cláusulas de confidencialidade que obrigam todos os intervenientes, donde, os contratos nacionais subordinados a elementos legalmente considerados essenciais do contrato, como quantidades e preços, estipulados nos Acordos/Protocolos/Contratos-Quadro, ficam sujeitos às mesmas regras de confidencialidade, porquanto, devem ser considerados como contratos (parciais) integrantes dos Acordos assinados pela Comissão Europeia em representação dos Estados-Membros, que foram interesados [sic], como foi o caso de Portugal”.
Nesta sua temerária interpretação – que advoga que os Estados democráticos perdem o exercício de Justiça independente interna em caso de acordos comerciais por entidades externas e supranacionais não-eleitas (Comissão Europeia) –, o subdirector-geral da Saúde defende ainda que o Vaccine Order Form – cujos primeiros quatro documentos estiveram no Portal Base, para serem depois sonegados pelo Ministério da Saúde – “não se trata, assim, de um qualquer contrato celebrado pelo Estado português, através da Direcção-Geral da Saúde”, mas “apenas da formalização necessária para operacionalização do APA/PA [acordos entre a Comissão Europeia e as farmacêuticas] em território nacional com o pedido de entrega das vacinas respetivas”.
Curiosamente, apesar de o Ministério da Saúde continuar a insistir junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, que não tinha autonomia para a aquisição de vacinas contra a covid-19, e que tudo foi tratado pela Comissão Europeia, os factos públicos desmentem-no. Por exemplo, em 21 de Janeiro de 2021, o Governo fez um comunicado em que esclarecia o processo de compra das vacinas contra a covid-19, numa altura de escassez de doses. Nesse comunicado, referia-se que, “para além dos contratos iniciais, Portugal adquiriu ainda quantidades adicionais de outras vacinas, nomeadamente da BioNTech-Pfizer e da Moderna, prevendo também adquirir doses adicionais ao contrato inicial com a AstraZeneca.”
E denunciava o Governo também a sua autonomia de escolha, acrescentando que “relativamente à compra de doses adicionais, a opção de Portugal foi a de escolher as doses adicionais em função dos prazos de entrega, ou seja, escolhendo aquelas que chegariam mais cedo.”
Também no mês passado, o Ministério da Saúde adiantava ao jornal Público, de forma surpreendente, que “Portugal celebrou 14 contratos com seis fornecedores de vacinas e que foram entregues cerca de 40 milhões de um total de 61,7 milhões de doses encomendadas e adquiridas para o período até 2023.”
Manuel Pizarro, ministro da Saúde, tudo tem feito para se furtar a mostrar os documentos relacionados com as compras de vacinas contra a covid-19.
O PÁGINA UM revelou já que, calculando a despesa autorizada por Resoluções do Conselho de Ministros, Portugal gastou 877 milhões de euros em vacinas e consumíveis associados até ao final do ano passado, mas a conta nem sequer terá chegado a metade. Calculando as compras globais estabelecidas pela Comissão estima-se que, no total, Portugal terá de comprar cerca de 106 milhões de doses, o que pode vir a resultar em centenas de milhões de euros pagos às farmacêuticas sem qualquer utilidade, face ao forte decréscimo da adesão aos boosters.
Saliente-se também que a legislação nacional, mormente a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, não condiciona o acesso a documentos na posse de entidades públicas do Estado português por conterem eventualmente cláusulas de confidencialidade.
Além disso, o PÁGINA UM requereu ao Tribunal Administrativo de Lisboa, em 31 de Dezembro do ano passado, que obrigasse o Ministério da Saúde a facultar não apenas os “contratos integrais (incluindo anexos e cadernos de encargos) assinados entre a Direcção-Geral da Saúde (ou outras entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde] e as farmacêuticas que comercializam as vacinas contra a covid-19, desde 2020 até à data”, mas também os “documentos de entrega (guias de transporte), bem como toda a documentação (troca de correspondências) entre as entidades adjudicantes e adjudicatárias ao longo deste período”.
André Peralta-Santos é, aos 38 anos, médico especialista em Saúde Pública desde 2015, ocupou o cargo de director de serviços de Informação e Análise da DGS durante um ano da pandemia, entre Setembro de 2020 e Setembro de 2021. De acordo com o despacho do ministro da Saúde publicado na semana passada em Diário da República, terá concluído o doutoramento este ano em Saúde Global na Universidade de Washington. O centro onde Peralta-Santos estudou tem como clientes diversas farmacêuticas, a Organização Mundial de Saúde e a Fundação Bill & Melinda Gates.
De acordo com a descrição constante na base de dados da Transparência e Publicidade do Infarmed – que há vários anos não faz qualquer fiscalização nos procedimentos de transparência entre farmacêuticas e profissionais de saúde –, André Peralta foi, ao longo de 2022, consultor da Pfizer numa reunião sobre abordagem terapêutica da covid-19, e participou ainda em três palestras financiadas por aquela farmacêutica norte-americana. Sempre, invariavelmente, sobre a pandemia da covid-19.
Por exemplo, num seminário sobre sepsis e infecções, organizado no Porto no início de Junho do ano passado, André Peralta ganhou 1.200 euros por compartilhar as suas opiniões sobre objectivos terapêuticos associados à covid-19 durante 40 minutos acompanhado de um médico espanhol (Alex Soriano). Depois, houve um almoço. No total, terá recebido 4.800 euros, mas a Plataforma da Transparência e Publicidade é, objectivamente, uma base de dados que não está sujeita à verificação regular da veracidade por parte do Infarmed. O PÁGINA UM tem detactado sistemáticas falhas na introdução de registos.
Em Janeiro deste ano, aquando de uma notícia sobre as relações de antigos dirigentes da DGS com o sector farmacêutico, o PÁGINA UM contactou André Peralta-Santos por e-mail, mas não obteve quaisquer comentários sobre se, atendíveis as suas anteriores funções, considerava éticas estas relações com uma das farmacêuticas que mais facturou durante a pandemia, sobretudo com a venda de vacinas.
