Categoria: Cultura

  • Bill, o Profeta

    Bill, o Profeta

    O homem acordou, mas aquilo não era bem um despertar.

    Pôs os óculos e levantou-se, mas o seu corpo não respondia como de costume.

    Bill sentiu-se assustado. Não estava habituado a esse tipo de sensação. Mas do que é que poderia ter medo? Se nem da própria morte tinha. Esse assunto fora resolvido há muito, tendo mesmo superado essa vertigem ainda adolescente, adquirindo o conhecimento tanto metafísico como esotérico com a ajuda do seu pai, para que pudesse andar descansado, minimizando-a, tornando mesmo a sua morte num não assunto.

    Até aí tratava-se de uma vitória sem dúvida.

    Mas por que razão então acordara tão assustado o filantropo mais filantropo do mundo? Andaria com medo de si mesmo?

    Andaria com medo da filantropia?

    Era culto e perspicaz o suficiente para saber que muitas vezes somos nós mesmos os nossos maiores inimigos, mas não era esse o caso.

    Ilustração: Bruno Rama

    Mesmo ainda criança, o seu pai tinha-lhe passado o conhecimento suficiente para abortar de imediato mal viesse a ser invadido por más sensações que se apresentassem sem consentimento e licença para massacrar-lhe o espírito, ou a carne ou mesmo os ossos.

    Aprendeu que seria preciso ter sempre um “bisturi” à mão e nunca haver contemplações para com os invasores, cortando o mal pela raiz. Bill cresceu com um pai não-ausente, um tutor, um criador de morte.

    Tinha passado ao longo da vida por momentos muito mais conturbados e esse sentimento nunca o havia atingido, pondo em prática esses sábios ensinamentos. Não seria agora que iria ter medo fosse do que fosse. Estava aparentemente bastante treinado e era importante e valioso demais para ser invadido por essa vulgaridade mórbida chamada dor. Ou não se chamasse Bill Gates e fosse o grande profeta do nosso tempo.

    Quantas pessoas eram ouvidas e tidas em conta acerca do curso do mundo?

    Sabia também da artificialidade em que o estado actual do estranho planeta se encontrava, e da importância que isso tinha para os seus “negócios”.

    Seria essa a razão da sua angústia?

    Em principio nada lhe escapava. Estava sempre a par de todas as novidades. Haveria afinal mais marés que marinheiros? Por norma controlava tanto uns como outros. 

    Estariam lá por cima a esconder-lhe alguma coisa? Sabia que alguma casta o achava um totó, embora nunca ninguém tenha tido a frontalidade de o dizer, muito menos o desprezível Elon Musk.

    Mal pensou nisso, foi imediatamente invadido por um suor, ainda mais frio que a sua casa. Não estava a conseguir aplicar a filosofia habitual para contrariar a aproximação da dor.

    Mas a verdade é que alguma coisa se estava a apoderar cada vez mais de si, começando até a ofegar. Chegou mesmo a questionar-se se teria oxigénio suficiente para mais um dia de árduo trabalho que se avizinhava na Fundação.

    Qual fundação? Seria a própria fundação mais um holograma, uma mentira, uma historieta

    montada para iludir o terceiro mundo? Gracejou para com os seus botões de pijama. Estaria a perder o tino?

    Demasiadas dúvidas estavam a deixá-lo deveras angustiado.

    Ilustração: Ruy Otero

    Levantou-se e foi beber da sua água, uma água a que muito pouca gente tinha acesso no mundo, era cristalina o suficiente para que, só de olhar, acalmasse qualquer um, como que por magia. Era uma água que não vinha de uma nascente qualquer. Nem ele mesmo conhecia a sua proveniência.  

    Mas não, a água mágica não teve o efeito desejado. Nem pelo olhar, nem pela ingestão.

    Chamou por Melinda, embora soubesse que ela não estava. Já não estava há muito tempo. Talvez nunca tenha estado mesmo.

    Estaria Bill sozinho no mundo e não o sabia?

    Lembrou-se do enorme Charles Dickens e da necessidade da moral e sentido nas histórias. Estaria isto tudo a querer dizer alguma coisa? Demasiadas perguntas sem resposta estavam a deixá-lo cada vez mais fora de si.

    Pensou em telefonar ao Doutor Johnson, médico amigo de uma vida e que sabia de muitas coisas que Bill também sabia, mas ultimamente achava que o Doutor Johnson também andava esquisito, mas de uma forma esquisita.

    Ainda mais esquisita.

    Na última vez que estiveram juntos falou de Saturno desnecessariamente, facto a que ninguém ficou alheio na última reunião secreta.

    O Doutor Johnson estava a ficar velho e não percebia os novos contextos, a nova inteligência, as novas atmosferas que estavam a ser desenhadas, tinha qualquer coisa de bafiento, não entendia esta recente filantropia, embora fosse ou tivesse sido um grande médico, sem dúvida, mas Bill não confiava em quase ninguém.

    Estaria a ficar velho, e como acontecia a toda a gente, isso começava a perturbar-lhe o sistema nervoso de certa maneira?

    Mas Bill não era toda a gente.

    De morte percebia ele, isso estava bem estudado, agora quanto à morte de células já tinha mais dúvidas, sabia por intuição que as células muitas vezes desenvolviam comportamentos poéticos. Tomava os químicos certos para contornar esse problema ou essa vicissitude. Nunca duvidara disso, pelo menos até àquele dia.

    Bill tinha medo da poética.

    Era o seu maior medo.

    Não gostava de não ter controle sobre si, sobre o que fosse. Nascera para mandar.

    Andaria Bill porventura enganado?

    Apenas por estar a questionar-se desta forma, já se sentia doente. Era como se coabitassem dois Gates num mesmo Bill, ao ponto de começar a sentir tonturas e náuseas.

    Ilustração: Ruy Otero

    Sabia que tinha uma casa inteligente, mas não assim tanto, ainda havia muito para evoluir e não seria certamente a sua casa com as suas casas-de-banho hiper inteligentes e sustentáveis das quais se orgulhava muito, que lhe resolveriam o problema das tonturas. De que serviria uma casa daquelas se o espírito baqueasse…

    Lembrou-se do Steve que também foi desta para melhor fora de tempo, sim desse Steve que ele tanto odiara e invejara ao longo da vida, desse Steve que tinha melhor gosto que ele, que era adorado como se fosse uma rock star e que não tinha medo de calçar Asics Tiger de corrida hiper coloridas, contrastando com o minimalismo Calvin Klein. O mesmo Steve que o tinha ofendido directa ou indirectamente vezes sem conta, ao ponto de o fazer chorar nalgumas situações.

    Não estava a perceber bem porquê, mas devido à fraqueza momentânea daquele despertar violento e anormal, lembrava-se agora do Steve que muito trabalho lhe havia dado. O que é que aprendera com Jobs que lhe valesse agora? 

    Nada, concluiu e isso até lhe trouxe algum conforto momentâneo.

    De que lhe serviria o cinismo astuto que aprendera com o homem da maçã num momento tão fora de controle como aquele?

    De nada.

    Teve de sentar-se no sofá para não sucumbir ao desmaio eminente. Estava sozinho e não encontrava a porta do quarto devido às tonturas que apareciam como se fossem o prato principal do dia. 

    Uma semana antes tinha dado várias entrevistas a umas cadeias de televisão que estavam “ingenuamente” loucas para saber o que o filantropo mais filantropo do mundo achava da terceira guerra mundial que o mesmo previra, da nova pandemia que o mesmo anunciara e quais os seus prognósticos que imaginavam grande prejuízos para as consequências das alterações climáticas que já por aí andavam e que o próprio também previra, tendo no entanto sempre uma solução.

    E agora estava ali na cama, como que abandonado a si próprio, entregue à sorte.

    Algo não estava a encaixar no guião.

    Seria culpa dos guionistas? Seria ele apenas o produtor, sabendo que qualquer Goldwyn Mayer tinha o seu fim como toda a gente. O pai não lhe ensinara isso.

    Questionou-se.

    Ora, um profeta não pode ter dúvidas nem tonturas…. Pensou.

    Estava o mundo a sofrer com as suas sábias previsões, portanto, não seria possível estar assim de rastos. Um profeta não hesita. Mas então que fazer?

    Ilustração: Ruy Otero

    Seria Bill um profeta a sério? Teria o mundo a possibilidade real de ter profetas, ou estaria o planeta a ficar refém da estupidez generalizada?

    Estaria a bola-mundo às voltas sem rumo, assim como o seu estômago? A Inteligência Artificial estava a fazer raccord com a estupidez natural?

    Encontrou finalmente a porta certa e Bill voltou para a cama. Ao fim de uns terríveis minutos sem segundos voltou a adormecer, cheio de dúvidas.

    Sonhou com flamingos a saltitar com graça e em harmonia sobre verdes pradarias em croma, invadidas pela luz suave do amanhecer californiano. 

    Quando acordou novamente, percebeu que alguma coisa continuava errada.

    Já não se sentia tonto, nem agoniado, mas sentia-se anormalmente leve.

    Leve demais, como se não tivesse peso.

    Talvez tivesse o peso de uma conspiração.

    Talvez o mundo fosse só e unicamente uma grande conspiração contra o próprio mundo. Uma auto-conspiração. Parecia que alguma coisa estava a chegar ao fim mas desta vez, Bill não tinha solução para o que aí vinha. Até parecia que já não estava cá.

    Era esquisito mesmo, (os americanos dizem weird. Toda a gente diz weird).

    Já na casa de banho percebeu que o espelho desaparecera do sítio, mas da janela continuava a ver-se uma imensa pradaria cheia de pássaros e árvores ainda sem denominação, de uma beleza refrescante e acolhedora, embora não tivessem uma forma comum e reconhecível pela biologia.

    Bill Gates imaginou-se a voar, mas depois voltou a si e conseguiu encontrar a espuma da barba.

    E depois desmaiou novamente.

    Não se percebia bem. Tudo começava a ter a forma de um pesadelo.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


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  • Os nove justos sodomitas e um funeral

    Os nove justos sodomitas e um funeral

    Deus escolheu Abraão como patriarca de um povo para, através da prática da justiça e da rectidão, seguirem o Seu caminho. Entretanto, por portas travessas, soube o Senhor que as perversidades em Sodoma e Gomorra se agravavam em extremo. Enviou, portanto, dois mensageiros em averiguações de conduta, decidido a exterminar aquelas pecaminosas cidades se se confirmassem os clamores que Lhe haviam chegado.

    Dúvidas não tinha Deus sobre o remédio para as perversidades, mas vacilou numa questão: “Ocultarei a Abraão o que vou fazer?” Decidiu contar-lhe. “E será que vais exterminar, ao mesmo tempo, o justo com o culpado?”, objectou Abraão, com olhar exprobratório.  “Talvez haja cinquenta justos na cidade; matá-los-ás a todos?”, continuou. “Longe de ti proceder assim e matar o justo com o culpado, tratando-os da mesma maneira! Longe de ti! O juiz de toda a Terra não fará justiça?”, concluiu, inquisidor e censor em simultâneo.

