Categoria: Cultura

  • A mansa loucura do professor de teatro e cinema

    A mansa loucura do professor de teatro e cinema


    O que se encontra no coração dos homens permanece um mistério para mim. Desdeaquela época, tenho observado vários tipos de pessoas – escroques, falsários,
    gente que matou ou morreu por dinheiro – e todos eles parecem pessoas normais;
    fico confuso.

    Relato autobiográfico, Akira Kurosawa


    Dias atrás, de manhã, fui até essa porta, mas não consegui ultrapassá-la. Não que houvesse problema com a fechadura. Girei a chave e, depois, simplesmente, meu braço se recusou a movimentar a maçaneta.

    Não, não ria. Embora também ache que a situação é ridícula, eu lhe peço que não se entregue à zombaria antes de ouvir o que tenho a dizer. Também nunca levei a sério essas histórias de sujeitos que se veem, repentinamente, impossibilitados – por uma espécie particular de loucura – de realizar atos insignificantes do cotidiano.

    Porém, foi exatamente isso que se deu comigo.

    *

    Na primeira semana, ninguém reclamou da ausência do velho.

    É possível que alguém tenha estranhado a falta dele, sim, mas o certo é que o tal aluno não se perdeu em considerações sobre o assunto porque aqui, mais que em qualquer outro campus, uma folga inesperada é sempre bem recebida.

    A vantagem de uma universidade nos trópicos é que a coisa toda é levada na maciota, por alunos e professores. Vejamos pelo nosso lado. Em geral, não ganhamos bem, mas, em compensação, quase não trabalhamos. Resumindo: professores fingem que lecionam; estudantes fingem aprender. O mundo nem para nem gira mais depressa por causa desse nosso jeitinho inzoneiro.

    rectangular brown wooden framed window at daytime

    Em outras palavras: uma gazeta professoral, mesmo que larga, não espanta ninguém por aqui. Professores estão sempre viajando para conferências, seminários, mesas-redondas ou outras tapeações. Nos nossos banheiros faltam torneiras e papel higiênico, mas há bastante dinheiro para passagens aéreas.

    Vocês podem achar que falo assim por despeito. É verdade, sou ressentido porque não fui esperto o suficiente para descolar um doutorado no exterior. E falo maldosamente sempre que posso porque sou do signo de escorpião.

    Fui menos amargo quando jovem, mas a vida me triturou tanto que acabou por me transformar nessa poção venenosa. Namoros ridículos, um casamento fracassado e uma vida profissional medíocre fizeram de mim uma víbora peçonhenta.

    O certo, repito, é que na primeira semana nem deram pelo sumiço do velhote. Acontece que os alunos dos primeiros semestres, que são justamente os que ele leciona, gostam muito de ficar a maior parte do tempo no pátio, namorando, dizendo bobagens e rindo como idiotas. Já os mais espertos preferem as áreas arborizadas, onde podem, incógnitos, queimar a sua maconhazinha cotidiana.

    Nem tão incógnitos, é verdade, porque o cheiro nos invade as salas e sempre tem alguém pedindo para ir ao banheiro. Aí, eu digo:

    – Vá, mas vá correndo, porque já devem estar na bagana.

     

    *

    Eu sentia que não devia sair do apartamento. Em silêncio, eu me dizia: Caetano Antunes, pare, não abra a maldita porta!

    Assim, deixei a chave na fechadura, ali, onde ela se encontra até agora, como você pode ver, e voltei ao meu quarto. Deitado, eu pensava no cômico da situação, e ria. Mas também chorava. Eu já sabia que jamais poderia sair daqui.

    Agora, passados tantos dias, sei o motivo pelo qual estou confinado neste apartamento. Se você tiver tempo e paciência, eu poderei lhe falar sobre…

    *

    Não, o velho nunca foi considerado maluco. Neurastênico, impaciente, áspero e sarcástico, isso sim. Mas doido, não.

    Embora sua ironia seja invariavelmente ranzinza e raivosa, em toda turma que leciona ele sempre consegue capturar a cumplicidade de dois ou três gozadores que se divertem com suas tiradas ferinas.

    *

    Percebo que agora, enquanto me observa, entre condoído e assustado, você se pergunta se não estou louco. Reconheço que tem todos os motivos para pensar assim, mas acontece que jamais estive tão lúcido.

    No fundo, o que você mais teme é que eu lhe tome demasiado tempo com o relato dessa história.

    *

    No final da segunda semana, a coisa veio à tona.

    O alarme foi dado por uma aluna. Estava eu na secretaria da faculdade, passando a limpo as notas de uma das minhas turmas, quando a garota se apresentou no guichê, afoita, querendo saber o que estava ocorrendo com “o bode velho”.

    – Será que ele agora está fazendo uma greve particular, uma continuação da paralisação de quarenta dias que os vagabundos dos nossos professores fizeram no início do semestre? Ou será que se acostumou a ficar em casa, de papo para o ar, coçando o saco murcho?

    A tal mocinha é um caso raro de muito estudo mesclado a vocabulário de quartel.

    Permaneci com a fuça enfiada nos papéis temendo que sobrassem xingamentos para mim. Como a maioria dos professores, adotei a tática da invisibilidade.

    empty chairs in theater

    A funcionária que a atendia – uma das pessoas mais preguiçosas e cínicas da face da terra – perguntou:

    – Você está falando de quem, afinal, minha filha?

    – Não sou sua filha e, obviamente, estou falando do professor Caetano. Quem mais se parece com um bode velho do que ele?

    – É verdade – disse a funcionária. – Você tem razão, faz dias que ele não aparece por aqui. Vou informar esse fato ao chefe do Departamento.

    – Fale agora mesmo! – retrucou a garota. – Se ele não voltar logo às aulas, entro com uma representação contra ele no Conselho Universitário.

    *

    Como você sabe, sou homem de poucas palavras. Sempre fui obrigado por esta nossa exigente profissão a papagaiar bastante nas salas de aula. Por isso, sou lacônico fora delas.

    Nunca ninguém me viu – em mais de trinta anos em que leciono aqui – fazendo em sala confissões constrangedoras, que são os sinais mais fortes da vulgaridade.

    Tenho um pudor quase invencível no meu relacionamento com outras pessoas. Como sempre me considerei o maior dos maçadores, preferi viver fechado em mim mesmo. Se me abro hoje, com você, é porque este é o momento de falar para, em seguida, calar-me para sempre.

    Só lhe peço que me escute com a atenção que, em tese, é devida a um homem de setenta anos.

    *

    No final daquela manhã, fui chamado ao gabinete do chefe do nosso Departamento, o Mascarenhas.

    Sabendo que eu era vizinho do professor Caetano, ele me pedia para dar uma passada pelo apartamento do velho a fim de verificar o que estava acontecendo com ele.

    – Sujeito idoso e meio pirado. Sempre lendo, dia e noite. Os miolos vão se gastando, como o resto. Um dia, a casa cai. Fora uma ida às livrarias, nas manhãs de sábado, nunca deixa o apartamento. A velhice, a solidão.

    Mascarenhas, que sempre fala como se estivesse tratando com alunos imbecis, riu amarelo e arrematou:

    – Faça-me esse favor. Veja se o bruxo não está morto debaixo de uma pilha de livros.

    Era uma sexta-feira chuvosa.

    a wet window with a traffic light on it

    *

    Há cerca de vinte anos, comecei a lecionar sobre teatro e cinema. Antes devo frisar que, na época, não me interessava nem um pouco por essas duas artes. Sempre fui um homem de letras. Letras impressas. Um homem totalmente de papel. Nunca havia me interessado por outra realidade além daquela – aparentemente falsa – que encontramos nas obras de ficção.

    Certo início de ano, Margarida, a então diretora, pediu-me que ministrasse umas aulas de Dramaturgia. O titular da disciplina pedira demissão. Não me recusei. Naquele tempo, éramos poucos professores. A partir dali, passei a ler loucamente sobre teatro.

    Dois anos depois, inventaram uma cadeira chamada Linguagem Cinematográfica, que também acabou caindo sobre os meus ombros.

    Aos poucos, com a contratação de novos professores, fui repassando minhas disciplinas originais.

    Por fim, há cinco anos, acabei ficando só com essas duas: Dramaturgia e Linguagem Cinematográfica.

    Que ironia!

    Veja: eu, amante da Literatura, acabei afastado da palavra escrita. Empurraram-me para a escuridão dos teatros e dos cinemas. Mas os homens se acostumam a tudo, e eu não sou diferente.

    Agora, ao cabo de tantos anos, creio que posso dizer que adoro essas disciplinas que estudei com afinco de jovem mesmo sendo já um sujeito maduro.

    Sempre tive consciência do valor de meu papel como professor. Digo, agora que estou velho, que sou um homem feliz, pois sempre trabalhei naquilo que mais gosto. Nasci para estar em uma sala de aula, de pé, falando e gesticulando, a cabeça enfiada num redemoinho em busca das palavras mais exatas, dos exemplos mais significativos, das histórias mais engraçadas, de tudo, enfim, que consiga prender a peregrina atenção dos estudantes.

    Todo professor é um homem do mundo livresco. O nosso parco saber nos vem dos livros. Há quem saiba ler no chamado livro da vida, mas eu não consegui jamais decifrá-lo. Aliás, parece-me bastante mal escrito.

    O ensino da Dramaturgia levou-me a perceber, com nitidez, as pequenas trapaças que eu próprio vinha encenando há tanto tempo. Tive consciência então dos truques, tiques, escamoteações e trejeitos dos quais me utilizava ao longo de tantos anos nas salas de aula.

    Todo professor é um ator, só que extremamente privilegiado: tem público cativo, casa sempre cheia e seu espetáculo fica um ano inteiro em cartaz. Uma aula, como uma peça, tem de comover e fazer rir, alternadamente, num ritmo meticulosamente ajustado.

    Ao entrar em sala eu me sentia como se estivesse ingressando num túnel, do qual sairia um outro homem. Ao fim da aula, eu tinha que respirar fundo para voltar a ser o que era antes.

    Assim ocorre com os atores, creio, que costumam deixar abertas as portas de suas almas para o vaivém dos personagens.

    silhouette of three performers on stage

    Confesso que me sentia eletrizado – quase levitando – ao fim das aulas de Dramaturgia. Mas essa agradável impressão durava pouco porque o impacto de um bom espetáculo de teatro, como o de um belo poema, só permanece em nós por instantes fugazes. Em seguida, o mundo nos avassala com suas solicitações e estrangula nossos sonhos de beleza.

    Num certo momento, notei que não mais estava preparando aulas; o que eu fazia era imaginar monólogos. Pela reação previsível dos alunos, bocejos ou risadas, eu retocava esses monólogos. De um ano para outro, aprimorava-os. Por fim, cheguei à sofisticação de engendrar diálogos. Sim, eu estabelecia perguntas e imaginava as respostas mais prováveis dos alunos e, para todas elas, preparava réplicas jocosas. E, assim, fui tomado por um homem espirituoso quando, na verdade, meu pensamento é extremamente moroso. Jamais tive uma resposta pronta na ponta da língua.

    Estudei cuidadosamente a marcação. Depois de algum tempo, eu sabia o exato momento de me levantar da cadeira para ir à janela. Havia momentos de fitar sonhadoramente o céu. Ou de encarar silenciosamente os alunos. Há frases para serem ditas andando. Há palavras que só podem ser pronunciadas por um homem que, sentado, taciturno, observa o entardecer.

    Poderia falar muito mais, baseado na minha experiência, sobre a colocação da voz, os movimentos das mãos e o uso desta máscara de infinitas possibilidades que é o nosso rosto. Mas chega!

    Preciso lhe dizer também algumas palavras sobre Cinema.

    *

    Peguei o carro e fui direto ao decrépito edifício cujos apartamentos a universidade nos aluga a precinhos camaradas. No elevador, por força do hábito, apertei o botão do quinto andar. Morava ali há três anos. Estava já desembarcando quando me lembrei que precisava subir até o sexto, onde residia o professor Caetano. Tornei a pressionar o botão.

    O corredor do sexto andar é idêntico ao do quinto andar: cerâmicas frouxas, pintura descascada e iluminação deficiente. Quando ia premir a campainha, tive um instante de vacilação. Por que aceitei o pedido do idiota do Mascarenhas?

    Parei o gesto no meio, braço no ar, indicador esticado. Não seria melhor descer ao meu apartamento sem falar com o velho? Na segunda-feira, inventaria qualquer mentira para engambelar o Mascarenhas.

    Mas acabei apertando o botão. Afinal, não é todo dia que um pacato professor de Literatura Brasileira tem a oportunidade de bancar o detetive.

    *

    Quando não consegui abrir a porta, considerei num primeiro momento que estava apenas com medo de sair à rua. Nada mais natural do que ter medo de deixar nossa casa hoje em dia. Nas ruas, há sempre carros dispostos a atropelar um pedestre desatento como eu. Nos becos, há sempre assaltantes à espera de um velhote que não possa reagir.

