Aqui me sobra muito tempo. Em apenas duas horas cumpro minha tarefa obrigatória. Escrevo cinco cartas por dia. É a minha cota diária, estabelecida por sugestão do doutor Oliveira. Mas permaneço nesta sala as horas regimentais, que são cinco. Pode ser que alguém telefone pedindo explicação sobre uma carta.
Não, ninguém telefona. Nunca. A última ligação ocorreu há uns três anos. Uma pessoa que discou um número errado.
Antigamente? Quando comecei a trabalhar, e lá se vão mais de três décadas, éramos sete funcionários aqui na Seção. Já naquela época o chefe era o doutor Oliveira. Ingressei como contínuo. Admirava os velhos escriturários, gostaria de ser como eles. Muito contribuinte chegava furioso até este balcão. De dedo em pé, cuspindo marimbondos, o cidadão vinha exigir explicação sobre as cobranças. Alguns até esmurravam o tampo do balcão, soltando fumaça pelas ventas, mas os escriturários daquele tempo praticavam a altivez. Eles retrucavam no mesmo tom. O senhor contribuinte que se colocasse no seu devido lugar…
Naquela época? Trabalhava-se muito, mas havia um clima de camaradagem. Se alguém precisasse sair para resolver um problema pessoal, os colegas o cobriam sem reclamar. Quando se encerrava o atendimento ao público, às quatro da tarde, o ambiente interno se descontraía rapidamente.
Quando o doutor Oliveira se aposentou, ficamos reduzidos a três escriturários. E não foi nomeado um novo chefe.
Há uns cinco anos, os dois outros escriturários fizeram um cursinho de digitação e foram transferidos daqui. Restamos eu e essa máquina de escrever.
A cota de cinco cartas?
Uma vez o doutor Oliveira, já aposentado, veio aqui e me disse em confiança:
– Bartolomeu, faça em uma semana o que poderia concluir em um só dia. Aí, você sempre terá uma boa papelada em cima da sua mesa. Parecerá atolado em trabalho.
Gente boa, funcionário exemplar, o doutor Oliveira. Faleceu faz dois anos. Fui ao enterro dele. A mãe do coitado tinha morrido uma semana antes. Desconsolado, ele meteu jornais por baixo da porta da cozinha e vedou as frestas da janela com fita isolante preta. Depois abriu as bocas do fogão, mas não tocou nos fósforos. Ficou só esperando.
Sim. Foi ele quem escreveu a carta-padrão, que leio para a senhora:
Prezado Cidadão, em revisão rotineira, a Secretaria de Fazenda desta Prefeitura Municipal constatou que Vossa Senhoria não pagou a(s) parcela(s) do Imposto Predial referente(s) ao(s) mês(es). Tendo em vista o fato acima, estamos enviando-lhe novo(s) boleto(s), com o(s) valor(es) corrigido(s), multa e juros acrescidos, a fim de que seja procedido o pagamento do(s) mesmo(s) numa agência bancária credenciada.
Belo texto, não?
Nesse ponto, preciso fazer uma confissão à senhora. Sou um sujeito inquieto, criativo. Faz três anos que não repito uma redação. Uma só! A máquina de escrever favorece a minha rebeldia, na verdade a acirra.
Comecei pelo erro. Um dia escrevi: Prezadi. Veja: a letra i está ao lado da letra o, aqui no teclado. Completei: Prezadíssimo.
No dia seguinte cheguei aqui empolgado. Resolvi começar uma carta de modo dramático: Prezado Cidadão!
Veja só que irreverência: meter ponto de exclamação em correspondência oficial. Não é pouca epopeia.
E fui me aprofundando. Um dia, contrariado com certo contribuinte que eu sabia ser mau pagador, inseri uma palavra:
…de que seja procedido, imediatamente, o pagamento…
Por que ajo assim?
Porque me recuso a desempenhar minha missão de forma burocrática. O uso de um computador me empurraria para a acomodação. Mas isso não, jamais! Quero que meu trabalho tenha sempre um pingo de contestação e resistência. É isso que me fez infiltrar palavras inesperadas e pontos de exclamação ou interrogação no texto oficial.
Ontem mesmo, por exemplo, escrevi o seguinte:
A fim de que seja procedido o pagamento do(s) mesmo(s) numa agência bancária credenciada, sob pena de ser Vossa Senhoria…
A senhora já viu ameaça e reticências em uma correspondência oficial?
Não viu nem nunca verá. Criatividade total.
Quando? Eu me aposento neste final de ano. Aí, certamente, aposentar-se-ão também os pontos de exclamação e as reticências.
Com relação ao inquérito que trouxe a senhora procuradora municipal até esta Seção, quero dizer o seguinte: sim, tem fundamento a denúncia de que não me limito a escrever e enviar aos contribuintes apenas as cartas protocolares, adulteradas, de cobrança. Sim, reconheço que também remeto aos senhores munícipes contos de minha lavra.
Mas explicarei.
Desde que me tornei o único funcionário desta Seção, passei também a escrever histórias curtas. Mas só depois de ter cumprido minha cota diária de cinco cartas, claro!
Eu simplesmente ponho um papel em branco na máquina e me abro para o que vier. Datilografo. Palavra chama palavra. Trato de alinhar os vocábulos que, do cérebro, me chegam às pontas dos dedos.
Isso era de início um passatempo, uma brincadeira, um jogo. Eu tratava apenas de dar certa coerência à enxurrada de palavras que me avassalava. Tempos depois me surgiram historinhas com princípio, meio, desenlace.
Se eu tenho uma explicação?
Claro. Isso que a senhora chama de disfunção funcional decorre do excesso de tempo livre. Redigida minha cota de cartas, todos os dias, constato que aquele relógio, ali na parede, avançou apenas um ou dois números. Então, tendo diante dos meus olhos uma folha branca, passo a batucar no teclado. Sou um homem de vida interior agitada, repito. Tenho imaginação fértil e razoável domínio da língua escrita…
O que eu faço com as tais histórias?
Bem, no começo eu as guardava numa pasta que está naquele armário de aço. De vez em quando pegava uma delas e a retocava. Punha uma palavra nova, retirava duas. Botava uma vírgula, eliminava um conetivo. Perseguia as repetições que costumam esconder-se muito bem num texto. Isso na parte, digamos, física. Porém, o que escrevemos possui também uma camada espiritual. Nessa camada, eu me limito a instilar um pouco de humor, melancolia ou até mesmo desilusão.
Sim. Eu os chamo contos a esses meus trabalhos, mas reconheço que, se nós os analisarmos com maior rigor, descobriremos que de fato são modestas crônicas de um escriturário municipal.
Sim, de certa forma, a senhora tem razão quando diz que, sendo contos ou crônicas, tanto faz, no fundo são textos roubados ao erário público.
A remessa aos contribuintes?
Não! Isso não!
Foi assim: um dia eu me perguntei: o que fazer com essas histórias?
A resposta que me veio foi: entregue-as a seus verdadeiros donos, os contribuintes.
Pensei inicialmente em remeter essas crônicas àqueles que realmente saberiam apreciá-las: professores, artistas e intelectuais, os que aparecem no jornal palpitando sobre o que acontece na cidade. Mas desisti ao concluir que gente assim, sempre ocupada em dar entrevistas, não teria tempo para dedicar aos meus escritos.
Pensei depois em remetê-las para os aposentados, que são numerosos aqui na cidade. Meu raciocínio era simples: eles têm mais tempo ocioso. Mas, por fim, acabei me decidindo por escolher os destinatários ao acaso no nosso fichário.
Agora, tem aí um detalhe relevante: sempre comprei envelopes e selos com meu próprio dinheiro.
Que isso fique bem registrado no seu inquérito! Selos e envelopes saem do meu bolso!
Lourenço Cazarré é escritor
Texto originalmente integrado no livroKzar Alexander, o louco de Pelotas
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“… Meus senhores”, anunciou o marechal Rommel ao seu Estado-maior reunido num amplo salão do segundo piso da torre YMCA, enquanto o seu ajudante, o capitão Aldinger, ajustava um mapa de Jerusalém e arredores sobre a mesa. “…Acabámos de conquistar a cidade mais volúvel do mundo e cujo nome, dizem-me, significa santa paz. Aqui vivem cristãos, judeus e muçulmanos, de várias denominações e obediências. Têm ódios que veem da noite dos tempos e dedicações que temos de compreenderse os quisermos dominar. Os nossos antecessores britânicos não tiveram muita sorte nisso”.
Pelas janelas avistava-se o parque de cedros, plátanos e ciprestes que ornamentavam os jardins da residência e, à distância, via-se a cidade velha de Jerusalém com as suas cúpulas, minaretes e torres. Naquela reunião, estavam os grandes nomes do Exército Panzer de Afrika: Gause, chefe do estado maior: Bayerlein, comandante do Afrika Korps, Westphal, chefe do estado maior; comandantes das grandes unidades como Marcks, Buelowius, von Thomas, von Sponeck. Todos sabiam o que o marechal deles esperava; uma exposição clara e franca das dificuldades e soluções. Sabiam que Rommel dividia os militares em inteligentes, tolos, preguiçosos e ambiciosos. Os tolos e ambiciosos eram perigosos e livrava-se deles. Aos tolos e preguiçosos, atribuía tarefas inócuas. Aos espertos e preguiçosos, fazia-os seus comandantes, zelando para que cumprissem ordens. Aos ambiciosos e inteligentes, colocava-os no seu estado-maior, pois queria ajuda. E eles ali estavam, com a bandeira que serviam, sem nada omitirem dos riscos e ameaças.
