Categoria: Cultura

  • Verde, verde… 

    Verde, verde… 

    Raimundo nasceu em berço de ouro. Na verdade, em berço dourado, mandado fazer de propósito para o único filho da família Souza. O menino medrou. Cresceu. Cresceu. Cresceu. Diziam os pais que o rebento era espigadote. Os avós, que era bom para ir ao figo. Os amigos, que devia jogar basquete. E ele, que não compreendia o que significava espigadote, nunca tinha visto uma figueira nem gostava de basquetebol, ignorava os comentários. Aliás, tudo lhe era indiferente. Sem preocupações e sem nada melhor para fazer, crescia.

    A escola era um grande aborrecimento.  Os professores chamaram a atenção dos pais. O rapaz andava desinteressado e em más companhias:

    ⎼ Já não basta ele andar de cabeça no ar. Olhem que o Carlos não é flor que se cheire. ⎼ avisaram.

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    Com uma longa carreira no ensino,  o diretor afirmava que o problema do rapaz era falta de motivação. Estava enganado. Muito enganado, como se veio a provar quando o Sr. Souza adquiriu o colégio. O Raimundo passou a ser o primeiro a chegar e o último a sair. Sentia-se em casa. Tornou-se um aluno exemplar. Não falhava o quadro de excelência. Ele e o Carlitos, quem diria?

    Por esta altura, o Carlos jogava futebol e o Raimundo decidiu entrar também para a equipa. O treinador dizia que o rapaz era grande, mas não era grande coisa. A Souza & Filho Lda. não tardou em perceber as dificuldades do clube da vila. Um patrocínio generoso. O nome da empresa estampado nas camisolas dos jogadores. O estádio pintado de fresco. A bancada presidencial renovada. E, finalmente, um treinador capaz de reconhecer o verdadeiro talento. Raimundo, esse, perdeu o gosto pelo desporto. Já não lhe apetecia.

    Entediado, deambulava horas e horas pelo calçadão, junto à praia. Certo dia, perdeu-se de amores por uma ruiva que ali passava. Não a voltou a ver, mas tinha a certeza de que era o amor da sua vida.  Sentado na gelataria, lambia colheradas de gelado de baunilha e procurava-a com o olhar. Enquanto isso, crescia, crescia, crescia. Para passar estas horas lentas e acalmar o coração, começou a versejar. Rimas únicas, de uma singularidade irrefutável: amor a rimar com pavor; olhar com almoçar; correr com morder; amanhã com maçã; mulher com colher; coração com leitão. Quatro longas tardes. Dezenas de poemas. Era obra. Reuni-la em livro, inevitável. O pai, que nem era apreciador de poesia, ficou fascinado. Reservou para si 500 exemplares. Toda a tiragem. Não houve cliente, fornecedor ou funcionário da Souza & Filho que não recebesse um volume de A ruiva que me cativa. Estava ali um grande poeta, sim senhor:

    – Um Pessoa, se ele quisesse! exclamou o professor de literatura.

    Mas o Raimundo não tinha vontade de continuar a escrever. Estava visto que a ruiva não voltava e já estava tudo dito.

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    Uma banda! Uma banda é que era! A música nunca fez mal a ninguém. Tinha tocado flauta no colégio. Um saxofone não havia de ser assim tão diferente. O Carlos era afinado. Podia ser o vocalista. Comprou mais uns instrumentos, o pai mandou preparar uma sala de ensaios na cave. Juntou uns amigos e  formou a Raimundo & Friends. Ensaiaram uns dias. Gravaram duas músicas e enviaram-nas para uma conhecida editora de Lisboa. A resposta foi estranha: queriam conhecer o Carlos. Não fosse haver engano, o motorista da empresa levou os dois amigos até à capital. Mas não havia. Queriam mesmo conversar com o Carlos. Seguiu-se um concurso de novos talentos. Depois o Festival da Canção, um CD, a rádio, concertos… O Carlos não parava. O Raimundo já mal conseguia falar com ele. Assistia ao longe, fascinado pelas ovações, pelos elogios, pelos grupos de fãs que seguiam o amigo por todo o lado.

    Enquanto isso, a Raimundo & Friends continuava a ensaiar. Tocavam nos bares e restaurantes da vila, nos bailes, nas feiras. Entristecia-os ver o público conversar enquanto atuavam. As bocas cheias de farturas, de fogaças, de sandes de porco no espeto. O Raimundo foi desanimando. E, à medida que desanimava, a sua pele ganhava um tom estranho. Esverdeado. Os médicos não conseguiam explicar. Fechava-se cada vez mais no quarto. Seguia quase ao minuto a vida do Carlos. Parou de crescer. Encolhia, ao invés. Completamente verde.

    Na vila, a mudança não passou despercebida. Tornou-se tema de conversa. Havia teorias:

    ⎼ É da comida. Só comem porcarias. ⎼ dizia a D. Amélia.

    ⎼ Eu digo que é da água. Está cheia plástico. ⎼ respondeu o Sr. Jorge.

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    ⎼ Aquilo é da vacina. Eu bem avisei, mas não quiseram acreditar. ⎼  afirmava a D. Manuela, feliz por finalmente provar que tinha razão.

    Uma velha, enrolada sobre o cajado à porta do Centro de Saúde, levantou o rosto. Com ar grave e seguro, fez o diagnóstico:

    ⎼ É inveja, digo-lhe eu, que já vi tudo.

    O Raimundo, verde, verde, continuava a mirrar. Deixaram de o ver. A vila inteira foi mobilizada. Nada. Nem sinal do rapaz. Tinha encolhido tanto que tinha de se esconder não fossem pisá-lo.  Um dia, aproveitando a calma do amanhecer, trepou a uma folha de malva para apanhar os primeiros raios de sol. Estendeu-se, espreguiçou-se, bocejou. Uma toutinegra ensonada saiu de dentro de um arbusto e comeu-o.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Num futuro perto de si

    Num futuro perto de si


    Um homem jazia no centro da sala prateada com eléctrodos na cabeça que comunicavam com um computador. A tela exibia o cérebro com várias cores.

    — Com um simples toque no botão, conseguimos eliminar as memórias traumáticas, as maiores tristezas, os maiores medos. Sairá daqui um ser renovado. Esta criatura apegou-se à religião, a psicólogos, a psiquiatras. Em segundos, sairá liberto de todos os seus problemas.

    Os dois continuaram a caminhar.           

    — Está a ver esta mulher?               

    — Sim.

    — A mãe repudiou-a, o pai abusou dela sexualmente… Viveu na pobreza material e emocional, o seu companheiro batia-lhe, foi prostituta, drogada, alcoólica. Está a ver o grau de dor que esta senhora transportou nos últimos anos? Veja bem — o seu dedo indicava uns gráficos numa tela. — Uma dor intolerável. Mutilava-se para deslocar a dor. Acha isso agradável? Só não recorreu ao suicídio por causa da ideia bacoca da fé. Converteu-se ao veneno da religião, porque nada mais lhe restava. Com esta máquina, vamos inocular no seu cérebro cargas de fx47 até que se recomponha. Ela pediu que não removêssemos memória…

    — Pessoas de palavra.

    — Deixe lá a palavra e o valor da palavra… Por higiene, dispenso ouvir a tralha dos «valores». O importante é maximizar a utilidade. Os valores cegam a capacidade de ver o real, enquanto os resultados são objectivos e verificáveis. Este método tem uma eficiência menor do que o primeiro. Se isto não funcionar, se isto não funcionasse, quero eu dizer, teríamos de remover memória. 

    — Já têm casos de êxito?

    — Meu Bom Deus da Tecnologia! Quantos!

    — Mas li um estudo há duas semanas…

    — Duas semanas! Homem, na sociedade tecnológica, duas semanas são uma eternidade! Isso já não tem validade nenhuma. Isso é para arqueólogos!

    — Que lhe garante então que as verdades provisórias de hoje não sejam as mentiras de amanhã?

    — Você é um homem de museus, já percebi. Não quer ou não consegue acompanhar a velocidade do progresso. Os próximos milagres a que irá assistir talvez lhe dêem a dimensão…

    Uma porta abriu-se.

    — Viu? A porta respondeu ao meu desejo. Nesta sala, estamos a trabalhar no sentido de que os objectos respondam automaticamente a apetites do cérebro. A fé move montanhas aqui! Desejo, logo tenho.

    — Se tiver o dinheiro para isso.

    — Isto é apenas o princípio do princípio. Já imaginou o que será quando cada humano tiver o que deseja mal o desejo nasça?

    — Parece-me que a estrada natural é interrompida: definição do objectivo, esforço, concretização do objectivo, satisfação. Levando ao limite: conseguir tudo o que se quer sem fazer nada por isso pode ser quase tão desmotivador no longo prazo como não conseguir quase nada do que se quer fazendo tudo por isso. Ponderaram as consequências disto e de como o cérebro dos humanos deixará de ser um músculo exercitado?

    — Lá vem a cantilena das cavernas… Para já, humano é um conceito em transição. Nós não ponderamos, homem, nós andamos a reboque da tecnologia… Mas ouça: se preferir ir a pé para outro continente a usar tecnologia… vá! Entendeu?

    Andaram mais uns passos.

    — Conhece esta cara, certamente…

    — Este é o sujeito que anda a ser procurado…

    — Exactamente! Os robopolícias apanharam-no. Este indivíduo é… ou era… extremamente violento. Um agressor. Teve de ser internado aqui. Veja ali — apontava para um gráfico. — Os nossos aparelhos já diminuíram 873 tmy do seu índice de agressividade. Está um doce. Mas ainda queremos fazer mais. Muito mais. Bem, deixe-me mostrar-lhe uma coisa.

    Com o comando, desligou uma máquina.

    — Levanta-te.

