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  • Sartre e o cinema: notas para uma investigação

    Sartre e o cinema: notas para uma investigação


    Jean-Paul Sartre relacionou-se, de várias formas, com o cinema. Não o fez sistematicamente, nem com constância. Dado que foi a vários níveis que esse contacto se deu, de modo muitas vezes não explícito, parece-nos que é possível abordar as relações de Sartre com o cinema segundo duas perspectivas principais, ou seja, que melhor se harmonizam com o objecto a analisar.

    Uma, panorâmica, que tenderia a fornecer uma perspectiva geral dos diversos tipos de aproximação que o filósofo francês praticou relativamente ao cinema; e outra que, procedendo por eleição de uma dominante, privilegiasse um desses tipos, tornando-o central.

    Jean-Paul Sartre (1905-1980)

    Uma abordagem como esta segunda, tomaria, obviamente, as outras formas de contacto como secundárias ou até, mais organicamente, subsidiárias da dominante. Até certo ponto, é a este segundo modelo de abordagem que damos preferência, procurando compreender o modo como a importância atribuída pelo escritor ao cinema, notória, mesmo quando não explícita, em momentos e tipos de textos privilegiados de crítica literária, condicionou e influenciou a sua reflexão poética.

    Numa perspectiva mais complexa, mas, também, mais rigorosa e completa, parece-nos importante dar atenção a esse processo de condicionamento e de influência encarando-o como uma prática em que o escritor tem uma função activa, na recepção do novo meio.

    Sublinhamos, assim, o modo pelo qual o escritor Sartre se assenhoreou dos mecanismos discursivos do cinema, assumindo-os como procedimentos relevantes de uma poética da narrativa, capaz de entrar em diálogo com as que se forjaram a partir da literatura ou do teatro, e de sugerir a renovação dos procedimentos da narrativa verbal, nomeadamente a romanesca.

    A opção por tal perspectiva deve-se ao facto de que nos parece ser importante ter em conta, na obra do escritor, a sua relação privilegiada com a palavra e o texto ficcional verbal. Assumimos, quando nos colocamos nessa perspectiva, que o elemento linguístico foi dominante, ou mesmo exclusivo, como elemento material, na actividade criativa de Sartre, e consideramos, em acréscimo, que sobre o poder representativo da palavra se debruçou atentamente o Sartre crítico e teorizante.

    photography of camera reel film

    Ora, é tendo em atenção essa predominância que tomamos, como aspecto fundamental, sobretudo, o modo como o cinema inspirou ou ajudou a construir algumas das mais importantes conceptualizações do autor relativas à criação literária e, sobretudo, romanesca.

    Acreditamos ser possível seguir um percurso paralelo ao nosso e verificar como, nas próprias criações literárias de Sartre, a narrativa se encontra marcada pelas leituras que o romancista terá feito, consciente e mesmo inconscientemente, do cinema e dos esquemas narrativos que ele patenteia como novidade para a arte do relato ficcional.

    Contudo, acreditamos, até certo ponto, que essa prática não teria sido tão inspiradora e marcante para as vanguardas literárias como a sua actuação como crítico. Utilizando um exemplo, com muita brevidade e esquematismo, dado que voltaremos a ele adiante, como questão central da nossa argumentação, podemos dizer que é a leitura, enquanto crítico, que Sartre faz do romance americano, de Dos Passos, de Faulkner, de Hemingway ou de Sherwood Anderson, bem como o seu modo de ler “negativamente” La fin de la nuit, de Mauriac, ou entusiasticamente L’étranger, de Camus, que marca profundamente a inflexão tomada, daí em diante, pela narrativa literária francesa e, em eco, eventualmente, a narrativa de alguns escritores de países europeus e mesmo americanos – não tanto os dos Estados Unidos, é claro, como os da América Latina.          

    Por outro lado, parece-nos oportuno lembrar, desde já, um texto de Sartre que nos remete para uma espécie de equação, para algo similar ao desenvolvimento de uma fórmula racional a partir de um certo número factores dados, que nos sugere, por comparação, quase figurativamente, aquilo queremos apresentar como sendo o seu modelo privilegiado de reflexão poético-crítica.

    É a um texto de Les mots que recorremos, por isso, antes de mais, dado aí ser central, para o narrador autodiegético, a relação do homem de palavras com os outros discursos, sobretudo os não verbais, ou com aqueles que só parcialmente o são.

    Tudo isto, é claro, num processo de autobiografia reflexiva, incidindo, principalmente, sobre o “nascimento do escritor”. Não só emerge, no culto do cinema, uma visão da sociedade, das hierarquias e das classes, apreendida quase como um imperativo categórico de raiz emocional e afectiva, que permite ao autor afinar as categorias discretas do mundo, como se evidencia o culto da palavra, na sua demarcação e promiscuidade relativamente à imagem fílmica[1]. Somos quase levados a identificar, nos termos dessa paradoxal adesão, o oximoro de raiz afectiva.

    “Ao meu defunto pai, ao meu avô, familiares dos balcões de segunda, a hierarquia social do teatro dera o gosto pelo cerimonial: quando muitos homens estão juntos, cumpre separá-los por meio de ritos, ou então há chacina. O cinema provava o contrário, […] o seu público tão mesclado parecia reunido por uma catástrofe. […] Vi Zigomar e Fantomas, As proezas de Maciste, Os Mistérios de Nova Iorque: as douraduras estragavam-me o prazer. O Vaudeville, teatro fora de função, não queria abdicar da sua antiga grandeza: até ao derradeiro minuto, uma cortina vermelha de borlas de ouro mascarava a tela; davam três batidas para anunciar o começo da representação, a orquestra tocava uma ouverture,o pano levantava-se, as luzes extinguiam-se. […] Eu, por meu lado, queria ver o filme o mais perto possível. No desconforto igualitário das salas de bairro, aprendera que a nova arte me pertencia, como a todos. Éramos, eu e ela, da mesma idade mental: eu tinha sete anos e sabia ler, ela doze e não sabia falar. […] Inacessível ao sagrado, eu adorava a magia: o cinema era uma aparência suspeita que eu amava perversamente pelo que ainda lhe faltava. Aquele fluxo rumorejante era tudo, era nada, era tudo reduzido a nada […]; mais tarde, as translações e as rotações dos triângulos lembravam-me o deslizar das figuras sobre a tela, amei o cinema até na geometria plana. Do preto e do branco, eu fazia cores eminentes que resumiam em si todas as outras e só se revelavam ao iniciado; encantava-me o invisível. Acima de tudo, gostava do incurável mutismo dos meus heróis. Ou antes: não eram mudos, já que sabiam fazer-se compreender. Comunicávamos pela música, era o rumor da sua vida interior. A inocência perseguida não se limitava a exprimir ou a mostrar a sua dor, impregnava-me dessa dor com a melodia que saía dela; eu lia as conversas mas ouvia a esperança e a amargura, surpreendia pelo ouvido a dor altiva que não se declara. […] não era eu aquela jovem viúva que chorava na tela, e, no entanto, ela e eu tínhamos uma só alma: a marcha fúnebre de Chopin[…]. Como eram felizes aqueles caw-boys, aqueles mosqueteiros, aqueles polícias: o futuro deles estava ali, naquela música premonitória, e governava o presente, um canto ininterrupto confundia-se com as suas vidas arrastava-os para vitória ou para a morte […] o entrecruzamento de todas essas imagens, de todas essas velocidades e, em baixo, a corrida infernal da «Corrida para o Abismo», trecho extraído da Danação de Fausto e adaptado para o piano, tudo isso era uma só coisa: o Destino.[…] Decidi perder a palavra e viver em música” (s/d [1964]: 90-93).

    Uma tão longa citação justifica-se. De facto, parecem-nos estar patentes, nos enunciados que recolhemos de um excerto bastante coeso, do livro de Sartre que mais se assemelha a uma autobiografia, dois aspectos centrais de uma reflexão poética, que, conjecturamos, o filósofo francês terá aprendido como espectador de cinema: o facto de uma forma de linguagem ficcional ou mimética estar em estreita relação com os códigos e valores culturais que lhe enformam a enunciação; e a evidência de a narrativa  cinematográfica ser contrapontística e temporal, ou seja, assentar no valor opositivo e dinâmico da montagem e da sequencialidade das imagens visuais, de tal modo que se lhe afigura  como semelhante à sintaxe musical – confundindo-se mesmo com esta.

    A imagem mental percebida no cinema é, assim, uma espécie de despojo diurno, retalho de ícones, acções e falas, de que se alimenta o próprio devaneio fantasista do narrador autobiográfico, como ele reconhece algumas páginas adiante, no mesmo texto, quando se recorda de si próprio, na infância, encarnando heróis extraordinários, em mímica solitária, na penumbra do quarto onde a mãe tocava piano (p. 94).

    Tudo se passa, aparentemente, como se a enunciação cinematográfica se originasse num dizer proveniente de um “fluxo rumorejante” que “não se limitava a exprimir ou a mostrar a dor” da personagem, mas, sobretudo “impregnava” o narrador da “dor com a melodia que saía dela”. Além do mais, parece-nos curioso reter o facto de o fluir das imagens se associar à música, sendo representado por estas, no imaginário de Sartre, um sistema de referências de valor mítico. O facto é tanto mais curioso quanto, no seu texto, L’imaginnaire, a imagem cinematográfica não ser referida pelo filósofo francês, sendo, curiosamente, a da música valorizada como representação preferencial do devaneio, logo a seguir ao teatro e à pintura.  (cf. Sartre, 1966: 150 e 362-371).

    Essa substituição – metafórica, do nosso ponto de vista – preconiza, num funcionamento que resumimos sob a designação conceptual de premonição esquemática, o modo como se torna inconsciente, ou mesmo recalcada, a aprendizagem do modelo de enunciação que acima referimos. O entendimento do cinema que Sartre desenvolve, desde a infância, enquanto forma expressiva que marca profundamente o seu discernimento estético, assenta no modelo que a memória narrativa de Les mots desenterra da do passado.

    Esse esquema associativo funciona, nele, como um imperativo categórico: dita-lhe um modo de conceber e entender o tempo e o ritmo da narrativa, ou até mesmo a instância enunciativa da narrativa romanesca, mas mantém-se “i-nomeado”, como que em ângulo cego, ou inconsciente. É como se o emergir teórico do seu discernimento, educado pelo cinema, mantivesse, em amnésia, a matéria em que o seu critério poético se funda funcionando como premonição esquemática. Julgamos útil darmos um exemplo do modo como se evidencia essa sua aprendizagem, mesmo quando não diz a sua origem, de acordo nossa congeminação de o Sartre crítico e teórico da literatura ser, como leitor, um atento observador das formas e dos procedimentos do cinema, incorporando a poética do filme numa recepção activa, mesmo quando não explícita.

    Assim, tendo em vista reforçarmos o nosso argumento, parece-nos avisado citar alguns passos da apreciação crítica que o escritor francês faz de alguns romancistas, sobretudo americanos. Sobre John Dos Passos, por exemplo, afirma [1938]:

    “Fez tudo para que o seu romance parecesse apenas um reflexo [porque] a sua arte pretende ser demonstrativa […]: mostrar este mundo, o nosso. Mostrá-lo simplesmente, sem explicações nem comentários” (Sartre, 1968: 14). A tónica é colocada num determinado processo de enunciação que Sartre parece ter sido dos primeiros, entre os críticos franceses, a realçar como procedimento narrativo específico, moderno e valorizável pelas características que o distinguem. Antes de o nomearmos, para melhor o distinguirmos, convém observar como ele é recorrente, ainda que matizado, nos textos de crítica literária do escritor francês. Assim, por exemplo, sobre o modo de Dos Passos apresentar os acontecimentos, diz-nos o crítico: “O acontecimento do romance é uma presença inominada: não se pode dizer nada dele porque se está a fazer […]: em nenhum momento se encontra a ordem das causas sob a ordem das datas: é um desfiar balbuciante duma memória bruta, esburacada[…]. Mais um passo e tornaríamos a encontrar o famoso monólogo do idiota de O som e a fúria. Mas […] os factos passados conservam um sabor de presente […]. Cada acontecimento é uma coisa rutilante e solitária, que não emana de nenhuma outra; surge de repente e junta-se a outras coisas: um irredutível” (1968: 16-17). De tal modo o predomínio do mostrar é decisivo como técnica detectada pelo crítico que, mesmo quando julga vislumbrar a opinião, ele a vê como que emergindo sob o regime do cénico no sentido luboquiano do termo, forma do espectáculo mostrado mas não dramatizado (cf. Lubbock, 1926: 67-69). Assim, lemos em Sartre: “Dos Passos finge que nos apresenta gestos como acontecimentos puros, como simples exterioridades, os livres movimentos dum animal. Mas é apenas uma aparência: de facto adopta a opinião pública para nos expor o ponto de vista do coro” (1968: 20).

    black and white lamp with tripod

    A expressão final do enunciado acima citado fornece-nos a designação do conceito que aqui está em causa, como categoria fundamental do processo narrativo: o ponto de vista.

    A questão de fundo que, quase sempre, se coloca, relativamente ao ponto de vista ou focalização, é a da localização e amplitude gnómica da perspectiva adoptada. Podemos ainda acrescentar, depois do conhecimento que a narratologia desenvolveu sobre a matéria, desde os anos 30 do século passado até hoje, que é quando a perspectiva ou focalização se torna restrita, quando ela corresponde ao exercício tecnicamente vigiado de uma tomada vistas, que a questão se torna conceptual e teoricamente interessante para o romance. É então que o romancista procede tal como a fotografia ou o cinema fazem, inevitavelmente, para existirem simplesmente.