A Via Juliana e a torre do YMCA (Young Man’s Christian Association) em Jerusalém.
“… Srs. Oficiais”, continuou Rommel: “… O comandante em chefe decidirá como entender; mas tendes de lhe apresentar as possibilidades. O coronel Westphal vai expor a situação, e os desafios para mantermos Jerusalém, antes de passarmos ao nosso próximo objectivo”.
Um rumor aprovador percorreu a sala. O coronel Westphal de porte atlético, iniciou a exposição com a determinação do seu chefe. “… O Panzer Armee Afrika está ainda demasiado fraco para uma nova ofensiva, e os britânicos demasiado frustrados para qualquer novo ataque. Tanto podemos continuar a ofensiva para leste pela Jordânia e Iraque até aos poços de petróleo retirando aos Aliados esse nervo da guerra; como podemos seguir até junto à fronteira turca e ao Irão, envolvendo a União Soviética pelo flanco sul e assim levarmos a guerra até às paragens do Volga e apoiar o 6º exército que marcha sobre Estalinegrado…”
Seguiu-se um debate acalorado sobre este dilema.
“… Temos de aguardar que Berlim se pronuncie”. A linha ofensiva sobre os campos petrolíferos é insustentável, …” Os territórios do Cazaquistão estão demasiado longe.” “… Hitler prefere a guerra económica”, declarou o general von Thomas. ”… Ele quererá o petróleo”.
O briefing prosseguiu com o general Gause. “… Até aqui, combatemos sobretudo no deserto, com populações fugidias. Agora estamos numa malha urbana onde existem organizações paramilitares, árabes e judaicas. E nada é fácil com elas, prosseguia o general Gause, o intelectual do grupo, com vastos cabedais de conhecimentos históricos. “Os muçulmanos são os antigos moradores da terra … que se tornaram cristãos com a ascensão do cristianismo e muçulmanos com a chegada do Islão” … A dispersão dos judeus para fora da Terra de Israel após a destruição do Segundo Templo pelo imperador romano Tito é um “erro histórico”. Muitos dos “trabalhadores da terra permaneceram para trás e converteram-se ao cristianismo e ao Islão. Então, interrompeu Rommel, os árabes palestinos são os irmãos de sangue dos judeus.
A torre da YMCA em Jerusalém, concluída em 1933. Do mesmo arquitecto do Empire State Building.
Assim é… Palestina é um nome romano que ficou da Antiguidade para indicar estes territórios em que nos encontramos a que os judeus chamam haaretz Israel e os cristãos chamam de Terra Santa E em que nos afecta isso? “…A população da Palestina não tem uma postura unânime face a nós, como não a tinha face aos britânicos,”, respondeu Gause.
O chefe do estado-maior do AK, o general Bayerlein, um duro de roer, afirmou que muitos líderes e figuras públicas muçulmanas consideravam que a vitória do Eixo seria a forma de garantir que a Palestina jamais seria restituída aos sionistas e aos britânicos. “… O SS-Reichsfuehrer Himmler, apóstolo das teorias raciais de Hitler, apoia o Grande Mufti de Jerusalém, Mohammad Amin al-Husseini, na luta contra a hegemonia britânica. Vamos ter os muçulmanos todos do nosso lado. E devemos explorar isso ao máximo…”
“…Não diga disparates”, atalhou o marechal Rommel. “… Devem existir mais de 500.000 muçulmanos a lutar pelos Aliados contra nós. 300.000 marroquinos e argelinos combatiam em França. Eu mesmo lutei contra essas forças coloniais francesas na passagem do Somme em Maio de 1940. E centenas de milhares de muçulmanos lutam no Exército britânico da India. Até os soviéticos têm soldados muçulmanos. Mas já vi que tu, Bayerlein, não gostas do susto que nos deu a 4ª divisão indiana em Tobruk”. Os circunstantes entreolharam-se e riram. Bayerleien não se deu por achado. “…Até capturei o brigadeiro Clinton dessa 4ª divisão”. “… Que depois fugiu, replicaram. “… Mas foi recapturado”, retrucou… “Mas voltou a fugir em Itália...” Rommel não ligou à troca de picardias. Parecia cismar em algo de diferente.
Gause esboçou um sorriso retorcido. Fritz (era o primeiro nome de Bayerlein) é melhor não ires por aí… Saber quem entre árabes e judeus está por nós, é quase impossível. Até os sionistas colaboraram com o Partido em meados dos anos 1930 e Goebbels mandou cunhar uma medalha em 1935 comemorando a aliança sionista-nazista.
Forças em parada no pátio da YMCA
Uma jovem serviçal que entrou procurando não chamar a atenção. Os seus cabelos escuros formavam uma trança e tinha o corpo bem torneado. Não aparentava mais de vinte e cinco anos, mas nos olhos fulgia uma sabedoria ancestral. Serviu em silêncio um sorbet de limão a todos os oficiais e ia retirar-se quando subitamente Rommel lhe perguntou. “… A menina, espere um pouco”. A jovem estacou, sem ostentar preocupação. “… Qual o seu nome, por favor?” Era Ester. “… Muito bem, Ester, se eu lhe perguntar se os árabes estão por nós, alemães, que diria?” A jovem respondeu em perfeito alemão: “… Sr. Marechal: apenas sei que nesta cidade cada um está por si próprio e o resto conta pouco”. Rommel agradeceu a resposta.
O briefing se aproximava do fim. Os sionistas, a Yishuv – continuou Gause – vive em grande preocupação desde Tobruk. Falam em duzentos dias de ansiedade. Com apoio britânico, os judeus sionistas formaram o Palmach – uma unidade de élite pertencente a Haganah – grupo paramilitar composta de tropas de reserva – com o fim expresso de nos combater.
“…São, pois o nosso principal inimigo, acentuou Bayerlein. “Mas que sabem eles fazer?”. “…. Atentados terroristas, sobretudo. Foram treinados por Orde Wingate. “…. Wingate, aquele capitão britânico que Churchill chamou para o enviar contra os japoneses em Burma?” “…. Esse mesmo legou ao Palmach as tácticas de guerrilha que vêm do tempo de Lawrence em 1916. Só que Lawrence servia-se dos muçulmanos e Wingate serve-se dos judeus. Os sionistas radicais foram empenhados pelos ingleses em atividades terroristas contra os árabes, mas tanto esfaqueiam árabes, como judeus não-sionistas, ou mesmo ingleses. E agora, temo-los à perna
Marechal Erwin Rommel ( à esquerda) general Alfred Gause ( ao centro) e outro oficial do Eixo.
“… Enfim, meus senhores”, concluiu Rommel. “… Como vimos, Jerusalém tem radicais. Os islâmicos de Husseini estão de um lado da barricada. Irgun, Palmach e Hagannah do outro. Esperemos o pior de todos. Teremos que os identificar e neutralizar e procurar quem no meio desta cidade quer as pazes connosco. Quanto ao mais, Berlim decidirá. “
Houve um rumor de pastas a serem arrumadas quando o coronel Stauffenberg, conhecido como católico, arriscou: Berlim e Deus, Sr. Marechal. “… Deus? Sr. Coronel? Deus marcha com os grandes batalhões” asseverou Rommel, acrescentando com um ar maroto. “…. Mas isso não é razão para que O não visite na sua cidade preferida”.
O marechal saiu para os seus aposentos acompanhado por Aldinger que lhe perguntou. “… Será que os ingleses nos atacarão?” O marechal tinha pouco a dizer. “… Não travarei batalha se nada ganhar com a vitória. E eu ainda não sei o que posso ganhar em Jerusalém. Agradeceu a Aldinger e, após este ter fechado a porta, sentou-se a uma secretária de mogno e iniciou a breve missiva que todos os dias enviava à sua bem-amada esposa, Lúcia, em Herrlingen. Datou a carta – 2 de Agosto de 1942 – e começou:
Querida Lu
Estou bem de saúde e espero que assim estejas tal como Manfred. As minhas primeiras impressões desta cidade são ainda fugidias. Não sei quanto tempo aqui ficaremos, mas tudo me impressiona. Pessoas, árvores, edifícios. Jerusalém é um mistério!
Teu
Erwin
[CONTINUA]
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Vivia no Beco do Espinho uma mulher má. Dizia quem a conhecia que nunca tinha sido melhor:
— Foi sempre assim. Terá de aprender com a vida. Até lá, temos de ter paciência.
Certo dia, a mulher adoeceu. O caso era grave. Na vizinhança, todos se apiedaram dela e acorreram a ajudar a família como podiam:
— Coitados dos pais. É gente boa. Ela é que saiu ruim. O que é que se há de fazer? — comentava-se.
Não tardaram, porém, a perceber que abusava da generosidade de todos os que a visitavam. Os agradecimentos saíam-lhe a ferros, arrancados da boca pelo olhar severo dos pais envergonhados. Na sua boa fé, a população acreditou ter chegado o tal ensinamento que a iria mudar:
— Pobrezita! Ninguém merece uma coisa destas. Não era preciso tanto!
Recuperada da doença, a mulher retomou os velhos hábitos. A maldade, entretanto mal disfarçada, tomou a sonsice por companheira e ganhou um novo fôlego. E, quando, algum tempo depois, os pais faleceram, partiram com eles os únicos limites que até então conhecia.