    O homem levantou-se e sorriu.

    — Tu és um cabrão de merda! Vai para o caralho! A tua mãezinha chupa a minha pila como ninguém.

    O homem continuou sorrindo.

    — Toma, seu filho de puta! — disse, enquanto lhe dava uma vigorosa chapada na cara.

    O sorriso permanecia.

    — E agora só para ti…

    Um grande escarro acertou na cara do outro.

    O homem limpou-se, balbuciando palavras de repreensão.

    — Senta-te! Imediatamente!

    O sujeito obedeceu.

    — Temos de continuar a trabalhar nele. Ainda mostra sinais de rebeldia. Se tivesse vindo para cá mais cedo, não teria matado ninguém.

    — Se isto é um homem…

    — Já não era um homem antes! Era um monstro! Agora… é um monstrinho inócuo.

    — Mas…

    — Você é o homem do «mas»! Já sei, já sei! O discurso do Homem Fossilizado… Os velhos preconceitos: contra naturam, a identidade, a autonomia, o livre-arbítrio, o domínio da mente por forças exógenas, blá-blá-blá. Isso é uma visão de fora. Uma abstracção típica de quem está preso à canga dos filósofos, dos poetas. Mas vou adaptar-me ao seu linguajar. Deve gostar de conceitos arcaicos como liberdade e justiça. À luz dessas obsolescências, tente entender que a tecnologia também é boa. Somos todos escravos: do sítio em que nascemos, da família, da idade, dos genes. Pois bem, é dessa escravatura que nos estamos a libertar. Da dupla escravatura do Homem e da sua circunstância. Repare na idade: a degenerescência, a falência dos órgãos. Essa escravatura está a ser contrariada. Estamos a transplantar cérebros para corpos autónomos. Poderemos chegar muito longe. Acha a lotaria dos genes algo justo e libertador? Pois também essa escravatura está a ser corrigida. Bem, vamos para a próxima sala.

    Entraram na sala com maior número de imagens e sons.

    — Sala das Evasões… Esta sala sozinha tem aguentado o sistema… enquanto as outras não avançam significativamente… Estamos a trabalhar em filmes, músicas, vídeos, jogos, produtos de consumo, publicidade de produtos e ideias. Isto é uma parafernália. Estamos a trabalhar nos bastidores do entretenimento, do cozinhado perfeito das emoções induzidas… Num estádio mais avançado, esses próprios instrumentos serão desnecessários. Passo a explicar: se uma pessoa sente uma ou duas emoções fortes com um filme ou um livro, porque não tocar directamente na corda dessas emoções num instante, em vez de se perder tempo com poemas, enredo, personagens, essa treta toda? Queremos conhecer o cérebro até o dominar completamente.

    — Se esse poder cair em mãos…

    — O seu preconceito pessimista crónico… Coitado de si! Que infeliz!

    — Quem legitimou esse poder? Quem vos deu esse direito de enganar e manipular as pessoas?

    — Largue a posição de provocador e ponha-se na de aprendiz. Talvez lhe entre algo na massa encefálica… O senhor não mentiria para salvar a sua filha de ser morta? Temos mais informações sobre a sua filha do que o ela tem sobre si própria, fique sabendo. Cale-se e não ponha a verdade acima da felicidade. A coisa passa-se assim… Quer sentir calma? Sentirá. Quer sentir excitação? Sentirá. Não quer, mas precisa de sentir para não pôr em perigo outros nem alimentar ideias anti-sistema? Sentirá também. Melhor ainda: quer sentir-se anti-sistema? Nós damos-lhes mecanismos para alimentar essa ilusão.

    — Nem lhe pergunto se quem toca na corda de pôr o outro feliz, artificialmente feliz na minha estreita e obsoleta cabecinha, não poderá igualmente tocar na corda do sofrimento e provocar os maiores horrores. Tirando este senão de pessimista…

    — Homem, isso será útil para a tortura mais apurada. Você é amigo de algum terrorista? Se não é, não percebo a sua reserva. Mas o caminho que trilhamos, ou que queremos trilhar, não é o da repressão, é o da diversão.

    — Permita-me apenas fazer-lhe notar que essa bela ilha, não lhe chamarei de estupidificação para não lhe causar melindre, essa bela ilha de diversão ou de alienação que me apresenta, essa fuga sem a qual os humanos não suportariam viver na sociedade hodierna, afasta o ser humano da sabedoria, da procura interior, das coisas que o elevam… Isto não tem uma base técnica e, por isso, não percebe.

    — Não pessoalize. Não é de mim ou de si que se trata. É de algo colossal, do qual assumo orgulhosamente a minha condição de servo.

    — Nem é perceber… é sentir. Há coisas verdadeiramente importantes que não têm necessariamente justificação ou base técnica, como os direitos humanos, a liberdade, a poesia lato sensu.

    — Homem, as pessoas não querem ser sábias nem comem abstracções; querem ser felizes. Temos aí uma caterva de arruinados cerebralmente que estamos a recuperar por causa da «procura interior». E, além disso, você nem enxerga o paradoxo criado pelo seu caos mental quando fala da «sabedoria»: nós aqui laboramos no sentido do conhecimento do cérebro!

    — Para que as pessoas sejam plasticina nas vossas mãos.

    — Liberte-se do poder das palavras dos Fossilizados… Faça esse favor a si próprio! Não fique no triste papel do último resistente. As intenções não contam, contam os resultados. Se discorda, responda a si próprio: preferiria que um bem-intencionado ajudasse a atravessar a velhinha sua mãe na estrada e isso tivesse como corolário o atropelamento da sua progenitora ou que alguém que a tentasse matar não conseguisse sequer arranhá-la? Aquele jogo ali, homem — apontava com o olhar e o dedo indicador —, vai ser a maior droga que já existiu! Irá, aliás, benemeritamente substituir muitas drogas que matam e arruínam lares. Veja os olhos esbugalhados daquele indivíduo. Não pensa em mais nada! Só no jogo! Mas ainda estamos a aprimorar a necessidade de dependência e a capacidade de alheamento que o produto provoca.

    — Mas o vício não é prazer, requer obediência e mata a liberdade.

    — Veja se percebe… Se não há uma fracção de segundo para o desprazer durante o jogo e se o jogador consegue estar sempre imerso no jogo, um mínimo de lógica dir-lhe-á que ele é feliz a tempo inteiro.

    — No próprio jogo, suponho que tenha de haver desprazer para depois haver prazer. Ganhar sempre tornaria o jogo bocejante mais dia, menos dia. Mas vejo que temos conceitos diferentes de felicidade… Felicidade, no meu pobre espírito, não é maximizar o prazer, é o tom de fundo, a paz, a satisfação interior para lá dos bons e maus momentos. O que me mostra são apenas poderosas drogas que criam um mundo virtual, mas, ainda assim, nos interstícios, quando o indivíduo volta ao real, quando se olha ao espelho…

    — Está tudo pensado. O jogo é tão viciante, que quase não haverá interstícios. Até porque não os queremos a causar distúrbios. Quanto ao mais, temos comprimidos para os interstícios. Homem, veja o que está à sua volta e deixe a realidade destruir os pedregulhos do seu cérebro. Eles estão deliciados, não se queixam, mas você quer que eles se queixem de coisas etéreas, de conceitos que o aprisionam a si, educado, rigidamente educado que foi na velha escola caduca dos líricos. O seu ódio da teologia do lirismo cega-o! Isto é útil para o jogador e, não menos importante do que isso, mais seguro para todos.

    — A vossa utopia reside em o Homem, ou um arremedo dele, passar a adaptar-se totalmente às necessidades do sistema tecnológico. Apesar de ser beato da tecnologia, sendo a sua condição a de humano, pergunto-lhe se considera a hipótese de um dia os próprios humanos serem dispensáveis em certo estádio tecnológico?

    — Dormi a meio da sua prédica… Você insiste em querer suscitar problemas… Que dizer? Um asno é mais inteligente do que você. Vejamos, então, à luz do Homem, como é que as coisas se passam, meu caríssimo poeta. Olhe para eles, olhe para eles… Eles não nos ouvem. Os jogadores conseguem esquecer-se dos problemas individuais, dos problemas da sociedade, e os outros deixam de ser prejudicados por eles. É difícil para si entender que todos ganham?

    — Uma maravilha, ainda que isto talvez não seja atacar o problema pela raiz. Nem me atreverei a aventar que o sistema estará a ter cada vez mais casos de inadaptados, de pessoas que não conseguem sobreviver mentalmente nele e que aquilo que me mostra são apenas as formas que o sistema tem de garantir a sua preservação e expansão. Observo apenas que o sábado deixa de ser feito para o Homem; o Homem volta a ser feito para o sábado. Digo-lhe ainda que, por incapacidade minha certamente, tenho alguma dificuldade até, imagine!, em aderir a propostas que resolvam todos os problemas de toda a gente.

    — Ora aí está o lastro da pequenez mental… São milénios de provincianismo a falar na sua cabeça. Tente não pensar e observe. Areje os neurónios… Veja a cara de entusiasmo dos jogadores, estão possessos pelos deuses! Veja, veja, veja — gesticulava num frenesi — e deixe-se de uma vez por todas de observações idiotas. Venha agora conhecer os nossos geneticistas…

    — Sim…

    — Está a ver? O gene do crime, de uma série de doenças físicas e mentais, da própria fealdade… Caminharemos para erradicar tudo isso com o corrector dos genes!