    Ou melhor, para nos situarmos no cerne da questão tal como ela é vivida por Flaubert, Henry James e, em geral, o romance modernista de pendor mais ou menos naturalista: o que está em causa é o assumir, pela narrativa, da perspectiva monocular, já com um passado clássico na pintura, e reformulada, como problemática actual para os artistas do século XIX, sobretudo de Courbet a Cézanne.

    Com essa problemática são incorporados, como tópicos importantes para a narração, todas os motivos e conceitos que esse aparato de visão do mundo arrasta, sobretudo depois da afirmação da sua modalidade de dispositivo mecânico tal como emerge sob a forma de câmaras fotográficas e, mais tarde, de cinema.

    Sem enunciar nunca esse mecanismo, comentando sempre as narrativas que critica como se nunca lhe ocorresse o funcionamento dessas máquinas óptica feitas exclusivamente para captarem espaços, gestos e cenas como pontos de vista singularizados e neutros, Sartre parece falar delas em perífrases.

    Numa crítica ao romance Sartoris,de Faulkner, contemporânea da que citámos acima, sobre Dos Passos, datada também de 1938, diz-nos Sartre: “[…] Deixei de poder aceitar o homem de Faulkner, é um trompe-l’œil. É uma questão de iluminação. […] Quando esperamos tempestades são-nos mostrados gestos, demoradamente, minuciosamente. […] Aqui, os gestos (calçar as botas, subir uma escada, montar a cavalo) não pretendem mostrar, mas esconder. Observamos tudo o que possa revelar a perturbação […] mas os Sartoris nunca se embriagam, nunca são atraiçoados pelos gestos” (1968: 7-8).

     Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre

    A omissão que Sartre pratica, relativamente às máquinas de captar imagens, parece-nos formular-se como gritante ausência num discurso tão cheio de dissimulação como o que ele encontra em Faulkner: tudo se passa como se as longas descrições que faz, do modo como os romancistas americanos praticam as captações gestuais e cénicas, servissem mais para ocultar o mecanismo implícito como modelo do processo de construir a focalização, do que para o revelar. 

    O texto que escreve em 1968, sobre L’engrenage, que publicou como guião, em 1948, revela que ele próprio reconhecia que a técnica do ponto de vista apontava para uma ligação entre o cinema e o romance: “O argumento de L’engrenage foi escrito em 1946. O que me divertia, inicialmente, era transpor para o ecrã uma técnica que os romancistas anglo-saxónicos utilizavam frequentemente antes da guerra: a pluralidade dos pontos de vista. A ideia estava no ar… No filme que eu imaginava não só a cronologia se encontrava alterada como a própria personagem, Hélène, aparecia sob aspectos exteriores diferentes, de acordo com o ponto de vista que a apresentava” (1996: contracapa).

    Não está Sartre a falar do procedimento básico do cinema, quando fala da pluralidade de pontos de vista? Não seria extraordinário que o fizesse, dado que, além do guião já citado, que nunca foi posto em filme, Sartre escreveu alguns que foram realizados cinematograficamente, nomeadamente, Les jeux sont faits, de Delannoy e Freud, de John Huston.

    O que nos parece curioso e sintomático é que Sartre, sendo obviamente um intelectual conhecedor do cinema e dos seus mecanismos, fale da transposição para o ecrã da pluralidade dos pontos de vista, depois de Citizen Kane (1941), como se fosse sugestão sua. Inverte o percurso, mesmo em 1968, daquilo que toda a crítica, já então, seguindo as próprias sugestões críticas do Sartre de 1938, considerava, pelo menos desde Claude-Edmonde Magny em L´age du roman americain, uma influência decisiva do cinema sobre o romance.

    É claro que poderá ser evocado, aqui, o precedente da crítica anglo-saxónica, quando preconiza, desde Henry James, que “a arte do romance começa apenas quando o romancista pensa na sua história como uma matéria a mostrar, de tal forma que ela se contará a si mesma” (Lubbock, 1926, 62; cf Bourneuf e Ouellet, 1976: 109-110) ou quando preconiza que “o autor” pode falar “através de uma das pessoas do livro” (Lubbock, 1926, 68).

    Essa será, aliás, a tónica de Sartre quando avalia a arte de Mauriac, negativamente [1939]. Vale a pena citar um passo para que se veja o fundamento da apreciação: “A  consciência da protagonista [que Mauriac apreesenta – Thérèse] representa o binóculo graças ao qual o leitor pode lançar uma olhadela ao mundo romanesco e a palavra «ela» dá a ilusão dum recuo do binóculo; lembra que esta consciência reveladora é também personagem de romance, representa um ponto de vista privilegiado e realiza para o leitor este voto caro aos amantes: ser ao mesmo tempo ele próprio e outro distinto de si […] Mauriac aproveita-se desta indeterminação para nos fazer passar insensivelmente dum ao outro aspecto de Thérèse […]: «Ela não podia não ter consciência da sua mentira: contudo apoiava-se nela». Esta frase mostra bem a traição constante que Mauriac exige de mim” (Sartre, 1968: 37-38).

    wooden ladder by bookshelves

    Este excerto é de extrema importância para os factos que aqui queremos observar, por ser representativo de duas tendências que se conjugam, em Sartre, de modo extremamente problemático: a tendência tradicional da crítica francesa, e a nova tendência, que se constitui como prelúdio àquilo que Barthes virá a chamar nouvelle critique. A primeira tendência subdivide-se em duas frentes: a académica e a impressionista.

    A primeira dessas frentes preocupava-se, sobretudo, com a génese das obras, ou com a dimensão filosófica que a obra teria na época que a vira nascer, e a segunda atendia, sobretudo, aos aspectos morais ou psicológicos. Quanto à nova tendência, tal como o fará, alguns anos mais tarde, o estruturalismo emergente da nouvelle critique, interessava-se pelos problemas postos pela questão ponto de vista na narrativa.

    Deve notar-se que esta última tendência, nos anos 30 do século XX, ainda era pouco mais do que novidade na crítica anglo-saxónica, e ainda estava incipientemente teorizada pelos formalistas russos. Ora, Sartre julga as dimensões genéticas, filosóficas, éticas e psicológicas do romance de Mauriac, praticando os objectivos da tradição, mas, para o fazer, aplica observações que se fundamentam, sobretudo, na sensibilidade que crítico tem à manipulação do ponto de vista.

    Não nos deve ser indiferente registar, também, acompanhando ainda essa mesma ordem de ideias, que, alguns anos depois da publicação dos artigos de Sartre sobre os romancistas americanos e Mauriac, que acabamos de citar com alguma brevidade, se multiplicam “os artigos assinados por Albert Laffay e Doniol-Valcroze” que enfatizam, sobretudo, a questão do ponto de vista.

    O que é digno de registo, em sequência do que vimos argumentando, é o facto de se constatar que esses artigos são “frequentemente influenciados pela filosofia sartriana” e, simultaneamente, “inspirados pela estética comparada do romance e do cinema” (Bourneuf e Ouellet, 1976: 111).  

    Bourneuf e Ouellet registam ainda como importante concomitância aos fenómenos acima referidos, para enfatizar a importância crescente do interesse pelo estudo do ponto de vista na narrativa, a publicação de L’age du roman américain de Claude-Edmonde Magny, em 1948. De facto, a primeira metade dessa obra intitula-se «Romance americano e cinema» e, nela, podemos encontrar muitos argumentos que parecem decorrer directamente das observações que Sartre havia feito uma década antes sobre o romance americano.               

    Para terminarmos estas notas, que ficarão apenas como um roteiro para uma futura investigação, gostaríamos de relembrar, algumas palavras de Sartre sobre Dos Passos que acima citámos, para as confrontarmos com outras e, em seguida, comentarmos os dados observáveis nesse confronto: “[nunca] se encontra a ordem das causas sob a ordem das datas: é um desfiar balbuciante duma memória bruta, esburacada […]. Mas […] os factos passados conservam um sabor de presente […]. Cada acontecimento é uma coisa rutilante e solitária, que não emana de nenhuma outra; surge de repente e junta-se a outras coisas: um irredutível”.

    Acrescentaríamos a esta palavras, aqui reformuladas em síntese, os seguintes comentários de Sartre sobre Camus: “O que [Camus] aproveita de Hemingway é, portanto, a descontinuidade das suas frases cortadas que se ajusta à descontinuidade do tempo.

    Agora compreendemos melhor o estilo da sua narração: cada frase é um presente” (1968: 103). As palavras de Jean Bloch-Michel que, entre outros romances modernos, comentam L’étranger, de Camus, procurando apresentar os   denominadores comuns ao romance moderno, poderiam servir de comentário historicamente reflectido às sugestões de Sartre: “O cinema criou uma nova espécie de narrativa que tem, nomeadamente, como particular, o facto de a sua sintaxe  comportar apenas, pela força das coisas, um modo e um tempo: o indicativo presente […] Todas estas características da narrativa visual se encontram na literatura de hoje. Antes de mais esse obsessivo presente do indicativo que é o único tempo utilizado, aliás, e a cuja monotonia fatigante se acrescenta a da apresentação objectiva dos factos” (1963: 97-98).

    turned on projector

    Uma tal proposta crítica, apresentada já em época de aprendizagem da nova crítica, na qual já se esboça a referência, enquanto horizonte, ao estruturalismo, ecoa, de algum modo, um comentário feito por Sartre a Camus, no texto já por nós citado, publicado, originalmente, vinte anos antes: “o procedimento de Camus é muito rebuscado: entre as personagens de que fala e o leitor, Camus intercala um tabique de vidro. […] O vidro parece deixar passar tudo e só intercepta uma coisa, o sentido dos gestos. Falta escolher o vidro: será a consciência do Estrangeiro. É, com efeito, uma transparência: vemos tudo o que ele vê. Simplesmente, foi construída de maneira a ser transparente para as coisas e opaca para os significados […]. Alguns homens dançam atrás de um vidro. Entre eles e o leitor interpôs-se uma consciência, quase nada, uma pura translucidez, uma passividade pura que regista todos os factos” (1968: 101-102). Este vidro não poderia ser o da objectiva e, então, o modo de Sartre falar nele apresentar-se como outro circunlóquio, no qual o objecto obsessivamente latente fica, mais uma vez, esquecido? 

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Bloch-Michel, Jean, 1963, Le présent de l’indicatif, Gallimard, Paris

    Bourneuf, Roland, e Réal Ouellet, 1976, O universo do romance, Almedina, Coimbra

    Lubbock, Percy, 1926, The Craft of Fiction, The Travellers’ Library, London

    Sartre, Jean-Paul, s/d [1964], As palavras, Unibolso, Lisboa

    Sartre, Jean-Paul, 1966, L’imaginaire, Gallimard, Paris

    Sartre, Jean-Paul, 1968, Situações I, Europa-América, Lisboa

    Sartre, Jean-Paul, 1996, L’engrenage, Folio/Gallimard, Paris   


    [1]  Citamo-lo, como os outros textos do autor que aqui apresentamos, em português, pela maior homogeneidade que o uso de uma só língua permite ao discurso expositivo.

  • Mário de Carvalho

    Mário de Carvalho


    Mário de Carvalho tem uma obra significativa. A sua extensão torna-se evidente pelo número de títulos publicados ao longo de quase trinta anos com bastante regularidade. Mas, o mais importante, é a qualidade e coerência que encontramos na sua produção literária.

    Como nota singular, destaca-se a tendência quase exclusiva, nos volumes publicados, à data da elaboração deste texto, para o conto, a pequena historieta, ou, quando muito, a narrativa de extensão média a que poderíamos chamar novela.

    Mário de Carvalho, em 2021.

    Mesmo no interior de quadros narrativos mais amplos, que o autor publica com o registo editorial de romances, formando o índice paratextual de uma proposta de leitura, ou o horizonte dentro do qual a obra é proposta pelo autor ao leitor, a linha estruturante do conjunto é, quase sempre, invadida pela profusão de casos e de pequenas ocorrências anedóticas, que ajudam a construir o ambiente social e, por vezes, a constituir o contorno ou perfil do carácter da personagem.

    De algum modo a poética narrativa de Mário de Carvalho assume, com nitidez, ou mesmo com o traço grosso do gesto caricaturante, a evocação de uma tradição narrativa, cuja origem se perde se nas brumas do tempo, desde o emergir dos traços da nossa cultura, nos espaços que hoje designamos por Ocidente, entre o Velho Mundo das maravilhas orientais, e o Novo Mundo construído a partir de ousadias e mesmo transformações cometidas mar afora.

    Primeira obra de Mário de Carvalho, em 1981.

    Os modelos da fantasia de tradição mediterrânica, desde os mais antigos como o d’As Mil e Uma Noites, ou o chamado romance alexandrino, até às narrativas de aventuras e às intrigas dialogadas ou epistolares, que proliferaram no século XVIII europeu, são as fontes que, mais do que os cânones do romance, ou mesmo do conto clássico (Balzac, Tcheckov, Maupassant), passando por Cervantes, Lope de Vega ou Molière, estão presentes, na sua obra. Vislumbra-se, como matéria-prima básica, no horizonte cultural que a enforma, a ênfase no acontecimento, a espectacularidade dos eventos, a valorização da peripécia.

