Categoria: Cultura

  • Os comics: da strip ao book

    Os comics: da strip ao book


    Observemos um dos processos básicos da criação da banda desenhada a partir das suas formas mais simples que deram origem ao termo mais universalmente adoptado no mundo para a designação desta forma gráfico-narrativa: comic ou comic strip, como os americanos lhe chamaram no momento inaugural em que ela era usada e difundida em tiras nos jornais.

    No fundo, segundo Jolles (1972), trata-se de um embrião mítico, de acordo com o qual o “homem pede ao universo e aos seus fenómenos que se deixem compreender” (1972: 81) ou enigmático, que ele entende ser com a forma que “apresenta a questão” à qual o “mito ‘dá’ a resposta” (1972: 105). No sentido que Jolles dá a estes termos, eles são apresentados de tal modo que o cómico desponta no desenlace e na revelação típicos do conto, no qual “um facto ou um incidente chocam de tal maneira que que temos a impressão de um acontecimento real e que esse incidente nos parece, por si só, mais importante do que as personagens que o vivem” (1972:183).

    person holding opened book

    Contudo, no caso do cómico surgem ligados ao riso ou mesmo à paródia sob forma de uma reviravolta ou peripécia que altera o curso dos acontecimentos, de maneira inesperada, e modifica o sentido da acção agir das personagens.

    No exemplo apresentado acima, podemos entender a sua produção de comicidade acompanhando a proposta de Charles Mauron, referente ao riso e à sua relação com uma situação, ou seja, ao modo como se processa a “diferença de potencial entre duas representações.

    A primeira é a visão prevista como provável do que se seguirá, segundo a vamos construindo, em cada minuto, mais ou menos consciente e que tende sempre a formar-se e preside à nossa atitude” (1998: 20). Assim aparecem, na gravura as evocações relacionadas com um projecto (o apetite), emblematicamente evocado nas gravuras do cabeçalho, de um adolescente com a mãe, à esquerda, e um jovem com a namorada ou noiva, à direita, que fazem escolhas em listas, que podem fazer parte de sonhos ou fantasias.

    As imagens inferiores vão fazendo o mesmo uso do projecto, em fases de duas filas de dois quadrados cada, com “a visão prevista” relativa à vontade de comer. A primeira série é, em si mesma a revelação do final feliz daquilo que Danny pensa, ou como diria Mauron, “está carregada de afectos a formarem-se, mas faz-se acompanhar também de uma certa estimativa do esforço para adaptar-se à nova realidade” (1998: 20), o que é evidente na figura inchada que se vêm objecto de admiração na sua rotundidade ─ a qual, pelo exagero acaba por lançar a suspeita dos inconvenientes não considerados.

    Convenhamos, com o autor que aqui acompanhamos, que “esta espécie de previsão implica uma mobilização da atenção, do interesse e, em geral da energia psíquica disponível de forma imediata” e que, “uma representação deste tipo se forma, embora de modo mais vago, no nosso espírito quando consideramos como exemplo o que se passa com os outros” (1998: 20)

    Os quadradinhos desenhados do comic, apresentam a representação da personagem mas, em simultâneo oferecem-se-nos como representações, e, neste caso, o “acontecimento real” que seria a confrontação do nosso devaneio com o real que se nos oferecesse, aparece como representação “da estimativa” da personagem, que aparece a corrigir o devaneio, e revelando-se como o seu contrário, ao apreserntar a tremenda indisposição de Danny depois de comer com sofreguidão a refeição real que conseguiu obter. (cf. Mauron, 1998: 20-21) 

    No entanto, o entendimento do cómico como aspecto do chiste (a que Eça, frequentemente, se referia como pilhéria,[1] mas que poderíamos traduzir por facécia, em gosto mais clássico, evocando a facetia) cuja a melhor tradução para o termo freudiano witz, que deve estar na origem do termo inglês wit, com o qual o cómico, nos comics, acaba por se entrosar de modo quase inextricável, parece-nos de ponderar. Como diz o fundador da psicanálise:

    “Parece-nos que os chistes, ordinariamente considerados como uma subespécie de cómico, oferecem-nos bastante peculiaridades para serem atacados diretamente; assim evitamos sua relação com a categoria, mais inclusiva, do cômico, enquanto isso foi possível, embora não tenhamos deixado de colher, en passant, algumas sugestões que podem lançar luz sobre o cômico”. (1969: 177)

    A nossa ideia, neste ponto, é que o cómico, podendo apresentar dimensões onde o mecanismo da revelação súbita possa parecer independente, acaba por denunciar, em muitas características o trabalhar do dinamismo do chiste. Regressando ainda a Freud, vejamos: “o cómico comporta-se diferentemente dos chistes. Pode contentar-se com duas pessoas: “a primeira que constata o cómico e a segunda, em quem se constata. A terceira pessoa, a quem se conta a coisa cómica, intensifica o processo, mas nada lhe acrescenta” (1969: 277).

    Ora, esta “terceira pessoa”, no funcionamento dos processos artísticos, performativos e de representação é aquela a quem o procedimento do cómico se destina e, o efeito, como acto poético, se comunica, “é indispensável para a completação do processo de produção de prazer” (277).

    woman in black, blue, and red shirt lying on surface while reading magazine

    Assim a terceira pessoa, no caso das produções poéticas, que se apresentam como integráveis no género cómico, ou fazendo parte da criação mais recente e afeita ao gosto popular, toma o lugar de leitor, espectador ou visualizador, uma vez que “a segunda pessoa do chiste”, está no lugar da entidade ficcionalizada,  já que nos chistes, jocosidade ou trocadilho  a segunda pessoa pode estar ausente, “excepto quando se trata de um chiste tendencioso, agressivo” (1969: 277) podendo nós encontrar casos limites fronteiriços dessa utilização em discursos poéticos como as cantigas de escárnio e maldizer, ou nas diatribes de cuidadosa elaboração retórica “Um chiste produz-se, o cómico constata-se ─ antes de tudo, nas pessoas; apenas por uma transferência subsequente, nas coisas, situações etc.” (1969: 277). Ora, ainda segundo Freud, no mesmo texto:

    “O tipo de cômico mais próximo dos chistes é o ingénuo. Como o cómico em geral, o (cómico) ingénuo é ‘constatado’ e não ‘produzido’, como o chiste. De facto, o ingênuo não pode absolutamente ser confeccionado, enquanto no interior do cómico puro devemos levar em conta o caso em que alguma coisa é tornada cómica – a evocação do cómico. O ingénuo deve originar-se, sem que tomemos parte nisso, nos comentários e atitudes de outras pessoas, que assumem a posição da segunda pessoa no cómico ou nos chistes” (1969: 279).

    Não é preciso um grande esforço para o ver aparecer na comic strip que se segue, Mutt & Jeff  de Al Smith, na linha herdada de Bud Ficher em que um ponto de vista perfeitamente infantil, acerca do peixe dourado de aquário como mecanismo de agitação do líquido  para dissolver o açúcar. O gesto, na sua inverosimilhança, é bem ilustrativo de como a lógica infantil prevalece, sobre a dos adultos que a praticam e aceitam.

    books on black wooden shelf

    Alguns estudiosos, na cultura anglo-americana,  consideram esta última nuance central, no chiste, designando o fenómeno por wit, que pode significar “inteligência” mas, com mais pertinência, “ingenuidade” ou “raciocínio rápido” ou seja desde a “divertida inteligência verbal” até à capacidade de “invenção” (a ‘inventio’ da sabedoria retórica) através da qual “os escritores podem descobrir apropriadas figuras e conceitos, na percepção e compreensão de semelhanças entre coisas aparentemente dissemelhantes” (cf Baldick, 1990: 242; entrada WIT).

    A historieta comic, “à semelhança” por exemplo “da obra teatral, como toda a obra artística apresenta um universo” que nos é “necessário desde esse instante” e por um período variado de tempo, desde os poucos minutos da leitura de uma tira, ou de um pequeno conjunto delas, como vimos acima, até à hora e meia de um filme padrão, podendo ser alargada para quase o dobro, nalguns filmes modernos, ou em peças de teatro (cf. Souriau, 1950: 15).

    Mas pode ser bem mais longo, como acontece no romance, na novela de aventuras, ou, mais modernamente, nos episódios narrativos comuns às televisões. É claro que o quadro clássico comum à arte ocidental, pelo menos desde o renascimento como “obra pictórica também tem a sua duração” embora mais distanciada da figura humana encarnada que o teatro nos dá e o cinema simula com muita plenitude em duas dimensões.

    No quadro, ou no desenho, ou mesmo na escultura, há realização “de um mundo, pela instrumentação de uma presença concreta” seja “uma tela coberta de pigmentos coloridos” seja “uma pedra ou um madeiro, talhados nas três dimensões do espaço” ou, para outro, “a atmosfera ritmicamente agitada”, ou, ainda “as folhas impressas” (cf. Souriau, 1950: 17).

    assorted photos on white table

    Porém, a duração varia infinitamente: no teatro “uma duração real, à qual é dada uma certa feição”, mas, obra pictórica “o jogo é quase livre”, a contemplação é feita segundo o “nosso capricho”. Apenas as outras artes, narrativas, literárias ou não, afastam-se da pintura e aproximam-se do teatro. Mas uma desenvolvendo-se numa forma substancial totalmente diferente, a palavra apenas, outra desenvolvendo duplicações visuais de pessoas reais, e misturando essa figuração humana, com a dimensão verbal, mas numa matéria distinta, a língua oralmente modulada e a sonorização similares ao teatro (cf. Souriau, 1950: 19).

    Diz-nos Montandon que, o “jogo de palavras assim como a história cómica, são formas breves, particularmente apreciadas pelos leitores de jornal, e aparecem, nestes, nos cantos das páginas […] (sublinhados nossos). Na sua opinião estas curtos narrativas, que acompanham, muitas vezes, relatos jornalísticos de intenção informativa, e vontade documental, por vezes de forte rigor factual, “são formas trivializadas, pelo conteúdo ou pela técnica […] ” entendendo que a sua técnica pode ser descrita como “um termo polissémico do qual dois termos são actualizados em simultâneo” que podem ser o “equívoco em que uma palavra tem dois sentidos”, ou “uma legião de outras figuras: Um sentido próprio e outro figurado” ou as “homonímias”, rimas, rimas “holorimas (homofonia total entre dois versos…”, o “calembour simples ou complexo” a “passagem do concreto ao abstracto” o “provébio falacioso”, a “antanáclase, que é a retomada da mesma palavra mas de modo falacioso”, que pode ser “insólita”, “gozona” ou burlesca” (Montandon, 1992: 129) e mais algumas a   em que o trocadilho aparece mas que não vamos apresentar, exaustivamente.

    Bud Fisher 1913

    Na banda desenhada, desde os tempos mais antigos de publicação periódica em jornais e revistas, todos estes elementos são retomados, ou trabalhados de forma distinta: a figura humana passa a traços pictóricos, o tempo é modulado pela sucessividade das imagens sequenciais, e a palavra é mantida associada a sugestão onomatopaica.   

    O desenrolar de tais programas verifica-se, na comic strip apresentando com brevidade os traços acima identificados, sendo colocada na última imagem a resposta ou revelação paradoxal se apresente quase sobe a forma de um trocadilho ou dito espirituoso, elemento de gosto que os românticos tinham relegado para uma posição de inferioridade aceitando-os apenas nos modelos da diversão literária do epigrama, que os modernistas de todas as vertentes, cultivaram sob a concepção de ironia.

    Não é de estranhar que o termo tenha assentado plenamente nesse tipo de pequena narrativa divertida ou histoire drôle, que, de Rabelais a Jarry, passando por Balsac, fizeram as delícias do espírito picardo (amusant, bizarre, cocasse, comique, coquin, curieux, désopilant, divertissant) encheu a cultura popular francesa do início do século XX, confundindo-se e entrecruzando-se com produções de mais elevados horizontes culturais, mas sempre presa desse gosto das drôleries,(bêtises, bizarreries, blagues, bouffonneries, clowneries, couillonnades, facéties, gaillardises), como o Dadaismo ou o Surrealismo.

    Em muitos aspectos, o tipo de narrativa a que nos referimos como comic, tendo como característica de duração prevalecente, o strip, a série linearizada em poucos momento pictóricos ou gráficos, variando de dois a cinco, raramente mais ou menos, é o padrão em que assentam outras, um pouco mais longas, de um página[2] como acontece quase sempre em Little Nemo ou em Crazy Cat e obedece a um modelo linear narrativo, comum, também em manifestações apenas verbais que Violette Morin caracteriza como histoires drôles, do seguinte modo: “é algumas vezes tão curta ou tão ‘engraçada’ que seu valor de narrativa poderia ser posto em questão.

    girl in purple dress painting

    No entanto estas ‘historias’ são, também, narrativas. Como estas, e melhor ainda, “fazem evoluir uma situação viva em função de reviravoltas imprevistas.” (Morin, 1966: 102).

    Nada mais elucidativo, para colocarmos mais uma base no nosso entendimento destes começos da banda desenhada como género, aspirando a uma colocação entre as artes, como 9ª, no dizer de muitos apologetas, do que voltar ao texto de Violette Morin sobre as “histoires drôles” que ela analisa, e, “a fim de confrontar sua inesgotável variedade de estilo e, de falas (ou expressões: paroles)”teve, “muitas vezes de reconstituir seu discurso, restabelecer aqui elipses destinadas a torná-las mais percucientes, suprimir, acolá, redundâncias destinadas a enchê-las de ‘suspense’”.

    De tal modo, diz-nos a investigadora francesa, que teve “de localizar funções que sua desordem calculada tornava mais surpreendentes”, constatando que, “com a linearidade do traço de espírito restabelecida, estas narra1ivas apresentaram enfim cercas constâncias, de construção que temamos classificar” (1966: 102).

    Por estas características, elas “são comparáveis” com as comic strip, “pelo número de palavras, pois que a maioria contém apenas de 25 a 40” além de que são “todas redutíveis a uma sequência única que coloca, argumenta e resolve uma certa problemática” e, ainda por cima tal sequência 

    “parece ser uniformemente articulada por três funções que ordenamos como se segue: uma funçãodenormalizaçâoque situa os personagens; uma função locutorade encadeamento,com ou sem locutor, que coloca o ‘problema a resolver, ouquestiona; e, enfim, uma função interlocutora de distinção, com ou sem interlocutor, que resolve ‘comicamente’ o problema, que responde ‘comicamente à questão. Esta última faz bifurcar-se a narrativa do ‘sério’ para o ‘cómico’ e dá à sequência narrativa existência de narrativa disjunta, de ‘última’ (dernière) [versão] como história. A bifurcação é possível graças a um elemento polissémico, o, disjuntor sobre o qual a história encadeada (normalização e locução) volteia numa peripécia, para tomar uma direção nova e inesperada. É a existência necessária deste disjuntor que tende a fazer classificar indiferentemente todas estas história nas diversas variedades de jogos de palavras” (1966: 102-103).

    Apresentamos, a título comparativo, como as comic strip, o exemplo de uma das história que Violette Morin apresenta: “FUNÇÃO DE NORMALIZAÇÃO: O viajante tendo perdido o comboio fala ao chefe da estação; FUNÇÃO LOCUTORA DE DESENCADEAMENTO: Oviajante: Se os comboios nunca estão no horário, para que servem os quadros afixados de horários?; DISJUNTOR:cartaz/sala de espera; FUNÇÃO INTERLOCUTORA DE DISJUNÇÃO: O chefe da estação: Se os comboios andassem no horário, de que serviriam as salas de espera?” (1966: 104). Como se pode constatar, a semelhança com as sequências narrativas em tiras de vinhetas ou quadradinhos, e o desenvolvimento que a autora descreve como próprio a estas sequências narrativas justifica-se inteiramente:

    “são as narrativas em que a disjunção é apenas uma palavra-significante, uma palavra tomada somente na sua existência visual ou fónica, independentemente das significações que pode veicular. Obtém-se um jogo de palavras que liberta os significados e as significações de qualquer constrangimento do sentido. Ao cabo da sequência, a narrativa desagrega-se propositadamente num caos perfeito; pode mesmo, por essa arte de acrobacia no vazio, quase não ser uma narrativa, e com frequência não é mesmo” (1966: 103).

    man in green vest and red dress standing beside woman in red dress

    Usando uma outra formulação, sob a designação de piada, aproximamo-nos ainda melhor do fenómeno tal como é possível formulá-lo, mas neste caso num processo bifásico:

    “[…] a piada é um texto sui generis. É uma forma de narração dialogal, tendencialmente curta, que tem por objetivo gerar um sentido humorístico. Para tanto, a piada cria uma situação verossímil, apenas para desmascará-la em seu desfecho. A mudança do modo sério (bona fide) para o modo jocoso é a fonte do riso. A semelhança na estruturação de uma piada é a maior especificidade dessa forma de texto. A estrutura, por assim dizer, é dividida em duas partes. A primeira, chamada de antecedente, introduziria o tópico, bem como os personagens e a situação verossímil. A segunda parte, o consequente, seria a conclusão do texto. […] o consequente nunca é explicitado, fica sempre implícito […]. A passagem do antecedente para o consequente é feita por um elemento mediador, de ordem linguística, em geral voltado aos níveis fonético-fonológico, morfossintático ou semântico” (Ramos, 2005: 1158-1159).

    A estes traços, acrescenta o autor mais alguns que acompanham exemplos das tiras diárias, que “seria uma história que apresenta uma gag, termo entendido [..] como uma piada diária (dado que, na maioria dos casos, é publicada diariamente pelos jornais)” (p.1158) e apresenta uma tese muito próxima de Morin, e talvez de mais simples formulação: “uma situação inicial; um elemento que muda o curso da narrativa; uma disjunção provocada pelo elemento anterior. O resultado da mudança de curso na história surpreenderia a expectativa inicial do leitor, provocando em seu desfecho uma função narrativa anormal, fonte do riso. (p.1158)

    shallow focus photography of books

    Se dermos, mais uma vez, a palavra a Freud, verificamos a importância da colocação em posição dramática de personagens que sejam produzidas por uma encenação (no sentido mais amplo do termo, de produção representativa de uma acção, verbal ou física, numa determinada situação para obter um efeito de sentido):

    “O ingênuo (no discurso) e os chistes coincidem, no que diz respeito à verbalização e ao conteúdo: efetua um uso impróprio das palavras, um non sense ou um smut. Mas nele, o ingénuo, enquanto primeira pessoa, o processo psíquico, que produz, que levanta para nós questões tão interessantes e enigmáticas a respeito dos chistes, está aqui completamente ausente. Uma pessoa ingênua pensa estar utilizando seus meios de expressão e processos de pensamento normal e simplesmente, não tendo qualquer arrière pensée em mente; não deriva igualmente o menor prazer em produzir algo ingênuo. Todas as características do ingênuo inexistem a não ser na compreensão da pessoa que o escuta – pessoa que coincide com a terceira pessoa nos chistes. Alem disso a pessoa que o produz faz isso sem o menor esforço. A complicada técnica que nos chistes se destina a paralisar a inibição procedente da crítica racional, está ausente nela; não possui igualmente a inibição, de modo que pode produzir nonsense e smut diretamente e sem compromisso. A este respeito, o ingênuo é um caso marginal do chiste; emerge quando, na fórmula de construção dos chistes, reduzimos o valor da censura a zero” (1969: 283).