Na semana passada, a candidatura de Peralta-Santos ao cargo de director-geral da Saúde – num concurso-relâmpago em curso, com as candidaturas já encerradas, que nem admite audiência de interessados nem efeito suspensivo em caso de recurso administrativo – foi anunciada largamente na comunicação social (Público, TVI, O Novo, Sábado, ECO, Observador, TSF e Expresso). No jornal do Grupo Impresa, a jornalista Vera Lúcia Arreigoso escreveu mesmo, sem citar ninguém (ou seja, com fontes anónimas, de existência questionável), que “médicos do setor afirmam que André Peralta Santos é o candidato melhor posicionado para a nomeação para liderar a Direcção-Geral da Saúde”.
A Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros confirma que a Associação Sara Carreira não tem as contas e relatórios de actividades no seu site, mas garante que analisou os documentos de 2021 (que, a ser verdade, terão então entretanto desaparecido) e coloca agora como hipótese a revogação do estatuto de utilidade pública, que lhe foi atribuído, em tempo recorde, em Dezembro do ano passado. Benefícios fiscais obtidos podem ser avultados e abrem portas a transferências de património e activos da esfera da família de Tony Carreira, uma vez que a associação tem estatutos blindados e a manutenção do secretismo nas contas eliminará questões éticas publicamente delicadas.
A Presidência do Conselho de Ministros ameaça retirar o estatuto de utilidade pública à Associação Sara Carreira, criada em Março de 2021 pela família do cantor Tony Carreira, por esta não revelar publicamente as contas e os relatórios de actividades no seu site.
A hipótese foi esta tarde confirmada ao PÁGINA UM pelo gabinete do Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, que em Dezembro do ano passado concedeu o estatuto de utilidade pública, em tempo recorde, à associação fundada em memória da malograda filha de um dos mais populares cantores portugueses. Apesar da lei-quadro determinar ser necessário uma actividade efectiva de três anos para requerer aquele estatuto, Moz Caldas aceitou dispensar esse prazo mínimo por a Associação Sara Carreira “desenvolver actividades de âmbito nacional, e evidenciar, face às razões da sua existência e aos fins que visa prosseguir, manifesta relevância social”.
Moz Caldas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, coloca hipótese de revogar estatuto de utilidade pública à Associação Sara Carreira.
Mas, além desse requisito, havia outros – e ainda mais relevantes, até para evitar aproveitamentos ilegítimos face às enormes vantagens fiscais de que beneficiam as associações de utilidade, nomeadamente isenções de IRC, IMI e IMT, de pagamento de taxas para espectáculos e possibilidade de receberem donativos através da consignação de 0,5% do IRS.
Com efeito, a lei é bastante clara sobre a exigência de transparência, salientando que as associações que solicitem o estatuto devem ter “uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.
Na verdade, quando foi analisado o processo da Associação Sara Carreira, ao longo de 2022, visto que obteve o estatuto em Dezembro passado, apenas existiria um ano de exercício (2021), e mesmo assim incompleto (10 meses) – e não os cinco anos explicitados pela lei-quadro.
Tony Carreira fundou com a família a associação para homenagear a memória da sua malograda filha. Conseguiu estatuto de utilidade pública que exige transparência, que não existe.
O gabinete de Moz Caldas garante, sem divulgar ao PÁGINA UM os documentos do processo que o atestam, que a Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros (SGPCM) “analisou as contas da Associação e concluiu que a mesma tinha contabilidade organizada e parecia ‘dispor de pessoal, infraestruturas, instalações e equipamentos, necessários para assegurar a prossecução dos seus fins e para as atividades que se propõe realizar, como revela a análise dos elementos instrutórios’.”
Certo é que o gabinete de Moz Caldas acaba por admitir aquilo que o PÁGINA UM revelou na passada semana: as contas de 2021 (e agora também de 2022) e os respectivos relatórios de actividades não estão no site da Associação Sara Carreira. E nem foram enviados ao PÁGINA UM, conforme pedido por duas vezes à direcção da Associação Sara Carreira – que integra, além da mãe da malograda cantora, o próprio Tony Carreira e os filhos Mickael e David Carreira.
Aliás, a ser verdade aquilo que garante agora o Governo – em tempos, o relatório de contas e de actividades do ano de 2021 esteve no site –, mais se adensa a falta de transparência de uma associação com estatuto de utilidade pública, pois assim significa que esses documentos teriam sido retirados.
Associação Sara Carreira já começou, este ano, a capitalizar o estatuto de utilidade pública, através da possibilidade de se consignar 0,5% do IRS como donativo. Ignora-se outros benefícios já obtidos por as contas serem escondidas.
O gabinete do secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros diz, sobre esta matéria, que, “atenta a situação reportada, de falta de publicitação, atualmente, dos elementos de atividades e contas no sítio na Internet da Associação, bem como as dúvidas relativas à autonomia financeira da Associação”, a SGPCM está a analisar a situação “para aferir se são necessárias diligências adicionais”.
E colocam-se duas hipóteses: “em última instância, o incumprimento de deveres legais pode fundamentar a revogação do estatuto de utilidade pública (…) ou a sua não renovação”, salienta o gabinete de Moz Caldas.
Tony Carreira e os seus filhos David e Mickael durante um concerto de homenagem a Sara Carreira.
Apesar da Associação Sara Carreira ter mantido silêncio às perguntas do PÁGINA UM sobre eventuais transferências de verbas ou património da Regibusiness para a Associação Sara Carreira, mostra-se evidente que os benefícios fiscais são tentadores.
A Regibusiness – que tem uma saúde financeira robusta (com mais de 9 milhões de lucros acumulados) e opta por fazer empréstimos aos seus associados (família de Tony Carreira), em vez de fazer distribuição de dividendos (que pagaria taxa liberatória de 28%) – poderá sempre fazer doações ou donativos milionários para a associação de utilidade pública, obtendo até majorações em despesas, diminuindo assim a tributação de lucros.
Como a família de Tony Carreira controla de forma absoluta a associação, por causa de estatutos blindados, poderia assim despender livremente desses donativos e doações, sobretudo se conseguir manter as contas e relatórios de actividades afastados de olhares indiscretos.