Dois anos mais tarde, a morte, sempre impiedosa e, desta vez, inesperada, arrancou-lhe do colo a única filha.
— Um golpe destes muda qualquer uma. — pensaram todos. Pensaram mal. Ficou exatamente na mesma. Má.
Um dia, a mulher zangou-se com uma nova inquilina acabada de chegar ao seu prédio. O objeto da discórdia: vasos e plantas no vão da escada. Coisa grave! Gastou um pacote de sal com as begónias, mas os vasos continuavam no mesmo sítio. Não podia deixar passar a afronta. A sessão de gritos e injúrias que se seguiu também não deu frutos. A vizinha ouviu-a até ao fim, sem qualquer expressão no rosto. Despediu-se, virou costas e entrou em casa. Fora de si, a mulher correu a escrever uma mensagem em letras raivosas que enfiou por debaixo da porta do 3.º esquerdo. Era, afinal de contas, uma pobre vítima incompreendida. Tinha o direito de se defender. No bilhete, expressava o desejo de que a filha da vizinha tivesse o mesmo destino da sua, só para ver se ela percebia o que custava.
Os habitantes do Beco do Espinho resignaram-se, então. Deixaram de esperar que a vida lhe pudesse ensinar alguma coisa. Não havia dentro daquela alma o mais pequeno sinal de um ser humano por resgatar. A quem perguntava como estava a mulher depois de tantas provações, os que a conheciam respondiam agora:
— Má, como sempre. Se mudasse de fora para dentro, era a primeira.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Raquel Rodrigues sugere uma ‘paragem’ rápida em Singapura, numa escala em trânsito para um destino (ainda) mais longínquo.
Na hora de viajar, vale a pena contemplar os ‘stopover‘: paragens mais demoradas aproveitando escalas em vôos para destinos longínquos. Há alguns que são mais populares entre quem viaja. Mas os viajantes não devem ficar apenas pelos ‘stopovers‘ no Dubai, Abu Dhabi, Catar e Istanbul. São todos ‘escalas’ interessantes, nem que seja para se perceber quais os destinos que não se aprecia tanto. Contudo, Kuala Lumpur e Singapura são imperdíveis.
Singapura deveria mesmo constar da lista de todos os viajantes. Já no final dos anos 90 do século passado era considerada uma “cidade” do futuro.
Também conhecida como a pérola da Ásia, Singapura é uma cidade-Estado. O país tem 5,6 milhões de habitantes, e é hoje um dos maiores centros financeiros do mundo. Com o maior número de milionários, é o país mais caro para se viver. De acordo com o poder de compra dos seus habitantes, é o quarto país mais rico do mundo, apenas superado pelo Luxemburgo, Catar e Macau (não sendo um país, é uma região administrativa especial da China, desde 1999).
Recorde-se que há 50 anos, Singapura era uma ilha pobre, com poucos recursos naturais e que não prometia grande futuro. Depois de deixar de estar subjugada ao domínio britânico e conseguir a independência da Malásia em 1965, Singapura tornou-se um Estado autónomo. Estava então sob a liderança de Lee Kuan Yew, que foi primeiro-ministro durante mais de 30 anos e o “arquiteto” do chamado milagre económico e social.
Dependendo da época que se visitar Singapura, o clima húmido e quente poderá ser o que mais dificulta a estadia, pois só apetece estar no interior dos museus e hotéis, protegidos pelo fresco ar-condicionado.
Fiquei três dias em Singapura e partilho aqui o meu roteiro.
Podendo, não deixe de ficar no Marina Bay Sands. Foi o meu ‘luxo’ desta viagem. Valeu a pena, pois incluiu acesso a espetáculos e outras experiências, o que acabou por compensar.
O hotel é maravilhoso, gigante (o que não faz muito o meu género). Mas só ficando alojada no hotel poderia ter acesso à piscina mais alta do mundo, uma piscina panorâmica com vista para toda a Singapura.
A não perder:
Marina Bay. É o postal de Singapura e a porta de entrada para este ‘mundo mágico’. As maravilhas arquitetónicas, os edifícios extravagantes e a vista para o complexo do hotel ou os 4 quilómetros de caminho pedonal, faz desta zona a mais bonita e preferida de viajantes. Encontra-se num só local espectáculos de luzes, museus e compras.
Gardens by the Bay é um parque natural, composto por três jardins à beira-ma: Bay South Garden (em Marina South); Bay East Garden (em Marina East); e Bay Central Garden (em Downtown Core e Kallang). O maior destes jardins é o Bay South Garden. É aqui que se localiza a Flower Dome (maior estufa de vidro do mundo), a Cloud Forest e as maravilhosas Supertree Grove & OCBC Skyway, que oferecem imagens icónicas que têm percorrido todo o mundo.
Dica: todos os dias, pelas 20h45, o espaço oferece um espetáculo de som e luz que tem como pano de fundo as Supertrees.
Hotel Fullerton – Fullerton Heritage. O Fullerton Hotel Singapore é um luxuoso hotel de 5 estrelas, localizado na baixa de Singapura e em frente à Marina Bay. Mas o Fullerton é muito mais que um hotel. Originalmente, foi um edifício de escritórios e a central de Correios de Singapura. É considerado o ponto zero da cidade. Hoje em dia, o nome Fullerton significa a cultura de toda uma zona, com diversos edifícios históricos, centros comerciais, hotéis, restaurantes, passeios marítimos, que, em conjunto, compõem a Fullerton Heritage. O local é de visita gratuita e vale a pena a visita.
Jardim Botânico de Singapura. Singapura é a ‘cidade-jardim’. O Jardim Botânico é o primeiro património da Unesco no país. Além de ser um local recreativo para fazer jogging, almoçar ou descansar, é também um centro de pesquisa botânica e agrícola. O espaço é enorme e contempla o National Orchid Garden (o maior jardim de orquídeas do mundo), alguns museus como o SBG Heritage Museum, que apresenta diversas exposições, e o Jardim Infantil Jacob Ballas, onde as crianças podem brincar e realizar atividades pedagógicas tendo por base a vida das plantas.
Merlion Park. O mítico Merlion (cabeça de leão e corpo de peixe) é o ícone nacional de Singapura. O corpo simboliza o início humilde de Singapura, como vila de pescadores, e a cabeça o nome original de Singapura, “Cidade do Leão” em malaio. A estátua tem quase 9 metros e pesa 70 toneladas. É um dos locais turísticos mais procurados e um marco de Singapura.
Singapore Flyer. Localizado no coração da Marina Bay, o Singapore Flyer é a maior roda gigante de observação de toda a Ásia e a segunda maior do mundo. Do topo, consegue-se ver praticamente toda a cidade e em dias de boa visibilidade, a Malásia e partes da Indonésia. Tem 165 metros, 28 cápsulas de vidro e cada volta demora cerca de 30 minutos.
Museu ArtScience. No coração de Marina Bay Sands, encontramos o Museu de Arte e Ciência, um testemunho da fusão de arte e tecnologia. Esta obra-prima arquitetónica, projetada pelo arquitecto Moshe Safdie, apresenta um formato impressionante inspirado na flor de lótus, que integra perfeitamente os mundos natural e artificial. No interior, os visitantes têm uma série de exposições que exploram a intersecção entre arte, ciência e tecnologia de ponta.
Uma das exposições mais cativantes do museu é a experiência Future World, uma jornada multissensorial que mergulha os visitantes num mundo de arte digital de ponta e instalações interactivas. Disponibiliza projecções inspiradoras, permite a manipulação ambientes virtuais e até mesmo criar a sua própria arte digital, tudo isto cercado pelos sons e visuais hipnotizantes do futuro.
Aeroporto de Changi. A porta de entrada para o ‘futuro’ é o Aeroporto Changi de Singapura que espelha o compromisso da cidade-Estado em abraçar o futuro. Além de ser um exemplo de infraestruturas de transporte aéreo de classe mundial, o Aeroporto de Changi tornou-se um destino por si só, ostentando uma infinidade de atracções e comodidades futurísticas que redefinem a experiência de viagem. Uma das características mais impressionantes do aeroporto é o Jewel, um complexo com cúpula de vidro e aço que abriga uma vasta gama de opções de compras, restaurantes e entretenimento. No centro da ‘Jóia’ fica a Rain Vortex, a queda de água interna mais alta do mundo, cercada por jardins exuberantes e exibições de luzes fascinantes. Mas a verdadeira maravilha tecnológica está no Terminal 4 do Aeroporto de Changi, concebido para pensar no futuro viajante. Aqui, encontra-se sistemas de auto-atendimento de última geração para ‘check-in’, tecnologia de reconhecimento facial e até robôs a auxiliar na gestão de bagagens e serviços de ‘concierge‘. É um vislumbre do futuro das viagens aéreas.
Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook.
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Sendo um dos mais qualificados e profícuos romancistas e divulgadores de História, Sérgio Luís de Carvalho é um mestre na arte de contar estórias. Em ‘A infância e a juventude dos reis de Portugal’, os leitores serão transportados para um fascinante e, por vezes, tumultuoso mundo dos príncipes e princesas que marcaram o rumo do nosso país. Mas não são contos de fadas.