    Tudo isto se verifica, igualmente, mesmo no teatro que deu à estampa (ou no argumento cinematográfico – prática em que o autor também se experimentou), onde a tendência para uma dimensão minimalista do enredo central e hegemónico é traço evidente. O que nos leva conjecturar, numa apreciação que consideramos pessoal, que a sua incursão em outras matérias de expressão, como o teatro ou o argumento cinematográfico, dá-lhe uma versatilidade, não só na fabulação como, também, na proliferação e articulação dos elementos do enredo, que muito valoriza a sua criação narrativa.

    Se pretendermos apresentar, como ponto de partida a desenvolver, a divisa capaz de ostentar, sem exagero nem eufemismo, as características mais importantes da sua obra, com o fim de despertarmos o interesse dos virtuais leitores desprevenidos, com uma correcta informação, podemos dizer que as narrativas de Mário de Carvalho misturam, com um equilíbrio extraordinário, a exigência realista do romance de crítica social e ideológica, a sátira social, a fantasia irreverente da história popular, mesmo aquela que se conta boca a boca, a provocação paradoxal da imagem surrealista e a sugestividade do imaginário do realismo fantástico, com as suas inquietantes alegorias e parábolas.

    Somos levados, ainda, a acrescentar que os traços acima referidos emergem de modo variado, e em proporções desiguais, em cada livro que publicou, para um melhor esclarecimento das características que, em geral, tornam a sua obra inconfundível.

    De facto, nem sempre a manifestação de cada uma daquelas características aparece com a mesma evidência. Por exemplo, nas colectâneas de contos que publicou no início da sua carreira literária, o fantástico era o traço dominante, ao passo que, nos textos mais recentes, a exuberância do fantástico e da imagem surrealizante minimiza-se, para dar lugar a uma escrita de registo mais predominantemente realista.

    Publicado em 1994, Um deus passeando pela brisa da tarde é o seu mais conhecido romance do género histórico.

    Uma das opções que caracteriza o universo ficcional de Mário de Carvalho, é a de enveredar por modelos narrativos a que, desde o romantismo, com maior ou menor consenso entre criadores, críticos e estudiosos da matéria se tem chamado romance histórico.

    Trazendo à luz toda problemática que envolve tal subgénero narrativo, a propósito de um dos mais longos textos, correspondentes à fase de produção mais recente de Mário de Carvalho, afirma Maria de Fátima Marinho (in O Romance Português pós-25 de Abril, P. Petrov (coord.), 2005):

       “Parodiando o romance histórico tradicional de que acaba por ter algumas características, Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde ultrapassa a simples reconstituição do passado onde se inseria uma história de amor mais ou menos romântica para desvendar os modelos arquetípicos de uma sociedade sem tempo específico e sem lugar determinado” (p. 207).

    Deverá dizer-se, em acréscimo à apreciação que acabámos de apresentar, que, do nosso ponto de vista, a reconstituição adquire a capacidade representativa indicada, exactamente pelo rigor com que a reconstituição é feita, ou seja, pelo modo como cada um dos componentes, do universo construído assenta nos modelos da administração imperial romana tal como os conhecemos pelos registos literários, artísticos, documentais e arqueológicos, que foram cautelosamente recolhidos pelo autor.

    De facto, uma das marcas do seu trabalho, enquanto narrador, é a persistência com que faz intervir, junto com o mecanismo da mistura de géneros, tradições, temas e estilos, cautelosa e, por vezes, minuciosamente, de tal modo que a distanciação paródica gera uma postura face às tradições literárias e culturais com que lida e a que lança mão, fortemente inspirada pela irreverência. E o resultado é bastante importante para gerar as marcas estilísticas, poéticas e estéticas que caracterizam Mário de Carvalho.

    No fundo, o seu modo próprio, entre intensamente fantasioso e cautelosamente crítico e realista, é o da sátira, se, nesta designação, acautelarmos a ênfase no centro semântico que etimologicamente a marca: a satura, cuja ideia fundamental é a mistura.

    A enumeração da sua obra, título a título, permite-nos observar, quase sempre, as opções de género dominantes em cada publicação, bem como algumas das implicações temáticas e ideológicas que aí se manifestam[1]. Da enumeração que deles façamos, ressalta que, a um ritmo quase trepidante de publicações, se veio sobrepor a publicação mais espaçada, com intervalos mais regulares.

    Faz parte dessa alteração de ritmo, a persistência na elaboração de narrativas mais longas – menos contos e mais romances. Aparecem, nestas fases de publicação mais espaçada de narrativas, as peças de teatro.

    Publicado em 2003, este romance foi galardoada com o Prémio PEN Clube.

    Uma preocupação pela representação do quotidiano actual, em modelos de representação razoável e consensualmente realista, vai ocupando cada vez mais lugar na ficção de Mário de Carvalho. A História, o conhecimento do passado e a sua transposição para os quadros da ficção vai-se tornando, cada vez mais, regulada pelos pactos da verosimilhança da narrativa realista.

    Tudo parece passar-se como se a tradição narrativa anterior aos códigos da formação da narrativa realista clássica a que já fizemos referência fosse absorvendo os cânones balzaquianos e tcheckovianos, propondo um modelo de representação do mundo e dos seus valores, liberta dos pesos excessivos da verosimilhança, mas sem a esquecer, para melhor poder fazer do acto de representar um modelo de paródia, irreverência e entendimento crítico do universo material, social e ético que representa.

    Por um lado, a partir da tentativa de representação do espaço colonial, através de episódios e situações de guerra, durante as lutas travadas pelas independências, a expressão dos processos políticos e confrontos ideológicos é assumida, mais amiúde, como tópico das suas narrativas. Por outro lado, a preocupação com a presença do elemento representativo, do pormenor bem conseguido, introduz, nas histórias de Mário de Carvalho, uma atenção à imagem da classe média citadina dos nossos dias, que só raramente foi igualada na literatura portuguesa.

    Mas é nos seus romances históricos que essa atenção ao pormenor se tornou pedra de toque de um fazer profissional inconfundível, por vezes assumindo o estatuto de um traço estilístico inimitável. Para esse fim, é muito comum, na produção do autor, uma documentação factual bastante rigorosa, a sustentar a credibilidade do universo evocado, a procura do léxico característicos dos mundos sociais que evoca, a referência aos grandes elementos simbólicos e míticos dos ambientes e meios referidos, bem como a cautelosa reconstituição dos espaços geográficos, naturais e urbanos.

    Desse trabalho de atenta reconstituição não resulta, porém, o relatório ou a descrição segundo os moldes de uma enciclopédia vertida para a base de sustentação das histórias contadas.

    O procedimento particular que torna notável, e mesmo inconfundível, o trabalho de reconstituição histórica de Mário de Carvalho é o resultado do entretecer desse léxico minuciosamente restaurado, em tons de enunciação narrativa em que estão presentes as marcas ideológicas e culturais da instância actual que as produz.

    Após de publicar na Vega e na Rolim nos anos 80, Mário de Carvalho permaneceu mais de duas décadas na Caminho. Em 2012 mudou todo o seu catálogo para a Porto Editora.

    Mesmo quando são os protagonistas que contam as suas histórias, é evidente, no desenrolar das suas exposições, os modelos de discurso pós-românticos e modernistas. Mesmo quando as matrizes imitadas, para evocações de outras eras, são as dos textos canónicos, da religião, da lenda ou da historiografia coeva, a sobreposição de imagens paradoxalmente aproximadas são construções eminentemente surrealistas.

    Para não nos alongarmos muito, na apresentação de exemplos que o leitor terá a oportunidade de colher em futuras leituras, relembremos apenas um dos títulos acima enumerados, que até pelo lugar de destaque, em frontispício da obra, emblematiza o procedimento referido: O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana.

    Parece ficar sugerido, no livro mais romanesco publicado pelo autor, A Sala Magenta, que um registo menos exuberante de evocação de universos ficcionais se afirma na sua obra. Um pendor para a reconstrução de ambientes e vivências actuais, apresentados de modo quase decorrente dos códigos do realismo clássico, afirma-se claramente neste seu romance.

    A ostentação desse percurso, na narrativa singela de um estado amoroso, vivido na quase evanescência de uma relação, alerta-nos para a eventual reavaliação crítica e reformulação dos procedimentos modernistas que, nas últimas décadas, têm sido hasteadas em nome de uma situação “pós-moderna”.

    No fundo, como afirmam algumas vozes de postura mais simplista e redutora, o que romancista tem de fornecer ao leitor é uma boa história, contada de fio a pavio, sem grandes desvios e tortuosidades, distinguindo claramente as vozes enunciativas, de modo a oferecer um alto grau de legibilidade.

    E, de certo modo, em A Sala Magenta é esse o percurso aparente de uma personagem cuja complexidade psicológica se patenteia com clareza no desenrolar da narrativa, cineasta desencantado com o seu próprio vazio, encaminhando-se para um estado de alcoolismo sem retorno, arrastando uma perna estropiada pela acção do anárquico vandalismo urbano, em busca de uma fixação amorosa para a qual não consegue arranjar justificações.

    Cada vez mais forte, sobrepondo-se a uma nitidez de contornos a que nenhum leitor impaciente poderá levantar objecções, vai emergindo um tom de fundo, um resíduo que parece querer devorar todo o universo sobre o que se espalha e que acaba mesmo por ser a única réstia do tal estado amoroso que o protagonista desenvolve nos encontros quase castos e silenciosos que tem com uma mulher: a cor magenta da sala onde se encontra com ela. Que não há remissão para o vazio dessa vivência evidente mostra-o a tentativa falhada de suicídio, no final do romance. Poderia aqui ressoar o sibilino verso aprendido do poeta? Se te queres matar, por que não te queres matar?

    Mário de Carvalho em 2021, aquando do lançamento da sua mais recente obra.

    O universo evocado neste último romance, a figura do cineasta, o qual nos aparece como putativo realizador, mas, em muitos traços, parece mais o argumentista criador, parece apontar para uma outra evolução mais recente do narrador brilhante que é Mário de Carvalho: a marca do cinema na obra do escritor.

    Embora não nos tenhamos detido, até agora, com a devida atenção, nos textos que nos parecem apontar para essa evolução desencadeada pela contaminação de trabalho para o cinema, podemos dizer que, por exemplo, em O Homem do Turbante Verde (2011), a história que dá título ao livro, e os contos que aparecem no mesmo volume, apontam para o registo do argumento, ou mesmo da sinopse cinematográfica, tal como acontece nas produções designadas por ele “crononovelemas”, nome que dá ao livro que reúne duas das suas novelas anteriores,  em que se revela a oscilação entre o registo documental do documentário e o artifício da crónica enquanto visão do mundo, com laivos de telenovela.

    Professor Emérito da Universidade de Évora


    [1] Contam-se os seguintes títulos na obra de Mário de Carvalho, que, tudo indica vão aumentar: Contos da Sétima Esfera (1981); Casos do Beco das Sardinheiras (1981); O Livro Grande de Tebas, Navio e Mariana (1982, Prémio Cidade de Lisboa); A Inaudita Gerra da Avenida Gago Coutinho (1983); Fabulário (1984); Era Uma Vez Um Alferes (1984); Contos Soltos (1986); E se Tivesse a Bondade de me Dizer Porquê? (1986, em parceria com Clara Pinto Correia); A Paixão do Conde de Fróis (1986, Prémio Dom Diniz, ex aequo); Os Alferes (1989); Quatrocentos Mil Sestércios seguido de O Conde Jano (1991); Água em Pena de Pato. Teatro do Quotidiano (1992); Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde (1994, Grande Prémio da APE 1995, Prémio Fernando Namora, 1996 e Prémio Pégaso de Literatura, 1996); Era Bom que Trocássemos Umas Ideias sobre o Assunto (1995); Apuros de Um Pessimista em Fuga (1999); Se Perguntarem por mim não Estou seguido de Haja Harmonia (teatro, 1999, Grande Prémio da APE); Contos Vagabundos (2000); Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina (2003, Prémio PEN Clube 2004, Grande Prémio de Literatura, itf/dst); O Homem que Engoliu a Lua (infanto-juvenil, 2003); A Sala Magenta (2008); A Arte de Morrer Longe (2010); O Homem do Turbante Verde (contos, 2011); Quando o Diabo Reza (2011); Não Há Vozes, não Há Prantos, (teatro, 2012); O Varandim seguido de Ocaso em Carvangel (novela, 2012); A Liberdade De Pátio (contos, 2013); Quem Disser o Contrário é Porque Tem Razão (ensaio sobre arte de narrar, 2014); Novelas Extravagantes (2015); Ronda das Mil Belas em Frol (2016); Cronovelemas (2017), Burgueses Somos nós Todos ou Ainda Menos (2018); O que Eu Ouvi na Barrica das Maçãs (2019); Epítome de Pecados e Tentações (2020); De Maneira que é Claro… (2021, Grande Prémio de Literatura Biográfica da APE).

    A amplitude da aceitação e reconhecimento da sua obra constata-se nas colaborações em que se envolveu, quer no levar à cena das suas peças teatrais, quer ainda o seu seu trabalho como argumentista, qualidade que o levou a cooperar enquanto tal com os realizadores Luís Filipe Costa, José Fonseca e Costa, Solveig Nordlung, José Carlos Oliveira, Gonçalo Galvão Teles e José Barahona; além de ter sido professor convidado da Escola Superior de Teatro e Cinema e da Escola Superior de Comunicação Social, durante vários anos e ter orientado pós-graduações em escrita de teatro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e várias oficinas de escrita de ficção.