No limite, a Associação Sara Carreira que pode evoluir facilmente para fundação, sobretudo se passar a deter património relevante, através de passagem de activos da Regibusiness, o que tornaria tudo ainda mais apetecível fiscalmente. Aquisições ou vendas de património beneficiariam de isenções, e os lucros não seriam taxados. O único óbice seria a impossibilidade de distribuir os lucros pelos sócios, mas nada impede que a associação suporte despesas dos seus dirigentes e/ ou lhe pague salários e outros benefícios.
Obviamente, se as contas forem públicas – como exige a lei-quadro do estatuto de utilidade pública –, uma parte considerável desses expedientes (legais, mas eticamente questionáveis) seriam facilmente detectados. Esse, aliás, é o motivo principal por a legislação determinar a máxima transparência nas associações de utilidade pública. Algo que, por agora, a Associação Sara Carreira não cultiva, uma vez que nem sequer se aprestou a responder às questões e pedidos do PÁGINA UM, a que acresce a falta quase generalizada de informação financeira sobre as suas actividades. Por exemplo, ignora-se até quais os montantes das bolsas que a associações tem estado a atribuir a jovens carenciados.
Para evitar promiscuidades e uso indevido de associações para fuga a impostos, a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública exige que haja a máxima transparência, independentemente das causas nobres que defendam. Mas para a Associação Sara Carreira, criada em memória da malograda filha de Tony Carreira, o Governo não exigiu sequer o tempo mínimo de actividade previsto na lei (três anos) nem a divulgação de contas. Assim, fica-se sem saber se a empresa familiar Regibusiness, presidida pelo próprio Tony Carreira, e que registava em finais de 2021 lucros acumulados em capital próprio de mais de 9 milhões de euros, fez alguma transferência patrimonial para a Associação Sara Carreira, de modo a beneficiar de isenções fiscais por via do estatuto de utilidade pública. Até porque, na verdade, está tudo em família: os três administradores da Regibusiness (Tony Carreira, a sua ex-mulher Fernanda Antunes, e o filho Mickael Carreira) controlam também a Associação Sara Carreira.
A sociedade anónima controlada e presidida por Tony Carreira, a Regibusiness – Investimentos Imobiliários, obteve um lucro líquido superior a 2,2 milhões de euros entre 2019 e 2021, mas a Associação Sara Carreira recusa-se divulgar se já alguma vez recebeu qualquer donativo ou procedeu a qualquer transferência patrimonial proveniente dessa empresa.
A Regibusiness foi criada em 2006 por Tony Carreira e a então sua mulher, Fernanda Antunes, e é formalmente uma sociedade anónima, embora detida pela família deste popular cantor. E embora tenha como objecto a gestão imobiliária, controla também a empresa de espectáculos de Tony Carreira, a Regi-Concerto, detendo 98% do capital social. A posse dos restantes 2% é de Fernanda Antunes.
A gestão da Regibusiness e a Associação Sara Carreira é comum. Os administradores da Regibusiness são, actualmente, Tony Carreira, que preside, a sua ex-mulher, Fernanda Antunes, como administradora-delegada, e o seu filho e também cantor Mickael Carreira. Todos os três são fundadores e dirigentes da Associação Sara Carreira, integrando a sua direcção. O também cantor David Carreira é um outro dos dirigentes da Associação Sara Carreira, embora não participe na gestão da Regibusiness.
Por via da obtenção do estatuto de utilidade pública em Dezembro do ano passado, em tempo recorde, e sem sequer necessitar de divulgar contas e relatório de actividades – algo que impediria, só por si, a possibilidade de requerer aquele estatuto –, a Associação Sara Carreira passou a usufruir de um vasto conjunto de isenções, não pagando imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e até isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos. E também obter os proveitos da consignação de 0,5% do IRS.
A recusa da Associação Sara Carreira em esclarecer se existem relações patrimoniais entre si e a empresa Regibusiness (ou a Regi-Concerto) não é legalmente aceitável, nem pugna pela transparência exigível para uma entidade que desenvolve causas nobres, e ademais sabendo-se estar intimamente ligada a um evento trágico.
Tony Carreira e os dois filhos, David e Mickael Carreira. Os três são, com Fernanda Antunes, dirigentes da Associação Sara Carreira. E, com excepção de David são também administradores da lucrativa empresa familiar Regibusiness.
Com efeito, sendo agora uma associação com o estatuto de utilidade pública, tal implicaria obrigações de transparência, nomeadamente a divulgação de contas, algo que nunca sucedeu – e tendo em consideração as vantagens que a Associação Sara Carreira detém neste momento, eventuais transferências patrimoniais a partir da Regibusiness ou da Regi-Concerto podem ser extremamente apetecíveis para obtenção de benefícios fiscais.
Certo é que, pela consulta dos registos oficiais, a sede da Associação Sara Carreira coincide com a da Regi-Concerto, o número 5-A da Rua Hernâni Cidade, na Charneca da Caparica. Saber se se trata de mera cedência da Regi-Concerto à associação, ou se houve transferência de propriedade não é apenas uma curiosidade jornalística.
Se houve ou houver transferência patrimonial da esfera da Regibusiness para a da Associação Sara Carreira agora com um estatuto de utilidade pública mas estatutos blindados – um acto pacífico por ambas serem completamente controladas pela família de Tony Carreira –, as vantagens fiscais seriam avultadas. Em hipótese, passando activos da empresa para uma associação de utilidade pública, os rendimentos decorrentes desses activos passariam a estar isentos de impostos e taxas. Por exemplo, os edifícios detidos ou comprados deixavam de pagar IMI e IMT, e não haveria lugar a pagamento de IRC. Aumentando o património, o passo seguinte seria a criação de uma fundação, com ainda maiores vantagens fiscais.
Saliente-se que, mesmo tendo a pandemia afectado a actividade de Tony Carreira, a sua empresa familiar regista uma excelente saúde financeira, com lucros de quase 1,3 milhões de euros em 2019, de 383 mil euros em 2020 e de 600 mil euros em 2021. Ainda não estão disponíveis as contas de 2022, mas será expectável que se aproximem dos valores pré-pandemia.