Longe de uma abordagem académica ou árida, Sérgio Luís de Carvalho oferece uma narrativa viva, didáctica e deliciosamente anedótica, em muitos casos, que alia rigor histórico a um estilo leve e acessível. Com uma curiosidade quase insaciável, com apartes deliciosos e a propósito, e uma escrita desenvolta e cativante desde a primeira página, este livro é um verdadeiro deleite para quem deseja conhecer os ‘bastidores’, em alguns casos escandalosos ou doentios, da outrora Monarquia portuguesa.
Percorrendo as infância e juventude dos futuros monarcas e suas famílias, o livro vai iluminando os caprichos, as arbitrariedades e as peculiaridades que moldaram não apenas os seus destinos, mas também os do reino. É um retrato humano, por vezes divertido, outras vezes chocante, daqueles que, por nascimento ou desígnio, assumiram o trono e marcaram os rumos de Portugal. As histórias destes príncipes e princesas revelam-se cheias de contradições: entre o esplendor e o grotesco, o privilégio e o sacrifício, a inteligência e a insensatez.
Sérgio Luís de Carvalho estrutura o livro de forma meticulosa, organizando os capítulos por monarca e oferecendo ao leitor a liberdade de escolher por onde começar. O índice, que apresenta os reis pelos seus cognomes — como ‘D. Pedro I, o príncipe destrambelhado’, ‘D. Sebastião, o príncipe alienado’ ou ‘D. João V, o príncipe galante’ —, já antecipa o tom despretensioso e quase irónico da narrativa.
Esta escolha editorial é, aliás, um convite à leitura não-linear, permitindo que o leitor explore as personalidades mais fascinantes ou as histórias mais curiosas de acordo com o seu interesse.
A riqueza de detalhes é notável, fruto do extenso trabalho de investigação, que se baseia tanto em crónicas antigas como em análises modernas. Sérgio Luís de Carvalho apresenta os príncipes e princesas com uma imparcialidade que não tenta desculpar os seus erros, mas também não os reduz a caricaturas simplistas. Assim, conhecemos D. Pedro I, cujas paixões e vinganças o tornaram uma figura tão fascinante quanto controversa; D. Sebastião, cuja obsessão pela glória e religiosidade beirava a alienação; D. João V, que, entre festas e conquistas amorosas, simbolizava o apogeu e os excessos do barroco português; e D. Pedro IV, cuja vida dividida entre Portugal e o Brasil o tornou uma das figuras mais complexas e enigmáticas da nossa história.
Mas não é apenas o conteúdo que cativa: o estilo de Sérgio Luís de Carvalho é uma das maiores virtudes do livro. A sua escrita combina leveza e profundidade, didactismo e humor. Mostra bem como captar a atenção do leitor – não se tivesse ele dedicado a ser professor do ensino secundário –, seja através de uma anedota curiosa, seja por meio de uma reflexão mais séria sobre o contexto histórico.
A violência, os desmandos e a opulência que marcam muitas dessas histórias não são romantizados, mas apresentados como parte integrante de uma realidade histórica muitas vezes desconcertante.
Apesar do carácter lúdico deste livro, Sérgio Luís de Carvalho também nos oferece uma reflexão implícita sobre a natureza do poder e a formação das elites. Ao explorar como as infâncias e juventudes muitas vezes arbitrárias e traumáticas moldaram os futuros monarcas, o autor lança luz sobre os mecanismos que perpetuavam (e, em alguns casos, ainda perpetuam) as desigualdades e os privilégios. Não se trata apenas de reviver episódios pitorescos ou dramáticos, mas também de compreender as forças sociais e políticas que moldaram a História de Portugal.
Para os leitores contemporâneos, ‘A infância e a juventude dos reis de Portugal’ é também uma oportunidade de olhar para os bastidores da monarquia com o mesmo fascínio que hoje as revistas cor-de-rosa dedicam às casas reais da Europa. No final, fica sobretudo um retrato humano, um mosaico de vidas extraordinárias e, muitas vezes, contraditórias. E Sérgio Luís de Carvalho consegue transformar o que poderia ser apenas um inventário cronológico de príncipes e princesas num relato fascinante e acessível, que diverte e ensina ao mesmo tempo. Uma leitura obrigatória para os apaixonados pela História de Portugal e para todos os que desejam descobrir os traços humanos por debaixo das coroas.
A posição de relativo destaque desfrutada hoje por Fred Hart entre os escritores policiais que atuaram nos Estados Unidos na década de 40 do século passado lhe foi assegurada por um livro intitulado O Resgate da gangue de Frank Butter, de autoria do professor Joaquín Maria Moretti de Aguirre, da Universidade Autônoma de Madri.
A ressurreição de Fred Hart (1899-1948) só se deu porque Joaquín Maria, uruguaio de Salto, escolheu a metrópole da América do Norte para ali amargar seu exílio. Os pais dele queriam que fosse para a Europa, porém mais alto falou a paixão que o rapaz nutria pela literatura policial norte-americana.
O modestíssimo sonho de Joaquín Maria, concluído o curso universitário, era passar um ano em uma sonolenta cidadezinha na fronteira com o Brasil, onde sua mãe possuía uma casa herdada de ancestrais bascos. Pretendia ali dominar o áspero português fronteiriço ao mesmo tempo em que mergulharia no cotidiano do vilarejo. De posse desses conhecimentos, a língua de Camões em sua versão para contrabandistas e a vida insossa num cafundó, escreveria mais tarde, com proustiana dedicação, um romance histórico sobre a chegada maciça de bascos espanhóis ao Sul do Continente em meados do Século 19.
Esse sonhou evaporou-se em um dia ventoso e frio de julho quando Joaquín Maria subiu a um palanque no qual jovens barbudos raivosos discursavam contra o governo. Desprezando os políticos e a política, Joaquín Maria não chegou àquele púlpito para destratar autoridades ou exigir liberdade, como escreveram depois jornalistas desavisados. Na verdade, sequer subiu ao palanque. Foi colocado lá à força. Mas, aproveitando o ensejo, pronunciou então uma desconchavada e hilariante arenga que ainda naquele mesmo dia correu de boca em boca pelas gélidas ruas da capital uruguaia com a velocidade das labaredas que devoram os campos estorricados de janeiro…
Não, não nos antecipemos.
O jovem Joaquín Maria pretendia também, depois de lançar o romance que lhe faria luzir o nome no vasto mundo literário hispânico, escrever soturnos contos campeiros, como o faziam muitos escritores de sua pequena, porém orgulhosa, nação. O núcleo verdadeiro de sua obra seria formado por curtas histórias trágicas protagonizadas por peões taciturnos.
Mas, por azar, na época de sua desgraça, andava alinhavando – apenas para treinar os dedos, como dizia – um folhetim de casos burlescos protagonizados por um fabuloso coronel, Buenaventura Pasión, veterano de muitas refregas eleitorais e guerreiras, um anti-herói irônico, desbocado, parlapatão e pantagruélico.
No dia fatídico, Joaquín Maria carregava no bolso de sua jaqueta de couro o original desse folhetim.
Bem, já que estamos falando de alguém que se tornou renomado professor de literatura, é importante consignar que Joaquín Maria havia publicado, um ano antes, no El Nacional, um ensaio, intitulado “Neblina e escárnio”, com o qual pretendia demonstrar que a Grã-Bretanha e a Irlanda só eram o berço de magníficos escritores satíricos por sofrerem com um dos piores climas do mundo. Por outro lado, defendia que, embora nascidos em terras ensolaradas, portugueses, espanhóis e italianos eram os autores dos livros mais lúgubres da literatura mundial.
Leitor onívoro, Joaquín Maria entremeava a leitura de romances clássicos (dominava também o inglês, o francês e o português) com coletâneas de contos argentinos, brasileiros e uruguaios. Como muitos rapazes daquelas terras austrais, sentia-se literariamente mais atraído pelo rude cotidiano dos gaúchos do que pelo vazio espiritual das cidades. Para espairecer o espírito, no intervalo entre a leitura de duas obras densas, devorava romances policiais norte-americanos.
Como foi Joaquín Maria parar em cima do tal fatídico palanque?
Foi assim.
Naquele dia ele havia almoçado num restaurante do Mercado del Puerto em companhia de dois colegas e de quatro garrafas de vinho. A primeira botelha, esvaída antes que fizessem o pedido, já os deixou alegres. A segunda acompanhou o despacho das carnes e a terceira e a quarta foram consumidas, entre gargalhadas, durante a leitura que Joaquín Maria fez dos capítulos iniciais de As mais tristes desventuras do valoroso coronel Buenaventura Pasión.
Risonhos ainda, bochechas vermelhas e pernas incertas, os três jovens ganharam a rua ventosa. De repente, ao quebrarem uma esquina, viram-se diante de um ajuntamento em uma praça. Enfiaram-se pelo meio da ululante multidão até que se detiveram ao pé dos oradores.
Livres pensadores, praticamente anarquistas, indiferentes à política, perceberam ali uma excelente oportunidade de diversão. Estavam em um posto privilegiado para a fruição das frases feitas e dos chavões dos furibundos discursadores, muitos dos quais eles conheciam de vista da universidade.
Resolveram desempenhar o sempre divertido papel de bêbados de comício. Passaram a aplaudir com grande entusiasmo toda e qualquer tirada dos oradores, especialmente as mais idiotas. De vez em quando soltavam em voz alta uma piada.
Como confessaria trinta anos depois, já então proprietário de veneranda barba grisalha e rotundo e dilatado ventre, Joaquín Maria estava ali também para, se possível, bolinar alguma donzela.