    Foram-lhe atribuídos em Itália os prémios Giuseppe Acerbi (Passegia un dio nella bresa della sera) e Citá de Cassino (I sottotenenti).

    A 9 de Junho de 2014 foi agraciado com o grau de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada.

    A 22 de novembro de 2021, foi agraciado com o grau de Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

  • O vinho e a vinha, os trabalhos, os dias, a alegria e a mania do álcool

    O vinho e a vinha, os trabalhos, os dias, a alegria e a mania do álcool


    Teria muitas maneiras possíveis para começar a falar das relações entre o vinho e a literatura, evocando a sumptuosidade do passado que me desse a razão pelo seu prestígio de todos os textos; porém, ocorre-me, com persistência irracional e, por isso, respeitável, a Odisseia, que atribuímos a um autor mais ou menos mítico: Homero.

    Não é tanto a figura mais importante da história contada que nos ocorre, no entanto. É um outro ser primevo, titânico, com o qual Ulisses (ou Odisseus) se confronta que nos parece justo evocar em primeiro lugar. Nele se resume, parece-nos, a oscilação imaginária que o vinho evoca na literatura: o movimento entre a alegria e a fatalidade.

    people tossing their clear wine glasses

    De facto, Polifemo, o ciclope, tal como nos aparece na narrativa das épicas viagens, embora não seja personagem de prolongada presença, é entidade de um percurso vastíssimo. Sendo primeiro a potestade que aprisiona os viajantes, ele transforma-se, por aceitar o delicioso néctar que Ulisses lhe oferece, naquele que exulta na alegria da embriaguez, adormece na segurança ingénua de um poder que não se reconhece em risco, e desperta na angústia de se ver ludibriado e cego.

    Terá Polifemo atingido a visão suprema, a inteligibilidade da mente em comunhão com o supremo saber, o deleite jubilatório do contacto com o divino? Nunca o viremos a saber. Contudo, parece ser esse um dos apelos fascinantes que o álcool lança: passar uma ponte, sofrer uma perda irreparável e chegar a um lado qualquer a um encontro decisivo cujo esplendor dificilmente se comunica aos outros.

    Tudo se passa como se um vislumbre de plenitude inundasse o ser embriagado, mas, em consequência, este perdesse as referências da sensibilidade visual. Resta o inefável do tacto, do odor, do paladar, como se os sentidos se dispersassem por todo o corpo, e este palpitasse na confusão de um caos vertiginoso.

    Mosaico na Villa Romana del Casale retratando Ulisses dando vinho a Polifemo.

    Omar Khayyam, poeta persa nascido há pouco menos de mil anos, escreveu numa das suas maravilhosas quadras (ou Rubayat, designação da forma estrófica que dá nome, segundo a tradição, ao livro que nos deixou):

                            Quando oiço falar em coisas ditosas

                             De que gozarão os Eleitos, respondo apenas:

                             “Creio no vinho e no dinheiro contado!

                             O som do tambor só me agrada à distância…”

    Tal posição, que nos revela quanto há de religioso, ou, pelo menos, de místico, no vinho, merece ser considerada atentamente. Ela mostra-nos não só quanto o sujeito poético acredita na perfeição do universo a que o vinho dá acesso, numa racionalidade que tem paralelo, apenas, na que evoca o dinheiro, mas também quanto na bebida alcoólica se encontra de impulso para a criação imaginária.

    Contudo, antes dele, os poetas gregos e latinos não tinham uma visão tão parcialmente favorável acerca do vinho. Se, por um lado, gabavam o néctar que provinha dos reinos de Baco, por outro reconheciam como o uso do vinho podia ser indício ou mesmo origem da destruição e da decadência. Mil anos antes de Omar Kahyyam, há pouco menos de dois mil, portanto, Juvenal cantava em pequenos poemas satíricos o triste espectáculo que os ricos davam nos jantares em que se empanturravam e embriagavam.

    Na vida dos escritores, segundo nos revelam algumas biografias, o álcool foi muitas vezes um elemento decisivo, mas ambivalente: nele procuraram inspiração e consolo autores como Faulkner, Hemingway, Sartre ou Carlos de Oliveira. Por ele quase todos se vieram a destruir. E quase todos tiveram a consciência da ambivalência que se desenvolvia na bebida.

    Ernest Hemingway

    Hemingway, por exemplo, encontra no vinho um motivo central para muitas das histórias que situa em Espanha. Contudo, sabe tirar proveito desse mesmo motivo para desenvolver o percurso passional de muitas das suas personagens através do modo como bebem, das bebidas que bebem, das quantidades que ingerem.

    Reconheçamos que, apesar de tudo o que dissemos, não é apenas como bebida que o vinho surge na literatura. Nem é desse modo, julgamos, que ele aparece como grande tema. O cultivo da vinha, a produção agrícola que está na origem da bebida, são motivos centrais na criação de universos de vivência e de conflito de algumas das mais importantes narrativas modernas, quer nos lembremos de autores portugueses quer evoquemos autores estrangeiros.

    Não nos sendo possível enumerar todas e apresentá-las num breve resumo, limitamo-nos a referir-nos a algumas que nos parecem mais importantes, não só pela grandeza dos autores evocados, como pelo facto de serem, de um modo geral, escritores que foram muito bem acolhidos pelos leitores.

    Antes de mais, parece-nos justo lembrar, pelo valor quase emblemático que teve na literatura americana, de modo a ter-se tornado uma obra de amplo acolhimento mundial, traduzida para dezenas de línguas, As vinhas da ira, de John Steinbeck. Neste romance, nunca a vinha é representada como o valor positivo, produtora do fruto que dá alimento e prazer aos homens.

    Capa da primeira edição de As vinhas da ira, de John Steinbeck, publicado originalmente em 1939.

    Ao contrário, a planta e mesmo o fruto de onde é extraído o néctar que, segundo o texto bíblico, devia significar e estimular a paz e a concórdia entre os homens, aparece como o símbolo do trabalho agrícola mecanizado, objecto para onde convergem interesses, ganância e esperanças defraudadas, acabando o território onde cresce a vinha por ser palco do explodir de todos os ódios e rancores que os intervenientes acumulam ao confrontarem-se.

    Até certo ponto, a vinha como palco da luta social, a produção agrícola que culmina no vinho como mecanismo onde se revelam os confrontos sociais, tal como é tratada por Steinbeck, deve ter sugerido a Alves Redol o motivo de base uma das mais curiosas narrativas por ele produzidas. Referimo-nos aos romances que ele escreveu sob a designação geral de Ciclo Port Wine.

    Caso único na sua obra, o autor desenvolve os trágicos confrontos sociais que marcaram as relações sociais de trabalho na época salazarista em três volumes, como uma epopeia organizada em tríptico. Por outro lado, caso raro na obra do romancista, ele sai do universo ribatejano e procura como quadro da intriga que desenvolve em três amplos painéis, a região do Douro vinícola. Os romances são, por ordem na trilogia, Horizonte cerrado (1949), Os homens e as sombras (1951) e Vindima de sangue (1953).

    Trilogia do denominado Ciclo Port Wine, de Alves Redol, publicado entre 1949 e 1953.

    É interessante registar que, quase pela mesma época, um outro grande escritor português, Miguel Torga, abordava os trágicos confrontos humanos na região duriense, no seu romance Vindima (1945). Ligado a um movimento literário anterior ao neo-realismo a que Alves Redol pertence plenamente, Torga aproxima-se, no desenvolvimento das paixões humanas que desembocam no confronto violento, de alguns princípios daquele movimento literário.

    Contudo, é interessante e de notar que não é só esse abandono da posição alheia à dimensão sociopolítica que caracterizou, em geral, a obra de Torga que aqui se faz sentir: também é relevante que seja Vindima o único romance escreveu. Numa obra tão vasta, cultivando os mais variados géneros, esta excepção merece ser cuidadosamente anotada, embora não seja este o lugar para procurar tirar todas as conclusões que daí advêm.

    Na tradição portuguesa, as duas obras que referimos anteriormente merecem um destaque especial. Se o vinho é cantado com alguma brejeirice por poetas portugueses, entre eles o próprio Torga, ou referido como bebida celebrativa ou mesmo origem de desregramento de costumes no romance, como acontece nos banquetes dos padres em O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, a dimensão do vinho e da vinha como símbolo da condição humana aparece pela primeira vez plenamente desenvolvida nos romances de Torga e de Alves Redol.

    Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, foi originalmente publicado em 1947.

    Mereceriam ainda uma referência rápida algumas obras que, embora por razões que explicitaremos em seguida não cabem neste pequeno conjunto, se revelam importantes narrativas em que a problemática do álcool é abordada.

    Devemos registar, em primeiro lugar que a razão principal para não as termos escolhido como conjunto principal se deve ao facto de não tratarem do vinho propriamente dito, nem das tarefas relacionadas com a produção da bebida ou do cultivo do vinho.

    Mas sentimos que não poderíamos deixar de lhes fazer referência porque, pela qualidade e importância das obras, dentro da produção de autores que foram dos maiores da literatura mundial, seria um esquecimento quase imperdoável.

    O primeiro, até pela ordem cronológica, a merecer referência é A taberna (L´assomoir – o balcão, o lugar onde se bate, com os copos, com as moedas, com as mãos), de Zola. É na taberna que o grande autor francês do século passado apresenta o quadro das condições de vida das classes trabalhadoras em Paris.

    O segundo, respeitando ainda cronologia, é Terna é a noite, de F. Scott Fitzgerald, romance típico da geração perdida americana, dos anos 20 do nosso século, que narra como o álcool contribui para a desagregação de uma intensa relação amorosa.

    E o terceiro, último na referência para o destacar pela grandeza, é Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, intensa narrativa em que a bebedeira do “herói” se mantém ao longo de quatrocentas páginas. Por esta história, de inesgotável simbolismo, percebemos que a condição humana que a mescalina revela é mais do que existencial ou social: aponta já para a relação directa com os deuses, com as entidades do além, com os mistérios em que se encerra a morte.

    Professor Emérito da Universidade de Évora

  • Mia Couto

    Mia Couto


    O escritor Emílio Couto, sempre dito Mia – e como tal reconhecido –, nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Filho de pais portugueses, próximo, desde muito jovem, das lides e práticas das letras, até pelo convívio com o seu pai, Fernando Couto, poeta e colaborador de uma das mais importantes revistas culturais moçambicanas, Paralelo 20, Mia Couto começou a publicar poesia ainda adolescente.

    Passando adiante de um sublinhar de precocidades que poderiam, até, nada significar, registemos como marco importante para o desenvolvimento da sua actividade de escritor, o primeiro livro que deu à estampa em 1983: Raiz de orvalho.

    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 24/08/2013 – Coluna Monica Bergamo: palestra do escritor moçambicano Mia Couto para o Fronteiras do Pensamento, no teatro Geo. Na foto, Mia Couto. Foto: Greg Salibian/Folhapress – ILUSTRADA

    Conjunto de poemas onde se encontram pontas do filão inventivo, temático e verbal, que virá a desenvolver, tais textos apresentam-se segundo um processo formal discursivo que abandona logo de seguida.

    O verso e a composição ostensivamente lírica são preteridos em favor da formulação que se torna típica do seu labor: a narrativa curta a que, de um modo geral, podemos chamar conto. No entanto, tal prática não configura, dita assim, simplesmente, a realidade global que é a sua obra.

    Com efeito, se é o conto que se revela como a sua forma privilegiada de expressão, pelo modo como domina a sua representação narrativa o escrito breve, tendo evidente um acontecimento bem desenhado, envolvendo o destino ou um lance importante da vida de pelo menos uma personagem, é verdade que, noutros modos de expressão, ensaiou, e muito bem, os seus passos.

    Capa da 2ª edição de Vozes anoitecidas, primeira obra de Mia Couto publicada em Portugal, em 1986.

    Resumindo o conjunto da sua obra num panorama breve, podemos dizer que, depois da sua estreia em poesia, se afirmou com a publicação de dois livros de contos, Vozes anoitecidas (1986) e Cada homem é urna raça (1990), “o primeiro destes granjeando-lhe notoriedade não só em Moçambique como também em Portugal e noutros países, nomeadamente devido às traduções para inglês e italiano” (Laranjeira, 1995: 144).

    Contudo, ao dar à estampa um livro de crónicas, Cronicando (1988), resultado da publicação periódica na comunicação social, apresenta-nos um conjunto híbrido de pequenas narrativas “exemplares”, quase histórias para serem lidas como apólogos, e digressões reflexivas em que o rápido registo da situação serve de exemplum.  

    Se algumas peças desse conjunto, que foi publicado em Portugal em 1991, podem ser lidos como contos, pelo modo como domina uma situação fortemente marcada pela intriga, outros têm de ser encarados de modo diferente.

    Forçoso será perspectivar, a partir desses textos menos evidentemente enquadráveis num género, a forte componente discursiva que a voz da enunciação apresenta nos textos de Mia Couto. Verifica-se neles, de um modo curioso, a voz que constrói a história ou gera a situação discursiva entrar no universo representado, por vezes quadrando-se numa personagem, para, em seguida, num golpe de geometria textual, sair a comentar a História em que a estória emerge.

    A partir do seu primeiro romance, Terra sonâmbula (1992), um projecto que, desde há anos, o seduzia, pode afirmar-se que, em Portugal, se desenvolve “um verdadeiro culto por Mia Couto, expresso no fascínio que a sua figura exerce, a que não é alheia a ausência de pose intelectual, a simplicidade nos encontros com o público, durante os quais prefere contar histórias pícaras ou dramáticas do quotidiano de Moçambique, a falar da sua obra” (Laranjeira, 1995: 144).

