Categoria: Cultura

  • Indonésia: um paraíso a descobrir

    Indonésia: um paraíso a descobrir

    Raquel Rodrigues regressa ao PÁGINA UM. Nesta edição, partilha mais uma viagem de sonho, num formato de fotorreportagem. Destino: Indonésia.


    É talvez o destino mais sonhado por viajantes. No meu caso, já viajei muito e contabilizo muitos destinos já ‘carimbados no passaporte’. Mas este é um destino verdadeiramente único e há muito sonhado por mim.

    Conto pelos dedos de uma mão os países longínquos que gostaria de voltar a visitar. A Indonésia é, sem dúvida, um deles. Assim que cheguei ao aeroporto de Bali, senti o calor e o aroma que me deixaram aquela sensação que adoro, de pertença aos lugares.

    Bali

    A mais famosa ilha na Indonésia é também chamada Ilha dos Deuses. A conjugação entre o animismo e o hinduísmo antigos de Bali cria uma cultura distinta que permeia todos os aspectos da vida na ilha.

    Senti que estava definitivamente pronta (a ansiar, mesmo) para ver e experienciar tudo o que a ilha tinha para me oferecer.

    A paisagem única da ilha está replecta de cascatas imponentes, vegetação que nos assombra e uma espiritualidade que é palpável e que nos acolhe. São milhares de templos, majestosos terraços de arroz, património histórico e cultural riquíssimo e praias paradisíacas de águas quentes. A gastronomia é maravilhosa e o povo é muito simpático.

    Percebi o porquê de os deuses escolherem Bali para viver.

    Depois de Bali, e para quem quer sair do caos de Ubud e Bali e procura os postais paradisíacos, não se pode perder as ilhas Gilli, o snorkling com tartarugas, mantas e estátuas.

    Sem carros, nem trânsito. Tudo é bom. Os finais de tarde, os amanheceres, o peixe e marisco e as pizzas da mãe Mamma Pizza Gilli Air.

    Aqui, o tempo pára.

     Ilha Gilli Meno

    Imperdível é também a ilha de Java, com os seus vulcões e a paisagem que nos esmaga.

    A ‘cereja no topo do bolo’ da viagem foi o templo Candi Borobudur, o maior e mais complexo templo budista. Situado na ilha de Java, o templo é considerado a maior atracção para visitantes em toda a Indonésia.

    Obrigada por tudo e por tanto, Indonésia.

    Estamos de coração cheio.

    Voltaremos! Uma viagem com esta qualidade, em pleno Inverno… Já só sonhará com uma próxima. Deixo o aviso.

    Sugestão de roteiro:

    • 6 dias em Bali (Ubud, Templos Unesco, Rota do Chá e do café, Uluwato, Baía de Jimbaran)
    • 4 dias nas ilhas: Gilli Air e Gilli Meno
    • 2 dias em Lombok
    • 3 dias em Java

    Dicas de viagem:

    • Quando ir: entre Junho e Outubro
    • Convém comprar a viagem de avião em Janeiro
    • A três meses da viagem, deve comprar bilhetes de avião entre ilhas: Bali – Java – Bali
    • A um mês da viagem, deve comprar bilhetes para o ‘fast ferry’: Bali – Gilli Air
    • Para fazer ’tours’, sugiro que alugue um carro com motorista: 50 euros/por dia (inclui carro, motorista, combustível e portagens)
    • Para se deslocar do hotel para o centro ou para as praias, aconselho ir de Uber

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Ditaduras também torturam a inteligência

    Ditaduras também torturam a inteligência


    Ditaduras são reconhecíveis pela violência e o horror. Assim, nada mais justo que as descrevamos através de termos como “sombra”, “escuridão”, “trevas”. Cá entre nós: elas merecem. Mas serão só isso? Certamente, não. Na contraface do espectro fantasmagórico que projetam existe a burrice. Não raro uma ignorância miúda mas uma daquelas de espessura colossal. Vejamos o caso da ditadura que mais conheço – graças à infausta condição de nela viver durante 21 anos – que é a brasileira. E que, neste ano, completou os 60 anos de sua implantação. De 1964 a 1984 não apenas as pessoas mas a inteligência foi torturada. Apanhou na cara, foi pendurada no pau-de-arara, recebeu choques de alta voltagem. Vamos à casuística. Que é apenas exemplificativa mas jamais exaustiva:

    Prendam o Feydeau

    Corria 1966 e um coronel, de nome Washington Bermudez, esbravejou contra o elenco que encenava peça do dramaturgo francês George Feydeau em Porto Alegre, cidade do Sul do Brasil. Bermudez exigiu a presença de todos os envolvidos em seu gabinete, inclusive de Feydeau. Relataram-lhe que, entre seu desejo de interrogar Feydeau e o mundo real havia um Atlântico de distância e mesmo assim sua ordem chegara 45 anos após a morte do intimado.

    photography of lightning storm

    O valor da polícia

    Para não ficar atrás, outro coronel, Joaquim Gonçalves, de Minas Gerais, declarou que os jornalistas “deveriam apanhar da polícia não apenas durante a passeata, mas antes também”. Isto porque não reconheciam o valor dos agentes da lei e da ordem. E ilustrou: “Os fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os estudantes batendo no policial”.

    Queremos o Sófocles!

    Era 1965 e o Brasil se juntara aos marines norte-americanos na invasão da República Dominicana para entronizar outra ditadura. No Rio, os atores e atrizes da peça Electra, de Sófocles, queriam fazer alguma coisa. E a atriz Isolda Cresta, antes da função, leu um manifesto contra o papelão das tropas brasileiras no exterior. Foi presa. No dia seguinte, apareceu um agente da polícia política no teatro. Disse que todos ali eram “subversivos”. Mas queria mesmo saber “quem é esse tal de Sófocles? Onde ele está?” Contrafeito, teve que ouvir que o sujeito que queria prender habitava outro plano havia dois milênios.

    Desvairados e vagabundos

    Em janeiro de 1968, o general Juvêncio Façanha, diretor do Departamento de Polícia Federal, deu declaração autoexplicativa sobre a sofisticação dos quadros da ditadura que lidavam com a questão cultural. “A classe teatral só tem intelectuais, pés sujos, desvairados e vagabundos, que entendem de tudo menos de teatro”.

    Xixi com censura

    Para tornar ainda pior tudo o que já estava ruim, o Ato Institucional 5, expelido pelos generais em 1968, colocou censores-militares na redação do Correio da Manhã, no Rio. Suas tesouras eram infatigáveis. Qualquer possibilidade de crítica ao regime era sumariamente seccionada. Foi em uma dessas que o Papa Paulo VI levou a pior. Na tradicional mensagem natalina aos cristãos do mundo, o pontífice citava os “povos oprimidos”. Como “povos” e “oprimidos” separados já pareciam suspeitos, juntos eram algo simplesmente intolerável. E Paulo VI não escapou. Depois disso, alguém afixou um cartaz com uma recomendação de muito bom senso no banheiro masculino. Dizia: “Não faça xixi com os censores: eles cortam tudo”.

    worm's-eye-view of full moon

    Torturas de amor.

     Hoje que a noite está calma/ E que minh’alma esperava por ti/ Apareceste afinal/ Torturando este ser que te adora”, são os versos iniciais de Torturas de amor, bolero de Waldick Soriano. Mas era 1974 e os censores entenderam que “tortura” e “bolero”, além de não rimarem, não tinham o direito de frequentar as mesmas notas. Portanto, a melosa canção foi proibida de tratar de torturas mesmo que fossem “de amor”. Curiosamente, o proscrito Soriano era bastante íntimo do estado de coisas que condenou sua letra. Em 1973, o cantor defendeu a ação dos grupos de extermínio. Achava também que Jesus Cristo era um “arruaceiro e enganador”.

    Os hippies que vieram da URSS

    Maioral do Centro de Informações do Exército, o general Milton Tavares de Souza palestrou na Escola Superior de Guerra para ensinar que “o movimento hippie foi criado em Moscou”. Já o ministro do Exército, Fernando Bethlem, vinculou a União Soviética às drogas “pelo interesse dos comunistas em corromper as mentes jovens”. Um terceiro general, Ferdinando de Carvalho, levou sua paranoia à literatura. Seu romance Os Sete Matizes do Rosa descreve as agruras de um pai cujo filho fora a um show de rock que desembocou em um “bacanal de nudismo”. O festival fora “organizado pelos comunistas”.

    Julinho, o que foi sem nunca ter sido

    Para um compositor que nunca existiu, Julinho da Adelaide foi muito bem sucedido. Em 1974, implantou duas músicas no ouvido do brasileiro: Acorda Amor e Jorge Maravilha. Nos jornais, apareceu uma entrevista sua falando mal de Chico Buarque. “Não tem voz”, sentenciou. Era uma época em que nenhuma das músicas de Chico sobrevivia à censura prévia. Enquanto isso, as canções de Julinho passavam incólumes. O que os censores não sabiam era que Julinho – cuja graça era Júlio César de Oliveira conforme constava no formulário da Censura – não fora nascido mas inventado. Era o modo matreiro que Chico Buarque encontrou para ludibriar suas tesouras.

    landscape photography of mountains

    Insulto, não!

    Quando a peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, foi interditada, a atriz Maria Fernanda apelou à sensibilidade do presidente da União Democrática Nacional que, confrontando o próprio nome de batismo, não era “união”, “nacional” e muito menos “democrática”, tanto que apoiara o golpe militar. Seu presidente era o deputado federal Ernani Sátiro. A conversa começou ruim e foi piorando até que, lá pelas tantas, a atriz inconformada bradou “Viva a Democracia!” E o deputado rebateu de pronto: “Insulto eu não tolero!”

    Devassa na biblioteca

    Quando o apartamento de Ferreira Gullar, no Rio, recebeu a visita da polícia política, o poeta ficou preocupado com a devassa na sua biblioteca e a quantidade de obras confiscadas. Em determinado momento, um livro de arte também acabou recolhido. Estranhou como um volume sobre pintura poderia ameaçar a segurança da pátria e perguntou ao agente qual o perigo que representava aquele tomo com o título de “Cubismo”. O policial explicou que a razão era óbvia e estava no próprio título. Ou seja, cubismo, para ele, só poderia ser algo ligado à Cuba.