    Mas não, não era esse tipo de medo que me retinha.

    Eu não saí de casa porque, se passasse da porta, se cruzasse o umbral, o mundo desapareceria todo comigo. O mundo seria sugado.

    a pen sitting on top of a piece of paper

    Vejo que mais um sorriso quer tomar conta de seus lábios e percebo também que você luta para escondê-lo. Não se contenha, ria. Porque o que eu estou lhe contando parece mesmo sem pé ou cabeça.

    Porém, devo ser honesto com você, ainda que parecendo bizarro.

    Confesso que antevi o que aconteceria se eu chegasse ao corredor: o mundo se desintegraria por trás de mim, cidades, campos, árvores e fábricas, homens e animais, tudo sumiria às minhas costas, todas as coisas seriam sugadas e tragadas por um abismo negro, tudo o que foi construído, plantado ou sonhado seria diluído na escuridão. O mundo desapareceria, em meio a uma nuvem de poeira e a um rascar estridente, exatamente como some a lição escrita no quadro-negro, ao fim da aula, quando movimentamos o apagador. Ou melhor, o mundo sumiria como um pedaço de celuloide consumido pelo fogo.

    Se fosse um sujeito vulgar, você venceria o espanto e o desconforto que o tolhem neste momento e me perguntaria: onde foi que o senhor arranjou esta maluqueira, professor Caetano?

    Mas como você é comedido, e não me fará essa pergunta, eu tomarei para mim a tarefa de lhe explicar esse tipo particular de doidice.

    *

    A campainha soou forte.

    Prolongavam-se os segundos e eu não escutava nada. Passos, ruído de chaves, pigarro ou tosse. Nada.

    Será que o velho morreu?

    Um calor nervoso me subiu ao rosto. Esfreguei as mãos úmidas.

    Eu vacilava, sem saber se apertava de novo na campainha ou se me ia embora, quando a porta foi aberta.

    De repente, sem um ruído, escancarou-se.

    – Que surpresa! – disse o velho.

    O professor Caetano Antunes era um homem de estatura média, mais para o gorducho, com uma barbicha branca pendente da ponta do queixo. Encimando a boca chupada, um imenso nariz. A mão que estendeu para mim era grande e seu aperto vigoroso e visguento.

    Uns olhos castanhos, escondidos por trás de lentes garrafais, me fitavam com intensidade.

    – O que o traz ao meu modesto apartamento?

    Ao fim de uma caótica introdução, recheada de perdões e escusas, expliquei a ele que ali me encontrava, a pedido do chefe do Departamento, para ver como ele estava passando.

    – O Mascarenhas está preocupado com a sua ausência. Intelectuais, em geral, não cuidam da própria saúde ou são orgulhosos demais para admitir que estão doentes. Por isso, ele me mandou até aqui. Para ajudar, se preciso.

    – Diga ao Mascarenhas que ele deve preparar o edital para a contratação de meus sucessores nas duas disciplinas.

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    Depois dessas palavras, o professor Caetano explodiu numa formidável gargalhada, daquelas que trazem junto seu próprio eco.

    Enquanto ele gargalhava, troquei o pé de apoio três vezes.

    – Mas entre um instantinho!

    Embora intimidado por aquele riso histérico, avancei. A visão das paredes da sala, inteiramente cobertas de livros, do chão ao teto, me puxou para dentro do apartamento.

    Havia livros por todos os lados: na mesa, nas cadeiras, nos sofás, nos aparadores. Por toda a sala, como soldados de um batalhão em debandada, erguiam-se pilhas vacilantes de livros que exalavam o aroma da poeira longamente acumulada.

    O professor Caetano retirou braçadas de livros de duas cadeiras.

    – Sente-se! Há muitos anos não recebo a visita de ninguém. Estou contente em vê-lo, professor. Quero aproveitar sua presença aqui para dar início ao meu processo de desligamento da universidade.

    *

    Apaixonei-me também pelo Cinema. Acho que não há arte que exija mais talento que essa. É preciso ser um gênio para falar através de imagens em movimento. De início, o meu amor era platônico, quase frio, o único tipo de amor que nós, intelectuais, sabemos viver. Passei depois a adorar as imagens tanto pelo que estampavam quanto pelo que escondiam. Admirava Fellini, Buñuel e Kurosawa, os três gênios. Mas um amor só se transforma em paixão quando é amplo e generoso. Passei, então, a apreciar também as comédias, os musicais, os faroestes, as aventuras para crianças e os filmes policiais.

    Vejo que neste momento, discretamente, você tenta ler o mostrador do relógio. Está com pressa. Ou com fome. Ou cansado. Deve estar doido para chegar em casa e tomar uma cervejinha. É sexta-feira. Compreendo. Não se preocupe. Vou concluir rapidamente.

    Diga ao Mascarenhas que me mande até aqui alguém com a relação dos documentos que devo apresentar para requerer minha aposentadoria. Acrescente, porém, que jamais porei um pé para fora deste apartamento. Diga-lhe que aqui estou e que aqui ficarei até o fim dos meus dias, que não deve tardar.

    a black and white photo of an empty auditorium

    Diga a ele que estou me lixando para tudo, diga que tenho setenta anos e que agora quero descansar. Diga a ele também que pretendo assistir a todos os filmes que foram feitos no mundo e que para isso basta que eu levante o telefone e ligue para a loja que aluga fitas de vídeo que logo chega o rapaz da motocicleta com belos filmes suecos, japoneses, italianos, franceses, espanhóis e alemães. Existem milhares de filmes e não me resta vida para assistir a todos eles, como antes não pude ler todos os livros, mas…

    Diga ao Mascarenhas que não abri minha porta porque finalmente compreendi que este mundo faz parte de uma única peça escrita e dirigida por um só diretor, um sujeito cuja face ninguém conhece, que eu chamo O Sem Rosto; e que, por fim, eu percebi que esta fabulosa peça teatral vem sendo filmada o tempo inteiro por um diretor, que ninguém jamais conheceu, e que eu chamo O Sem Olhos, que pretende um dia montar um filme que seja a síntese perfeita da história da humanidade, e quem não é tolo sabe que o sol não passa de um canhão de luz, que nós nada mais somos que figurantes, e que os olhos d’O Sem Olhos são câmeras, e que um dia, se eu sair por essa porta, Ele vai gritar: Corta!

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • Evidências e enigmas do Dilúvio

    Evidências e enigmas do Dilúvio

    No ano mil seiscentos e cinquenta e seis do Anno Mundi 1656, ao décimo sétimo dia do Marcheshvan, rompendo todas as fontes do grande abismo e abrindo-se as cataratas do céu durante quarenta dias e quarenta noites, Deus salvou Noé pela segunda vez. A primeira foi quando Deus incumpriu a sua sentença, decretada ainda antes do cataclismo, em encurtar os dias dos homens para centos e vinte anos. É que Noé já contava seiscentos anos quando entrou na arca.

    *

    Noé, sua mulher, seus três filhos e noras não eram uma família justa ou perfeita; na verdade, eram uma família misantrópica. Só assim se compreende que Deus os tenha escolhido; só assim se compreende que Noé, avisado por Deus do extermínio sobre a Terra – uma violência divina contra a violência humana –, não tenha tentado auxiliar os seus patrícios mais próximos. Nem sequer os compadres.

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    *

    Enquanto serrava as madeiras resinosas e comprava betume, enquanto construía a arca de trezentos côvados de comprimento, cinquenta côvados de largura e trinta côvados de altura distribuídos por três pisos, enquanto carpintejava tudo isto e calafetava tudo aquilo, enquanto reunia os animais para o acompanharem, que desculpas ou justificações deu Noé a quem lhe perguntava o que estava fazendo?

    *

    Se de antemão Noé sabia que apenas ele e a sua família mais próxima entrariam na arca, que apenas ele e a sua família mais próxima se salvariam do dilúvio, terá comprado a madeira e o betume a pronto ou a crédito?   

    *

    Os oceanos, mares e baías possuem 1,386 mil milhões de quilómetros cúbicos de água, os lagos salgados e doces cerca de 176.400 quilómetros cúbicos, os rios somente 2.120 quilómetros cúbicos e os pântanos 11.470 quilómetros cúbicos. Deus tinha assim disponível para inundar a Terra apenas cerca de 47,8 milhões de quilómetros cúbicos, contabilizando as águas das calotes polares, dos glaciares, das neves permanentes, do pergelissolo, do gelo subterrâneo e dos aquíferos doces e salgados, bem como o vapor de água e a água existente no solo e nos seres vivos animais e vegetais, embora neste último os matasse logo a todos se a utilizasse.

    Ora, sabendo-se que a superfície terrestre total é de 509,6 milhões de quilómetros quadrados; sabendo-se ainda que, para uma inundação uniforme, teria de se fazer chover nos oceanos, nos mares, nas baías, nos rios, nos lagos, e nos pântanos similar volume ao que se precipitasse em terra; então concluiu-se que um dilúvio global apenas atingiria 93,79 metros acima do actual nível médio das águas do mar. Como se diz ter Deus coberto os altos montes existentes debaixo do céu, ultrapassando em quinze côvados (cerca de 9,9 metros) o cimo de todas as montanhas, incluindo portanto os montes de Ararat, onde haveria de pousar a arca, que se situa a 5.137 metros acima do nível do mar, e sobretudo o monte Evereste, na cordilheira dos Himalaias, que se encontra 8.848,43 metros, uma questão se coloca: onde foi Deus desencantar tanta água? E para onde foi depois do Dilúvio?

    body of water surrounded by fog

    *

    Antes de aplacar o Dilúvio, solicitou Deus a Noé que recolhesse tudo quanto houvesse de comestíveis e os armazenasse na arca, a fim de servirem de alimento à sua família e aos animais. Ora, se muitos desses animais eram carnívoros, quantas espécies se terão extinguido em plena arca durante os cinto e cinquenta dias que durou a inundação, sem contabilizar também os animais que padeceram de doenças, de má nutrição ou de desadequadas condições higieno-sanitárias?

    *

    Deus decretou que Noé recolhesse sete pares de cada espécie de animais puros e apenas um par de cada espécie de animais impuros, porque o primeiro grupo podia ser comido e servia também para sacrifícios em holocausto durante o período de inundação. Quantas espécies se extinguiram às mãos de Noé enquanto todos estavam na arca?  

    *

    Se na Criação fez Deus todos os seres vivos – aves, monstros marinhos, peixes, animais domésticos, répteis e animais ferozes – em apenas um dia e meio, qual a razão para depois, aquando do Dilúvio, ter sobrelotado a arca com sete pares de todos os animais puros, mais um par de todos os animais impuros, e sete pares de todas as aves? Não terá sido mais fácil recriar todos os animais de novo, tornando assim mais cómoda, para Noé e sua família, a estadia na barcaça?

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    *

    No decurso do Dilúvio, as chuvas caíram durante quarenta dias e quarenta noites. Por mais cento e cinquenta dias esteve o mundo coberto pelas águas. Depois, «Deus recordou-se de Noé e de todos os animais, tanto domésticos como selvagens, que estavam com ele na arca», mandando «encerrar as fontes do abismo e as cataratas dos céus», ao mesmo tempo que «mandou um vento sobre a terra e as águas começaram a descer». No dia dezassete do sétimo mês do ano de mil seiscentos e cinquenta e seis após a Criação, «a arca poisou sobre os montes de Ararat. As águas foram diminuindo até ao décimo mês. No primeiro dia do décimo mês, emergiram os cumes das montanhas». Somente ao fim de quarenta dias Noé abriu a janela da arca e soltou um corvo, que «saiu repetidas vezes, enquanto iam secando as águas sobre a terra». Mais tarde, largou uma pomba que, «não tendo encontrado sítio para poisar», regressou à arca. Somente sete dias depois foi feita nova largada da pomba que, desta vez, regressou com uma folha verde de oliveira no bico. Noé aguardou mais sete dias e tornou a soltar a pomba «mas, desta vez, ela não regressou mais para junto dele». Desconhece-se as razões, mas a hipótese de esta pomba ter morrido está fora de hipótese, pois o seu par, o pombo, tê-la-á encontrado mais tarde, de contrário a espécie extinguia-se. Porém, subsiste um enigma: como sobreviveu a viçosa e verdejante oliveira durante todo o tempo do Dilúvio?


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  • O Miguilim da gruta

    O Miguilim da gruta

    Aninhado no ventre da mãe, embalava-o já aquele som melodioso. Uma espécie de canção entoada a dois. Ora em uníssono, ora revezando-se, as vozes da mãe e do pai abraçavam-se.

    Os serões do jovem casal eram passados na cozinha. Ela bordava. Ele fazia-lhe companhia. Contava-lhe como tinha sido o dia na mina. Perguntava-lhe se tinha passado bem. Se o bebé se tinha mexido. Queria saber o que ela estava a bordar. E ela mostrava. Dois passarinhos.