    — O crime, por exemplo. Se alguns pais que saibam precocemente não quiserem…

    — Você tem um problema mental estrutural! — interrompeu-o. — Só se concentra no acessório em detrimento do miraculoso. Tenho outra visita a seguir. Não tenho muito mais tempo para si. Queria só mostrar-lhe a Sala Eros. A textura e o olfacto são finalmente equiparáveis à audição e à visão. As pessoas podem tocar-se e cheirar-se a qualquer distância. Iremos dar um salto quântico. Todas as fantasias poderão ser realizadas. Ainda não temos autómatas e autómatos perfeitamente confundíveis com os humanos, mas as similitudes são cada vez maiores. O humano já conversa com o autómato, já se excita. Acha justo um homem ou uma mulher ou qualquer outro género não poder ter uma vida sexualmente cheia por ser menos atraente, seja por que motivos for? E as parafilias? Não acha mais saudável para todas as partes as parafilias poderem ser vividas sem causar dor a outro? As criaturas que vê não sentem. Esta sala tem diminuído as neuroses. E de que maneira!

    — Muito bem, então. Estou convertido. Está na hora…

    — Pois está… Ninguém é infinitamente estúpido, não é verdade? — disse, fazendo que os seus olhares se cruzassem. — Que achou disto tudo?, diga lá.

    — Não sei se é um inferno paradisíaco ou um paraíso infernal. Estava a pensar no seguinte: um homem tirano tem uma propriedade em que trabalham quinhentos trabalhadores de manhã à noite. Com as vossas drogas, eléctrodos, implantes, comprimidos, eles são totalmente obedientes, produtivos e, note bem, felizes. Mas pergunto-lhe: deixam de ser escravos?

    — Não precisava de dizer nada. Ah, ah, ah. A sua actividade cerebral foi captada. Esteve sempre em tensão, sempre dominado pela raiva e pela repulsa. Provavelmente, quereria sair daqui e pôr uma bomba nisto tudo. Deve julgar que andamos a dormir.

    Umas correntes nasceram do chão e imobilizaram o homem.

    — Não sairá daqui… Tem duas hipóteses: ou morre, ou é lavado e enxaguado cerebralmente, passando a integrar esta casa como funcionário exemplar.

    — Escolho a primeira hipótese.

    — Seja feita a sua vontade.

    Passados uns segundos, atirou:

    — Nunca houve senão segunda hipótese. Ah, ah, ah. Sossegue, a sua memória não guardará um átomo das suas obtusas convicções.

    O chão cindiu-se e o futuro funcionário exemplar foi arrastado para uma sala de maquinaria.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um parque humano

    Um parque humano

    Estava calmamente sentado debaixo de uma árvore, sozinho, num parque que já faz parte de mim – ao ponto de por vezes achar que é meu –, e nem mesmo os costumeiros mendigos e consumidores de droga que fazem parte do habitat por lá deambulavam.

    O termómetro não marcaria mais de 20 graus e pairavam algumas nuvens indistintas no céu.

    Junto a mim, passavam os patos e os cisnes habituais naquele parque extremamente verde e com um certo glamour ecológico, até parecendo que já me conheciam.

    Seriam os patos de Pequim assim tão simpáticos?

    Ouviam-se também pássaros a cantarolar e a assobiar. A atmosfera primaveril era perfeita para estar a escrever nas notas do meu telemóvel uma mensagem elaborada para uma amiga, quando vejo um polícia com ar cansado ao longe. Percebi de imediato que se dirigia a mim.

    Tinha uns 45 anos e estava de máscara. Fazia um esforço grande para se deslocar, uma vez que o solo estava ligeiramente inclinado não podendo, no entanto, considerar-se uma subida.

    Parecia que o agente acabara de correr a maratona de Nova Iorque. E como estava, efectivamente, a vir ter comigo, tirei a minha máscara do bolso, mas quando a ia colocar na boca, ele disse ainda ofegante:

    Faz questão de estar a pelo menos dois metros de mim?

    Respondi que sim. E ele continuou:

    Então o senhor não tem de meter a máscara. Boa tarde, era só para lhe dizer que tem de circular!

    Como?

    Sim, tem de circular. Pode estar no parque, mas tem de circular. É uma directiva do Governo.

    Sabe que estamos em confinamento e que foi declarada uma pandemia?

    Respirou fundo, parecia estar mesmo cansado.

    Quer dizer, não posso estar aqui mas posso andar por aí?

    Sim senhor!  Faça o que lhe disse e boa tarde.

    Enquanto se preparava para ir embora, ainda o inquiri:

    Gostava de fazer uma pergunta…

    Claro! Se souber responder…

    Sorriu envergonhadamente.

    Eu sou realizador de cinema e vídeo, e fotógrafo, estou aqui a trabalhar. A rua é o meu local de trabalho…

    Já somos dois!

    Interrompeu. Confirmei que estava com uma respiração anormal e sugeri que tirasse a máscara. Disse-lhe também que não era bom estar a inspirar o seu dióxido de carbono.

    Então se não se importa, acho que vou tirar a máscara por uns segundos. Estou a dois metros de si, não tenha medo.

    Claro que não tenho medo. Fui eu que sugeri.

    Respondi, chateado.

    Nitidamente o homem começou a ficar em poucos segundos com outra cara. Uma ligeira cor rosa apoderava-se paulatinamente do seu rosto bastante comum. Era um homem encorpado mas nitidamente parecia andar em baixo, senti também que gostava de ser polícia.

    Pode fazer então a pergunta.

    Lembrou-me.

    Como dizia, sou artista, pronto… e uso o meu telemóvel para trabalhar… então se quiser filmar ou fotografar aquela árvore por exemplo, ou aquele cisne, posso parar para o fazer? A fotografia, caso contrário corre o risco de ficar desfocada ou tremida…

    Mas é profissional?

    Sim.

    Nesse caso, sim.

    Notei que estávamos parados há pelo menos dois minutos.  

    Já agora, qual é esse critério que vocês usam? Os vírus apanham-se menos a andar?

    Pigarreou nervosamente.

    …Sim!

    Por exemplo, vão ali cinco rapazes juntos, mas em andamento…

    Apontei.

    Estou a ver…

    E é pior eu estar aqui sentado sozinho?

    Parece que sim.

    Pigarreou novamente sem convicção.  

    Ai é?

    Reforcei.

    Diz que sim…

    Mas diz que sim… Quem?

    Você não vê os telejornais?

    Mudou até de tom, tornando-se ligeiramente mais agressivo.

    Vejo. Mas eu não quero que você use a lei dos telejornais. Sentia-me mais seguro se vocês tivessem recomendações próprias… de epidemiologistas por exemplo. Estava mais seguro se o Ministério da Administração Interna contactasse directamente com a DGS, por exemplo. Não me parece que seja o caso. Até parece que quem manda são as televisões através dos telejornais.

    Não queria mais nada. Isto é uma excepção, uma emergência. Pensa que está na Noruega?

    Se é para estarem a seguir o que os telejornais dizem, não era preciso a polícia.

    Atirei só para chatear.

    Não bata mais no ceguinho. Calma!  Também não fique assim. Só mandei circular. Já não se pode dizer nada que ficam logo nervosos os artistas. Ai coitadinho!.. É muito sensível.

    Até achei piada à rápida mudança. E respondi com uma pergunta:

    Então, mas nós estamos aqui parados a falar ao tempo e agora? 

    Tem razão sim senhor.

    Mudou de atitude.

    Se calhar ficámos infectados…

    Arrisquei. O homem pôs automaticamente a máscara e disse:

    Tem razão. Vamos circular.

    Fez uma pausa e quando ía para despedir-me e agradecer-lhe pelo facto de me deixar estar parado a fotografar, o polícia ainda com cara de chateado, perguntou intrigado:

    Que género de filmes faz?

    Policiais.

    Menti.

    Policiais?  Percebe a situação?

    Deu uma gargalhada.

    Está a falar com um polícia e tem uma câmara na mão, um telemóvel, vá. Tem piada. Também gosto muito de policiais. Gosto muito do Millers Crossing.

    Esse não é policial. É de gansters.

    É a mesma coisa. Então e nos seus filmes somos bons ou maus?

    Faço policiais mas com detectives com carros descapotáveis, não é com polícias normais como o senhor agente.

    Menti novamente, lembrei-me do Miami Vice old school que via quando era puto.

    Então e os seus policias também têm crocodilos de estimação a viver em barcos?…

    Deu uma gargalhada forte novamente e tirou automaticamente a máscara como acto reflexo. Entretanto falávamos enquanto andávamos, mas íamos parando quando surgia uma palavra ou uma ideia mais interessante, hábito muito português do pára-arranca. Percebi que o bófia que já tinha uma tonalidade que se visse na cara, também tinha visto a série dos anos oitenta, em que até os mendigos vestiam blazers com chumaços.

    Não. Não faço remakes do Miami Vice.

    Disse a certa altura quando a série veio à baila novamente, fingindo estar chateado, ou estava mesmo, já não sei bem. Não era a primeira vez que PSPs me abordavam na rua nessa altura de confinamento, ou porque não tinha máscara, ou porque não eram horas para estar na rua, ou mesmo só para chatearem.

    Oh amigo, não leve a mal, mas eu gostava muito dessa série. Até chorei no dia em que o Tubbs levou um tiro. Se calhar até foi isso que me fez vir para a polícia. Para vingar o Tubbs. Às vezes penso que, se não fosse polícia tinha-me metido nisso dos filmes. Nós aqui não ganhamos nada. Você deve ser milionário não?

    Não. Mas em que realidade é que você vive? Perdemos dinheiro até.  

    Olhe mas temos outra coisa em comum. Ambos temos de comprar as armas.

    E deu outra gargalhada bem sonora. Até eu me ri desta vez.

    Bem, quem o viu há uns minutos e quem o vê agora…

    Disse eu, notando a transformação evidente.

    Sabe, é que conversar faz bem.

    Naquele momento já estávamos junto da minha mota fora do parque. Ele olhou para ela.

    Não quero acreditar. É sua? Sabe que uma das minhas outras paixões são Vespas. É uma PK 50?