    Sobretudo, é importante que as personagens formem “um sistema de forças em confronto ligadas por acções e reacções de que cada momento privilegiado deve desenhas uma figura dinâmica, relativamente simples, clara, poderosa, original e intensa nesse dinamismo interior que resulta da sua estrutura” Souriau, 

    black and white zebra print textile

    Completaríamos melhor este raciocínio, a partir do qual pretendemos valorizar os procedimentos inerentes às histoires drôles que nos narram os comics, introduzindo, como conceito, o termo voz. Assim, o aspecto central que aqui pretendemos apresentar, como mecanismo de criação de excepcional expressividade na produção do discurso em é o da segunda voz.

    Essa voz, a rigor, deveria ser chamada voz dupla, bivocalidade, já que ela irrompe, num plano do discurso aparentemente coeso, não como interlocutora, mas como enunciado simultâneo, emergência perturbante de um outro discurso que, por assim dizer, abre alas no enunciado que consideraríamos emitido pela vontade racional do locutor, no seu discorrer normal.

    Assim, por dentro do próprio discurso autoral, escapando-se ao controlo do sujeito que identificamos com a identidade, essa voz imiscui-se, intromete-se, surge como que clandestinamente ou, para identificarmos melhor o fenómeno, promiscui-se. Entidade quase ilegítima, ela tem, se assim podemos dizer, um estatuto muito próximo do daquele “diabinho” irreverente e malicioso que, nalgumas circunstâncias, se revela como perturbador dos mais banais discursos, fazendo-nos dizer ou escrever o que não queríamos, assemelhando-se, nisso, à voz demoníaca — ou daimon — que também assaltava Sócrates.

    Nas tiras ou mesmo nos conjuntos que formam página (ou prancha, como os autores gostam de lhes chamar) essa voz pode surgir como uma personagem onírica, ou partilhando desse estatuto, como um alter ego provocador, ou mesmo desencaminhador, que surge nas narrativas em que a personagem protagonista desafiada ou confrontada em devaneios e sonhos de que os paradigmas seriam o Grilo de Pinóquio, e o esverdeado Flip que aparece nas comics storys de Little Nemo como a que apresentamos abaixo.

    O que aqui nos importa principalmente não é a visualidade, mas a própria discursividade verbal. Tudo se passa como se a voz dupla, ao surgir, criasse um mecanismo retórico em que ambas as vozes, a que esforçadamente o autor mantém como sua (a admitirmos que cada um é senhor e regulador do seu discurso) e a outra, que o invade como uma inevitável facécia, surgissem a uma distância em que tanto uma como outra (a empenhadamente “autêntica” e a  sentida como “invasora”) se dão como espectáculo verbal. Passa-se, nesse caso, qualquer coisa como uma desapropriação do autor relativamente à sua palavra, um desajuste, uma deslocação em que não só percebe a outra palavra como outra, mas também percebe a sua como alheia.

    Para observarmos melhor esse mecanismo de distanciação (a que os formalistas russos chamariam de estranhamento – de que não andaria longe, também, o alheamento de Pessoa) é bom vermos como o sonhador está integrado nesse mecanismo, uma vez que é capaz de fazer da interlocução mais um elemento constituinte do espectáculo integral em que o processo imaginário cruza o elemento icónico e verbal. (cf. Jorge, 2000: 2-3) [3]

    É claro que o sonho e o retorno ou despertar inconsciente da infância que Freud nos lembra (Freud, 1969: 248 e 278), e como vamos encontrar, por exemplo em Little Nemo “Entre as técnicas comuns ao espírito e ao sonho, duas oferecem um cesto interesse: a representação pelo seu contrário e o emprego de contrassenso” (Freud, 1969: “266) aqui, é claro, o repouso do leito, que levará ao sono e o sonho surge como que negado, ou invertido pela movimentação e articulação dinâmica da própria cama, e o interior do quarto muda-se para o imaginário espectáculo do “telhados” dos arranha céus visto de cima ou ao mesmo nível. 

    Segundo Freud no mesmo texto um pouco adiante, essa representação pelo contrário representa uma sobrevalorização, que se “aproxima da ironia” a qual “consiste em dizer o contrário do que se pretende sugerir, evitando aos outros a ocasião de a contradizer” uma vez que ela exibe os artifícios, neste caso o aspecto hiperbólica dimensão que a cama apresenta no seu passeio.

    Ora, mais pausadamente, podemos ver, na sequência da história, o modo de Flip funcionar como a emergência de um desafio ou desejo de libertação, arrastando o imaginário de Nemo à criação de uma fantasia em que a cama passeia, saltita, sobe aos telhados dos arranha céus, acabando, na euforia da exaltação libertária, por gerar no sonhador o pânico causado pela culpa da sua desobediência, e leva-o cair, num mergulho que parecia fatal e que é, afinal, um real tombo da cama para o chão.

    Sobre esta matéria ainda nos parecem pertinentes as considerações de Freud “A elaboração onírica, entretanto, exagera esse método de representação indireta além de todos os limites. Sob a pressão da censura, qualquer espécie de conexão é bastante boa para servir como substitutivo por alusão, permitindo- se o deslocamento de um a outro elemento. A substituição de associações internas (similaridade, conexão causal etc.) por outras, conhecidas como externas (simultaneidade no tempo, contigüidade espacial, similaridade fônica), é muito especialmente notável e peculiar à elaboração onírica. Todos esses métodos de deslocamento ocorrem também como técnicas do chiste. (p.264)

    E, completaríamos esta percepção da comic story, na sua dimensão onírica com apoio no seguinte excerto do mestre austríaco sobre a matéria:

     “Na elaboração onírica, a representação pelo oposto desempenha uma parte ainda maio que nos chistes. Os sonhos não são simplesmente favoráveis à representação de dois contrários pela mesma e única estrutura composta, mas tão frequentemente mudam parte dos pensamentos oníricos nos seus opostos, o que leva o trabalho de interpretação a impasses difíceis. Não há maneira de decidir à primeira vista se algum elemento que admite um contrário está presente nos pensamentos oníricos como um positivo ou como um negativo.

    Devo afirmar enfaticamente que esse fato até agora não mereceu reconhecimento. Mas parece apontar para importante característica do pensamento inconsciente no qual, com toda probabilidade, não ocorre nenhum processo que se assemelhe ao ‘julgamento’. No lugar da rejeição por um julgamento, o que encontramos no inconsciente é a ‘repressão’. Esta pode, sem dúvida, ser corretamente descrita como estágio intermediário entre um reflexo defensivo e um julgamento condenador.

    O nonsense, o absurdo, que aparece com tanta frequência nos sonhos, condenando-os a desprezo tão imerecido, nunca ocorre por acaso através da mesclagem dos elementos ideacionais, podendo sempre demonstrar sua admissão intencional pela elaboração onírica, cabendo-lhes representar nos pensamentos oníricos a crítica amargurada e a contradição desdenhosa. Assim o absurdo no conteúdo dos sonhos assume o lugar do julgamento ‘isto é apenas nonsense‘ nos pensamentos oníricos.” (268-269).

    Jost Amman – Xilogravura de 1568 mostrando a produção de xilogravuras: na primeira um homem usa um buril para cortar o bloco de madeira; na segunda ele entinta a matriz realizada para a impressão.

    A estrutura que o pequeno relato em quadradinhos, cuja modalidade dominante, fundadora do género se verificou como comic americano é a da narrativa fundada na sequencialidade, num sistema gráfico de leitura que tem como aspecto fundamental, como já vimos acima os vectores direcionais: da esquerda para a direita e de cima para baixo, aproveitando o modelo da própria escrita.

    Tal dinâmica vectorial cria o sentido da história com a concepção de um antes e de um depois, inserida nas práticas milenares da cultura ocidental, com pequenas variantes, das quais, a principal é a variabilidade horizontal (esquerda —> direita), que pode ter a variante inversa, ou a mista, bustrofédon, (βουστροφηδόν[4]), podendo, eventualmente, essa a variante ser a da vectorialidade ascendente, ou seja, de baixo para cima. Esses dois últimos casos verificam-se nalguns registos mais antigos e a na nossa cultura, entre o Médio Oriente e a Europa, sendo o primeiro, a inversão apenas ou as sequências de imagens de culturas não ocidentais, cujo exemplo mais impressionante é o da Coluna de Trajano, em Roma com feitos e eventos sequenciais talhados na pedra em sentido ascendente em sequência pela curvatura elicoidal, em ordem horizontal bustrofédon (ou que a torna uma excepção no que respeita ao sentido de leitura).

    Thomas Rowlandson (britânico, Londres 1757-1827) – Reform Advised, Begun and Compleat, 1793.

    Devemos notar, no entanto, no caso que nos interessa e, maioritariamente, se podem considerar “duas grandes classes de unidades, funções e índices”, as quais “deveriam já permitir uma certa classificação das narrativas.

    Certas narrativas são fortemente funcionais (assim os contos populares), e, em oposição certas outras são fortemente indiciais (assim os romances ‘psicológicos’)” caracterização a que voltaremos, adiante, a propósito daquilo na BD se tem chamado “romance” ou narrativa romântica” (1966: 10) “entre estes dois pólos, toda uma série de formas intermediárias, tributárias da história, da sociedade, do género” (1966: 10).

    Para falarmos das comic strips, sobretudo, mas mesmo das comic, em geral, até à dimensão da prancha ou página retomar será interessante retomas, de Barthes a “classe das Funções” uma vez que, suas unidades. não têm todas a mesma ‘importância’ e isso ajuda-nos a analisar melhor o processo, destas pequenas histórias. “Algumas”, dado que “constituem verdadeiras articulações da narrativa (ou de um fragmento da narrativa)” o que as torna importantes para nós, dado que a dimensão das histórias cómicas assentam sobretudo na força de uma articulação nuclear” e pouco utilizam as “outras” que, segundo o mesmo autor “não fazem mais do que ‘preencher’ o espaço narrativo que separa as funções-articulações: chamemos as primeiras de funções cardinais (ou núcleos) e as segundas, em consideração à sua natureza completiva, catálíses.

    Ora, ainda segundo Barthes, “para que uma função seja cardinal, é suficiente que a ação à qual se refere abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa consequente para o seguimento da história, enfim que ela inaugure ou conclua uma incerteza” (1966: 10) e é  nesta incerteza que, como vimos acima, na análise de Violette Morin, a ruptura ou irrupção cómica se torna possível, pela intromissão de um disjuntor, a que Barthes preferiria, certamente, chamaria índice[5] visto que “os índices implicam uma atividade de deciframento: trata-se para o leitor de aprender a conhecer um caráter, uma atmosfera […]serve para dar autenticidade à realidade do referente, para enraizara ficção no real: é um operador realista […] possui uma funcionalidade incontestável, não ao nível da história, mas ao nível do discurso.” (1966: 11), no fundo são imformantes que, num troço da história cómica a fazem inflectir para um sentido inesperado, como que um choque de real interrompendo o curso da expectativa.

    E neste caso das comic strip, ou comic, tout court, é depois dessa disjunção provocada pelo índice, que se reata o  “liame que une duas funções cardinais, o qual se investe de uma “funcionalidade dupla”, tornando-as “ao mesmo tempo consecutivas e consequentes.

    Tudo deixa pensar, com efeito, que a mola da atividade é a própria confusão da consecução e da consequência, o que vem depois sendo lido na narrativa como causado por; a narrativa seria, neste caso, uma aplicação sistemática do erro lógico denunciado pela escolástica sob a fórmula post hoc, ergo propter hoc, que bem poderia ser a divisa do Destino, do qual a narrativa não é em suma mais que a «língua» (Zangue); e este ‘esmagamento’ da lógica e da temporalidade é a armadura das funções cardinais que o realiza. Estas funções podem ser à primeira vista muito insignificantes; o que as constitui não é o espetáculo (a importância, o volume, a raridade ou a força da ação enunciada), é, se assim se pode dizer, o risco: as funções cardinais são os momentos de risco da narrativa.

    Para terminar sobre este modelo aparentemente embrionário da narrativa, a partir do qual a própria banda desenhada assentou, em base que consideramos sólida, lembremos, com Eisenstein, ao falar de Disney, que os comics se fortalecem exemplarmente como narrativas de metamorfoses. Mesmo que isso não implique modificações excessivas, como em tiras modernas quase universais, como Mafalda, de Quino, ou Mónica e sua Turma, de Maurício a verdade é que ela é cultivada à exaustam, e, tão fundamental se tornou, que muitas vezes não damos por ela, e não reparamos na mobilidade fantástica dos elementos do universo de um Winsor McCay, e no seu espectro altamente transfigurável. Assim:

      “Em Shakespeare […] nas suas comédias, as personagens metamorfoseiam-se até ao infinito…travestizam-se ou sofrem uma mudança mágica” lembramo-nos de Alice, do Burro de Oiro, mas

    “Em Disney passamos de um processo a outro, porque um dos recurso do cómico é a literalização da metáfora. […] É por isso, então que a metáfora poética actua comicamente em Disney, porque a apresenta como transposição literal. A metamorfose não é um lapso ─ porque, quando folheamos Ovídio, <vemos que> algumas das suas páginas têm ar de curtas metragens de Disney”[6] (Eisenstein, 2013: 53)

    Por outro lado, no plano do discurso, naquilo que a própria Retórica tão rigorosamente formalizou, pelo menos desde Aristóteles, se a epopeia e tragédia tinham origem em hinos laudatórios ou discursos ecomiásticos e epidícticos, “A comédia é”, segundo o mesmo Estagirita, na sua Poética, “imitação de homens inferiores, mas não, todavia, quanto a toda a espécie dos vícios, mas só quanto àquela parte do torpe e do ridículo.

    eyeglasses near mug on table

    O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anónima e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cómica que, sendo feia e disforme, não tem [expressão de] dor. (1986: 109 [V; 22]). Característica clássica e fundadora que nos ajuda a compreender melhor o próprio funcionamento dos comics, na sua origem, de difusão entre as massas leitoras pouco exigentes, dificilmente cultivadas, mas sempre perante o espectáculo do mundo em que tinham de abrir espaço para a sua própria existência ser possível, mundo esse carregado de personagens típica que um discípulo de Aristóteles arruma em quatro grandes grupos: sujeitos auto-depreciados, impostores, e bufões, normalmente acompanhados por um outro que os confronta, como herói, quase sempre um vigarista simpático e la dino “na arte de explorar as fraquezas alheias” (Escohotado, 2006: 10).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Alain, 1948 [1920/1926], Système des beaux-arts, Gallimard, Paris

    Aristóteles, 1986, Poética, IN/CM, Lisboa (trad. Eudoro de Sousa)

    Aumont, Jacques, 1990, L’image, Nathan, Paris

    Bakhtine, Mikhail, 1978, Esthétique et théorie du roman, Gallimard, Paris

    Bakhtine, Mikhail, 1998, La poétique de Dostoïevski, Seuil/Points, Paris

    Barbieri, Daniel, 1991, Il linguaggi del fumetto, Bompiano, Milano

    Barthes, Roland,1987, A Aventura Semiológica, Ed. 70, Lisboa

    Barthes, Roland,1966 “Introduction à l’analyse structurale des récits”, in Comunications, nº 8, Seuil, Paris  

    Brooks, Peter, 2010, L’imagination mélodramatique ― Balzac, Henry James, le mélodrame été le mode de l’excés, Garnier, Paris

    Damisch, Hubert, 1993, L’origine de la perspective, Flammarion, Paris

    Eisenstei, Serguei, 2013, Walt Disney,

    Freud, Sigmund, 1969, Le mot d’esprit et ses rapports avec l’inconscient, NRF/Idées, Paris

    Fuchs, Barbara, 2004, Romance, Routledge, London

    Gaunt, Simon, 2000, “Romance and Other Genres” in Roberta L. Kruger (ed), The Cambridge Companion to Medieval Romance, Cambridge University Press, Cambridge

    Goliot-Leté, Anne, e outros, 2011, Dicionário da Imagem, Edições 70

    Jolles, Andrá, 1972, Formes simples, Seuil, Paris

    Lessing, Gottold Ephraim, 1990, Laocoonte, Tecnos, Madrid

    McCloud, Scott, 1994, Understanding Comics, The Invisible Art, Harper Collins, Nova Iorque

    Moliterni, Claude et al., 2003, BD Guide – Encyclopédie de la bande dessiné International, Omnibus, Paris

    Montandon, Alain, 1992, Les formes brèves, Hachette, Paris

    Neylon, Virginia Lyn, 2016, Reading and Writing the Romance Novel – An Analysis of Romance Fiction and its Place in the Community College Classroom

    Panovsky, Erwin, 1989, O Significado nas Artes Visuais, Presença, Lisboa

    Poe, Edgar Allan, 2004, Poética (Textos Teóricos), Gulbenkian, LIsboa  

    Ramos, Paulo, 2005, “Piadas e tiras em quadrinhos: a oralidade presente nos textos de humor”, Estudos Linguísticos XXXIV, p. 1158-1163 cf. São Paulo

    Stempel, Wolf-Dieter, 1988, “Aspectos genéricos de la recepción”, in, Teoría de los géneros literários, Garrido Gallardo (Org), Arco/Libros, SA, Madrid

    Stevenson, John Allen, 1990 The British Novel, Defoe to Austen, Twayne Publishers, Boston:

    Williams, Ioan, ed., 1970 Novel and Romance 1700-1800, Barnes & Noble, New York


    [1] “Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, filosofias, teorias, assumptos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhérias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssima com os direitos da alfândega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas… Nós julgamo-nos civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão… Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?” // “Eusebiozinho fez-se escarlate. Credo! estava no Victor, muito sério! O Palma é que lá tinha aparecido com uma rapariga portuguesa… Tinha agora um jornal, A Corneta do Diabo.

    – A Corneta…?

    – Sim, do Diabo, disse o Eusebiozinho. É um jornal de pilhérias, de picuinhas… Ele já existia, chamava-se o Apito; mas agora passou para o Palma; ele vai-lhe aumentar o formato, e meter-lhe mais chalaça

    – Enfim, disse Carlos, qualquer coisa sebácea e imunda como ele…(Os Maias, caps. 4 e14, pp.76 e302, Círculo de Leitores, 1975; itálicos nossos)

    [2] Daniel Barbieri, esclarece os parâmetro históricos destes factos lembrando que no em finais do século XIX e pincípios do século seguinte, “tradicionalmente a unidade gráfica de narrar em BD (‘fumetto) são de dois tipos: a tira e a página (ou prancha ─ ver imagens de Yellow Kid em baixo). A BD [no sentido de comic, em italiano, fumetto] nasce como página dominical a cores, dos quotidianos, e só depois de alguns anos se torna, também tira quotidiana. Apenas nos anos 30 nasce, enfim, o comic book, ou seja, o álbum de Bd. Em geral a tira é […] composta de três ou quatro quadradinhos ou vinhetas, raramente de duas ou quatro” (1991: 149). YellowKid4É claro que é o uso sistemático balão (no vestido, amarelo, primeiro, mas depois no gramofone e no papagaio) com fala que determina, historicamente, o nascimento, questão histórica a que voltaremos adiante. As manga, bandas desenhadas japonesas, têm uma configuração de leitura diferente que não trataremos aqui, por obedecerem a códigos mistos da cultura nipónica e ocidental, cada vez mais sob influência ocidental, para entras no mercados europeus e americanos

    [3]Texto apresentado a 17 de Outubro de 2000, em Évora, a convite da Delegação Regional da Cultura, numa sessão integrada nas comemorações do Centenário da Morte de Eça de Queirós.