    ⎼ E o que vai escrever nesse paninho, Mariana?

    Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim. ⎼ respondeu. António acrescentou:

    ­⎼  a galinholagem deles. – “É preciso olhar para esses com um todo carinho…”.

    De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. – completou ela. 

    black and yellow wall sconce

    Era esta a melodia que atravessava a mãe e embalava o filho. As palavras dos textos de Guimarães Rosa. Aprenderam-nos quando eram Miguilins. Deixaram-se encantar pelas palavras do escritor nascido na sua terra. Foi ali, naquela escolinha de Cordisburgo, que se conheceram e se apaixonaram. Na cidade do coração.

    O bebé nasceu prematuro. Tão pequenino e delicado que dava até medo de pegar. O pai segurou-o cuidadosamente. Receava magoá-lo com os seus braços fortes e as mãos calejadas:

    ⎼ Olha só, Mariana, tão pequenininho. Parece um manuelzinho-da-crôa.

    ⎼  … o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima. – respondeu ela com um sorriso.

    Estava escolhido o nome: Manuel. Como o passarinho mais delicado, mais bonito e engraçadinho do sertão.

    As palavras de Guimarães Rosa vivas. As paisagens e as personagens. Os bichos. As pessoas. As plantas. O chão. Tão familiares e tão estranhos. Eram o ali e o além.  Manuelzinho memorizava as palavras dos pais. Repetia-as para si próprio. Às vezes, procurava compreendê-las.

    Aos 12 anos, juntou-se aos Miguilins. Finalmente! Dedicou-se de corpo e alma à tarefa do grupo: memorizou um a um os textos que lhe foram confiados. Aprendeu a dizê-los com a voz, com o corpo, com a alma. Orgulhosos, os pais ajudavam-no. Os serões eram agora a três.  Não havia na terra motivo de maior alegria do que ter um filho nos Contadores de Estórias Miguilim.  Orgulho da cidade, o grupo que carrega o nome da personagem rosiana é a sua bandeira e o seu melhor embaixador.

    open book lot

    Tal como para todos aqueles jovens, a aventura de Manuelzinho terminou aos 20 anos. Era chegado o momento de voar noutras direções. Sabia o que queria.  Ia para a universidade estudar literatura. Compreendia agora a nostalgia dos pais:

    ⎼ Uma vez Miguilim, para sempre Miguilim. ⎼ diziam.

    A universidade foi um sonho que durou apenas 4 meses. O dinheiro não chegava. Regressou a casa. Procurou emprego. Encontrou um ali bem perto, na Gruta do Maquiné. Agradou-lhe a ideia de ser guia. Gostava de contar histórias. Na gruta não seria diferente. Manuelzinho abraçou aquela sombra. Amou-a.  A gruta era agora o seu sertão:  Sertão é onde o pensamento da gente se forma maior que o poder do lugar, tinha aprendido.

    O silêncio, as salas gigantes, o vazio. Preenchia-os com a sua luz, com as histórias, as personagens e as paisagens que povoavam a sua mente. Talvez por isso, recebia os turistas com um sorriso tímido, mas acolhedor. Palavras e gestos doces. À medida que atravessava cada uma das sete salas, contava a sua história: quem as descobriu, quando, o que ali achou, os filmes que ali foram gravados.  Apontava a lanterna para as formações rochosas e mostrava castelos de fadas, abóboras gigantes, morcegos de pedra, uma língua de vaca que saía da parede. Um ralo aberto na rocha que ia dar ao Japão. Ou talvez fosse um portal para outra dimensão, quem sabe?

    Certo dia, uma turista curiosa perguntou-lhe se Guimarães Rosa alguma vez tinha visitado a gruta. Manuelzinho apressou-se a dizer algumas frases do escritor a propósito daquele lugar. E fê-lo com tal entusiasmo e arte que a visitante não conseguiu esconder a perplexidade. Perguntou-lhe como tinha ele aqueles textos na ponta da língua, assim, sem qualquer preparação.  Manuelzinho cresceu. Encheu o peito. Compôs o capacete. Aprumado, respondeu:

     ⎼ Bem, é que eu sou um ex-Miguilim, mas ex-Miguilim não existe não, moça. Ser Miguilim não sai da gente.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Anthony Fauci, o artista

    Anthony Fauci, o artista

    Nos tempos que correm, passe a expressão coloquial, a Arte estende-se para muitas zonas, e uma delas é aquilo que se convencionou chamar de bioarte, que é o uso da biotecnologia como meio na produção de objectos artísticos, sendo por isso mesmo uma arte conceptual de difícil compreensão, como quase todas.

    Essa disciplina percebeu muito bem o comportamento humano e as sua engenharia associada, sendo por isso muitas vezes praticada por pessoas ligados à ciência e aos seus dúbios mercados.

    Ilustração de Alex Farac

    Especialistas acham mesmo que há uma relação directa em regime de parceria, entre os caminhos que a bioarte vai tomando e a galeria Tavistock. Já para não mencionar a ligação ao fantasma do sinistro projecto MK-Ultra levado a cabo pela CIA nos anos 60, ainda que considerado um projecto obscuro e perigoso principalmente porque não controlado por artistas.  

    Acredita-se que a primeira obra de bioarte foi criada em 1936 por Edward Steichen, e apresentada no Museum of Modern Art, em Nova York (Lipton, 2003), embora cientistas sociais mais contemporâneos contraponham essa moldura, dizendo que a bioarte é muito mais extensível à vida e aos seus sofismas que aos confins de galerias e laboratórios, uma vez que segundo princípios hodiernos muito em voga, a arte já saiu das galerias há muito tempo e foi dar uma curva até Big Billards (Bilhar Grande em português), para nunca mais voltar à casa de partida.

    E assim chegamos a A. Fauci, um artista de Brooklin, New York que devemos ter em conta e por isso acompanhamos o seu trabalho com interesse, pelo menos aquele que não está no segredo dos Deuses do Olimpo (MoMa).

    Ilustração de Alex Farac

    A Fauci é um criador e cientista ligado às artes performativas/visuais dos Estados Unidos há muito tempo. As artes aí nesse país, ao contrário do que muita gente pensa, são financiadas e produzidas em regime de co-produção com o próprio Governo, tendo tido um incremento e significativo avanço durante o legado do governo Obama, através de subsídios do Reserva Federal, pensa-se, não sendo um assunto muito claro para alguns especialistas. Ao contrário do que é comum pensar-se, os EUA não são um país de índole apenas capitalista ou mesmo liberal, como muitas vezes é eufemisticamente apelidado, e para o provar temos a obra pública deste renomado artista plástico, que não se deixa cativar só pelas feiras de Veneza e pelos Fóruns de São Paulo (ainda hoje controlados pelo curador Lula da Silva, outro artista de calibre magnum), mas também pela arte pública contemporânea já hegemónica em muitos países, com

    artistas revolucionários a ocuparem imensas fachadas locais e mesmo estações de metro e pastelarias.

    O mundo mudou definitivamente.

    Hoje sabe-se por exemplo, que a própria CIA financiou Jason Polock, mostrando não ficar à época atrás do KGB, que também financiou inúmeros artistas soviéticos, incentivando-os mesmo a brutais e magnificas performances para além de residências na Sibéria, que muitas vezes acabavam na morte dos próprios criadores naquilo que se chamou de Gulagart.

    Sabe-se hoje que a bioarte acarreta os seus perigos e não fossem os Estados a financiarem os criadores, seria uma arte de difícil expansão e aceitação, tendo mesmo na esfera pós-moderna ido para além da moral e até mesmo da ética como infelizmente adivinhamos que terá de ser, uma vez que esse é um dos apanágios da própria disciplina para que a evolução aconteça. Senão, como teríamos saído das cavernas?

    Ilustração de Alex Farac

    Michele Foucault e muitos outros legitimam teoricamente estas acções de intoxicação voluntária, pelo menos queremos acreditar, até mesmo pelas experiências corporais infringidas pelo próprio filósofo numa cultura sado-masoc, para se insurgir e desconstruir (e bem quanto a nós), a mediocridade e hipocrisia do poder dominante ainda elencado por pessoas e políticas conservadoras ligadas a Vichy. Também acreditamos que se trata de uma difícil tarefa para os artistas que não deixam também de ser vitimas de si mesmos, se olharmos para a psicanálise, ou mesmo para se tornarem mártires pós-modernos a quem muito temos de agradecer pelos seus sacrifícios a bem da humanidade e do progresso (não estando a ser cínico evidentemente mas sim clinico como mandam as regras do bom jornalismo).

    Podemos atirar as “culpas” também a outro vulto chamado Charles Darwin, apelidado por alguns dadaístas de monkey-artist (artista-dos-macacos), tendo sido a sua teoria da transmutação da espécie aceite pelo sistema depois de fortes polémicas.

    Não só as artes agradeceram a generosidade destes artistas, como também a própria ciência de onde provém inicialmente A. Fauci, vindo, no entanto, a doutorar-se mais tarde em Artes Performativas, sendo sempre agraciado pelos distintos governos, tanto democratas como republicanos, provando que a sua criatividade ultrapassa horizontes e fronteiras tanto horizontais como verticais.

    Fauci também tem ligações profundas a laboratórios de pesquisa na China onde tem feito e incentivado residências, nomeadamente na cidade de Huan, onde esfomeados morcegos se alimentam de ingénuos pangolins, tornando-se um terreno fértil de pesquisa no singular país dos dois sistemas.

    E por falar em fauna, sabemos também que o performer americano fez experiências com cães de raça com um exorbitante contrato federal de 1,8 milhão de dólares para performances científicas com cães de uma raça específico que por falta de dados não conseguimos apurar (tendo também em conta toda a desinformação que existe na Net).

    Ilustração de Alex Farac

    Este caso levantou sérias preocupações e questões a senadores conservadores que nada percebem de arte conceptual nos EUA, dedicando-se muitas vezes a doar fundos para igrejas e para “artistas” evangélicos. Naquele caso foi Joni Ernst do inefável e ignorante Estado do Iowa, que observou que experiências anteriores financiadas pelo Governo Federal, em cães sob a tutela de Fauci, incluíram cortar as suas cordas vocais, infestar os cães com pequenos aracnídeos ectoparasitas hematófagos, e ainda colocar os mesmos em gaiolas com moscas infecciosas em regime de co-habitaçao. Experiências artísticas com animais já tiveram melhores dias, mas Fauci não quer limitar-se a canídeos já que pretende fazê-lo também com humanos.

    Mas os caminhos já haviam sido abertos há muito pelo coelho de Beuyes, ou pelas ovelhas de Dolly, passando pelos tubarões de Damian Hirst ou pelos elefantes dos caçadores colonialistas. Temos pena.

    É preciso haver progresso.

    Sabe-se pelo Economist e, ainda que não tão detalhadamente, pelo New York Times, que A. Fauci prepara uma performance duradoura, arriscada, minuciosa e claro, como todas as geniais, sofrida, a nível mundial, em que os diferentes governos dos muitos países se propuseram financiar numa epopeia mais que transatlântica. Mas, devendo-se a um natural e aceitável segredo artístico-científico, sabemos apenas de alguns pormenores.

    Confirma-se, no entanto, a expectável excitação da maior parte dos artistas dos diferentes países, tanto conhecidos como menos, tendo já estes declarado o seu entusiasmo publicamente, chegando mesmo a voluntariarem-se uma boa parte para auxiliar na difícil tarefa performática a que o artista se propõe.

    Sabe-se também da anuência dos diferentes canais mainstream a nível global em que se incluem países diferentes como a Polónia, a Itália ou mesmo a Hungria do ditador Orban. O estranho aqui, mas digno de festejo, é a exuberância e entusiasmo dos diferentes quadrantes políticos desde a extrema-esquerda à extrema-direita que têm aderido ao quase-manifesto do artista norte-americano, provando que a arte esbate fronteiras sempre que seja o Humano a estar em jogo para nos unir nesta epopeia com contornos de novela gráfica.

    Ilustração de Ruy Otero

    Sabemos hoje que somos todos iguais, mas como diz Orwell ainda há uns mais iguais que outros. Ora é mesmo esse um dos paradigmas que o artista quer evidenciar criticamente.

    Temos conhecimento também que tem o apoio, entre outros monstros assinaláveis, da Bayer e mesmo da esquecida Pfizer. Ouvimos pela própria boca do artista que será na China onde a primeira performance terá lugar, o que só prova também a abertura democrática do país insular.

    Outro dos aspectos que se ouve falar em off é a do pedido especial às populações de todo o mundo, mesmo contando com a Tanzânia, para o uso prolongado da máscara hospitalar e da permanência em casa durante pelo menos quinze dias, de forma que o artista possa aplanar a curva em segurança.

    Ruy Otero é artista media


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Ilhados

    Ilhados


    E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço varão?