Consultando as demonstrações financeiras de 2021, a Regibusiness detinha então um capital próprio de 9,64 milhões de euros, dos quais 1,6 milhões de reservas e 5,8 milhões de resultados transitados. Ou seja, lucros acumulados que os sócios – Tony Carreira e sua família – decidiram não distribuir.
Isto não significa que os sócios tenham prescindido de obter outro tipo de dividendos perante os bons ventos financeiros da Regibusiness. Segundo se observa pelo balanço e demonstração de resultados, usaram um esquema que, sendo legal, só se mostra exequível em sociedades onde existe confiança absoluta entre os sócios ou accionistas.
Com efeito, estão contabilizados 1,12 milhões de euros que a Regibusiness emprestou aos seus associados, ou seja, aos membros da família de Tony Carreira. em condições e prazos que apenas dizem respeito à gestão da empresa. Em todo o caso, verifica-se que os empréstimos foram realizados sem aplicação de juros. Este expediente evita, de imediato, qualquer tipo de tributação em sede de IRS, o que sucederia se Tony Carreira e seus familiares optassem pela distribuição de dividendos.
Além disto, a Regibusiness terminou o ano de 2021 com depósitos bancários de quase 760 mil euros, não havendo também indicação de que tenha havido qualquer transferência em dinheiro para a Associação Sara Carreira.
Aliás, como ontem o PÁGINA UM divulgou, as contas da Associação Sara Carreira são desconhecidas, e há uma quase completa ausência de referências sobre os montantes das suas campanhas de beneficência assim como dos recebimentos dos mecenas e apoiantes. No caso das bolsas atribuídas pela associação a jovens carenciados – numa parceria com a SIC –, ignora-se qual o montante de apoio efectivo. Quanto aos mecenas, apenas se conhece o valor do donativo (100 mil euros) concedido em Fevereiro deste ano pelo Grupo DS.
Além desta empresa, mas com montantes desconhecidos, são considerados mecenas a Missão Continente, a Altice, a Fundação Santander e a SIC, sendo também elencadas outras 12 empresas como apoiantes e seis como parceiras. A Associação Sara Carreira tem também, na realização de uma gala anual transmitida pela SIC, e num tour solidário do próprio Tony Carreira, em parceria com a Missão Continente, outras fontes relevantes de receitas.
Quanto tudo isto envolve? Não se sabe, mesmo se a lei diz que teria de se saber, uma vez que a Associação Sara Carreira quis ter o estatuto de utilidade pública, para benefício próprio.
Por regra, exige-se, no mínimo, três anos de actividade efectiva e a máxima transparência financeira para uma associação obter estatuto de utilidade pública. Não é apenas por reconhecimento que todos o almejam. Na verdade, por detrás, há um vasto leque de isenções fiscais, desde IMT e IMI até IRC, passando pelo não pagamento de diversas taxas. Por isso, a lei exige, entre outros requisitos prévios, que sejam públicas as contas e os relatórios de actividade. Mas com estatutos blindados, a Associação Sara Carreira não precisou disso: conseguiu o ambicionado estatuto em menos de dois anos e sem mostrar contas, contrariando a Lei-Quadro. Assim, no meio de cantorias em prol de uma causa nobre, não se conhece o seu património (e eventuais transferências para benefícios fiscais), nem sequer as receitas nem os gastos nas acções de beneficência. Tudo é feito na base da confiança. E quando o PÁGINA UM pediu contas e esclarecimentos, não houve sequer um acorde.
A Associação Sara Carreira – criada em Março de 2021, em memória da filha do cantor Tony Carreira, três meses após o seu trágico acidente mortal – viu o Governo conceder-lhe o estatuto de utilidade pública em tempo recorde, mesmo mantendo as suas contas secretas, o que contraria a lei. Além disso, os estatutos, entretanto alterados em Maio do ano passado, estão blindados, condicionando, de forma discricionária, a admissão de associados em função de donativos relevantes que nem sequer são definidos.
Além do reconhecimento, a obtenção de estatuto de utilidade pública – uma meta que qualquer associação almeja – concede um vasto conjunto de isenções fiscais, designadamente do pagamento de imposto sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) e imposto municipal sobre imóveis (IMI), impostos sobre o rendimento de pessoas colectivas (IRC) e, no caso concreto da Associação Sara Carreira – que desenvolve a sua actividade de angariação de fundos da realização de espectáculos –, isenção de taxas associadas a espectáculos e eventos públicos.
Tony Carreira
Embora a lei determine que, regra geral, como requisitos para a atribuição daquele estatuto, seja necessário um período mínimo de três anos de actividade efectiva, o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, achou que se poderia dispensar esse prazo por a Associação Sara Carreira “desenvolver actividades de âmbito nacional, e evidenciar, face às razões da sua existência e aos fins que visa prosseguir, manifesta relevância social”. E, assim sendo, fez um despacho em 21 de Dezembro do ano passado concedendo o estatuto – ou seja, quando faltava ainda um ano e três meses para perfazer o período normal.
A favor desta aceleração do processo estiveram também os pareceres das autarquias de Almada, onde se localiza a sede da associação, e de Pampilhosa da Serra, concelho de onde é natural Tony Carreira, de seu nome verdadeiro António Manuel Mateus Antunes.
Porém, todos fecharam os olhos a aspectos relevantes que, mais do que constituírem requisitos legais, consubstanciam uma postura de transparência perante a sociedade que concede benefícios fiscais que podem assumir valores consideráveis.
Tony Carreira, com os seus filhos David e Mickael. Juntamente com a ex-mulher Fernanda Antunes, criaram a Associação Sara Carreira em Março de 2021, com estatutos blindados.
Com efeito, entre os requisitos prévios, a Lei-Quadro do Estatuto de Utilidade Pública obriga que as associações que o solicitem “tenham uma página pública na Internet, acessível de forma irrestrita, onde sejam disponibilizados os relatórios de atividades e de contas dos últimos cinco anos, a lista atualizada dos titulares dos órgãos sociais e os textos atualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.