    Não. É 125.

    É linda. Tenho duas Sprint dos anos 70. Tem de lá ir ver à minha garagem em Sesimbra. Se ficarmos amigos… Uma delas é amarela também.

    Não lhe consegui dizer que estas já não eram da Piaggio mas da LML, uma marca indiana que comprou a italiana. Dizem que em caso de avaria da cambota não terá arranjo e irá para o galheiro.

    Sei muito bem quais são.

    Mudei de cara. Também adoro Vespas e gosto sempre de conhecer pessoas que pertençam ao mesmo clube. O polícia, naquele momento, era mesmo outro. Ia dando umas biqueiradas no pneu da frente como os portugueses de uma certa geração fazem, nunca se percebendo bem porquê, enquanto enaltecia aspectos da mota. Uma vez também dei uns pontapés na furgoneta de um vizinho só por dar enquanto falava do tempo, só porque via os outros fazerem. Depois arrependi-me.

    Isto pega sempre não é?

    Mentira! Se havia coisa que as Vespas tinham, era não pegar muitas vezes pelo menos à primeira. Mas respondi que sim, sabendo que ele sabia que não.

    Curioso como ainda há vinte minutos éramos dois desconhecidos mediados por uma autoridade meio ficcional e agora éramos como irmãos. Estranho como a paixão por motas e cinema pode mudar circunstâncias, ainda que sem qualquer espécie de profundidade. Somos latinos, não há nada a fazer. Ele olhou para mim muito amigavelmente e disse:

    Olhe, estou agora a acabar o meu turno. Não quer ir ali beber um café ou qualquer coisa? Eu ofereço com todo o prazer.

    Mas está tudo fechado.

    Fiz notar. Naquela época as cidades pareciam aldeias.

    Sim, mas para nós eles vendem, não se preocupe. Vamos ali ao Morais. Ele até nos deixa entrar lá para dentro para a cave. Acha o quê? Que eu ia agora para casa deprimir-me e ver comédias do canal Hollywood? Ainda dava um tiro na cabeça… Ou na televisão!

    Rimos os dois.

    Está bem.

    Assim vai poder falar dos seus filmes. A vida é fantástica quando somos reconhecidos e temos afinidades. Não acha?

    E deu-me uma palmada amigável nas costas.

    Sim, acho!

    Realmente o mundo anda estúpido.

    Concluiu o agente ainda parado e em silêncio enquanto fitava a minha mota que muitas alegrias me deu enquanto andou.

    Ao fundo ouvia-se ainda o belo canto dos pássaros que vinha do jardim onde nos conhecemos e ainda que indistintamente e de forma abstracta, os pássaros pareciam confirmar a conclusão do polícia.

    Pelo menos para mim e para a minha Vespa, isso era óbvio.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • A estrelícia 

    A estrelícia 

    É quase primavera. Ajoelhado, arranca pacientemente as azedas que teimam em invadir os canteiros. Um carreiro de formigas entra pela terra seca. Puxam, empurram, arrastam como podem pedaços de granulado. O cão olha espantado a comida que sai da tigela e segue jardim adentro até desaparecer. O trajeto repete-se uma e outra vez. Vaivém implacável que aprisiona os insetos à rotina.  Retomam-na a cada dia.

    Salvador detém-se a observar as minúsculas Sísifos. Talvez devesse tapar a tigela.  Mas dá-lhe pena.  Pergunta-se se as formigas terão memória do dia anterior. Ou será que, como ele, acordam e percebem que o sono foi apenas o alívio permitido entre os dias?

    Pergunta-se se estará sozinho ou se haverá outra criatura no mundo que, a cada amanhecer, seja esmagada pela realidade. Que receba, a cada despertar, a notícia da morte do amor da sua vida. Se haverá, para além dela, mais alguém que faleça um dia e outro e outro. Se mais alguém desperta pronto a viver e é confrontado com o espaço vazio ao seu lado. O silêncio na casa. A solidão. E depois levantar-se. Preparar-se como se estivesse vivo. E ao longo do dia ir rolando a rocha que vai ganhando volume à medida que as memórias a vão adensando: a doença, o medo, a degradação do corpo, a depressão, as dores, as últimas palavras, o último suspiro. O saber que um segundo antes ela ainda o ouvia. O medo de não ter dito tudo. Nunca se diz tudo. A escolha da roupa, do caixão. O retorno a quatro paredes que já não são casa. As roupas nos armários. O anel de noivado e a aliança de casamento que ficaram no móvel da entrada quando saiu pela última vez. Ainda ali estão. Não lhes toca. E se ela voltar?

    Todos os dias são o mesmo dia. Todos os amanheceres o reviver. Pergunta-se quais terão sido os seus crimes? Que outro homem cumpre em simultâneo os destinos de Sísifo e Prometeu? As entranhas renovam-se apesar da sua vontade. Leu recentemente um livro no qual o protagonista perdia a memória e repetia a cada dia o dia anterior. Não é esse o seu caso, pensa. Antes fosse. Lembra-se bem de cada detalhe. De cada sensação. Ainda sente as mechas de cabelo dela a escorrer-lhe entre os dedos. Ainda as vê caídas no chão. Não, não perdeu a memória. Apenas é incapaz de a tornar permanente.

    A memória ressurge incompleta a cada despertar. As lacunas preenchem-se ao longo do dia. Uma escova. Uma fotografia. O sofá. Ao anoitecer está completa. Esmaga-o. E ainda assim, espera a noite. Anseia por ela. Abraça-a. O sono chegará em breve. E depois o sonho. E finalmente o reencontro. Olham-se e sorriem. Há muito que as palavras são desnecessárias entre eles. Passeiam, tomam café no alpendre, brincam com o cão. Às vezes viajam até destinos longínquos. Mergulham felizes em águas tíbias. Conversam muito, ainda que não digam uma palavra. A luz do amanhecer afasta-os lentamente. Já não a consegue tocar. Procura-a e não a encontra. Telefona-lhe, mas ela não atende. Desperta angustiado. Alivia-o perceber que foi um sonho. Afinal ela não partiu. Procura-a com a mão. Vira-se. O travesseiro intocado diz-lhe que o sonho foi doce. E anseia já por mais uma noite, ainda que o preço sejam as entranhas em sangue a empurrar a rocha montanha acima. Quatro mil manhãs.

    ⎼ Morreste quatro mil vezes.  ⎼ ­ sussurra enquanto continua a limpar o canteiro.

    Só ele sabe disso: um segredo bem guardado. Não interessa o que pensam os outros, a religião, a ciência… no traço descontínuo do sonho, são felizes.

    ⎼ Esta noite trago-te cá.  A tua estrelícia floriu. Tens de ver.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Não importa, sempre acaba mal

    Não importa, sempre acaba mal


    – Não tenho biografia.

    – Fique tranquilo. Aqui são comuns declarações como esta. Com o choque, os pacientes se perdem de si mesmos.

    A doutora Adriana Kreuzfeuer era a bem-aventurada possuidora de um belíssimo rosto – delicadas sobrancelhas assimétricas, olhos azuis, narizinho empinado e boca esfaimada – coroado por uma encaracolada cabeleira loira herdada de avós imigrantes, a saber: o falecido Helmuth Schatsschneider Kreuzfeuer, construtor de chaminés de tijolos vermelhos para fábricas, e a nonagenária Ângela, em solteira Backheuser Stumpfsinn.

    – Por que o senhor não me conta um pouco da sua vida?

    – Porque o meu corpo foi tomado por alguém. E esse alguém não tem memória da minha vida anterior. Ou seja, esse alguém não pode – e eu também não posso – falar sobre o que aconteceu há, digamos, dois dias.

    – Sei. É como se a mente do senhor tivesse sido tomada por um alienígena.

    – Não. O caso não é tão moderno. Fui ocupado por um espírito, um velho espírito.

    A doutora anotava no computador, batucando com dedos espertos, tudo o que o homem lhe dizia.

    – Compreendo. O senhor é espírita?

    – Agora, sou agnóstico. Antes, não sei. Mas certamente não tinha uma fé muito profunda. Talvez por isso o tal espírito apoderou-se tão facilmente do meu eu anterior. Minha alma estava disponível.

    A bela Adriana Kreuzfeuer esboçou um rápido riso, divertido e intrigado, riso de psiquiatra que se descobre, por fim, diante de um lunático engraçado.

    – O que sabe o senhor sobre o, vá lá, espírito que está de posse de sua alma?

    O homem alto e magro movimentou-se inquieto na cadeira. Defensivamente, cruzou diante do peito os longos braços guarnecidos por mãos ossudas. Seu rosto comprido, atapetado por uma barba mais branca que cinzenta, aparada recentemente por máquina ajustada para dentes de número três, era o de alguém verdadeiramente angustiado.

    A psiquiatra refez a pergunta:

    – O senhor conhece a identidade desse espírito que se apossou da sua alma?

    – Sim. Conheço-lhe o nome, as datas de nascimento e morte. E, por alto, alguns fatos importantes de sua vida na terra.

    – Oh, isso é maravilhoso!

    A expressão do rosto da médica não acompanhou o entusiasmo exclamativo da frase. Era uma médica, uma cientista, e não estava ali para maravilhar-se. O que se podia dizer dela, sem conotação positiva ou negativa, é que era uma mulher nervosa, agitada, apressada, consciente de que, ao longo daquele dia, teria de enfrentar ainda muitos outros contadores de histórias desencontradas.

    – Me passe as datas de nascimento e morte do falecido?

    – 1860 e 1902.

    – Profissão?

    – Médico.

    Por baixo das sobrancelhas bem-cuidadas, um rápido e penetrante olhar azul-piscina partiu em direção ao homem alto e magro. Com os dedos levitando sobre o teclado, a médica parecia questionar-se. Debochando da minha cara?