    Lucas I, 24


    Choveu a noite inteira.

    Com as trevas, veio a chuva. De início, mansa, silenciosa, pouco mais que uma garoa. Então todos se recolheram às suas casinhas de madeira e pouco depois as luzes foram apagadas porque eram pescadores e teriam de sair cedo para a lagoa no dia seguinte. Era uma vila de casebres, que pareciam ter sido improvisados sobre a areia estéril da praia, nada mais que frágeis caixotes de madeira corrompida, vulneráveis.

    E todos eles dormiram embalados pela chuvinha sobre o teto e, mais tarde, quando começou o temporal, tiveram sonhos ruins. Eram ribombos sacudindo as janelas, raios finos retalhando o céu e um vento frio que se enfiava pelas frestas. Parecia que aquela tormenta não teria fim.

    Por causa dos trovões e dos laçaços da chuva no teto de zinco das casinhas, ele pode serrar e martelar tranquilo, como se fosse marceneiro e não pescador. Ninguém viu quando ele, lutando contra o vento, lampião balouçando na mão, saiu para o pátio e pegou a tora de madeira. Dois ou três raios se afogaram nas águas distantes enquanto ele a arrastava até a porta dos fundos, que estava escancarada. Como tinha empurrado as cadeiras para o canto, pôde passar, espremido, entre o armário e a mesa.

    photo of body of water and droplets

    Depositou a madeira no chão de terra batida, soltou o lampião em cima da mesa e puxou o banquinho. Ainda havia tempo para recuar. Não que tivesse qualquer dúvida a respeito do valor que sua empreitada teria para Deus, que aceita de bom grado todos os nossos sacrifícios, mas porque acreditava, justo que era, que, no fundo da alma, os homens conspurcam tudo que fazem, mesmo suas mais nobres ações, se pensam em demasia sobre elas.

    Fazia aquilo por amor a Deus ou por orgulho e soberba? Não era, ele próprio, também um pecador? Tudo muito confuso.

    Mais do que a indiferença dos homens, temia a chacota, porque podemos muito bem suportar os corações desapiedados, que se fecham à nossa passagem, mas a dor que sentimos quando zombam da nossa fé é insuportável, e não adianta nos lembrarem que Ele ofereceu a outra face porque a ira que nos invade o peito é irrefreável. De todo modo, talvez o temporal, que prendia todos dentro de suas casas, que os tornava surdos para a barulheira do serrote, fosse um sinal positivo do Senhor.

    Colocou a tora sobre o banquinho e se pôs a serrar.

    Cortou confiando no olho, não mediu nada. Como a madeira estava úmida, padeceu com o serrote enferrujado. Gostava da palavra madeiro. Madeiro era palavra de homem de fé. Rezava enquanto o serrote, penosamente, subia e descia.

    Na hora de nossa morte, amém.

    Pensou na estrada até o barranco, que teriam de percorrer de pés descalços. Sangrariam por causa das pequenas pedras pontiagudas do caminho. Mas fazia parte do holocausto.

    O Senhor nos dará forças.

    Quando a madeira se partiu, respirou fundo. Perfume bom de terra molhada e de serragem. As coisas de Deus cheiram bem. As dos homens, não. Os bafios da sua própria casa, por exemplo: a sopa do magro jantar, o último cigarro e o ranço peculiar, entre doce e amargo, de fêmea adormecida.

    brown cross on brown surface

    Tinha agora dois pedaços de madeira, o mais curto era para os braços. Marcou o lugar onde deveria fazer o encaixe. Recomeçou a serrar. Difícil concentrar-se nas orações. Pensava num homem de barbas brancas, seminu, voando entre anjos, quando murmurava Pai Nosso que estais no Céu. Via um letreiro luminoso, desses de fachada de loja grande, quando rezava Santificado seja o Vosso nome.

    Pegou o formão para fazer o chanfrado. Um cansaço quase invencível pesava-lhe nas pálpebras. Podia dormir, uns minutos só, sentado numa cadeira. Não! Passou a mão áspera pelo rosto, esfregou os olhos e persignou-se. Aquela soneira, está visto, era tentação do Capeta. Sacudiu os ombros magros e foi apanhar os pregos na gaveta do armário.

    Arrastando os dois pedaços de madeira, saiu para a tempestade. Aproveitou-se da nesga de luz do lampião, que escapava dançarina pela porta aberta, para cruzá-las. O encaixe não ficou lá essas coisas, mas ele não era marceneiro, como José. Os pregos entraram com facilidade na madeira úmida. O lenho. Gostava das palavras que o padre usava na missa. Santo Lenho. Guardou no bolso os pregos, para as mãos. A voz do padre dava dignidade até mesmo às coisas bem pequenas. O madeiro. O Santo Lenho.

    Martelando afastara o cansaço.

    Livrai-nos do mal, amém.

    Para onde teria o vento furioso levado o som dos golpes do martelo?

    Olhos fechados, chuva braba no rosto erguido para o céu negro, o homem ficou escutando o batuque do seu coração acelerado. Sentiu o sangue pulsando forte nas têmporas. Tudo é usado pelo Tinhoso para distrair a gente das rezas. Mas ainda bem que o trabalho duro mantém o demônio longe de nós.

    Venha a nós o Vosso reino: um castelo; assim na terra como no céu: um castelo entre as nuvens.

    Rezava para não pensar. De que adianta viver se atormentando? As coisas só se resolvem quando O Pai quer que se ajeitem. Às vezes, nos sonhos ou na vigília, Ele nos diz o que devemos fazer. Aquela cruz, no pátio, sobre o barro, por exemplo.

    Mas tinha de partir logo! Um homem de crença não pode vacilar. Um cidadão de bem não pode ficar parado sem fazer nada quando Deus Pai lhe deu uma missão. A cruz estava pronta. Não sabia quanto tempo gastariam para vencer a estrada. O barranco, frente à lagoa, era alto como um morro santo. A voz doce do padre. O Gólgota.

    a hammer and a block of wood on top of a bench

    *

    Por uns instantes, quando começou a chover mais forte, a mocinha sentiu uma alegria intolerável. Riu, rosto enfiado sob as cobertas. Uma alegria explosiva no coração. Água nas ruas, água dentro dela. No centro do corpo, atrás do umbigo, a nascente de água. Pensou naquele barulho quando a gente toma água demais. Marulho interior. E no meio das águas um menino encantador, Pequeno Polegar.

    Depois veio a tristeza, grossa e visguenta, como a aflição dos pesadelos, como o desalento que nos invade quando descobrimos que todos os dias são iguais e que seguirão sendo iguais até o final dos tempos.

    Perdera a mãe um ano antes. Recordava o dia terrível em que ao chegar da escola se defrontou com o pai na porta da casa, a esperá-la. Tua mãe morreu, disse ele. Vamos à cidade. Aquele foi o dia mais doloroso e lento de todos. Sentada no banco duro do hospital esperou pelo pai que percorria as funerárias pechinchando o preço do caixão. Por fim, por uns poucos instantes, pode ver pela última vez o rosto de sua mãe; mas não conseguiu beijá-la, porque os coveiros estavam com pressa. E no dia seguinte não foi mais à escola.

    Nas noites frias, gostava de dormir agarrando os joelhos ossudos contra os seios pequenos, mas tinha de parar com isso agora. Sufocava o Pequeno Polegar.

    Na escola, os dias eram diferentes porque sempre alguém dizia ou fazia uma coisa engraçada e na hora do recreio pegavam sol na cara. E elas, as meninas mais velhas, até flertavam, mesmo sendo aqueles guris uns crianções. Olhavam para eles de cima, não só porque eram mais altas, mas porque tinham seios e fluxos. E eles apenas corriam feito loucos e se davam coices e empurrões.

    Os dias se tornam iguais, tristes, quando a gente deixa a escola. Quis continuar estudando, bastava-lhe um expediente para fazer a lida: varrer a casa, lavar e passar a roupa, cozinhar. Mas o pai não permitiu. Disse que ela tinha de ser a dona da casa e ele não sabia de donas de casa que estudassem.

    Se, pelo menos, possuíssem um radinho de pilha! Gostava de música. E nem na janela podia ficar, o pai não deixava.

    Agora estava grávida, tinha dentro de si o Pequeno Polegar, não precisava de mais ninguém. De início temera a reação do pai, mas ele não falou nada. Sabia, sim, que a filha estava prenha, via a crescente barriga redonda, mas não disse lhufas. Ele, que já não falava quase, simplesmente se fechou. Isso foi o pior. Esperava ser xingada e agredida, talvez até mesmo expulsa de casa, mas o pai apenas se entrincheirou num mutismo ainda mais impenetrável. Agora, viviam como inimigos, inimigos que se vigiavam o tempo todo.

    Já nos primeiros dias, quando sentiu que não lhe vinha o sangue, decidiu que, por nada neste mundo, confessaria o nome do pai da criança. Guardaria sozinha o terrível segredo.

    sky filled with stars photography during nighttime

    Mocinha com criança na barriga fica mais esperta, mais matreira. Sabia que não podia esperar boa coisa do pai. Aquele mutismo era de rancor. Era silêncio de tocaia, de bicho caborteiro preparando o bote. Alguma coisa ele estava arquitetando, calado. Ela até pensou mesmo em morrer, em se deixar matar, mas isso foi no começo, nos dias de maior vergonha e desespero, quando queria encontrar aberta uma passagem para as chamas do inferno. Sim, a vergonha queimava como fogo. Aquele era pecado dos brabos, mortal, coisa para danação eterna. Pecado sem remissão. O pior dos pecados do mundo. Por isso aceitaria morrer junto com a semente que trazia no ventre. Não se pode matar um ser humano, está certo, mas e na sua condição? O que se pode esperar de uma criança gerada no mais hediondo dos pecados?

    Mas tudo neste mundo de Deus tem um fim, até mesmo a maior das vergonhas e o pior dos remorsos. Especialmente quando se sente o primeiro chute da criança. Então a gente se transforma. Por isso, agora, vigiava todos os movimentos do pai, movimentos de gato traiçoeiro.

    Quando sentiu no corpo o visgo da umidade fria do temporal estava com muito sono, olhos areentos, braços pesados. O pai ainda estava no seu quartinho, sentado na cama, fumando. Ela sabia que só poderia dormir depois de ouvir o estralejar do colchão de palha sob o magro corpo do seu pai. Poderia então relaxar um pouco, dormir o sono inquieto dos que temem uma armadilha. Depois de um primeiro sono, breve e profundo, dormiria outros, mais demorados, porém mais leves. Acordaria, então, ao menor movimento do homem que vigiava. Sabia que a cada dia tinha de redobrar os cuidados, mas a sucessão das vigílias sem incidentes a esgotara. Por isso, naquela noite, não escutou nem o serrote nem o martelo.

    Foi acordada pelo pai, que tinha o mesmo rosto fechado do dia em que lhe morrera a mulher.

    – Vamos!

    Permaneceu calada por uns instantes, seus sentidos captando toda a noite ao redor: a chuva grossa, o rugido dos trovões, o silêncio da casa adormecida, a respiração ofegante do pai, o frio que penetrava pela porta aberta da cozinha e o cintilo dos raios entrando pelas frestas. Ruim mesmo era o que não via nem ouvia, o horror que pressentia escondido no convite.

    – Vamos pra onde?

    O homem não respondeu. A filha notou então que ele estava com a cinta na mão. Apanhara muito antes de ter sua primeira regra, estava acostumada, mas naquela noite notou que a fivela de ferro pendia na ponta da cinta dobrada ao meio. Levantou-se. Não podia apanhar, não por ela, mas pela criança. Como era mulher, insensivelmente, ajeitou os cabelos. O sono se fora e o cansaço também. Alguma coisa tinha de ser feita e ela a faria, o mais depressa que pudesse, porque a criança tinha que voltar para o quente da cama. Enfiou a capa de oleado.

    silhouette of cloud with sunlight

    Saíram para a chuva.

    A nesga de luz que fugia pela porta da cozinha iluminava a cruz.

    *

    O dia se insinuava por trás da lagoa quando o padre e o comerciante entraram no casebre.

    Na sala, viram a mocinha deitada no sofá que usava como cama, o rosto virado para a parede, o cobertor cinzento moldando-lhe as curvas do corpo.

    Passaram ao quarto. Afundado na cama, o rosto tisnado destacando-se contra o branco do travesseiro, o pescador parecia ainda mais magro e triste. Seus olhos, pequenos e duros, luziram, entre raivosos e resignados, ao ver os visitantes.

    O padre ajoelhou-se ao lado da cama e, sem olhar diretamente para o pescador, perguntou-lhe se queria se confessar.

    O comerciante tomou a palavra:

    – Ele não deu um pio na vinda até aqui, padre. No geral, ele quase nunca abre a boca. Acho que agora não vai falar nada.

    – Mas eu preciso saber exatamente o que aconteceu, pra perdoá-lo.