    Cremos que, nessa figura assim constituída, do escritor que vai crescendo na sua escrita, se desenham os contornos principais daquilo que torna este autor uma entidade fascinante pela forma como deriva na senda da permanente fractura, da constante e irónica distância dicotómica: percurso que se desenvolve na unidade da obra e na duplicidade cultural, vivendo a ambiguidade que instaura a vários níveis numa espécie de paródia da especularidade, ou alegria do discurso de sentidos equívocos.   

    De facto, as narrativas de Mia Couto “colocam em situação de exposição, confronto e análise as várias culturas e crenças do homem moçambicano” como já sugeriram alguns críticos (cf. Laranjeira, 1995).

    O humor incómodo é, sem dúvida, um dos elementos a ter em consideração mas, se admitimos que essa exposição afecta o universo histórico referencial da suas histórias (romances e contos), temos de admitir que também o universo do sujeito da narração, o narrador mais ou menos autoral, ou cronista que chega a identificar-se como Mia Couto é exposto aos níveis mais profundos da sua crença: aqueles em que a palavra se motiva, a sintaxe se compõe e os alicerces da representação se fundam.

    Primeiro romance de Mia Couto, Terra sonâmbula, foi publicado originalmente em 1992.

    A sequência das suas restantes publicações vem demonstrar-nos que a vereda escolhida, para desenvolver obra em meio de culturas, em abismo de línguas, é o mecanismo fundamental da poética de Mia Couto.

    Em 1994, publica Estórias Abensonhadas, em 1996 dá à estampa o romance A Varanda de frangipani e, no ano seguinte, Contos do nascer da Terra. Cada vez mais, ao longo da sua produção, domina aquilo que poderíamos chamar a dupla ruptura: com as normas da tradição ilustre da literatura portuguesa, sua cultura de origem,  por apelo ao regime do fabuloso – como faz abertamente, por exemplo, no seu último romance, em que o narrador, Kindzu, é um morto cujo diário foi encontrado – mas sem optar, exclusivamente, pelo fabulário africano; e com as normas da língua portuguesa sem se decidir, como se patenteia, por nenhuma língua moçambicana.

    No entanto, tal posição de ruptura é sustida como ruptura, não como abandono. O que se exibe é o rasgão, ou a fractura. Mia Couto não abandona o terreno da literatura que se desenvolveu como uma das grandes forças de coesão cultural a partir da Europa. Se repararmos bem, por exemplo, o morto narrador apela imediatamente para uma das figuras tutelares da literatura em língua portuguesa (brasileira, talvez não por acaso), que é Machado de Assis, com o seu Memórias póstumas de Brás Cubas.

    Se formos atentos às rupturas que desenvolve serena e persistentemente, cada vez com mais frequência, em relação à norma da língua portuguesa (tomando como padrão uma escolaridade avançada e um acordo ortográfico a obter), verificamos que ele rompe pelo excesso de domínio da língua, buscando as rupturas nos limites do possível.

    Quanto a este último aspecto, podemos dizer que Mia Couto fractura a unidade do “padrão” pelas marcas da influência dos esquemas de colocação de afixos (sejam eles prefixos sufixos ou mesmo infixos) à maneira banta. De facto, o que ele representa, na própria aventura da escrita, é o acto vertiginoso de conduzir uma língua (que até é a sua de origem – e não dizemos materna porque ele, no seu radicalismo semântico, nos lembraria que não foi gerado por nenhuma língua) até à curva onde range, por ímpeto causado pelas estruturas e esquemas mais gerais, de línguas com as quais está em contacto de bilinguismo.

    A sua opção é a de uma sub-reptícia ousadia em língua dupla, sob a capa da plenitude de uma só língua, com a intromissão, pontual e amplamente anotada, de uma ou outra palavra de origem moçambicana. Também aqui sabemos que Mia soube guardar e salvar honrosos parentes, idos mas presentes: pensemos sobretudo em Guimarães Rosa que tanto prezava a língua alemã, inspiradora dos palavrões compridíssimos com sabor a sertanejo, a índio, a cafuzo e mesmo a piar de ave ou bicho de pantanal, pelos quais ele brindava a nossa imaginação.

    De facto, quando Mia Couto nos apresenta o seu léxico português, ele não faz mais do que tentar ousadias de mistura, que resultam em novidade e produtividade de expressão. Por exemplo, nada impede “antemanualmente” de ser português, excepto o não se usar. Talvez não se tenha usado.

    Trilogia de As areias do imperador, obra do género histórico, rara na bibliografia de Mia Couto.

    No entanto, este mecanismo tão elementar da nossa língua que permite fazer advérbios de tudo (e isso, Pessoa, por exemplo, tinha-o descoberto claramente) permite a entrada de estruturas morfo-sintácticas das línguas bantas mais comuns em Moçambique na língua portuguesa.

    O filão africano desta laboração já é muito rico. Mia Couto revela conhecer-lhe muito bem as realizações – o que não é de espantar, pois um dos cultores desse modelo (embora de modo menos sistemático, em nosso entender) foi Luandino Vieira, escritor angolano com o qual o autor moçambicano mais jovem tem francos parentescos.

    Reparando bem, o que aqui acabamos por fazer é o elenco canónico de alguns pontos destacáveis de entre os grandes escritores que pelo mundo fizeram crescer o português como língua, que a consolidaram, que a mantiveram viva. Isso fica claro e ninguém melhor do que Mia Couto o sabe fazer, como tentaremos mostrar em breve encerrando a nossa apresentação deste novo grande escritor.

    É bom acrescentar, apesar de tudo, antes de passarmos à apologia de uma nova odisseia da escrita pelo próprio autor, que a aventura de Mia Couto tem, também, uma dimensão continental. Faz parte de uma importante tradição africana, recente mas profunda, buscar caminhos para a emergência ampla da sua expressão escrita. O caminho para essa abertura tem-se revelado, no entanto, bastante escabroso e, no mínimo, tem apresentado complexas dificuldades.

    Mia Couto, durante o discurso de entrega do Prémio Camões em 2013.

    Muitas das línguas africanas não são facilmente grafáveis; muitos países africanos dificilmente poderiam optar por uma língua dominante (para já não falar da complexidade dos dialectos que algumas têm); e a escolarização, a partir de todas essas dificuldades, manifesta-se como mais um escolho a obstruir o caminho. A solução prática tem sido o recurso às línguas dos colonizadores que, para fins práticos e de instrução básica, se mostra satisfatória.

    Perante esta última solução para a escolaridade, muitos escritores optaram por exprimir, numa espécie de tradução possível, o manancial cultural de que eram portadores e recriadores, em francês, inglês, português e mesmo, num ou outro caso, em alemão.

    O resultado não é nada desprezível. Só em língua portuguesa podemos citar obra acabada e plena de um grande poeta, Craveirinha, de quem os “puristas” não costumam ter nada a dizer de mal, ou de um grande romancista que nos parece difícil questionar nesse terreno, Pepetela.

    Mas, mais importante ainda, parece-nos o facto de o Nobel africano, Wole Soyinka, escrever algumas das suas magníficas peças num inglês que os entendidos reconhecem ser de um nível verdadeiramente shakespeareano. Contudo, uma outra linha africana, vinda de um controverso, mas magnífico narrador, também ele nigeriano como Soyinka, chamado Amos Tutuola, tem proposto uma aventura de deriva e transformação da língua do colonizador por força da intervenção da língua africana em que autor se exprime.

    E, isso, segundo ele, seria muito mais trabalho de uma inspiração poética, do que de um deliberado esforço de tradução. É nesta última linhagem que Mia Couto, na sequência de outros grandes autores africanos, se vem inscrever.

    Tão bem ou melhor do que qualquer dos seus mestres e émulos, o autor de que aqui falamos, multiplamente premiado, sabe defender essa posição. Fá-lo, no entanto, mais no terreno de quem conhece e defende a língua portuguesa contra imobilismos, do que de quem pretende a invasão da língua veículo.

    O livro de contos O caçador de elefantes invisíveis, publicada no ano passado, é a mais recente obra de Mia Couto.

    Não podemos entender de outro modo a dimensão irónica da sua frase: “Porque isto de falar ou escrever tem de ser dentro de margens. Como um rio manso e leve, tão educado que não levante poeiras do fundo. Um rio que passe com essa eterna transparência que, verdade autografada, só a morte possui. Seja então a pureza pela morte trazida e por ela conservada”.

    É assim, deste modo, como percurso ou mudança que a língua se lhe afigura e só no processo desse percurso a língua pode ser criadora, no sentido forte que a literatura lhe anexa. É ao agitar a língua que a vida da mesma se assegura. Tal ideia volta num outro texto, pela figura da estrada.

    Com esta, desenham-se, também, com clareza, já não tanto os limites de uma gramática normativa, como as fórmulas poéticas da criação: “Acontece que o mundo é sempre grávido de imenso. E os homens, moradores de infinitos, não têm olhos a medir. Seus sonhos vão à frente de seus passos. Os homens nasceram para desobedecer aos mapas e desinventar bússolas. Sua vocação é a de desordenar paisagens. (…) É que o pé, posto em viagem, anula a condição terrestre. Em troca, o chão se vai desnudando: na alma humana surgem as pegadas do planeta. Afinal, os carreiros, esses teimosos surgentes, não servem apenas para levar os viajantes. Eles próprios se movem junto com a travessia. Deste modo, os lugares se visitam entre si, recordando-se do tempo em que o universo estava todo no ventre de uma pequena gotinha”.

    Talvez muitos vejam, nestas últimas imagens, a visão de um biólogo que, academicamente, Mia Couto é. E nós concordamos, mas pensando que um biólogo se confundirá com o biófilo (repare-se que, biófilo, além de significar “o que ama a vida”, em biologia designa é o ser parasitário, que vive nos organismos vivos) que todo o grande poeta é, mesmo ao saudar a morte.

    Contudo, a imagem que gostaríamos de enfatizar é a dos que vêem no trabalho literário de Mia Couto uma ousadia maior: a de afirmar e defender, em situação de fractura e distância, a vitalidade de uma língua, capaz da grande transformação de travessia, dos desvios regeneradores e criativos: a desviagem.

    É essa postura que ele mantém, até aos últimos livros que publicou e que se revelam incontestáveis êxitos literários e verdadeiros best sellers. É desse modo que uma língua pode unir povos, ser uma riqueza cultural, ser una porque nos entendemos com ela, e múltipla porque ajuda a construir as diferenças que nos libertam.


    Bibliografia:

    Laranjeira, Pires, 1995, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Universidade Aberta, Lisboa

    Professor Emérito da Universidade de Évora

  • Hélia Correia

    Hélia Correia


    Hélia Correia é uma das mais prolíferas escritoras portuguesas contemporâneas. Isto, por si só, não seria importante, se ela não fosse, ao mesmo tempo, uma das mais criativas e originais nos vários géneros literários que cultivou.

    É de destacar, efectivamente, que, se a autora de A Casa Eterna se tem notabilizado como romancista, talvez, em grande parte, por ser este o género que mais atrai o público leitor e que por tanto, se abre a uma maior comunicabilidade, a verdade é que ela tem cultivado, com grande perfeição e rigor, os outros géneros básicos que costumamos considerar como constituindo a repartição integrante do vasto campo da literatura: o texto teatral e a poesia lírica.

    Hélia Correia. Foto: © Graça Sarsfield

    Mas não fica por aí, o talento multímodo da autora que aqui consagramos. Notáveis são, também, os textos que escreveu para a infância, os quais parecem, muitas vezes, uma inevitável extensão da sua prodigiosa capacidade de efabulação, em busca de um público mais alargado.

    Neles se desenvolve o seu imenso dom coloquial e oratório, como que em terra onde é mais propícia a fantasia desbridada e exuberante, do que naquela em que os adultos assentam os pés.

    Devemos notar ainda que a importância da  reflexão poética, sobre o trabalho literário, tem sido muito coerentemente defendida pela autora em entrevistas ou em breves excursos no interior da sua própria criação.

    Parece-nos pertinente, antes de continuarmos esta nossa breve apresentação da obra da autora, dar a conhecer o corpus publicado por ela, até à presente data:

    Os papagaios de Natal e outros contos, a estreia de Hélia Correia, em 1977, aos 28 anos, foi para o público juvenil.

    Ficção

    O separar das águas (1981)O número dos vivos  (1983); Montedemo (1983); Villa Celeste (1985); Soma (1987); A fenda erótica (1988); A casa eterna (1991); Insânia (1996); Lillias Fraser (2001); Fascinação seguido de A Dama Pé-de-Cabra de Alexandre Herculano (2004); Bastardia (2005); Desmesura: exercícios com Medeia (2006); Contos (2008); Adoecer (2010); Vinte degraus e outros contos (2014); O separar das águas e outras novelas (2015); Obras escolhidas (2015); Um bailarino na batalha, 2018.

    Poesia

    A pequena morte/Esse eterno canto [em díptico com Jaime Rocha] (1986); Apodera-te de mim (2002); A terceira miséria (2012); Acidentes (2020).

    Teatro

    Perdição: exercício sobre Antígona seguido de Florbela (1991); O rancor: exercício sobre Helena (2000); A teia (2013); As troianas (2018).