    Pousou as mãos ao lado do teclado e suspirou. Não, não, aquele era apenas um mais pobre homem desnorteado, acachapado por uma tragédia pessoal que não conseguia compreender, aceitar e superar.

    – Especialidade do seu médico?

    – Clínico geral. Ele não defendeu sua tese de mestrado. Eu, aliás, ele, nós chegamos a fazer uma viagem à ilha de Sacalina…

    – Ele morreu bastante jovem. De quê?

    – Tuberculose.

    – Qual era o seu nome, o nome dele, do médico?

    – Anton.

    – Devo concluir que não era brasileiro.

    – Não. Era russo.

    – Russo?

    Bruscamente, a médica afastou o teclado com os polegares e ergueu os olhos diretamente para a lâmpada que estava sobre sua cabeça. E, congelada nessa incômoda postura, suspirou profundamente. Parecia descontente com a quantidade de luz emitida pela lâmpada. Talvez pensasse em processar o fabricante. Ao cabo de um demorado minuto, ela voltou os olhos celestiais para o paciente.

    – O senhor fala russo? Poderia me dizer umas três ou quatro palavras nessa língua?

    – Não. Claro que não. Sou um homem traduzido.

    Aquela última frase foi demasiada para a doutora Adriana. Ela imobilizou-se com os dedos abertos, a cabeça baixa, os olhos aparentemente procurando uma letra que não havia sido posta no teclado. Racionava. Seu pensamento talvez possa ser sintetizado por uma frase indelicada: esse maluco é de tirar qualquer um do sério.

    – Me dê mais informações sobre o médico russo.

    – Nasceu em uma cidade balneária, no mar Negro, a mil quilômetros de Moscou.

    A médica reproduziu num batuque ligeiro o que ele havia dito e quis mais:

    – Fale da família dele?

    – Éramos seis irmãos. Eu, Anton, tinha o dom de imitar. Todos riam das imitações que eu, ele, fazia dos mujiques, dos cocheiros, dos professores e dos funcionários públicos. O pai deles, o nosso pai, comerciante, adorava música. Treinava-nos para que cantássemos no coral da igreja. Depois de falir, papai, quero dizer, esse chefe de família foi para Moscou. Após concluir o ensino médio, eu segui também para lá. Ingressei na faculdade de Medicina. Como tinha grande habilidade com as palavras, como sabia tecer histórias, comecei então a escrever contos humorísticos para jornais e revistas populares. Logo ele, eu, estava sustentando a família com o que recebia pelos textos.

    – Bela história. Edificante. Mas, voltando ao nosso caso concreto, o senhor sente que é, verdadeiramente, esse escritor russo de contos de humor ou o senhor sabe que é apenas o corpo de um cidadão brasileiro dominado pela mente de um contista estrangeiro?

    O homem descarnado demorou a responder.

    – Sinceramente, eu não saberia lhe responder. As duas situações são igualmente plausíveis. Talvez até mesmo possam ocorrer simultaneamente. Neste exato momento, porém, sinto mais forte a impressão de que sou um pobre corpo ocupado. Mas, é claro, sei também que sou escritor e que escrevo em russo. Tentarei me explicar: o corpo é meu e meus movimentos são orquestrados pelo meu cérebro, no entanto, no fundo, sinto que as minhas palavras não são propriamente minhas. Elas pertencem a Anton. Por isso, se, por acaso, lhe disser algo que possa parecer zombeteiro, não se irrite, fique certa de que essas palavras me foram sopradas por ele.

    Os dedos da mulher corriam céleres, entusiasmados, por cima das teclas, perseguindo as palavras que o homem barbado pronunciava.

    – Nunca vi alguém descrever com tal riqueza de detalhes a sua…

    – Loucura, doutora?

    – Talvez. Mas, se for, será passageira. O senhor sairá dessa logo, eu lhe garanto. O senhor vai se livrar de Anton. Mas, agora, me explique uma coisinha. Como o senhor sente a presença dele, do russo?

    – É como ele fosse uma segunda pele, uma pele que está por baixo da minha pele, da verdadeira. O corpo físico de Anton se resume a essa pele. Ele não tem ossos ou carne. Porém meu cérebro pertence a ele, inteiramente.

    – Tenho uma curiosidade. O senhor me disse que ele, o russo, escrevia historinhas engraçadas. Quando ele pensa em algo divertido, o senhor dá uma gargalhada?

    – Não. No máximo, eu sorrio.

    – Quantos anos ele tem hoje?

    – Quarenta. Devo morrer em breve.

    Nessa passagem, pela primeira vez, o homem ergueu os olhos e os fixou na médica. Encarando-a, parecia esperar um desmentido porque era claro, pelos cabelos, barba e bigode quase totalmente brancos, que ele era já um sexagenário.

    – O que eu quero é que me explique como ele, sendo russo, um russo que certamente não conhece o português, consegue se expressar através do senhor.

    – Ele manipula minhas cordas vocais. É com surpresa e estupefação que percebo as frases que me escapam por entre os lábios. As palavras, obviamente, saem em russo do cérebro dele, mas ao chegarem às minhas cordas vocais automaticamente transformam-se em vocábulos portugueses. Há um programa de tradução instantânea no meu aparelho fonador.

    Depois de anotar aquela resposta, a psiquiatra voltou seus inquisidores olhos azuis para os negros olhos sonhadores do homem.

    – Como ele, o russo, consegue entender as minhas perguntas?

    – Há um segundo aparelhinho de tradução simultânea, instalado nos meus ouvidos. É semelhante ao que se encontra nas minhas cordas vocais, mas de funcionamento inverso.

    – Ótimo, ótimo, o senhor até aqui respondeu bem às minhas perguntas, mas agora eu preciso me aproximar da raiz mais profunda da questão… Então, indago: o senhor Anton se metia com política?

    – De jeito nenhum. Sou apartidário, apolítico. Digamos que sou alguém que só defende um valor: a liberdade. Libertários conscientes como eu não podem pertencer a igrejas, partidos ou qualquer outra agremiação.

    – E com mulheres?

    É importante, nesse ponto, termos em mente que o sobrenome da médica, em alemão, significa cruz de fogo.

    O homem abriu lentamente os braços, como que para ser crucificado. Suas orelhas de abano e bochechas chupadas foram tomadas por uma constrangedora vermelhidão. Era como se ele tivesse recebido um sopro de fornalha na face. Fechou os braços, brusco. Anton quis responder rapidamente, para livrar-se daquela pergunta indecente, mas não conseguiu articular uma só palavra.

    – Esse é o ponto central – prosseguiu a médica, e o homem imaginou ver grossos fiapos de uma gosma esverdeada de concupiscência escorrendo pela comissura dos lábios dela. – É sempre ele, sexo. O nosso obscuro lado animal. O acasalamento. Reprodução ou prazer? Não importa, sempre acaba mal… Enfim, em português, me responda: o doutor Anton comparecia?

    O homem enterrou-se na cadeira. Que grosseria! Comparecia? Era termo aceitável em uma consulta médica?

    Anton quis falar, demonstrar sua muita indignação. Comparecia? Era totalmente inadequado utilizar uma expressão tão rasteira em uma conversação com um escritor russo. Por que a doutora não usava a delicada expressão bíblica: conhecer?

    – O ponto nevrálgico é sempre o aparelho genital, a genitália – silvou a psiquiatra. – Mais adiante nos concentraremos nele.

    Adriana Kreuzfeuer encerrou a consulta fechando os olhos e trançando os dedos das mãos sobre o teclado, sinalizando claramente ao paciente que sequer lhe daria um rápido aperto de mão.

    O homem alto e magro de tristonhos olhos negros concluiu que a doutora Adriana talvez estivesse muito cansada. Ou com vontade de fazer algo muito excitante. Retirar o esmalte lascado das unhas, por exemplo.

    Ainda de olhos cerrados, a psiquiatra soltou um jato de ar fazendo biquinho com os grossos lábios sensuais e lascou na linguagem dos homens das cavernas:

    See you later.

    Quando levou o tronco à frente, no movimento de quem vai se erguer da cadeira, ou pular sobre a médica, o homem sentiu o pouso em seu ombro da mão pesada do enfermeiro, que havia permanecido de pé, imóvel e silencioso, atrás dele, atrás de Anton, ao longo da entrevista, mão que se fechou triturando ossos de omoplata e que chegou acompanhada por um vozeirão cavernoso:

    – Bora nessa, chefe, deu por hoje!

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas


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  • A arte excêntrica dos goleiros

    A arte excêntrica dos goleiros


    «O diretor, que entendia pouco de esportes embora aprovasse com entusiasmo suas virtudes associativas, ficava ressabiado com a escolha que me levava a sempre jogar de goleiro no futebol, “em vez de correr junto com os outros rapazes”.

    A Pessoa em questão, Vladimir Nabokov.


    Alto, de largos ombros, o homem enchia a saleta do casebre deixando pouco espaço para a jovem jornalista que, diante dele, parecia ainda menor e mais gorducha.

    Entusiasmada, ela falava da sua fascinação pelas grossas camisetas coloridas, as luvas imensas, a solidão, a altivez dos goleiros.

    O homem sorria timidamente ao mesmo tempo em que recuava diante da metralhadora verbal.

    – Sente-se, milha filha – disse, e deixou-se cair numa poltrona.

    A mocinha explicou que estava ali com a missão de entrevistá-lo, para uma edição especial do jornal sobre os grandes craques do passado. Ele, como o maior goleiro da cidade, o maior de todos os tempos, tinha que ser ouvido, de qualquer jeito.