    Sodoma e Gomorra em chamas , pintura de Jacob de Wet II (1680), exibida no Hessisches Landesmuseum Darmstadt (Alemanha).

    Deus pôs a mão na consciência – força de expressão, porque não a tem; pelo menos escasseiam provas da Sua existência, da mão. “Se eu encontrar em Sodoma”, garantiu a Abraão, “cinquenta justos perdoarei a toda a cidade, por causa deles”. Abraão atalhou então: “E se faltarem cinco, destruirás toda a cidade, por causa desses cinco? Que não, prometeu Deus: “Não a destruirei, se lá encontrar quarenta e cinco justos”. Abraão aproveitou a onda: e se fossem quarenta justos apenas? Deus assegurou-lhe que pouparia a cidade. E se fossem apenas trinta justos, questionou Abraão. Deus condescendeu em isentar os culpados se porventura houvesse esse pequeno número. E vinte? Idem, disse-lhe Deus.

    Abraão sabia estar a esticar a corda da paciência divina. E assim, asseverando que não falaria “mais do que esta vez”, ponderou que, talvez, em Sodoma e Gomorra não se encontrassem mais do que dez justos. Complacente, o Senhor afiançou-lhe que, em atenção a esses dez justos, não destruiria a cidade. “Terminada esta conversa com Abraão, o Senhor afastou-se, e Abraão voltou para a sua morada”.

    Nessa noite, ao longe, ao fundo do vale, em Sodoma, tristes e contemplativos, Néfeb, Elisafan, Gérson, Gamaliel, Abidan, Surichadar, Paguiel, Chediur e Ailézer velavam o corpo de Natanael, fulminado horas antes por ataque cardíaco.

    “Morreu um homem justo”, lamentou-se Abidan.

    “Como nós”, acrescentou Elisafan.

    “O Senhor, na sua inalcançável sapiência e justiça, chamou à sua presença o nosso irmão Natanael”, aditou Néfeb.

    brown stick with fire during night time

    “O Senhor teve, por certo, um insondável motivo para o retirar da nossa presença”, disse Chediur.

    “Somente nos resta continuar a nossa vida proba; o Senhor nos recompensará”, consolou-se Gérson.

    “Que possamos todos ser tão rectos e fiéis quanto foi Natanael”, declarou Gamaliel.

    “Que a sua alma encontre a paz na eternidade, como a sua vida a trouxe para nós”, sustentou Surichadar.

    “O vazio que nos deixa em nossos corações será preenchido pela memória da sua eterna boa acção”, afirmou Paguiel.

    “O Senhor, em sua infinita justiça, saberá amparar-nos nesta hora de dor perante a perda de um justo”, finalizou Ailézer.

    Então, no dia seguinte, erguendo-se o sol sobre a terra, uma chuva de enxofre assolou os vales, dizimando gado, a vegetação e os habitantes daquelas cidades, incluindo os nove justos de Sodoma e o frio cadáver de Natanael.


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  • All That Jazz, o espectáculo tem de continuar e outras coisas do tipo

    All That Jazz, o espectáculo tem de continuar e outras coisas do tipo

    Ao fazer zapping na plataforma Filmin, choquei de frente com um filme que já tinha visto há muito tempo intitulado All That Jazz. Tinha uma fugaz boa impressão, mas lembrava-me de muito poucas cenas. E, então, vi-o novamente.

    Surpreendeu-me, e, como acho que, numa certa perspectiva, tem os elementos para uma pertinente interpretação à luz dos nossos dias, fiz o trabalho de casa e decidi escrever.

    Se eu fosse dono de um cinema de reposições como ainda vai havendo, considerando também o Cinema Nimas, último bastião resiliente de cinema em salas com grandes ecrãs em Lisboa, seleccionava este filme para estar em cartaz uns tempos.

    Iria trazer certamente estilo à cidade porque antes os cinemas eram também os jardins das cidades. 

    All That Jazz é um filme de Bob Fosse que estreou em 1979 e ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes ex aequo com Kagemusha – A Sombra do Guerreiro, de Akira Kurosawa em 1980.

    É um filme magnífico, posso jurar pela alma do cinema.

    Bob Fosse foi dos realizadores mais singulares do sistema mainstream norte-americano, mesmo que possa não ser considerado como tal por alguns críticos mais radicais ou puristas e até ser visto como um intrometido que veio do teatro musical, constando na sua filmografia apenas quatro longas-metragens, entre as quais Cabaret, que recebeu um total de 10 indicações ao Oscar (vencendo oito delas), detendo o recorde de obra com mais prémios da Academia para um filme, que não venceu o Oscar de Melhor Filme.

    Casting 1#

    Fui ver o que alguns sites diziam do filme e aqui transcrevo o que o site agregador de avaliações Rotten Tomatoes diz: 87% das 46 avaliações dos críticos são positivas, com uma classificação média de 7,6/10.

    O consenso do site diz: O diretor Bob Fosse e a estrela Roy Scheider estão no topo neste drama de palco deslumbrante e auto consciente sobre um diretor-coreógrafo obcecado pela morte.

    Vale o que vale.

    Este é mais uma daquelas longas-metragens em que, não obstante ter 45 anos, podemos sempre encontrar traços da actualidade, sobretudo pela forma como teatro, cinema, vida, vida real, espectáculo, dança, showbiz, e autobiografia se misturam, parecendo tratar-se de um convite muito sério (mas a brincar) para se entender o espírito tempo em que foi produzido e também o que haveria de chegar, com algo de premonitório, até atendendo à esquizofrenia latente que navega por lá, que com o passar do tempo mais a continuação do Plano Marshall, no Ocidente, passando pela inevitável queda do Muro de Berlim, só teria tendência para piorar, no que à psicose diz respeito.

    O Directório de Saúde Mental com os seus excessos em conluio com a indústria farmacêutica, são disso exemplo para a construção de outros muros que, entretanto, apareceram e não são para aqui chamados.

    Se há coisa em que Bob Fosse não falhou, e talvez não fosse difícil, foi na premonição da sua própria morte por insuficiência cardíaca, que veio a acontecer algum tempo depois aos 60 anos.

    Premonição? Morte?

    Toda a arte, metaforicamente falando, que se envolve subtilmente com o tempo, terá de arriscar alguma coisa quanto à sua expansão no futuro que nunca estará privado de História e a morte é sempre o melhor dos temas, quanto a mim. Pois este filme vive da morte, como não poderia deixar de ser…  

    Mas aqui, nestes milhões de fotogramas é-nos transmitido por outro lado, que o tempo é de espectáculo permanente e que vida e morte, ficção e realidade, podem estar a querer dizer que são água da mesma fonte, integrados numa cacofonia delirante armadilhada por todo o tipo de “redes sociais” e intrigas malignas, dignas da realidade actual, que não é mais que uma continuação natural das outras redes e de outros tempos. 

    Sim, sim. O digital é o prolongamento do dedo.

    Está tudo ligado e desligado ao mesmo tempo. Neste estranho e atípico filme é nos dito que a vida é aquilo que tem de ser, e só vivendo no sonho ou na imaginação é que existem possibilidades salvíficas.

    Casting 2#

    Este filme polvilhado por anfetaminas, parece uma longa selfie feita por alguém que sabe filmar e dançar. É um filme-slalom que está constantemente a ver-se ao espelho. Ou mesmo pode tratar-se de um filme-espelho, para ser mais preciso, ainda que toda a arte deva espelhar, nem que seja espelhar-se a si mesma, como também acontece nesta película, uma vez que não deixa de ser uma obra com tiques pós-modernos, já que mantém alguma sinuosidade kitsch típica desse mundo colorido e stressado, o que até lhe fica bem e na altura recomendava-se.

    Como sintoma, este filme fechava o fim de um ciclo de musicais que alimentaram e sustentaram alguma Hollywood. Seria o último musical indicado ao Oscar de Melhor Filme até que A Bela e o Monstro da Disney fosse indicado em 1992, e foi o último musical live-action a competir na categoria, até Moulin Rouge de Baz Luhrmann em 2002.

    É contemporâneo de A Febre de Sábado à Noite que imortalizou John Travolta e se tornou filme de culto, embora nada lhe deva, sendo muito mais profundo e arty, que a sobrevalorizada fita de John Badham.

    Neste estamos sempre à espera de que o espelho parta e com ele o próprio elenco (técnicos e actores) que estão por lá reflectidos, como se isso fosse coisa pouca. No outro não há espelhos humanos, aqueles que interessam, e os que há, estão instalados nas bolas refletoras das discotecas e clubes, ou servem apenas para John Travolta se pentear enquanto se reflete neles, não trazendo nem expondo a fractalidade da qual muita arte se alimenta. Aqui, a suposta falsidade e futilidade das coreografias e canções, ajudam a decalcar o mundo profissional e os seus inerentes dissabores. Mas todas as salas de ensaio naturalmente têm um espelho. Será a vida uma longa e interminável sala de ensaio com um espelho a olhar para nós?

    The show must go on, n´est pas?

    O mundo é um espectáculo, e aqui não deixo de citar e invocar, mesmo que o realizador não o tenha lido, (não sabemos), o livro de Guy Debord intitulado A Sociedade do Espectáculo, de 1967 e que acertou em cheio no desenlace para o admirável mundo novo ao qual a sociedade se sujeitou, sem que alguém disso duvide, pode é ser bom para alguns. E mau para outros, como sempre acontece em sociedades divididas. Chamou-se a isso democracia.

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    Bob Fosse foi dos principais encenadores-coreógrafos da Broadway nas décadas de 50, 60 e 70, e um grande viciado em anfetaminas, sexo, cigarros e Dexedrine, já para não falar de ser um workaholic de primeira, aspectos que o filme autobiográfico realça bem, pelo menos o seu alter ego Joe Gideon está sempre em zona de perigo, ostentando permanentemente um Camel ao canto da boca como um cowboy solitário e aventureiro que tem a morte à sua espera no fim da linha e o show time na ponta da língua no inicio do dia, repetindo-o várias vezes ao longo do filme, mas sempre filmado e editado de formas diferentes ainda que sempre de frente ao espelho da casa de banho.

    O próprio filme, é um excesso, caracterizado pela montagem cheia de ritmo e cortes rápidos, trazendo daí flashbacks e flashforwards necessários para a compreensão da narrativa e para a sensação de pesadelo e desespero light que o filme parece pretender criar, percepcionando um certo cansaço, mas também um divertimento ligeiro ao mesmo tempo, acompanhado sempre de movimentos de dança e de música entretida, típica daquele género de espectáculos no qual  todas as personagens estão envolvidas.