    [4]  Transcrição fonética: boustrophēdón , um composto de βοῦς , bous , “boi”; στροφή , strophē , “virar”; e o sufixo adverbial – δόν , “semelhante, na maneira de” – isto é, “como o boi vira [ao arar]”. Curiosidade: O folclorista húngaro Gyula Sebestyén (1864–1946) escreve que a escrita boustrophedon antiga se assemelha aos rovás-sticks húngaros da escrita húngara antiga, que  foram feitos por pastores. Primeiro o entalhador segura a vara de madeira com a mão esquerda, cortando as letras com a mão direita da direita para a esquerda até ao fim do pau. Para continuar ele vira o pau, invertendo as pontas, e começa a entalhar o lado oposto da mesma maneira. Quando é desdobrado horizontalmente (como no caso das inscrições do boustrofédon lapidadas), o resultado final é uma escrita que começa da direita para a esquerda e continua da esquerda para a direita na linha seguinte, com as letras viradas de cabeça para baixo. Sebestyén afirma que os antigos escritos do boustrophedon foram copiados de tais varas de madeira com letras recortadas, requeridas para inscrições epigráficas (não reconhecendo o real significado do tipo original de madeira). Hieróglifos Rongorongo, escritos com dentes de tubarão na Ilha de Páscoa, permanecem indecifráveis.

    [5] 2 ‘índices’ (no sentido muitogeral da palavra) […] a unidade remete então, não a um acto  complementar e consequente, mas a um conceito mais ou menos difuso, necessário entretanto ao sentido da história: índices caracteriais concernentes às personagens informações relativas à sua identidade, notaçõesdas «atmosferas», etc.; (1966: 8-9).

    [6] “[…] Eis que a patrona do herói, Palas, descendo do céu, ordena-lhe que ponha sob a terra os dentes vipérios, matriz de homens futuros. Ele obedece e, abrindo sulcos com o arado, lança os dentes, sementes de mortais, ao solo.  Logo, incrível prodígio, o chão põe-se a mover, e, então, dos sulcos surge a ponta de uma lança, logo, elmos com penachos multicores trêmulos emergem, e ombros, peitos e braços armados, e uma seara de homens com escudo cresce.  Assim, quando em teatro em festa o pano desce, surgem figuras que primeiro a cara mostra, e após o resto; até que se tornam visíveis por completo e se põem de pés no proscênio. Aterrado com a nova hoste, Cadmo se arma […]” Ovídio, Livro III, Cadmo, v. 101-115 ─ Trad. Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho.

  • A alteridade africana e as demarcações ideológicas nas narrativas de Verne

    A alteridade africana e as demarcações ideológicas nas narrativas de Verne


    Na longa produção de Verne, a “África negra”, ao sul do Sara, é, muitas vezes, o palco da acção. Embora existindo como referente minuciosamente descrito – as partes que são importantes para a construção da diegese, entenda-se – tal continente não era conhecido de Verne, a não ser através dos manuais, compêndios, tratados de geografia e ciências naturais e relatos de viajantes que eram acessíveis aos estudiosos da época.

    É curioso verificar que, desse continente desconhecido para Verne, e mesmo mal conhecido pelos seus contemporâneos que apenas o abordavam parcialmente, surjam imagens de imensa justeza. Tal justeza, no entanto, deve ser entendida em três dimensões pelos menos: uma acurada descrição da dimensão física e geográfica, uma imensa preocupação pela compreensão – eivada de curiosidade e apelo do exótico – da dimensão etnográfica (e mesmo antropológica) e um esforço de equacionar esses conhecimentos na dimensão do ideológico.

    O que emerge desse esforço é um “primeiro olhar colonial pleno”, em que os “indígenas” surgem como entes entre o fabuloso e o digno de piedade – e o estatuto das personagens portuguesas aparece francamente oscilando entre o “nós e o outro”. Sem defender inteiramente as teses de Martine Astier Loutfi, parece-nos justa, não obstante, a sua observação de que “devemos colocar numa posição especial […]  Jules Verne, cuja obra, embora sem tratar especialmente a expansão colonial, contribuiu bastante para lhe  fornecer o acervo imagético” (1971: 51.

    A questão do descritivo em Verne, tal como se nos apresenta nos romances, pode ser tratada tendo em vista os processos verbais da representação do espaço, colocando no horizonte a questão ideológica. Escapar a tal abordagem, em dupla dimensão, seria, parece-nos, deixar de interrogar alguns aspectos do sentido pleno que é, na obra verniana, a relação do sujeito com o objecto, do nós com os outros, do eu com o mundo.

    Talvez tal interrogação não fosse tão importante em relação a outros escritores, mesmo do seu tempo, que apresentaram uma dominante do descritivo não menos decisiva do que a que encontramos em Verne. A razão da diferença reside, como pensamos ser evidente no decorrer da nossa argumentação, no facto de o mundo revelado pela descrição nos romances   vernianos ser essencialmente o da alteridade plena, o da relação de um sujeito nós totalmente caucionado pelos valores da comunidade (a ética, a ciência), com objectos do conhecimento – não só lugares, faunas e floras exóticas, como outros homens, sob cuja aparência humana se escondem, em princípio, a desumanidade, a selvajaria, a anarquia adversa aos valores indiscutíveis do nós.

    tree between green land during golden hour

    Cremos estar, quanto a esta matéria, perante a nítida representação sistemática (imagens, mitos, ideias e noções articuladas segundo uma lógica própria) da rede de “relação imaginária dos indivíduos com a suas condições reais de existência”. Contudo, se esta formulação segundo Althusser (1977: 107) pode servir de ponto de partida para uma definição de ideologia propomo-nos encarar, como perspectiva relativizante de um conceito tão avassalador, a vertente ideológica do signo como uma das suas possibilidades.

    De facto, partindo do princípio que nos oferece a proposta de Bakhtine, a correspondência mútua de signo e ideologia pode ser entendida não só como “tudo o que é ideológico é semiótico”, mas também como, inversamente, “tudo o que é semiótico é ideológico” (1977:27). Assim, quando  formula  o conceito de ideologema, apresentado como “conceito nebuloso” (1977:57), o semioticista russo parece enunciar, como já o referiu Marc Angenot (1984:120), uma configuração muito similar aos topoi retóricos – “conteúdos determinados e definidos pelo conjunto das máximas em que o sistema lhes permite figurarem”, sendo “o seu estatuto opinável identificável com a confirmação de uma representação social que eles permitem operar.(…) Estes ideologemas funcionam à maneira dos lugares (topoi) aristotélicos como princípios reguladores subjacentes aos discursos sociais a que conferem autoridade e coerência”.

    Ora, se o grau de generalidade dos “lugares” pode ser muito vasto, atingindo uma dimensão em que a historicidade quase se perde, a abordagem que aqui pretendemos fazer da ideologia em Verne buscará encarar na sua máxima historicidade as formulações tópicas. Assim, a ética, a ciência, a razão, valores de que os heróis vernianos são portadores, serão por nós evocados tendo em conta que, se para o sistema ideológico em que se inscrevem, tais valores eram como que eternos e imutáveis, para um observador desinserido desse sistema (mas não de outros  equivalentes – não temos essa ilusão), para um leitor colocado no lugar em que nos propomos nós próprios estar, tais valores são relativos a um sistema enformado pela lógica ocidental, judaico-cristã, imperialista e expansionista

    Tal formulação, que hoje faz parte das nossas evidências esclarecidas, tem, obviamente, a sua história no interior da História das mentalidades. Para um estudioso como Todorov, por exemplo, a visão da época de Verne pode ser vista como uma antecipação dos processos de globalização que hoje são agenda inadiável das políticas das grandes potências. Assim, o estudioso búlgaro desenvolve, sobre a ideologia cientista oitocentista do estado universal, uma análise que se poderia resumir, nas suas próprias palavras, ao seguinte: “A prazo, a humanidade constituirá assim, une sociedade única. É essa a tarefa do positivismo, única doutrine verdadeiramente universal, que ajudará os homens a avançar nessa direcção” (1989:45).

    Parece-nos possível, portanto, colocamo-nos na perspectiva crítica de quem observa os observadores vernianos na sua limitação eurocentrista, positivista, expansionista, típica do sistema ideológico que domina a acção científica em busca do conhecimento de territórios a civilizar, a democratizar, a ocupar. Para tal, procuraremos compreender quais os mecanismos de representação fundamentais, e as grandes linhas que permitem orientar a visão narrativamente construída, de modo a gerar um modelo em que, também pela ficção e pela mimese, o homem ocidental capta o universo que pretende dominar.

    O primeiro grande mecanismo ou dispositivo de representação que se nos patenteia, aquele que, por assim dizer, pela sua envergadura, parece subsumir os outros de que falaremos posteriormente, é a perspectiva panorâmica, devedora às técnicas pictóricas do naturalismo paisagístico oitocentista.

    Basicamente, uma técnica pictórica de perspectiva, estabelece, conceptualmente, três elementos teóricos de construção: um ponto onde assenta a visão (e se ela é mono ou multiocular); um espaço de passagem para essa visão (uma objectiva, um buraco, uma janela – um enquadramento visível ou invisível no objecto representado); e o objecto representado. Ora, as perspectivas panorâmicas que se desenvolveram no século dezanove, tendentes a envolver o observador no espaço representado, usavam, sobretudo quando se tratava de apresentar espaços distantes e desconhecidos dos europeus, um dispositivo relacional de perspectiva a que os críticos de arte ingleses chamam “bird´s–eye views” – que talvez pudéssemos traduzir por “panorama do olhar do pássaro”, ou, simplesmente, “visão panorâmica”[1].

    white and brown desk globe

    O modelo mais perfeito que conhecemos de tal perspectiva é a reprodução de dois quadros de Nestor L´Hôte, ambos chamados Panorama d´Egypte et de Nubie, mostrando cerca de mil quilómetro de curso de água e terras adjacentes – um, de 1841, sugerindo a visão do vale até ao Cairo a partir do troço entre a primeira e a segunda catarata; o outro, datado de 1878, sugerindo a visão em sentido contrário do mesmo “espaço geográfico real” (in  Gadalupi, 1997: 8-9).  Já se vê que tal visão a partir da posição do “olhar do pássaro” é uma ficção de perspectiva, fantasiando um lugar de perspectiva – não ocupado, de facto – para dar as imagens realistas de um espaço segundo um modelo intermediário entre as regras da figuração pós-renascentista (ainda que o a “moldura” de enquadramento seja o infinito) monocular, e as do desenho de projecção tendo como limites a respeitar as escalas cartográficas.

    Compreende-se que uma tal visão do mundo participa de duas esquematizações: a fantasia ideal de um lugar dificilmente ocupável no século XIX, e do seu visionarismo; e de uma especulação técnico-científica que, através de grelhas geodésicas, capta um mundo em que quase tudo o que está no seu interior, e lhe diz respeito, se perde.

    Este dispositivo de olhar encontra-se exemplarmente construído na obra liminar de Verne, cuja acção se situa em África: Cinq semaines en ballon (o início da série da Viagens Extraordinárias, que começa a sair na editora Hetzel, inicia-se com a publicação desta obra em folhetim, em 1862, e em livro, em 1863).  É o próprio herói que descreve o mecanismo miraculoso do olhar

    “…Mon ballon ne me manquera pas(…)Avec lui tout est possible; sans lui, je retombe dans les dangers et les obstacles naturels d’une pareille expédition; avec lui, ni la chaleur, ni les torrents, ni les tempêtes, ni le simoun, ni les climats insalubres, ni les animaux sauvages, ni les hommes ne sont à craindre! Si j’ai trop chaud , je monte; si j’ai froid je descends; une montagne, je la dépasse; un précipice, je le franchis; un fleuve, je le traverse; un orage, je le domine; un torrent, je le rase comme un oiseau! Je marche sans fatigue, je m’arrête sens avoir besoin de repos! Je plane sur les cités nouvelles! Je vole avec la rapidité de l’ouragan, tantôt au plus haut des airs, tantôt à cent pieds du sol, et la carte africaine se déroule sous mes yeux dans le grand atlas du monde!” (1977: 21).

    O mapa africano desenrola-se, como um espectáculo, como um produto do mecanismo de representação pensado em função da ciência e refinado em função da maravilha. Não seria possível dizer melhor, por outras palavras, o projecto linearizante da viagem. Demarcar-se, esquivar-se, manter-se à distância para obter a recta, essa utopia verniana que Chesneaux considera tão relevante:

    “Os caminhos de ferro ocupam um lugar privilegiado nessa longa meditação sobre a linha recta que são as Voyages extraordinaires; melhor do que qualquer outro meio de locomoção, simbolizam a aptidão da humanidade para percorrer o globo sem se desviar do seu objectivo, a envolvê-lo, a traçar nele a sua marca” (1982:68).

    Esquema simbólico fundamental, a linha, quer apareça sob a imagem do comboio, quer se defina pelo traçado de qualquer outro meio de locomoção, é por excelência a formulação de uma apropriação, de uma captura, de um princípio  da ordem a partir do centro. Notemos apenas, como hipótese sedutora, que, de acordo com tal análise, toda a exigência teórica do cinema, para a construção da perspectiva com mobilidade da objectiva, está já  pressentida em Verne, muito embora as  possibilidades técnicas do novo meio ainda estejam em embrião na sua época. Não podemos esquecer, neste ponto, a observação que Jacques Leenhardt faz, a propósito de La Jalousie de Robbe-Grillet: “Medir, agarrar, descrever, tais são os instrumentos do domínio da Terra – geometria -, instrumentos privilegiados do acto de olhar, no qual é necessário ver a origem de toda a narração, de todo o texto” (1973:48).

        Para lá de uma base mínima de definição de ideologia, enunciada essencialmente na sua dimensão política (visão das práticas do poder caucionadora dos seus processos de actuação), propomo-nos aceitar como válida, para uma melhor compreensão de como a ideologia funciona no texto, na superfície textual de que a descriçäo é um dos modelos privilegiados, a hipótese teórica de Hamon (1984:20) segundo a qual, mais do que dizer o que é ideologia importa sobretudo encarar no texto o efeito-ideologia.

    Segundo o mesmo autor, tal efeito é indissociável da construção e encenação de “aparelhos normativos” textuais incorporados no enunciado. Os modos de construção desses mesmos “aparelhos”, a sua frequência de aparição e intensidade variam de enunciado para enunciado, de acordo com condicionantes sócio-linguísticas variáveis, mas são identificáveis quase inequivocamente, como o tem mostrado a observação científica empírica, nomeadamente de Labov (cf. Hamon, 1984: 20). Quer seja o narrador digno de crédito (a voz sem contrapartida –  sem “paródia” – negativa) quer seja uma personagem em quem ele delega os valores fundamentais que regulam a credibilidade, o processo é de uma modalização avaliativa que emerge em determinados pontos do enunciado.

    Na perspectiva de Hamon que vimos seguindo, tais aparelhos avaliativos podem aparecer e ser detectados em “pontos textuais” particulares, privilegiados, sendo possível fazer deles um quadro teórico geral independentemente dos corpus manipulados (cf. Hamon, 1984:20). Do ponto de vista da abordagem ideológica da literatura, tais locais do texto podem considerar-se pontos nevrálgicos, pontos deônticos, pontos encruzilhadas ou focos normativos.

    Na sua tipologia das relações com o outro Todorov (1988:227) considera que existem pelos menos três eixos sobre os quais se podem colocar os problemas da alteridade: o do juízo de valor no qual funcionam os pontos modalizantes a que já fizemos referência, relativos ao dizer, o fazer, a estética e a ética – é, enfim, o eixo da axiologia; o eixo praxiológico, segundo o qual me aproximo ou afasto do outro, me identifico ou não com ele, o submeto ou sou submetido; e um terceiro eixo que se pode designar por epistémico, segundo o qual conheço ou ignoro a identidade do outro. Partindo dos aspectos gerais de uma tal tipologia, podemos dizer que toda a descriçäo que precede a viagem, de um modo sistemático em Cinq semaines mas de modo também evidente nos restantes romances é, em Verne, a utilização avaliativa do saber-dizer e fazer (logos) e do fazer na acção de relação (praxis).

    Colocada aquém da viagem, da prova fundamental que é a alteração de uma relação com o saber, sendo esta a experiência aventurosa segundo os passos dos pioneiros, de modo a confirmá-los ou a contestá-los, a série do saber-dizer e do saber-fazer desaparece ou diminui de importância como qualificação (a menos que seja um acréscimo redundante às competências dos heróis) entrando em funcionamento a série do epistémico, sobretudo se tem de se processar relativamente a novos elementos descobertos pelos viajantes, a partir do momento em que os heróis iniciam o percurso. O fazer deixa de ser aplicação para se tornar aprendizagem e conhecimento novo, no processo de formação.

    O modelo geográfico serve de base científica à congeminação teórica e poética que norteia a representação e demonstração da realidade etnográfica, política e ideológica, cuja observação é empírica e experimentalmente menos evidente do que a outra. Vai de arrastão, segundo o modelo geográfico. Assim, quando, nos primeiros parágrafos de Le village aérien, um dos protagonistas se pronuncia sobre a região africana em que se encontram, não hesita em determinar as fronteiras e limites desse mesmo espaço tendo como referência as fronteiras coloniais já existentes.

    O tema da conversa, entre dois amigos, o francês Max Huber e o americano John Cort, no primeiro capítulo do romance referido, é a “aquisição” para a “civilização” do espaço que, nesse momento, se encontram a percorrer. Como nos apercebemos rapidamente, desde os primeiros parágrafos do texto, tal território encontra-se cartografado, designado geodesicamente, mas não está integrado na civilização.

    Visando esse fim, Max avança com uma pergunta, que é todo um programa de cosmização: “Et le Congo américain?”. Com essa frase liminar, o herói de Verne gera um horizonte de utopia, como explica um pouco adiante: “Je le repète, en cette partie de l´Afrique, l´Union pourrait se tailler une colonie superbe.” Esclareça-se que os dois viajantes atravessam uma região pejada de perigos, no interior de uma carroça conduzida por um português “residente” na zona costeira do território, e ao lado deles vai um guia nativo. No exterior vão os carregadores do material necessário à expedição de caça.

    black elephant walking on brown sand

    A floresta exuberante e a fauna abundante são descritas com primores de compêndios de ciências naturais. Os habitantes humanos são apresentados segundo os traços físicos e exteriores, com pitorescos traços de intenção etnográfica, mas todos os que não estão junto aos viajantes europeus são designados como canibais.

    Essa visão da etnografia de Verne é, quanto a este último ponto, persistente.  Ainda nos primeiros momentos da viagem em Cinq semaines o cientista Fergusson, lúcido e triunfante, reportando-se sempre à mais rigorosa observação científica, faz a seguinte descrição ao seu criado, Joe, quando este o interroga sobre os habitantes das terras sobre as quais voam:

    “- Ces tribus éparses sont comprises sous la dénomination générale de Nyam-Nyam, et ce nom n’est autre chose qu’une onomatopée; il reproduit le bruit de la mastication.

    – Parfait, dit Joe; nyam! nyam!