Ora, mas além do facto de a Associação Sara Carreira não ter ainda cinco anos de existência, nunca foi publicado relatório de actividade e de contas, com as demonstrações financeiras, incluindo o balanço e as demonstrações de resultados, mesmo se os estatutos até já determinam expressamente essa tarefa. Nunca houve assim qualquer sinal dos rendimentos nem das despesas, nem se conhece se algumas das actividades empresariais dos sócios fundadores (Tony Carreira e sua ex-mulher, Fernanda Antunes, que preside, e os seus filhos David Carreira e Mickael Carreira) foram ali integradas para beneficiar de isenções fiscais.
Certo é que, consultando o site da Associação Sara Carreira, observa-se uma forte componente comercial, com uma ligação directa para uma loja de merchandising e para o catálogo de roupa Éssê by Sara Carreira, que a malograda artista lançara em Outubro de 2021.
No site da Associação Sara Carreira sabe-se quanto custa umas cozy white sweatpants, mas nada se sabe sobre as contas como exige a lei para a atribuição do estatuto de utilidade pública.
Até as actividades de carácter mais benemérito estão envoltas em grande secretismo quanto à parte económica e financeira, mesmo contando com a Missão Continente, a Altice, a Fundação Santander, a SIC e o Grupo DS, além de apoios de 12 empresas e parcerias com outras seis, entre as quais, ironicamente, a PWC, que presta serviços profissionais de auditoria, fiscalidade e assessoria de gestão. Com efeito, mesmo no projecto mais conhecido publicamente desta associação – as Bolsas de Estudo Sara Carreira – ignora-se os montantes efectivamente distribuídos.
Embora a associação, no seu site, refira que nas duas primeiras edições houve 35 jovens beneficiados, estando a decorrer a análise das candidaturas à terceira edição, nunca houve a mínima referência sobre os montantes atribuídos. No regulamento apenas se refere que “o valor atribuído a cada jovem bolseiro(a) será definido pela Direção da Associação [Sara Carreira], em função das necessidades do(a) mesmo(a)”, adiantando ainda que “os critérios e entrega dos valores, variam em função das especificidades e necessidades de cada candidato(a)”.
Por fim, acrescenta-se que “os valores atribuídos serão entregues diretamente às instituições de ensino ou a outras entidades a definir pela Direção, atendendo à especificidade da formação e necessidades.” Em suma, nenhuma menção a valores concretos.
André Moz Caldas, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, concedeu despacho de atribuição de estatuto de utilidade pública sem exigir transparência à Associação Sara Carreira.
Além de tudo isto, e atendendo aos benefícios do estatuto de utilidade pública, mas perante o secretismo (ilegal) das contas da Associação, também se desconhece quais são actualmente os activos da associação, incluindo património financeiro e imobiliário eventualmente transferido da família de Tony Carreira. Como existe um controlo absoluto na entrada de associados por parte da família Antunes (que tem esmagadora maioria na direcção), a Associação – que pode vir a evoluir para fundação – pode estar a ser um veículo para benefício de isenções fiscais relevantes, sobretudo se se mantiver o seu estatuto de utilidade pública sem exigência de apresentação pública de relatórios de contas.
O PÁGINA UM contactou por duas vezes a Associação Sara Carreira, colocando um conjunto de questões relacionadas com estes assuntos, mas não obteve qualquer reacção. O mesmo sucedeu com um pedido de esclarecimento endereçado ao secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, André Moz Caldas. Foi, aliás, pedido ao governante que indicasse outras associações que tivessem conseguido obter o estatuto de utilidade pública em menos de três anos, um feito que Tony Carreira conseguiu para a associação em memória da filha, sacando assim apetecíveis benefícios fiscais.
O secretismo da actividade do actual Governo, que festejará no próximo ano, o cinquentenário da Democracia, está a intensificar-se. Numa contra-alegação de um processo de intimação do PÁGINA UM, através do seu FUNDO JURÍDICO, intentado no Tribunal Central Administrativo Sul, a Presidência do Conselho de Ministros defende que todos os documentos elaborados pelos seus serviços e a troca de documentação entre membros do Governo, e também com o Presidente da República, devem ser considerados documentos de natureza política. Desse modo, pretendem que fiquem excluídos das obrigações da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.
O Centro de Competências Jurídicas do Estado – um “gabinete jurídico de luxo” da Presidência do Conselho de Ministros – considera que “os ofícios, cartas e outros documentos trocados e elaborados no seio do Governo ou entre o Primeiro-Ministro e o Presidente da República e os respetivos Gabinete e Casa Civil não são passíveis de acesso ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos”.
Esta interpretação – que pode significar dificuldades acrescidas de acesso a documentos governamentais – consta das contra-alegações do Governo apresentadas no Tribunal Central Administrativo Sul no decurso de uma intimação do PÁGINA UM para aceder ao inquérito preenchido por Gonçalo Rodrigues. O PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que estranhou que um inquérito apresentado como um sinal de “transparência do Governo” sobre os seus membros, após um conjunto de escândalos, fosse classificado como “secreto”.
Este professor do Instituto Superior de Agronomia foi a primeira (e até agora única) pessoa a ser abrangida por uma Resolução de Conselho de Ministros de Janeiro deste ano, que passou a exigir a entrega de resposta a um conjunto de 36 quesitos. Sem essa entrega, a pessoa convidada não poderá ser aceite como membro de Governo, mas o diploma legal – que vincula um particular, que tem assim de cumprir uma norma – considera que a informação é classificada como “Nacional Secreto”, invocando legislação que se aplica a casos de segurança de Estado ou de aliados.
Ironicamente, o inquérito que o Governo não quer ceder ao PÁGINA UM resulta de uma Resolução do Conselho de Ministros que, logo no preâmbulo, relembra que “o Programa do XXIII Governo Constitucional realça a importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático“. E acrescenta, a seguir que “tal aconselha que o escrutínio a que aqueles titulares devem ser sujeitos para integrarem o Governo, no âmbito do processo de avaliação política que precede a respetiva nomeação, seja reforçado.” Só que o reforço é falacioso. Não só o Governo esconde os inquéritos como garante a sua destruição se o governante foi destituído ou se não tomar posse.