    Era frequente naquela época abusar-se um pouco de efeitos como o de fade in/fade out, ou sobreposições e outras distorções visuais e/ou sonoras. All That Jazz peca um pouco por isso. Talvez seja também misógino já que tudo circula à volta de Scheider, e não deixa de ser verdade que as mulheres podem aparecer como objecto do seu vício, apalpando as enfermeiras na cama do hospital sem a sua permissão, por exemplo. À luz dos dias de hoje com cancelamentos e auto-censura, não sei se o filme aguentava num cinema sem umas sprayzadas de tinta nos cartazes. Quase me sinto obrigado a dizer isto, embora o filme, seja como for, o faça com arte e criatividade e não creio que veicule uma apologia de masculinidade tóxica. 

    A narrativa desloca-se pouco do mundo do espectáculo em que o jogo está mais legitimado e é sobretudo dado um mergulho profundo nesse mundo, por alguém que caiu desde cedo no caldeirão do showbiz.

    Nesse sentido, Bob Fosse torna-se único, fundindo com realismo o cinema e o espectáculo como se nos tivesse a dizer que se fosse bombeiro só faria filmes sobre incêndios, mas auto-indulgentes e negativos, ou em parte.

    Mas o argumento para dar contraste e mesmo paradoxo visual e narrativo, acaba também por magistralmente envolver o corpo clínico que mais tarde aparece como elemento salvador dos excessos de Gideon em ambiente hospitalar, e talvez seja essa a grande novidade conceptual apresentada, fazendo confluir dois universos completamente dispares, ou talvez nem tanto…

    É também um filme feito de luzes e de lantejoulas com chapéus de coco e cadeiras a voar por todo o lado, a darem-nos permanentemente a convicção de que a vida não só é um espectáculo ainda que triste, como também um cabaret.

    Bob Fosse fez apenas quatro filmes, mas umas dezenas de encenações teatrais e musicais pelas quais foi inúmeras vezes premiado. E em pelo menos três obras cinematográficas, retratam-se pessoas que existiram, não só no mundo real, como também no cosmos das Broadways norte-americanas andando em torno, como no caso de Star 80 (o seu ultimo filme), do destino trágico da modelo playmate Dorothy Stratten que estava envolvida com o realizador Peter Bogdanovich (no filme tem outro nome), sendo este e Lenny, dois biopics que expõem os perigos e as perversões do mundo do show business, que o próprio tão bem conheceu, e cujas consequências viveu na pele. 

    Dancing scene 2#

    Parece dizer-nos também sem grande lamento, que em tempos freneticamente instáveis de esquizofrenias paradoxais universalmente expandidas e fragmentadas, num mundo globalizado e americanizado, justifica-se pôr o dedo nas feridas abertas de um mundo deprimente também gerado pelo excesso e pela sua velocidade imparável, alicerçado em cidades sujas como a Nova Iorque daquele tempo pré Giuliani, que dizem tê-la “limpo” anos mais tarde, com métodos dúbios e obscuros de tolerância zero. Como se a asseptização vindoura não trouxesse ainda mais lixo, mas isso são mãos para outro piano, como dizem os eslovenos.

    A série Fame também contemporânea deste filme e que retrata o mundo das artes cénicas a partir de uma escola, mostra uma Nova Iorque que já não é a do sonho americano, parecendo mais um pesadelo, ilustrada pela crueldade, dureza e competição a que os artistas se submetem na tentativa de ganhar um lugar ao sol.

    Esses tempos cinematográficos e televisivos mostravam cada vez mais a neblina, e isso era muito patente em Hill Street Blues, uma série televisiva daquele período com grande êxito mundial, em que se acompanhava o dia a dia dos agentes numa esquadra de polícia.

    Nova Iorque era viciante e viciosa e realizadores como Jim Jarmush que lá viveu nessa altura, disse tratar-se do melhor sítio do mundo para viver, ainda que fosse das cidades mais perigosas do ocidente na década de setenta e oitenta.

    Essa Nova Iorque carismática com cheiro de vão de escada e muito frenesim impregnado de adrenalina estão muito presentes em All That Jazz, embora seja ilustrada mais pelos personagens e as suas inerentes fragilidades que pela visão da rua. Sente-se o lixo e o crime sem se ver, cheira a comida exótica fast food por todo o lado como em Blade Runner feito uns anos depois. E ambos os filmes têm semelhanças na forma como a morte e o medo aparecem e mergulham na metafísica, mas Gideon jamais poderia ser um replicant, para aproveitar o balanço da citação ao filme de Ridley Scott.

    Este All That Jazz não deixa de ter alguma violência contida, mas bem expressa por exemplo nas incapacidades técnicas e criativas dos bailarinos e na manifesta dúvida existencial permanente em Gideon, realçando assim a intransigência conhecida para se ser bem sucedido no mundo do showbiz.

    A dúvida e a sua inerente violência psicológica são um elemento que acompanha o filme pouco contido, algo lacónico, cáustico, penetrante, confrontante, e até imperativo.

    Esta longa metragem atípica confere visibilidade ao invisível através das percepções e interpretações sensoriais, emocionais e até intelectuais dos actores, resvalando um pouco em Cassavetes, já que era um dos realizadores mais interessantes e experimentais do cinema norte-americano e que ainda influenciava parte do cinema, sobretudo o europeu, germinando nas personagens processos mentais imaginativos, cognitivos, e até reflexivos, constituindo-se como veículo de auto-representação de um mundo desconhecido para a maioria, tendo conhecimento apenas como espectadores mas sem acesso ao seu background que não era tão feliz como os media faziam crer nas revistas.

    Dancing scene 3#

    All That Jazz funciona como um canal de expressão, comunicação e conhecimento, e responde de lâmina afiada cortante com solidez, objectividade e contundência a um mundo que mergulha por vezes na crueldade e é cada vez mais escravo e servil do gosto dos espectadores e produtores. Gideon sabe disso.

    Fosse sabe disso. Até eu disso sei.

    É, pois, um meta-filme, ou um meta-espectáculo dentro do filme que acaba ele mesmo por instalar-se definitivamente num hospital, fazendo confluir o mundo clínico e frio com o mundo espectacular das cores e das coreografias.

    Essa acidez com vontade de se alcalinizar, é sem duvida um dos pontos centrais do filme, trazendo singularidade ao mundo asséptico da bata branca, fazendo lembrar algum Fellini, (Oito e Meio de certeza, ou mesmo Ammarcord, arrisco eu), obras nas quais o tempo parece ter compactuado com o os 24 fotogramas por segundo, andando para trás e para a frente sem tropeçar, de forma a mostrar-nos a cabeça e os pensamentos por vezes fragmentados, por vezes claros, dos protagonistas, dizendo que aquilo que estamos a assistir vive ao mesmo tempo dentro das suas mentes.

    Em Fellini e Fosse há sempre uma vontade intrínseca de ser cinema próximo da vida, sem o realismo muitas vezes associado, ou então traduzindo uma realidade delirante, e aí sim realista, porque a própria vida também ela pode ser excessiva, e sendo assim, mais uma vez podemos viajar no tempo, e parar no presente, num contexto em que as ciências médicas têm tido um protagonismo pouco científico e a esquizofrenia generalizou-se com o fim anunciado do jornalismo e sabemos lá se do cinema.

    All That Jazz não deixa de ser um filme íntimo e perturbador, é a cabeça de Roy Sheider que transporta toda a emoção ou a carpição sofrida e introspectiva da aridez de solidões, desamores, frustrações, e até incompreensões, fazendo com que cada um de nós se identifique mais ou menos com a confissão vulnerável do autor que vai dialogando ao longo do filme com uma espécie de imagem feminina interpretada por Jessica Lange, pueril, bela e branca, fazendo acreditar por vezes ser a morte disfarçada de anjo, ao contrário da morte representada em Sétimo Selo de Bergman, por um cavaleiro vestido de negro e com uma máscara branca. Um anjo exterminador.

    Rehearsal

    Sem dúvida que All That Jazz está também imbuído de fé e crença, mesmo que alimentadas pela falsidade do mundo do espectáculo, que precisa de acreditar no teatro da vida para ser eficaz nas suas deambulações tanto intelectuais como emocionais, estando sempre à frente do olhar e da acutilância dos produtores para ganhar dinheiro, tentando passar por cima das fraquezas humanas, e das pequenas falhas de carácter, marca estúpida dos humanos.

    Esta película está sempre a ver se a luva serve na mão, usando palavras despidas, perspicazes e fortes de nos arrepiar a pele pela crueza e até pelo humor cáustico vindo da boca do actor que interpreta o stand-up comedian e que aparece quase sempre dentro de um monitor da sala de visualização enquanto parte integrante de um filme que Gideon anda a acabar, autocitando-se uma vez que já realizara anos atrás, Lenny, uma longa metragem a preto e branco que retratava a vida do cómico e trágico Lenny Bruce com Dustin Hofmann.

    All That Jazz é uma esponja auto-biográfica do autor. Absorve, processa e escorre, dá ideia que o copo foi enchendo com o passar dos tempos que imaginamos muito preenchidos enquanto observador de uma realidade mais abrangente que a da sua vida no trabalho, na família e nas mulheres, carregada de todo o tipo de excessos. É uma obra com sangue, suor e lágrimas onde o fantasma do Vietnam e dos filmes de guerra dessa época excessiva paira, mas talvez mais pelos fantasmas cinematográficos do que pela realidade do filme que andava preocupada com outros negócios. 

    É o filme que Kubrick disse ser o melhor filme que já tinha visto, pelo menos até à época, o que é uma excelente carta de apresentação e já agora o realizador de Shinning é citado numa das cenas a propósito… De filmes.

    Arrisco mais uma vez fazer uma analogia com o nosso presente pela necessidade de encontrar uma válvula de escape que ali é representada pela imagem da mulher e hoje é trazida pela cultura new age mais uma vez com Yogas e Krav Magás, passando pelos spas que jorram pelos ginásios, onde o suor é outro e as lágrimas vão secando ao ritmo de outra musica, iludido que está o publico de apaziguamento, tanto pelo controlo da ansiedade, como pelo controlo da violência intrínseca, com a tentativa de dar murros na mesa às incongruências do presente e incertezas do futuro que lhe (nos) entram pelos olhos dentro no quotidiano, e não podem, e não devem ser passivamente ignoradas.

    Uma palavra também de apreço a Roy Scheider que até aí era mais conhecido por filmes onde fazia de duro como French Connection, ou pelo grande sucesso comercial Jaws, realizado uns anos antes por Spielberg. Mas o seu desempenho mostra capacidades ecléticas bastante assinaláveis dando sempre uma energia, um entusiasmo e paradoxalmente um desgaste credível à personagem. Supostamente Gideon está sempre sobre o efeito de drogas e Scheider nunca cai no overacting em que muitos caíram em filmes limite do género, embora o argumento peça que estejam na fronteira subtil, tanto o actor, como o realizador e a personagem, ao mesmo tempo, e aí Roy Scheider é exímio fazendo de todos e talvez até de si mesmo, como é comum nos bons actores que têm coisas a dizer não se ficando pelo exibicionismo da técnica. 