    – Mon brave Joe, si tu étais la cause immédiate de cette onomatopée, tu ne trouverais pas cella parfait.

    – Que voulez-vous dire

    – Que ces peuplades sont considérés comme anthropophages.

    – Cela est-il certain?

    – Trés certain

    (…)

    – Ce qui est malheureusement avéré, c’est la férocité de ces peuples, très avides de chaire humaine qu’ils cherchent avec passion” (1863:160).

    Devemos, perante tal classificação do Outro, antes de tirar conclusões apressadas sobre um colonialismo feroz, de intensa coloração racista, em Verne, tomar algumas precauções, para que uma leitura ideológica no se torna uma precipitada caricatura, talvez ideologicamente menos crítica do que o discurso sobre a alteridade produzido no romanesco verniano.

    Antes de mais, comecemos por reconhecer que, como primeiro discurso “científico” sobre os povos africanos, a tirada de Fergusson é, no mínimo, altamente discriminatória. Tal posição, diga-se desde já, não só é reiterada ao longo deste romance como nos outros da série e, nomeadamente, em Le village, onde um pequeno indígena é salvo dos antropófagos pelos dois heróis.

    Contudo, seria estreiteza nossa apresentar uma a alteridade ameaçadora em Verne de forma täo simplista, mesmo aceitando que subjaza a toda a obra, particularmente ao corpus que temos em vista, um racismo latente, enformado por uma mentalidade civilizadora expansionista. Por exemplo, podemos dizer que, de forma menos problemática para o nosso olhar actual,  a outra grande imagem do Outro como negativo é a do esclavagista. Esta última imagem, que é a temática fundamental de Un capitaine não se apresenta, contudo, com a mesma complexidade com que se apresenta a antropofagia. Este tema, que emerge de forma fantasmática e difusa em toda a obra de Verne, merece ser observado como um dos semas dominantes na isotopia da agressividade que se nos afigura presente, de modo muito dinâmico, na descrição verniana. Para lhe reconhecermos melhor os contornos comecemos por considerar o comentário de Joe à descrição acima apresentada dos “nyam-nyam”

    – Si jamais je dois être mangé dans un moment de disette, je veux que ce soit à votre profit et à celui de mon maître! Mais nourrir ces moricauds, fi donc! j’en mourrais de honte”.

        Comentário que, devemos dizer, encaminha o diálogo educativo para uma bem curiosa ironia como se pode ver pelo que se segue:

    “- Eh bien! mon brave Joe, fit Kennedy, voilà qui est entendu, nous comptons sur toi à l’ocasion.

    – A votre service, messieurs.

    – Joe parle de la sorte, répliqua le docteur, pour que nous prenions soin de lui, en l’engraissant bien.

    – Peut-être! répondit Joe; l’homme est un animal si égoïste! (1863:160-1)

    landscape photography of mountains under blue sky

    Cremos que, sob a aparência de um diálogo humorístico, a propósito de um comportamento condenável atribuível aos outros, ao Outro ameaçador com quem Fergusson nem sequer pretende entrar em contacto, mantendo sempre o seu balão no ar, se manifesta uma formulação ideológica básica, uma espécie de revelação de mentalidade radical, visão primeira do mundo, segundo a qual o homem é o lobo do homem.

    Contudo, note-se, tal axioma não aparece formulado explicitamente, permanece na zona magmática, larvar, do que poderíamos chamar, segundo Vovelle (1982:13-14), “mentalidade”. Com efeito se aceitarmos, a sua concepção de que a mentalidade se situa a um nível mais profundo do que a ideologia, integrando o que não é formulado, que fica aparentemente insignificante, como que colocado ao nível das representações inconscientes, podendo mesmo aproximar tal concepção da de inconsciente colectivo ou de imaginário colectivo (entrando, neste segundo caso, a distinção lacaniana entre imaginário e simbólico)podemos compreender que estes “nyam-nyam” de Verne são muito mais o “papão”, o fantasma da ameaça sob os traços do Ogre, do que visões racistas discursivamente formuladas.

    Embora reconheçamos o risco que tais leituras acarretam, pela multiplicidade de interpretações que possibilitam e pelo descontrolo sugestivo que o imaginário desencadeado provoca no hermeneuta, não podemos deixar de, neste caso específico, chamar a atenção para o que em Verne se desenrola no plano descritivo, apelando para uma alternância entre o fantasmático e o ideológico: no caso presente, fornecendo aquele o imaginário com que a ideologia tece a sua história, ou o seu romance legitimador.

    Abusivamente, numa redução que, neste momento, cremos ser-nos consentida, se a usarmos com moderação e cautela, poderíamos dizer que é pelo facto de os negros serem canibais que a acção civilizadora é necessária, devendo eles ser “devorados” pelas potências civilizadas. Note-se que, em contrapartida, o esclavagismo nunca é entendido por Verne como um facto mercantil do Ocidente, tendo sido praticado como pecadilho, quase sempre momentâneo, por algumas nações europeias apenas, segundo a versão que dele nos dá.

    Avenue of the Baobabs, Madagascar during day

    A prática desse pecadilho é, no entanto, tenebrosa, quando se trata dos portugueses. Sobretudo em Un capitaine de quinze ans (1887 – ed. cons.: 1990) para lá de um longo libelo autoral contra o tráfico de escravos, a imagem central que surge do negociante de mão-de-obra humana é a do português e, nesse caso, numa prática de iconografia de persuasão pelo terror, os traços que nos são apresentados retratam um medonho mestiço de português e cafre. No imaginário de Verne estamos, com tal representação, nos umbrais do “inferno sobre a Terra”.

    Uma visão do romancista francês que o tenha como colonialista militante poderá ser encarada, eventualmente, como uma operação interpretativa excessiva. No entanto, não o é para quem tenha experiência da leitura de Verne, sobretudo dos seus romances que narram os feitos de exploradores-caçadores por terras selvagens, e o enquadre, como já o temos vindo a fazer, em todo um universo cultural e de mentalidade. Dentro dessa óptica, podemos registar, como profundamente significativo, que, por exemplo, os poucos contactos que a equipagem do balão Victoria tem com terra sejam de predação e massacre.

    Os animais do espaço africano são abatidos para serem comidos e apreciados segundo as suas qualidades gastronómicas. Os leões são abatidos porque são um obstáculo junto do poço em que os viajantes querem beber. Tudo e todos os que se opõem ao progresso da viagem são abatidos ou destruídos sem dúvidas ou remorsos.   

    Assim, o discurso descritivo em raros momentos aparece sem indícios de ameaça, de violência latente, como um dos atributos caracterizadores: os leões e as suas garras, os antílopes e as suas hastes, os elefantes e as suas presas, as aves e os seus bicos. Para já não falar dos habitantes humanos que são, quando não objecto de equívoco do saber dos viajantes (por serem traiçoeiros, hipócritas, ou até por se “confundiram com macacos”, ao olhar dos europeus, como acontece em Cinq semaines), ameaçadores inimigos, na sua maioria antropófagos.

    five black and white zebras

    Todas as vezes que a personagem viajante é confrontada pelos seus sentidos com novos fenómenos, novos objectos (ou novas personagens, que surgem, por isso mesmo, como colecções  de objectos, do outro lado da mira), a sua percepção do mundo passa a funcionar nas grelhas estéticas (do saber apreciar, saber gozar – tal indígena é feio, certo animal é repugnante, a carne de uma ave é agradável) ou, muito especialmente, nas éticas (o outro modo, a outra forma de vida, não obedecem ao código do nós, da colectividade que se movimenta e traça uma linha de diferença). Poderíamos mesmo dizer que o traço do percurso para além dos efeitos de apropriação que adiante abordaremos, institui um espaço demarcado, de fronteiras mais ou menos fluidas mas omnipresentes, em relação às quais o Outro (humano ou humanóide) emerge para ser avaliado – por norma negativamente.

     Em nosso entender, a primeira grande configuração ideológica presente em Verne, na imagem que nele surge do Outro, assenta no eixo da praxis, decorrente do seu saber fazer. Para o herói verniano o Outro é sempre aquele em relação ao qual se tem de demarcar, que é preciso manter sob mira. Contendo-o à distância, defrontando-o, dá-se-lhe apenas a alternativa de se submeter ou de aceitar o “nosso natural” ascendente – ou a nossa protecção, tomando-o como servo ou guia. Caso contrário, a selvajaria absorve-nos. É a partir desta praxis elementar da distância, demarcativa de territórios, e espaços de aproximação, fundada no estabelecimento de fronteiras claras, motivada por um impulso para o saber que pretende apenas boa ordem, que os outros eixos funcionam: o do discurso e do olhar avaliativo e o da incorporação da alteridade, assimilada como saber (ingerida), na enciclopédia.

    red and yellow hot air balloon over field with zebras

    Para regressarmos ao modelo teórico de Todorov, o processo epistémico não se realiza, sem a incorporação (captação, devoração, no modelo ideológico de Verne e do positivismo) do Outro. O primeiro romance de Verne tem uma perfeita alegoria da mentalidade básica que subjaz a tal visão do mundo e do processo de conhecimento, que resumimos no parágrafo seguinte.

    Em certo momento da viagem do balão Victoria, Joe, para salvar os seus amos, salta do balão e cai no lago de Chade. O que lhe acontece até reencontrar os seus companheiros de viagem é narrado no capítulo XXXV que tem como primeiro título “L’histoire de Joe”, sendo os restantes títulos, na sua maioria, nomenclaturas de lugares visitados (e descritos, obviamente). Logo dentro do lago, enquanto nada, o estado de terror de Joe formula-se num constante pesadelo de mastigações, de triturações, uma vez que, sabendo que o lago era infestado de crocodilos, receava que a sua carne estimulasse o apetite dos animais.

    Sendo salvo das águas por um grupo de indígenas, a sua primeira ideia é a de que estes o vão devorar. Ao contrário das previsões, os salvadores alimentam-no bem e veneram-no – mas tal atitude não repousa o espírito de Joe que admite, em seguida, que possivelmente (p.291) naquelas terras a adoração poderia ir até à devoração do adorado. Depois de escapar da aldeia, sentindo-se cansado, adormece num tronco de árvore – quando acorda vê-se rodeado de serpentes e camaleões (p.292).

    black and brown spider on brown sand

    Após um segundo repouso durante o qual os insectos lhe devoraram as poucas roupas que ainda tinha sobre o corpo, Joe é acordado pelos ruídos aterrorizadores de centenas de animais de dezenas de espécies diferentes, sendo os próprios herbívoros percebidos pelos seus sinais mais ameaçadores (p.194). Contudo, a fome, única solicitação que o faz sair do estado de terror, leva-o a atirar-se sobre um sapo que, apesar de tudo, lhe causava a mais viva repugnância. Um pouco adiante, passando por um pântano, começa a ser sugado pela própria terra (p.196).

    As peripécias seguintes são uma corrida, a pé, seguida de uma cavalgada, em que Joe já nem repara em nada, actua como simples fugitivo perseguido, no final, por um bando de árabes, cuja motivações agressivas nunca são explicitadas, acabando por ser salvo dessa perseguição por uma escada que os companheiros lhe lançam do Victoria.

    Com modelo da viagem por terra, a única que, durante o percurso do balão é realizada neste romance, parece-nos que fica bem patente o traço dominante da ameaça da devoração. Em terra, ao homem resta-lhe ser comido ou então esforçar-se por comer. A descrição que Joe faz dos lugares por onde passa, quando conta as suas aventuras, é um assinalar assustado e hiperbólico do único traço obcecante que percebe nas coisas: serem devoradoras ou serem para devorar.   Esse cuidado demarcador, primeira atitude defensiva que permite tomar todas as iniciativas, está claramente expressa no projecto de Fergusson (Verne,1863:21-2):

    O triunfo da linearização, do conhecimento do território, da sua geometrização e domagem só pode ser realizado por atentos observadores, capazes de fazerem desenrolar o saber à medida do mundo e, reciprocamente, incorporar esse saber, enquanto rota, enquanto proposta pragmática de percurso, no saber da civilização. É a Terra (e os astros) que fornece os dados empíricos para a conceptualização das medidas mas, em contrapartida, as medidas permitem calcular a Terra, reticulá-la, incorporá-la no saber como objecto “civilizado” como espaço onde o homem sabe exactamente onde se encontra.

    Devemos reconhecer que o discurso descritivo de Verne é, até ao seu último romance, eufórico, triunfalista e segrega e uma ideologia da violência ao postular, na visão dos espaços alheios, das suas faunas, das suas floras e dos seus habitantes, uma agressividade latente, em eminência de se tornar acção agressiva. O interessante (e que torna a descrição um elemento fundamental) é que a agressividade observada no espaço exótico, inserida como o traço do silvestre num “lugar” por civilizar, raramente seja actuante, manifeste a o seu poder devorador ou letal de forma súbita ou inesperada.

    Antes de passar a ser agressão (ou, na maior parte dos casos, não o sendo) a agressão é um dado do observado que o viajante observador não tem dificuldade em reconhecer. A sua antecipação permite-lhe, normalmente, a esquiva ou o contra-ataque eficaz. Mas a figura mais recorrente não é a de uma acção de combate em que o triunfo fica por decidir como um suspense do fio narrativo.

    A mais frequente e, cremos, mais próxima do fantasma, é a da latência, a manifestação de uma potência, de uma energia nas coisas que as torna terríficas em si mesmas – mais do que pelo que fazem. Resultando disso que o suspense resida muito mais nos enunciados de estado, ou descritivos, do que nos de acção. Cremos que também neste ponto nos é permitido reevocar o fenómeno singular que é a descrição verniana – é dela que saem os grandes lances lógico-semânticos (em última análise ideológicos, ligados a uma visão do mundo) com os quais se constitui a estrutura causal do narrativo.

    two giraffes standing on brown plants

    Enfatiza-se, nesta energia de agressividade sempre a anunciar-se, que o herói se move não pelo que o adversário faz mas sim pelo que ele é, pelas potencialidades adversas que ele tem ( e que pode ou não pôr a funcionar, nascendo aí uma dinâmica do suspense narrativo) e que o herói deve ser capaz de enquadrar na sua ordem de saber.

    Para ser eficaz na ordenação do saber o herói verniano que percorre terras estranhas não pode ser um ocasional avaliador, não pode introduzir a modalização avaliativa apenas em certos momentos do seu discurso. Tem de avaliar rapidamente o Outro, conhecer-lhe o comportamento, as normas por que se rege, tem de o desqualificar esteticamente pelo menos enquanto sujeito para não hesitar, se necessário for, em abatê-lo. Não é por acaso que os indivíduos notáveis pela figura e pelo porte, homens ou mulheres, são sempre ou submissos ou neutros – ou aliados serviçais. São raros os casos de indígenas avaliados como esteticamente positivos – mas quando surgem são aliados: guias, criados. E a sua grande qualidade ética é normalmente a do predador, companheiro de caçadas.

    O mesmo padrão se aplica à observação dos animais mas, sendo a sua utilização como alimento permitida liberalmente pelos bons costumes da civilização, normalmente são muito mais apreciados como despojos para comer do que como seres vivos gozando da sua inteira liberdade.

    Nunca África é vista, em qualquer dos romances vernianos, como um lugar a ser deixado tal como fora encontrado. O espaço selvagem nunca é o lugar ameno de reencontro com a natureza. Mesmo no último romance, o facto de Blackland se revelar um pesadelo tecnológico não leva à conclusão de que o estado primitivo, a floresta, a vida simples das aldeias, as selvas virgens, são lugares a preservar.

    O espaço selvagem é, para o exercício do herói, como mero lugar de jubilação, uma coutada a usar até a última peça de caça estar viva. Como lugar da ameaça do primitivo, do homem selvagem, é um espaço a controlar. Medir é um modo de integrar na enciclopédia. Por fim, se for disso caso, deve civilizar-se pela força das armas.  

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia:

    Activa

    !863 Cinq semaines en ballon, ed. cons., Le livre de poche, Paris, 1977

    1878 Un capitaine de quinze ans, ed. cons., Hachette, Paris, 1990

    1901 Le village aérien, ed. cons., Hachette, Paris, 1985

    Passiva

    Althusser, Louis, 1977, Posições, Horizonte, Lisboa

    Bakhtine, Mikhail, 1977, Le marxisme et la philosophie du langage, Minuit, Paris

    Chesneaux; Jean, 1982, Jules Verne : une lecture politique

    Guadalupi, Gianni, 1977, The Discovery of the Nile, White Star, Vircelli (It.)/ The American University in Cairo Press

    Hamon, Philippe,  1984, Texte et idéologie, PUF, Paris

    Leenhardt, Jacques, 1973, Lecture politique du roman, Minuit, Paris

    Loutfi, Martine Astier,1971, Littérature et colonialisme. Mouton, Paris

    Todorov, Tzvetan, 1989, Nous et les autres, Seuil, Paris

    Vovelle, Michel, 1985, Idéologie et mentalités, Maspero, La Découverte, Paris


    [1] E que, segundo os franceses, se configura na expressão “à vol d’oiseau”, sendo que esta última é, muitas vezes, a expressão usada pelos artistas, críticos e estudiosos portugueses e, mais alargadamente, é usada por franceses e portugueses, para referir qualquer estudo, abordagem, descrição ou compreensão de qualquer assunto, sem ser necessário que a frase se refira à criação pictórica, sendo equivalente a uma outra expressão metafórica, conceptualizante – “dar uma vista de olhos” –, que se refere a toda a observação apressada e sem grande preocupação de atenção. Precisamos o valor operatório da expressão porque, tendo esta amplitude semântica em conta, percebemos melhor que este olhar de alto é generalizador, globalista e afastado da realidade tratada, permitindo tratar os mundos referidos, de modo esquemático e estereotipado.

  • A retórica do Cosmos: a linguagem da ciência na poética de Victor Hugo

    A retórica do Cosmos: a linguagem da ciência na poética de Victor Hugo


    A produção poética de Victor Hugo manifesta-se como uma das mais marcadas pelo discurso da ciência, na descrição dos lugares, objectos e personagens, entre as que, com reconhecimento alargado, se notabilizaram no seu tempo.

    Do nosso ponto de vista, que defendemos nesta abordagem, só Jules Verne, e, até certo ponto, Zola, para nos mantermos em exemplos da literatura francesa, se evidenciam como igualmente marcados pela mesma influência, no mesmo registo textual. No entanto, a interdiscursividade que detectamos em Hugo, ao contrário da que emerge nos seus pares acima citados, não é apenas um campo que a produtividade poética reelabora, para obter uma visão do mundo realista, ou um alargamento enciclopédico do conhecimento cósmico.

    Victor Hugo (1802-1805)

    De facto, nele, a ciência surge como produtora de uma linguagem veemente e passional, qualquer coisa como o turbilhão vociferante do Cosmos que, longe de inspirar um discurso “branco” do saber, razoável e iluminado, permite o emergir poético da catástrofe sibilada, a coloração das forças imparáveis do universo, e mesmo a emergência dos caos enunciáveis pelas trevas, pelos dilúvios, pelas forças tectónicas e atmosféricas.

    De algum modo, onde o gosto clássico cessante colocava entes divinizados e titãs, todos eles antropomorfizados, Hugo coloca as forças e os objectos naturais descritos pelas ciências, como entidades animadas. Elas não são evidentemente antropomórficas: apenas a visão e escuta dos poetas permitem que as suas figuras emirjam, se anunciem com a capacidade performativa de, enquanto discursos do mundo (por vezes formas e de desígnios enigmáticos), actuarem poderosamente sobre o mundo.