    Shakespeare amputado

    O mundo festejava o quarto centenário de nascimento do pai de todos os dramaturgos, William Shakespeare. Mas era 1964 e o Brasil emitiu uma nota dissonante. Ninguém poderia imaginar que, a descansar sob a terra havia 348 anos, o autor de Macbeth, Romeu e Julieta, Otelo e mais 35 peças, pudesse irradiar suficiente potencial subversivo para afligir as autoridades abaixo da linha do equador. Mas foi o que aconteceu: nos 400 anos do bardo de Stratford-upon-Avon, a censura passou-lhe a faca nas falas que escreveu para A Megera Domada, então em cartaz.

    man holding wind instrument

    Encontro com Kafka

    Algumas das situações vividas na autocracia brasileira provém dos labirintos de Franz Kafka. Uma delas alcançou o empresário Fernando Gasparian, às vésperas do lançamento de seu semanário Opinião, em 1972. Chamado à Polícia Federal, ouviu do major que o atendeu que “no Brasil não existe censura prévia” e que poderia publicar “o que quisesse”. Em seguida, o major retirou da gaveta uma lista com 210 assuntos que ninguém poderia publicar mesmo que quisesse. Gasparian pediu-lhe uma cópia. Ouviu uma negativa e uma explicação: “A lista é secreta”. 

    Ayrton Centeno é jornalista e autor do livro ‘Dicionário da ditadura‘, volume com 530 verbetes que reproduzem factos, figuras e farsas do golpe militar no Brasil em 1964


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  • O (quase) holocausto de Isaac, ou Abraão a emprenhar pelos ouvidos

    O (quase) holocausto de Isaac, ou Abraão a emprenhar pelos ouvidos

    ― Meu Deus!, bem te dizia que esta família de badernas e turgimões não cessava os malfazeres… Deixa-me passar para avisar o Senhor! É urgente, uma calamidade está prestes a suceder…

    ― Continuas impertinente, como sempre. Já te avisei que não se invoca o Senhor em vão. E não o vais avocar agora. Hoje é sábado e Ele está a descansar… Que se passa?!

    ― Abraão, outra vez; mais as urdimaças dos seus patrícios… Vi-o agora a subir ao monte Moriá.

    ― E qual o problema? Vai adorar o Senhor…

    ― Vai, vai… Deixou o jumento e dois servos no sopé. Só o acompanha o seu filho Isaac. E não lhe vi nenhum cordeiro ou animália que se parecesse.

    ― Seguirá para simples adoração…

    ― Pois, pois… levando na mão utensílios de fogo e um cutelo, mais Isaac arcando com um carrego de lenha às costas.

    ― De facto, é estranho…

    scenery of white clouds

    ― Estranho e muito mais que isso. O pequeno também quis saber onde estava a vítima para o holocausto… Abraão respondeu-lhe que Deus o proviria no cimo do monte. E que eu saiba não fomos mandatados hoje para enviar um qualquer animal até Moriá.

    ―Deus conhecerá, por certo, aquilo que segue no interior do coração de Abraão… Descansa que amanhã o Senhor, na sua omnisciência e omnipotência, esclarecerá isto…

    ―Não há tempo. Temo uma tragédia… Lembras-te do caso do poço de Bercheba?

    ― Daquela querela entre Abraão e os servos de Abimélec, rei de Guerar?

    ― Sim…

    ― Ficou resolvido. O rei deu razão a Abraão e entregou-lhe o poço. E tanto ficou esse rei satisfeito que com ele estabeleceu uma aliança, depois de Abraão lhe ter oferecido sete cordeiros.

    ― Aquilo pareceu-me mais um suborno… Ou uma coacção. Abimeléc até disse que nunca soubera de poço algum escavado por Abraão… Desde o episódio com Sara que este rei lhe tem um temor de morte.

    ― O rapto da mulher de Abraão clamava castigo…

    ― Qual rapto?! Abimeléc apenas a recolheu no seu palácio. Abraão é que lhe mentiu, ao dizer que Sara era apenas sua irmã. O rei nem sequer a desonrou… Também, quem é que deseja uma mulher de cem anos?

    ― Abraão não mentiu: Sara também é sua meia-irmã.

    ― Eu já nem quero discutir essa nojosa questão da consanguinidade. Sei apenas que foi a segunda vez que Abraão usou esse expediente em seu proveito. E, tal como já sucedera no Egipto, Deus andou depois a mandar castigos, e Abraão a encher-se de prebendas à laia de indemnizações. Com Abimeléc recebeu ovelhas, bois, servos e servas, mais ainda mil moedas de prata. E do faraó também muito amealhou com essa trampolinice.

    mountain cliff photography

    ― Manténs a tua impertinência… Mas afinal que têm a ver esses casos com a subida de Abraão ao monte acompanhado do seu filho?

    ― Tem tudo. Lembras-te também de Ismael e de Agar?

    ― Tiras-me a paciência…

    ― Paciente sou eu… padecente diria mesmo, que nos últimos anos rodopio numa fona à conta desta disfuncional família que caiu no goto do Senhor… Quem é que andou à procura de Agar, por campos espinhosos e desertos rochosos, depois de ter sido humilhada por Sara? Quem teve de arrazoar para convencê-la a regressar? Tive de lhe jurar que o seu futuro rebento seria como um cavalo selvagem entre os homens, e que a sua mão erguer-se-ia contra todos, que a mão de todos erguer-se-ia contra ele, mas que ele colocaria a sua tenda em frente de todos os seus irmãos… Enfim…

    ― Essa escrava egípcia foi insolente com a sua senhora, olhando-a com desdém após engravidar de Abraão. Mereceu a reprimenda.

    ― Ainda hoje penso que razão teve Deus para não ter curado a esterilidade de Sara mais cedo… Tinha nascido apenas Isaac; e Ismael, não existindo, não era tratado como foi.

    ―São insondáveis os desígnios do Senhor…

    ―Tão insondáveis são que nem Ele os entende… Acho patética aquela nossa viagem, com Ele, até ao Carvalho de Mambré, para anunciar que Sara geraria um filho de Abraão… Salvaram-se os pães, a manteiga, o leite e o vitelo que nos ofertaram, que de facto estavam uma delícia…

    ― A nossa missão era outra, se bem sabes: descer até Sodoma e Gomorra para conhecer in loco se a conduta indecorosa daqueles povos correspondia ao brado que chegara aos ouvidos do Senhor. E para salvar Lot, o sobrinho de Abraão, e sua família…

    ― E que rica missão a nossa… Se Deus é omnisciente, bem saberia que era tudo verdade. Evitava-nos aqueles apertos. Não fossem as nossas artes para cegar aquela turbamulta que estava arrombando a porta da casa de Lot e andaríamos agora escarranchados…  E aquilo que Deus fez à mulher de Lot, nas portas do Sodoma, não se compreende…

    the sun is shining through the clouds in the sky

    ― Eu avisei todos para que não olhassem para trás quando começasse a cair a chuva de enxofre e fogo. Deus viu que ela não cumpriu e transformou-a em estátua de sal. A sua decisão é soberana e inapelável.

    ― Castigou severamente uma mera curiosidade, tão típica da mente feminina. E depois nada fez quando as duas filhas de Lot, vendo o pai viúvo, o embriagaram duas noites seguidas para, cada uma, engravidar dele. Isto não cabe na cabeça de ninguém… Coitados dos moabitas e dos amonitas que nasceram de tão maquiavélico incesto.

    ― Já te avisei para não usares expressões que só fazem sentido daqui a uns milhares de anos. Niccolo Machiavelli apenas nascerá ao décimo quinto século depois da ida do filho de Deus à Terra, e a sua obra «O Príncipe» somente verá a luz do dia no ano de 1532 dessa era… E continuas a tergiversar: afinal que ligação há entre os filisteus que perderam o poço, Agar e Ismael, e os teus receios sobre a ida de Abraão e Isaac ao monte Moriá?

    ― Tudo, como já te disse… As injustiças fermentaram uma união para a vingança. Depois de Deus ter autorizado a expulsão definitiva de Agar e do seu filho, por capricho de Sara durante aquele banquete em honra de Isaac, alguns filisteus têm visitado o jovem Ismael no deserto de Paran… Ficaram chocados por Abraão ter abandonado aquele filho à sua sorte, apenas com um pão e um odre de água.

    ― Deus foi compassivo com Agar e Ismael. Deu-lhes água uns dias depois… Protegeu o menino e prometeu fazer dele um grande povo.

    ―De promessas divinas já ando eu cheio. Quantas vezes já Ele prometeu a Abraão mundos e fundos? E, ao mesmo tempo, anuncia-lhe desgraças sem fim, castiga a torto e a direito, provoca infaustos sucessos, completamente evitáveis.

    ― Continuas assim e ainda vais fazer companhia a Lúcifer… A tua sorte é ser a tua queda a minha queda, porque por ti pus as minhas asas no fogo. E agora já receio vir a ser chamuscado… Ainda bem que Deus só perscruta as vozes e pensamentos humanos, se não estávamos feitos… Mas agora deixaste-me apreensivo: que andaram os filisteus a maquinar com Ismael?!

    ― Isso não sei, porque quando me abeirei deles por algumas vezes, cessaram sempre as conversações. Ignoro se Ismael estava disposto para uma qualquer conjura. Mas, já quanto aos filisteus, ontem à noite, ao passear pela brisa da noite, encontrei alguns à janela do quarto de Abraão…

    ‘O sacrifício de Isaac’, pintura de Caravaggio exposta na Galleria degli Uffizi, em Florença.

    ― E que faziam lá?! Diz-me!

    ―Ah! Finalmente ouves-me, não é?… Estavam malvestidos com uns trapos brancos e umas rudimentares álulas… Penso que se queriam parecer connosco… Ouvi-os sussurrar várias vezes para dentro: «Abraão, Abraão: pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar».

    ― O quê???!!! Estás a mofar…

    ― Antes fosse. Ontem não liguei àquela palhaçada… Nem pensei que Abraão os tivesse ouvido. Só agora, quando o vi a subir o Moriá com o filho, é que fiquei temeroso.

    ― Credo! Meu Deus, que fazemos agora?

    ― Pois, era mesmo para isso que eu vinha aqui. Para Lhe perguntar: «Meu Deus, que fazemos agora?»

    ―Não O vou incomodar. Ele tem mau acordar… Deixa-me ver uma coisa…

    ― Abrenúncio!!! O jovem Isaac está já preso sobre o altar, com lenha por debaixo… Benza-deus, Abraão brande um cutelo… Rápido, agarra naquele carneiro, voa até ali e prende-o pelos chifres ao silvado… Abraão! Abraão! Que fazes?!


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  • A camélia no musgo

    A camélia no musgo

    Uma mulher invisível. Viúva, metade de seus cinquenta e quatro anos de vida a trabalhar como zeladora de um condomínio de luxo, ela é pequena, feia e gorducha. Jamais frequentou os bancos acadêmicos – sua condição social e econômica não lhe abriu esse caminho – e manteve-se sempre pobre, discreta, insignificante. Embora não seja amável, porta-se de forma educada e trabalha com a precisão e a eficiência características das engrenagens que fazem girar a roda da vida em sociedade, o que é suficiente para que seja tolerada, mas não para que seja vista. Esse é o cenário inicial em que se desenrola a história de Renée Michel, personagem do romance A elegância do ouriço, de Muriel Barbery (L’élégance du hérisson, Éditions Gallimard, 2006), mas a narrativa deixa claro desde o princípio que, apesar de sua aparente trivialidade, Renée está muito distante de ser uma pessoa ordinária. Autodidata, construiu para si ao longo dos anos uma biblioteca secreta e, absorta pela literatura e pela arte, pela música e pelo cinema, pelas experiências gastronômicas locais e estrangeiras, camuflou-se nesse refúgio físico e espiritual encoberta pela força de preconceitos milenares que a permitiram jamais ser vista como mais do que uma mera serviçal. Ela é a personificação do ouriço que dá nome à obra: o exterior duro e espinhoso esconde um interior terno e sensível.