    Para a Infância

    Papagaios de Natal e outros contos (1977); A luz de Newton (1988); Sonho de uma noite de Verão (Shakespeare) – versão infantil (2003); Mopsos, o pequeno grego – O ouro de delfos (2004); Mopsos, o pequeno grego – A coroa de Olímpia  (2005); A ilha encantada – versão infantil de A tempestade de William Shakespeare (2008); A chegada de Twainy (2011).

    Prémios:

    A casa eternaPrémio Máxima de Literatura, 2000.

    Lillias FraserPrémio de Ficção PEN Clube, 2001 e Prémio D. Dinis, 2002.

    Bastardia – Prémio Máxima de Literatura, 2006.

    Adoecer– Prémio Fundação Inês de Castro, 2010 e Prémio Especial do Júri Máxima de Literatura, 2011.

    A terceira miséria – Prémio de Poesia das Correntes D’Escritas, 2013.

    Prémio Vergílio Ferreira, 2013 – pelo conjunto da sua obra literária.

    Prémio Camões, 2015 pelo conjunto da sua obra literária.

    Prémio Literário Guerra Junqueiro, 2021 pelo conjunto da sua obra literária.

    Acidentes Prémio de Poesia PEN Clube, 2021

    Lillias Fraser, o romance que consagrou Hélia Correia.

    Coloquialidade, oratória hiperbólica e desenfreada imaginação bem podem ser as insígnias desta surpreendente escritora, tal como já referimos.

    O espanto, face a essas qualidades, leva os críticos, quase sempre cheios de razão, a associar a sua produção às mais variadas tradições culturais e literárias.

    Dessas ganharão base, provavelmente,  as características  da escritora que se desenvolvem entre uma luminosidade quase apolínea da construção da frase, e uma capacidade de construção do discurso ou dos episódios narrativos pautada pelo rigor da lucidez e apelo demoníaco do absurdo e da irracionalidade.

    Alguns chamaram a esta torrente criativa  uma escrita “camiliana”, pela sua dimensão paradoxal, apaixonada,  luciferinamente luminosa e, simultaneamente, carregada de máculas da sombra e do mistério. Justifica mesmo, alguém, que “essa era uma maneira de dar nome a uma impressão de solidez”, dado que há sugestão camiliana “em qualquer escrita de desapiedada concentração conflitual”[1].

    Outros apontam uma opção pelos processos caros ao surrealismo, ou ao visionarismo da alquimia, ou ao esoterismo gnóstico, como o que Maria Gabriela Llansol representa, sem que, contudo reconheçam, nesses traços, uma filiação definitiva  da autora de A casa eterna.

    O que fica quase sempre patente, na sua criação, seja ela ficcional, para adultos e para crianças, seja dramática ou lírica, é a capacidade de fazer emergir uma atmosfera etérea em que todos os acontecimentos narrados, ou todos os objectos e espaços descritos nos aparecem de uma forma que exalta a estranheza e insólito da sua própria ocorrência ou da sua simples presença.

    Outros, ainda, vêem na notável versatilidade do seu imaginário uma marca dos grandes cultores do realismo fantástico. Ocorre compararem-na aos grandes mestres latino-americanos do género, quando acontece unir, à notação da ocorrência mais banal,  a desenfreada representação das virtualidades fantásticas dos seus seres, ora angélicos, ora satânicos, ora ainda entes lançados em obscuros e labirínticos roteiros. Vem mesmo a propósito, para alguns críticos, a evocação de Gabriel García Márquez, para caracterizarem determinados processos narrativos da autora.

    Tal evocação parece muito pertinente, pois uma das marcas mais fascinantes da escrita de Hélia é domínio e versatilidade com ela faz fluir, em contrapontos ou encadeamentos, os mecanismos da enunciação narrativa.

    Grande parte da ambiência fantástica, da introdução insidiosa do terror, da atmosfera da perfídia ou do medo, é criada pela ausência de uma consciência autoral credível, ou de uma personagem estruturadora dos princípios do real, ou verosimilmente defensora dos valores de verdade. O seu discurso narrativo, como o de alguns dos grandes mestres do realismo fantástico, é sempre percebido como o discurso de “outra pessoa”,  institucionalmente não-credível: os grupos femininos, o colectivo aldeão, o saber gnómico atribuído a entidades enigmáticas.    

    A terceira miséria, obra de poesia galardoada com o Prémio Correntes d’Escritas em 2013.

    Este último traço remete-nos, por outro lado,  quase sem surpresa, para uma tradição gerada pelo confluir das várias correntes do fantástico europeu, que tem o seu culminar em Kafka. Por muitos traços, sobretudo os que sustentam a sugestividade da sua ficção, a obra de Hélia Correia poderia ser comparada à do escritor checo de marcada origem judaica.

    Em todas as suas histórias surge a acentuada intromissão do improvável, do surpreendente e do fantástico, sustidos pela perspectiva de uma personagem, ou de um narrador exterior à intriga mas que só raramente se apresenta como inteiramente credível.

    É como se fossem abertas, mais estrondosa e incontrolavelmente do que é comum entre os ficcionistas, mesmo os que perlaboram em torno do surpreendente, as portas à aceitação das regras da efabulação, pela suspensão das regras da credibilidade.

    O cenário privilegiado pela autora é, quase sempre, o do campo, com a sua variante do pequeno povoado rústico. É através desses microcosmos que o estado da civilização de uma região ou de um país, ou universo das grandes urbes, são avaliados.

    Mesmo as histórias localizadas aparentemente na cidade, como é o caso de Soma, acabam por ter alguns dos seus momentos cimeiros nas zonas rústicas ou campestres. Esta tópica preferencial, alerta-nos para uma dimensão importante na obra de Hélia Correia que, por vezes, é esquecida, pelo facto de as dimensões de inquietação mística ou gnóstica, ou mesmo as da transfiguração fantástica se evidenciarem: a sua preocupação político-social.

    De certa forma, num nível muito lato e demarcado de sectarismos (que, por vezes, comenta com ironia, distância, condescendência ou simpatia), a obra da autora de Lillias Frazer efabula, a partir de postulados ora alegóricos ora satíricos, visões do mundo que se colocam veementemente como críticas aceradas aos absurdos e contradições dos nossos modernos estados democráticos. E, nessa dimensão do libelo crítico, podem ser entendidas muitas das suas incursões no plano histórico, que ora colocam sob observação as condições sociais da mulher, ora evidenciam os confrontos de classe.   

    Estas tomadas de posição têm merecido algumas considerações entusiásticas, sobretudo da parte da crítica que se inscreve nos horizontes ideológicos e epistemológicos de feminismo. Pela posição que ocupam nas sociedades tradicionais, que são os espaços sociais preferidos pela autora, a ênfase da leitura “feminista” pode justificar-se. Mas, por outro lado, são muito pertinentes as observações que tendem a valorizar outras representações dos dinamismos sociais.

    Efectivamente, por exemplo, os confrontos geracionais emergem em muitas das suas narrativas, quer pela constituição das imagens de fascínio, de recusa  ou de receio que os indivíduos duma geração criam, em relação aos de outra, quer pela desmontagem dos laços familiares e de domínio que se prendem, igualmente, a essa dicotomia.

    Acidentes, a mais recente obra de Hélia Correia.

    Os microcosmos que constituem, habitualmente, os cenários onde se desenvolvem as suas intrigas, remetem para a figuração, por vezes em moldes insólitos, dos mecanismos sociais, económicos e políticos.

    Frequentemente, as dinâmicas de relacionamento são activadas pelo confronto de classes percebido pelos seus traços mais evidentes: o trabalho manual versus trabalho intelectual, reformados versus trabalhadores, patrões versos empregados ou empregadas, classe senhorial versus serviçais. Apresentando-se, quase sempre, em cenários sociais restritos e pouco desenvolvidos tecnologicamente, esses confrontos ganham, frequentemente, um traço insólito, ou mesmo uma luz de inquietante estranheza.

    A última página do seu último livro, constituído por poemas e intitulado A terceira miséria,  imediatamente antes do índice, apresenta uma lista de nomes de autores e de títulos. 

    Exprimindo, aí, uma  dívida confessada, que vai de Ésquilo a Maria Gabriela Llansol, passando por Nietzsche ou Holderlin, a autora remete-nos para um último grande tópico que pretendíamos aqui enfatizar: a memória dos clássicos. É isso que explica o título deste longo poema dividido em 32 secções: «A terceira miséria é esta, a de hoje. / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda».

    O passado, para Hélia Correia é um retorno às fontes da poesia, sobretudo pela expressão lírica e pela escrita para teatro. Nesses géneros, tem privilegiado o diálogo com os clássicos gregos, um diálogo que também está presente nas histórias que escreveu para leitores mais novos e que têm como protagonista Mopsos, o pequeno grego.

    Essa paixão pela Grécia, desde há muito presente na obra desta autora, desagua agora neste livro de poesia, onde a Grécia clássica surge como farol e como impossibilidade, paradoxo que faz parte da nossa cultura mas também do nosso posicionamento político: «Para onde olharemos? Para quem? / Certo é que Atenas se mantém oculta / E de algum modo intacta, por debaixo / Do alcatrão, do ferro retorcido. / Certo é que nunca ressuscitará / Visto que nada ressuscita».


    [1] Cf. Fernando Venâncio, Colóquio Letras 123/124 p.385

    Professor Emérito da Universidade de Évora

  • Estante P1: Maio de 2022

    Estante P1: Maio de 2022

    Título

    ​101 Vozes Pela Sustentabilidade

    Autores

    ​Vários

    Editora

    ​Oficina do Livro

    ​Sinopse

    ​​«Juntos, podemos pôr as pessoas e o planeta em primeiro lugar.»Em nota introdutória, António Guterres, Secretário-Geral das Nações Unidas resume bem desta forma, numa única frase, a razão do livro 101 Vozes pela Sustentabilidade, que reúne a opinião de uma centena de autores dos mais variados sectores da sociedade civil, empenhados em assegurar o desenvolvimento responsável em cada uma das suas organizações a bem das pessoas, do país e do planeta. Um desenvolvimento responsável que não passa apenas pela acção climática, mas pelos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável definidos pela ONU: do combate à pobreza às energias renováveis, da educação à justiça, da saúde ao trabalho digno. A sustentabilidade exige compromissos e este é um livro sobre como podemos e devemos mudar de mentalidade e como podemos e devemos fazer diferente. Entre estas 101 Vozes pela Sustentabilidade, estão empresários, académicos, especialistas em energia, activistas, empreendedores, investigadores, artistas plásticos, banqueiros, arquitectos. António Costa Silva, António Saraiva, Francisco Ferreira, Luísa Schmidt, Bordalo II, Carlos Fiolhais, Pedro Norton de Matos, Teresa Ricou, Roberta Medina, entre muitos outros, são apenas algumas destas vozes que assumiram o desafio.

    Título

    ​A Rússia de Putin – a ascensão de um ditador

    Autor

    ​Darryl Cunningham

    Editora

    ​Lua de Papel

    ​Sinopse

    ​Dos pátios atulhados de lixo e ratazanas em Leningrado, onde cresceu, às guerras na Síria, Geórgia e na Ucrânia. Esta é a história de Vladimir Putin. Uma história imperdível ­- e genialmente ilustrada – para quem quer perceber de onde vem e o que quer aquele que hoje é um dos homens mais poderosos do mundo: como chega à KGB, como cresce dentro dos serviços secretos russos, como forma um cartel de crime à sua volta e como vê o seu nome envolvido nos brutais assassinatos de Boris Nemtso (opositor político), Anna Politkovskaya (jornalista) e do ex-espião Alexander Litvinenko. A Rússia de Putin – A ascensão de um ditador é mais um retrato gráfico brilhante de Darryl Cunningham, o premiado ilustrador britânico para quem Putin só tem uma ambição na Ucrânia: restabelecer a época dourada do poderio soviético. “O medo foi assimilado e todos são agora seus inimigos”. Os envenenamentos, as influências políticas mundiais, a relação com um Ocidente – que, até à invasão da Ucrânia, fez vista grossa ao que se passava na Rússia -, as interferências do Kremlin nas eleições norte-americanas, os ciberataques e a corrupção a uma escala quase inimaginável. Tudo isto faz parte deste livro. Faz tudo parte deste brutalíssimo ditador.

    Título

    ​Aniquilação

    Autor

    ​Michel Houellebecq

    Editora

    ​Alfaguara

    ​Sinopse

    ​Dos pátios atulhados de lixo e ratazanas em Leningrado, onde cresceu, às guerras na Síria, Geórgia e na Ucrânia. Esta é a história de Vladimir Putin. Uma história imperdível ­- e genialmente ilustrada – para quem quer perceber de onde vem e o que quer aquele que hoje é um dos homens mais poderosos do mundo: como chega à KGB, como cresce dentro dos serviços secretos russos, como forma um cartel de crime à sua volta e como vê o seu nome envolvido nos brutais assassinatos de Boris Nemtso (opositor político), Anna Politkovskaya (jornalista) e do ex-espião Alexander Litvinenko. A Rússia de Putin – A ascensão de um ditador é mais um retrato gráfico brilhante de Darryl Cunningham, o premiado ilustrador britânico para quem Putin só tem uma ambição na Ucrânia: restabelecer a época dourada do poderio soviético. “O medo foi assimilado e todos são agora seus inimigos”. Os envenenamentos, as influências políticas mundiais, a relação com um Ocidente – que, até à invasão da Ucrânia, fez vista grossa ao que se passava na Rússia -, as interferências do Kremlin nas eleições norte-americanas, os ciberataques e a corrupção a uma escala quase inimaginável. Tudo isto faz parte deste livro. Faz tudo parte deste brutalíssimo ditador.