    Queria terminar com uma cena do filme:

    Gideon está na maca dirigindo-se para a sala de operações. Acompanham-no de um lado a ex.  mulher e mãe da filha, e do outro a actual namorada. Olha para a primeira e convicto de que pode sucumbir na perigosa operação ao coração, diz: Se morrer peço já desculpa por todo o mal que te fiz!

    Ela chora. Depois Gideon olha para a namorada e diz: Se continuar a viver, peço já desculpa por todo o mal que te vou fazer!

    Ela ri

    Esperemos é que o cinema não sucumba na mesa de operações, por onde tem sido visto ultimamente, estando a precisar de uma válvula cardíaca nova para contrariar a sua morte anunciada.

    Mas pronto… All That Jazz continua a respirar sem a ajuda da máquina.   

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • É música o dia inteiro

    É música o dia inteiro


    Era muito cedo, estava frio e o guri cabeceava de sono.

    – O teu corpo pede cama – disse o avô. – Aí, tu falas para ele: moleza, não; calorzinho, não!

    Quando saíram para o pátio, a frialdade e a escuridão fizeram com que o menino estacasse. No fundo do pátio, além da cerca de arame, ele viu um traço vermelho na base do céu.

    – Vamos para o meio do pomar – disse o velho.

    A tree filled with lots of oranges under a blue sky

    Lá, entre as goiabeiras e laranjeiras, a escuridão era mais fechada. O neto sentiu um pouco de medo, teve até vontade de chorar, mas engoliu em seco e concentrou-se na figura do avô: uma mancha mais escura no meio daquele negrume.

    – Presta atenção!

    Viu que o velho se curvava e espalmava as mãos no chão gelado e que, a seguir, com um movimento ágil, jogava as pernas para trás.

    – O nome disso é apoio de solo.

    Interessado no que fazia o avô, o menino agachou-se. Percebeu então que o corpo dele, reto como uma tábua, subia e descia, movido apenas pela força dos braços.

    – Faço vinte, no mínimo. Mas, quando me irrito com os meus braços, quando eles fraquejam, dou uma ordem: mais dez!

    O piá esfregou os braços enregelados. Seus olhos correram pelo negror que o circundava. Teria algum bicho pendurado naqueles galhos molhados? Tremia de frio, seus dentes chacoalhavam.

    As juntas dos braços do velho crepitavam.

    elderly, hands, ring

    O vovô vai se desconjuntar, pensou.

    – Agora é a tua vez – disse o avô, ofegante, depois de pôr-se em pé.

    – O quê?

    O velho soprou forte para colocar a respiração em ordem.

    – Faz como eu: mão na frente do peito, corpo espichado.

    Com movimentos delicados, o avô ajudou o neto a espichar-se por cima do chão úmido.

    – Tu não precisas atingir a perfeição no primeiro dia. Tu até podes te retorcer como minhoca em areia quente que, depois, aos poucos, tu pegas a feição.

    O garoto fez dois movimentos incertos, sinuosos.

    – Faz mais um! – ordenou o avô.

    – Não aguento mais.

    – É por isso mesmo. Teu corpo tem que aprender. Quem manda é a força de vontade. O corpo só tem que obedecer.

    O menino moveu de leve o corpo.

    – Por hoje, está bom! Te levanta!

    Um galo cantou ao longe.

    – Agora, vou te mostrar o inferno – disse o velho e se dirigiu à portinhola que ficava debaixo da escada que descia da cozinha.

    Assustado, o guri parou no centro do pátio. O avô voltou-se para ele, risonho:

    – Estou só brincando, seu pateta! Temos três peças boas aqui no porão. Vem!

    Vagarosamente, o menino dirigiu-se à porta que se abriu com um rangido de filme de terror.

    – Aqui, nesta primeira peça, fica a minha oficina.

    Cauteloso, o pequeno passou pela porta aberta. Ao sentir o ranço forte de umidade e mofo, tossiu. Uma lâmpada fraca mostrava uma peça pequena, que tinha uma bancada de carpinteiro. Não teve tempo de examiná-la porque o avô já o chamava da peça seguinte.

    – Aqui dormem os passarinhos.

    O pequeno ficou encantado com o grande número de gaiolas que havia por ali. Em cada uma delas havia um bichinho sonolento.

    – Daqui a pouco vou te apresentar a eles. Todos têm nome de gente. Vem.

    Passaram à última peça.

    – E aqui, vô, o que é aqui?

    – É o depósito, onde a gente guarda coisas velhas. Te senta.

    grayscale photo of boy having haircut

    O piá ajeitou-se na cadeira que o avô lhe indicara, diante de uma penteadeira. O espelho estava rachado ao meio. No teto baixo, por cima da cabeça dele, pairava outra daquelas lâmpadas amareladas. O chão era de cimento áspero.

    Enquanto o velho furungava nas gavetas da penteadeira, os olhos do seu neto percorriam os cantos mais afastados da peça.

    É certo que aqui tem rato, pensou. Ratos e outros bichos nojentos. Cobras e escorpiões. Talvez até aqueles morcegos que chupam sangue.

    Mergulhado nessa preocupação, não percebeu que o avô estava de pé por trás dele, empunhando alguma coisa. Sentiu então o primeiro beliscão da máquina, na base do crânio.

    – Vou arranjar um corte de homem para ti – disse o velho. – Mulher é que gosta de cabelo comprido.

    A máquina mordia e remordia.

    – Tu sabes o que é vaidade?

    – O quê, vô?

    – Vaidade? Vaidade é se considerar bonito. Um homem pode ser feio. As mulheres, não. Elas são vaidosas.

    Os beliscões da máquina doíam uma barbaridade. Discretamente, o menino limpou umas lágrimas.

    – Cabelo é vaidade. Então, a gente raspa. Além do mais, a cabeça fica livre dos piolhos.

    O guri fechou os olhos com força para evitar a saída de novas lágrimas.

    – Está pronto – disse o velho, passando a mão áspera pelo pescoço do neto. – Agora, só vamos aparar, todo sábado.

    a group of birds on a wire

    Saindo dali, entraram na peça em que se encontravam os passarinhos.

    – Eles atravessam o dia todo cantando. Se prestares atenção, vais ver que sempre tem um deles piando. Um canta melhor do que o outro.

    O pequeno se aproximou de uma gaiola. Dentro dela, viu um passarinho amarelo todo encolhido. Devia estar morrendo de frio. Tentou enfiar o dedo entre as grades para acariciá-lo, mas o bichinho recuou.

    – O canto deles vai emendando um no outro. Um para e o outro começa. É música o dia inteiro.

    A atenção do guri foi atraída pela gaiola onde havia um bichinho diferente, mais bonito.

    – Qual é o nome deste aqui, o da cabecinha vermelha?

    – O nome dele é Pablo.

     – Não! Eu quero saber é a raça dele!

    – Ah, é um cardeal – respondeu o avô. – Também chamam de galinho-da-campina, mas eu prefiro cardeal.

    O passarinho não parava de mudar a cabeça de posição, sempre observando avô e o neto, muito atento.

    – É um cardeal muito sabido. Canta uma monstruosidade! Não, na verdade, não canta. Ele assobia. Queres ver?

    O velho soprou um trechinho de música e o bichinho respondeu a ele.

    red and black bird on brown wooden surface

    O garoto sorriu. Era engraçado aquilo. Então, ele próprio tentou assobiar, mas saiu-lhe um sopro meio falhado. Mesmo assim, o cardeal respondeu a ele.

    – Pablo sabe de tudo – disse o avô.

    Os outros passarinhos começaram a cantar.

    – Que maravilha! Eles não pagam imposto para cantar. Cantam e pronto. 

    Ficaram parados ali, por um bom tempo, escutando a cantoria.

    Por fim, o avô disse:

    – Vamos subir para o café. Garanto que a velha bruxa já está nos esperando com uma xícara fumegante de veneno.

    A avó, gorducha e baixinha, acintosamente cravou as mãos na cintura.

    – O que tu fizeste com o cabelo do guri, Leovegildo? O coitadinho ficou parecendo um enjeitado, um louquinho de hospício.

    – Não te mete, Edméa! Isso é coisa de homem.

    – Coisa de homem! Isso é coisa de doido! Onde já se viu raspar um coco desse jeito? Isso aqui não é quartel.

    O avô pegou uma fatia de pão e, falando alto, saiu para o pátio.

    – Vou é cuidar dos meus passarinhos que eu ganho mais.

    A velha passou a mão pela cabeça do neto.

    – Não te assusta com o teu avô. Ele é meio maluco, sim, mas tem um coração do tamanho de um bonde. Um homem que passa os dias cuidando de passarinhos não pode ser mau. Tu não achas?

    O menino concordou com um gesto de cabeça. Não respondeu porque estava mastigando um baita naco de pão com manteiga.

    – Esse velho passa o dia em função dos bichinhos – prosseguiu a vó. – Agora, vai gastar uma hora limpando as gaiolas e botando água e alpiste para eles. Depois vai espalhar as gaiolas pelo pátio. Tu vais ver. Mais tarde, ele fica trocando as gaiolas de lugar. Primeiro, bota os passarinhos no sol. Quando esquenta, leva eles para a sombra. O dia inteiro é essa dança.

    O menino coçou o pescoço. Estava com uma comichão irritante atrás da gola do pijama.

    – Onde já se viu? Zerar o cabelo do neto com uma máquina velha. Um cacheado tão lindo! Só mesmo um velho maluco! Cada vez ele está mais maniático. Por acaso ele te ensinou a fazer ginástica?

    O menino sacudiu afirmativamente a cabeça, e pegou uma nova fatia de pão.

    – É um exagero. Garanto que faz mal para a saúde dele. Está ficando gagá. É só para se mostrar para ti. Se tu morasses aqui na nossa cidade, se não viesses para cá só nas férias de julho, ele não se exibia tanto para ti. Como é que ele não tem vergonha? Só os passarinhos mesmo para aguentar esse velho rabugento.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • Vem aí trovoada!

    Vem aí trovoada!