    Muriel Barbery

    O contraponto à figura de Renée é feito por Paloma Josse, uma adolescente de 12 anos que reside com a família em um dos apartamentos do condomínio em que Renée trabalha como zeladora. Nascida em uma família aristocrática, Paloma está certa de que, assim como seus pais e avós, também será rica e privilegiada, mas ter esse destino traçado, ao contrário de lhe trazer conforto e alegria, só faz gerar angústia. Para ela, a vida é absurda, a existência é vã e as pessoas, apesar da ilusão de que podem controlar o próprio destino, vivem retidas e submissas como peixes em um aquário.

     Os pensamentos mais profundos de Renée e Paloma se entrelaçam ao longo da obra em meio a uma diversidade riquíssima de referências à arte e à filosofia, mas apesar das diferenças de origem, de idade e de experiências, ambas apresentam uma visão pessimista da vida e do cotidiano social até o momento em que são transformadas pela chegada de um novo e gentil morador chamado Kakuro Ozu. Possuidor de entusiasmo e candura juvenis aliados a sabedoria e perspicácia da maturidade, Kakuro enxerga a essência das personagens e lhes confere a dignidade de serem vistas como pessoas para além do papel social predestinado a cada uma. Convidada a desnudar-se do véu de invisibilidade que a camuflava, Renée experimenta sentimentos que antes lhe eram reconhecidos em teoria, como a amizade e o amor. Paloma, como testemunha de toda essa transformação, vê-se também transformada e restaura a fé na beleza e nas possibilidades que a vida tem a oferecer. Il y a un toujours dans le jamais.

    Em uma era marcada pela superexposição e superficialidade características das redes sociais, a leitura do belo romance de Muriel Barbery é inspiração e alento. Envolvente e profunda, a obra é capaz de encantar o leitor em inúmeros trechos através de suas elegantes descrições de obras de arte da pintura e do cinema ou colocá-lo para refletir em meio a diálogos filosóficos e análises complexas sobre as relações humanas e a vida em sociedade. Cada um desses momentos certamente mereceria incontáveis horas de reflexão e inumeráveis palavras de ponderação, mas há um aspecto em especial que parece digno de destaque: o lugar da (des)igualdade nas relações sociais e o papel do Estado na garantia de igual dignidade aos cidadãos.

    Obra teve edição original em França em 2006 e em Portugal e no Brasil em 2008, respectivamente na Editorial Presença e na Companhia das Letras.

    O pano de fundo no qual se desenvolve a história de Renée reflete com maestria a existência de grande parte das pessoas provenientes das classes trabalhadoras, que passam pela vida instrumentalizadas e sem serem notadas ou consideradas em sua singularidade – como o homem invisível de Ralph Elisson (Homem Invisível, Editora José Olympio, 2020). No caso da personagem, porém, é intrigante perceber que, a despeito de sua notável inteligência e erudição, Renée pareceu preferir uma vida sob o disfarce de zeladora comum a buscar alguma forma de ascensão social. A revelação dessa escolha se converte em um dos momentos mais comoventes da história: quando Renée compartilha suas tragédias familiares com Paloma, conclui que a miséria é uma ceifadora que colhe aptidões e sentimentos para deixar apenas o vazio necessário para enfrentar a dureza da vida; qualidades pessoais não seriam suficientes para superar as diferenças de classes sociais e, portanto, o silêncio e a clandestinidade seriam técnicas de sobrevivência.

    A verdade é que as sociedades contemporâneas, a despeito da evolução na garantia de direitos fundamentais aos cidadãos, têm-se desenvolvido de forma favorecer a manutenção do status quo, assegurando que muitos nasçam destinados a perder para que poucos possam continuar sempre a ganhar. Apegados à perspectiva meritocrática, aqueles que ganham veem-se merecedores das próprias conquistas e, no mais das vezes, pensam que os perdedores não poderiam culpar ninguém além de si próprios. Seria, porém, a meritocracia o caminho justo e suficiente para garantir a redução das desigualdades sociais e proporcionar acesso aos melhores postos de educação e trabalho?

    O termo “meritocracia” foi popularizado em meados do século passado através da distopia ficcional criada pelo sociólogo Michael Young na obra “A ascensão da meritocracia” (The rise of the meritocracy, Penguin Books, 1958). Ao contrário da tônica positiva que normalmente acompanha o termo nos dias atuais, a meritocracia era vista com desconfiança na obra de Young: se por um lado ela proporcionava a possibilidade de ascensão baseada na inteligência e no esforço pessoal, por outro lado tendia a formar uma elite arrogante, insensível aos problemas das classes inferiores e cada vez mais afastada da ideia de bem comum. Apesar dos maus presságios de Young, a meritocracia floresceu nas sociedades do pós-guerra como importante forma de acesso a vagas para educação e trabalho nas sociedades contemporâneas, ainda que temperada por políticas públicas criadas para garantia de maior igualdade de oportunidades. Décadas após, a despeito dos esforços meritocráticos, o problema da desigualdade social e a dificuldade em estabelecer consensos sobre o bem comum persistem.

    man walking on street beside man pushing cart

    Ao analisar essas questões que envolvem meritocracia e desigualdade no contexto atual, o filósofo Michael Sandel faz interessante diagnóstico: o problema reside no modo tecnocrático de conceber o bem público e de estabelecer o mérito que define ganhadores e perdedores (A tirania do mérito – o que aconteceu com o bem comum?, Editora Civilização Brasileira, 2021).

    De acordo com Sandel, a concepção tecnocrática de política está alicerçada nos mecanismos de mercado como forma de alcançar o bem comum, levando a um esvaziamento de argumentos morais no discurso político e a uma crise de representatividade política; a concepção tecnocrática de meritocracia, por sua vez, interrompe a conexão entre mérito e julgamento moral e substitui o mérito natural – baseado em virtude cívica, talentos e sabedoria – pelo mérito artificial – fundamentado em riqueza e nascimento. A própria promessa de mobilidade social parece um sonho distante para os menos afortunados quando política e sociedade são governadas pelas leis do mercado sem a adoção de medidas consistentes e efetivas para acesso a bens e serviços públicos que garantam a redução da desigualdade social.

    Essa mistura de clientelismo político com mérito artificial tem como consequência a arrogância dos ganhadores e o ressentimento dos perdedores, esgarçando os laços de cidadania e colocando em risco a própria democracia. É por isso que, na visão de Sandel, apenas uma renovação moral e cívica seria capaz de encontrar o caminho para uma política do bem comum, restaurando a dignidade do trabalho e a ideia de construção de um projeto democrático compartilhado.

    a large group of people marching on the street

    As vicissitudes da política e da meritocracia tecnocráticas são bem exemplificadas no enredo que une Renée, Paloma e Kakuro: independentemente dos méritos individuais de cada um, o acesso às posições sociais mais altas são naturalmente transferidos a estes, ao passo que somente poderiam ser alcançados por aquela com grau muito acentuado de dificuldade. Renée, na alegoria criada por ela própria, é a camélia no musgo do templo, a florescer ainda que na adversidade e afastada dos espaços de honra e poder.

    Em um tempo de ebulição política e social, é necessário repensar o papel do Estado Democrático de Direito na elaboração de políticas de redução de desigualdade e de garantia de que, mesmo aqueles que não ascendam, possam sentir-se tratados com igual respeito e dignidade na sociedade em que se encontram. É tempo de garantir que mais camélias floresçam em condições de igualdade e dignidade com os frequentadores do templo, aproximando a realidade do futuro projetado e esperado pelo sistema de direitos fundamentais.

    Kellyne Laís é advogada e professora universitária no Brasil


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  • É aqui! 

    É aqui! 

    Voo TAP 103 Lisboa-Belo Horizonte. Onze horas da manhã. Novo aviso de atraso na partida. Laura anda de um lado para o outro. Coloca o passaporte na mochila, verifica o bilhete pela enésima vez, arruma-o também. Senta-se, levanta-se, volta a sentar-se. A espera adensa a inquietude e o medo de voar. Ao microfone o anúncio da possibilidade de um upgrade para a classe executiva. Laura pondera. Conclui que isso em nada altera a sua angústia: Se cair a económica, a executiva também não fica lá em cima.

    Finalmente, ordem de embarque. Aguarda ansiosa na fila e pergunta-se porque não ficou em casa. Àquela hora estaria a regressar de uma tranquila manhã de praia. Mole. Sem preocupações. A saborear as merecidas férias. Porquê ir, então, se voar a aflige, se viajar dá sempre tanto trabalho e tem tantos imprevistos? Porquê abandonar o conforto do lugar seguro? Porque insiste em ir?

    A viagem faz-se com a ajuda de um comprimido milagroso. Laura desperta com o anúncio da aterragem. Um pousar suave. Palmas. Uns persignam-se, outros verbalizam um “Graças a Deus” ou à Virgem da sua devoção. Laura aperta a caixa dos comprimidos: Abençoados!

    Pés em terra firme. Aguarda-a o controle do passaporte, a espera das malas e a verificação da bagagem. Sai e depara-se de imediato com a amiga que a aguarda. Fica espantada ao vê-la. Ali, à sua frente. Um sorriso enorme. Braços abertos. Não compreende o seu próprio espanto. A viagem estava há muito planeada e sabia perfeitamente que amiga a viria buscar. No entanto, há sempre qualquer coisa de extraordinário no facto de encontrar alguém num local totalmente diferente daquele onde a conhecemos. Sente, neste momento, a mesma espécie de incredulidade que a assalta quando se encontra pela primeira vez perante um monumento famoso. Como se fosse preciso ir para ter a certeza.  Para confirmar a existência.

    Segue-se uma longa deslocação até à cidade. Pensa perceber agora a curiosa designação do aeroporto: “Confins”. Bastante adequada, na verdade. É noite e para lá da estrada, pouco se vê. A conversa, essa, é animada e vai dando forma ao que a noite esconde.