    Assim, os ventos e as correntes não são movimentos cegos, mas fúrias desencadeadas, deslocando-se como agentes das fábulas, as tempestades e os trovões não são fenómenos indiferentes às paixões dos homens, mas sim, antes, forças que com eles actuam, que desafiam e transformam os poderes das personagens.

    statue on topless man

    Se a ciência do século XIX descobre e descreve os fenómenos, sobretudo os energéticos, ao poeta compete entender-lhes o sentido, a sua função actancial no desenrolar da narrativa, o seu sentido profético, ao emergirem, nos cantos líricos, como elementos de uma cosmovisão, ou, nas narrativas, como representações de um espaço vital animado, ele próprio, por forças cegas de destruição e transformação.

    De qualquer modo, a componente do conhecimento científico da época entra como parte do saber que instaura qualquer coisa como o orgulho iconoclasta do poeta, o que lhe permite ter dos séculos – pelo domínio da lenda e da história – e dos estratos cósmicos – pelo desenvolvimento da geografia, da astronomia e das ciências físicas e naturais em geral que ele adquire pelo estudo actualizado – uma visão sincrética.

    No texto “A arte a ciência”, um dos primeiros capítulos da obra que dedica a Shakespeare, (Hugo, s/d [1864]:93-96), o autor francês enuncia o princípio que o rege:

    “O universo sem livro é o esboçar da ciência; o universo com o livro é o ideal que aparece. Também se dá, de imediato, a modificação do fenómeno humano. Onde nada havia senão a força, revela-se a potência. O ideal aplicado aos factos naturais é a civilização. A poesia escrita e cantada começa a sua obra, dedução magnífica e eficaz da poesia vista. Coisa que choca ao enunciá-la: a ciência sonhava, a poesia agiu. Com o barulho da lira, o pensador escorraça a ferocidade.”

    white ceramic man head bust
    William Shakespeare

    Toda a sua argumentação, a partir daí, se desenvolve na demonstração de que a escrita, por si só, depois de ter permitido a abstracção comum à ciência e à poesia, permitiu a esta última construir uma humanidade superior que já assenta muito mais na própria escrita do que no saber da contemplação natural: “A natureza, mais a humanidade, elevadas à segunda potência, dão a arte” (p.95).

    Esta matemática, servindo o princípio da alegorização, permite a Hugo a fórmula final segundo a qual compara a arte e a ciência: “A poesia, como a ciência, tem uma raiz abstracta; a ciência tira daí obra-prima de metal, de madeira, de fogo ou de ar, máquina, navio, aeróscafo; a poesia extrai obra-prima de carne e osso: A Ilíada, o Cântico dos cânticos, o Romancero, a Divina comédia e Macbeth” (p.96).

    O reconhecimento desta superioridade, que Hugo arvora como mais-valia da poesia, desde tempos remotos, como transparece no facto de todas as obras citadas serem supremos modelos canónicos ou mesmo casos de “textos fundadores”, não impede que ele esteja atento, de um modo surpreendentemente criador, aos enunciados do discurso científico que eram inovadores no seu tempo.

    Tentaremos demonstrá-lo com alguns exemplos, contrapondo o discurso da sua voz autoral (lírico-poética, ou de narrador épico-romanesco) a casos em que esse mesmo tipo de discurso se faz sentir pela ausência de enunciados desse tipo ou por uma formulação em que o saber científico não se integra na obra literária, embora aí apareça aludido.

    Comecemos por comparar Hugo com o seu contemporâneo (nascido, tal como Hogo, note-se a efeméride, em 1802) Alexandre Dumas. Não tentaremos fazê-lo em relação ao total das suas obras, porque isso seria uma tarefa fora do âmbito de um artigo, ou até mesmo de um volume de consideráveis dimensões, mas apenas a pequenos exemplos que consideramos privilegiados.

    Em Dumas, tentaremos comentar, através de breves citações, a presença da ciência pela representação que ele faz de um mação alquimista, Joseph Balsamo, no princípio do romance que tem por título o nome da personagem – quase sempre publicado em vários tomos, ele próprio integrado num conjunto de romances que abordam o fim do antigo regime em França, numa série romanesca intitulada Mémoires d´un médecin.

    Logo após as primeiras páginas em que Joseph Balsamo é consagrado membro da ordem (que nunca é nomeada exactamente mas que reproduz, embora com bastante liberdade espectacular, os ritos de iniciação maçónicos), a narrativa apresenta-nos a personagem em viagem, atravessando uma região montanhosa de França, numa carruagem de amplas e complexas dimensões, uma espécie de habitação rolante no interior da qual o protagonista e um velho sábio manipulam enigmáticos frascos, fazem funcionar um forno alquímico no qual se prepara uma misteriosa transformação.

    Alexandre Dumas

    À volta da carruagem desencadeia-se uma tempestade cujos aspectos e efeitos lembram uma inesperada e incontrolável fúria do Cosmos, resultando dela que um dos cavalos é morto e os viajantes têm de parar.

    A descrição do acontecimento, embora obedeça aos princípios elementares do que é comum na visualização literária dos fenómenos da natureza, não tira qualquer consequência do facto de ela estar a ser observada, sentida, percebida e mesmo avaliada por dois seres de supremo saber. Os fogos celestes surgem como uma pirotecnia surpreendente de efeitos luminosos e a água torna-se numa ameaça que inunda o terreno.

    Para o velho alquimista a chuva apenas se manifesta como algo negativo por ameaçar apagar o fogo do forno onde se está a dar a grande transformação, pelo facto de a casa rolante não ter a chaminé devidamente coberta. No entanto, quando, como que por acaso, o velho alquimista se dá conta da trovoada, é com a maior naturalidade que ele explica a Balsamo que é inteiramente possível domar as descargas eléctricas e fazê-las funcionar em proveito da técnica laboratorial. É tudo uma questão de tempo e de oportunidade.

    Os segredos de tal arte, porém, não são enunciados senão pela breve explicação de que “a chama eléctrica” pode “descer até ao forno”, por um sistema de “pontas” suportadas por um “papagaio artificial”. De tal explicação, o genial discípulo, Balsamo, detentor de imensas sabedorias, não percebe nada (cf.Dumas, s/d: 46-47;vol.I).

    O quadro que aqui se nos desenha é, até certo ponto, o de uma relação do homem com o Cosmos, com aquilo que poderíamos designar até, mais funcionalmente, como macrocosmo, manifestando-se tal relação, através de um sábio. No entanto, o processo surge como uma demonstração de que o desenvolvimento do saber é eticamente negativo.

    De facto, o conhecimento contido pelas duas personagens, assente sobretudo numa espécie de manipulação de fórmulas tendentes a construir a transgressão, a arquitectar uma conspiração que altere um conjunto de elementos estruturadores da potência (essencialmente a política – o antigo regime é visto como uma determinada ordem emanada da transcendência vigorando no universo imanente do perecível), não se move para lá de um quadro ou espaço fechado: o das fórmulas dos livros e dos instrumentos sagrados e/ou proibidos.

    Tal saber encerrado, feito e dominado de uma vez para sempre, parece nada poder acrescentar à visão poética, ficcional ou mesmo cientificamente informada, do macrocosmo. Todo o saber acerca deste permite apenas domínios parciais que podem ou não ser usados para perturbar a ordem humana estabelecida.

    photo of library with turned on lights

    Dentro deste quadro epistemológico, o saber do sábio (o alquimista, o mação) é sempre um movimento perverso, surgindo no discurso como eticamente negativo. Dado que é indevido no interior do sagrado, torna-se uma actuação de sacrilégio ou de violação. O desenvolvimento da narrativa de Dumas vai revelar-nos que assim é.

    Quanto ao romancista, na construção das perspectivas que assume como narrador, nunca atribui ao saber das ciências quaisquer perspectivas complementares que lhe permitam desenvolver ou desenhar um quadro do Cosmos que ultrapasse a observação razoavelmente empírica das aparências. Tudo está feito pelo grande arquitecto, é ele que assegura a coerência do Cosmos e das suas manifestações.

    Por isso, ao sábio, compete-lhe aprender as fórmulas da manipulação, mas não o sentido dos fenómenos, que está estabelecido de uma vez por todas. A alquimia (em sentido lato e algo metafórico, claro!) não anda, neste caso, muito longe da teologia.  Aliás, na poética de Dumas, mesmo a descrição elementar de quadros do mundo, sobretudo da natureza, são, comparando-os com os diálogos e as narrações de acções, por exemplo, raros (pelos menos dentro da parte da sua gigantesca obra que nos foi dado ler) e, isso, possivelmente, porque a interrogação dos mesmos, da razão de ser das suas origens (as fontes,  as causas – mas também, complementar e simetricamente, as interacções e consequências), não era material que interessasse a uma tal visão do mundo.

    O homem de Dumas não age sobre o universo, nem é por ele transformado. Move-se no seu interior sem um saber científico. Quando o saber emerge, apresenta-se como uma perversão face ao sagrado, uma acção de feitiçaria. As relações são mais entre as personagens e os entes mágicos ou as suas manifestações intencionais, no que respeita ao cosmos (um ente supremo desencadeia uma catástrofe, por exemplo), do que entre as personagens e os fenómenos da natureza – de um modo geral e relativo, evidentemente

    Não será essa a posição de Hugo. Neste, embora nunca apareça uma figura importante de cientista, a visão científica do universo como questão estética, como material de construção poética, é fundamental. Em nosso entender, num processo complexo que não podemos dilucidar aqui inteiramente, mas que abordaremos de modo parcial, o trabalho poético de Hugo assenta na validação do discurso científico, retomando a linha das poéticas do humanismo renascentista que, em primeiro lugar, fizeram sentir a sua necessidade, embora nem sempre o tratassem satisfatoriamente como elemento central da elaboração poética.

    cliff beside sea water under bright sky

    Esquecendo a anatomia dos pintores e escultoras da Renascença italiana, abordemos a questão através de um dos nossos clássicos. E façamo-lo num texto que é de antologia e tem sido de “escolaridade obrigatória”. Trata-se, como se suspeitará, a partir do que anteriormente dissemos, do canto V de Os Lusíadas.

    De facto, aí, vamos encontrar duas descrições de forças naturais observadas que o narrador Vasco da Gama cita, quer como fenómenos de que ouviu falar, quer como ocorrências que ele próprio observou: de um modo geral, o que acontece é que ele confirma como verdadeiras as coisas extraordinárias que já eram da “enciclopédia” dos nautas, antes da viagem que o celebrizou.

    São elas “cousas do mar, que os homens não entendem”, mas que ele Gama, viu, confirmando o “que os rudos marinheiros, que tem por mestra a longa experiência, contam por certos sempre e verdadeiros” (est. 16-17).

        Em seguida, não só os enumera sumariamente – “súbitas trovoadas temerosas, relâmpados que o mar em fogo acendem, negros chuveiros, noites tenebrosas, bramidos de trovões que o mundo fendem” (est. 16) –, mas ainda  apresenta de forma mais pormenorizada  “as nuvens do mar com alto cano sorver as águas do oceano”, num quadro descritivo conhecido como “a tromba marítima” (est. 19), e “o lume vivo que a gente marítima tem por santo” (est. 18), numa apresentação evocativa (enargueia) –  que faz amplo apelo aos termos designativos do visual – conhecida como a do “fogo de Santemo”.

    fountain pen on black lined paper

    No entanto, devemos notar que, para a funcionalidade da narrativa que está a ser desenvolvida, a da viagem que leva à descoberta do caminho marítimo para a Índia contornando África, a função das descrições é quase puramente ornamental. Porque, logo um pouco à frente, ainda no mesmo canto, a verdadeira função da manifestação das forças e energias do Cosmos como obstáculo a ser ultrapassado, pelo conhecimento e pela coragem, é representada pela figura do Adamastor.

    Neste episódio, de qualidade estética e invenção narrativa unanimemente reconhecidas, emergem os elementos do clima e da topografia, bem como a mecânica das correntes e dos ventos, numa figuração alegórica que os dramatiza, constituindo-os como forças passionais, que entram em jogo com a vontade e a coragem dos navegantes. Dada a proximidade das descrições, quase marcadas pela vontade de fazer cartografia e climatologia dos obstáculos geográficos e das tempestades, e a representação “dramatizada” do episódio do Adamastor, que surge poucas estrofes adiante, quase se poderia sugerir que a entidade “Terra” ganha aparência de energia e de força ameaçadora, através das acções deslocadas – por figuração – para o actuar e dizer do titã,  não pelo exibir das suas próprias características dinâmicas.

    É claro que tal atitude poética do nosso épico renascentista não nos pode surpreender. Está em causa, na construção do seu discurso narrativo, a intensa aprendizagem da epopeia clássica, de gregos e romanos, para os quais as forças terrestres exprimiam as magnitudes, sentidos e paixões de entes primordiais, fontes de toda a energia cósmica – ou, explicitanto a inversão imaginária, os entes eram a realização das forças, não as suas representações, mas a sua verdade ontológica.

    orange rose flower beside notebook and pen

    Devemos notar, no entanto, que o sentido dos factos observados no conhecimento do mundo, das coordenadas e características dos elementos terrestres era, desde então, motivo de interrogação científica para os próprios poetas, que, no entanto, não hesitavam em simplificar a representação desses mesmos factos através dos mitemas conhecidos.

    Narrar uma viagem implicava estar atento aos elementos empíricos que constituíam essa viagem, muito embora a compreensão dos fenómenos, sobretudo os de mais evidente dinamismo, carecesse do saber livresco de séculos anteriores – quase sempre poético, ele próprio, dado que ser cultivado era ser letrado, e ser letrado passava por conhecer os épicos, os trágicos, os físicos, os filósofos, os cronistas…

    Posto isto, deve ser lembrado aqui que um outro filão discursivo nascia já por essa época, num tipo de textos que se desenvolve em paralelo àquele  a  que hoje chamamos literatura,  constituindo-se à margem das obras canónicas – mas mantendo relações com elas, muito embora se desenvolvesse em projectos que se podem relacionar com o discurso científico. De um modo geral, podemos chamar-lhe narrativas de viagens – mas teremos de admitir que os autores dessa genealogia se situam, na variedade de tendências que representam, entre Garcia de Orta e Fernão Mendes Pinto.

    Admitindo, com um imediatismo de intuição de leitor (o qual, por razões óbvias de espaço, não tentamos explicar aqui), que o segundo se encontra muito perto daquilo a que chamamos hoje literatura (e da melhor), e o primeiro não tanto, mantendo-se os seus “colóquios” sobre as “drogas e os elementos simples” num campo que seria hoje o de uma botânica, de uma química, de uma química orgânica, fazemos-lhe uma breve referência.

    photo of island and thunder

    Efectivamente, em Peregrinação, o saber enciclopédico, organizando a experiência empírica da arte da navegação, perspectiva o remoinho dos Cosmos, com os seus ventos, as suas marés, as suas tempestades, os seus territórios virgens, agrestes e quase inexpugnáveis, como uma entidade que não se faz representar por outrem.

    Nele se apresentam e encenam as forças do cosmos tal como ainda hoje se podem apresentar no discurso científicos os elementos da natureza, quando se trata, para este discurso, de os referir de modo amplo e perceptível por todos. As forças dos elementos são aceites como um facto, sem precisarem de intermediários mitológicos para os explicar – e produzem efeitos que, embora apresentem a face do destino, não reconfigurem por isso, no mundo em que a miséria humana se processa no absurdo da sua fragilidade, uma vontade celeste antropomórfica.[1]

    O empirismo propõe, como primeira atitude favorável ao desenvolver da ciência, uma espécie de “pacto de aceitação da factualidade enquanto tal”. Assim, os fenómenos podem ser enigmas, sem que sejam obras ou manifestações de entes. Podem constituir fonte de perguntas sem que a sua explicação tenha de ter uma resposta urgente, feita mais de crença do que de saber. O Cosmos é, assim, na espantosa narrativa de Fernão Mendes Pinto, uma força imanente que é preciso reconhecer na sua empiricidade. Sem esse saber dos factos, a actividade humana desenvolve-se erraticamente.

    Aliás, como se percebe no episódio da tempestade durante o qual desaparece o pirata António de Faria e o tesouro que tinha roubado com o seus cúmplices, o desencadear das forças do Cosmos é representado por imagens de fenómenos físicos sem explicação, que a si próprias se representam, forças do acaso e da fatalidade neutra  que se desencadeia e contra a qual o homem se talha na sua autenticidade.

    A densidade desse confronto existencial, que já em finais do século XVI (data presumível da redacção, embora o primeiro manuscrito que se conhece, que nem é atribuível à vontade expressa do autor – suspeitando-se que foi amplamente remanejado -, date de inícios dos séc. XVII), era uma das forças principais da intensidade poética da Peregrinação, pode-se considerar uma das pedras de toque da construção do realismo textual de Hugo.

    Uma das suas figures recorrentes, em textos narrativos e líricos sobretudo (mas também em muitos discursos das personagens, no teatro), é o defrontar das forças do Cosmos pelos seus heróis. Os animais, os ventos, as marés, os rochedos, as propriedades dos materiais são, no seu romance Les travailleurs de la mer, autênticas potestades que, sem aparecerem sob formas antropomorfizadas, actuam como verdadeiras personagens.

    Em grande parte, o antagonismo fundamental que constitui a acção central nesse romance, é a luta entre um jovem experto nas lides do mar, e as forças do oceano, contra as quais tem de lutar para levar a cabo a sua tarefa de recuperar o motor de um barco a vapor. O objectivo do jovem herói é, no entanto, conquistar a mão da donzela que ama, a qual lhe fora prometida pelo pai da rapariga, caso conseguisse recuperar o mecanismo a vapor do seu barco, desmantelado durante um naufrágio contra um rochedo do canal da Mancha.

    Para o efeito, o jovem parte sozinho, na sua pequena mas sólida embarcação de pesca, movida pela força do vento. A tarefa é pesada, quase impossível, pois o conjunto de recifes contra os quais o vapor naufragara era muito escarpado e de difícil acesso, como o estado das marés e dos ventos era inconstante, com permanentes tempestades, ventos fortes e agitações tumultuosas das águas. Dominando o conjunto de rochedos, destacava-se um: “L´Homme” (p.201).

    É esse conjunto de elementos, actuando pelo seu estatismo (escolhos do recife, inacessibilidade dos rochedos) e pela dinâmica tempestuosa (ventos, ondas, trovoadas e marés), que Gilliatt (assim se chama o protagonista) irá enfrentar, pela aplicação de uma espécie de tecnologia oriunda de algum saber (Gilliatt lia alguns livros – p. 22-23 – embora se vestisse como “ouvrier où matelot” – p. 13 – o que, naqueles locais das “ilhas do canal”, o identificava com as populações humildes e iletradas); de um poder físico de “barbare antique”, as marcas de “homme hardi et persévérant” nos vincos do rosto e na tez  a “sombre masque du vent et de la mer” (p. 34)  – enfim, sendo de “taille ordinaire et de force ordinaire, il trouvait moyen, tant sa dextérité était inventive et puissante, de soulever des fardeaux de géant et d´accomplir des prodiges d´athlète” (p.34); das graças de homem do mar como pescador e nadador (p. 36);  do “instinct” que, para distracção, o levou a aprender três ou quatro ofícios “menuisier, ferron, charron, calfat, e même un peu mécanicien” (p. 38); e de uma disponibilidade inventiva dinamizada pela sua posição de solitário e apaixonado.