Trecho da contra-alegação do Governo em defesa do obscurantismo. Tribunal Central Administrativo Sul determinará se esta tese, em vésperas do 50º aniversário da democracia, vence.
Em sede de primeira instância, o Governo conseguiu que uma juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa considerasse que os documentos associados, mesmo se indirectamente, à constituição do Governo eram apenas documentos políticos, e não documentos administrativos contendo decisões políticas, concluindo que assim o Governo não teria de ceder o acesso ao documento por este não estar abrangido pela Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. O PÁGINA UM contestou essa interpretação por considerar que um acto político, que é conceito muito abrangente, assume também um acto administrativo se efectivado em documento físico ou suporte análogo em cumprimento de uma norma legislativa.
Mas agora, em sede de recurso, o Governo aparenta querer ir ainda mais longe – e até porventura criar jurisprudência –, ao defender que todos os documentos elaborados no seio do Governo, incluindo correspondência entre ministros, secretários de Estado e até Presidente da República fiquem no segredo dos deuses. No limite, o acesso a qualquer relatório técnico, contendo matérias politicamente sensíveis, poderia passar a ser negado pelo Governo invocando que se trataria de um documento político.
Recorde-se que a lei considera que um documento administrativo é “qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detida em nome dos órgãos e entidades” públicas, incluindo Governo, “seja o suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material”, não fazendo referência ao tipo de decisão ou matérias que contenha.
Existe apenas um artigo que exclui determinados documentos da esfera públicas, em concreto “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – daí que, por exemplo, as famosas notas de Frederico Pinheiro não são documentos administrativos, pelo que o acesso público pode ser vedado –, “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação” e ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português.”
Não parece ser esse o caso de um inquérito preenchido por Gonçalo Rodrigues, ainda mais sabendo-se que, no momento em que o actual secretário de Estado o entregou, era ainda um simples cidadão sem cargo político, e que estava apenas a cumprir o estatuído num diploma legal, criado por… uma decisão política em prol da transparência.
N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 19 processos de intimação intentados desde Abril do ano passado, além de outras diligências, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.
São apenas dois dias, e sem aparato demasiado espampanante, mas o primeiro evento de maior dimensão da novel Sociedade Portuguesa de Saúde Pública revela bem como o debate público sobre futuras pandemias está a ser rapidamente enviesado. Instalando-se um nicho criado pela pandemia, esta sociedade científica foi ocupada por altos funcionários públicos de confiança política do actual Governo, e o seu primeiro congresso, em parceria com duas associações, conta apenas com “peritos” escolhidos a dedo. E, claro, mãos de farmacêuticas, que patrocinam talks, que, na verdade, são sessões públicas de lobby descarado. Uma viagem ao programa do Congresso Saúde Pública 23, conduzida pelo PÁGINA UM, sob o mote “Uma Nova Era”.
A Culturgest vai ser hoje e amanhã palco do Congresso Saúde Pública 23, com o mote “Uma Nova Era”. Uma notícia normal diria que, no auditório e diversas salas do edifício da Caixa Geral de Depósitos, passaram as principais figuras que marcaram os anos da pandemia, tanto do quadrante político como de especialistas.
Para debater políticas públicas de Saúde, inovação e ciências e assuntos paralelos, e até equidade para pessoas LGBTQIA+, está prevista a presença, logo pela manhã de hoje, como cabeças de cartaz, a ex-ministra da Saúde Marta Temido, a directora-geral da Saúde Graça Freitas, o seu antecessor e ex-presidente da Cruz Vermelha Portuguesa Francisco George, e ainda Raquel Duarte, ex-secretária de Estado da Saúde e uma das peritas requisitadas nas famosas reuniões do Infarmed.
Em segundo plano, estarão outras figuras bastante mediáticas, classificadas pelo Governo como “peritos” durante a pandemia, como o pneumologista Filipe Froes, o epidemiologista Henrique Barros (marido da actual secretária de Estado da Promoção da Saúde), o imunologista Miguel Prudêncio, o presidente da European Respiratory Society Carlos Robalo Cordeiro, e ainda o novo subdirector-geral da Saúde, André Peralta Santos.
Mais do que debater Saúde Pública, pelos palcos da Culturgest, sobretudo pelo seu auditório, se espraiará, contudo, a promiscuidade entre poder político, sociedades médicas e farmacêuticas, num conluio que, sem encontrar fronteiras, começa a cansar por recorrente. Vejamos.
Organizado por três associações – Sociedade Portuguesa de Saúde Pública, Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública e Associação Portuguesa para Promoção da Saúde Pública –, o congresso conta com o patrocínio oficial da Caixa Geral de Depósitos, que cedeu o espaço e a logística, mas quem abre os cordões à bolsa, até por não haver inscrições pagas, são quatro farmacêuticas – Abbott, GlaxoSmithKline, Pfizer e Sanofi –, que têm ali palcos majestáticos para exporem os seus consultores, grande parte dos quais com um papel mediático durante a pandemia.
Apesar de ainda não serem conhecidos todos os montantes envolvidos – e que apenas serão oficializados quando integralmente inseridos no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed –, alguns detalhes conhecidos já demonstram servir este congresso para falar mais do que de saúde. Pelos sinais – e porque não vale a pena obter reacções, porque todos negariam, horrorizados pela torpe suspeita –, ali se espraia, de forma mais ou menos discreta, lobbies com bypass directo entre Governo, Administração Pública, supostas sociedades científicas e farmacêuticas.
O caso mais paradigmático passa-se com a principal organizadora do congresso, a novel Sociedade Portuguesa de Saúde Pública (SPSP), que tem na Culturgest o seu segundo evento público conhecido, após uma singela apresentação de um livro em Março passado, coordenado por Francisco George, seu presidente.