    Chegadas ao centro da cidade, a amiga leva-a pelas ruas de Belo Horizonte com a alegria de quem mostra orgulhoso a sua casa. Os monumentos, as ruas famosas, os lugares da literatura, os belos edifícios.  Mal podem acreditar que estão ali as duas.  Laura ouve com atenção a história e as histórias da capital mineira. Quer ver tudo. Saber tudo. Experimentar tudo. E enquanto a amiga continua a mostrar-lhe a sua cidade, na mente de Laura começa a formar-se a primeira imagem do país.  O seu olhar detém-se na luz vermelha de um semáforo a tentar assomar-se por detrás de um enorme emaranhado de cabos.  Uma longa faixa negra. A perder de vista. Fios de esparguete negro, al dente, pendurados em postes:

    ⎼ Tantos fios! Mal se veem os semáforos. Isto é normal? ⎼  pergunta.

    ⎼ É, sim. ⎼ responde a amiga com uma gargalhada ⎼ Bem-vinda ao  Brasil. Quando um cabo se estraga, não é substituído. Acrescenta-se outro. Aí, vai ficando cada vez mais volumoso.

    Riem-se as duas. Laura imagina o poste à sua frente a transpirar como um halterofilista que excedeu os seus limites. As pernas a fraquejar e, por fim, o sucumbir ao peso. Repara, então, como a  estes aglomerados de linhas horizontais se juntam, num plano inferior, estendidos sobre os muros e vedações nas entradas dos edifícios, incontáveis rolos de arame farpado com lâminas reluzentes:

    ⎼ Tanto arame farpado e tantas grades na entrada dos prédios. ⎼ comenta.

    ⎼ É. Tem de ser. ⎼ responde a amiga ⎼  Não está em Faro, não.

    Laura repara que alguns edifícios têm grades até ao terceiro piso. Cabos, arame farpado, gradeamento ⎼ a miríade de  linhas horizontais e verticais dá forma a um estranho e sinistro jogo do galo. Sinal de uma convivência pouco pacífica entre duas vontades distintas: a de unir e a de separar. O esforço de união é grande, porém frágil. Os cabos que a proporcionam são muitos, porém atabalhoados, com ar de improviso e de remendo. O desejo de separação, pelo contrário, é firme. As barras dos gradeamentos são robustas, as farpas do arame, feitas de materiais de boa qualidade. Um investimento desigual, evidência das enormes clivagens e da debilidade das costuras que unem a sociedade brasileira.

    Na manhã seguinte, o programa é uma visita à zona da Pampulha.  Estacionam numa rua bem perto da lagoa artificial e seguem a pé. Laura mal pode esperar por ver ao vivo a obra de Niemeyer. Atravessa a estrada em passo acelerado e depara-se com a pequena igreja de São Francisco. Niemeyer! As formas arredondadas. Ondas de azul e branco. Tão pequenina. Sente o coração bater mais forte. Aproxima-se. Quer tocar os azulejos. Repete com as pontas dos dedos os traços azuis que desenham peixes e pássaros sobre um fundo branco. Emociona-se. Percebe, então, porque veio. Porque veio desta vez e porque vai sempre. Olha para a amiga e exclama:

    ⎼ É aqui! É mesmo aqui!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • O youtuber mexicano

    O youtuber mexicano

    A Mónica Filipa apaixonou-se por um youtuber que difundia vídeos em que achava que provava que a terra era plana.

    Para ela, a terra não era plana, as mentiras e conspirações governamentais não podiam ter chegado tão longe. Se a terra fosse plana, tínhamos sido todo o tempo redondamente enganados e isso era impossível. Se a terra não fosse um berlinde então tudo o resto que nos contaram e ensinaram do mundo podia ser mentira.

    Mas o seu coração palpitava sempre que via o youtuber mexicano. Conseguiu até entrar no seu chat e agendar uma conversa supostamente romântica através de vídeochamada.

    A Mónica Filipa falava bem espanhol, tinha passado uns anos em Maiorca a trabalhar em discotecas e era, desde aí, louca pelas dobragens de filmes em espanhol, tendo aprendido a língua com facilidade. Mas a característica que melhor a identificava era a sua paixão pela cultura mexicana e por homens latinos, sobretudo mexicanos. Tinha até um poster do Marlon Brando, a fazer de Zapata, na sua casa de banho e o seu cão chamava-se Cancún.

    O dia da videochamada chegou. Estava nervosa e vestiu o seu top preferido.

    Eis a conversa que tiveram, traduzida para português.

    Olá! Estava ansioso para falar contigo.

    Disse o terraplanista mexicano.

    – Olá. Eu também.

    Respondeu ela meio nervosa e pouco segura.

    – Não conheço Portugal, mas dizem que é um país muito bonito.

    – E eu não conheço o México.

    Acredito. Mas sabes que nem o México nem Portugal são o que dizem.

    Atacou o youtuber sem contemplações. Era mais forte que ele.

    Como assim?

    – Sabes bem que a geometria do mundo como nos contam é uma falácia. Nesse sentido nem o México nem o teu país são como nos dizem. Por isso é normal não conheceres o México nem eu Portugal na sua integridade.

    – Quer dizer…

    A Mónica Filipa não esperava o tiro à queima-roupa tão cedo, embora soubesse que ele mais tarde ou mais cedo ía aparecer. 

    O youtuber continuou:

    Já expliquei e provei isso nos meus vídeos sobretudo nas lives.

    – Então porque é que aí agora é noite e aqui é dia?

    Arriscou a miúda.

    – Vê o vídeo em que entrevisto o Gutierrez e percebes logo.

    O Boliviano?

    – Sim. Ele explica tudo melhor que eu, tenho de admitir. E prova-o sem muita dificuldade se estiveres atenta e fores livre de preconceitos. É um génio do terraplanismo boliviano e mesmo mundial. Ganhou credibilidade no último encontro terraplanista de Barcelona.

    – Eu vi-o já a conselho teu. Mas dou mais atenção a ti. Aos teus gestos, gosto da tua maneira de falar, do teu sorriso. Muitas vezes não estou a ouvir exactamente o que dizes. A mim pouco me importa que a terra tenha a forma que tiver. Um algoritmo levou-me até ao teu mundo e eu gostei de ti.

    – Isso é lindo. Mas a terra é plana. Prefiro que saibas com toda a certeza que a terra é plana a que me aches o máximo.

    Preferia ser o Frankenstein e a terra ser plana, que o Brad Pitt e a terra ser redonda. Percebes?

    Jamais daria um beijo a alguém que achasse que a terra é uma bola de basket. Vomitava logo.

    E a ligação caiu.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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  • A luz do abajur desafiando a escuridão

    A luz do abajur desafiando a escuridão


    – A casa agora será tua – a voz muito fraca.

    Não se preocupe com coisas materiais, eu deveria ter dito. Não fale, apenas se deixe morrer.

    – Quero que mores lá.

    Preciso dizer qualquer coisa para que ele se cale.

    – Sim.

    – Promete que não vais vender, nunca?

    Demoro a responder. Será que devo prometer alguma coisa a um homem que está pesando pouco mais de quarenta quilos?

    – Quero que me dês a tua palavra – insiste.

    É a voz que eu estou acostumado a ouvir desde sempre: autoritária, imperiosa, inflexível. Embora enfraquecida pela doença e pela morte próxima, é a mesma voz que nunca admitiu réplica.

    – Está bem. Eu juro.

    Fecha os olhos. Agora que está tudo acertado ele pode morrer. Sabe que não voltarei atrás. Quando empenhamos a palavra, ele ou eu, não há força que nos faça descumpri-la.

    Cedi mais uma vez. Sempre me acovardei diante desse homem que soube carregar sem aparente sacrifício a mais pesada de todas as pequenas palavras: pai.

    Eu deveria observá-lo com atenção, pois esta será certamente a última imagem que me ficará dele, mas mantenho os olhos fitos na janela entreaberta pela qual entra o sol do fim da tarde. Não. Esse corpo magro e alquebrado não pertence ao meu pai. O meu velho morreu bem antes, morreu no dia em que não pode vestir-se para ir ao trabalho.

    Era um homem maciço – pescoço taurino, ombros largos, peito amplo – que parecia ter sido fundido em metal. Era uma certeza que jamais vacilava.

    Vou até a janela.

    Ainda bem que a mãe se foi antes.

    A mãe sofreria muito vendo aquele corpo devastado sobre a cama. Aquele não é mais o homem que abria a porta do carro para ela.

    O sol morrente incendeia as casas, as calçadas, o leito da rua. Atrás de mim estão a obscuridade, o frescor e o silêncio do hospital.

    full moon and gray clouds during nighttime

    Ele nunca pode ou quis ser nada além de meu pai. Seria ridículo se tentasse fingir que havia entre nós algo como amizade, companheirismo ou camaradagem. Éramos pai e filho.

    Ficava feliz quando conhecia um homem às antigas, como ele.

    – Hoje encontrei um cavalheiro – dizia.

    Apagou-se em três meses. Sabia que a doença era irreversível. Como estava com setenta e oito anos, decidiu aceitar o fim. Entregou-se porque decidiu que havia chegado ao final da linha. Não creio que tivesse medo de enfrentar a dor.

    Não recusava o alimento. Comia de olhos fechados umas poucas colheradas do que a enfermeira lhe dava e depois, quando ela deixava o quarto, levava o dedo à garganta.

    – Descobri que ele não tem enjoo coisa nenhuma – disse a enfermeira, e persignou-se. – O que ele faz é pecado.

    O médico bateu as mãos espalmadas nos joelhos e se levantou.

    – O senhor, que é o filho, tem de resolver. Ou continuamos assim, e ele morre de inanição, ou começamos a alimentá-lo por sonda, mesmo correndo o risco…

    – Que risco?

    – Em caso de vômito, o alimento pode parar no pulmão. É morte certa.

    – A morte é sempre certa – eu disse. – Escolha o senhor.

    – Não posso lhe assegurar nada, mas, com a alimentação pela sonda. ele talvez permaneça mais tempo conosco.

    – Não sei se ele faz questão de permanecer mais tempo na nossa companhia – retruquei.

    Aliás, eu nunca soube se ele quis algum dia estar ao lado de alguém que não fosse a mãe.

    Era um homem calado, extremamente reservado.

    – Não gosto de gente derramada – dizia.

    Penso que gostava de mim apenas porque eu era o filho da mulher que ele amava com um fervor religioso.

    Reflexivo, o médico passou o indicador pelo lábio inferior. Era um técnico, precisava tomar uma decisão séria, que veio em seguida.

    – Vamos à sonda nasogástrica! – disse e, seguido pela enfermeira, se encaminhou para o quarto.

    O pai morreu dois dias depois de ter me arrancado aquela promessa.

    black and gray cement tombs

    *

    – Hoje tu vais me acompanhar – disse a voz que não admitia contradita.

    – Posso ir de bicicleta?

    – Não. Vamos a pé. De pés descalços! Choveu muito nesta noite.

    Parado na escadaria que descia ao pátio, de costas para mim, as mãos cravadas na cintura, vestindo apenas calção, o pai lembrava a figura de um boxeador que eu vira numa enciclopédia.