À época ele era acossado por um recorrente sonho erótico no qual fazia amor com uma guerrilheira tupamara, vestida de Branca de Neve, que o fustigava com um chicotinho, chamando-o de “sórdido porco capitalista”.
Tudo correu bem no início. Às vezes uma das piadas dos mancebos que recendiam a vinho obtinha o reconhecimento do público. De vez em quando, Joaquín Maria conseguia se roçar em uma garota.
Ocorre, porém, que, no intervalo entre as falas de dois oradores, alguns marmanjos grandalhões – cansados das piadinhas infames e das esfregas – resolveram colocar Joaquín Maria, o menor dos três amigos, em cima do palanque. Pegaram-no pelos braços e pernas e erguendo-o por cima de incontáveis jovens cabeças excitadas lançaram-no deitado sobre o tablado.
Ao se levantar, Joaquín Maria surpreendeu-se com a visão de uma massa humana que ria às bandeiras despregadas. Não demorou um segundo para descobrir o que tinha de fazer. Retirou do bolso da jaqueta o manuscrito amarfanhado que pouco antes lera para os colegas. E, com voz pastosa e queixo duro, começou a narrar As maistristes desventuras do valoroso coronel Buenaventura Pasión.
As gargalhadas e os cacarejos se sucediam num rugido crescente como ondas de um mar furioso.
Os organizadores do comício demoraram preciosos minutos até perceber que o baixote magricelo tinha de ser arrancado dali imediatamente. Debochava dos militares, sim, mas avacalhava também o protesto. Vacilaram um pouco a retirá-lo dali porque sabiam que não se deve contrariar uma aglomeração que ri.
Em que consistia a novela de Joaquín Maria? Era um livrinho tosco, porém movimentado e divertido, no qual o autor enfileirava piadas – contadas pelo coronel – sobre a estultícia e a avareza dos poderosos, rurais ou urbanos.
Como Joaquín Maria construiu sua noveleta?
Pela junção de inúmeras piadas. Ele simplesmente agarrava o esqueleto de uma história engraçada e decorava-o com roupas e adereços. E depois dava um jeito de uni-la a outra piada também estilizada. Um cáustico militar, o coronel Buenaventura Pasión, era o protagonista/narrador do rosário de chistes e palhaçadas.
Se fosse atento às coisas da política naquela época, Joaquín Maria certamente não teria concedido uma patente militar a seu pícaro herói.
Amolecido pelo vinho e pela vertigem de ver-se acolhido por uma cumplicidade multitudinária, Joaquín Maria fez a leitura dos dois primeiros e breves capítulos do seu para sempre inédito folhetim até que, sob palmas e assovios, mais de apoio que de repúdio, foi sacado do palco.
Horas mais tarde, sóbrio à custa de três xícaras de café amargo, atravessou em alta velocidade, num carro de amigos de sua família, o cenário – pequenas cidades indolentes – que elegera como palco para as patifarias do coronel Buenaventura.
Ao raiar o sol, no dia seguinte ao de seu efêmero triunfo oratório, cruzou uma rua e adentrou um exótico país chamado Brasil, que também vivia, à época, dias impróprios para piadistas.
Três semanas mais tarde chegava a Caracas, de onde voou para os Estados Unidos. Lá, já estudante da Universidade de Nova Iorque, recebeu a incumbência de resenhar um livro policial escrito nos anos 40. Deram-lhe a oportunidade de optar entre os consagrados Dashiel Hammet ou Raymond Chandler. Ocorre, porém, que Joaquín Maria Moretti de Aguirre tinha verdadeira obsessão por escritores menores. Achava que a paixão pelos fracassados era um traço distintivo dos latinos, dos católicos, que jamais seria compreendido por mestres norte-americanos, protestantes. Por isso, para desafiar seu professor e afrontar a mentalidade anglo-saxônica, escolheu escrever sobre A gangue de Frank Butter, de Fred Hart, escritor de segunda ou terceira linha.
Foi assim que saíram do anonimato e do esquecimento um hoje famoso ensaísta latino-americano (que não escreveu um romance histórico e nem mesmo um só conto duro) e o divertidíssimo Fred Butter, protagonista da obra mais representativa do que hoje se conhece como romance policial-pastelão.
Lourenço Cazarré é escritor
Texto originalmente integrado no livroKzar Alexander, o louco de Pelotas
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Quando nasceu Odete, a mãe colocou-a numa cesta junto à máquina de costura. Embalada pelo som ritmado do pedal, a menina cresceu sem conhecer outra realidade. Da cesta passou para uma cadeira de criança trazida de um passeio a Reguengos. Foi nela que aprendeu a dar os primeiros pontos. Dali observava a mãe a tirar as medidas das clientes, a talhar e alinhavar os modelos, a experimentar e fazer os últimos ajustes. A mãe dizia que gostava que a menina tivesse outra vida. Que não ficasse ali presa na casa de fora, a ver o mundo passar na rua. Mas Odete cedo revelou ter mãos de fada. A chegada da segunda máquina, comprada a prestações na Singer, foi uma espécie de diploma. Primeiro em dupla, depois sozinha, Odete trabalhou grande parte da sua vida como modista.
Mas chegou o pronto-a-vestir. Abriram lojas modernas um pouco por toda a cidade. Os vestidos da moda estavam agora à mão de semear. Odete já pouco podia mostrar da sua arte. Vivia de fazer pequenos arranjos. Ganhava bem. Mas o trabalho não brilhava. Os clientes eram desconhecidos com os quais poucas palavras trocava. Dias, meses, anos, sentada a uma máquina que agora era elétrica. Um rádio. Um pequeno cão peludo, sonolento, enrolado sobre a velha cadeira alentejana. O sol a bater-lhe no focinho tranquilo. Entre bainhas, botões e fechos, Odete encontrava tempo para fazer peças que mostravam a sua destreza e talento. Pendurava-as na porta de reixa, viradas para rua. Entre elas, um talego de cores vibrantes saltava à vista. As pessoas passavam, paravam, perguntavam o preço:
– Esse não está à venda. – respondia Odete.
– Que pena! Tão bonito. – comentavam.
Odete sabia disso. Era justamente essa a razão pela qual não o vendia. Para que admirassem a sua habilidade. Depois, regressava o silêncio.
Certo dia, uma turista curiosa parou a admirar o talego. Quis saber o que era, para que servia. Odete, entusiasmada com a conversa, respondeu-lhe elevando cada vez mais a voz:
– TA-LE-GO! É PA-RA PÔR O PÃ-O! TA-LE-GO!
A turista enfiou a mão no saco e repetiu sorridente:
– TA-LE-GO! PÃ-O!
Mas no fundo do talego, não foi pão que encontrou. Foi um brinco de ouro. Espantada, entregou-o a Odete que o rejeitou. Não era dela. A turista voltou a meter a mão no talego e encontrou o par do brinco.
Passados dias, uma outra mulher que parou para ver o talego retirou de lá de dentro um cordão de ouro de duas voltas. Odete insistiu que ficasse com ele. Não lhe pertencia.
Cedo correu a notícia pela cidade. As pessoas começaram a passar com mais frequência àquela porta. Primeiro vinham a medo, disfarçadamente. Como quem não quer a coisa. O talego nunca desiludia. Não havia por esses dias quem não se lembrasse de vir cumprimentar diariamente a Odete. Passado algum tempo, tinha tantos amigos que a fila se formava durante a madrugada. Quando abria a porta para pendurar o objeto, todos se apressavam a tentar a sua sorte e já nem se davam ao trabalho de lhe dar os bons-dias. Pelo contrário. Reclamavam. Insurgiam-se:
– O que custava ao raio da velha deixar aqui o saco durante a noite?
Tiravam o que queriam e iam embora. Até que um dia, ao chegarem à porta, encontraram o talego virado do avesso. Metiam as mãos e nada. De um lado. Do outro. Nada. Não podiam acreditar. Bateram tão violentamente à porta que a arrombaram. Invadiram a casa para exigir explicações. Mas não encontraram a costureira. Estava tudo nos sítios do costume, menos ela e o cão. Nunca souberam que numa tarde de inverno, cansada das dores do reumático que há muito lhe davam que fazer, Odete resolveu meter a mão dentro do talego na esperança de encontrar uma pomada que a aliviasse. Mas o que de lá saiu foi um cartão dourado. Odete Mendonça diziam as letras em relevo. Não havia dúvidas de que era para ela.
Há quem diga que a viu deitada numa espreguiçadeira, com o seu Pompom ao lado, a beber água de coco, em Copacabana.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Aquele número que ali estava diante de si, no seu smartphone, era inteiramente novo para a Cátia que odiava ter de atender números desconhecidos que não lhe diziam nada. Tinha medo.
Mas o aparelho até parecia que estava mais nervoso que o habitual e mesmo o som aparentava estar mais estridente e intenso.
E a proveniência podia muito bem vir do seu ex-namorado, o que seria um problema, pensou ela. Já em tempos o fizera, ligando de uma velha cabine perdida no tempo, achava ela.
Não queria falar com ele por nada deste mundo, e suspeitava que o rapaz pudesse estar muito bem a ligar de outro telemóvel, embora ele soubesse de antemão, que Cátia raramente atendia quando os números eram de origem desconhecida.
Desligou o som.
Para ela, ele era um stalker, mas, para ele, ela também era uma stalker.
Mas isso é outra história.
Ficou a olhar para o telemóvel a vibrar enquanto se decidia.