    Cabeça abaixada, mãos unidas, o sacerdote parecia rezar.

    Depois de um fundo suspiro, o comerciante voltou a falar:

    – O pobre vivente não mexe um só dedo. É como eu lhe disse, padre. Ele deve de ter quebrado o espinhaço quando caiu de cima do barranco. Como é que pode um homem ficar louco de uma hora pra outra? Onde ele foi buscar a ideia daquela cruz…

    – Cruz? – indagou o padre. Era um homem jovem e bonito. Cabelos negros, olhos índios, pele amorenada.

    – Eu já não lhe falei na cruz? Ela estava cravada no chão no alto daquele barranco que tem ali na curva da estrada. Uma cruzona de mais de dois metros.

    O pescador voltou o rosto para a janela fechada, desinteressado dos homens que o ladeavam.

    person touching hands

    Depois de uma breve pausa, o comerciante recomeçou a contar, com a mesma ênfase caótica, a desencontrada história que iniciara ao bater na porta da sacristia.

    – Como lhe disse, eu estava voltando pra casa, porque não consegui ir até a cidade. Eu queria comprar combustível. Bem, quando cheguei na ponte sobre o arroio, vi que a água já estava cobrindo tudo. Aí, pensei cá comigo: estamos ilhados de novo. E comecei a voltar. Eu vinha até meio desatento, xingando Deus e o mundo. Estava muito escuro ainda. De repente, um raio mais forte alumiou tudo e eu pude ver aquela barranca bem alta perto da margem da lagoa. É tudo pelado lá em cima, sem uma árvore, porque o vento não deixa nenhuma semente se criar naquele ponto. Na beira do barranco, eu vi a cruz.

    O comerciante persignou-se.

    – De início, tive medo, seu padre. Cruz é coisa de Deus. Depois, em seguida, me atentei pra uma outra sombra. Parecia gente acocorada. Parei o jipe e fiquei olhando a escuridão, mas, aí, quando veio outro raio, vi mesmo a cruz e aquilo outro que devia de ser uma pessoa.

    Cabeça inclinada, o sacerdote observava atentamente o homem que falava.

    – Saltei do carro. E me botei a patinar no lodo da encosta em direção ao alto da barranca. Penei uma barbaridade pra subir. Veja, um homem da minha corpulência! Lá, em cima, encontrei a guria ajoelhada diante da cruz, de mãos postas, rezando. Parecia em estado de choque, a coitadinha. Comecei a falar com ela. De início, ela não dizia coisa com coisa. No chão, eu vi uns pregos grandes e um martelo. Aos poucos, ela foi se acalmando. E falando. Então eu entendi o caso. O pai queria crucificar a pobrezinha. Mas ela se defendeu, e acabou jogando ele lá de cima do barranco. Bah, estava um frio bárbaro lá no alto! Aí, peguei ela pela mão e, resvalando, descemos a ribanceira. No jipe, passei uma manta por cima dela.

    O comerciante fez uma pausa. Sabia que tinha toda a atenção do padre.

    – Depois de acomodar a guria, saí do carro e, de lanterna em punho, me fui procurar o pai. Não demorou nada. Mal meti o facho de luz nas macegas, eu vi esse pobre homem aí – com um gesto do queixo trêmulo, apontou o pescador – caído no chão, estatelado, os braços abertos. Arrastei o coitado até o jipe. Era um peso morto, um saco de batatas. E aquela areia fofa da praia cansa demais as pernas da gente. Deitei ele na traseira e pensei cá comigo: deve de ter caído de ponta-cabeça e arrebentado o espinhaço, não escapa de ficar paralítico.

    Pelas frestas da janela fechada entravam os primeiros raios grises do dia.

    a church with pews and stained glass windows

    – Aí, quando eu ia dar a partida no carro, a manta caiu de cima dos ombros dela. Fui ajeitar. Senti então uma coisa gosmenta nos meus dedos. Foquei a lanterna e vi. Era sangue mesmo. Devia de ser de carregar a cruz nos ombros. Mas será que tinha levado a cruz daqui até lá, estirão de uns dois quilômetros? Perguntei, mas ela não me respondeu. Só gemia. Aí, me vim, desembestado, pra cá. Mas o pior aconteceu aqui, na chegada. Quando descia do carro, ela fez água. Muita água. Aí, eu entendi que ela estava prenha. Devia de ter arrebentado a tal de bolsa. De modos que o parto é coisa pra logo, pensei. Larguei eles por aqui e fui correndo chamar o senhor. Veja, seu padre, uma guria que nem quinze anos tem!

    Depois de renovar o ar dos pulmões com mais um largo suspiro, o comerciante voltou a falar.

    – É como dizia minha mãe: em casa de pobre, o pão cai sempre com a manteiga pra baixo. O pai endoidou, quis pregar a filha numa cruz. A guria empurrou ele de cima do barranco e o coitado, agora, na certa vai ficar paralítico. Já a guria, pelo lado dela, está buchuda e resolveu parir justo quando estamos ilhados, justo quando não temos como chegar ao hospital.

    O homem interrompeu a narrativa ao mesmo tempo que um sorriso malicioso corria-lhe pela carantonha.

    Lentamente, agachou-se ao lado do sacerdote e sussurrou-lhe no ouvido:

    – Sabe o que me passou pela cabeça?

    – Não! – respondeu o padre, sobressaltado.

    – Que a guria foi embarrigada pelo próprio pai. Ele sempre foi meio maluco, mas piorou depois que a mulher dele morreu. Deve de ter abusado da filha. Aí, quando viu que ela estava barriguda, revolveu crucificar.

    – Vá correndo buscar a parteira! – disse o sacerdote e se pôs de pé.

    *

    A mocinha permanecia na mesma posição.

    Perto da porta, olhando o homem gordo que se afastava, o padre perguntou, voz quase inaudível:

    – Contaste pra alguém?

    photo of dried brown soil

    Ela voltou seus olhos para ele. Uns olhos que estampavam um rancor duro. Os olhos do padre desceram para o chão.

    Devagar, ela se sentou. Depois, colocou os pés no chão. Levantou-se. Caminhou na direção dele. Seus pés nus deixavam marcas de sangue no piso de tábuas.

    O padre recuou um passo.

    A guria sentia-se maior e mais forte do que ele. Havia carregado a cruz por toda a longa estrada, havia aguentado as chibatadas sem gritar, havia suportado o corte das pedrinhas nos pés descalços. Depois, lá em cima, havia tido forças para empurrar o seu próprio pai barranco abaixo.

    Pesando tudo, era uma pessoa muito forte. Certamente conseguiria criar sozinha o filho que tinha no ventre, não precisaria da ajuda do homem que a havia deflorado.

    – Fora daqui, seu porco! – disse ela e empurrou o sacerdote para a luz suja de mais um dia chuvoso.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • Ilusões e quiches de espinafres

    Ilusões e quiches de espinafres

    Agarrou o livro. Abriu-o, pressionando a palma da mão contra o vinco que teimava em fechá-lo. Leu os dois primeiros parágrafos. Releu-os em voz alta. Fechou-o. Era tudo o que a capa e o título prometiam. Voltar a amar, a silhueta de um casal sobre um pôr-do-sol em tons de Inteligência Artificial. Oferecera-lho a tia:

    ⎼ Como gostas de ler… e tens de começar a pensar em refazer a tua vida. És muito nova!

    Pois gosto, pensou. Gostava também da tia. Gostava ao ponto de guardar aquele livro. Não tencionava lê-lo. Guardá-lo-ia como qualquer outro objeto que ela lhe tivesse oferecido. Livro-pisa-papéis. Livro-de-não-ler. Livro-há-mesmo-alguém- que-acha-que-isto-é -literatura. Livro-como-é-possível-abater-árvores-para-imprimir-isto. E, o mais incrível, livro-número-1-no-TOP-de-vendas. Este sucesso que não conseguia perceber fez com que um turbilhão de pensamentos lhe atravessasse a mente. Lembrou-se dos anos 90. Das  supermodelos. Perfeitas. Poderosas. Cindy, Naomi, Linda, Christy. Desfilavam, posavam, eram ricas e famosas. Ser como elas era o sonho de milhares de miúdas e miúdos por todo o mundo. Mas mais do que isso, passou a ser o sonho de muitos pais e mães. Embevecidos com a beleza das suas crias, viam ali a possibilidade de uma vida bem sucedida. Começaram a surgir escolas de manequins um pouco por todo o lado. “Caçadores de talentos” convenceram as famílias a apostar o que tinham e o que não tinham na realização dos sonhos dos mais novos. Dos que tinham tudo para dar certo. Mas também dos que não tinham rigorosamente nada que pudesse apontar nesse sentido. Sentada à mesa do escritório, livro nas mãos e olhar perdido naquele pôr-do-sol impossível, continuava a pensar nas crianças e jovens que qualquer leigo na matéria teria percebido não terem a mínima possibilidade de virem a ser modelos. Deixaram para segundo plano os estudos, atraídos por uma carreira nas passerelles ou na publicidade. Bem mais apetecível do que estudar, sem dúvida. Anos à espera da grande oportunidade. Amargurados, a  sentir-se injustiçados. A acumularem rejeições e traumas. Anos e anos até perceberem, ou não, o que lhes tinha acontecido.

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    Olhou novamente para aquele monte de folhas impressas e achou que poderia servir para elevar um pouco o monitor do computador. Afinal, sempre teria alguma utilidade.  Abriu-o mais uma vez. Já agora, queria ver como terminava. Leu o parágrafo da última página. Ah, felizmente tinha uma lombada com a altura ideal para o que precisava. 

    Das pseudoescolas de manequins, o seu pensamento deslocou-se para as escolinhas de futebol. Para os meninos arrastados pela ideia de que a fama é tudo. De que estudar dá trabalho. Ganhar a vida a dar uns chutes na bola é bem mais fácil e apelativo. Talento e sacrifício são pormenores. Abre-se uma “escola”. Enfiam-se os miúdos nuns equipamentos giros. Depois, basta ir sussurrando aos ouvidos dos pais que têm ali o próximo Ronaldo e a mensalidade não falha. Sonham com aviões particulares, mansões em lugares paradisíacos, contratos de milhões a fazer capas de jornais. O tempo vai passando. O secundário faz-se a custo. O sentimento de injustiça. A revolta. A frustração que tantas vezes poderia ter sido evitada. Bastaria alguma honestidade. Bastaria que se dissesse claramente que a maioria dos meninos e meninas se podem divertir, mas nunca  serão profissionais. Só que a honestidade custa dinheiro. O problema é que no futebol é que não há como vingar sem verdade. Já na literatura… Suspirou. Voltou a olhar para o livro. Poderia o texto da contracapa induzir os compradores em erro? Começou a ler. Não aguentou mais de duas linhas. Não. Nem era esse o caso.

    E voltou a pensar nas sanguessugas que, sempre atentas, vão diversificando o negócio, tirando proveito das ilusões e ingenuidade alheias. Alimentam-se  agora do sangue de um novo grupo de vítimas. Atacam-nas nas águas pantanosas das editoras, que nascem um pouco por todo o lado, entaladas entre uma escola de modelos/atores (vai dar tudo ao mesmo) e outra de futebol. E é ver entrar e sair os aspirantes a escritores.  Entram apreensivos, ansiosos. Saem com o ego massajado e a carteira mais leve. A maioria das editoras é hoje um negócio que vive de alimentar sonhos e explorar sonhadores. Publicam manuscritos com mais erros de ortografia e sintaxe do que parágrafos. Enredos ao nível da composição “As minhas férias”. Um discurso que convence o autor de que será o próximo Saramago. Mas em bom, claro!  O outro nem pontuar sabia! O editor vai metendo milhares de euros ao bolso, ano após ano. Sim, porque os leitores não foram lá à primeira, mas hão de reconhecer o génio. Não se pode desistir assim. O próximo volume não falha. Faz-se uma capa ainda mais chamativa e embala-se num saquinho com brilhantes, fechado com uma fitinha de seda. Monta-se uma banca com flores de plástico nas feiras do livro e fazem-se sessões de autógrafos. É fundamental que o texto tenha muitas frases de encher o ouvido. Daquelas a escorrer azeite. Pode até ter atores das telenovelas a ler uns excertos. Custa dinheiro. Mas é um investimento. Depois é publicar mais um. E outro.  E até outro, se o pé de meia ainda não se tiver esgotado.

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    E vem-lhe então à memória a recordação de uma antiga professora da FLUL. Uma conhecida catedrática com tanto de competente como de pouco diplomática que, certo  dia, após a apresentação de um trabalho, perguntou à autora se havia um prato que cozinhasse particularmente bem.

    ⎼ Quiche de espinafres! ⎼ retorquiu a rapariga.

     A resposta não se fez esperar:

     ⎼ Então, vá para casa e faça imensas quiches de espinafres. Mas deixe a literatura em paz que não lhe fez mal nenhum.