    Recalcitrante, encostei na parede do alpendre a bicicleta que havia encontrado minutos antes ao lado da árvore de Natal. Sentei-me na laje úmida e tirei as sandálias. Eu não havia dado nem vinte pedaladas no brinquedo tão aguardado. Pedaladas silenciosas para não acordar a mãe, que gostava de dormir até mais tarde.

    Quando me pus de pé, e me arrepiou o contato com a laje fria, o pai estava já com o portão aberto. Ao correr até ele, eu me voltei para olhar mais uma vez a bicicleta.

    Tomara que a gente não demore muito, pensei.

    Era o meu primeiro passeio na praia com o pai.

    Saímos para a manhã úmida. As ruas sem calçamento estavam encharcadas, com muitas poças de água barrenta.

    Não entendi quando nos encaminhamos para o interior do balneário, em vez de irmos para a orla. Eu esperava que o pai me levasse para caminhar à beira da lagoa. A gente poderia ir até o trapiche dos pescadores, chutando as ondas, molhando os pés e as canelas.

    Só anos depois compreendi por que o pai me levou a zanzar pelas ruas da zona mais rica da praia. Ele se orgulhava de ter construído muitos daqueles casarões.

    De quando em quando, apontando discretamente, me chamava a atenção para detalhes dos jardins, dos muros, dos portões, dos telhados. Sabia quanto aquilo tudo havia custado. Entremeava a citação de valores com relatos resumidos de episódios dramáticos da construção: paredes derrubadas pelo vento, pedreiros despencando de andaimes, alicerces que cediam misteriosamente. Se havia um automóvel na garagem, me informava da marca, modelo e ano de fabricação. Por fim, o pai me dizia o nome do proprietário e se ele tinha filhos ou netos.

    – É preciso aprender a ler o que está escrito nas ruas.

    Naquela manhã ele não parou de falar. Em casa, raramente abria a boca para pronunciar uma daquelas suas frases curtas, secas.

    Quando voltávamos, já bem próximos de casa, de repente o pai parou.

    – Isso aqui é greda – disse ele.

    – O quê?

    – Greda – repetiu, como que se deliciando com a palavra. – É boa para fazer tijolos.

    O pai enterrava com gosto o pé descalço na argila macia, amarelada, que lhe subia por entre os dedos e cobria-lhe o peito do pé.

    Depois, agachou-se.

    – Faz como eu. Mete as mãos no barro.

    Embora sentindo nojo, esmigalhei uns torrões daquela matéria pastosa. Pensei na mãe. Se ela me visse ali, colocando as mãos naquela sujeira, ficaria muito braba.

    – É gostoso, não é?

    – Sim, é bom – menti.

    O pai estendeu a mão embarrada até uma caixinha de fósforos, vazia, que estava sobre a relva que nascia junto à calçada. Abriu a caixa e encheu com barro a parte em que ficavam os palitos.

    – Vamos levar isso com a gente.

    – Para quê?

    – Tu vais saber depois.

    Em casa, antes de correr para o tanque a fim de me lavar, vi o pai colocar a caixinha cheia de argila em cima da mureta do pátio. Com as mãos e os pés ainda úmidos, peguei a bicicleta e saí para pedalar na rua.

    a man holding a lantern in the dark

    *

    O pai esperava que eu cursasse engenharia, como ele. A mãe gostaria mesmo que eu fosse advogado, como o pai e o avô dela, mas bem que se contentaria com engenharia.

    Não conseguiram esconder o desapontamento quando eu anunciei que faria o vestibular para arquitetura.

    O certo é que um dia, cinco anos depois, pendurei um diploma na parede da saleta que o pai alugou para que nela eu montasse o meu primeiro escritório. Comecei com modestíssimas encomendas de gente remediada, como se chamava a classe média de então.

    – Um nome se constrói com trabalho – dizia o pai.

    Ele jamais me convidou para atuar em nenhuma das obras que tocava sem parar, uma atrás da outra, às vezes duas ou três simultaneamente. Tinha seus arquitetos, engenheiros, mestres de obra e pedreiros, gente que trabalhava para ele há décadas.

    – Meu time é só de pessoas de extrema confiança.

    Nunca me pediu que projetasse sequer uma casa de cachorro. Pelo meu lado, nunca lhe pedi um trabalho, nem mesmo no penoso início da carreira.

    Como nunca trabalhamos juntos, jamais brigamos.

    *

    No domingo seguinte, antes de sairmos a passear, o pai apanhou de cima do muro a caixa de fósforos e de dentro dela retirou um pequenino retângulo de barro seco, que me entregou.

    – Um tijolinho para construíres tua primeira casa.

    Ele passava a semana na cidade. Só chegava à casa da praia pelo meio das tardes de sábado. Nas segundas-feiras, bem cedo, embarcava no automóvel e retornava às obras.

    Nosso passeio dominical nas manhãs de verão durou oito anos. Na semana em que completei catorze anos, ele me dispensou.

    – Se quiseres, a partir de hoje, podes passear sozinho. Tu agora és um homem.

    Comemorei a libertação correndo para o clube. Naquele dia cheguei a tempo de entrar na escolha dos jogadores para a primeira partida de futebol de salão. Antes, por causa do passeio obrigatório, eu era obrigado a entrar só na terceira partida, a que reunia os pernas-de-pau recusados para os jogos anteriores.

    Aqueles passeios – que por muitos anos foram uma tortura para mim – são hoje uma das minhas melhores lembranças.

    O pai passava os domingos de verão no alpendre, acomodado na cadeira de balanço, sempre com um livro ou jornal nas mãos. De olhos fechados, como se estivesse dormindo, estirada na espreguiçadeira, a mãe escutava a música que vinha do toca-discos da sala.

    Na casa da praia, aos domingos, eles reproduziam as noites sempre iguais da nossa casa na cidade. Música e leitura. A mãe gostava de tangos e boleros, mas também ouvia óperas. O pai só queria saber de jornais, revistas e livros de engenharia.

    Desde que me lembro, eles sempre estiveram sentados, próximos, lendo e escutando música, na praia ou na cidade, raramente trocando umas palavras em voz baixa.

    person in black jacket walking on pathway between trees during daytime

    *

    Vamos agora ao que realmente interessa.

    Ao final do terceiro passeio, quando passávamos pelo portão, eu peguei o pai pela mão. Ele me olhou surpreso. Gaguejante, mal controlando uns risinhos tolos, eu o conduzi até o fundo do pátio.

    Paramos debaixo da figueira.

    – Olhe o que eu fiz – apontei, sorridente.

    O pai ficou um tempão calado, só olhando. Vi muitas coisas no rosto dele naquele momento. Um sorriso largo, de espanto e orgulho. Depois, comoção. Percebi até um cintilo prenunciador de lágrimas. Mas aqueles sentimentos delicados se apagaram logo.

    Então ele se agachou diante da casinha que eu havia construído com tijolinhos de barro.

    – Esta parede aqui não está cem por cento. Tu poderias ter caprichado mais.

    A tarefa de montar aquela casa me tomara a semana inteira. Eu havia fabricado centenas de tijolinhos. Perdera muito tempo percorrendo os bares à procura de caixas de fósforos vazias e tivera que descobrir outra mina de greda numa rua próxima.

    Pensei em retrucar. Poderia ter dito: não, pai, a parede está perfeita porque eu usei prumo e esquadro. Mas permaneci calado.

    O rosto do pai tinha voltado a ser o que era sempre: uma indecifrável máscara de traços fortes.

    Aquela foi a primeira e única vez em que mentiu para mim. Deve ter custado muito a ele.

    – Mentira é cor que não sai da minha paleta – dizia.

    Só bem mais tarde, já adulto, fui compreender por que motivo ele havia dito que a tal parede estava torta. Ele julgou que eu me acomodaria se dissesse que a casinha estava bem-feita. Para ele, as pessoas tinham de ser permanentemente chicoteadas e esporeadas para que buscassem a perfeição.

    woman holding string lights

    *

    Cumpri meu juramento.

    Depois de trinta anos morando em apartamentos pequenos, voltei para este casarão imenso, que está sempre reclamando algum cuidado. Não falo pelo dinheiro. O problema é que uma casa deste tamanho exige atenção, tempo.

    Sinto-me um estranho, embora tenha vivido aqui até os vinte e cinco anos. As muitas peças, amplas, de pé direito elevado, fazem com que eu me sinta de novo pequeno. O silêncio às vezes é opressivo.

    À noite, antes de me deitar, venho para cá, e me sento nesta poltrona que foi do pai para assistir aos noticiários dos canais internacionais. Sempre gostei de estudar línguas estrangeiras. Vou de um telejornal a outro: espanhol, italiano ou francês. As notícias são idênticas em todos os canais do mundo, as emissoras usam as mesmas imagens. A leitura não me atrai, nunca me interessei por música.

    Às vezes sou tocado por uma estranha sensação. É como se algo leve como um sopro atravessasse a sala. Eu me arrepio.

    Eu sentia o mesmo quando era pequeno. De noite, já de pijama, eu me deitava de bruços no tapete para folhear livros infantis ilustrados. Mesmo protegido pela presença dos meus pais, de vez em quando eu espichava olhares para os cantos mais escuros e sentia medo.

    Agora, quando projeto uma casa, começo da sala. É como se eu quisesse reconstruir as noites tranquilas da minha infância. A música suave, o crepitar das páginas de um livro e a luz do abajur desafiando a escuridão lá fora.

    Sim, sou parecido com meu pai.

    Agora, exatamente como ele queria, eu consigo ler o que está escrito nas ruas.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • De Praga a Paris

    De Praga a Paris


    Em meados do século XIX, quando os comboios começavam a circular a 40 km à hora e não havia sofás com almofadas de molas, nem móveis com verniz; quando os jovens desiludidos ainda não usavam óculos, e as mulheres filosofavam pouco; nesses tempos ingénuos, a meio caminho entre o paleolítico e a nossa era espacial, em que se entrava para a terceira classe  dos caminhos-de-ferro com um farnel cheio de provisões; quando os jornais começavam a saltar das rotativas, e as patentes dos laboratórios para as fábricas; quando as chaminés cuspiam longos rolos de fumo negro e os salões de baile eram iluminados por candelabros de cera, com os móveis dispostos simetricamente; quando ainda se travavam duelos à pistola ou à espada, por uma questão de honra, e se corria para o lado oposto da sala só para apanhar um lenço propositadamente caído; quando as senhoras de sociedade usavam vestidos de saias redonda, cintura de vespa e mangas soltas, e as operárias tinham saias estreitas, cintura larga e mangas arregaçadas; quando as damas com camélias se escondiam da luz do dia e Maxwell punha em equação as leis do eletromagnetismo do amigo e sábio Faraday; nesses tempos longínquos em que os maçons ainda eram quase todos sérios, os judeus só eram perseguidos na Rússia e os católicos estavam suspensos de um papa infalível e se dizia que na Europa havia paz, uma das muitas famílias de apelido Kohn partiu da capital da Boémia, a terra por onde então viviam, para a cidade luz, a fim de prosseguir o grande sonho da integração social.