    A manhã acontece com a tranquilidade própria dos primeiros dias de setembro. Uma pausa entre o corrupio das férias e o do trabalho. O caminho quase deserto. A brisa fresca convida à preguiça no terraço. Um fundo azul-céu. O sol a derramar dourado sobre a paisagem. A luz a tocar ao de leve as copas verdes dos pinheiros mansos. Luminosas por fora. Sombrias por dentro. O vaivém dos pássaros a traçar linhas entre as árvores do mato e as do quintal. Os hibiscos floridos. Grandes. Alegres. Nas paredes, osgas gordas, moles, a aproveitar o que resta do verão. Um dia perfeito. Um velho passa e dá de vaia. Daí a uns minutos, outro. Aposentados. Indiferentes ao calendário. Os dias são apenas dias. O percurso diário, circular como o tempo: exercício, terapia, passeio, lugar de encontro.

    O senhor da bicicleta passa para cima e para baixo, para baixo e para cima. Dá as voltas que a idade lhe permite e que o médico recomendou. Não perde a oportunidade para lembrar às duas amigas que passam que: – Já não era para estar aqui hoje! Uma pessoa tem de se mexer.  Elas confirmam, acrescentando a importância de espairecer.  E lá vão. Elas para baixo, ele para cima. Poucos minutos depois, novamente a bicicleta. Cruza-se, desta feita, com uma senhora roliça, peito de pomba, passada lesta e ar de quem sabe coisas:

    ⎼ Vem aí trovoada!  ⎼   exclama.

    ⎼  Pois vem! ⎼   confirma ele, continuando a pedalar.

    a pink flower with green leaves

    Olho para o céu e não vejo os sinais. Também não questiono. A moleza tomou conta de mim. Continuo refastelada a observar.  Reparo como se cruzam, mas não param.  Por hoje, estão conversados. Conhecem-se bem. Sabem das vidas, das famílias, das maleitas uns dos outros. Além disso, um pouco mais adiante, um vizinho instalou um cadeirão debaixo de uma árvore e passa ali boa parte do seu tempo, garantindo que todos ficam ao corrente das novidades.

    Ocorre-me, entretanto, que há vários dias que não vejo uma  das senhoras que por aqui costuma passar. Aguardo alguém que me possa dar notícias. Mais uma vez, a bicicleta. Aceno e pergunto se sabe o que é feito  da vizinha. Conta-me que cegou. Que já não sai:

    ⎼ Não vê nadinha! ⎼ reforça.

    Está morta, penso. Tão triste!

    Um pé atrás do outro, uma pedalada depois da outra, um cumprimento, a frase que se atira sem esperar resposta: Está fresquinho!; É preciso é ir andando!; Ah, valente!; É p’rá medalha!  Provas de vida. Garantias renovadas de que ainda se está aqui. De que se é. O que importa saber se vem trovoada? Por aqui, confirma-se que se está vivo, que se vê e se é visto, que se ouve e se é ouvido. Exercita-se a certeza que se desmancha cada dia.

    a bicycle parked in front of a house

    A senhora que sabe coisas volta a passar.

    ⎼ Vem aí trovoada!  ⎼ grito-lhe.

    ⎼  Pois vem! Ê lhe disse, J’quim? ⎼ responde, olhando para o meu interlocutor.

    ⎼ Tá visto que sim.  ⎼ diz ele com um sorriso.

    Um para cima, outro para baixo.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Babel, ou os equívocos de um acordo ortográfico

    Babel, ou os equívocos de um acordo ortográfico

    Emigrando do Oriente, os descendentes de Noé inundaram a planície de Chinear. Foi a conta-gotas. Primeiro chegou Cuche e seu filho Nimerod, um valente caçador diante do Senhor; depois o primo, a seguir o sobrinho do cunhado, mais tarde o sogro do tio, pouco depois o genro do neto, e as respectivas mulheres, e tantos e tantos outros que, em pouco tempo, era tamanha a batelada de parentescos cruzados que já ninguém entendia ou percebia quem era quem em relação a Noé. Pouco importava: constituíam um povo uno e navegavam pelo quotidiano ao sabor de uma única língua.

    Havia um clima aprazível, sem alterações, a paisagem se mostrava venusta, da terra manavam gados e verduras, os homens entretendo-se em labores e muito ócio, as mulheres em desvelos pelos filhos e comidas, e os velhos gozando resplandescentes tardes de cavilhadas num chão sempre húmido de refrescantes e curtas chuvas. Harmonia, paz e sossego reinavam naquelas paragens. O paraíso terreno pós-Éden. Andavam assim todos satisfeitos em suas vidinhas, sem malquerenças nem segregamentos.

    tower, factory, headframe

    Enfim, por tudo isto, vivalma queria arredar pé daquela planície, que de arraial passara a lugarejo, de lugarejo evoluíra para póvoa, de póvoa transmutara-se em aldeota, de aldeota crescera para vilarejo. E chegando-se a vila, quis-se mais. «Faça-se uma cidade», disse Nimerod. E a cidade fez-se. Muralhas, fortalezas, casas sólidas, poisos de descanso e de ócio. E o povo viu que era coisa boa, feita apenas pela mão do homem, sem qualquer ajuda nem orientação divina. E ambicionaram mais. «Uma torre, cujo cimo atinja os céus», decretou Nimerod, aplaudido por conselheiros.

    Para isso, aditou alguém, havia de se encontrar alternativa às pedras. Nomeou-se portanto comissão adequada, task force como sói dizer-se agora, escolhendo para a liderar ancião hirsuto nos modos, mas de alva e imaculada barba, que, à quarta semana de investigações e experiências, inventou os tijolos, cozidos em fogo, e ainda um betume de asfaltos vindos mar e das fontes de água da terra de Sinar. «Assim, havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra», declarou logo Nimerod.

    Um arquitecto foi então nomeado para orientar uma grandiosa e não pouco majestática torre. Andando a obra em bom ritmo, os tijolos tão sólidos, que nem ferro precisavam, e já se alcançara os quatrocentos e sessenta e três cúbitos de altura, foi Deus servido descer à terra e, vendo aquela empreitada, vociferou: «Não gosto disto». «Mas quando os acabamentos se fizerem, vai ficar uma beleza», argumentou o arquitecto. «Não é uma questão de estética. Se principiarem desta maneira, coisa nenhuma vos impedirá, de futuro, de realizaram todos os vossos projectos», atirou o Senhor. «E qual é o problema? Se somos semelhantes a Vós, também podemos construir nesta terra sob os céus algo idêntico ao que presumimos exista nos próprios céus. Estou mesmo a conceber uma broca para, quando nos abeirarmos da porta, a furarmos para saber se é feita de barro, de latão ou de ferro», ainda replicou o arquitecto. «Pode ser útil para subirmos mais», acrescentou.

    Deus saiu do sério: «Mas que estupidez é essa?! Era o que faltava quererem-me igualar. Os humanos vão para o céu quando eu os arrebato da Terra. E ponto final nesta conversa e nesta obra. E é para já».

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    Temeroso destas divinas ameaças – até porque, após o Senhor se ter eclipsado, trovejou rijamente, e um relâmpago estilhaçou um parapeito e deslocou um andaime –, o arquitecto remeteu um relatório circunstanciado às autoridades, solicitando que, com urgência e de forma clara, lhe indicassem se o seu projecto deveria ser reequacionado.

    Horas depois, uma lacónica missiva de Nimerod chegou às mãos do arquitecto. «Em reunião de emergência, malgrado o que está em causa, e considerando as palavras do Senhor, informo que, sobre a questão em apreço, a nossa decisão é peremptória: NÃO, PARA JÁ». Portanto, assim sendo, lido o escrito, e sobretudo as maiúsculas, o arquitecto continuou obedientemente a obra, e sacou então de uma broca para furar os céus, convencido estava de o amanuense ter usado uma preposição.

    Mas não: o amanuense apenas cumprira a norma de um novo acordo ortográfico que estabelecera a supressão do acento agudo na forma verbal do presente do indicativo do verbo parar.

    Equívoco grave, como sabeis: com o barulho da broca entrando pelos céus, Deus irritou-se e tratou de confundir a língua deste povo. Os erros de construção sucederam-se, a torre colapsou, as gentes desentenderam-se e todos os descendentes de Noé acabaram se dispersando em caótica algaraviada pelos quatro cantos do Mundo, incluindo para o pequeno pedaço da Europa onde hoje ainda se fala português, e se escreve em acordo ou em desacordo com o tal acordo ortográfico…


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  • É a Oceania, estúpido!

    É a Oceania, estúpido!


    Logo após as Olímpiadas de Tóquio, em 2021, escrevi um artigo – intitulado “É a Oceania, estúpido!” – no qual afirmava uma obviedade pouco divulgada: o Continente vencedor da maior competição esportiva do Planeta era aquele formado por dois países de rarefeita população (Austrália e Nova Zelândia) e mais doze pequenas nações espalhadas por incontáveis ilhas. Agora, após os Jogos Olímpicos de Paris, vejo aquela afirmação assegurada por números ainda mais expressivos.

    Mas vamos por partes, como dizem os legistas!

    Critério burro

    O quadro de medalhas aponta as nações que capturam o maior número de galardões, estabelecendo-se a colocação delas de acordo com os ouros conquistados, depois as pratas e, por fim, os bronzes. É um critério burro, acho.

    Disse-me um amigo, José Cruz, reconhecido jornalista desportivo, que esse quadro não foi invenção do Comitê Olímpico, mas sim da imprensa. Nasceu, consolidou-se e, aparentemente, nunca ninguém se revoltou contra o fato de ser injusto.

    Pesos diferentes

    Penso que teríamos uma avaliação mais sensata, se déssemos um peso diferente a cada tipo de medalha. Exemplo: cada primeiro lugar valeria três pontos; uma segunda colocação representaria dois pontos; e uma terceira renderia apenas um ponto.

    Já existe

    Quando apresentei essa minha tese a outro jornalista, Mário Medaglia, ele me informou que, nos jogos Abertos de Santa Catarina (uma das mais fortes disputas desportivas do Brasil) a premiação vai do primeiro colocado (13 pontos) até o sexto lugar (1 ponto).

    O Brasil avança

    O Brasil, que foi o vigésimo classificado em Paris, com um total de 20 troféus, sucede a Irlanda, a décima-nona, que obteve somente. Por quê? Porque a terra de James Joyce ganhou quatro medalhas douradas enquanto Pindorama obteve só 3.

    Aplicando-se a fórmula (de pesos diferentes) que propus acima, o Brasil (com 3 ouros, 7 pratas e 10 bronzes) somaria 33 pontos. Já a Irlanda (4 ouros, nenhuma prata e três bronzes) ficaria com exatos 11 pontinhos.

    Um só ponto

    Vamos a outro critério possível: cada medalha (indiferentemente da matéria em que foi forjada) valeria um ponto.

    Assim, o Brasil (com 20 medalhas) saltaria para a décima-terceira posição, logo atrás do Canadá (27), e ultrapassando Uzbequistão (13), Hungria (19), Espanha (18), Suécia (11), Quênia (11), Noruega (8) e Irlanda.