    Veremos, um pouco mais em pormenor, um quadro do confronto desenhado entre este atleta da habilidade e da firmeza e as forças universais que desafia, para repararmos como para tal o discurso científico é um dos materiais a que Victor Hugo recorre para construir a sua representação. Tendo em vista tal demonstração, teremos de recorrer a um pequeno excerto, resumindo os contextos espaciais e situacionais em que ele aparece.

    Como já se explicou resumidamente em parágrafos anteriores, Gilliatt vai ao recife onde o barco encalhou. A sua chegada ao local merece, por parte do narrador, uma apresentação do local, e das características que o tornavam um obstáculo e mesmo um adversário. Contudo, antes de o apresentar enquanto “escolho” singular, concreto, o autor elabora a sua pequena entrada enciclopédica “esclarecedora”. Eis um excerto de tal verbete-resumo do saber, construído como explanação propiciatória da compreensão das “forças” do espaço onde a acção se vai desenrolar:

    Un écueil corridor est orienté. Cette orientation importe. Il en résulte une première action sur l´air et sur l´eau. L´écueil corridor agit sur le flot et sur le vent, mécaniquement, par sa forme, galvaniquement, para l´animation différente possible de ses plans verticaux, masses juxtaposées et contrariées l´une par l´autre. /Cette nature d´écueils tire à elle toutes les forces furieuses éparses dans l´ouragan, e a sur la tourmente une singulière puissance de concentration./ De la, dans les parages de ces brisants, une certaine accentuation de la tempête./ Il faut savoir que le vent est composite. On croit le vent simple ; il ne l´est point. Cette force n´est pas seulement chimique, elle est magnétique. Il y a en elle de l´inexplicable. Le vent est électrique autant qu´aérien” (p. 247). 

    shipwreck on shore

    O excerto que aqui apresentamos é uma breve amostra. Esta “explicação” sobre o vento e sobre o mar, que não exclui muitas outras anteriores e posteriores, estende-se por mais algumas páginas, antes de chegarmos de novo à situação singular em que o herói se encontra. Embora não seja um sábio, nem o conhecimento enunciado pelo narrador pareça decorrer da personagem, como que revelando o seu pensamento íntimo, deduzimos que a astúcia do jovem herói, que acima apresentámos resumidamente, é capaz de inferir as ameaças a partir da sua experiência empírica.

    Gilliatt se connaissait assez en écueils pour prendre les Douvres fort au sérieux. Avant tout, nous venons de le dire, il s´agissait de mettre en sûreté la panse. (…) Les sommets lointains des bas-fonds, mis hors de l´eau par la marée descendante, aboutissaient sous l´escarpement même de l´Homme à une sorte de crique, murée presque de tous côtés par l´écueil. Il avait là évidemment un mouillage possible. Gilliatt observa cette crique. Elle avait la forme d´un fer à cheval, et s´ouvrai d´un seul coté, au vent d´est, qui est le moins mauvais vent de ces parages. Le flot y était enfermé et presque dormant. Cette baie était tenable. Gilliatt d´ailleurs n´avait pas beaucoup de choix” (p.250-252)

        Notaremos, a partir deste texto, como todos os dados da descrição, quer resultem da observação directa do herói (ou como que através dele, dado que a sua presença justifica o olhar, e os seus interesses – como aportar, como obter segurança da concha formada pelos rochedos – o privilegiar de objectos e ângulos de visão), quer provenham da voz autoral do narrador (tornando-se a autoridade, pelo modo como debita o conhecimento, autoralidade) apontam para a construção de agrupamentos e condições que sugerem o conflito: por um lado as energias cósmicas, anunciando sempre o limiar da catástrofe, e por outro o herói, avaliando os obstáculos e o eventuais adjuvantes que encontra, preparando-se para resistir à tormenta.

    book lot on black wooden shelf

    É curioso notar ainda que, um dos rochedos do recife, o mais imponente, é conhecido por “Homme”, o que lhe cria um estatuto ambíguo quer na representação simbólica quer na função que vai assumir na acção, ora adversário do herói, colaborando com a tempestade e a maré, ora seu aliado, dando-lhe apoio.

    É isso que se percebe durante a faina do herói, cujo comportamento, quer na construção dos mecanismos de apoio ao seu trabalho, quer na defesa do porto onde tem a embarcação, lembra os titãs, os deuses ou os heróis da epopeia clássica: Prometeu, Hefestos, Ulisses ou mesmo Ajax ou Heitor. Todas essas figuras, porém, surgem como referências nunca explicitadas. O processo de evocação é tão só desencadeado pelo trabalho do herói: o domínio do fogo e da forja (Prometeu, Hefesto); os conhecimentos do mar e das suas “traições”, contra as quais tem de usar precaução e astúcia (Ulisses); e a capacidade de defender o seu território contra as investidas do grande adversário em fúria (Ajax e Heitor).

    Serve-nos de exemplo do modo como herói é construído, o pequeno excerto que em seguida apresentamos:

     “Gilliatt fit la forge./ La deuxième  anfractuosité choisie par Gilliat offrait un réduit, espèce de boyau, assez profond. Il avait eu d´abord l´idée de s´y installer ; mais la bise, se renouvelant sans cesse, était si continue e si opiniâtre dans ce couloir qu´il avait dû renoncer à habiter là. Ce soufflet lui donna l´idée d´une forge. Puisque cette caverne ne pouvait être sa chambre, elle serait son atelier. Se faire servir par l´obstacle est un grand pas vers triomphe. Le vent était l´ennemi de Gilliatt, Gilliatt entreprit d´en faire son valet. (…) La forge que Gilliatt voulait établir était ébauchée par la nature ; mais dompter cette ébauche par la nature ; mais dompter cette ébauche jusqu´à la rendre maniable et transformer cette caverne en laboratoire, rien n´était plus âpre et plus malaisé” (p.269).

    person raising both hands

    Nesta luta o herói não só desenvolve os seus dotes, como manifesta a capacidade de aplicar novas soluções a partir de desafios que os obstáculos lhe colocavam. Nomeadamente, são de considerar as construções da “grua”, que ele se vê forçado a fazer, para elevar a gigantesca máquina salvada do naufrágio, e as barreiras, calculadas segundo a necessidade de resistência à energia hidráulica do mar.

    Efectivamente, a voz narrativa não deixa de aplaudir o saber artesanal de Gilliatt, comparando-o a um célebre pedreiro medieval que, antes da descoberta das leis físicas que orientavam cientificamente o seu trabalho (as do atrito), fez deslizar um gigantesco relógio num brilhante cálculo de forças estáticas e dinâmicas. No entanto, Gilliatt seria mais notável do que esse pedreiro, na medida em que trabalhava sozinho, e tinha de suspender a sua máquina de muitas centenas de quilos, para a transportar para a embarcação de salvamento (pp. 289-290).

    As considerações sobre a física e a tecnologia, no desenvolvimento da operação, são apresentadas pelo autor, recorrendo sempre à referência a conhecimentos desenvolvidos pelas ciências do século XIX.

    É igualmente com grande precisão descritiva, pelo recurso ao léxico e saber tecnológico e científico, que a luta contra o mar nos á apresentada, desenvolvendo-se a descrição a partir na narração das tarefas do herói:                   

      “Gilliat, avec cette adresse qu´il avait, plus fort que la force, exécutait une manœuvre de chamois dans la montagne ou de sapajou dans la forêt, utilisant pour des enjambées oscillantes et vertigineuses la moindre pierre en saillie, sautant à l´eau, sortant de l´eau nageant dans les remous, grimpant au rocher, une corde entre les dents, un marteau à la main, détacha le grelin qui maintenait suspendu et collé au soubassement de la petite Douvre le pan de muraille de l´avant de la Durande, façonna avec des bouts de haussière des espèces de gonds rattachant ce panneau aux gros clous plantés dans le granit, fit tourner sur ces gonds cette armature de planches pareilles à une trappe d´écluse, l´offrit en flanc, comme  on fait d´une joue de gouvernail, au flot qui en poussa et appliqua une extrémité sur la grande Douvre pendant que les gonds de corde retenaient sur la petite Douvre, au moyen des clous d´attente plantés d´avance, la même fixation que sur la petite, amarra solidement cette vaste plaque de bois  au double pilier de goulet, croisa sur ce barrage une chaîne comme un baudrier sur une cuirasse, et en moins d´une heure cette clôture se dressa contre la marée, et la ruelle de l´écueil fut fermée comme une porte” (pp.310311).

    Encontramos neste excerto um dos típicos procedimentos descritivos que remonta à tradição homérica, e que já nesse modelo clássico aparecia como propiciador de uma visão dos objectos disciplinada pela sabedoria e naturalizada pelo acto narrativo de mostrar a personagem produzindo (ou entrando em contacto com) o objecto da descrição. O domínio pleno da obra por parte do seu “artesão”, que aqui nos aparece, remete-nos para a construção da ekphrasis, termo que Hamon considera designar a “descrição literária (seja ou não integrada na narrativa) de uma obra de arte real ou imaginária (…) que determinada personagem da ficção encontra.

    Exemplo sempre citado: o escudo de Aquiles” (1991: 8). O célebre exemplo aqui citado evoca o episódio da Ilíada, em que é feita a descrição do novo escudo de Aquiles, o qual aparece passo a passo, através da apresentação das diversas etapas da sua confecção por Hefesto, o deus dos fogos e dos vulcões. A descrição como que se naturaliza, através da narração do fazer do objecto descrito[2].

    white book page with black background

    Ora, esta modalidade de discurso, tão privilegiada na apresentação de obras de arte, ou técnicas (no sentido forte da sua raiz etimológica: téchnê), é, na tradição da boa prática da escrita (de que a literatura seria um caso maior), quase indissociável do “dizer” científico. Philippe Hamon, a cujos trabalhos de investigação sobre a descrição recorremos mais uma vez, coloca a questão com muito clareza, elucidando com a sua perspectiva a argumentação que aqui defendemos:

    o enunciado descritivo é, sem dúvida, próximo, materialmente e psicologicamente, dos textos do saber para a constituição dos quais ele contribui pela sua própria actividade, ou que ele consulta para verificar e autentificar a sua descrição. (…)Deve notar-se, em primeiro lugar, que um saber (de palavras, de coisas) é, não apenas, um texto já aprendido, mas, também, um texto já escrito, algures, e a descrição pode, então ser considerada, em maior ou menor dimensão, como o lugar de uma reescrita, como um operador de intertextualidade; de-sribere, lembremo-nos, é, etimologicamente, escrever segundo um modelo. Esta operação de intertextualidade pode ocorrer entre textos disjunto de produtores diferentes (Zola para descrever o jardim, em La Faute de L´abbé Mouret, recopia os manuais e os catálogos de horticultura), como entre textos disjuntos do mesmo produtor, de acordo com um método e com protocolos de escrita, datados mas suficientemente difundidos universalmente, que consistem, para um autor descritivo, em reunir, primeiro, a sua documentação antes de escrever a sua descrição, seguidamente  em escrever, primeiro, as suas partes descritivas, antes de redigir as partes mais propriamente narrativas que as encaixarão (…) Tal processo revalida, então, a oposição ideológica entre a narrativa (a imaginação) e a descrição (o saber) e mesmo, no interior da descrição, entre um saber previamente registado pelo estudo da natureza, e a sua reescrita posterior. A operação de intertextualidade é, então, dupla, produzindo-se o rewriting no interior de uma mesma escrita, e de uma escrita para outra; mas devendo as estruturas e as marcas desse duplo enxerto ser apagadas e rasuradas tanto quanto possível  (no texto legível-referencial-clássico), o apelo ao reconhecimento, por parte do leitor, dos campos lexicais actualizados, deve fazer-se com base na ignorância da sua origem textual, ou seja, do facto de ele ter sido copiado e recopiado (de um outro texto; do dossier preparatório do autor). De onde resulta, como veremos, a grande quantidade de processos narrativos destinados a «naturalizar» a inserção do discurso do outro (o documento) no texto descritivo” (1993: 48-49).

    Parece-nos que, na fundamentação da poética de Hugo, são bem importantes estes mecanismos de oficina de escrita. O que perpassa, na leitura atenta do texto, projectando-o, em cotejo, sobre outros similares ou próximos, não é o nascimento da descrição (a partir do romantismo, com uma “época de ouro” no naturalismo) em oposição a um classicismo que o desconhecesse. É claro que, na tradição poética ocidental, da Grécia clássica até ao romantismo francês, a descrição sempre existiu.

    O que acontece é que as operações de reescrita, a partir do romantismo, e em Hugo muito em especial, para atingirem a validação poética, têm de lançar mão do disfarce de que fala Hamon, para que o não literário (o documento mundo e o documento sobre o mundo) se literarize

    O que não era necessário no caso da poética clássica que importava os seus textos, para os reescrever, da tradição literária, de um saber que já era literário (até porque todo o saber, até ao séc. XVIII, era fundamentalmente letrado, sendo as letras um acesso ao conhecimento procurado sobretudo nos mestres poetas – porque os poetas eram transmissores da ciência, em pé de igualdade com aqueles que hoje reconhecemos como cientistas: Galileu, Cirano de Bergerac, Rodrigues Lobo e Garcia de Orta escrevem diálogos, numa dimensão criativa em que é difícil dizer onde começa o literário e acaba a ciência, ou vice versa), de uma literatura que transmitia “ciência”, de uma ciência que só se podia fazer com o domínio das letras que as poéticas forneciam.

    Se é certo que o poeta, no dizer de Hugo, se defronta com o cientista, não é para o ultrapassar, como o criador poético sugere no seu texto sobre Shakespeare. Em nosso entender, a operação poética mais importante nesse confronto, é a absorção do discurso científico pelo poético. Pelo que aquele introduz neste de desafio, de renovação lexical, de abertura de perspectivas sobre o cosmos e sobre as relações do homem com este. E cremos que há, desde então, um virtuoso intercâmbio entre os campos: ele anuncia-se, sobretudo, no modo como a ciência recorre à metáfora para conceptualizar, e no processo segundo o qual a criação literária despe as roupagens da alegoria ao universo, para tomar em consideração o dramatismo das forças cósmicas. 

    A importância de tal relação, não reside apenas no modo poético de construir e dar a ver as forças do universo tal como o discurso científico as via. Em nosso entender, no diálogo que estabelece com as ciências, a criação poética desenvolve, pelo modo como vislumbra o universo, as condições para que a própria ciência ultrapasse as barreiras que se criaram entre o animismo e o vitalismo, ou seja que se possa pensar sem escândalo que “caia a barreira entre orgânico e mineral” (François Jacob, 1971: 136).

    clear hour glass beside pink flowers

    E, mais ainda: na sua dramatização das relações do homem com o cosmos, ao atribuir ao cosmos uma retórica que interage com a do homem na expressão e defesa dos seus valores, ela pressupõe o desenvolver de conceptualizações que antecipam os passos que, a partir de meados do século XIX, permitem desfazer a mitificação que assentava no conceito-barreira de força vital. E em Hugo, por certo, desenham-se as novas formas de perspectivar o objecto das ciências químicas, físicas, biológicas e genéticas que permite o aparecer como evidente, hoje em dia, que os seres vivos são “a sede de um triplo fluxo: de matéria, de energia e de informação” (F. Jacob, 1971:137).

    Ora, se a biologia, como reconhece o mesmo cientista, estava já, então, em condições de reconhecer o fluxo da matéria (cf. Jacob, 1971: 137-138), é na criação poética que o vislumbre utópico dos outros dois fluxos se desenham, antes de emergir claramente nas novas concepções das ciências que se declaram no princípio do século XX. Entre as obras que constroem o dizer dessa energia, que fazem as forças da natureza significar na construção da ficção, como dirá, quase na mesma época, Zola, conta-se a de Victor Hugo.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia:

    Bronowski, J., 1986, Magia, ciência e civilização, Edições 70, Lisboa

    Camões, Luís, Os Lusíadas, 1987, Areal, Porto

    Dumas, Alexandre, Joseph Balsamo, s/d, Calmann-Lévy, Paris

    Greimas, A. J. E J. Courtés, (1979) s/d, Dicionário de Semiótica, Cultrix, S. Paulo

    Hamon, Philippe, 1991, La description Littéraire, Macula, Paris

    Hamon, Philippe, 1993, Du descriptif, Hachette, Paris

    Hugo, Victor, s/d[1864], William Shakespeare, Nelson, Paris.

    Hugo, Victor, 1979[1866] Les travailleurs da la mer, Hachette, Paris.

    Jacob, François, 1971, A lógica da vida, Dom Quixote, Lisboa


    [1] Simplificamos aqui uma questão bastante complexa. No entanto, assentamos o nosso reconhecimento da importância do discurso científico na literatura no ponto básico de o dado empírico valer por si, como axiologia, e não depender de valores fora da esfera da descrição em que se apresenta. Acompanhando um mestre da teoria da linguagem, semioticistas como Greimas e Courtés escrevem: “Para L. Helmeslev, é científica qualquer semiótica que seja uma operação (ou descrição) conforme ao princípio de empirismo” (1979:46). Temos em atenção, também, obviamente, o discurso dos cientistas da natureza, filósofos e historiadores da ciência, e aceitamos como base um enunciado como o de Bronowski: “Sustento que a revolução científica de 1500 em diante constitui uma parte essencialmente do Renascimento, que sem ela o renascimento não podia ser convenientemente entendido como uma reavaliação do homem (…) Desde essa época temos estado na posição ímpar de formar uma imagem única do conjunto da natureza, incluindo o homem. Trata-se de um novo empreendimento; difere dos empreendimentos precedentes pelo facto de não ser mágico, com o que pretendo significar que não supõe a existência de duas lógicas, a lógica do natural e a lógica do sobrenatural” (1986: 49-50) 

    [2] Aqui fica, a título de exemplo, um pequeno excerto de acordo com a tradução, altamente conceituada, de Frederico Lourenço: O Escudo de Aquiles (Ilíada, canto XVIII vv.478-490, dispostos linearmente) “Fez primeiro um escudo grande e robusto, todo lavrado, e pôs-lhe à volta um rebordo brilhante, triplo e refulgente, e daí fez um talabarte de prata. Cinco eram as camadas do próprio escudo; e nele cinzelou muitas imagens com perícia excepcional. Nele forjou a terra, o céu e o mar; o sol incansável e a lua cheia; e todas as constelações, grinaldas do céu: as Plêiades, as Híades e a Força de Oríon; e a Ursa, a que chamam Carro, cujo curso revolve sempre no mesmo sítio, fitando Oríon. Dos astros só a Ursa não mergulha nas correntes do Oceano”.