    Nessa época, trabalhava Ferdinand Kürnberger como colunista em Viena e costumava visitar todos os dias uma livraria muito conhecida. Um dia, quando estava no estabelecimento, entrou um jovem que lhe chamou a atenção. Quando ele saiu, Kürnberger perguntou ao livreiro o nome do jovem. “É um violinista conhecido” … “chama-se Connady.” “Connady, mesmo?” repetiu Kürnberger: “- “Não”, respondeu o outro, “na verdade chama-se Kohn.” Poucos dias depois, Kürnberger reparou noutra personalidade interessante. Quando perguntou o nome, o livreiro respondeu-lhe: “Este é o escritor parisiense Paul d’Abrest, mas não é esse o seu nome verdadeiro; é Kohn.” Kürnberger olhou para o amigo, pegou no chapéu e saiu em silêncio, meio a fungar.

    Mas as coisas não ficaram por aqui. Apareceu na loja o autor da comédia “As tristezas do jovem Heine”, que na altura causava sensação em Viena, e, tendo ele saído, disse Kürnberger: “O homem chama-se mesmo Mels? Parece-me demasiado elegante para nome de família.” – “Deus me livre”, disse o livreiro, “isso é pseudónimo“; o verdadeiro nome é Kohn.” Desta vez, sentindo que lhe saltava a tampa e convencido de que o amigo estava a troçar, Kürnberger agarrou o chapéu, não só para sair, mas também para nunca mais lá voltar, enquanto resmungava „Será que este acha que toda a gente no mundo se chama Kohn?“ E, no entanto, os três autores existiram, e na realidade tinham esse apelido.

    Os judeus da Europa – com exceção de uma escassa centena de famílias aparentadas – tinham vivido até ao século XIX em um mundo criado por eles próprios, sem contato com a história; e os cristãos tinham ajudado a isolá-los dos grandes movimentos históricos, como a Reforma, Renascimento e Iluminismo. Alguns que se emanciparam, tiveram existências solitárias e muitas vezes trágicas, nas margens da vida, depois cuspidos pelas próprias comunidades, como é o caso notório de Maimónides e Espinoza. No início do século XIX, porém, abriram-se os guetos. As famílias judaicas vieram em massa das aldeias para as vilas, das vilas para as cidades e destas para as capitais.

    A explosão libertou enormes energias: forças intelectuais e espirituais, que durante quase dois milhares de anos tinham sido treinadas, afiadas, domesticadas e amarradas ao estudo das Escrituras, podiam agora aplicar-se a construir as nações que começavam a despertar. A Inglaterra, pátria-mãe do romantismo, foi a primeira a ser estimulada por grandes movimentos liberais. Depois foi a vez da Alemanha, França, Itália, Polónia, Hungria, Portugal, Espanha, Grécia, e Rússia. Por entre movimentos religiosos, políticos e intelectuais, entre revoluções e contra-revoluções, o êxodo dos guetos colocou grandes valores à disposição dos povos europeus.

    Na França, além do caso especial dos Rothschild, os judeus desempenharam um papel significativo na literatura, economia e política desde a segunda república. Um israelita tornou-se o primeiro-ministro da Grã-Bretanha: Disraeli, Lord Beaconsfield, trouxe à Rainha Vitória a coroa da Índia e reforçou o imperialismo britânico. Na monarquia austro-húngara, de Viena, Budapeste e Praga, os israelitas ajudaram a transformar as antigas estruturas feudais em uma sociedade industrial moderna. Uma nova nobreza judaica surgiu e casou-se com famílias da aristocracia cristã, tanto no império austríaco como no Reich alemão, onde o implacável chanceler Bismarck via com bons olhos a união de “garanhões” cristãos com “éguas” judias como meio de procriação de uma classe dinâmica de líderes. É entre esses judeus europeus de educação germânica que passam para França e que ajudaram a criar pontes entre todas as nações da Europa que se encontram os Kohn que agora despertam a nossa atenção.

    Jacob Kohn e Sofia Altschul pertenciam à burguesia que habitava nas grandes cidades da Europa ocidental, uns em Praga então parte do Império austríaco, outros em Colónia, do Reino da Prússia, outros em Roterdão e Bruxelas, nos Países Baixos: geriam vários negócios, mas contando entre os antepassados alguns poucos médicos e numerosos rabinos. O trisavó Jacob – chamemos-lhe assim – nascera em 1823 em Chemnitz, pequena cidade perto de Praga, onde casou e onde nasceram a maior parte dos filhos. Ao arribar a França em 1858, obteve no ano seguinte a autorização oficial de residência beneficiando dos direitos civis e adotou o nome de Jacques. Começou a trabalhar como caixa num pequeno banco parisiense e depois passou para a Banque Génèrale de Suisse onde ficou encarregado de negócios, até 1869; nesse ano tornou-se contabilista em chefe da Sociedade Anónima de Refinarias Parisienses.

    Dos seus filhos, a mais velha, então com 18 anos, e também de nome Sofia ajudava a mãe a tomar conta dos irmãos mais novos, nascidos entre 1851 e 1855: Friedrich, Louis, Herminie, Léopold, Edmond, Sigismond e Mathilde. Um pouco mais tarde, em 1860, veio Eugénie, talvez assim chamada em homenagem à imperatriz consorte de França, Eugénie de Montijo. Foram viver para o 9º arrondissement, um bairro de urbanização recente no oeste da cidade, onde se estabeleciam com frequência famílias judaicas com posses. Para trás, ficavam as memórias de Praga que o tio Fred narra assim:

    Todos os dias, fizesse chuva ou sol, o Imperador descia das alturas de Hradschin ao tocar o meio-dia nas inúmeras torres sineiras da capital da Boémia. Ao chegar ao Ring, a praça central onde se encontra a Câmara Municipal, uma joia arquitetónica digna de comparação às mais belas Câmaras da Flandres, parava a carruagem conduzida por um cocheiro em grande libré branca, o tricórnio “em batalha” como o dos polícias; o trintanário saltava do assento para abrir a porta e o soberano que abdicara, descia acompanhado por um cavalheiro. Ambos trajavam de forma muito simples: davam duas ou três voltas à praça, e todos saudavam respeitosamente o Imperador, que respondia com muitos chapeladas e, por vezes, apertos de mão. De vez em quando parava à frente de uma loja para contemplar um objeto que desejava. Dava ordens para comprar, mas as suas instruções nem sempre eram seguidas, pois se sabia que uma hora depois já nem se lembrava da compra. Por vezes, interrompia a sua caminhada para ver as crianças que saiam das escolas.

    Estas – e eu estava lá entre elas – conheciam o bom Imperador, e se evoco esta memória, é porque a minha imaginação infantil ficou muitíssimo impressionada com o contraste que se me ofereceu ao chegar a Paris em 1858. Vi então, um dia, o imperador Napoleão III a dirigir-se para o Bois de Boulogne a galope no seu landau atrelado à Daumont, seguido e precedido por um destacamento de lanceiros. Na semana anterior, tinha visto o imperador Fernando caminhando no Ring de Praga com as mãos atrás das costas, sem qualquer comitiva, sem guardas nem soldados.”

    Os dois irmãos mais velhos – Friedrich e Louis – foram estudar para o liceu Condorcet, que na época se chamava Liceu Imperial Bonaparte. Era uma escola de excelência, uma das quatro mais antigas de Paris, localizada na rue de Havre, entre a estação de Saint-Lazare e o Boulevard Haussmann. Como escola não confessional tinha uma pedagogia relativamente aberta e liberal e contava com alunos israelitas e protestantes, fortemente pró-republicanos. Ao longo da história, o liceu alterou 11 vezes de nome, refletindo as mudanças de regime. A última vez foi em Maio de 68, em que adotou efémero nome de Karl Marx, até os estudantes descobrirem que o marquês de Condorcet também fora revolucionário! Nele estudaram Henri Bergson, Georges Mandel, Marcel Proust, Claude Lévi-Strauss, Raymond Aron, Jean Paul Sartre,  André Citroën, Marcel Dassault e mais dezenas de khâgneux de reputação mundial. Na verdade, toda a França estudou aqui, como numa universidade, incluindo os que reprovaram uma vez, como Proust, o que lhe deu a oportunidade de receber aulas de literatura do estimado professor Desjardins.

    Fossem alunos mais mundanos, ou mais doutos, o que dava ao liceu Condorcet a sua fisionomia única era a mistura muito parisiense de seriedade precoce e graça leve, de disciplina indulgente e rebeldia inofensiva, de ardor pelo estudo e gosto pelo prazer. Entre os alunos, o jovem Frédéric já mostrava ser uma mente brilhante aos dez anos, o que sem dúvida representava também um risco, como diz o seu amigo Jules Claretie, jornalista e escritor que veio a ser diretor da Opéra de Paris: “Vi, em Genebra, um pequeno prodígio de uma espécie especial. Não era o pequeno compositor prodígio, era o pequeno orador prodígio. Tinha dez anos, e alguém fê-lo subir para uma mesa e ele ali perorou, como uma espécie de Pico de Mirandola da política, sobre todos os assuntos, sem ter ajudas. Confiou-nos, por exemplo, e sem vacilar, a sua teoria pessoal sobre os impostos. Era muito inteligente. O curioso é que este orador de dez anos tornou-se, aos trinta, um jornalista talentoso, um verdadeiro estudioso, o Sr. Kohn-Abrest. Fala menos e escreve melhor. Geralmente as pequenas maravilhas, como árvores que florescem demasiado cedo, não dão fruto assim.

    Os assuntos do planeta giravam na época em torno da Europa, a Europa girava em torno da França e da Alemanha, e estas duas nações giravam em torno de Bismarck e Napoleão III; ambos tinham emergido após as revoluções de 1848. Esse ano foi a grande cicatriz com que o século XIX se apresenta na história. Em Frankfurt reunira-se um Parlamento como jamais se assistira, com mais de cem professores e duzentos juristas, escritores, sacerdotes, médicos, burgomestres, altos funcionários, banqueiros, donos de fábricas, proprietários rurais, e alguns rendeiros, mas nenhum artesão nem operário, começaram as revoltas que derrubaram os dirigentes da Santa Aliança. Havia muito idealismo nesses homens que adotaram a bandeira negra, vermelha e dourada mas que não tinham consciência das possibilidades da revolução industrial e enchiam a boca com palavras altissonantes e a cabeça com quimeras. Alguns milhares de belos discursos e alguns milhares de mortos foram a colheita de um ano de revolução em Viena, Paris, e na Alemanha e Itália que despertavam como nações; e foi também o ano do espectro que pairava sobre a Europa. E contudo, dessas grandes expectativas ficou uma enorme desilusão, a vergonha dos vencidos e o escárnio dos vencedores. As nossas fronteiras proclamou Bismarck, “não devem ser melhoradas através de discursos e decisões da maioria — o grande erro de 1848 e 1849 — mas com ferro e sangue.