    População

    Deixando de lado essas especulações, passemos a uma avaliação que me parece, realmente, a mais representativa do verdadeiro papel que o esporte representa na vida de cada país. Ou na vida dos cidadãos de um determinado país.

    Trata-se do critério relação medalha/população.

    EUA e China, os vencedores que não ganharam

    Os Estados Unidos, vencedores desta Olimpíada, amealharam um total de 126 prêmios. Dividindo-se esses galardões pelo número de habitantes (333 milhões) do País do Mickey Mouse, constatamos que cada medalha saiu do suor de um grupo de 2,6 milhões de cidadãos.

    Seguindo na mesma toada, a segunda colocada, a China, com suas apenas 91 medalhas, divididas pela sua incalculável população (1,4 bilhão), conseguiu um prêmio para cada 15,3 milhões de cidadãos.

    Japão

    Continuemos na mesma linha. A terceira nação mais premiada, o Japão, que tem uma população (120 milhões) entre dez e onze vezes menor que a chinesa, obteve quase que a exata metade (45) de prêmios arrematados por aquele seu (incômodo, garantem os maldizentes) vizinho.

    Explicando melhor aos ruins de Matemática: o Japão deu uma medalha a cada 2,7 milhões de seus moradores. Índice quase idêntico ao dos Estados Unidos.

    Em outras palavras, proporcionalmente, o país de Kurosawa ganhou cinco vezes mais troféus que a terra daquele gorducho, anteriormente chamado Mao Tsé Tung, que recentemente ganhou um nome horrível.

    Oceania

    Sigamos. A pequena Nova Zelândia (5 milhões de habitantes) conquistou dez medalhas. Ou seja, uma medalhinha para cada 500 mil habitantes. O mesmo ocorreu com sua vizinha, a Austrália, que (com suas 53 medalhas) deu uma premiação a cada meio milhão de seus cidadãos.

    Ou seja, proporcionalmente, australianos e neozelandeses ganharam 30 vezes mais prêmios do que seus vizinhos não tão distantes assim, os cidadãos do Império do Meio.

    No tapa

    Já nós, tupinambás, teremos que dividir, aos tapas ou aos golpes de tacape, uma medalha entre cada dez milhões de habitantes. Não chega a ser um número ruim, se observamos a China. Mas é péssimo, quando nós nos voltamos para a Oceania.

    Temperaturas decentes

    Aliás, dizem alguns que Austrália e Nova Zelândia são países favorecidos – na prática desportiva – pelo seu clima, marcado por temperaturas decentes.

    Como se sabe a vocação desportiva dos anglo-saxões é irrefutável. Inventaram quase todos os esportes, com exceção do frescobol, do futevôlei e do vôlei de praia, criados por uma “gente bronzeada” que sabe “mostrar seu valor” (como apregoa a cantiga dos Novos Baianos).

    Mas os moradores do Reino Unido não foram privilegiados no quesito clima. Isso, não. Padecem muita chuva e muito frio.

    Assim, quando me refiro a “temperaturas decentes”, estou levando em conta que há muitos países do Norte da Europa que contam com invernos que duram nove meses. E a prática desportiva por lá só pode ser desenvolvido em ginásios. Nada muito problemático para aquelas nações, em geral muito ricas, mas ao ar livre seria mais divertido e confortável.

    O detalhe do solzinho

    Para alguém nascido nas vizinhanças da linha do Equador passar nove meses por ano sem um solzinho no lombo seria uma tortura insuportável.

    Continentes

    Dos vinte países que encabeçam a lista dos mais premiados em Paris, dez são europeus (França, Holanda, Grã-Bretanha, Itália Alemanha, Hungria, Espanha, Suécia, Noruega e Irlanda), quatro são asiáticos (China, Japão, Coreia e Uzbequistão), dois são da América do Norte (EUA e Canada), dois da Oceania (Austrália e Nova Zelândia), um da América do Sul (Brasil) e um da África (Quênia).

    Quase todos são países de renda média elevada, com exceção do pobre Quênia e do desconhecido Uzbequistão (república integrante daquilo que anteriormente era conhecido como Sovietistão).

    E do Brasil, claro, que embora tenha o quinto território mais extenso, a sétima maior população e o sétimo Produto Interno Bruto, consegue manter boa parcela da sua população circulando em volta da chamada linha da pobreza.

    Lembranças

    Para comparar, vejamos os dados da Olimpíada de 2021. Nela, a Nova Zelândia, que ocupou o décimo-terceiro posto – logo atrás do Brasil – ganhou 20 medalhas. A Austrália subiu 46 vezes ao pódio.

    Cadê Cuba?

    Vale mais uma lembrança, a de uma nação americana que antigamente se destacava na competição. Há três anos, Cuba obteve 15 medalhas e acabou em décimo-quarto lugar da classificação geral. Agora, caiu para o trigésimo-segundo lugar, com apenas 9 medalhas.

    Teve, claro, melhores desempenhos nos anos em que recebia ajuda econômica da defunta União Soviética.

    a man with a flag on his back walking down the street

    O mistério

    Mas o grande mistério olímpico continua sendo o Quênia (66º lugar em PIB), dos grandes corredores de longas distâncias.

    Explicando o título

    Muitas vezes precisamos reforçar aquilo que nos parece óbvio. O óbvio ululante, como diria o nosso maior teatrólogo.  

    No caso deste artigo, recorri a uma frase – “The economy, stupid” (É a economia, idiota) – que teria sido forjada em 1992 por James Carville, na época o estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton contra George H. W. Bush para reforçar a ideia de que a economia – isso é claríssimo, patente, manifesto – tem um papel determinante em uma eleição presidencial.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • Vir de vez

    Vir de vez

                  Tinha saudades de casa. Fecho os olhos. A luz intensa atravessa-me as pálpebras. Mergulho numa paz absoluta. A monotonia por que ansiava há tanto. O som das cigarras, ondas que se desfazem num murmúrio ao encontrar a areia. Um contínuo. Som que é silêncio.  Apenas o canto das rolas marca o compasso e nega a suspensão do tempo.   A sombra imperfeita das videiras. A aragem a brincar com a minha pele, a soprar-me os pelos das pernas e dos braços: fresca, quente, quente, fresca, quente…

                  O telemóvel vibra junta da minha perna. Não queria atender, mas nunca se sabe:

    ⎼ Tou? Toninho, já cá tás, filhe? ⎼ perguntam do outro lado.

    ⎼ Estou, sim, tia. Cheguei de madrugada.  ⎼ respondo.

    ⎼ Ai, graças a Deus, filhe. Tava aqui em pulgas. Ainda deves tar cansade. Mas quande quiseres passa por’qui. Vem almoçar ca gente. Tenhe cá uma coisa p’a t’amostrar.

    the sun is setting over a grassy field

     

    A tia tem razão. Ainda estou muito cansado. Vim de carro. Já me tinha desabituado. Mas vim de vez. Parece mentira. De vez… Combinamos um almoço para sábado.

    Os tios esmeram-se.

    ⎼ Isto aqui não é à grande e à francesa, mas é à grande e à algarvia! Vá lá, toca a comer que isto quem na presta pra comer na presta pra trabalhar. ⎼ brinca o primo Ernesto, enquanto põe em cima da mesa uma travessa de sardinhas assadas.

    ⎼ Carcanholas da ria, berbigão, xarém com conquilhas, saladinha montanheira, sardinhas, panito pra pôr por baixo… Sirvam-se que disto não apanham vocês lá na França. ⎼ acrescenta.

    ⎼ Ah, pois não, mas agora já sabes que estou logo aqui ao lado. É só convidares-me mais vezes.  ⎼ respondo.

    As longas sardinhadas no alpendre dos tios. Os risos, as conversas que se misturam com os sabores, os odores, as cores, as memórias. Ouço-os, como às cigarras: doce banda sonora de verões passados.

    O Ernesto, de pano de cozinha na mão, vai enxugando uma enorme melancia encharcada.

    ⎼  O frigorífico é para melancias enfezadinhas. explica  – Esta esteve dentro do tanque desde de manhã para ficar fresquinha. A melancia quer-se grande, para dar umas boas talhadas.

    white and brown wooden house on green grass field near body of water during daytime

    Seguem-se um café e um medronho para ajudar a digestão. A tia Alice surge de dentro de casa com uma tesoura de jardinagem numa mão e uma fotografia na mão.

    ⎼ Vê lá se conheces aí alguém. ⎼ desafia-me, colocando a fotografia em cima da mesa.

    – Deixe lá ver. Tenho de pôr os óculos. – respondo.

    ⎼ Ai, filho, se já nem tu vês bem… na hei de eu tar velha… ⎼ desabafa a tia entre o lamento e a brincadeira. E eu percebo que nunca vai entender como é possível o filho da irmã já estar aposentado. Na verdade, espanta-a sempre que já esteja maior que ela.

    ⎼ Não diga isso, que a tia está mais nova do que eu. ⎼ respondo, enquanto ela, ligeira, sobe à cisterna, que já só serve como poiso para as centenas de vasos que são o seu orgulho:

    ⎼ Vou-te mandar aqui umas podas. Tens de dar um jête àquele quintal. Pôr lá umas florinhas, que morreu tudo à sede e a tu mãe tinha sempre tude chê’delas. ⎼ diz.

    Examino a fotografia. Um primeiro olhar e viro-a. Na parte de trás, esborratada e já quase ilegível, a inscrição “Ludo, 1954”. Oito mulheres e cinco crianças. Estão em pé, alinhadas. Sorriem para a câmara. Trabalhadoras das salinas. As roupas, pouco mais que farrapos. Vestidos andrajosos. Camisas que não fecham. Saias presas à cintura por cintos velhos ou baraços.  As vestes das meninas destoam das das mães. Limpas. Engomadas. Chapeuzinhos de palha. Aperaltadas para a fotografia, com certeza. Na imagem, um único rapaz. Ao contrário das meninas, está coberto de pobreza. Tem um ar sujo. Sobre o corpo, uma camisa curta. Apenas isso.

    As mulheres usam lenços por debaixo dos chapéus. Por cima, as rodilhas ajudam a equilibrar as canastras. Pés de lama. Nus. Negros até aos tornozelos.

    a chair and a table in a dark room

    ⎼ Então? Não conheces ninguém? ⎼ pergunta o tio António, enquanto arrasta a cadeira para junto de mim.

    ⎼ Reconheço a tia. Toda nova e jeitosa. Olhe para isto. Parece uma garça, aqui com uma pernoca alta e toda desempenada. – provoco-a sorridente. Ela ri-se e diz qualquer coisa que não percebo.

    ⎼ Olha, a prima Amélia. Estás aqui prima, à frente das nossas vizinhas: a Idalina, a Estrudinhas, a Marcelina.  Aqui ao lado, a mãe da Natércia e da Noélia. Elas à frente. As feições não mudaram nada.  E, se não me engano, esta é avó delas. Não me lembro do nome. ⎼ digo enquanto passo o indicador uma a uma.