  • Estante P1: Setembro de 2022

    Estante P1: Setembro de 2022

    Título

    ​A casa ocupada

    Autora

    ​Graça Videira Lopes

    Editora

    ​Dom Quixote

    ​Sinopse

    ​Um brasileiro torna-viagem mandou construir um palacete à Junqueira, em Lisboa, em 1889, para nele instalar a numerosa prole que não cessou também de aumentar fora de casa. O edifício — abandonado pelos anos 1950 e ocupado na sequência da revolução de abril de 1974 — está hoje transformado num condomínio de luxo onde moram Pedro e Júlia, um jovem casal de economistas.É pela voz de Júlia — curiosa sobre o passado da casa —, mas também da sua cunhada Sofia, do namorado desta e de outros narradores, que vamos conhecendo não só as histórias das próprias personagens, mas também as que elas vão gradualmente descobrindo: a do republicano José Anastácio, o primeiro proprietário do palacete; e a do pai de Pedro e de Sofia, maoista em tempos da Revolução de 1974 e empresário de sucesso muitos anos depois.

    Inteligente, divertido e cheio de surpresas, este romance — finalista do Prémio LeYa em 2021 — toma as décadas anteriores à implantação da República, os anos da Revolução de Abril e os tempos atuais como contexto e cenário, para nos oferecer um retrato breve e irónico de algumas elites portuguesas, desde finais do século XIX até aos nossos dias.

    Título

    ​A trilogia de Copenhaga: Infância; Juventude; Relações tóxicas

    Autora

    ​Tove Ditlevsen

    Editora

    ​Dom Quixote

    ​Sinopse

    ​Considerada “uma obra-prima” pelo The Guardian, A Trilogia de Copenhaga reúne num único volume Infância, Juventude e Relações Tóxicas, os três livros fundamentais de Tove Ditlevsen, aclamada como uma das vozes mais importantes e singulares da literatura dinamarquesa do século XX. Uma obra corajosa e honesta que representa um exercício pioneiro no campo da escrita confessional, explorando temas como a família, o sexo, a maternidade, a toxicodependência e as dificuldades da mulher para ser artista.Durante a sua vida, Ditlevsen teve de lidar com a tensão entre a sua vocação de escritora e os seus papéis de filha, esposa e mãe, bem como a sua condição de viciada, o que a levou a escrever sobre a experiência e a identidade feminina de uma maneira muito à frente do seu tempo e ainda pertinente para as discussões actuais em torno do feminismo. Embora baseada nas experiências da autora, A Trilogia de Copenhaga lê-se como a ficção mais empolgante, sendo notável pela sua intensidade e descrição imersiva de um mundo de complexas amizades femininas, relações familiares e literatura — nesse sentido, é a resposta de Copenhaga aos romances napolitanos de Elena Ferrante. Por outro lado, Ditlevsen pode também ser vista como uma precursora espiritual de escritores confessionais como Karl Ove Knausgård, Annie Ernaux, Rachel Cusk e Deborah Levy.

    Título

    ​Adeus, Casablanca

    Autor

    ​João Céu e Silva

    Editora

    ​Guerra e Paz

    ​Sinopse

    ​E se, finalmente, Hollywood fizesse a continuação do filme Casablanca, o mítico filme que ainda hoje seduz milhões de pessoas em todo o mundo, e a trama girasse em torno do desvio de um avião da TAP, o primeiro grande acto de protesto político aéreo de sempre e que causou a Salazar tantos dissabores quanto o filme Casablanca causou a Hitler?Adeus, Casablanca fala-nos desse evento verídico que servirá de inspiração à argumentista de Hollywood que está a escrever o guião da sequela de Casablanca e para quem o desvio do Super-Constellation se torna uma obsessão e, também, uma revelação.Neste cenário histórico, recorda-se a vigilância da polícia política sobre os exilados portugueses no norte de África, bem como a realização da Conferência de Casablanca, em que se defendia o fim da presença portuguesa nas províncias de África.Neste Adeus, Casablanca não podia faltar a recriação da vida marroquina dos tempos em que Paul Bowles vivia em Tânger, em que a espionagem era algo bem real e em que o exílio para a vida era o preço a pagar pelas opções que se faziam.

    Título

    Consumidos pelo fogo

    Autor

    ​Jaume Cabré

    Editora

    ​Tinta da China

    ​Sinopse

    ​Ismael, ou o homem a quem na maior parte do tempo, não por acaso, devemos chamar Ismael, não teve uma infância fácil. Ainda assim, conseguiu superar obstáculos, estudar, tornar-se professor de línguas e literatura, e instalar-se, mesmo que sem grande estrondo, numa existência rotineira e pacata. Isto até ao dia em que lhe cai um botão da camisa e reencontra uma antiga vizinha, aproximando-se da felicidade. Isto até ao dia em que vai comprar pão e, pelo caminho, aceita boleia de um antigo aluno. Isto até ao dia em que acorda confuso e atordoado num hospital, recordando apenas com clareza os livros que leu. Depois desse dia, nada voltará a ser igual, com a destreza narrativa de Jaume Cabré a conduzir-nos irresistivelmente por um labirinto de memórias difusas, dilemas, personagens complexas, amores impossíveis, destinos implacáveis, falenas e javalis.

    Título

    ​Linha da frente

    Autor

    ​Arturo Pérez-Reverte

    Editora

    ​ASA

    ​Sinopse

    ​São 00h15 e não há luar.Agachadas na escuridão, imóveis e em silêncio, as dezoito mulheres da secção de transmissões observam o denso desfile de sombras que se dirige para a margem do rio. Não se ouve nem uma voz, nem um sussurro. Só o som dos passos, às centenas, na terra molhada pelo relento noturno; e, às vezes, o leve entrechocar metálico de espingardas, baionetas, capacetes de aço e cantis. A sucessão de sombras parece interminável. Assim começa Linha da Frente, na noite de 24 para 25 de julho de 1938. A XI Brigada Mista do Exército da República atravessa o rio para se estabelecer em Castellets del Segre. Mas as tropas nacionalistas defendem a área. A Batalha do Ebro está prestes a começar, a mais cruel e sangrenta de todas as batalhas da Guerra Civil.Pela primeira vez em trinta anos de carreira literária, Arturo Pérez-Reverte aborda a Guerra Civil Espanhola. Combina ficção, factos históricos e testemunhos pessoais, colocando o leitor entre aqueles que, por vontade própria ou por força das circunstâncias, lutaram nas frentes de batalha. O que resulta é mais do que um romance sobre a guerra civil, é um retrato de homens e mulheres em tempos de guerra.

    Título

    ​Memorial de Aires

    Autor

    ​Machado de Assis

    Editora

    ​Tinta da China

    ​Sinopse

    ​O último romance de Machado de Assis marca o nascimento de uma NOVA COLECÇÃO da Tinta da China, dedicada ao melhor da literatura brasileira e coordenada por Abel Barros Baptista e Clara Rowland. Memorial de Aires é o último romance de Machado de Assis, publicado no ano da sua morte (1908). Obra extremamente depurada, é a segunda atribuída ao conselheiro Aires, diplomata aposentado, que apareceu no romance anterior, Esaú e Jacó (1904), onde é personagem e autor ficcional. Agora, escreve um conjunto de anotações quotidianas, o Memorial, nos anos de 1888 e 1889. No cenário da abolição da escravatura, Aires é uma figura complexa como testemunha e comentador: acompanha o velho casal Aguiar e a sua orfandade às avessas, enquanto na escrita se dedica à bela viúva Fidélia, e se envolve nos meandros divagantes do seu próprio e inesperado desejo. Ao mesmo tempo terno e cruel, o livro oscila entre o apontamento disperso e a narrativa escorreita, sempre contido e conciso, enquanto a sombra discreta do Fausto perpassa melancólica, quase indiferente…

    Título

    ​Psicopatas portugueses: livro segundo +13 casos de morte, perversão e horror

    Autora

    ​Joana Amaral Dias

    Editora

    ​Oficina do Livro

    ​Sinopse

    Psicopatas portugueses é o primeiro e único trabalho clínico no nosso país que reúne os principais protagonistas da criminologia portuguesa. Neste segundo volume, que aprofunda mais treze casos arrepiantes ​— como o da praia do Osso da Baleia, o massacre de Vila Fria, o assassinato de Carlos Castro ou, mais recentemente, crimes cometidos por jovens mulheres como a matricida Diana Fialho, a sinistra dupla Maria Malveiro e Mariana Fonseca ou as irmãs que mataram um recém-nascido à facada ​—, a psicóloga clínica e criminóloga Joana Amaral Dias prossegue a sua viagem desconcertante ao abismo escuro das mentes dos homicidas mais perversos de Portugal, fazendo a análise psicológica forense dos assassinos e reconstituindo com minúcia os actos hediondos que protagonizaram.Apesar da clara incidência na actualidade, Psicopatas portugueses: livro segundo faz-nos também recuar até ao século XIX, ao encontro dos impulsos assassinos do último condenado à morte pelos nossos tribunais e, ainda, do tenebroso Dr. Urbino de Freitas, um médico do Porto que matava em vez de salvar vidas.

    Título

    ​Sangue e cinzas

    Autora

    ​Jennifer L. Armentrout

    Editora

    ​Marcador

    ​Sinopse

    ​Primeiro volume da série Sangue e cinzas

    ​Prestes a completar dezanove anos, Poppy prepara-se para a sua Ascensão. Ou antes, é preparada para a sua Ascensão, já que, como em tudo o resto na sua vida, não tem alternativa. Sendo a Donzela, será entregue aos deuses de qualquer forma, seja lá o que isso signifique.

    Destinada a salvar Solis dos Atlantianos, que amaldiçoaram o reino com a criação dos terríveis Insaciáveis, Poppy não entende o que está para vir nem sabe se está pronta para ser entregue aos tais deuses ou se deseja sequer sê-lo.

    Título

    ​Tomás Pereira e o imperador Kangxi: um diálogo entre a China e o Ocidente

    Autora

    ​Teresa Sena

    Editora

    ​Guerra e Paz

    ​Sinopse

    ​Sabemos pouco sobre a vida de Tomás Pereira — como acontece com Luís de Camões e muitos outros personagens eminentes de diversas épocas. No entanto, tal como com Luís de Camões, foram os seus grandes feitos históricos que o fizeram entrar nas páginas da História.Tomás Pereira foi um jesuíta português de Seiscentos que se notabilizou por ter entrada na Cidade Proibida e por se ter tornado, durante 36 anos, num leal e influente conselheiro do imperador chinês Kangxi, actuando não apenas na esfera interna da corte, mas também na cena diplomática e política da China.Este livro irá certamente suscitar a curiosidade e o interesse do leitor pela vida invulgar deste religioso que contribuiu para o diálogo entre o Oriente e o Ocidente, estabelecendo uma relação de proximidade e de diálogo intercultural nunca antes estabelecida.

    Título

    ​Volta aos Açores em quinze dias: diário de bordo de uma viagem para (não) esquecer

    Autor

    ​José Pedro Castanheira

    Editora

    ​Tinta da China

    ​Sinopse

    ​”Para ser franco, a frescura e o vigor das páginas seguintes valem sobretudo pelas agruras que atingiram estes intrépidos navegadores bissextos. Graças à lei natural implícita na célebre entrada de Tolstoi em Anna Karenina, foram os transtornos e os maus bocados a bordo, as noites quase em branco e os assaltos do mal de mer que transformaram o que seria um simpático livro de viagens para consumo gostoso de açorianos e açorianófilos num documento que se catapulta para patamares muito acima do mero jornalismo. É só entrar a bordo do Avanti pela mão do narrador e deixar que uma viagem de gozo vicário se desenrole diante de nós. Apreciemos a vantagem de entrar num universo real — nada aqui é ficção! — sem passar pelos males sofridos pelos tripulantes autênticos. Em vez de sustos e enjoos, encontraremos garantido deleite.”Onésimo Teotónio Almeida, Prefácio

  • Em torno do herói intemporal da narrativa popular

    Em torno do herói intemporal da narrativa popular


    (…) O deus cabeludo disse ao vencedor menino:

    “Em brios medra Iulo; assim se vai aos astros,

    procriador e rebento divino […]”

    Virgílio, Eneida (IX, 638-641) Trad. de A. Feliciano Castilho


    Singular, sem dúvida, foi o destino de Héracles, herói quase imortal e invencível, que teve de decidir, na solidão do seu desastre, a morte que o iria arrancar ao convívio dos mortais, seus semelhantes e seus irmãos.

    Nenhum herói, como ele, na Antiguidade Grega (e nos ecos que dos seus feitos nos deram os Romanos, quando passou pela península Itálica com o gado de Gérion) foi tão solitário entre os homens e, ao mesmo tempo, tão solidário com o destino destes. Não houve, para a sua epopeia, todo a percurso terrestre, um aedo capaz de um só canto. Nem sequer um implacável Rabelais para cantar o seu gigantismo.

    naked man statue

    Mas talvez tivesse sido essa, também, a sua sorte: não ser, assim, assimilado, na unidade de um discurso, a uma “raça”, a uma “casta”, a uma classe social. Nem Pantagruel escapou a isso, inserido na “linhagem” dos reis dos gigantes. Héracles, porque viveu na boca da lenda, no sussurro fraterno dos convívios populares, nunca se fixou num painel, como os seus pares da “raça” dos Aqueus.

    Eurípides e Sófocles aproveitaram o efeito da sua loucura e da sua morte, mas o conjunto fantástico dos seus feitos, em que chegou a enfrentar os poderosos deuses e senhores do macrocosmo, apenas ficou registado em notas esparsas de eruditos e comentadores… e na evocação sonhadora que, pedaço a pedaço, o manteve vivo, às vezes respigado por intelectuais de passagem.

     “O herói dotado de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imaginação popular de Hércules e Siegfried, de Roldão a Pantagruel e até Peter Pan” afirma-nos Eco (1979, p. 246).

    brown statue of man near green trees during daytime

    Quase tão atemporais como o arquétipo enteado de Hera, sempre perseguido pela ira da madrasta alguns heróis de FC e da BD (ficção científica e banda desenhada) parecem reassumir, de forma variada, de acordo com os padrões  e condicionalismos históricos, uma estrutura mítico-narrativa elementar que equaciona com a mesma persistência infantil, imatura (revelando as aspirações que têm muito mais a ver com inflexibilidade fantástica do inconsciente do que com o dimensionamento razoável com o real), as pulsões elementares, os impulsos radicais do limitado e condicionado para a imensidão do tempo infinito e para as metas mais longínquas do espaço.

    De acordo com os saberes científicos e as observações empíricas que a tecnologia permitiu nas mais variadas épocas, os heróis populares gozaram sempre de uma omnipotência delirante, plasmada nas fantasias mais arrojadas, relativamente ao espaço e ao tempo. Quer para Héracles, quer para Superman, quer ainda para Odin, que “pela infinita importância do valor se tornou deus” (Carlyle, 1956: 61), os limites cronotópicos não existiam. Intermédios, por aparente “realismo” (verosimilhança, diria o Estagirita), introduzido pela ciência pós-positivista nas suas potencialidades, os heróis de FC assemelham-se, nas viagens que fazem aos astros remotos, às galáxias mal entrevistas a essa estirpe gerada na imaginação popular desde tempos lendários e que encontra em Héracles, o dos doze trabalhos, o ilustre antepassado modelar.

    Contrariamente aos heróis micénicos. que as palavras de Lukács tão bem enquadram, Héracles não e só um herói dos “bem-aventurados tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir […] tempos cujos caminhos são iluminados pela luz das estrelas (1962:27). Ou melhor, ao contrário dos que bateram às portas de Ílion, nas planícies de Troia, o vencedor de Leão de Nemeia, o que frechou o sol num arrebatamento de fúria, o que substituiu Atlas, o Titã, enquanto este lhe colhia os pomos, não é um herói só desse tempo.

    Os tempos em que ele se moveu, para dizer melhor, os da U-cronia, persistiram nos sucessores que lhe herdaram os genes e o génio do imaginário. Para Superman, para o herói de O Construtor de Universos (The Maker of Universes), de P. José Farmer, para os “Jedi” de A Guerra das Estrelas, filme realizado por George Lucas, e mesmo para o “cavaleiro” da África fantástica que Burroughs criou em Tarzan dos Macacos, não existe o fim desses tempos – de nenhum tempo.

     “Para eles”, citando ainda Lukács, na mesma obra, “tudo é novo e, todavia, familiar; tudo significa aventura e, todavia, tudo lhes pertence. O mundo e o eu, a luz e o fogo distinguem-se nitidamente e, apesar disso, nunca se tornam definitivamente alheios um ao outro, porque o fogo é a alma de toda a luz e todo o fogo se veste de luz. Assim não há um único acto de alma que não adquira plena significação e não venha a finalizar nesta dualidade […]” (p. 27) e por isso o tempo não existe, ou melhor é um absoluto, criado no espaço pelas suas acções.

    Este universo de que o autor húngaro nos fala magistralmente só na literatura dita “culta”, a dos canonizados deixou de existir. Apenas persiste nos leitores e espectadores de “culto”[1]. Para os heróis de FC ou mesmo para o seu irmão, Tarzan do “planeta África”, o fim da orbe conhecida não significa o alheamento ou a perdição. Para eles é apenas o espaço da aventura e o tempo ali não tem significado. São incomensuráveis porque U-tópicos e como tal são U-crónicos.

    Nenhum deles, evidentemente, resiste à prova da historização à clepsidra da biologia. Héracles é o dos doze trabalhos, não o conquistador que se vincula à história da Grécia e nela procria. São as suas histórias de iniciáticas passagens, sobreponíveis e permutáveis, que fazem dele um corpus heroico, um ser infinito que só se decide a morrer quando a perfídia do Centauro o arranca à pele que era sua, limite do próprio, invólucro que o limitava, como cosmo, no cosmo maior, em intercâmbio, mas sem dissolução.

    gray concrete statue under cloudy sky during daytime

    O próprio retorno cíclico à aventura marca essa eclosão do tempo. Se o passado legendário encerra as indeterminações de  Héracles  no  tempo  da civilização  que o “lê” e nele se podem inserir os feitos sem que a cronologia implique o desgaste da personagem, o mundo moderno, onde vivem os heróis herdeiros da tradição dos trabalhos, põe, por vezes,  o tempo entre parêntesis de forma mais adaptada ao comum consumo  dos romances de aventuras  em  que o  herói  evolui, é marcado pelo tempo, como se vê na sucessão de Dumas e continuadores: Os Três Mosqueteiros, Vinte Anos Depois, O Homem da Máscara de Ferro, talvez pela incitação do romance realista.

    Dessa reintrodução do tempo cíclico no pós-folhetinesco, fala-nos Eco de forma exemplar:

    O Superman não pode consumir-se porque um mito é inconsumível […] deve, portanto, permanecer inconsumível, e, todavia, consumir-se segundo os modos de existência quotidianos. Possui as características do mito intemporal, mas só é aceite porque a sua acção se desenvolve no mundo quotidiano da temporalidade, paradoxo que os argumentistas de Superman têm, de algum modo, que resolver (com) uma solução paradoxal! […] Os argumentistas exco­gitaram uma solução muito sensata e original. Estas histórias desenvolvem-se numa espécie de clima onírico – inteiramente inadvertido pelo leitor – onde aparece de maneira extremamente confusa o que acontecera antes e o que acontecera depois,  e quem narra retoma continuamente o fio da história como se se tivesse esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns por­ menores ao que já dissera.» (1979,  pp.  253, 257-258).