    Título

    ​Aprenda a Influenciar Pessoas

    Autor

    ​João Fernando Martins

    Editora

    ​Manuscrito

    ​Sinopse

    ​​Quantas vezes deu por si frustrado porque não conseguiu que o seu chefe o ouvisse? Ou que os seus amigos compreendessem o seu ponto de vista? Quantas vezes sentiu dificuldade em comunicar com a sua companheira ou companheiro? Influenciar os outros é exercer influência sobre alguém para que essa pessoa faça o que pretendemos – e sinta que é a melhor opção. É uma competência, treina-se e pode ser aprendida em cinco passos. João Fernando Martins, psicólogo clínico e consultor em Análise Comportamental e Persuasão, mostra-lhe neste livro como a ciência da persuasão pode mudar a forma como é ouvido e se faz ouvir. – Perceba como o que faz de nós humanos pode influenciar a tomada de decisão.- Saiba como o local onde se encontram e o timing certo podem mudar tudo.- Não descarte a importância da comunicação não verbal.- E nunca se esqueça: o que dizemos (e como o dizemos!) é muito relevante.

    Título

    ​As Verdes Colinas de África

    Autor

    ​Ernest Hemingway

    Editora

    ​Livros do Brasil

    ​Sinopse

    ​Ao longo de cerca de dois meses, Ernest Hemingway e a sua mulher Pauline Pfeiffer viajaram pela África Oriental, participando num safari pela região do Serengueti. Publicado originalmente em 1935, As Verdes Colinas de África é o testemunho dessa aventura. Aqui, o escritor reflete sobre o fascínio da caça, o deslumbramento pela paisagem africana e o necessário respeito do homem pela beleza e glória daquele território selvagem, permanentemente acossado por um invasor estrangeiro. Entre perseguições a leões, Búfalos, rinocerontes e aos fascinantes cudos, antílopes de listas brancas que Hemingway deseja mais do que qualquer outro animal, este é o registo de uma experiência profundamente íntima, mas também um marco excecional da grande literatura de viagens.

    Título

    Como Poeira ao Vento

    Autor

    ​Leonardo Padura

    Editora

    ​Porto Editora

    ​Sinopse

    O dia começa mal para Adela, jovem nova-iorquina de ascendência cubana, ao receber um telefonema da mãe. Há mais de um ano que as duas estão zangadas, porque não só Adela se mudou para Miami, como vive com Marcos, um jovem havanês recém-chegado aos Estados Unidos, por quem se perdeu de amores e que a mãe rejeita pelas suas origens. Como se isso não bastasse, nesse dia Marcos mostra a Adela uma fotografia sua em criança com o grupo de amigos dos pais, autodenominado o Clã. E quando, entre aqueles rostos, Adela reconhece um que lhe é particularmente familiar, o seu mundo ameaça ruir.

    Como poeira ao vento é a história de um grupo de amigos que sobreviveu a um destino de exílio e dispersão em Barcelona, no extremo Noroeste dos Estados Unidos, em Madrid, em Porto Rico, em Buenos Aires… Que lhes fez a vida, a eles que se amavam tanto? Que aconteceu com os que partiram e com os que decidiram ficar? Como é que o tempo passou por eles? Tornarão a uni-los o magnetismo do sentimento de pertença e a força dos afetos? Ou serão as suas vidas como poeira ao vento?

    Título

    ​Independência

    Autor

    ​Javier Cercas

    Editora

    ​Porto Editora

    ​Sinopse

    ​Como enfrentar quem na sombra maneja o poder? Como vingar-se de quem tanto mal lhe fez? Volta Melchor Marín. E volta a Barcelona, aonde foi chamado para investigar um caso delicado: a presidente da Câmara está a ser chantageada com um vídeo sexual. Com um sentido inflexível de justiça e uma integridade moral inabalável, Melchor deverá desmontar uma extorsão cujas intenções não são claras. Para tal, terá de penetrar no mais fundo dos círculos do poder, onde reinam o cinismo, a ambição sem escrúpulos e a brutalidade da corrupção. E é nesse palco que este romance absorvente e selvagem, povoado de personagens memoráveis, se converte num retrato demolidor da elite político-económica de Barcelona, mas, sobretudo, num poderoso grito contra a tirania dos detentores do dinheiro e os amos do mundo.

    Título

    ​Lisboa – Indo e Vindo

    Autor

    ​Filomena Marona Beja

    Editora

    ​Parsifal

    ​Sinopse

    ​​O lado menos conhecido de uma cidade secular, cosmopolita e com muitas histórias por contar.Lisboa – Indo e Vindo é um elogio da autora à cidade em que nasceu. A partir de um bairro, de uma lenda, de um acontecimento, reconstrói ambiente perdidos e recupera histórias que o tempo não apagou. Assim, assistimos aos passeios de Isabel de Aragão pelos campos de Alvalade ou às aulas da Esfera no antigo Colégio de Santo Antão, ficamos a conhecer a história do famoso poço do bispo ou recordamos a obra de Duarte Pacheco na cidade. São também crónicas em que o rio Tejo está presente, sempre, tal como o bulício dos cafés históricos, das idas ao Jardim Zoológico da nossa infância ou das ruas com gente que passeia ou corre por uma cidade com uma luminosidade singular. Com um característico e original estilo, Filomena Marona Beja presta nesta obra um tributo literário maior a uma cidade múltipla, secular, cosmopolita, e, sobretudo, com muitas histórias ainda por contar – Lisboa.

    Título

    ​O Cavalo de Sol

    Autor

    ​Teolinda Gersão

    Editora

    ​Porto Editora

    ​Sinopse

    ​Um romance situado na 3.ª década do século XX, quando a heterossexualidade era reprimida por toda a espécie de convenções, e a homossexualidade tabu social e crime perante a lei.Uma escrita visceral, acutilante e sensualíssima, em que o corpo avança, num ritmo progressivamente acelerado, para a descoberta de si próprio e do mundo.

    Título

    ​O Comboio das Bicicletas

    Autor

    ​Lara Xavier (texto) e Ana Granado (ilustração)

    Editora

    ​Lilliput

    ​Sinopse

    ​A Sara e os amigos vão todos os dias de bicicleta para a escola, acompanhados pelos pais. E são muitos! Tantos que formam um autêntico comboio. Um comboio de bicicletas! Além de ser um transporte amigo do ambiente, também é divertido. Assim podem observar a natureza, como as árvores que tanto mudam em todas estações, as ruas e os vizinhos que vão encontrando pelo caminho. Este é um livro que vem falar de muitos temas importantes. a preocupação com o ambiente, as regras de trânsito, os locais em que os ciclistas podem circular ou o tipo de manutenção que se deve fazer.  Não deixa qualquer dúvida, são inúmeros os benefícios que uma boa pedalada te traz logo pela manhã!

    Título

    ​O Sonho Americano de Ivy Lin

    Autor

    ​Susie Yang

    Editora

    ​Porto Editora

    ​Sinopse

    IVY LIN É UMA LADRA E UMA MENTIROSA,

    MAS NINGUÉM O DIRIA.Criada nos arredores de Boston, Ivy aprende com a avó a tirar partido do seu ar inocente para realizar pequenos furtos em vendas de garagem e lojas de artigos usados. E, para além de bem-sucedida na arte de viver de expedientes, consegue atrair a atenção de Gideon Speyer, o menino de ouro de uma família privilegiada. Quando a mãe de Ivy descobre, manda-a de volta para a China, para fortalecer os seus valores ancestrais.Anos depois, já de regresso a Boston, Ivy dá de caras com Sylvia Speyer, a irmã de Gideon, e sente que o destino lhe está a oferecer uma segunda oportunidade. Aos poucos, Ivy consegue insinuar-se na vida de Gideon e do seu clã, passando a ser presença assídua em jantares chiques e em viagens de fim de semana à sua casa de férias na costa. Mas, quando está prestes a alcançar tudo aquilo que sempre desejara, surge um fantasma do passado, que ameaça a vida perfeita que ela tão arduamente conquistou.Repleto de reviravoltas surpreendentes e explorando de forma original as questões de cultura e de classe, O sonho americano de Ivy Lin dá-nos a conhecer o lado sombrio de uma mulher que procura o sucesso a qualquer custo.

    Título

    ​Palestina – Uma Biografia

    Autor

    Rashid Khalidi

    Editora

    ​Ideias de Ler

    ​Sinopse

    UM DOS GRANDES LIVROS SOBRE A QUESTÃO ISRAELO-PALESTINIANA «Em nome de Deus, que a Palestina seja deixada em paz.»É desta forma que o presidente da câmara de Jerusalém termina a carta enviada em 1899 a Theodore Herzl, pai do movimento sionista, onde explicava que a Palestina tinha habitantes nativos e advertia para os perigos que se aproximavam. E é com este relato que Rashid Khalidi, o maior historiador do Médio Oriente nos Estados Unidos e sobrinho-neto do autor da dita carta, inicia a sua narrativa sobre os palestinianos e a guerra contra eles travada.Original, envolvente e marcante, Palestina – Uma Biografia cruza eventos históricos, materiais de arquivo nunca antes explorados e relatos de gerações, tratando de forma simultaneamente sóbria e emotiva os factos de um confronto trágico entre dois povos que reivindicam o mesmo território.Esta não é uma crónica de vitimização, uma tentativa de branquear os erros dos líderes palestinianos nem a negação da emergência de movimentos nacionalistas de ambos os lados. É, antes, uma nova e esclarecedora visão de um conflito com mais de um século, uma história de colonização e de resistência de um povo que não abdica de existir.

    «Uma obra fascinante e original, a primeira a explorar a guerra contra os palestinianos com base numa profunda imersão na sua luta…» Naom Chomsky

    Título

    ​Paraíso

    Autor

    ​Abdulrazak Gurnah

    Editora

    Cavalo de Ferro

    ​Sinopse

    ​Nascido numa pequena povoação da África Oriental, Yusuf é vendido aos doze anos pelo seu pai ao rico comerciante Aziz, a quem se habituara a chamar tio. Na sua nova vida como escravo, Yusuf é chamado a participar numa perigosa expedição comercial ao interior do continente. Uma verdadeira viagem de iniciação pelo coração das trevas ao longo de uma paisagem bela e selvagem, que o levará a descobrir um território povoado por tribos hostis, africanos muçulmanos, comerciantes indianos e agricultores europeus, um paraíso ameaçado, em vésperas da Primeira Guerra Mundial. Aliando romance de formação, ficção histórica e literatura de viagens num mosaico de mitos, sonhos, tradições bíblicas e corânicas, Gurnah descreve as feridas vivas de um continente ainda virgem em vias de ser colonizado. Finalista do Booker Prize e do Whitbread Award, Paraíso, originalmente publicado em 1994, foi o romance que projectou Abdulrazak Gurnah para o palco internacional, consagrando-o como um dos grandes escritores da actualidade.

    Título

    ​Revolução Portuguesa 1974-1975

    Autor

    ​Vários

    Editora

    ​Tinta da China

    ​Sinopse

    25 DE ABRIL: A MAIS RECENTE HISTORIOGRAFIA SOBRE O PROCESSO REVOLUCIONÁRIO QUE NOS DEU A DEMOCRACIA

    Em Março de 2022, a duração da Democracia ultrapassou a da Ditadura. Implantada por um golpe militar em 28 de Maio de 1926, seria um outro movimento militar que, ao fim de 48 anos, a 25 de Abril de 1974, haveria de derrubar o Estado Novo e abrir as portas à Revolução Portuguesa de 1974‑1975 e à Democracia institucionalizada pela Constituição de 1976.Este livro reúne as mais recentes contribuições historiográficas sobre as várias vertentes do processo revolucionário: as origens do golpe militar e o desenrolar dos principais confrontos políticos, o poder popular, a Reforma Agrária, os impactos económicos, a descolonização, a política externa e até a canção de protesto, cruzando a reflexão de intervenientes directos nos acontecimentos com a pesquisa dos vários investigadores.

    COM TEXTOS DE: Fernando Rosas, Maria Inácia Rezola, Manuel Loff, Albérico Afonso Costa, Fernando Oliveira Baptista, Ricardo Noronha, Hugo Castro, Pezarat Correia, Pedro Aires Oliveira

    Título

    ​Tudo Pode Ser Roubado

    Autor

    ​Giovana Madalosso

    Editora

    ​Tinta da China

    ​Sinopse

    Apesar de ser pouco ambiciosa, muito poupada e uma trabalhadora irrepreensível, a garçonete de um conhecido restaurante de São Paulo aproveita uma rotina de sedução e encontros casuais para roubar, com inteligência estratégica, acessórios e roupas de marca, que vende depois a uma loja de luxo de artigos em segunda mão.O esquema é pouco arriscado e o objectivo é simples — juntar dinheiro para a entrada de um apartamento. Mas tudo se complica a partir do momento em que um estranho de chapéu entra no restaurante e propõe um crime irrecusável, que envolve um solitário professor universitário e a valiosa primeira edição do clássico O Guarani.Neste jogo de consequências imprevisíveis, sobressaem as personagens que, entre as sombras e os ruídos da cidade imensa, são tão enganadoras quanto enganadas.