Anunciada em Maio do ano passado, a SPSP terá 20 fundadores, onde também pontificam, segundo então se revelou na comunicação social, a pneumologista e ex-secretária de Estado da Saúde Raquel Duarte, os epidemiologistas Baltazar Nunes e Andreia Leite, o presidente do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge (INSA), Fernando Almeida, o professor jubilado em Saúde Pública Constantino Sakellarides (e ex-director-geral da Saúde), o psiquiatra Daniel Sampaio, o médico Rui Portugal, na época subdirector-geral da Saúde, o então presidente do Conselho Nacional de Saúde, Henrique Barros; e a ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos Ana Paula Martins, então na farmacêutica Gilead e que agora preside ao Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte.
Francisco George, depois da passagem pelas funções de director-geral da Saúde e de presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, por nomeação governamental, fundou a Sociedade Portuguesa de Saúde Pública com três altos funcionários públicos de confiança política.
No entanto, apenas assinaram a constituição desta associação, em 6 de Maio de 2022, Francisco George, o então subdirector-geral da Saúde Rui Portugal – que se demitiu no final do mês passado, pouco tempo depois de admitir candidatar-se ao lugar de Graça Freitas – e o presidente e a vogal do INSA, Francisco Lopes de Almeida e Cristina Abreu dos Santos. Saliente-se que, conforme referido no seu site, o Conselho Directivo do INSA dirige os seus serviços “em conformidade com a lei e as orientações governamentais”, sendo apenas constituído por duas pessoas.
Diga-se que a SPSP acaba por ser similar à co-organizadora Associação Portuguesa para a Promoção da Saúde Pública (APPSP), mas esta não tem o élan de ter sociedade na denominação. Com efeito, a APPSP é uma associação criada em 1969 por Arnaldo Sampaio, director-geral da Saúde entre 1972 e 1976, sedeada na Escola Nacional de Saúde Pública.
Se o excessivo peso de funcionários públicos de confiança política provoca legítimas dúvidas sobre a independência e isenção deste tipo de organizações, estas também se desvanecem na leitura da localização da sede da SPSP: Centro de Saúde de Sete Rios, em Lisboa. Ou seja, em instalações públicas.
Certo é, de entre as poucas intervenções públicas da SPSP, destacam-se as recentes declarações de Francisco George, em Março passado, que mostraram uma grande sintonia com os interesses governamentais. De facto, o antigo director-geral da Saúde e ex-presidente da Cruz Vermelha defendeu então a aprovação da lei de protecção em emergência de saúde pública para que, em futuras pandemias, se restrinjam administrativamente direitos e liberdades individuais.
Apesar das evidências científicas internacionais sobre os impactes negativos dos confinamentos rígidos, os peritos portugueses associados ao Governo insistem agora em defender medidas administrativas de restrição às liberdades em futuras crises sanitárias.
Nessas declarações à Lusa, Francisco George deu também, como presidente da SPSP, o seu aval aos confinamentos durante a pandemia, considerando-os “uma medida absolutamente essencial” para controlar e prevenir a covid-19. Ora, os Governos costumam agradecer essas opiniões de sociedades científicas independentes na aparência.
No entanto, a nível internacional, e em revistas científicas independentes, já há muito se coloca em causa os confinamentos como solução adequada para a pandemia da covid-19. Por exemplo, no ano passado, John Ioannidis, o mais relevante epidemiologista mundial, destacava, num artigo em co-autoria no International Journal of Forecasting, que “a população em geral foi confinada e colocada em alerta de terror para evitar que os sistemas de saúde entrassem em colapso”, mas “tragicamente, muitos sistemas de saúde enfrentaram grandes consequências adversas, não pela sobrecarga de casos de covid-19, mas por razões muito diferentes”. E apontava para os “pacientes com ataques cardíacos [que] evitaram hospitais para atendimento, tratamentos importantes (por exemplo, para cancro) [que] foram injustificadamente atrasados” , para além de prejuízos na saúde mental.
Ioannidis também salientava que “com operações prejudicadas, muitos hospitais começaram a perder pessoal, reduzindo sua capacidade de enfrentar crises futuras”, como por exemplo uma segunda onda, e que “com o novo desemprego massivo, mais pessoas arriscaram perder o seguro de saúde.”
Ex-ministra Marta Temido fará uma aparição na abertura do congresso, com Francisco George, Paulo Macedo (CEO da Caixa Geral de Depósitos) e Raquel Duarte.
Mas isso foram sempre aspectos nunca admitidos pelos “peritos” governamentais portugueses, alguns dos quais agora com ligações umbilicais à SPSP, como é o caso de Raquel Duarte. Antiga secretária de Estado da Saúde, Raquel Duarte destacou-se no grupo de peritos ad hoc das conhecidas “reuniões do Infarmed” – que validava todas as medidas do Governo de António Costa, substituindo a Comissão Nacional de Saúde Pública, que nunca foi colocada a funcionar – e é co-autora de uma obra apologética sobre a estratégia governativa, apresentada em Maio do ano passado na Universidade do Minho diante de um agradado primeiro-ministro.
Além destas ligações de boa convivência com o Governo, a SPSP também não fugiu ao amplexo com farmacêuticas. Não se conhecendo ainda todos os financiamentos deste congresso, no Portal da Transparência do Infarmed – cuja inserção de registos é voluntária e pouco ou nada fiscalizada pelo regulador dos medicamentos, presidido por Rui Santo Ivo –, já consta o apoio da Pfizer à SPSP. E, oficialmente, não é pequeno: 15.000 euros.
Isto considerando que este dinheiro serve para patrocinar o “sponsor talk by Pfizer”, a moderna designação para 45 minutos da apresentação de Charles Jones, director sénior de inovação e estratégia mRNA da Pfizer, acompanhada pelas palavras de Miguel Prudêncio, investigador do Instituto de Medicina Molecular, e de Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP). Desde que assumiu a liderança desta associação de médicos, em finais de 2021, Tato Borges – que tem pretensões a ser o próximo director-geral da Saúde – já recebeu por seis vezes apoios da Pfizer, no valor total de 10.210 euros, incluindo uma viagem a um congresso à cidade canadiana de Toronto.