Já tinha tido problemas por não atender chamadas, sobretudo quando se tratava do campo laboral, tinha noção disso, e pagou um preço bem caro da ultima vez por ter investido nessa opção arriscada do não atendimento, mas era a pior coisa que lhe podiam fazer, e jamais queria ter de voltar a ouvir a voz do Marco, o seu stalker, isso é que não. A acontecer só no tribunal caso chegassem a esse ponto.
Tinham namorado dois anos e a relação acabara em violência doméstica segundo os dois e teriam mesmo acabado em tribunal, não fosse o aparecimento da pandemia mediática. Mas hoje ela pondera fazer queixa novamente. E ele também. São, até prova do contrário, ambos vitimas de “stalkerismo ”.
Estranho mundo o nosso.
Na altura ele fez queixa dela, alegando que levara um tareão à antiga, invocando que ela era cinturão castanho em Full Contact e até era mais alta que ele.
Mas ela sempre o negou. Ele era apenas cinturão verde em Judo.
Naquela altura atípica e singular da pandemia e de confinamentos loucos e radicais, cujas regras mudavam dia sim dia não, os advogados chegaram a acordo para não levarem o caso a tribunal. Nenhum dos quatro se via de máscara nas audiências. Áí estavam todos de acordo.
Mas isso é também outra história.
E agora que tudo aparentemente passou, o Direito e a verdade eram de novo uma hipótese de voltar à carga para ambos.
Mas talvez seja tarde. Os tempos mudaram.
Cátia era uma reincidente em não atender números anónimos, mas com algum desconforto, e depois de pensar bem, atendeu a chamada.
Era da Agência Funerária que estava a tratar da lápide do pai que já morrera há um ano, e só agora a família tinha decidido fazer uma, com uma inscrição a recordar o bom homem que o Sr. Américo Santos tinha sido, uma enorme mentira, uma vez que nenhum dos quatro filhos tivera entretanto qualquer tipo de saudades do pai, nem mesmo a mulher, que rejuvesnecera dez anos após a morte do marido.
O Sr. Américo tinha sido uma má pessoa e até um pai ausente, fazia tudo à sua maneira, não ouvia ninguém, era malcriado, gordo, corrupto e mil coisas mais bastante negativas por sinal, no entanto tinha sido em vida católico e a família estava a ser forçada pela outra parte da família para que essa lápide ganhasse vida.
No que resta do mundo católico, é assim.
Cátia ficou aliviada quando percebeu a origem da chamada.
O processo já tinha avançado, já estava até a maquete feita, e era por isso mesmo que esta ligação se estava a efectuar.
A senhora da Agência disse:
– Estou a falar com o Sr. Timóteo?
– Não! Sou a Cátia. O Timóteo é o meu irmão.
– Olá, eu sou a Dulce da funerária Anjos. Pode ser consigo também. Já trocámos uns e-mails.
A Cátia estava descansada naquele momento, não era nenhum desconhecido, nenhum stalker, nenhum ET, nenhum vampiro. E de forma calma respondeu:
– Sim, sim.
– Olhe, é porque a fonte de letra que me está a pedir nós efectivamente não temos.
– Não tem a Helvética?
– Não. Sabe, essa não tem muita saída. Nós trabalhamos com a Comic Sans. Normalmente os clientes ficam satisfeitos com essa. Não leve a mal, mas para mim também é a mais gira de todas. Eu uso-a para quase tudo… E aconselho.
– Sim. Mas eu trabalho na área do Design.
Interrompeu a Cátia, irritada.
– E não quero essa letra. Não tem nenhuma Garamond?
– Gara… quê?
– …Mond. Garamond. É um tipo de letra. Não conhece?
– Pois. É o que lhe digo. Nós aqui não trabalhamos com a Garamond. Pois… Se a senhora trabalha nessa área, deve ser mais exigente. É como eu com a Fórmula 1. Vej…
– Então trabalham com quais?
Interrompeu.
– Não lhe sei assim dizer. É que é a primeira vez que alguém se queixa da fonte.
– Sim, mas eu queria saber com que fontes trabalham, se não se importa. Até porque essa aí não tem nada a ver com a situação. Estamos a falar de uma pessoa morta não é!
– Pois. Estou a perceber. Queria assim uma coisa… Como dizer?.. Mais, vá… Pesada!.. Vá!
– Não é pesada. É ajustada.
– Pois. A Comic é assim mais leve e simpática. Mas percebo. Quer assim uma coisa…
– Mas diga-me, com quem é que posso falar aí da Agência que saiba do assunto?
Interrompeu a Cátia novamente, ainda mais irritada.
– Com o Sr. Alves mas está com covid em casa. Pelo menos ele acha que é. Está sem olfato e está muito irritado. Está isolado, sabe!.. Eu já lhe disse que não era preciso o isolamento mas é teimoso o raio do homem. E não quer falar com ninguém. Ainda há pouco tentei comunicar com ele e quase me ofendeu. Tente mandar um e-mail para o Sr.Alves.
– Dê-me o e-mail então.
Simultaneamente a Cátia recebe entretanto uma chamada na outra linha e o número é outra vez desconhecido, até diz sem ID, o que faz com que fique ainda mais nervosa.
– Espere, estou aqui à procura. Mas olhe, entretanto vi aqui qualquer coisa no nosso catálogo sobre isso das letras, quer que lhe diga?
– Sim.
Entretanto a chamada anónima caiu.
– Arial. Gosta?
– Não.
– Verdana?
– Também não. É horrível.
– Também acho.
– Bold.
– Isso não é fonte. Isso é quando se quer a letra mais marcada. Mais escura.
– Ai sim? Que engraçado. Mas fica muito gira, assim mais escurinha.
– Diga mais.
– Vicking.
– Não acredito que têm essa. Para que é que a usam?
– Pois, não sei. Tem de perguntar ao Sr. Alves. Deve ser para cartões. Aqui em Arouca usa-se muito. É assim… Dinâmica!
– Isso é absurdo.
– Só temos aqui mais uma, que é… Deixe ver… Ah!.. Times New Roman.
– Tem essa?
– Aqui diz que sim. Não é do meu departamento, repito. Isto é mais com o Sr. Alves. Mas pelo menos é o que diz aqui. Mas eu se quer que lhe diga, gosto muito da outra dos Comic Sans. É muito gira, mesmo para lápides. Torna assim a coisa mais leve sabe?.. Quando eu morrer q…
– Mas isto não é para ser giro.
Interrompeu a miúda novamente, e desta vez ainda de forma mais abrupta. Continuou:
– O meu pai está morto. Estamos a falar de uma lápide.
Aparece novamente a inscrição sem ID no telemóvel. A rapariga começa a ficar muito ansiosa.
– Olhe eu vou pensar melhor e mando um e-mail para vocês a dizer a nossa opção. Vou reunir com os meus irmãos e com a minha mãe. Mas por favor reencaminhe para o Sr. Alves a nossa opção.
– Já agora. Podia avaliar a minha prestação?
Sugeriu a empregada.
– Como?
– A seguir vai receber um inquerit…
– Agora não. Obrigada.
– É o meu irmão que vai ligar. É uma voz verdadeira. Nã…
Desligou e ficou a olhar para o telemóvel que entretanto já estava com o som do toque activo, cada vez mais estridente. Cada vez mais agudo. Até lhe pareceu que era a primeira vez que ouvia aquele toque.
E num ápice atendeu.
– Sim. Com quem falo?
Perguntou.
E o telefone ao fim de uns segundos desligou-se mas ainda se ouviu uma voz ao longe, meio cavernosa e imperceptível, embora com um tom bem marcado mas dúbio.
Estranho.
A Cátia ficou branca. Não queria acreditar no que achava que acabava de ouvir.
Foi à cozinha beber um copo de água. Sentiu um ligeiro frio interior que normalmente anunciava quebra de tensão e sentou-se numa cadeira da cozinha.
Ía jurar que era a voz do pai a pedir a Comic Sans.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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A obra ‘História Global da Literatura Portuguesa‘, com direcção de Annabela Rita, Isabel Ponce de Leão, José Eduardo Franco e Miguel Real, constitui uma releitura da Literatura Portuguesa em contexto internacional: 100 autores oferecem 100 focais de diálogos que atravessam as habituais fronteiras do espaço e do tempo, da periodologia e da genologia, das letras, das artes e das ciências. O PÁGINA UM apresenta os textos das intervenções de Annabela Rita (moderadora) e Alberto Manguel (conferencista) no Seminário Internacional de Estudos Globais (Universidade Aberta, Salão Nobre do Palácio Ceia), no passado dia 11 de Novembro, em uma das apresentações que se estão a suceder pelo país.
NOTA DE ABERTURA – ANNABELA RITA
Saudações ao Professor Alberto Manguel, ao Professor José Eduardo Franco, Director do CEG da UAb, à Dra. Guilhermina Gomes, representante da Editora Temas & Debates, a todos os presentes, dirigentes institucionais, Colegas, Alunos, Amigos, e, enfim, aos que tornaram possível a HGLP.
Agradeço ao Professor José Eduardo Franco o honroso convite para moderar esta sessão.
A minha tarefa começa com um gesto desnecessário e algo irreverente: apresentar Alberto Manguel, grande personalidade das Letras mundiais.
Vou evitar a dupla impertinência desse gesto, optando por homenageá-lo com algumas evocações expressivas do pensamento que nos motivou a convidá-lo para apresentar a nossa História Global da Literatura Portuguesa, que agradecemos aos seus Directores, Coordenadores, Colaboradores e Conselheiros, para já não mencionar as instituições que a patrocinaram, apoiaram e editaram.