    E ela foi.

    Cruel? Sim. Honesta, porém.

    Leonor coloca finalmente o livro debaixo do monitor. Lombada virada para a parede. A cor da capa e o título são-lhe insuportáveis.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Dia décimo sexto de Marcheshvan do Anno Mundi 1656

    Dia décimo sexto de Marcheshvan do Anno Mundi 1656

    ― Estás mesmo decidido a romper amanhã as fontes do grande abismo e a abrir as cataratas do céu?

    ― Assim será!

    ― E julgas, portanto, que com esse simples acto lavarás e renovarás a Humanidade…

    ― Fecundarei de novo a Terra, extinguindo a iniquidade e a corrupção. O novo Homem deixará de ter os seus pensamentos e desejos guinados sempre e unicamente para o mal.

    ― Estás optimista! Amanhaste este mundo em sete dias criando metendo a tudo um homem e a sua costela, e apenas bastaram quatro destes seres para , logo se assistir a uma desobediência grave, diria uma traição, e até a um homicídio por inveja. E depois foi o que se viu até agora. E ainda supões que, desta feita, tudo será diferente…

    sun rays through white cumulus clouds

    ― Estabelecerei uma nova Aliança. Colocarei o meu arco nas nuvens para que aqueles que aqui se mantiverem vejam o sinal desse pacto entre mim e a Terra.

    ― Divina ingenuidade! As quezílias humanas serão perpétuas. Quando terminar o flagelo que anuncias para amanhã, cedo o teu escolhido se embebedará, se colocará em pelota e depois zangar-se-á com um dos seus filhos, lhe lançará uma maldição. Lá se vai a concórdia por água abaixo… Se fosses mesmo presciente, como eu sou, escusavas de lançar esse cataclismo. Ou então não salvarias ninguém. Nunca acabarás com a maldade nos homens, por mais flagelos que apliques. A maldade nos homens vive porque os homens vivem.

    ― Estarei atento; de futuro não os deixarei perder o norte!

    ― Concedeste-lhes o livre arbítrio; desorientam-se por mor das suas paixões. Eles nunca buscam o norte ou o sul, nem o este ou o oeste; em breve desejarão atingir o céu. E tu cometerás então um erro crasso: quando estiverem construindo uma torre, lhes confundirás as vozes, os obrigarás a dispersarem-se pela Terra. Quebram-se os laços, aumentam as cobiças, as violências, as guerras… Vais andar num fandango, por séculos…

    ― Se algo correr mal, tenho em mente enviar o meu filho.

    ― Será crucificado…

    ― Lavará os pecados dos homens com o seu sangue, se necessário for; com o meu sangue. E os homens se emendarão aos pés de uma nova igreja…

    ― … que somente alimentará mais cóleras. Sob a tua bandeira, serão cometidas violências sem fim, por tempos infindáveis. Pretextando defenderem a tua obra, bispos e reis matarão e oprimirão justos e pecadores, maus e bons, crentes e incréus. Pelo que sei, apenas dois milénios após a chegada desse teu filho à Terra, essa tal igreja minguará em poder, deixando de produzir e alimentar maldades.

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    ― Ainda haverá tempo para então se salvarem muitas almas antes do Juízo Final.

    ― Não sei como. És mesmo um incorrigível optimista. Aliás, só assim se justifica a tua imprudência em engendrar o Homem e pensar tê-lo como inquilino num mundo que desejavas perfeito. Falhaste e falharás. E os teus homens, os homens dessa tua igreja, mesmo quando se tornarem mais mansos, em nada contribuirão para aplacar o mal. Olha-me aqui para o futuro: ali estão eles, visitando umas pobres gentes, em postura solene, hirtos e retraídos, agaloados nas suas ricas vestes, chorando lágrimas de compaixão. Mas céleres regressarão ao aconchego dos seus aposentos, esquecendo o que viram, calando a raiva sob os poderosos, recusando perder as suas mordomias e sinecuras terrenas… Enfim, achas mesmo necessário amanhã abrir as comportas do Céu?


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

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  • Um só corpo, corcovado e imenso

    Um só corpo, corcovado e imenso


    Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo?

    Vidas Secas. Graciliano Ramos


    – Se pudesse, eu metia logo um balaço na perna dele – diz o sargento.

    – Melhor no braço – retruca o soldado. – Facilitava pra gente ir pra cima ele.

    – Tu tá achando que a gente vai chegar nele de novo?

    – Sim, mas eu quero é ir sozinho.

    – Tu? – espanta-se o sargento. Depois ri. – Não é hora de brincadeira.

    Os dois trocam um rápido olhar. Depois, por entre os galhos ressequidos, voltam a espiar o homenzarrão na outra margem do pequeno canal.

    brass-bullet cases

    – Se o senhor deixar, eu vou.

    – Tu tá é maluco! Se ele te acerta um tiro não é nada, porque aquela espingarda dele é de chumbinho, mas o duro é se ele te agarra pelo pescoço. Aí tu podes encomendar a alma.

    – O que não pode é a gente continuar aqui, parada, com ele ali cantando de galo. É um desaforo.

    – Acho que vou pedir reforço pelo rádio da viatura.

    – Não, sargento! Isso seria mais humilhação ainda. Me deixa pegar ele!

    Estão deitados na margem direita do canalete, por trás duns caraguatás, observando o homem alto e gordo, sem camisa, que grita e gesticula diante deles. A separá-los, o leito quase seco do riacho, cortado pelo negro fiapo da água suja que serpenteia entre os monturos.

    – Mas o que é que tu tá pensando, homem de Deus? – pergunta o sargento, impaciente.

    – Tenho um plano. Num minuto estou com ele derrubado no chão. Aí, vocês chegam e metem as algemas nele.

    – Falar é fácil, língua não tem osso. Ele já botou o Caldeira e o Braga pra dentro do lodo! E eles são mais fortes que tu!

    – Deixa comigo, chefe – o soldado sorri. – Meu braço está comichando de vontade de apertar aquele pescoção.

    lighted wall sconce

    O sargento suspira fundo.

    – Faz o que tu quiseres. És maior de idade e vacinado. Agora, uma coisa é certa: eu não me responsabilizo. Faz de conta que tomaste a iniciativa sem eu saber. Se ele te torcer o pescoço, azar.

    – Fechado.

    O soldado ergue-se. É muito jovem, terá no máximo uns vinte anos, e franzino.

    Enquanto corre, agachado, em direção aos casebres, escuta os gritos irônicos do grandalhão.

    *

    – Adonde tu vai com essa pressa toda, franguinho? Vai procurar tua mãe? Pois aproveita e te esconde debaixo das asas daquela galinha! Ou será que tu vai chamar mais brigadianos? Chama bem uns vinte que eu tomo conta deles tudo! Bando de cagão! Brigadiano só serve pra bater em mulher e criança! Que venham! Vou fazer com eles o que já fiz com os outros dois trouxas!

    *

    – Olha, lá, Caldeira! – diz o soldado grisalho, levantando o braço e apontando com o dedo. – Viste? Era o Magro correndo! Pra onde será que ele vai?

    – Acho que foi se esconder no meio dos barracos – responde o soldado negro, passando a manga da túnica pelo nariz. – Deve estar se cagando de medo.

    – O Magro não é medroso. Já me vi em hoscas com ele e ele sempre vai em frente. O que tem de leviano de peso tem de valente.

    – O que tu acha mesmo que o Magro foi fazer? – pergunta o soldado negro, enquanto olha para a mancha de sangue na manga.

    – Buscar reforço. Só pode ser isso.

    – Aí, sim. Quando a gente chegar no Luisão, ele vai ver o que é bom pra tosse. Vou dar uma porrada na boca dele.

    – Mas antes a gente vai ter que pegar ele. E aí é que eu quero ver! Não vai ser fácil!

    – Ele não tem nem três nem quatro colhões. Não é mais macho que nós!

    – Mais macho não é, mas que o bicho é forte, isso é – o soldado grisalho leva a mão ao queixo. – Já tivemos uma amostra hoje.

    – O filho da puta me quebrou o nariz, acho.

    – É caborteiro.

    – Tenho é vontade de afogar ele nessa água suja.

    – Isso nem é água mais.

    – Parece suco de merda. Tu já percebeu o quanto nós tamos fedendo, Braga? Credo! Esse puto vai lavar a minha farda lá no quartel!

    green and brown plant on brown tree

    – Ele é mais gabola que bandido.

    – Se o sargento tivesse deixado a gente usar o revólver!

    – Aí não tinha graça.

    – Eu meteria um balaço no meio daquela cabeça cabeluda.

    – Não precisa. Quando não tá bêbado, o Luís Gordo é gente boa – diz o grisalho, sempre observando o homenzarrão, que continua gritar e esbravejar. – Mas, bebum, ele gosta de cantar de galo.

    *

    Ao atingir o casario, o soldado se levanta. É de estatura meã, mais para baixa. Apressado, avança por entre as casinholas de paredes de lata, de compensado, de refugos de madeira e até mesmo de papelão.

    O barro negro das ruas está seco, não chove há muito. Mulheres e crianças escondem-se por trás das paredes vacilantes do Templo dos Crentes – um barraco um pouco maior, mas igualmente frágil – prontas para fugir caso Luís Gordo atravesse o arroio.

    O soldado circula os olhos pela gente assustada. Aponta para um velho barbudo.

    – Tu aí, me dá tua roupa. Vamos, ligeiro! Onde tem um lugar que a gente possa se trocar?

    O velho não diz nada.

    O soldado arranca a própria túnica, joga-a no chão. Depois toma a camisa do velho.

    – Vamos, tira a calça também!

    Um sussurro de espanto corre entre as mulheres.

    – Virem a cara pro lado! – ordena o soldado, ao mesmo tempo que veste a camisa remendada.

    Sentado no meio da ruela, desamarra os cadarços, tira as botinas. Despe a calça do uniforme. Seus gestos são rápidos, nervosos, De novo de pé, enfia a calça do outro, que está imunda. Por fim, arranca da cabeça do velho o roto chapéu de palha, deixando-o completamente nu.

    Este cachaceiro está podre de borracho, pensa o soldado. Inspira fundo e sente a catinga de canha da camisa que vestiu. Lança um olhar duro ao velho estupidificado, de cuja boca aberta pende um grosso fiapo de saliva.

    – Quem é o dono do bolicho? – pergunta o soldado, apontando a placa na porta de um barraco.

    Ninguém responde.

    – De quem é a merda do bolicho? – grita ele para os que estão escondidos por trás do Templo. – É bom dizer antes que eu ponha a porta abaixo!

    Um homenzinho balofo surge vindo de não se sabe onde.

    – De que é que o senhor precisa?

    – Pega uma garrafa de pinga. Rápido! E já me traz sem tampa!

    black and silver round coins

    Pouco depois, o bodegueiro chega com a cachaça. O soldado bebe um gole largo. Depois, de pés descalços, encaminha-se, vacilante, como se estivesse muito bêbado, para a pontezinha que atravessa o canal.

    É uma pinguela de duas pranchas largas de madeira, precária, vacilante. Na época das chuvas é retirada para que as águas não a levem.

    Agarrado ao fio de arame que serve de corrimão, o soldado observa Luís Gordo pelo canto dos olhos.

    Ele continua lá, na frente do minúsculo barraco, a berrar e a bracejar com a passarinheira segura, pelo cano, na mão direita. Seu largo peito glabro brilha suarento sob o sol cruel do meio-dia.

    O soldado magricelo tenta escutar o que ele diz, mas não há vento para trazer os sarcasmos daquela voz rouca até ali. Luís Gordo fala demais, pensa.

    Trôpego, assoviando uma desconchavada musiquinha, com a garrafa na mão esquerda, o soldado travestido em mendigo encaminha-se para onde está Luís Gordo.

    Deixa cair a cabeça para o lado. Espiando por baixo da aba do chapéu, consegue entrever, do outro lado do fosso, os seus colegas, deitados entre a vegetação ressequida.

    *

    – Braga, tem um cara atravessando a pinguela.

    – E tá pra lá de bêbado.

    – Era só o que nos faltava: um outro borracho pra se juntar com o Luísão!

    – Peraí! Aquele cara é o Magro! Com roupa de mendigo. E se fingindo de bebum!

    *

    Era menos que uma vila, era até menos que uma favela porque os que ali viviam eram menos que gente, eram qualquer coisa acima de bichos porque sabiam falar.

    Vieram de todos esses campos aí pela volta da cidade. Lá fora viviam mal das pernas, quase sem roupa e sem remédios, mas, no geral, tinham o que comer. Plantavam para o gasto, uns pés de milho, uma ponta de arroz, e carneavam uma ovelha de vez em quando, roubada quase sempre. Tinham galinha para os ovos e para a canjinha, quando adoeciam. Até passarinhos eles matavam, a bodocaços, quando a fome apertava.