    ⎼ Vangelina. ⎼ lembra a tia. ⎼ E a do lado. Sabes quem é? ⎼ pergunta.

     ⎼ A minha mãe, claro. Que saudades! ⎼ os olhos enchem-se-me de lágrimas, a garganta prende-se um pouco. Tusso e ajeito-me na cadeira.  É dia de festa.

     ⎼ Grandes senhoras! – exclamo, sabendo que o repetirão em coro.

    Lembro-me bem destas mulheres e destas crianças. Sei de cor as suas histórias. Apesar de a vida nos ter levado por caminhos diferentes, agosto foi sempre o mês do reencontro. De pôr a conversa em dia, mas também de lembrar. Repetiam todos os anos as suas histórias, como se essa partilha garantisse que o seu passado tinha realmente acontecido: a gripe espanhola que levou o pai e a mãe da Estrudinhas quando ela tinha dois anos; a guerra do Ultramar que matou o noivo da Noélia;  o marido da Ti Vangelina, que emigrou para a Venezuela e nunca mais deu notícias; o sangue vendido para pôr um teto sobre a cabeça dos filhos;  o aborto causado pelo peso do sal; a exploração; as jornas de trabalho de sol a sol; a fome que se enganava com figos secos; a penúria que obrigou os meus pais a emigrar. Também eu preciso que confirmem. Que à mesa me digam que estou certo. Que foi assim que aconteceu.

    ⎼ Oh, tia, eu sei que a miséria era muita. Mas não me diga que não dava ao menos para me taparem as miudezas para a fotografia? ⎼ pergunto.  

    ⎼ Tu até tinhas uns calçanites que te fez a avó Julinha, que Deus tem. Mas eras muito pequeno e a tua mãe não tinha tempo para te andar a limpar o rabo. Nem havia cá fraldas, o que é que pensas?  Vocês eram mecinhes, andavam per‘li uns c’os outres. Não havia cá onde os deixar. – explicou a tia. – Pareciam pilritesós saltinhes dum lado pró outre.

    ⎼ Era duro, hã…? – pergunto.

    ⎼ Era, mas a gente também se ria muito. Contávamos muita anedota. Cantávamos. Dizíamos umas asneiras p’rá gente se ir entretende. Éramos moças…Ele em havende pás sopas e pa vocês se irem criande… mas trabalhava-se muite.

    grayscale photo of Eiffel tower on top of white envelope

    Exatamente o que vejo nesta fotografia, nestes sorrisos: um misto beleza, sofrimento, força e doçura. Sorrisos abertos, francos. Sorrisos de gente feliz. Impossíveis de compreender sem conhecer estas mulheres. Não me lembro daqueles tempos em que era tão pequeno que ainda não tinha direito a calções. Para mim, elas só entraram na minha vida anos mais tarde. Mas reconheço os sorrisos. São os mesmos. Sorrisos felizes, mesmo quando as histórias dos tempos difíceis lhes colocavam um véu de tristeza no olhar. O segredo por detrás deste sorriso aberto? Acredito o sal que lhes curtiu a pele lhes temperou a alma.  Eram divertidas, bem-dispostas, naturalmente felizes ou, pelo menos, decididas a sê-lo.   

    Ao almoço pega-se o lanche. Os tios insistem que fique para jantar. Já me tinha esquecido do que significa “passa cá por casa”.  O estômago diz-me que não aguento. Que não posso ficar sentado. Decido fazer uma caminhada no Ludo. Está um final de tarde lindo. Vou até às salinas. As águas turvas dos tejos coloridas pelos azuis, rosas e dourado do céu. Manchas do branco das nuvens. Aproximo-me na esperança de ver ali resquícios do passado, mas a água já não espelha a imagem das marnotas: um bando de flamingos cruza-se com um avião que levanta voo. Os que chegam e os que partem. Pergunto-me quantos lá irão na esperança de um dia virem de vez.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Aquele (meu) querido mês de Agosto

    Aquele (meu) querido mês de Agosto

    Num destes sábados de Agosto, a RTP 2 emitiu um memorável filme de Miguel Gomes – Aquele querido mês de Agosto, de 2008, e revi-o.

    Com o passar dos anos, este filme ainda parece que ficou melhor, como se surgisse de uma boa casta cinematográfica, que com o tempo vai ganhando mais corpo e elegância (fazendo uma analogia com o vinho, e com os seus eternos segredos).

    Sem dúvida, que o tempo é amigo da boa arte.

    Ajusta-se e consagra-se nela e pode, no caso de ser compreendido, tornar-se no melhor ansiolítico para os artistas.

    De uma forma geral, os filmes de Miguel Gomes têm qualidade e são extremamente bem pensados por alguém que passou pela crítica de cinema e que se habituou a ver filmes para escrever sobre eles.

    Indubitavelmente, o cinema também é escrito, é palavra, e aqui temos um exemplo disso, fazendo, de uma forma muito sóbria, tudo encaixar em tudo, até Portugal lá está metido ao barulho, a fazer de Portugal. É um filme sobre o tempo, em que a espera e a falta de dinheiro verdadeiro ou não, contribuem e supostamente mudam a acção. Um filme que tem a urgência de ser cinema, mais do que a de agradar aos produtores. Isto podia ser a sinopse, ou mesmo a falsa sinopse, já que a longa-metragem vive dessa dicotomia entre realidade e ficção, elevando a arte a um ponto-chave, assinalado vezes sem conta por Jean-Luc Godard com as suas célebres afirmações acerca do documentário e da ficção, sendo que o ideal para o suíço é um integrar-se no outro.

    Lembro-me de outro singular filme de Joaquim Pinto Uma Pedra no Bolso –, cuja acção também se desenrola durante o Verão num Portugal específico, em Porto-de-Barcas, vila piscatória que conheço bem e onde também em tempos já pesquei imagens. Um filme talvez esquecido, que teve presença na RTP2 em Agosto, há um par de anos, mas que imaginamos o tempo a fazer o seu trabalho, para que estes fantasmas melancólicos ganhem corpo, já que alma têm de sobra, sendo mesmo essa alma a marca de uma boa parte do cinema português de autor.

    Vem-me à memória ainda Os Contos de Verão do super-francês Éric Rohmer, passado nas mágicas praias da Bretanha, em que a nostalgia e a palavra são iguarias do cardápio burguês e culto, tipicamente gaulês, como é hábito em Rohmer. Claro, há muitos outros filmes cujo calor contagia e derrete o ecrã. O Pecado Mora ao Lado de Billy Wilder é um deles e “queima” definitivamente o televisor sempre que aparece por aí, mas deste já se disse tudo e a Marylin Monroe tem direito ao seu descanso, uma vez que em vida não o conseguiu sem a ajuda de benzodiazepinas, imortalizando-se qualquer dia mais por elas do que pela sua presença nos fotogramas.

    Pessoalmente, adoro ver um bom filme de verão… No Verão. Mesmo se o céu não anda tão azul, chegando mesmo a não sair durante dias a fio dos tons cinzentos característicos desta época… Gris.

    Outra era virá, se o cinema, ao contrário de Deus, assim o quiser. A Cinemateca Portuguesa está lá para nos sussurrar ao ouvido, a doce melancolia da morte anunciada do cinema, que nunca mais chega.

    Em qualquer um destes quatro filmes que enumerei, é o amor que anda no ar, ao invés de drones. O filme de Miguel Gomes, como entidade própria que já é, percebeu que o cinema e a vida mais os sons que só existem na cabeça das pessoas sensíveis, têm mistério suficiente para não mais nos abandonarem os pensamentos. O cinema é um espírito com o qual os cinéfilos fazem telepatia. Porque o cinema também é memória, sobretudo memória futura para que a poética (seja ela qual for) nunca desapareça no meio da convulsão geral em que mergulhámos definitivamente, com guerras e ódio por todo o lado, tendo sido esta a marca destes últimos tempos bestiais.

    Aquele Querido Mês de Agosto vale e até “informa” mais do que um ano de telejornais e tem uma acção realisticamente climática sobre o espectador, coisa que a realidade vai paulatinamente abandonando, porque se transforma ela mesmo numa imitação de uma rede social.

    Neste filme ambicioso disfarçado de filme humilde, que tem a acção em terras da Beira Alta, durante o Verão, quando os emigrantes voltam para as férias e é tempo de bailaricos, procissões e incêndios, o povo não é só vítima ou testemunha, como habitualmente é tratado pelos media em geral. Aqui a realidade grita pela existência e saboreamos um documentário a fazer de ficção, senão mesmo de uma ficção a fazer de documentário, para citar o crítico Luís Miguel Oliveira a citar Godard.

    Aqui, o povo tem voz e canta a sua angústia através da lente justa e sonora do realizador e da sua equipa. Mesmo tratando-se da cruel realidade a que ninguém escapa, no qual se exalta o realismo mágico, mesmo que a ideia de terror sobrenatural parta mais de um trecho de um filme, que aparece dentro do filme, que da própria encenação de Miguel Gomes, trazendo para a sala uma preocupação estilística, participe de uma visão estética da vida que não exclui de todo a experiência do real.

    E alicerçado nesses degraus de continuidade, o fantástico filme vai cavalgando e surpreendendo por entre rituais em que até os próprios incêndios igualmente o são, como se vê nas cenas da torre de detecção e no plano dos botões luminosos no centro de controlo.

    Importante para a compreensão conceptual do filme, são travellings, como aquele em que a câmara acompanha de frente a carrinha de bombeiros com a música de Toni Carreira Sonho de Menino – a instalar-se paulatinamente na acção.

    Em poucos filmes, o som e o tratamento acústico estão tão singularmente presentes para habitar o campo narrativo, em que se ouve, mas pode não se ver, e escuta-se de “olhos bem fechados” (para citar Kubrick), devido às cinzas orgânicas que parecem sair do ecrã ou da tela. Esta é a poética do filme que arde, mas não se vê.

    A banda sonora assinalável é fundamental para o desenvolvimento das histórias fragmentadas, sobretudo da história central em que um pai, uma filha e o seu namorado-primo se relacionam, trazendo sempre novidades narrativas, até porque os próprios protagonistas fazem parte de uma banda musical que deambula pelas aldeias da zona, cantando-se e interpretando-se a si mesmos aludindo aos musicais clássicos.

    A banda sonora tem títulos como: ‘Escravo do teu encanto’, ‘Som de cristal’, ou ‘Passear contigo’, todas elas bastante reconhecíveis pelo público em geral.

    O verdadeiro e real(?) Vasco Pimentel que faz dele próprio a fazer dele próprio, dá-nos uma lição no fim da película acerca da eternidade e dos fantasmas que habitam os filmes, numa dimensão em que a imagem se apaga no som. A tecnologia desaparece perante tamanha grandeza e apenas prevalece aquilo que queremos acreditar ser a vida. A vida para lá de todas as vidas, a vida em que, como dentro dos filmes nunca nada morre. É sempre tudo a fingir. 