Em 2014, na conferência que proferiu no ciclo Fronteiras do Pensamento (Brasil), Alberto Manguel
“Contou que uma vez, ao conversar com um taxista na Espanha, se viu inquirido a confirmar se havia mesmo lido Dom Quixote. “Todo mundo fala que leu, mas ninguém chegou ao final deste livro, pois ele é composto de muitos volumes”, disse o incrédulo e mal informado motorista. Partindo desta anedota, Manguel afirmou ser esta a metáfora que exemplifica nossa biblioteca imaginária: ela é formada por “entesouramentos” de tudo o que ouvimos, conversamos, lemos, lembramos e imaginamos. “Usamos a palavra imaginário como algo inexistente e que por si só parece não possuir materialidade. Mas o que pertence à imaginação tem raízes muito profundas na realidade, pois é assim que a conhecemos. Nós imaginamos as experiências, e quando as colocamos no papel contribuímos para esta biblioteca imaginária universal”, explicou Manguel.[1] E continua: “”A biblioteca de cada um de nós está na identidade individual, criada pelo que pensamos que somos e por nosso palimpsesto de recordações – episódios, personagens, frases, palavras.” [2]
Annabela Rita, Alberto Manguel e José Eduardo Franco.
Alberto Manguel é mestre já de gerações académicas, autor de Uma história da leitura, A biblioteca à noite, Dicionário de lugares imaginários, No bosque do espelho – Ensaios sobre as palavras e o mundo, A cidade das palavras – As histórias que contamos para saber quem somos, etc., Oficial da Ordem das Artes e das Letras do Ministério da Cultura da França, e Prémio Grinzane Cavour e Roger Caillois, e, hoje, Conselheiro Científico da e-Letras com Vida — Revista de Estudos Globais: Humanidades, Ciências e Artes [e-LCV]. Fundou, recentemente, “Espaço Atlântida – Para os Leitores do Mundo”, que dirige e onde se propõe partilhar
“uma biblioteca (40 000 títulos) de descobertas fortuitas das expressões dos escritores de diferentes línguas, culturas e contextos, que encoraj[a] o diálogo e question[a] a mente” [3]
Ora, este mestre da palavra, Alberto Manguel, confessou que o que mais admira na biblioteca imaginária: o bibliotecário invisível que percebeu habitar o seu cérebro, e que “sempre tem palavras à disposição, algumas, inclusive, que eu não sabia que dariam voz aos meus desejos mais antigos, às minhas lembranças mais inefáveis.” [4], pois
“A história da literatura, tal como consagrada nos manuais escolares e nas bibliotecas oficiais, parecia-me não passar da história de certas leituras — /…/ dependentes do acaso e das circunstâncias.” (HL, p. 24)
Na sua História da Leitura[5], conta uma experiência infantil fundadora:
“Então, um dia, da janela de um carro (o destino daquela viagem está agora esquecido), vi um cartaz na beira da estrada. A visão não pode ter durado muito; /…/ o suficiente para que eu lesse, grandes, gigantescas, certas formas semelhantes às do meu livro, mas formas que eu nunca vira antes. E, contudo, de repente eu sabia o que eram elas; escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade sólida, sonora, significante. Eu tinha feito tudo aquilo sozinho. Ninguém realizara a mágica para mim. Eu e as formas estávamos sozinhos juntos, revelando-nos em um diálogo silenciosamente respeitoso. Como conseguia transformar meras linhas em realidade viva, eu era todo-poderoso. Eu podia ler.” (HL, p. 9)
E avança na reflexão, afirmando:
“em cada caso é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifra-o. Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.” (HL, p. 10)
Assim, na história da leitura de um texto ao longo da vida de cada um de nós, projecta-se a nossa própria autobiografia ou fragmentos de um diário descontínuo ou, ainda, um palimpsesto de auto-representações (a dos autores lidos e as do leitor que as lê).
A obra de Alberto Manguel é uma notável demonstração disso: toda a reflexão é embebida por projecções suas, revisitações mnésicas.
Neste caso, fragmentos dos autorretratos temporalmente datados dos leitores que convergiram nesta História Global da Literatura Portuguesa.
“Lemos e escrevemos para entender a experiência antes de tê-la e para ativar a nossa própria experiência, para dizer que essa é a forma como sentimos e entendemos, para que as gerações futuras possam sabê-lo.”
Por isso, talvez, os leitores são sempre subversivos (HL, p. 25), como afirma nessa sua/nossa Bíblia da Leitura.
Um dia, perguntou a Jorge Luís Borges: “Por que está sozinho?”. E Borges respondeu: “Eu nunca estou sozinho, tenho minha biblioteca.”
Pois é, Professor Alberto Manguel, também nós (cada um a seu modo) sentimos a mágica da metamorfose estimulada pela imagem do verbo, sentimos que não estamos sós pela mesma companhia, fomos subversivos neste projecto e representámo-nos nesta História Global da Literatura Portuguesa. E, nessa cumplicidade, entregámo-la à sua leitura. Bem haja! A palavra é sua e a expectativa é nossa.
APRESENTAÇÃO – ALBERTO MANGUEL
Introdução à História Global da Literatura Portuguesa
Possuo todas as qualificações para não fazer esta apresentação, que tão confiante e generosamente me convidaram a fazer. Possuo apenas um limitado conhecimento da língua portuguesa. Só um superficial conhecimento da vasta literatura escrita em português. Apenas um vislumbre da complexa história de Portugal e da sua aventurosa exploração do mundo. Vivo em Lisboa desde Setembro de 2020, o que é dificilmente tempo suficiente para perceber a sua secreta cultura. Tendo feito esta óbvia confissão, devo depender do que vim a conhecer como a sempre presente cortesia portuguesa, e responder ao vosso convite da melhor maneira que consigo.
Confesso que o vosso projeto me atraiu imediatamente pela palavra ‘global’ no título. As histórias de literatura nacionais tendem a soar, se não estridentemente gabadas, pelo menos crédulas na sua convicção de que (como comentava Plutarco ironicamente) “a lua de Atenas é melhor do que a lua de Esparta”. Porque se há algo que define a literatura, é a falta de fronteiras, políticas e geográficas. Gil Vicente é considerado pelos espanhóis um escritor espanhol e Dante é um dos poetas nacionais da Albânia. Quando Saul Bellow, numa tentativa de menosprezar as literaturas do continente africano, perguntou “Quem é o Tolstoi dos Zulus?”, Wole Soyinka respondeu: “O Tolstoi dos Zulus é Tolstoi”. Felizmente, os escritores não têm de mostrar os passaportes cada vez que se sentam à secretária.
A minha atração pela palavra “global” é parcialmente explicada pela minha convicção de que nenhum escritor é singular. Os escritores são como árvores cujas raízes se estendem pela sua inteira biblioteca e cujos ramos carregam novas vozes alimentadas pelas suas palavras. Jovens escritores aqui presentes, que, com bastante razão, desprezam o abuso de metáforas, irão sem dúvida tratar a minha com desdém, mas não deixa de ser verdade que a floresta da literatura é mais bem compreendida como uma selva de vozes individuais em que nenhuma árvore, nenhuma voz, é absolutamente única. Felizmente, penso eu, a língua portuguesa tem pouca paciência para a originalidade só pela originalidade. Não tem a obsessão francesa de tentar a todo o custo ser original, como se comprova pelo vocabulário de um Lacan ou Badiou.
A questão da identidade de uma língua é, acredito, importantíssima. Assumo que a palavra “portuguesa” no vosso título não se refira à casualidade de um certificado de nascimento, mas sim à idiossincrasia essencial dada por uma língua nativa. Como todos sabemos, a língua que usamos, não importa quão imperfeitamente, molda os nossos pensamentos e, por isso, molda não só como dizemos algo mas determina também o que esse algo será. A língua é um prisma pelo qual vemos o mundo de uma determinada maneira, uma visão que é diferente se falarmos árabe ou swahili, tão diferente como a visão concedida ao olho humano ou ao olho de uma vespa. Por exemplo, ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’ não pode ser dito em inglês porque em português o verbo reflexivo desdobra o Tempo e a Vontade sobre si mesmos, tomando um papel ao mesmo tempo passivo e activo. Em inglês, talvez porque a Reforma decretou a brevidade e a precisão as mais importantes virtudes linguísticas, um conceito similar pudesse talvez ser pensado como “Times change, desires change” — perdendo no processo o entrelaçamento dos significados ‘arbítrio’ e ‘desejo’, implícitos em ‘vontades’, empobrecendo assim aquele profundo pensamento existencialista dos humanistas da Renascença. Shakespeare, em Inglaterra, foi levado a conceber algo parecido quando escreveu da sua Cleópatra: “Time has not withered nor custom stale/ her infinite variety”, versos que têm um tipo de riqueza muito diferente. Talvez seja por essa razão que Camões possa ser considerado um poeta português e Shakespeare um inglês. A sua língua, não a sua corda umbilical ou a época do seu nascimento, é o fator que os define.