    Na cidade só se tem ruas de asfalto e de calçamento e ninguém, a não ser Pedro Malasartes, desencava comida das pedras. Que lhes resta quando percebem que vieram de outro tempo e de outro mundo e que ali não tem lugar para eles? Se arrinconam lá pelas voltas do Forno do Lixo, sob um céu sempre negrejado por bandos de urubus. Ali podem colher alguma coisa, como antes colhiam no campo.

    São catadores de papel, vendedores de vidro e ferro, carroceiros, jardineiros, changueadores, biscateiros. Como chegaram há pouco, ainda não dominam os misteres urbanos, nos quais serão mestres seus filhos: ladrões de botijão de gás, punguistas na volta do mercado, gigolôs de perebentas, flanelinhas raivosos, cheiradores de cola, assassinos de velhas.

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    Por terem chegado há pouco do campo, foram obrigados a se acomodar nos confins da cidade, nas terras encharcadas, ao lado do arroio sinuoso que pastoreia os detritos da cidade toda. E lá ergueram suas casinholas, na maioria com paredes de lata, latas de conservas e de óleo de soja retalhadas a abridor.

    *

    Luís Gordo estava há um bom tempo por ali. Mas morava meio afastado, só ele naquela margem do arroio, porque não gostava de gente. Não se misturava Era um verdadeiro bicho do mato. No começo, ganhava uns trocos cabeceando sacos numa arrozeira, mas depois se deu bem, arranjou uma boca de leão-de-chácara num puteiro. Não era de briga, mas isso não importava porque era muito alto e forte. E tinha cara feia, cara de índio, com aquela cabeleira negra escorrida e uns olhinhos achinesados que botavam medo até mesmo nos vagais siderados pelo pico. Só o jeitão dele já amansava os chinelões mais brabos.

    Era conhecido dos brigadianos, por pacato e respeitador, mas, de longe em longe, acordava com os bofes virados e se passava na canha, como naquele domingo. Aí, a coisa desandava.

    De manhã, no bolicho, sentado num saco de feijão, bebera uma garrafa inteira, sozinho. Igual que sempre, estava meio emburrado. Depois, pateara o balcão. E saíra pela vila a dizer palavrões cabeludos, a inticar com as mulheres e a desaforar os homens. Gritou que eram uns machos de merda, e meteu a mão nos dois ou três que não tiveram tempo de se afastar. Que chamassem a Brigada! E se fora sestear.

    Estava no bem bom do sono quando bateram à porta do barraco. Eram dois brigadianos, um velhusco e um negro fortão. Disseram que ele tinha de ir à delegacia responder pela arruaça, que um cidadão tinha prestado queixa e que eles estavam ali, de viatura e tudo, para conduzi-lo ao distrito.

    Mas, bah, nem disse nada! Só enfiou o braço. Mandou um murro em cada um. Foi pá e pá. O grisalho se foi direto para o riacho, desconjuntado, mas o negro ainda conseguiu se equilibrar. O jeito foi dar-lhe uma cotovelada na cara. E ele, caindo de costas, foi se juntar ao outro.

    Num vupt, Luisão pegou a passarinheira que mantinha atrás da porta e fez mira na testa deles, que já tentavam escalar de novo a margem barrenta. Que se sumissem! Encagaçados, eles saíram patinhando pela água suja e galgaram a outra margem e foram se refugiar entre as unhas-de-gato.

    Pouco depois, vindos da camionete, juntaram-se a eles o sargento e o soldado magro.

    *

    – Tão pensando que eu sou o quê? Um alimal? Vocês tão é muito enganados! Acham que esta cidade é grande merda só porque tem um batalhão de brigadianos? Me cago pros brigadas! Tô de saco cheio disso aqui! Qualquer dia volto lá pra fora. Tem sanga limpa e não esse arroiozinho de merda. Tem cancha pra carreira e salão de dança. O que é que tem aqui pra se fazer num domingo? Nada. Tem futebol, mas isso é coisa de maricas. Meto-lhe uma bala num!

    *

    E Luís Gordo estava falando ainda, empolgado pela canha que lhe fermentava nas entranhas, quando o bêbado de camisa remendada entrou na pinguela e se veio na direção dele. Vinha bem devagarzito, desenhando a beira da barranca, quase que se despencando.

    three men standing wearing hoodies

    Era só um pobre borracho magro e miserável, de olhar turvo e boca aberta, um fiapo de homem. De pés descalços. Uma coisa à toa. Não merecia atenção. Desinteressado do pinguço, Luís Gordo continuou a despejar a mágoa armazenada. Com sua voz grossa e rouca, repetia, com pequenas variações, as mesmas frases. Sempre segurando a passarinheira pelo cano.

    Aí, de repente, sem mais nem menos, o bêbado, saltou nas costas dele. Os braços magros se aferraram em torno do grosso pescoço moreno e as pernas em torno da grande barriga, com os pés se entrecruzando na frente.

    De primeiro, os olhos arregalados mostraram estupor. Em seguida, raiva. E Luís Gordo se pôs a pinotear como se estivesse com um piá nas costas, o filho que não tinha, brincando de upa-upa cavalinho. Sufocado, não conseguia falar mais nada, apenas urrava como um burro triste, saudoso de sua querência.

    Nem podia mais pensar direito, o pobre homem. Tinha era que arranjar um jeito de se livrar daquele carrapato.

    Foi então que ele viu os três brigadianos descendo pela outra margem do arroio. Tropeçando na raizama, vinham de cassetete em punho. E em seguida, no embalo, pularam sobre o lodo preto que era o leito do arroio e começaram a subir o barranco.

    Pressentindo que ia entrar na borracha, Luís Gordo resolveu guarnecer as costas. Encostou-se então contra a parede do seu barraco e levantou a espingarda, como se ela fosse um tacape. E esperou os três brigadas que se vinham de cacete em punho, furiosos.

    Enquanto esgrimia com eles, Luís Gordo lembrou que na parede do seu barraco havia umas cabeças salientes de pregos enferrujados e umas rebarbas pontiagudas de lata.

    Aí, pôs-se a esfregar contra ela as costas, as costas do soldadinho magro, que estava agarrado a ele como uma sanguessuga.

    Foi como se sentisse a dor do outro, os cortes, as fincadas, os lanhos na própria carne. Mas, como estava com aquele molambo de homem nas costas, Luís Gordo perdeu o jogo de cintura e se tornou alvo fácil para as porretadas dos brigadas.

    blue and brown brick wall

    Para se distrair, ele até se botou a contar as lapadas que levava e espantou-se porque elas cada vez doíam menos. Já estava chegando a vinte quando lhe acertaram uma no pé do ouvido.

    Então ele foi arriando, se encolhendo como um tatu mulita, devagarzinho, já entregue. Mas, de repente, não se sabe de onde, ele conseguiu arranjar um resto de força. Aí, se levantou e, lentamente, caiu para a frente. Se foi em direção ao leito imundo do arroio levando consigo, de carona, o bêbado das costas ensanguentadas. Na queda, Luís Gordo e o soldadinho nele agarrado pareciam um só homem, um só corpo, corcovado e imenso.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • 1984: uma exposição

    1984: uma exposição

    Estava a fazer scroll no meu iPhone quando o aparelho estremeceu. Para os metais roubados ao Congo que sustentam o telemóvel foi um terremoto de grau 9. Até me assustou. Era a Teresa e atendi.

    – Então man!

    Man? Sucumbiste aos estrangeirismos?

    Respondi, perguntando com maldade.

    – E tu! Que estás sempre a dizer layer em vez de camada!

    – Tens razão. Tás boa?

    – Estou. E tu? Já viste as notícias no telejornal?

    – Vai-se andando. Estás a ligar-me por isso? 

    – Não. Claro que não, mas repara que Paris está a arder. 

    Disse ela com leveza.

    – Paris já está a arder há muito tempo. 

    – Chamem os bombeiros! (Ri-se).

    – Agora não tenho aqui nenhum ecrã à frente. Quando chegar a casa, ligo a CNN. Eles sabem tudo o que não se deve saber sobre terror. 

    – (Interrompendo) E o meu texto para o PÁGINA UM?

    Perguntou à bruta.

    – Ah, então era por isso!..

    – Também. 

    A razão destas palavras  é uma exposição da Teresa que está a decorrer na Galeria da ZDB e que acaba dia 20 de Julho. Disse-lhe que escreveria um texto sobre ela. A exposição chama-se 1984.

    Continuei,

    – Não sou uma máquina de escrever Olivetti, calma! Não é fácil escrever sobre isso do controle e da lobotomia. Lobotomia vem de lobo?

    – Não. Vem de Nobel. Não sejas parvo!

    – Não posso escrever um texto parvo? Agora, ficaste séria?

    – Podes, podes. Os textos já não são escritos para serem lidos. Se calhar porque hoje, principalmente reescreve-se demais. Inventa-se pouco. 

    – De qualquer forma, vou fazer uma analogia com os media provavelmente, é inevitável, mas esses, em geral, não fazem lobotomia às massas, fazem outra coisa bem pior. Tornam tudo abstracto. As tuas peças não são abstractas, muitas vezes até são chapa 4 e aqui nesta exposição há uma impossibil… (Ela não deve ter ouvido esta parte, ficou sem rede). 

    – … Disseste o quê?

    – Fiquei sem rede. Estava num túnel e estava a dizer que posso também escrever sobre a ZDB.

    – Vais dizer mal da ZDB?

    – Não. Não vou dizer nada sobre a Galeria. Dizer mal não me fica bem.

    – É melhor. (Rindo)

    – És feminista? Ando há meses para te perguntar mas tenho-me esquecido. É para o texto. 

    – Feminista como? Tás a gozar comigo! É por aí que vais pegar? 

    (Não consegui conter o riso). 

    – Não. Estava a tentar ser contemporâneo. É que sou pela ig…

    (interrompendo)

    – Estou a ficar sem bateria. Aparece lá amanhã em minha casa à u… 

    Caiu a chamada. Deduzi que quisesse dizer à uma.

    Eu e a Teresa somos das pessoas mais pontuais que existem e, por isso, à uma em ponto do dia seguinte, a Teresa abriu-me a porta do sexto andar do seu apartamento em Benfica. Trata-se de um prédio dos anos 70 com e sem alma, nunca percebi. Subi de elevador e ía morrendo.

    Estava um calor normal para o mês de Julho e não deixei de pensar no aquecimento global. Mesmo quando o tempo é normal, pensamos no aquecimento global. Fui na minha Yamaha e percebi nesse dia que Lisboa ainda podia ter salvação. A Teresa e eu somos lisboetas a sério.

    Abriu-me a porta com aquele seu andar apressado. 

    – Então estás bom? O meu texto?

    – Não vim cá para isso propriamente. E isso é assim logo a abrir?..

    – Vieste porquê?

    – Tive de ir à Loja do Cidadão ali em baixo e prefiro falar ao vivo que na minha câmara de filmar.

    Menti.

    – Hã?…

    – Sim. O telemóvel é a minha câmara.

    Aqui não menti.

    – Ok.

    – De qualquer forma tínhamos combinado.

    – Não tínhamos não.

    – Tínhamos, tínhamos. Está escrito lá atrás quase no início. Isto aqui é como o Big Brother da TVI fica tudo registado.

    – Tás a ver. É por isso que nas minhas exposições falo do controle.

    – Percebo. Ontem estava com o Cabral ao telefone e enquanto íamos falando eu tirava notas acerca do que ele dizia da tua exposição. É uma táctica que uso muitas vezes. Ouve: (vou às notas do IPhone).

    “A artista está constantemente a fazer-nos uma pergunta, ou melhor a pôr-nos uma questão inextinguível: onde fica a fronteira, o traço que nos divide, que nos exclui/inclui da actividade artística face à esfera social’”…

    – Ele disse mesmo assim ao telefone? (Interrompeu com surpresa).

    – Não. Claro que não. Assim, assim não. Ninguém fala assim. Ele dizia coisas e depois eu ía anotando, depois compus mais ou menos nas notas. Mas ouve o resto. Não interrompas. “… Por entre a deriva em explicar a Arte, na sua quietude e finitude, alcançamos, como pressuposto, uma ideia, por vezes, muito simples – ou seja, na tentativa de a compreendermos melhor, tentamos avaliá-la, ainda, em torno da sua antiga e discutível dicotomia – figurativo/abstracto, do maior ou menor emprego de valores tidos como simbólicos ou do modo como determinados procedimentos são empregues, entre outros”.

    – Uau! Isso é tudo verdade. Estou a gostar man.

    – Sabemos lá o que é a verdade.

    – É o contrario da m…

    – Ouve o resto. Falta pouco. “Neste contexto, deveremos colocar a irrecusável tentação de recorrer a tendências ou a correntes nas quais se podem filiar os objectos, bem como a tudo aquilo que nos possa ajudar a situá-los para além de um plano meramente artístico.

    – Posso assegurar-te que esta parte disse-a assim tout court.