    – O cafezinho já vem.

    a soccer goalie's glove laying on a soccer field

    Por um instante ela se calou, o tempo necessário para localizar o sofá. Sentou-se, já falando:

    – Não vamos fazer apenas mais uma daquelas reportagens babacas, saudosistas, melosas. Isso nunca! É um trabalho sério, para incentivar o surgimento de novos talentos.

    Os olhos dela correram pela pequena peça talvez em busca de algo com que colorir depois sua narrativa, mas não havia um só quadrinho ou um calendário nas paredes nuas.

    – Quero saber como tudo começou para o senhor, isto é, a sua paixão pelo futebol, o jogar de goleiro. Em suma, qual é a sua lembrança mais remota?

    O homem suspirou fundo. As grandes mãos calosas, de juntas grossas, dedos tortos, espalmaram-se sobre as coxas. Os pés dele afastaram-se um pouco.

    Tem gestos mansos de gato, anotou a moça no caderninho.

    O longo silêncio pareceu desconcertar a jornalista, que tentou acomodar-se melhor no sofá de molas duras.

    Então, a mulher dele chegou com as xícaras de café na bandeja. Era uma mulata alta de meia idade, ainda bastante bonita, tristonha.

    goalie about to catch the ball

    – Esta moça é uma jornalista – disse ele.

    A garota fez menção de levantar-se, mas a mulher já deixava a sala, escorregadia.

    A jornalista sabia – disso tinha sido informada pelos colegas – que a mulata era lavadeira. Sabia que era ela quem ganhava o dinheiro para a cerveja que ele, religiosamente, ia tomar todas as tardes no centro da cidade. Era ela quem mantinha impecavelmente limpas as roupas puídas que ele vestia.

    Em silêncio, beberam o café.

    – Eu já era um rapazinho de doze anos quando assisti pela primeira vez a uma partida de futebol. Veja só, que coisa! Foi uma partida de veteranos e num campo de várzea!

    O rosto da jornalista se iluminou e ela ligou rapidamente o gravador.

    – Eu tinha chegado pouco antes, vindo do campo, para estudar interno no colégio dos padres. Meus pais queriam que eu entrasse para o seminário, depois. Era um bom jeito de enganar a miséria. Bem, num fim de semana, pedi licença ao diretor para visitar um tio meu, solteirão, eletricista, que morava aqui na cidade.

    O goleiro explicou então que admirava muito aquele tio que havia tido a coragem de abandonar as terras do avô e as rotinas massacrantes da agricultura para tentar a vida na cidade.

    Na época, ele achava que nada podia ser mais interessante do que o trabalho do seu tio que, todo dia, percorria a cidade, montado em uma bicicleta, oferecendo seus conhecimentos de eletricista, adquiridos num curso por correspondência.

    people gathering at soccer field

    – Para um moleque criado na roça, entre porcos e espigas de milho, como eu, ser eletricista era uma profissão fantástica!

    Mas, naquela tarde remota, ele descobriria que o irmão de seu pai podia fazer com as mãos algo ainda mais impressionante do que consertar aparelhos desarranjados.

    – Na garupa da sua bicicleta, o tio me levou a um desses campos de vila, com traves meio tortas, linhas laterais apagadas e grandes falhas no gramado. Mais do que falhas, buracos mesmo, onde a água empoçava nas chuvas. Nas duas áreas pequenas, nem um fiapo de capim, só a terra cinzenta e dura. Um dia o meu tio me disse: a seara dos goleiros só produz barro.

    O velho goleiro se demorava nos detalhes daquele primeiro jogo: era uma tarde comum de inverno, de sol fraco e nuvens baixas, e o vento cortante que vinha do rio assobiava furioso pelo meio dos renques de eucaliptos plantados por trás das goleiras.

    – Sentados debaixo do arvoredo, os veteranos começaram a se fardar. Todos usavam caneleiras, joelheiras, tornozeleiras e coxeiras porque eram velhos arrebentados. Pareciam gladiadores de cinema.

    Furiosamente, a jornalista tomava notas. Era uma garota muito imaginativa. Conseguia vislumbrar os jogadores sob os farfalhantes eucaliptos: gladiadores que só protegiam as pernas, as canelas marcadas pelos golpes das travas, os joelhos artrosados, os tornozelos azulados de antigas lesões. Sob os eucaliptos, ali onde o vento silvava mais forte, pensou ela, devia reinar uma excitação de vestiário de quartel – piadas sujas e gargalhadas. Atletas de cabelos brancos, calvas luzentes, rabiscou na caderneta.

    – O mais novo deles beirava os cinquenta anos e o mais velho tinha sessenta e lá vai pedra!

    Depois ele contou a ela que aquele campo pertencia a um clube de bairro, cujos dirigentes guardavam as manhãs de domingo para os times de guris e as tardes para os jogos de campeonato. Aos velhos, cediam as tardes de sábados.

    – Meu tio era goleiro.

    closeup photography of goalpost during daytime

    A repórter voltou-se interessada para o entrevistado. Tentava imaginar como seria o menino loiro que havia se transformado naquele homem de rosto inexpressivo, o garoto que com muita atenção observava os movimentos do tio: ajeitando as joelheiras esfiapadas, vestindo as meias com cuidado para evitar bolhas, apertando os cadarços da chuteira e ajustando as negras luvas de couro.

    – Estávamos os dois um pouco apartados dos outros. Então, de repente, de graça, o meu tio soltou uma frase que eu nunca vou esquecer, mesmo que viva mil anos. Ele me disse assim: um goleiro não se mistura.

    O homem contou à jornalista que, depois, enquanto esperavam que os outros acabassem de se arrumar, o tio lhe falou dos jogadores. Um por um. Eram como personagens de um livro ou de um filme. Havia um que chamavam de Doutor. Estava bem de vida, era dono de automóvel. Mas fora menino pobre e só cursara Medicina graças ao futebol. O mais gordo de todos, aquele que amarrava as chuteiras, curvado sobre a barriga, jogara na capital por quatro ou cinco meses. Não suportando a saudade da terra, voltara, deixando atrás uma possível carreira de sucesso.

    – Aí o tio me disse: Estás vendo aquele negro ali? É, o careca grisalho. Ele mesmo. Aquilo é mais traiçoeiro que gato de rua. Ele nunca chuta onde a gente está esperando.

    Por muitos e muitos anos, o menino tornaria a ver aquele homem quando fosse ao centro da cidade, porque ele estava sempre por trás do balcão, na sala escura do cartório, com os óculos acavalados no nariz, escrevendo naqueles livrões que tomavam toda a mesa.

    – Todo veterano é barulhento, gozador, matreiro, piadista e falastrão. Mas o meu tio, não. Era calado.

    A jornalista estava agora de braços cruzados, escutando, rosto sereno. Toda a ansiedade havia se afastado dela. Pensava no menino de olhos claros sentado sob os eucaliptos, fiel depositário dos gestos e das palavras de homens reunidos ao acaso, num sábado esquecido, num campo perto de um rio, numa cidade incógnita.

    – Então começou o jogo.

    soccer field

    A bola rolou e os homens se moveram também porque ela era como um imã e eles como pequenos bonecos de ferro que se voltavam invariavelmente para onde ela rolava. Eram veteranos, demasiado velhos para correr, gordos na maioria, deselegantes, lerdos e sarcásticos. Cuspiam palavrões pesados se os passes saíam errados, se o lançamento era longo ou curto demais, se a bola vinha com muito efeito. Bola que teimava em bater nas canelas, nos joelhos, coisa viva que não aceitava ser dominada. E penosamente se levantavam para enfiar o dedo na cara dos outros e para gritar palavrões ao juiz e à senhora sua mãe. Xingavam-se. Rindo, recriminavam-se por beber muito e comer demais.

    – Quando o juiz apitou o final do primeiro tempo, eles voltaram para o meio dos eucaliptos. No início, beberam só a água que tinham trazido num garrafão. Mas, depois, um deles destampou uma garrafa de canha. Davam talagaços. Uns faziam caretas, outros se arrepiavam. Eu achei muito engraçado. Mas o meu tio não bebia.

    Uma sombra correu pelo pálido rosto da repórter. As lembranças do homem alto, de certo modo, eram também dela. Então, naquele momento, ela começou a escrever, mentalmente, a sua reportagem. Começaria pelo intervalo do jogo de veteranos. Chegou a ver a garrafa de aguardente passando de mão em mão, e dois ou três deles, já com o fôlego recuperado, acendendo cigarros. As palavras acavalavam-se dentro dela: homens arfantes, deitados na relva, a fitar fixamente as nuvens de chumbo que, desgraciosas, se arrastavam pelo céu gris, talvez até dormitassem, exaustos, ninados pelo vento que rugia por entre os eucaliptos, velhos homens jogados sobre a relva, inertes.

    – O segundo tempo foi pior.

    Os jogadores sufocavam depois de arrancadas de vinte metros, chutavam a grama em vez da bola, puxavam da camiseta do adversário, passavam rasteiras por detrás, davam cotoveladas, empurrões. E quando a bola vinha pelo alto reclamavam também porque não conseguiam saltar para a cabeçada.

    – Quando o juiz apitou o final da partida, já era quase noitinha. Não se sabia mais quem era quem. O barro escuro tinha igualado os uniformes.

    A jornalista podia vê-los: exaustos, silenciosos, acabrunhados trocando a umidade do campo pelo frio dos eucaliptos; imaginou raios desenhando animais agonizantes no céu escuro. Viu depois como todos eles se foram levando vivas na mente as cenas daquele jogo, cenas que logo se misturariam e se confundiriam com outras, mais antigas, de gols perdidos, de passes errados e de lançamentos imperfeitos.

    – Nem me lembro quem venceu, se foi o time do meu tio ou o outro. Goleiros nunca se interessam pelo resultado. Goleiros gostam é de jogar.