    A primavera dos povos deixou muita amargura no ar e dois homens da ordem tomaram as rédeas do poder. De um lado, Bismarck. “O príncipe é como um enorme bloco de granito assente em um prado; se o deslocarmos, encontramos por baixo minhocas e raízes secas, mais do que qualquer outra coisa“, escreverá Guilherme II. O príncipe desprezava a maior parte dos oficiais profissionais, embora lhe agradasse usar o uniforme de general das milícias. É sobretudo um antigo guerreiro germânico, como os heróis das óperas de Wagner, que trava com paixão as suas guerras privadas, seja contra inimigos internos ou estrangeiros. Tanto combate os orgulhosos companheiros da classe nobre que se lhe opõem, e os príncipes adversários austríacos; como persegue ferozmente as organizações de trabalhadores alemães, a que chama o “quarto estado” com a mesma paixão e crueldade com que os nobres medievais faziam a caça ao homem. Os seus inimigos de ontem podem ser os aliados de amanhã; durante trinta anos à frente da Prússia e da Alemanha, foi dos primeiros a criar sistemas de segurança social e tinha entendimentos com Ferdinand Lassalle, o fundador da social-democracia alemã.

    Tinha consciência que levava dentro de si um “demónio teutónico” que adorava o raio e o trovão. Há neste príncipe da era industrial algo do arcaico e das antigas raízes pagãs; acredita no poder benéfico das árvores, dos bosques, e dos animais, sobretudo os cavalos. A posse da terra, a aquisição de território desperta-lhe uma paixão irreprimível; era a herança brutal dos colonizadores prussianos do leste, que se apegam com tenacidade às terras conquistadas pelos antepassados, o que muito distingue as gentes do outro lado do Elba dos germânicos ocidentais que, como Heinrich Heine, conhecem o verdadeiro ouro do Reno.

    Do lado da França, está “Napoleão o pequeno”, como o designou Vítor Hugo num panfleto famoso. Imperador que aprecia os plebiscitos, mas também carbonário que combateu pelo despertar da Itália. Não se sabe ao certo se era filho de Luís Bonaparte, rei da Holanda; mas a sua amada mãe Hortênsia de Beauharnais, irmã da imperatriz Joséphine, incutiu-lhe uma veneração sem limites pelo tio Napoleão. Fascinado pelo efeito mágico desse nome, o jovem foi capaz de o usar para conduzir milhões de franceses amedrontados pela revolução de 1848, a elegerem-no Presidente e facilitarem-lhe o golpe de estado de dezembro de 1851, com que se tornou imperador.

    Formado nas escolas da Alemanha, nos treinos militares na Suíça e iniciando a carreira política como jovem carbonário em Itália, até 1848 é apenas um proscrito da França. Apesar do seu nome mágico, falha em 1836 um putsch em Estrasburgo e em 1840 um golpe em Bolonha. Condenado a cadeia perpétua, exila-se em Londres, onde se relaciona com poetas e artistas, e apresenta-se em festas, mascarado de Guilherme de Orange; uma mania germânica do século XIX, de personalidades como Luís da Baviera, Wagner e Nietzsche e do imperador Guilherme II que se disfarçava de pastor protestante e fazia sermões; foi usando disfarces que Napoleão III fugiu da prisão para se entregar à sua missão. Ao contrário dos puros aventureiros, tinha um sentido de responsabilidade com que foi evitando as grandes catástrofes. Mas a sua hora aproximava-se. Paris tornara-se um turbilhão de danças em torno do velo de ouro, uma realidade que Offenbach descreve nas suas operetas, um estranho império que Victor Hugo increpa com a sua pena e que o próprio imperador assim descreve em 1865: “O meu governo não vai por um bom caminho; e como poderia ser de outro modo, se a imperatriz é legitimista, Morny é orléanista e eu sou republicano? Bonapartista, só mesmo o Persigny; e esse está louco.

    Nessa Europa da década de 1860 os regimes evoluem e as fronteiras políticas mudam. À margem das convulsões geopolíticas e da questão candente das nacionalidades, emerge o jovem estado federal suíço – fruto das revoluções de 1848. A vida cultural do país, na intersecção das áreas de língua francesa e alemã, e ainda italiana e romanche, pertence tinha escala europeia. Genebra era “o quinto contente”, dissera Tayllerand, um observatório ideal, um caso aparte. E nada mais natural que este cosmopolitismo atraísse o tio Fred, cada vez mais versado nas paixões políticas da sua pátria adotiva e à procura do seu pequeno lugar no grande drama da história. Sucedera que o velho deputado da extrema-esquerda Glais-Bizoin, (n. 1800) de Saint-Brieuc, um opositor dos Bourbons que se distinguia no parlamento menos pelos discursos do que pelas interrupções, vira proibida a representação de uma sua peça.   

    Vi-o e ouvi-o em Genebra, em 1866, quando os genebrinos ofereceram um banquete ao Sr. Glais-Bizoin, que ia protestar, perto do lago Genebra, contra a censura que proibia uma das suas comédias em Paris. Rigor estupidamente inútil: se a peça La vraie courage tivesse sido autorizada, nada teria mudado em França; não haveria nem mais um dramaturgo. Mas este bretão Glais-Bizoin, resoluto e militante, quis protestar contra a arbitrariedade. Fez com que a comédia proscrita em Saint-Brieuc e Paris fosse apresentada na Suíça; e à sobremesa, um distinto jovem, que era precisamente o Sr. Frédéric Kohn, fez-lhe um brinde eloquente.(…)”

    [CONTINUA]


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  • O mais estranho almoço

    O mais estranho almoço


    — Tu é que escolheste o restaurante.

    — Eu sei disso, pá. Ou achas que estou senil? Mas isto hoje está horrível. Que queres que te faça? É irritante atirares-me isso à cara. Isto era o meu cantinho favorito. Hoje, é o pior restaurante em que já estive. Além disso, está aqui um cheiro…

    Puxei os meus ombros para a frente, aproximei a minha cara da cara do meu amigo, fixei um olhar trespassante nos seus olhos e disse-lhe:

    — Meu, tu hoje dizes mal de tudo. Do cheiro a cão no teu elevador, dos fones que compraste, do Trump, do Biden, do riso da Kamala, do Maduro, do Irão, do Netanyahu, do Hamas, dos senhorios, dos inquilinos, do SNS, da medicina privada, das obras dos teus vizinhos que não te deixam dormir…  Até com o empregado já implicaste.

    — Mas discordas do que disse? Explica-me lá em que é que estou errado, então. E demonstra-me porque é que estou errado. Diz lá. Quanto ao Mário que trabalha aqui, não sei o que lhe deu hoje. O gajo é que está nitidamente a querer implicar.

    people walking near buildings

    — Não é isso. É que só puxas assuntos para dizer mal. E falas com tanta, tanta ira. Repara só nisto: conseguiste criticar tanto quem fala das alterações climáticas como conseguiste criticar tanto não se fazer nada contra as alterações climáticas. Não sei como queres combater algo que dizes não existir. É, no mínimo, muito confuso.

    — Eu tinha-te como um gajo informado. Se achas que o mundo está bem, vou ter de reconsiderar a tua inteligência.

    Fechou os olhos, levou a mão direita à testa e disse:

    — Este cheiro dá cabo de mim.

    — Não queres ir para a esplanada?

    — Já te disse que não.

    — Então, não sei.

    — Que cheiro tão intenso. Que agonia, pá. Não te cheira a nada?

    — Não.

    — Só podes estar com problemas de olfacto. Tens de ir ao médico. Estou a falar a sério.

    Em dado momento, o meu amigo teve um clarão:

    — Isto é naftalina!

    Levantou-se e deu uns passos para inspeccionar o restaurante com o nariz, executando inspirações muito rápidas e audíveis. Por instantes, o movimento frenético do seu nariz fez-me representar mentalmente um cão com um metro e setenta e oito centímetros. Algumas cabeças de outras mesas moviam-se para o fitar, e um vetusto senhor interrompeu a sopa e mexeu involuntariamente os lábios perplexos, numa manifestação bucal de quem fita um indivíduo a falar sozinho na rua, proclamando ser Jesus Cristo.

    Quando regressou à nossa mesa, decretou com uma expressão facial de detective:

    — Isto é naftalina misturada com outra coisa.

    Como não comentei, por não sentir nenhum odor estranho, acrescentou:

    — Que esterco, pá. Que nojo, pá. Não bastava já o estado da comida.

    — Meu, estás com a telha hoje. Falas de tudo com uma fúria. Olha, esta massa está muito boa.

    — Eles estragam isto tudo com os molhos, designadamente a massa. A gastronomia nunca foi a tua especialidade.

    — Pois não.

    — Este cheiro é uma coisa…

    — Ó meu, aquele senhor de bigode branco já olhou para ti como se fosses um maluquinho quando te puseste a farejar.

    cooked pasta

    — Eu quero lá saber. Dás muita importância ao que os outros pensam. Não é admissível comer com este cheiro.

    — Ainda bem que sou desprovido de olfacto, apesar de sentir o cheiro da comida.

     — É porque a comida estragada tem um cheiro mais forte.

    O meu amigo pegava nervosamente no telemóvel a todo o instante, suspirando e bufando. Olhei para o seu relógio de pulso e comecei a ver o movimento dos segundos. Prometi a mim mesmo fazer contas.

    — Não paras de mexer no telemóvel e de olhar para todos os lados depois. Já contei: em média, de sete em sete segundos, consultas o telemóvel. A seguir, olhas para a frente, para a esquerda e para a direita, para trás. Estás neste ritual desde que chegámos.

    — É para me abstrair desta comida putrefacta. Tenho a certeza de que vou ficar doente.

    — Então, não comas mais.

    — Tanto faz. Se for para ficar doente, já comi o suficiente. Só esta pestilência dá cabo da saúde de qualquer um.

    Em dada altura, o meu amigo gritou:

    — Porra, olha para esta merda! Vou chamar o empregado.

    — Deixa ver.

    — É um cabelo. Foda-se, só faltava cabelo no meio desta carne podre. Que bosta, pá! Foda-se.

    Analisei o putativo cabelo, enquanto o meu amigo consultava o telemóvel e praguejava.

    — Meu, isto é um fiozinho de roupa. Acho que é da tua camisa.

    — É um cabelo.

    — É esverdeado.

    — Há quem tenha o cabelo verde.

    — Isto não é um cabelo em parte nenhuma do mundo.

    — É. E não é verde. Além do olfacto, tens de ver também esse problema de daltonismo. Tu não estás bem. É o olfacto, é a visão. Olha que isso pode ser neurológico.

    — Meu Deus, dai-me paciência para o aturar.