    E continuei:

    – “É o caso da Escultura da Teresa Milheiro, que nos oferece aquilo que é a génese artística, o paradoxal – como pode a Arte ser feita como se fosse uma jóia, um precioso adorno sem, no entanto, colocar esse ditame em causa? A escultura dela apresenta-se sob a forma de uma jóia, é certo, mas recusa disponibilizar-se enquanto tal, é a Arte, na sua justa luta, do dia-a-dia, a manifestar-se”.

    O telemóvel da Teresa toca.

    – Desculpa tenho de atender o telefone. Sou capaz de demorar um quarto de hora. É da Turquia. Mas está espectacular.

    – Ok. Está como se estivesses em tua casa.

    Gracejei sem que ela ouvisse e sentei-me no sofá da sala.

    Escrever para esta nova exposição da Teresa não é evidente! Ela engendra objectos cada vez mais estranhos e escultóricos e é uma constante perguntar-me acerca do que é que se pode e deve abordar num texto. Do método? Dos temas? De nada? Da vida do artista com uma nota biográfica? Do processo e dos materiais? Soa-me sempre quase tudo a falso e aparecem sempre textos a despachar. Hoje, há pouco tempo para tudo e o pouco que há, não é para mandar um cego cantar e ficar a ouvir. 

    Pego no meu iPhone e vou até às notas onde tinha apontado o texto do Cabral que para mim ainda não cobria o essencial. Tinha anotado alguns items depois de uma conversa com a minha amiga:

    Fragilidade/Paradoxo. Forte. Resistente. Aceitação. Fragilidade do vidro. 

    Agressividade. Metal. Leucotomia/Lobotomia. Controle.

    Notas de merda que não servem para nada. Pensei que mais valia estar quieto e ir até à praia.

    Tangas contemporâneas que não querem dizer nada. Vejam as peças e perceberão logo isso… Ou não. O vidro por exemplo não é só representativo da fragilidade, o metal não é forçosamente a resistência, a lobotomia não é necessariamente uma metáfora. No mundo da linguagem, a paleta de cores é muito mais vasta e diversificada. Mas sim, precisamos da palavra, hoje mais do que nunca, mas da palavra certa no momento errado, duma palavra que não se auto-banalize, que não se auto-destrua à primeira má interpretação. 

    As peças dela já são por si um organismo, é isso que a define. Acima de tudo, as peças são ela. Têm o seu carácter, falam por si a maior parte das vezes. São acutilantes e irónicas, por vezes delicadas como ela. As palavras podem estar a dizer outra coisa, podem estar a apontar noutras direcções, podem pertencer a outros mundos paralelos, podem ser só sons e podem não implodir com o que resta da vida. 

    A Teresa apareceu de rompante ainda com o telefone na mão e perguntou se já tinha almoçado.

    – Não. 

    – Queres vir almoçar?

    – Não. 

    – Estás chateado comigo?

    – Não. Claro que não. 

    – Só dizes não?

    – Sim. 

    – Estás a pensar em quê? Estás sempre entre paradoxos. Lê lá outra vez essa ultima parte do Cabral!

    Concentrei-me, levantei-me do sofá e olhei-a nos olhos. 

    – Tu e eu, as tuas peças, este texto, a nossa ligação, estar aqui agora e tu aí, a linguagem que usamos para nos entendermos, tudo junto, é que é a melhor obra. E pode já não haver palavras para a definir. Aquilo que nós sabemos ser a grande obra, a mais poderosa, aquela que está para além da morte. Aquela que é vida a toda a hora. Já somos a própria representação, as tuas esculturas já fazem delas mesmas, fazem de ti porque deitas para lá todo o teu sangue. 

    – Não fales em sangue que me faz logo lembrar… Sangue.

    – As tuas peças, se queres que te diga, são a maior metáfora disso. São meta. Pelo menos enquanto residirem aqui. Mas dizer metáfora está errado, não há folha de sala que não nos bombardeie com essa palavra que ficou oca de tanto a gritarem. Estas peças não têm nada a ver com a lobotomia, ou com o 1984. Têm a ver com uma certa linguagem, com uma certa crueza e transparência que há em ti e isso não é traduzível para texto

    – Estás acelerado. Pareces o Nico Rosberg.

    – Estou só concentrado.

    – Mas continua, estava a gostar 

    – A lobotomia pode ser a origem da inspiração, mas a lobotomia não tem beleza e isto não é uma ilustração da brutalidade. A violência em que a tua criatividade mergulha é que é assinalável. As melhores peças são aquelas que nos inspiram criatividade e a lobotomia faz justamente o contrário. Às vezes, penso que somos uma espécie de guerrilheiros urbanos que andamos por aí, pela rua, entre os inimigos e, nesse caso, as tuas peças são as minhas armas. Queres melhor? Tornas-te subjectiva e útil ao mesmo tempo. E, nesse caso, temos muitos combates ainda para fazer. De certa forma, a estética da violência une-nos. E há uma beleza contida na violência, mesmo na verdadeira. E tu não tens medo dela. Fazes uma guerrilha à própria violência. E eu escrevo-te assim. Não é giro?

    – Giro? 

    – Não vou escrever nada sobre os media tradicionais, nem fazer analogias com o Poder, nem com a fragilidade de seres mulher ou com o feminismo, pelo menos aquele que está em voga. Tu não tens nada a ver com isso. 

    E ela interrompe como se não estivesse a perceber partes:

    – Ainda estou atónita com essa tua conversa. Não queres mesmo ir até lá abaixo almoçar? Vamos ali à esplanada e vemos uns turistas a andar de trotinete para espairecer. Até Benfica já tem turistas.

    – Sim. Na tua cabeça. Ou melhor… Na minha.

    – Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelada por uma. Nunca te aconteceu?

    Perguntou em tom irónico.

    – Claro que sim. Está sempre a acontecer-me. Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelado por uma também. Ali, precisamente junto ao jardim Zoológico. Se não tivermos cuidado, somos sempre atropelados junto a qualquer coisa. Estou agora a lembrar-me que estava contigo quando íamos sendo atropelados por um turista. Se queres saber a verdade… não, não estava. É que eu não estou sequer agora aqui contigo; pensando bem, nem há pouco estava contigo e, pensando ainda melhor, nem muito menos me ligaste ontem. Pior, ontem não existiu e para complicar tudo ainda mais… Não existe tempo.

    – Estás a brincar comigo?

    – Talvez. Mas então é por aí que devo ir, que estou a brincar contigo, ou então dizendo que não há tempo e que as tuas peças são de alguma forma intemporais… Existem fora do tempo e até do próprio espaço. Estas palavras deveriam ser as tuas jóias, mas por outros meios como a guerra e a política. As tuas jóias, para mim, valem ouro, porque ao olharmos para elas, vêm-me palavras à cabeça. E as palavras acima de tudo precisam de ti. O mundo precisa de palavras. E os teus objectos são a possibilidade da palavra.

    – Mas eu estou aqui ou não?

    – Tu é que sabes.

    Respondi sem responder. 

    – Sou só palavras pensadas por ti?.. Ou isto é tipo um filme estúpido de terror do AXN em que a personagem está, depois não está, depois volta a estar… Desaparece… Aparece… Há tempo, depois não há tempo… 

    (NÃO) EPÍLOGO:  Este texto prescinde de um epílogo já que, enquanto o autor estava na iminência de o redigir, apareceu o Timóteo com uma bola na mão a chamá-lo para irem dar uns toques até à Alameda. Assim, por falta de tempo, marca da actualidade, o epílogo não foi escrito. A caminho do local onde a jogatana se iria dar e a pedido do autor, o Timóteo leu no smartphone o texto até este falso epílogo, e sugeriu que o texto acabasse justamente assim. Mesmo assim.

    Ruy Otero é artista media

    Fotografias de Eduardo Sousa Ribeiro


    1984 – exposição de Teresa Milheiro

    20.05.24 — 20.07.24

    Galeria Zé dos Bois

    Rua da Barroca nº 59
    1200-047 Lisboa, Portugal

    Horário ARCOLisboa:
    21 a 26 de Maio 12:00 — 22:00
    Entrada livre.

    Horário 27 de Maio a 20 de Julho:
    Segunda a Sábado 18:00 — 22:00
    Entrada: 3€

    Curadoria: Manuel Costa Cabral e Natxo Checa


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    Corria o ano de 1950. Pelas ruas da cidade vagueava um cão abandonado. Ardiloso, escapava como podia à carrinha do canil municipal. A perseguição levou-o a procurar refúgio junto ao Liceu. Foi aí que o canídeo cor de mel foi adotado pelos estudantes e elevado ao estatuto de mascote. Deitado junto a um grupo, empoleirado junto a outro, alimentado por todos, Kanitov, assim lhe chamaram os estudantes, tinha encontrado um lar.

    Certo dia, porém, Kanitov afastou-se deste lugar seguro e voltou a percorrer as ruas da Baixa, onde, à vista de toda a gente, o inimigo lhe deitou finalmente a mão. Sem um dono que pagasse a licença, o destino do animal estava traçado.

    black and tan short coat medium sized dog sitting on green grass field during daytime

    A notícia da captura chegou rapidamente aos ouvidos dos estudantes. Juventino, aluno do 8.º ano, tinha então 16 anos. Era baixo para a idade, magro, pálido. Tão recatado que poderia desaparecer sem que os colegas dessem pela sua ausência. Só Kanitov lhe sentia a falta. Mal o via ao longe, o bicho corria desenfreadamente na sua direção, saltitando e abanando o rabo. Juventino, filho único, a quem nunca foi permitido ter um animal de estimação – não fosse o menino adoecer dos pulmões – encontrou em Kanitov um companheiro. Um fiel amigo com quem partilhava a sandes de iscas fritas que a anemia o obrigava a ingerir diariamente.

    A perspetiva de Kanitov ser abatido era inaceitável para os jovens. E, enquanto os colegas iam murmurando soluções, eis que Juventino, saído da penumbra em que vivera até então, saltou para cima de um banco e gritou: ⎼ Uma manifestação, companheiros! Isto pede uma manifestação! ⎼ Movidos pelo amor ao cão e pela inesperada atitude sanguínea do colega, os estudantes juntaram-se no pátio preparados para avançar.

    O Reitor, tomando conhecimento desta intenção, alertou os rapazes para o perigo que corriam. Não tinham autorização do Governo Civil. Mas Juventino, assumindo a liderança, falou por todos quando disse que a decisão era irrevogável. Estavam cientes do perigo. Sabiam que os ajuntamentos eram proibidos. Mas era o Kanitov, caramba! Era um deles!

    Foto: Inácio Ludgero

    Uma vaga de capas negras desceu a avenida e atravessou as ruas da Baixa, em direção à Câmara Municipal: – Viva o Kanitov! Libertem o Kanitov! – Exigiam.

    A população, assustada, dividia-se entre o desejo de se afastar para evitar problemas e a curiosidade de saber quem era Kanitov. Alguém esclareceu: – É um general russo. – E o rumor correu a cidade: Os alunos do Liceu, o futuro da região e do país, caminhavam pelas ruas cidade a exigir a libertação de um general russo. Uma vergonha!

    O meritíssimo juiz, posto ao corrente do escândalo, abandonou o café que tomava numa esplanada da moda e foi ver quem eram os meliantes. Não podia acreditar no que os seus olhos viam. A encabeçar o grupo de delinquentes, punho em riste e a gritar a plenos pulmões, o seu Juventino. Por instantes, pensou em ir até ele e arrastá-lo dali pela orelha. Mostrar que sabia educar o filho. Mas a vergonha foi maior. Dirigiu-se a casa. O passo pesado. Cabisbaixo. Pediu à mulher que lhe mandasse buscar uns sais. Sentia-se prestes a desfalecer:  – Ai, Valentina! Que grande desgraça! O nosso Juventino, Valentina! O nosso Juventino! Ai, que me foi para o Liceu normal e vem de lá comunista!

    Ao final da tarde, mascote resgatada, o novo líder estudantil dirigiu-se a casa de peito cheio. Ia feliz. Ansioso por partilhar o feito com os pais, por lhes explicar como se tinha sentido forte pela primeira vez na vida.

    Foto: Inácio Ludgero

    Bateu à porta. Ninguém abriu. Voltou a bater. A velha ama veio à porta, mas não o deixou entrar. Lavada em lágrimas, entregou-lhe uma mala de viagem e um envelope: – Fuja, menino! Fuja, e que Deus o proteja!

    Sem perceber o que se estava a passar, Juventino agarrou a mala e abriu o envelope. Lá dentro, algum dinheiro, dois cordões de ouro, um par de brincos e uma mensagem: “Querido filho, o seu pai denunciou-o à polícia. Vêm prendê-lo! Vá para Paris e procure a ajuda do seu tio. Um beijo, da mãe que tanto o ama e morrerá com a dor de não o voltar a ver.”

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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