    Título

    ​Uma Família de Mentirosos

    Autor

    ​E. Lockhart

    Editora

    ​ASA

    ​Sinopse

    ​Contar esta história será difícil. Na verdade, não sei se a consigo contar sem mentir, mas vou tentar.É que fui uma mentirosa toda a vida, sabem.Não é invulgar na nossa família. O verão chegou e a família Sinclair está de volta a Beechwood Island. Esperam dias de sol e mar, tardes a velejar, jantares extravagantes, festas pela noite dentro… e, quem sabe, primeiros amores, novas experiências, grandes descobertas. Mas este verão será diferente de todos os outros. Uma tragédia vai mudar tudo, revelando quem irá ceder sob a pressão e quem irá defender para sempre as regras do clã.Uma Família de Mentirosos é a tão aguardada prequela do bestseller Quando Éramos Mentirosos. Nesta viagem à ilha de Beechwood, vinte e sete anos antes da história original, vamos conhecer os segredos de outro verão e de outra geração. Bem-vindo de volta à família Sinclair.Eles foram sempre mentirosos.

    Título

    ​Uma Noite de Agosto

    Autor

    ​Victoria Hislop

    Editora

    ​Porto Editora

    ​Sinopse

    ​Vinte e cinco de agosto de 1957. Por fim, uma cura foi encontrada e a ilha de Spinalonga fecha a colónia de leprosos. Para muitos, como Maria Petrakis, esta é uma ocasião de júbilo. Para outros tantos, como a sua irmã Anna, o momento é de angústia. Anna está casada com Andreas Vandoulakis, mas mantém uma relação com Manolis, primo do marido e antigo noivo da irmã, que deixou Maria quando esta foi diagnosticada com lepra. Agora, Anna teme que Maria queira Manolis de volta. Mas, antes disso, Andreas descobre que foi traído, e um momento de violência tem consequências devastadoras para todos, marcando-os de forma trágica.No rescaldo da rutura das duas famílias, a questão de como retomar a normalidade torna-se premente. O estigma e o escândalo precisam de ser enfrentados e, de alguma forma, os atingidos terão de aprender a construir um futuro diferente sobre as ruínas do passado.Victoria Hislop responde finalmente aos pedidos de milhares de leitores ansiosos por saberem que rumo levaram as vidas dos sobreviventes daquela inesquecível noite de agosto…

    Título

    ​Veva

    Autor

    Joana Leitão de Barros

    Editora

    ​Oficina do Livro

    ​Sinopse

    ​Genoveva de Lima Mayer Ulrich é uma mulher excêntrica que passeia o seu leopardo à trela pelas ruas de Lisboa dos anos de 1920. Organiza festas exuberantes na sua casa das Amoreiras, viaja sozinha pelo mundo, persegue caça grossa em África e convive com a alta aristocracia europeia ou até mesmo a família real britânica. Casada com o influente e sóbrio Ruy Ulrich, por duas vezes embaixador em Londres, é também novelista e dramaturga, uma intelectual que publica opinião e discorre sobre sociologia e política internacional. Opositora do nazismo e do fascismo italiano, proclama a sua anglofilia aos microfones da BBC. Gosta de provocar e embaraçar Salazar. Neste romance histórico sobre a vida atribulada de Veva de Lima, com recurso a algumas das notas e cartas mais íntimas da aristocrata, Joana Leitão de Barros conduz-nos numa viagem apaixonante ao longo do século XX, através das causas, dos amores, das desilusões e das tragédias de uma mulher portuguesa invulgarmente surpreendente; uma grande senhora do seu tempo que quebrou padrões e desafiou tabus como ninguém nesse Portugal bem-comportado que conviveu, estupefacto, com a personalidade fascinante de Veva.

  • Uma democracia de quase meio século e a sua (até agora) única mulher primeira-ministra

    Uma democracia de quase meio século e a sua (até agora) única mulher primeira-ministra

    Mais de um terço da actual população portuguesa ainda não era nascida quando a primeira mulher, assumiu a chefia de um Governo democrático. Foi apenas por 100 dias, num Executivo de iniciativa presidencial, mas constitui ainda hoje um marco indelével na História de Portugal, talvez a merecer sucessoras. O Museu da Presidência da República mostra, até finais de Agosto, “retratos” da vida singular de Maria de Lourdes Pintasilgo, numa exposição evocativa que deve ser visitada não apenas por quem a quiser ver, mas sobretudo para todos aqueles que a devem ver: todos os portugueses.


    “Não foi Presidente da República, mas é quase como se tivesse sido”. Exageros à parte, embora pudesse mesmo ter sido, foi com estas as palavras, em “testemunho suspeito”, como confessou, que Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou na sexta-feira passada uma exposição no Museu da Presidência da República dedicada à única mulher portuguesa que ocupou a função de primeira-ministra: Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004).

    Foi no dia 1 de Agosto de 1979 que Maria de Lourdes Pintasilgo fez História ao tomar posse como a primeira mulher a ocupar o máximo cargo governativo, mas essa foi, na verdade, uma marca indelével da sua vida. “Em que é que não foi a primeira?”, indagou Maria Antónia Pinto Matos, directora do Museu da Presidência, no discurso de inauguração.

    De facto, mesmo tendo sido primeira-ministra num Governo de iniciativa presidencial durante cerca de uma centena de dias – ou seja, Ramalho Eanes, então presidente da República, nomeou-a por sua iniciativa, após a demissão de Mário Soares, até às eleições legislativas de 2 de Dezembro de 1979, que viriam a ser ganhas por Sá Carneiro –, Maria de Lourdes Pintasilgo esteve sempre um passo à frente do seu tempo.

    Embora liderando um Governo de gestão, durante o seu mandato ainda se criou o Número de Contribuinte Fiscal, se reforçou a criação de diversas Instituições de Solidariedade Social, se implementou o Serviço Nacional de Saúde e ainda se estabeleceu a escolaridade obrigatória.

    Licenciada em Engenharia Químico-Industrial aos 23 anos, pelo Instituto Superior Técnico – num tempo em que mulheres eram uma raridade em curso de Engenharia –, trabalhou como investigadora na Junta de Energia Nuclear e, mais tarde na CUF.

    Mas foi como “católica progressista”, com a sua “intervenção social em causas sociais, ambientais e das mulheres, [que] continuam actuais”, conforme salientou a directora do Museu da Presidência, que Maria de Lourdes Pintasilgo mais se destacou.

    Durante o Estado Novo, ainda recusou ser deputada na Assembleia Nacional – de partido único –, mas aceitou ser procuradora da Câmara Corporativa, uma espécie de órgão consultivo, mas sem pendor político.

    Com boas relações pessoais com Marcelo Caetano – antes da queda do regime com o 25 de Abril – nos primeiros anos da década de 70 ainda foi consultora na Secretaria de Estado do Trabalho e Previdência e presidiu ao Grupo de Trabalho para a Participação da Mulher na Vida Económica e Social.

    Chegou a integrar a delegação portuguesa à Assembleia Geral das Nações Unidas, proferindo, entre 1971 e 1972, diversas intervenções, entre as quais sobre o direito dos povos à auto-determinação, a condição feminina e a liberdade religiosa.

    Com a democracia, surgiu a sua experiência governamental. Antes das primeiras eleições legislativas da III República, esteve nos diversos Governos Provisórios. No primeiro assumiu o cargo de secretária de Estado da Segurança Social. No segundo e terceiro foi ministra dos Assuntos Sociais.

    Em 1975, já com Portugal a ser governado por um Governo Constitucional, Maria de Lourdes Pintasilgo foi membro do Conselho de Imprensa, e também passou a ocupar a presidência da Comissão da Condição Feminina.

    Mas outros voos se seguiram. Em Agosto de 1975 foi nomeada embaixadora junto da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), onde permaneceu até ser chamada por Ramalho Eanes para chefiar o executivo em 1979. Foi, aliás, também a primeira portuguesa a ocupar essas funções.

    Ainda na década de 80 tentou mesmo chegar à Presidência da República, concorrendo às eleições de 1986, as mais concorridas de sempre e ganhas apenas à segunda volta por Mário Soares. Sem máquinas partidárias de apoio, recolheu na primeira volta apenas 7,36% dos votos, ficando atrás de Mário Soares, Freitas do Amaral e Salgado Zenha.

    Embora tenha apoiado a criação do Partido Renovador Democrático (PRD), uma força partidária apadrinhada por Ramalho Eanes – que chegou a 45 deputados nas eleições de 1985 –, aproximar-se-ia posteriormente ao Partido Socialista, chegando a ser eleita eurodeputada independente nas eleições para o Parlamento Europeu em 1987 e 1989.  

    E é para todos estes e muitos outros tempos da antiga primeira-ministra que a exposição “Maria de Lourdes Pintasilgo – Mulher de um Tempo Novo” transporta os visitantes. Nos expositores, há um pouco de tudo: artefactos, objectos, livros, fotografias e documentos, que se unem para (re)contar a sua história.

    Dividida em dois pólos, no primeiro estão também incluídas as “memórias” das eleições presidenciais que viria a disputar em 1986. Aí estão expostos, por exemplo, além de material da campanha, parte dos seus apontamentos, escritos à mão.

    O segundo pólo, por outro lado, é mais pessoal e intimista. Ali vislumbra-se a sua infância nos brinquedos com que cresceu, nas fotografias de família, na sua colecção de Santas Anas. Descobre-se aí a mulher, a militante feminista, a cristã que trouxe o Graal – um movimento internacional de mulheres cristãs que começou na Alemanha – para Portugal, e a sua obra.

    Nesta exposição, as várias dimensões de Maria de Lourdes Pintasilgo não cabem em rótulos simplistas. Pelo contrário, desafiam-nos, o que é evidente, desde logo, na aparente contradição entre a sua vincada fé católica e o feminismo que defendia, ou a sua tendência política à esquerda.

    Mas há muitos aspectos que a exposição não mostra, mas que apenas se pode intuir, ou saber, por aquilo que contam os que a conheceram. Durante a cerimónia de abertura, Marcelo Rebelo de Sousa frisou a ausência de “tiques populistas” em Maria de Lourdes Pintasilgo, acrescentando que “não era plástica”.

    Admitindo ter “saudades das conversas intermináveis” que mantiveram, o presidente da República defendeu ser “um grande dever cívico recordar Maria de Lourdes Pintasilgo”, que “vivia a vida com uma intensidade ilimitada”.

    Para conhecer a vida e obra de Maria de Lourdes Pintasilgo, o PÁGINA UM recomenda o documentário de Graça Castanheira, que pode ser visualizado na RTP Arquivos.

    Fotos: Pedro Matias / Museu da Presidência


    Maria de Lourdes Pintasilgo. Mulher de um Tempo Novo

    EXPOSIÇÃO | 14 mai. – 31 ago. ’22 | Viveiros do Jardim da Cascata do Palácio de Belém | Exposição permanente do Museu da Presidência da República | Horário: 10h-13h | 14h-17h, todos os dias, com exceção de segunda-feira e da manhã do terceiro domingo de cada mês | Entrada livre

  • Poeta angolano Abreu Paxe em encontro sobre escrita literária

    Poeta angolano Abreu Paxe em encontro sobre escrita literária


    Realiza-se esta tarde, pelas 17:00 horas (de Lisboa), mais uma sessãodo seminário DA ESCRITA LITERÁRIA 2022, um conjunto de debates com escritores (em especial, de língua portuguesa), uma organização com a chancela de diversas instituições académicas e culturais nacionais e estrangeira, e que conta com o apoio do PÁGINA UM.

    A sessão de hoje conta com a participação especial do poeta angolano Abreu Paxe, nascido em 1969 no vale do Loge, município do Bembe, tendo-se licenciado no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), em Luanda, na especialidade de Língua Portuguesa, onde é agora docente de Literatura Angolana.

    Abreu Paxe

    A sessão pode ser acompanhada via ZOOM.

    Em parceria como o Centro de Formação de Escolas António Sérgio, este Seminário encontra-se certificado como Ação de Formação de Curta Duração (ACD), ao abrigo do Despacho 5741/2015 de 29 de maio, para efeitos de progressão da carreira docente, designadamente de educadores de infância, docentes dos ensinos básico e secundário e de educação especial. A inscrição deve ser feita aqui.

    Caso um assistente queira um certificado de participação para fora de Portugal (onde esta certificação não tem efeitos na carreira docente), bastará que o indique na inscrição.

    O PÁGINA UM associou-se ao seminário DA ESCRITA LITERÁRIA 2022, um conjunto de debates com escritores (em especial, de língua portuguesa), uma organização com a chancela de diversas instituições académicas e culturais nacionais e estrangeiras, a saber: Universidade Católica, Universidade Aberta, Faculdades de Letras e de Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior, Universidade Complutense de Madrid, Universidade do Minho, UNINT-Università degli Studi Internazionali di Roma, Universidade Fernando Pessoa, Universidade Lusófona, Univeridade da Madeira, Universidad Libre de Infantes, Universidade de Santiago de Compostela, Associação Portuguesa de Escritores, Centro Cultural Eça de Queirós, Centro de Estudos Ferreira de castro, Centro de Estudos Regianos, Centro de Estudos Graal (USC), CISESG, CISLE, IECC – Instituto Europeu de Ciências da Cultura – Padre Manuel Antunes, Academia Lusófona Luís de Camões (SHIP), Instituto Fernando Pessoa (SHIP), Letras Com(n)Vida (plataforma inter-institucional), Observatório da Língua Portuguesa e portal TRIPLOV.

    O PÁGINA UM também irá disponibilizar, durante as próximas semanas, as gravações de uma selecção criteriosa de eventos já realizados, integrados em ciclos de literatura, promovidos em conjunto pela Universidade de Lisboa e a Universidade Fernando Pessoa (Porto).