    — E a mim dá-me o triplo da paciência.

    — Está tudo mal, menos tu. Ao menos, coopera com quem te ajuda.

     — Vou mas é pedir ao empregado que me troque o prato. Vou pedir outra coisa, que isto está uma bela merda. E agora até cabelos tem. Estou com a nítida sensação de comida estragada na boca. E este cheiro não sai… Aposto que vou passar mal a noite. É hoje que peço o livro de reclamações. A ASAE tem de vir cá. Por muito menos, já fecharam outros estabelecimentos. Isto hoje é de mais, caralho.

    Amarguinha liquor bottle on empty dining table

    O telemóvel do meu amigo sussurrou um chilreio por um instante.

    Agitou-se na mesa e, ao agarrar no telemóvel, deixou cair o garfo. No meio da dança de braços e objectos, ficou com bastante molho a destoar no verde da camisa e no dedo mindinho da mão esquerda, que pingava. Submerso no telemóvel, não deu conta da subtracção de um objecto da mesa nem do molho. Decidi levantar-me, peguei no garfo e passei o guardanapo pelo talher muitas vezes, até o repor na mesa. O meu amigo não deu conta de nada, e eu ouvia-o murmurar uns sons imperceptíveis.

    — Estás a gemer?

    Ele continuava com os olhos presos ao telemóvel.

    Esperei largos momentos, enquanto observava uma metamorfose facial.

    — Até os teus dedos dos pés e os botões da tua camisa sorriem.

    Ele nada disse, e eu olhei para o círculo de molho na camisa, mas decidi calar-me. Um sorriso ocupava-lhe toda a largura da cara.

    Quando voltou a si, o meu amigo pediu-me desculpa pela demora.

    — Não ias pedir outro prato?

    — Ah. Não. Isto come-se. Vou pedir uma sobremesa.

    Acabou de comer a carne num ápice, chamou o empregado e pediu «o de sempre».

    — Estas farófias são óptimas. Acho que vou pedir outras. Não queres provar?

    — Não gosto muito de farófias.

    — É porque não provaste estas.

    Os suspiros davam agora lugar a murmúrios de prazer quase sexual.

    — Que coisa tão boa.

    Peguei numa colher e saboreei umas farófias medianas.

    — Também tens uma baba-de-camelo que é uma maravilha. Posso dividir contigo.

    O meu amigo pediu baba-de-camelo ao empregado com quem discutira.

    — Ó Mário…

    Repetiu o nome com suavidade e doçura:

     — Ó Mário… somos amigos desde que havia dinossauros. Há bocado, fui parvo contigo. Não faças caso.

    O empregado deu-lhe uma palmada amiga no cocuruto e perguntou-lhe se ele queria um tira-nódoas, mas o meu amigo disse que não. Pareceu-me não ter percebido que tinha uma grande mancha na camisa.

    — Já não te cheira a naftalina?

    A sua cabeça absorta inclinava-se de novo sobre o telemóvel, como se o destino pendesse do que ali morava. Era a fácies de quem examinava e reexaminava até ter a certeza de que a sentença de morte fora, afinal, uma troca de nomes.

    Esperei uns momentos e repeti a pergunta num tom alto e grosso:

    — Ouve lá: já não te cheira a naftalina?

    silver iphone 6 on white sony device

    — Já passou.

    Os seus olhos moviam-se da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como se desenhassem linhas.

    Quando veio a conta, decidiu que me pagava o almoço. Sendo a forretice, de longe, o seu pior defeito, disse-lhe que não, imaginando o que lhe doeria.

    — Quem convida é quem paga.

    — Isso nunca foi regra entre nós.

    Agarrou na conta, puxou de um cartão e acenou ao empregado.

    — Se quiseres, dá-lhe uma gorjeta.

    Pus todas as moedas de todas as cores que tinha em cima da mesa.

    — Fazes bem. O Mário é muito porreiro.

    — Tu é que estavas danado com ele.

    — O gajo é seis estrelas. Este restaurante só tem empregados muito bacanos. E come-se maravilhosamente aqui. Não achas?

    — O meu prato estava muito bom.

    — Esta vista é uma coisa incrível. Olha lá…

    Aquiesci.

    —  Por este preço, comer assim, ser tão bem atendido e ainda ver este rio ao fundo… Não conheço restaurante melhor. E tem as melhores farófias e a melhor baba-de-camelo do mundo.

    — Gostaste, então?

    — Já comi melhor aqui, mas gosto sempre.

    — Voltarei de bom grado. Ouve lá: ainda achas que há oitenta por cento de probabilidades de haver uma III Guerra Mundial nos próximos cinco anos?

    a piece of paper sitting on top of a table

    — Como assim?

    — Estou a citar ipsis verbis o que disseste no início do almoço. Disseste que íamos os dois respirar poeira atómica brevemente.

    — Oh… isso foi metafórico.

    — Metafórico?

    — Não vai haver guerra nenhuma. Vamos dar um passeio pelo rio e fazer a digestão?

    Levantámo-nos e caminhámos pelo rio.

    — Já viste o luxo que é andarmos aqui a ver este azul com este sol depois de uma refeição destas?

    — O poder que elas têm sobre ti é tremendo, não é?

    O meu amigo passou o braço por trás do meu pescoço e pousou a mão no meu ombro direito.

    — A vida é bela, amigo. Somos todos perecíveis, o importante é encher a vida de coisas belas e com significado. Nós é que complicamos, porque contabilizamos sempre o que nos falta e não o que temos. Celebremos a nossa amizade, mas é. Tinha saudades de estar contigo, pá.  

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Portugal e o escrivão Isaias Caminha

    Portugal e o escrivão Isaias Caminha


    Um dos maiores escritores brasileiros, Afonso Henriques de Lima Barreto precisou recorrer a Portugal, em 1909, para dar início a sua vida literária porque não encontrou no Brasil quem quisesse publicar o seu primeiro, cáustico e corrosivo, romance: Recordações do escrivão Isaias Caminha.

    Editada, a brochura de pouco mais de 300 páginas, de capa cor de vinho, atravessou o Atlântico e foi recebida em Pindorama pelo mais estrondoso silêncio. A recepção que teve dos jornais e críticos brasileiros – que viviam a exaltar toda e qualquer bobagem impressa, mas com forte preferência pelas rimadas – foi quase nenhuma.

    Por que era maldito o tal livro? Porque, na verdade, era uma devastadora crítica à imprensa brasileira (carioca) daquele tempo. Era uma obra em que pessoas e eventos reais apareciam com nomes fictícios. Aliás, há uma expressão francesa para esse tipo de publicação, mas deixamos de reproduzi-la aqui porque soa mal em português.

    LIma Barreto (1881-1922)

    O livro conta a história de um jovem pobre, mestiço, interiorano, estudioso e inteligente, que acaba por ir trabalhar no principal jornal do País na época, O Globo. Nada a ver com a publicação que hoje tem este nome. O objetivo a ser torpedeado era, de fato, o Correio da Manhã, um dos principais veículos daquele tempo.

    Todos os podres dos repórteres e redatores – suas trampolinagens, safadezas, espertezas, vigarices e patifarias – vêm à tona. Ficamos sabendo como uns e outros ganhavam um dinheirinho extra escrevendo – ou silenciando – sobre os ricos e poderosos. A mais rentável dessas falcatruas era a obtenção de cargos públicos bem-remunerados.

    Muitos escritores reconhecidos aparecem com nomes alterados no relato do escrivão Caminha brasileiro. Os dois mais notórios deles são Coelho Neto, maior best-seller da época, que surge como Veiga Filho, e o cronista João do Rio, que aparece na pele de Raul Gusmão.

    Há uma curiosa referência a Portugal no livro. Os maiores anunciantes nos jornais da Cidade Maravilhosa, naquela época, eram os lusitanos, que dominavam o comércio local. De repente, alguém, antecipando o inferno da cobrança politicamente correta, lembra que o Correio da Manhã não conta com um luso na sua redação.

    O dono do jornal trata então de buscar na Terrinha um plumitivo que preencha a cota destinada a nascidos na península ibérica.

    Seguem aqui uns recortes, editados por mim, do trecho em que se trata da importação desse panfletário alfacinha:

    – Como poderíamos arranjar um português para redator, dize lá?

    – Encomenda-se a Portugal.

    Capa da edição original, publicada em Portugal em 1909. No Brasil foi publicada apenas em 1917, numa edição revista e aumentada.

    E fui eu encarregado de levar o telegrama ao submarino. Não se tratava já de um redator; pedia-se a uma livraria de Lisboa um redator e dois correspondentes literários.

    Os correspondentes já estavam arranjados, mas não havia quem quisesse vir.

    – Cá está ele… Está arranjado.

    Embarcaria no primeiro paquete. Era espirituoso, entendido em coisas portuguesas e queria setecentos mil réis fracos.

    – Sabes, Pranzini, temos um homem… De Lisboa chegou-nos a resposta.

    – É bom… Vocês sabem, sem português, nada aqui vai adiante. Os patrícios exigem, é justo; eles são talvez trezentos mil, pagam rios de dinheiro em anúncios – é justo.

    Vale transcrever aqui outro texto divertido, que é o da conversa entre o dono do jornal e o Lobo, gramático encarregar de zelar pelo idioma camoniano.

    – Ora, Lobo. Já vem você!

    – Mas, doutor, a língua é uma coisa sagrada. O culto da língua é um pouco o culto da pátria. Então o senhor quer que seu jornal contribua para a corrupção desse idioma de Barros e Vieira…

    – Qual Barros, qual Vieira! Isso é brasileiro – coisa muito diversa!

    – Brasileiro, doutor – falou mansamente o gramático. – Isso que se fala aqui não é língua, não é nada; é um vazadouro de imundícies. Se frei Luís de Sousa ressuscitasse, não reconheceria a sua bela língua nessa amálgama, nessa mistura diabólica de galicismos, africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, cacotenias, hiatos, colisões… Um inferno! Ah, doutor! Não se esqueça disso: os romanos desapareceram, mas a sua língua ainda é estudada.

    brown canyon during golden hour

    Fechemos com um pouco da vida de Lima Barreto, autor ainda de outros dois belos romances: Triste Fim de Policarpo Quaresma (para muitos sua maior obra) e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.

    Nascido no Rio de Janeiro, em 1881, morreu naquela mesma cidade em 1922. Embora de família pobre, teve educação esmerada. Ingressou na Escola Politécnica, mas jamais conclui o curso de engenharia. Tornou-se funcionário público por concurso. Órfão de mãe desde a infância, cuidou de seus irmãos e de seu pai, que padecia de doença mental. É autor de centenas de contos e crônicas nos quais – usando tanto de melancolia quanto de ironia – deixa claro o imenso amor que tinha por sua cidade natal, em especial por seus subúrbios, e pelos seus mais humildes habitantes.

    Lourenço Cazarré é escritor


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