Datas são úteis, mas incertas convenções. A maioria dos historiadores da linguagem concordam que a consolidação daquilo a que chamamos a língua portuguesa pode ser datada a 1536, quando Fernão de Oliveira publicou a sua Gramática da Linguagem Portuguesa. O português, em comparação com o chinês ou o hindu é uma língua jovem, mas (graças à História Global da Literatura Portuguesa, por exemplo) podemos ver que as qualidades definidoras da língua portuguesa começam a aparecer e a enraizar-se muito mais cedo. Seria um exercício interessante tentar determinar algumas destas características primordiais da língua portuguesa presentes em épocas recentes, para descobrir as suas primeiras aparições na literatura. Pessoa, por exemplo, notou o desconforto da língua portuguesa com a ironia. Antero de Quental lamentou a sua relutância em quebrar com convenções passadas. Ana Hatherly mencionou a sua timidez para com o barroco. Eduardo Lourenço comentou o seu persistente e melancólico olhar interior. Eu não tenho nem o conhecimento nem o talento para empreender tamanha investigação, mas pode ser que seja útil, de forma a dar aos escritores portugueses um reflexo mais verdadeiro das suas identidades.
A biblioteca que doei à Cidade de Lisboa e que agora constitui o centro do futuro Espaço Atlântida, inclui uma razoável quantidade de livros em Português. Comecei a ler literatura de língua portuguesa (em tradução, claro) muito antes de ter noção de uma literatura portuguesa. A criança que fui está para sempre grata a Monteiro Lobato e Sophia de Mello Breyner Andersen pelas suas mágicas histórias de aventuras. O leitor adolescente a Eurico Verissimo pelo seu Olhai os lírios do campo e a Eça de Queiroz por O Mandarim. Mais tarde vieram João Guimarães Rosa, Machado de Assis, José Eduardo Agualusa, Mia Couto, Lobo Antunes, Agustina Bessa Luís, José Saramago, Moacyr Scliar e muitos outros memoráveis. Não descobri Pessoa (mea culpa, mea maxima culpa) até ao fim dos anos oitenta quando o romancista Canadiano Graeme Gibson me recomendou o Livro do Desassossego. E depois vim para Portugal. Iniciação na literatura portuguesa, de António José Saraiva e recomendado pela minha amiga Joana Meirim, foi um guia esclarecedor.
O que me impressionou quando comecei a descobrir outros escritores aqui em Portugal foi a relutância que os Portugueses têm em se exibir. Com o Português do Brasil é ligeiramente menos restringido, mas, no geral, como leitor senti-me (e ainda me sinto) que conseguir que uma pessoa portuguesa elogie ou insulte um escritor português é quase tão mau como pedir-lhe que seja insultuoso para com um familiar ou convidado. Gide, quando lhe foi perguntado qual o melhor escritor francês, respondeu: “Hugo, hélas”. Nenhum português se atreveria a responder: “Pessoa, infelizmente”.
A História Global da Literatura Portuguesa é também uma espécie de Gradus ad Parnassum para a Biblioteca Universal, iniciando um caminho que apenas alguns, poucos, escolhidos poderão tomar. Pedindo já perdão por recorrer agora à alegoria, sugiro que concebamos a Biblioteca Universal como um lugar visitado por dois, muito diferentes, leitores: a Justiça que, como nos ensinaram os clássicos, é cega, e a Sorte que, como declararam outros clássicos, é caprichosa e imprevisível. Na secção Portuguesa da Biblioteca Universal, a Justiça não vê o suficiente para selecionar sempre os autores certos, os que mais merecem reconhecimento e fama. A Sorte, no entanto, anda sem rumo entre as pilhas de livros, apanhando este ou aquele livro, guiada por uma capa peculiar, um título surpreendente, uma disposição particular. Na História global da literatura portuguesa encontramos, claro, a maior parte dos nomes esperados, assim como muitos outros que eu, na minha ignorância, não sabia existirem, mas há também alguns autores que se destacam saudosamente pela sua ausência. Nenhuma visão do mundo, nem uma verdadeiramente ‘global’ como esta de mais de 700 páginas, pode aspirar à omnisciência divina, e qualquer história da literatura, tal como qualquer biblioteca, está sempre acompanhada pela sombra daquilo que não inclui. A totalidade catequista, no mundo da literatura, é uma invenção imaginária e não permite aos leitores olhar entre as linhas e adicionar as suas próprias escolhas.
Quero terminar esta introdução com uma palavra de agradecimento. A vossa História Global da Literatura Portuguesa é um trabalho colossal e magistral. Especialistas cuja profissão é implicar, sem dúvida encontrarão pequenos detalhes com os quais reclamar, mas, enquanto leitor comum, posso apenas expressar gratidão por ter nas mãos um guia tão essencial para o vasto, variado, introvertido e fundamental cosmos da literatura Portuguesa.
Alberto Manguel, 11 novembro 2024
(tradução de Flor Filgueiras)
NOTA FINAL – ANNABELA RITA
Professor Alberto Manguel, muito obrigada por esta magistral leitura de bibliotecário (in)visível da biblioteca imaginária colectiva que perscrutámos na HGLP!
Afirmou no início da sua HL:
“Dizem que nós, leitores de hoje, estamos ameaçados de extinção, mas ainda temos de aprender o que é a leitura. Nosso futuro — o futuro da história de nossa leitura — foi explorado por santo Agostinho, que tentou distinguir entre o texto visto na mente e o texto falado em voz alta; por Dante, que questionou os limites do poder de interpretação do leitor; pela senhora Murasaki, que defendeu a especificidade de certas leituras; por Plínio, que analisou o desempenho da leitura e a relação entre o escritor que lê e o leitor que escreve; pelos escribas sumérios, que impregnaram o ato de ler com poder político; pelos primeiros fabricantes de livros, que achavam os métodos de leitura de rolos (como os métodos que usamos agora para ler em nossos computadores) limitadores e complicados demais, oferecendo-nos a possibilidade de folhear as páginas e escrevinhar nas margens. O passado dessa história está adiante de nós, na última página daquele futuro admonitório descrito por Ray Bradbury em Fahrenheit 451, no qual os livros não estão no papel, mas na mente.” (HL, p. 27)
Afinal, “/…/ ler é cumulativo e avança em progressão geométrica: cada leitura nova se baseia no que o leitor leu antes.” (HL, p. 23)
Mais: essa progressão geométrica da escrita e da leitura combina-se intimamente com uma dinâmica estocástica, marcada pelo princípio da incerteza e da indeterminação, pelo movimento browniano, exponencialmente enriquecedor e redimensionador.
Da esquerda para a direita.: Annabela Rita (uma das direcoras da HGLP), Alberto Manguel (apresentador), Carlos Carreto (um coordenador da HGLP), Guilhermina Gomes (editora da Temas e Debates) e José Eduardo Franco (um doos directores da HGLP)
Lewis Thomas, na sua estimulante reflexão “Sobre o Pensamento” (A Medusa e o Caracol, 1979),descreve o seu processamento recorrendo à analogia da microbiologia, assinalando o modo como as ideias se vão conformando a partir de imprevisíveis movimentos de atracção que resolvem a dispersão inicial.
Seria essa, também, uma excelente descrição do modo como esta HGLP se for construindo: perscrutando uma outra paisagem, implicada na que as anteriores Histórias da Literatura representa(ra)m, mas constituída por redes relacionais a partir de núcleos pregnantes, nós de ancoragem de movimentos exploratórios e relacionais de múltipla direccionalidade que se estendem para além dos horizontes. Sob a paisagem habitual que temos da Literatura Portuguesa, outra mais subtil, intrincada e “tabular” (J. Kristeva) foi surgindo, como num palimpsesto que vamos descobrindo com o deslumbramento dos investigadores que recorrem à IA para decifrarem papiros carbonizados (v. desafio conhecido como “Vesuvius Challenge”) ou para a arqueologia. A diferença é que a paisagem oferecida pela HGLP não pretende ser um mapeamento definido, nem definitivo, nem exclusivo, nem exaustivo: deseja-se signo-sinal estimulado pelo actual contexto do pensamento complexo (Edgar Morin) e da globalização anunciando a continuidade da aventura… a Odisseia continua…
Agora, a História Global da Literatura Portuguesa, uma (re)leitura de (re)leituras feita, tem nesta sua apresentação, Professor Alberto Manguel, um belíssimo posfácio! E este é, no fundo, o meu encantado comentário de moderadora. Bem haja!
[1] Cit de: conferências 2014 do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre [https://www.fronteiras.com/noticias/a-biblioteca-imaginaria-segundo-alberto-manguel].
[3] Cit. de: https://www.espacoatlantida.pt/sobre-nos/.
[4] Cit. de: conferências 2014 do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre https://www.fronteiras.com/noticias/a-biblioteca-imaginaria-segundo-alberto-manguel
[5] Alberto Manguel. UmaHistória da Leitura [HL], S. Paulo e R.J., Companhia das Letras, 2004 (ebook). Para maior comodidade do leitor, todas as citações desta obra serão feitas a partir desta edição.
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“Leone ruggente” Estação central de Milão (foto do autor)
Un quarto d’ora alla partenza
Alzo le mani verso un cielo di piombo – nulla si muove.
Zaino pesante dolore sulla spalla – mi mancan le ruote.
Durante il giorno non conosco la noia – neppure steso.
Dove vado io non mi segua nessuno per non penare.
Guardo la notte, pure il buio mi osserva – felice incontro.
Il treno sfreccia sui binari diritti – vita storta.
“Pilastro ieratico” Estação central de Milão (foto do autor)
Antonio Delfino é Professor da Universidade de Pavia (em Cremona)
(Tradução de José Melo Alexandrino)
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