    People Playing Soccer on Grass Field during Day

    Por um bom tempo permaneceram em silêncio. O homem de ombros largos e a jovenzinha rechonchuda compartilhavam a mesma imagem evanescente: um homem esgrouviado debaixo das traves, afastado dos outros todos como se fosse o habitante de um mundo diverso, consciente de que viriam atacá-lo, mas não se importando com isso.

    – Meu tio era um pouco encurvado, como todos os homens muito altos, mas, mesmo assim, tinha o porte mais garboso de todos eles.

     – Disso sabemos todos: o goleiro é sempre aristocrático – disse a jornalista e se pôs de pé.

    Seus movimentos eram nervosos, porque tinha pressa em chegar à redação. Queria escrever logo as palavras que se atropelavam no seu coração: um homem alto, solitário sob a goleira, à espera, olhos fuzilando, o corpo como que retesado, os músculos querendo explodir, movendo-se sem cessar sobre o maldito semicírculo de lama negra como animal aprisionado em jaula invisível.

    – Pois é – resmungou o homem. – Um goleiro não se mistura.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • Uma vida a servir a causa pública 

    Uma vida a servir a causa pública 

    Pousa o copo e a garrafa. Abre a janela e debruça-se sobre o parapeito. A brisa fresca no rosto sossega-o. Outubro. O fim do calor insuportável do verão do sul. A chegada discreta do outono. Olha para baixo e, por entre as copas das árvores que se começam agora a desnudar, vislumbra a avenida alumiada pelo branco quente dos candeeiros. Está bonita, a cidade. Romântica. Orgulhoso da sua obra, leva o copo à boca.  Pega na garrafa e lê o rótulo. Tem bom gosto o senhor vereador, pensa. O brandy reconforta-lhe a garganta. A vista da penthouse é encantadora. Chamar-lhe penthouse pode ser exagerado. Mas soa bem melhor do que “último andar”. Vendeu-lha um rapaz muito correto. Até lhe fez uma atençãozinha. O pai é construtor. Pessoa honesta e trabalhadora. Mas não há seriedade que resista à maldade e à má-língua dos invejosos. É a pequenez da província. Não se pode contar nada a ninguém.

    Copo numa mão, garrafa na outra, dirige-se ao terraço. Daqui a vista expande-se até ao centro da cidade. Ao fundo da avenida, os holofotes iluminam um conjunto de edifícios em remodelação. Luxuosos, charmosos, exclusivos. Isto sim, é uma boa aplicação dos fundos europeus. Devolver a cidade aos munícipes. Promover a habitação na Baixa. Em redor, um belo jardim que veio substituir o inestético parque de estacionamento. Houve quem criticasse a decisão. Mas basta olhar para perceber como valoriza o espaço. Além disso, é inegável que a cidade precisa de mais espaços verdes. Uma questão de saúde pública, até.

    Photo of Alcoholic Beverage on Top of Counter Top

    O Presidente já consegue imaginar-se no novo terraço. Jacuzzi. Vista mar. Não tinha pensado mudar-se, mas o construtor fez-lhe uma proposta irrecusável. E logo agora que estava a terminar o mandato para não dar azo a falatórios.  Vendeu-lho a preço de custo. Uma joia de homem. Sabe bem o que o dinheiro custa a ganhar.

    Olha para o telemóvel. Está na hora. Termina o brandy e encaminha-se para o escritório. Sente-se exausto. Os dias têm sido longos e difíceis.  Abre a agenda. Olha para a lista de telefonemas a fazer e parece-lhe não ter fim, mas há que garantir o apoio à candidatura:

    –  Pois é, Meritíssimo. Pois é. O meu mal é não saber dizer que não. Uma vida a servir a causa pública… Conto então com o apoio do meu amigo, certo?

    Deputado da nação. Quem diria!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • As três regras de vida do Donald

    As três regras de vida do Donald

    O filme ‘The Apprentice – A História de Trump’, é uma ficção sobre os primeiros anos da vida daquele que foi o 45º Presidente dos Estados Unidos da América (EUA) e pretende ser o 47º, caso vença as eleições na primeira terça-feira de Novembro, dia 5. Poderá um filme mudar o sentido de voto do eleitor indeciso?

    Após o visualizar, numa ante-estreia dedicada apenas a jornalistas, vemos que não há propriamente uma novidade face a tudo o que já foi escrito e mostrado em documentários sobre aquele que foi eleito Presidente dos Estados Unidos em 2016, perdeu a reeleição em 2020 e tenta agora a segunda chance.

    Isso, no entanto, não tira o interesse ao filme. A obra tem o condão de nos levar ao ambiente da Nova Iorque dos anos 70 e 80 – é esse o limite temporal representado, sem qualquer referência aos anos mais recentes -, de modo a percebermos a construção e a aprendizagem do homem que quer voltar a sentar-se na Casa Branca. Tem representações notáveis de Sebastian Stan como Trump e, especialmente, de Jeremy Strong, no papel de Ron Cohn, o advogado sem escrúpulos que “constrói” o “aprendiz”. 

    Ali Abbasi, o realizador iraniano nascido em 1981 a viver em Copenhaga, contou com Gabriel Sherman como argumentista e, este, é um jornalista que exibe no seu curriculum a biografia de Roger Ailes, presidente da Fox News, o canal de televisão dito pró-Trump. O livro, publicado em 2014, tem o título “The Loudest Voice in the Room: How the Brilliant, Bombastic Roger Ailes Built Fox News – and Divided a Country”, que se pode traduzir para algo como: “A Voz Mais Alta na Sala: Como o Brilhante e Bombástico Roger Ailes Construiu a Fox News – e Dividiu um País”.  A eleição de Donald Trump, dois anos depois, sabe-se, dividiu ainda mais o País.

    Esperava-se então, dado o material original, que este fosse um filme que contribuísse ainda mais para a destruição da imagem de Trump. Uma produção prejudicial à sua reeleição, sobretudo dada a oportunidade da estreia – menos de um mês antes da ida dos americanos às urnas. Só que o filme é um filme. É uma obra de arte ficcional inspirada em factos verdadeiros e, mesmo com a cena onde Trump viola Ivana – coisa que o verdadeiro sempre negou -, o sentimento que fica é o de um retrato humano.

    O filme é neutro e sujeito a várias interpretações. E isso, com certeza, vai representar um desafio a quem o for assistir. Se com Trump sempre se tratou do “ama ou odeia”, será interessante saber se, quem o odeia, não irá relativizar a sua opinião (se quiser ser honesto consigo próprio), enquanto quem gosta, provavelmente irá ficar a gostar ainda mais – existe sempre uma certa dose de exagero em quem ama. Agora, caso haja na América dividida quem ainda esteja, nesta fase da campanha, a ponderar o seu voto, quiçás esta produção, apesar de ficção e com as devidas cautelas factuais, possa leva a uma decisão em relação às qualidades do homem da “Arte do Negócio”.

    man in black suit standing beside woman in black dress

    A cena inicial do trabalho de Abbasi e Sherman é o célebre discurso de Richard Nixon, a 17 de Novembro de 1973, onde o então presidente norte-americano, no auge do escândalo do Watergate, garantia aos seus cidadãos que não era um vigarista – “I’m not a crook”. A seguir, vemos uma Nova Iorque falida e violenta, onde um jovem Trump tem terreno fértil para cumprir com as suas ambições pessoais.

    E, para o seu sucesso, vai encontrar em Ron Cohn o homem que lhe ensinará três regras de vida:

    1 – Atacar, atacar, atacar;

    2 – Admitir nada, negar tudo;

    3 – Independentemente do que acontecer, reclamar a vitória e nunca admitir a derrota.

    Trump é o político que sabemos que vai cumprir com as regras. Já o demonstrou durante os primeiros quatro anos em que exerceu o poder e, ao contrário de muitos políticos antes de si, nunca enganou ninguém.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Indonésia: um paraíso a descobrir

    Indonésia: um paraíso a descobrir

    Raquel Rodrigues regressa ao PÁGINA UM. Nesta edição, partilha mais uma viagem de sonho, num formato de fotorreportagem. Destino: Indonésia.


    É talvez o destino mais sonhado por viajantes. No meu caso, já viajei muito e contabilizo muitos destinos já ‘carimbados no passaporte’. Mas este é um destino verdadeiramente único e há muito sonhado por mim.

    Conto pelos dedos de uma mão os países longínquos que gostaria de voltar a visitar. A Indonésia é, sem dúvida, um deles. Assim que cheguei ao aeroporto de Bali, senti o calor e o aroma que me deixaram aquela sensação que adoro, de pertença aos lugares.

    Bali

    A mais famosa ilha na Indonésia é também chamada Ilha dos Deuses. A conjugação entre o animismo e o hinduísmo antigos de Bali cria uma cultura distinta que permeia todos os aspectos da vida na ilha.

    Senti que estava definitivamente pronta (a ansiar, mesmo) para ver e experienciar tudo o que a ilha tinha para me oferecer.

    A paisagem única da ilha está replecta de cascatas imponentes, vegetação que nos assombra e uma espiritualidade que é palpável e que nos acolhe. São milhares de templos, majestosos terraços de arroz, património histórico e cultural riquíssimo e praias paradisíacas de águas quentes. A gastronomia é maravilhosa e o povo é muito simpático.

    Percebi o porquê de os deuses escolherem Bali para viver.

    Depois de Bali, e para quem quer sair do caos de Ubud e Bali e procura os postais paradisíacos, não se pode perder as ilhas Gilli, o snorkling com tartarugas, mantas e estátuas.

    Sem carros, nem trânsito. Tudo é bom. Os finais de tarde, os amanheceres, o peixe e marisco e as pizzas da mãe Mamma Pizza Gilli Air.

    Aqui, o tempo pára.

     Ilha Gilli Meno

    Imperdível é também a ilha de Java, com os seus vulcões e a paisagem que nos esmaga.