    Esta película não parou no tempo. Esta e outras obras cinematográficas feitas com arte, fazem, sim, parar o tempo. E como o Verão me torna melancólico, vou parecê-lo e dizer que o cinema também é amor e com ele mantenho uma relação de fidelidade amorosa ao longo dos anos, sabendo e aceitando a indústria e a sua artificialidade, e até reconhecendo a abundância de criminosos nefastos como o Harvey Weinstein que produziu filmes que hoje são autênticas elegias ao amor, como Shakespeare in Love, ainda que não seja grande filme.

    O cinema perdoa, daí a sua possibilidade de catarse. Se a vida fosse um filme, salvava-se, mesmo sabendo que o cinema foi o principal agente manipulador e transmissor de mensagens subliminares para o século XX e veículo de persuasão com sede em Hollywood. Mas a contradição é a flor e a pistola dos artistas e a realidade ganha sempre depois de vermos um bom filme.

    Ainda assim, sabemos que o cinema traz valor acrescentado e é muito mais do que isso, e esse cinema-muito-mais-do-que-isso é onde este filme se inscreve, e não será vítima do novo tecno-mundo, cujos realizadores são anónimos e não precisam de actores, podendo mesmo fabricá-los a partir da A.I. Isso não é Ser Cinema.

    Aqui o conteúdo de elementos mágicos ou fantásticos percebidos como parte da “normalidade” pelas personagens não é claro, mas existe, sim, a presença de elementos mágicos algumas vezes intuitivos, mas nunca explicados, ou mesmo a presença do sensorial como parte da percepção da realidade, trazendo uma singular distorção do tempo para que o presente se repita ou se pareça com o passado, baralhando-se cronologicamente. Como exemplo disso temos o “milagre” operado na personagem do pai do Fábio, quando fala na transformação que se deu no seu cativeiro impregnado de dor, ao cruzar-se com a Rainha Santa, feita de cerâmica, durante a procissão quando experimentava o auge da agonia, até ao triunfal cruzamento onde a dor desaparece definitivamente. Não conseguimos saber se aconteceu mesmo ou é produto do argumento ficcionado.

    Talvez pertença aos dois, e é isso que as novas tecnologias digitais inteligentes não percebem.

    Uma personagem inesquecível é o Paulo Moleiro, que não faz nada, segundo um amigo, mas todos os anos em fevereiro dá um salto da ponte para mostrar que está vivo.

    Aquele Querido Mês de Agosto é esse salto que nunca se vê.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • O magnífico Bernina Express

    O magnífico Bernina Express

    Raquel Rodrigues regressa ao PÁGINA UM com uma proposta de viagem de Inverno: Itália e Suíça através do Bernina Express, uma rota classificada como Património da Humanidade.


    Foi em Novembro de 2022 que li um post de um amigo, que como eu adora viajar e é um apaixonado por Itália. Na mesma hora, liguei-lhe a dizer que ia marcar a viagem e seria maravilhoso se as agendas coincidissem e viajássemos juntos.

    Marquei os voos de Lisboa para Bergamo, e comecei logo a preparação da viagem. Como já conhecia a imponente Bergamo, La Città Alta, cidade muralhada, com um centro histórico muito bem preservado, segui a recomendação do meu amigo e começámos o roteiro por Brescia, onde chegámos a tempo de um almoço rápido, ainda com tempo para explorar a cidade.

    Estacionámos o carro alugado no parque de estacionamento da “Piazza della Vittoria”, e daí seguimos a pé. Nesta praça nota-se o estilo racionalismo italiano, de 1926-1943, onde se localiza o Palazzo de la Poste; o Il Torrione, o primeiro arranha-céus italiano e, primeiro da Europa, construído em cimento armado. Seguimos a pé para a Piazza della Loggia, construída na época em que Brescia fazia parte da República de Veneza. Aqui encontramos o magnífico Palazzo della Loggia e a bonita Torre do Relógio. Depois, seguimos a pé pelos corredores de lojas até à Piazza del Duomo onde a Duomo Nuevo e a Duomo Vecchio se encontram e juntos fazem o postal da cidade. É obvio que a Duomo Vecchio é muito mais fascinante, em primeiro lugar por ser um edifício redondo, e depois pela histórica que carrega, com ruínas de mosaicos paleocristãos.

    Mas a história de Bréscia não termina aqui, pois remonta ao período pré-românico, com as ruínas de Brixia, o nome romano da cidade. Esta área arqueológica, a mais bem preservada do norte de Itália, reúne na Piazza del Foro e Capitolino, as estátuas de Juno, Júpiter e Minerva, um teatro romano e um santuário de século I com frescos e pavimentos do século II antes de Cristo, muito bem preservados. A joia da coroa é o Castelo Alto de onde conseguimos ter uma perspectiva fantástica da cidade.

    Final da tarde. Seguimos para Iseo, a 45 minutos de Bréscia, a cidade que dá o nome ao lago e onde jantamos, em cima do lago, numa pizzaria que muito recomendo, Leon D´Oro. Terminando o jantar ,seguimos para Pisogne, a 30 minutos de Iseo, onde dormimos as duas noites e ficávamos a meio caminho de Tirano, o ponto de partida do fantástico “Trenino Rosso”.

    Chegamos a Pisogne tarde, mas a simpatia de Bárbara e sua família fez-nos sentir que tínhamos feito a escolha certa para esta estadia no Lago Iseo.

    O B&B Alveare Sul Lago é um pequeno paraíso para “gourmands” que apreciem o conforto da cozinha e gastronomia italiana, um lugar onde nos sentimos em casa. Uma localização privilegiada com uma fantástica vista para o lago.

    No dia seguinte, tomámos o pequeno-almoço às 7 horas, e ainda não passara uma hora e seguimos viagem para Tirano. A paisagem é muito bonita, passando pelas aldeias alpinas italianas, e em hora e meia chegámos a Tirano. O estacionamento no parque é gratuito, e atravessando o túnel da primeira estação regional, encontramos a estação internacional do Bernina Express.

    Viajar de comboio é algo que se entranha, são viagens que não esquecemos, que prolongam as memórias, e esta, em particular, é quase mágica. Passámos por aldeias alpinas pintadas de branco, que contrastavam com um intenso azul do céu e as escuras colinas mais escarpadas. Garantidamente, uma das viagens de comboio mais deslumbrantes que se podem fazer.

    Sempre a subir. Partindo de Tirano, a 429 metros de altitude, passamos por Bernina a 2.253 metros de altitude. Cumes impressionantes. A carruagem panorâmica tem um fee de pagamento, mas isso vale cada cêntimo. É uma viagem incrível no primeiro comboio de cremalheira electrificado.

    Depois de duas horas e meia de cenários de cortar a respiração chegamos à sofisticadíssima Saint Moritz. Saindo da estação seguimos a pé até ao teleférico, que nos levou ao pico da montanha mais alta, almoçámos literalmente entre as nuvens.

    Descendo do teleférico, pode-se passear pelo centro da cidade no meio de um deslumbre luxuoso. As pessoas parecem, e são, simpáticas e bem-educadas. As lojas são de sonho, embora não para qualquer carteira. A estância de ski é uma das mais fantásticas do Mundo e Saint Moritz tem ainda o Badrutt´s Palace Hotel onde, mesmo que seja impossível pernoitar, vale pela experiência do Chá das Cinco. Regressando de volta à estação, viajámos de regresso a Tirano, no lado contrário da viagem de ida, mostrando outra perspectiva, embora por pouco tempo, pois a noite, nesta altura do ano, chega cedo.

    Chegados a Tirano, regressámos a Pisogne onde o Chef Cláudio Faustini nos aguardava com uma magnífica pasta fresca com trufa, pães e foccacia feita em casa e ainda um “Vino Rosso”. Podia ser melhor? Não podemos crer.

    No dia seguinte, acordámos com paz de espírito, tomámos um pequeno-almoço tardio, com produtos caseiros e frescos, e seguimos então para a nossa aventura pelo Lago.

    A primeira paragem foi Lovere, considerada uma das cidades mais bonitas de Itália, mesmo junto ao lago. Paragem obrigatórias para quem quer desejar boas memórias dos lagos italianos.

    De Lovere passámos de carro pelos túneis de Castro. Sentimo-nos um pouco como James Bond nos filmes gravados nestes cenários italianos. Continuámos viagem até Sulzano, e aí se pode apanhar um barco para Monte Isola.

    Chegando ao porto de Sulzano, apanhámos então o barco, que faz a viagem de 20 em 20 minutos. Monte Isola tem sido considerada uma das belas cidades europeia. Ainda que seja pequena, é a maior ilha lacustre da Europa, a pérola do lago Iseo. Aqui não existem automóveis para alugar, pelo que a melhor opção passa por alugar uma bicicleta ou seguir a pé. Em todo o caso, o santuário no topo da ilha só faz sentido se se visitar de autocarro.

    Em 2016, durante duas semanas o Monte Isola esteve em destaque, com a Floating Piers, uma instalação artística do artista búlgaro Christo e da sua companheira Jeanne-Claude, que pela primeira vez uniram a aldeia de Sulzanno a Monte Isola e a Isola de San Paolo, um pequeno pedaço de terra nunca alcançado sem esta plataforma flutuante. Contabilizaram-se então mais de 1,2 milhões de visitantes. Hoje, ainda podemos ver um memorial celebrando o momento.

    Passear pela ilha é bastante relaxante, mas há locais que não se devem perder: Borgo di Siviano,Borgo di Novale, Borgo di Peschiera Maraglio, Museo della Rete, Rocca Martinengo e Santuário della Madonna della Ceríola, no topo do monte.

    Depois de umas horas em Monte Isola, tivemos de regressar no barco que nos devolveu a Sulzano, e daí fomos obrigados a apanhar um carro e seguir para o aeroporto, de regresso a casa.

    Foram, passe o lugar comum, apenas três dias de viagem, mas que souberam a sete num deslumbrante cenário alpino entre Itália e Suíça.

    Para quem começar o ano com uma viagem desta qualidade, em pleno Inverno, já só desejará uma próxima. Prepare-se.

    Dicas da viagem para uma viagem no Inverno:

    Em Novembro, comprar voos Ryanair: Lisboa – Bergamo – Lisboa

    Estadia: Hotel B&B Alveare Sul Lago (2 noites)

    Alugar carro: Rentalcars (procurar com aluguer rodas de neve gratuito ou incluído)

    Bernina Express: Viagem de Ida e Volta a 65 euros por pessoa

    Mochila: dois pares de calças; roupa interior e extra de neve (camisola, calças e meias); cachecol, gorro e luvas; camisolas.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook.


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