Tato Borges, presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, co-organizadora do congresso. Desde que assumiu funções, este médico começou a dar palestras financiadas pela Pfizer.
Se 15.000 euros valem 45 minutos de “sponsor talk by Pfizer”, similares montantes se deverão praticar nas outras “talks” – assim à inglesa, que se paga melhor. Todas com participantes e moderadores que garantem ausência de surpresas ou vozes dissonantes. Por exemplo, a “sponsor talk by Abbott”, financiada por esta farmacêutica norte-americana, contará com a moderação de Francisco George, e a participação do médico espanhol José María Eiros Bouza e do médico português Gonçalo Órfão.
A Sanofi – que está numa promíscua campanha, através da Sociedade Portuguesa de Pediatria em coligação com a imprensa, para convencer o Governo a administrar anticorpos monoclonais contra o vírus sincicial respiratório (VSR) a todos os recém-nascidos – desembolsará mais, porque pagou duas “sponsor talks”, ambas nesta sexta-feira.
A primeira terá como cabeça-de-cartaz a pediatra Teresa Bandeira para falar… sobre o vírus sincicial respiratório e “novas soluções para um desafio de saúde pública”. Teresa Bandeira foi a principal subscritora do parecer que recomendou a compra massiva de anticorpos monoclonais da Sanofi e AstraZeneca à Direcção-Geral da Saúde. E ainda em Abril passado participou num evento promovido pela Sanofi sugestivamente denominado “Rumo a uma nova era de prevenção do vírus sincicial respiratório“. Desta vez, para a sessão de 20 minutos na Culturgest, a moderação será de… Gustavo Tato Borges, putativo candidato a director-geral da Saúde e presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Público, e co-organizador do evento.
Teresa Bandeira, presidiu à Sociedade Portuguesa de Pediatria entre 2014 e 2016.
Moderada pela jornalista do Expresso Vera Lúcia Arreigoso, a segunda “sponsor talk by Sanofi” tem como tema a nova vacina contra a gripe como “uma prioridade de Saúde Pública”, e conta com três palestrantes: Carlos Aguiar, Sofia Duque e Carlos Robalo Cordeiro. Nem de propósito, ou talvez sim, a Sanofi começou a comercializar recentemente uma vacina quadrivalente contra a gripe, e tem-se multiplicados em eventos de promoção, em parceria com órgãos de comunicação social, como Expresso no âmbito da Flu Summit.
Estes eventos são sempre óptimos momentos de cortesia e lobby, como a que ficou patente na homenagem a Graça Freitas, que entre muitos sorrisos juntou Lacerda Sales, ex-secretário de Estado da Saúde e actual deputado que presidente à comissão parlamentar da TAP, e ainda Helena Freitas, directora-geral da Sanofi Portugal, e Carlos Robalo Cordeiro.
Aliás, este pneumologista e professor da Universidade de Coimbra – um empolgado adepto da vacinação contra a covid-19 de jovens, chegando a integrar um grupo de queixosos que espoletou um torpe processo disciplinar contra Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, por recomendar prudência – é sempre um habituée deste tipo de eventos. Com benefícios: só no ano passado, o actual presidente da European Respiratory Society amealhou quase 25 mil euros das farmacêuticas, dos quais 3.414 euros da Sanofi. Este ano conta, em menos de seis meses, um pouco menos de 11 mil euros. Apesar disso, a declaração de interesses deste médico naquela sociedade internacional está a branco, sem qualquer justificação, apesar de o PÁGINA UM ter pedido esclarecimentos, que não obteve reacção.
Conforme foto da edição do Expresso de 7 de Março passado, no recente Flu Summit, evento organizado pelo Expresso e pago pela Sanofi, Graça Freitas foi homenageada, enquanto se debatia a nova vacina da farmacêutica contra a gripe.
Froes falará, nesta sexta-feira, sobre “a vacinação como um pilar para o envelhecimento saudável”, numa altura em que concentra os seus esforços de consultadoria e de marketing na promoção de uma nova vacina pneumocócica da Merck Sharpe & Dohme (MSD) para bebés, crianças e adolescentes.
Em parte por esse motivo, este ano, e até agora, quase dois terços dos cerca de 20 mil euros daquilo que Froes oficialmente recebeu de farmacêuticas foi a partir da MSD, que já no ano passado, com a Sanofi, fora um dos seus principais “mecenas”. Este ano, este pneumologista ainda só recebeu cerca de 1.600 euros da GSK, mas não estão ainda incluídos os honorários da “sponsor talk by GSK” de amanhã na Culturgest.
Filipe Froes, ao centro, é um dos médicos do Serviço Nacional de Saúde com mais ligações à indústria farmacêutica, apesar de ser consultor da Direcção-Geral da Saúde. Com um processo disciplinar pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) desde Fevereiro de 2022 (e nunca concluído), foi, apesar disso, mandatário do actual bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes (ao seu lado esquerdo).
Depois da palestra de meia hora de Filipe Froes, terminará o Congresso Saúde Pública 23, organizado por associações “associadas” ao Governo, e com “talks” financiadas por farmacêuticas, com um derradeiro evento: a directora-geral da Saúde, Graça Freitas, presidirá ainda à cerimónia de entrega de prémios aos vencedores das PH Innovation Sessions, ou seja, aos melhores trabalhos apresentados nas outras salas.
A organização não informa, no seu site, se os prémios são monetários e financiados por farmacêuticas. Em todo o caso, os funcionários públicos que participem, e recebam diploma, têm dispensa de serviço. Não parece demasiado mau para quem tem de ouvir palestras financiadas por farmacêuticas.
N.D.O Código Deontológico dos Jornalistas determina que “a distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.” Uma vez que, aparentemente, subsistem dúvidas de certos reguladores sobre a interpretação desta frase, declara-se o óbvio: quando o leitor ler, numa notícia, um qualquer adjectivo, então estará perante uma opinião. Se não for uma notícia e se ler um adjectivo, então será também uma opinião. Em todo o caso, tudo se interpreta com rigor e honestidade. Mesmo quando se escolhem os adjectivos.