    A ‘cereja no topo do bolo’ da viagem foi o templo Candi Borobudur, o maior e mais complexo templo budista. Situado na ilha de Java, o templo é considerado a maior atracção para visitantes em toda a Indonésia.

    Obrigada por tudo e por tanto, Indonésia.

    Estamos de coração cheio.

    Voltaremos! Uma viagem com esta qualidade, em pleno Inverno… Já só sonhará com uma próxima. Deixo o aviso.

    Sugestão de roteiro:

    • 6 dias em Bali (Ubud, Templos Unesco, Rota do Chá e do café, Uluwato, Baía de Jimbaran)
    • 4 dias nas ilhas: Gilli Air e Gilli Meno
    • 2 dias em Lombok
    • 3 dias em Java

    Dicas de viagem:

    • Quando ir: entre Junho e Outubro
    • Convém comprar a viagem de avião em Janeiro
    • A três meses da viagem, deve comprar bilhetes de avião entre ilhas: Bali – Java – Bali
    • A um mês da viagem, deve comprar bilhetes para o ‘fast ferry’: Bali – Gilli Air
    • Para fazer ’tours’, sugiro que alugue um carro com motorista: 50 euros/por dia (inclui carro, motorista, combustível e portagens)
    • Para se deslocar do hotel para o centro ou para as praias, aconselho ir de Uber

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook.


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  • Ditaduras também torturam a inteligência

    Ditaduras também torturam a inteligência


    Ditaduras são reconhecíveis pela violência e o horror. Assim, nada mais justo que as descrevamos através de termos como “sombra”, “escuridão”, “trevas”. Cá entre nós: elas merecem. Mas serão só isso? Certamente, não. Na contraface do espectro fantasmagórico que projetam existe a burrice. Não raro uma ignorância miúda mas uma daquelas de espessura colossal. Vejamos o caso da ditadura que mais conheço – graças à infausta condição de nela viver durante 21 anos – que é a brasileira. E que, neste ano, completou os 60 anos de sua implantação. De 1964 a 1984 não apenas as pessoas mas a inteligência foi torturada. Apanhou na cara, foi pendurada no pau-de-arara, recebeu choques de alta voltagem. Vamos à casuística. Que é apenas exemplificativa mas jamais exaustiva:

    Prendam o Feydeau

    Corria 1966 e um coronel, de nome Washington Bermudez, esbravejou contra o elenco que encenava peça do dramaturgo francês George Feydeau em Porto Alegre, cidade do Sul do Brasil. Bermudez exigiu a presença de todos os envolvidos em seu gabinete, inclusive de Feydeau. Relataram-lhe que, entre seu desejo de interrogar Feydeau e o mundo real havia um Atlântico de distância e mesmo assim sua ordem chegara 45 anos após a morte do intimado.

    photography of lightning storm

    O valor da polícia

    Para não ficar atrás, outro coronel, Joaquim Gonçalves, de Minas Gerais, declarou que os jornalistas “deveriam apanhar da polícia não apenas durante a passeata, mas antes também”. Isto porque não reconheciam o valor dos agentes da lei e da ordem. E ilustrou: “Os fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os estudantes batendo no policial”.

    Queremos o Sófocles!

    Era 1965 e o Brasil se juntara aos marines norte-americanos na invasão da República Dominicana para entronizar outra ditadura. No Rio, os atores e atrizes da peça Electra, de Sófocles, queriam fazer alguma coisa. E a atriz Isolda Cresta, antes da função, leu um manifesto contra o papelão das tropas brasileiras no exterior. Foi presa. No dia seguinte, apareceu um agente da polícia política no teatro. Disse que todos ali eram “subversivos”. Mas queria mesmo saber “quem é esse tal de Sófocles? Onde ele está?” Contrafeito, teve que ouvir que o sujeito que queria prender habitava outro plano havia dois milênios.

    Desvairados e vagabundos

    Em janeiro de 1968, o general Juvêncio Façanha, diretor do Departamento de Polícia Federal, deu declaração autoexplicativa sobre a sofisticação dos quadros da ditadura que lidavam com a questão cultural. “A classe teatral só tem intelectuais, pés sujos, desvairados e vagabundos, que entendem de tudo menos de teatro”.

    Xixi com censura

    Para tornar ainda pior tudo o que já estava ruim, o Ato Institucional 5, expelido pelos generais em 1968, colocou censores-militares na redação do Correio da Manhã, no Rio. Suas tesouras eram infatigáveis. Qualquer possibilidade de crítica ao regime era sumariamente seccionada. Foi em uma dessas que o Papa Paulo VI levou a pior. Na tradicional mensagem natalina aos cristãos do mundo, o pontífice citava os “povos oprimidos”. Como “povos” e “oprimidos” separados já pareciam suspeitos, juntos eram algo simplesmente intolerável. E Paulo VI não escapou. Depois disso, alguém afixou um cartaz com uma recomendação de muito bom senso no banheiro masculino. Dizia: “Não faça xixi com os censores: eles cortam tudo”.

    worm's-eye-view of full moon

    Torturas de amor.

     Hoje que a noite está calma/ E que minh’alma esperava por ti/ Apareceste afinal/ Torturando este ser que te adora”, são os versos iniciais de Torturas de amor, bolero de Waldick Soriano. Mas era 1974 e os censores entenderam que “tortura” e “bolero”, além de não rimarem, não tinham o direito de frequentar as mesmas notas. Portanto, a melosa canção foi proibida de tratar de torturas mesmo que fossem “de amor”. Curiosamente, o proscrito Soriano era bastante íntimo do estado de coisas que condenou sua letra. Em 1973, o cantor defendeu a ação dos grupos de extermínio. Achava também que Jesus Cristo era um “arruaceiro e enganador”.

    Os hippies que vieram da URSS

    Maioral do Centro de Informações do Exército, o general Milton Tavares de Souza palestrou na Escola Superior de Guerra para ensinar que “o movimento hippie foi criado em Moscou”. Já o ministro do Exército, Fernando Bethlem, vinculou a União Soviética às drogas “pelo interesse dos comunistas em corromper as mentes jovens”. Um terceiro general, Ferdinando de Carvalho, levou sua paranoia à literatura. Seu romance Os Sete Matizes do Rosa descreve as agruras de um pai cujo filho fora a um show de rock que desembocou em um “bacanal de nudismo”. O festival fora “organizado pelos comunistas”.

    Julinho, o que foi sem nunca ter sido

    Para um compositor que nunca existiu, Julinho da Adelaide foi muito bem sucedido. Em 1974, implantou duas músicas no ouvido do brasileiro: Acorda Amor e Jorge Maravilha. Nos jornais, apareceu uma entrevista sua falando mal de Chico Buarque. “Não tem voz”, sentenciou. Era uma época em que nenhuma das músicas de Chico sobrevivia à censura prévia. Enquanto isso, as canções de Julinho passavam incólumes. O que os censores não sabiam era que Julinho – cuja graça era Júlio César de Oliveira conforme constava no formulário da Censura – não fora nascido mas inventado. Era o modo matreiro que Chico Buarque encontrou para ludibriar suas tesouras.

    landscape photography of mountains

    Insulto, não!

    Quando a peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, foi interditada, a atriz Maria Fernanda apelou à sensibilidade do presidente da União Democrática Nacional que, confrontando o próprio nome de batismo, não era “união”, “nacional” e muito menos “democrática”, tanto que apoiara o golpe militar. Seu presidente era o deputado federal Ernani Sátiro. A conversa começou ruim e foi piorando até que, lá pelas tantas, a atriz inconformada bradou “Viva a Democracia!” E o deputado rebateu de pronto: “Insulto eu não tolero!”

    Devassa na biblioteca

    Quando o apartamento de Ferreira Gullar, no Rio, recebeu a visita da polícia política, o poeta ficou preocupado com a devassa na sua biblioteca e a quantidade de obras confiscadas. Em determinado momento, um livro de arte também acabou recolhido. Estranhou como um volume sobre pintura poderia ameaçar a segurança da pátria e perguntou ao agente qual o perigo que representava aquele tomo com o título de “Cubismo”. O policial explicou que a razão era óbvia e estava no próprio título. Ou seja, cubismo, para ele, só poderia ser algo ligado à Cuba.

    Shakespeare amputado

    O mundo festejava o quarto centenário de nascimento do pai de todos os dramaturgos, William Shakespeare. Mas era 1964 e o Brasil emitiu uma nota dissonante. Ninguém poderia imaginar que, a descansar sob a terra havia 348 anos, o autor de Macbeth, Romeu e Julieta, Otelo e mais 35 peças, pudesse irradiar suficiente potencial subversivo para afligir as autoridades abaixo da linha do equador. Mas foi o que aconteceu: nos 400 anos do bardo de Stratford-upon-Avon, a censura passou-lhe a faca nas falas que escreveu para A Megera Domada, então em cartaz.

    man holding wind instrument

    Encontro com Kafka

    Algumas das situações vividas na autocracia brasileira provém dos labirintos de Franz Kafka. Uma delas alcançou o empresário Fernando Gasparian, às vésperas do lançamento de seu semanário Opinião, em 1972. Chamado à Polícia Federal, ouviu do major que o atendeu que “no Brasil não existe censura prévia” e que poderia publicar “o que quisesse”. Em seguida, o major retirou da gaveta uma lista com 210 assuntos que ninguém poderia publicar mesmo que quisesse. Gasparian pediu-lhe uma cópia. Ouviu uma negativa e uma explicação: “A lista é secreta”. 

    Ayrton Centeno é jornalista e autor do livro ‘Dicionário da ditadura‘, volume com 530 verbetes que reproduzem factos, figuras e farsas do golpe militar no Brasil em 1964


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