      Não é verdade que também para os feitos de Héracles é indiferente que ele tenha lavado primeiro os currais de Augeias e só depois tenha matado a Hidra?… e não é verdade que, de forma surpreendente, ele nos surge na Gigantomaquia[2] ajudando os olímpicos contra os titãs, paradoxo do tempo como sucessão das clausulas aristotélicas? É essa imagem que nos dá Lacassin do herói da selva fantástica:

    Passando da situação inconfortável das vítimas à altitude do reparador de defeitos, ele conhecerá, neste novo empenho, um campo de acção ilimitado, intrigas renováveis até ao infinito (sublinhado do autor). Sacrificando a afectividade à metafísica, passa a encarnar e a simbolizar a luta contra a injustiça […] Deixando os lugares fechados do melodrama e da vingança ele vai percorrer um universo fantástico povoado de cidades mortas ou luminosas, divindades obscuras e ferozes; fantasmas barrocos e cruéis. […] Antes de percorrer este continente mítico numa busca iniciática, Tarzan, como um cavaleiro sujeito a provas similares, deverá arrancar-se ao contexto familiar e afectivo (sublinhado do autor), despojar-se da existência anterior. É-lhe necessário perder a recordação de tudo o que pudesse evocá-la: título, nome, fortuna, parentes, amigos e inimigos” (1971: 99-100).

    green mountain near cloudy sky

    Que mais será necessário para forjar o herói salvífico à dimensão do cosmo?  Não era essa, também, a obrigação de “jedi” Luke Skywalker de A Guerra das Estrelas para se opor à arrogância do Império, num confronto que envolve o Universo inteiro, com os seus milhões de galáxias? Nesta orbe alargada até aos limites do vislumbre astrofísico o que é o tempo para ele como para qualquer outro “astronauta” da FC senão uma coisa que se atravessa onde a morte não existe, dimensão ínfima de um segundo? Para o homem que viaja à velocidade da luz, acima dela, que vai do “big-bang” à “luz-fóssil”, o sentido da temporalidade existencial não existe. É nesse senti do, creio, que Marie Françoise Dispa, afirma: 

    Na FC os astros representam apenas um dos fins do percurso; eles são, antes de mais, um símbolo da insatisfação eterna do homem. A raça humana mal tinha nascido  já pensava em evadir-se da Terra. Em todos os tempos as estrelas foram objecto de ambição dos homens; e acabaram por as atingir. […] Falta qual­ quer coisa aos homens que eles esperam encontrar nas estrelas. (107-108)”

    Farmer, que foi em toda a literatura de FC que conhecemos o autor que mais se aproximou conscientemente dos ecos que nela emergem dos velhos mitos, especialmente os de Héracles e os de Zeus, não hesita em fazer do seu herói de O Construtor de Universos, o inominável “senhor da fortaleza situada acima das nuvens, suspensa no espaço”.

    Para a ela regressar, depois de um percurso terrestre em que perdeu a memória da origem e atingiu a velhice, o senhor da morada dos imortais tem de atravessar mil aventuras, vencer centauros, titãs e a própria Górgona para recuperar a memória e poder. Escutando ainda M. F. Dispa, que expressamente compara os heróis da FC aos cavaleiros da epopeia medieval na perspectiva de Bédier[3], podemos concluir com ela, acerca do problema da morte nestas fantasias: “O amor, amizade, a ternura, enfraquecidos pela proximidade constante da morte, não podem desenvolver-se num tal estado de coisas… a imortalidade, que cada indivíduo procura com tanto ardor, provoca necessariamente, a mais ou menos longo prazo, a estagnação da espécie humana” (Dispa 114).

    Se o herói (e mais uma vez o revemos como Héracles) opta pela sua humanidade, se esquece a ânsia de absoluto que o levará a desafiar os deuses, os monstros e as distâncias entre os astros, acaba por se entregar, por cansaço, à morre. Não esqueçamos que para Troyes, Percival e Galaaz eram cavaleiros celestes! A FC e todo o sistema que em seu torno se move é, nas ambições astrais, metafísicas e epistemológicas, o processo de um mito, às vezes subterrâneo e subalternizado, mas sempre presente. Como diz Muniz Sodré “pretendemos aqui afirmá-la como um mito vivo e contínuo (ou seja, uma grande “narrativa” constituída e não fragmentada em discursos), um saber que se quer totalizante em relação ao passado e ao futuro” (Sodré, 1973: 107).

    No fundo, na audácia da fantasia, a FC e os heróis que na sua esfera se movem, pelo poder de nomeação, pela capacidade de integração de novos lugares no universo conhecido, o cosmo ilimitado do viajante, conseguem o acro de cosmização de que fala Eliade: “Importa compreender bem que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre uma consagração: organizando o espaço reitera-se a obra exemplar dos deuses” (s/d. [1960?]: 35).   

    Exemplaridade que o herói assume normalmente seguro da sua origem divina, semidivina, maravilhosamente extraterrestre, extraordinário pelo poder da tecnologia ou, ainda, consagrada pela grande Mãe: a Terra/Gea. Como nas escrituras ou no como maravilhoso, o herói quanto mais perto está do super-homem, do semideus, mais certo é ser a sua origem fabulosa, mesmo divina. Novo paradigma em que Héracles ocupa o centro.

    Mas também a ele pertencem Superman, vindo de um planeta de seres que só lá não são excepcionais, e o terrestre Tarzan, originário de uma “raça” de senhores, que, perdido, em criança na selva, se tornou hegemónico entre todos os seres selváticos, incluindo os indígenas humanos. Para não nos alargarmos mais, citamos de Marthe Robert este passo lapidar:

    selective focus photography of boy wearing black Batman cape

    “Estabelecendo uma correlação tão visível entre as calamidades do nascimento e uma carreira abençoada pelos deuses, o conto não faz mais do que seguir a linha de pensamento própria do mito e da lenda, no que esta tem, precisamente, de mais singular. […] O ser privilegiado ao eleito, em virtude de tarefas sobre-humanas, não pode deixar de ser um mal vindo, uma criança abandonada, sacrificada, crivada de golpes por aqueles mesmos que estavam encarregados de a proteger. Não que o herói seja exaltado unicamente por causa da força de que dá provas nas desgraças dos seus começos. Mas porque, sobretudo, expulso de casa é obrigado, dessa forma, a romper os laços de sangue, liberta-se assim das coacções carnais e espirituais que constituem para o homem do comum o essencial da fatalidade” (1979: 55).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Carlyle, Tomás, 1956, Os Heróis, Guimarães Editores

    Dispa MarieFrançoise, 1976, Héros de la sciencefiction, DE BOECKA, Bruxelles

    Eco, Umberto, 1973 Diário Mínimo, Península, Barcelona

    Eco, Umberto, 1979, Apocalípticos e Integrados, Perspectivas, São Paulo

    Eliade, Mircea (s/d [1960?]) O Sagrado e o Profano, Livros do Brasil, Lisboa

    Grimal, Pierre,1986, A Mitologia Grega, Europa-América, Lisboa

    Lacassin, F., 1971 Tarzan, UGE, col.  10/18, Paris

    Lukács, Georg, 1962, Teoria do Romance, Presença, Lisboa

    Robert, Marthe, 1979, Romance das Origens e Origensdo Romance, Lisboa, Via edit.

    Sodré, Muniz, 1973 A Ficção do Tempo, Vozes, Petrópolis (Brasil)


    [1]Cult Films have limited but very special appeal. Cult films are usually strange, quirky, offbeat, eccentric, oddball, or surreal, with outrageous, weird, unique and cartoony characters or plots, and garish sets. They are often considered controversial because they step outside standard narrative and technical conventions. They can be very stylized, and they are often flawed or unusual in some striking way.” (26/9/2018). É evidente que esta noção é extensível à produção literária e à BD/Graphic Novels

    [2] Súmula unitária coligida a partir de diversos autores, constitui parte da Teodiceia de Hesíodo. “El asalto al Olimpo: La Gigantomaquia“.

    EL MITO Y SUS FUENTES. De acuerdo con Homero1, los Gigantes fueron una raza de hombres salvajes, gobernados por Eurimedonte que habita-ban en la isla de Thrinacia, en el lejano oes-te y que fueron exterminados por su insolencia hacia los dioses. Pertenecen, por tanto, a una tribu ancestral que fue destruida por su soberbia, y no por un combate, que no se cita en los poemas homéricos. La ver-sión más difundida sobre su origen la da Hesíodo, quien les considera seres divinos, nacidos de la sangre vertida en el seno de la tierra, Gea, cuando Urano fue mutilado por Crono. De ellos se dice que son seres enormes, de armaduras lustrosas e ingentes lanzas. Según Píndaro, los gigantes nacieron en los campos Flegreos, en Sicilia, Campa-nia o en Arcadia, y según otras fuentes (Apolodoro, Pausanias, Píndaro o   Estrabón), en Palene (Tracia). Homero y varios escritores tardíos los sitúan en zonas volcánicas, por lo que parece probable que el origen de la historia de los gigantes esté relacionado con una explicación sobrenatural de determinados fenómenos físicos de la naturaleza, asociados con fenómenos volcánicos.

    [3] De origem bretã, passou a infância em Reunião, depois tornou-se professor de literatura francesa da Idade Média. Publicou muitos textos medievais em francês moderno, como Tristan e Iseut (1900), La Chanson de Roland (1921), os Fabliaux (1893). Foi eleito membro da Academia Francesa em 1920.

  • O bem, o mal e o crime: nas sombras do ‘film noir’

    O bem, o mal e o crime: nas sombras do ‘film noir’


    Qualquer tentativa de breve definição daquilo que se entende por film noir corre o risco de ser redutora. Mesmo uma exposição mais alongada, que possa ser inscrita numa revista da especialidade, poderá ser muito insuficiente, ou, se tentar dar uma imagem aberta do conjunto de obras a que se tem chamado film noir, poderá incorrer na superficialidade vertiginosa das referências e alusões, porque esta não podem ser explanadas na continuidade do texto que procura circunscrever o fenómeno.

    Assim, tentando fazer uma breve apresentação do corpus dificilmente discernível e quase impossível de encerrar, buscando, simultaneamente, elucidar um pouco a origem da designação genológica, mostrando como ela se conceptualizou, tombamos na ladeira escorregadia do acto redutor para nos precipitarmos, em seguida, no negrume sombrio e letal de uma referencialidade que pouco mais é do que alusiva.

    Contudo, pelo (pouco) que se exporá em seguida, verificará o leitor destas linhas, eventual espectador empenhado, ou mesmo fanático, que não pode ser de outra maneira.

    De algum modo, embora se constitua como género, enunciando assim a finitude, pelo menos teórica, do corpus a que se refere, o  film noir categoriza muito mais do que aquilo que pode ser entendido como o conjunto, já de si gigantesco, dos filmes que nele se integram. A expressão, que podemos entender como um termo conceptual, liga-se, de modo forte, a um agrupamento de filmes descritíveis como histórias de acção, intriga e mistério, em torno de um ou mais crimes, sendo o (ou os) protagonista potencial vítima de uma urdidura, às quais, mais recentemente, se tem aplicado, também, com frequência a designação de thrillers.

    A conduta criminosa, a acção para a travar e a mente dos antagonistas surgem como centrais para definir os traços fundamentais do conjunto de obras que são a referência fundamental do termo. Mas não é tudo. A síntese que Abílio Hernandez Cardoso faz dos eventos e contextos que originam a designação ajuda-nos, pela sua  justeza e brevidade: 

    Quando, em 1946, Nino Frank utilizou, pela primeira vez a expressão film noir, cunhando assim uma designação que viria a ser adoptado pela generalidade dos historiadores, teóricos e críticos de cinema, fê-lo com a intenção expressa de descrever aquilo que ele entendia representar uma tendência emergente no cinema americano produzido durante a guerra. Nesse verão, em pouco mais de um mês, estrearam-se em Paris cinco thrillers desse período, nos quais Frank detectou um desvio significativo relativamente às normas dominantes do cinema clássico de Hollywood, tanto no campo narrativo, como no temático e estilístico”.[1]

    Se o nascimento do termo fica assim esclarecido, bem como fica aludido o contexto em que é criado, ou seja, o da chegada às salas europeias, particularmente as francesas, do cinema produzido no interior do sistema clássico de Hollywood, em moldes que se apresentam como novidade, seria bom explicitar, desde já, quais os traços que terão impressionado Nino Frank, marcando o género que ele designa por “aventure criminelle”, no título do artigo que publica na revista L’écran français.

    Esse “nouveau genre policier” que, na época, ainda não se designava, nem na totalidade nem em parte, por “thriller”, além de um nome, que lhe foi dado, precisava de ser definido. O que  Frank faz, ao dizer que os filmes surgidos nesse verão, em França, eram policiais com um estilo mais negro, repletos de aspectos visuais apelativos, uma narração complexa e uma forte incidência na psicologia (cf. in Ballinger e Graydon, 2007: 4).

    Posteriormente, a partir desses reparos, os estudiosos foram precisando o alcance e a minuciosidade das características identificadores do género. É a ainda a Hernandez Cardoso que recorremos para sintetizar os traços que os críticos, estudiosos e teóricos foram determinando na produção artística em causa:

    Desses traços, um dos mais frequentemente referidos é o de um estilo visual marcado pela predominância de uma tensão entre luz e sombra, visualmente traduzida no efeito chiaroscuro, e pelo uso frequente de linhas oblíquas e ângulos muito acentuados, que produzem um efeito de desequilíbrio composicional da imagem. Igualmente recorrente é a menção ao carácter sinuoso e complexo dos procedimentos narrativos, onde avulta o uso do flashback e da voz sobreposta. Do ponto de vista temático, os elementos mais valorizados incluem a presença obsessiva de um espaço urbano, nocturno, corrupto e opressivo, bem como a presença de uma nova imagem de mulher, marcada pela assunção uma sexualidade sem remorso e personificada na figura da femme fatale. No centro deste mundo instável, fica reservado para a figura masculina o estatuto ambivalente de herói-vítima. Não admira, por isso, que ao noir se atribua em geral uma visão do mundo eminentemente existencial, aprisionada entre o desejo de valorização da liberdade individual e a noção do carácter inexorável do destino” (2001: 108).

    Para um leitor que não esteja completamente desprevenido, que se mova apenas alguns patamares acima da literacia básica, este conjunto de traços não pode deixar de ser sugestivo. Talvez não todos, imediatamente e em todas as suas extensões, mas, pelo menos, alguns de modo mais ou menos gritante. Segundo o que nos é dado reconhecer, fazendo decorrer alguns conhecimentos que nos foram fornecidos por produções artísticas com as quais convivemos, bem como pelas observações de estudiosos que se têm interessado pelas diversas facetas culturais das quais o cinema emerge e com as quais mantém, ainda hoje, fortes laços de intercâmbios e influências, podemos afirmar que a lista das actividades artísticas e de representação em geral que estão na origem dos traços dominantes que caracterizam o noir é enorme. Tentaremos apresentar algumas delas, muito sumariamente, procurando manter sempre a referência aos elementos apresentados na síntese que acima citámos.

    O efeito central, que dá nome ao fenómeno artístico, o negro, emergente na sua contraposição ao luminoso, decorrente, muitas vezes do modo como os focos de claridade lançam as sombras dos objectos com que esbarram, é central na produção do expressionismo alemão que, como se sabe, foi um dos movimentos ou escolas que, no tempo do mudo, lançou as bases da formação do cinema narrativo cuja dominância fez triunfar a forma de expressão tal como a conhecemos hoje.

    É claro que, se juntarmos a este traço, só aparentemente formal, a presença do tal traço temático do espaço urbano, nocturno, ameaçador e até mesmo aterrorizante, temos a marca influenciadora do próprio naturalismo literário e de certas variantes do gosto popular do gótico. E, se a isso adicionarmos a importância da perspectiva, mais ou menos perturbada pelo medo ou angústia, através da qual esse universo é visto, em imagens que têm, por vezes, a marca imprecisa e alógica do sonho, percebemos como o próprio conhecimento psicanalítico é convocado nestas obras, ainda que nem sempre de modo rigoroso ou, pelo menos, parcimonioso.

    É bom que se note que as variantes francesas da narrativa gótica literária eram incluídas num género designado por roman noir, para o qual muito contribuiu Sade, um autor fundamental para compreender a dialéctica do bem e do mal em que a mulher (ou o homem) fatal e o/a protagonista, vítima ganha todo o sentido, em extensão, aprofundamento e variedade. Será bom lembrar ainda que, mais perto de nós, numa posição de grande proximidade temático formal das obras nucleares daquilo a que se chamou film noir, estão os romances policiais publicados em França numa colecção a que se chamou La Série Noire, fazendo eco do nome da revista americana Black Mask, que tinha publicado histórias do autores que eram nome de referência da colecção francesa.

    Os autores dessas colecções, como não podia deixar de ser, constituíam, quase todos, o cânone de onde saíam os argumentos do filmes mais ampla e unanimemente reconhecidos como noir. No interior do sistema relativamente coeso que era a literatura de massas de então, surgiam em modelos editoriais (colecções, publicações especializadas), como volumes que na Europa se chamavam romances policiais ou detective novels e nos Estados Unidos pulp fiction[2].

    O cânone de que falamos distingue-se, no entanto, da literatura policial tradicional, por secundarizar (ou mesmo anular) o modelo da investigação do crime problema ou do evento mistério (o whodunit), dando toda a ênfase à acção física, e, muitas vezes, à intervenção musculada, à resolução violenta do “mistério”; e fazendo o meio, a psicologia das personagens e os ambientes emocionais sobreporem-se aos espaços quase “experimentais” ou altamente estilizados que o “romance problema” tradicional enfatizava (repare-se, por exemplo, em plantas ou planos de pormenor que S.S. Van Dine fazia das mansões e locais arquitectonicamente nobres, que Philo Vance visitava, os quais quase se assemelhavam a maquetes).

    The Scarab Murder Case (1930): maquete da “casa museu”, o local do crime, p. 34 in https://www.fadedpage.com/showbook.php?pid=2013112 (cons. 21 de Maio de 2018)

    The Scarab Murder Case (1930): maquete da “casa museu”, o local do crime.

    Como diz Chandler, um dos maiores autores, entre os que incrementaram a junção do policial com o noir:

     “O realista do crime escreve sobre um mundo em que gangsters podem dirigir nações e quase governam cidades, em que hotéis, prédios de apartamentos e restaurantes famosos pertencem a homens que fizeram dinheiro com bordéis, em que uma estrela de cinema pode denunciar [o gang], e o homem de aspecto decente do fundo do corredor é o patrão do jogo clandestino; um mundo onde um juiz com a cave cheia de bebidas alcoólicas de contrabando pode mandar um homem para a cadeia por ter uns decilitros no bolso; onde o Presidente da Câmara duma cidade pequena pode, por dinheiro, ser cúmplice dum assassínio; onde ninguém pode passar em segurança numa rua escura, porque a lei e a ordem são coisas de que falamos mas evitamos praticar; um mundo onde é possível assistir-se a um assalto à luz do dia e ver quem foi, mas desaparecer rapidamente no meio da multidão sem contar a ninguém, pois os assaltantes podem ter amigos com armas de cano comprido ou a polícia não gostar do testemunho e, em qualquer dos casos, o advogado venal da defesa pode sentir-se autorizado a abusar e a enxovalhar uma pessoa em pleno tribunal, perante um júri de mentecaptos seleccionados, sem outra oposição da parte do juiz que não seja uma admoestação de circunstância, porque o cargo de juiz é um cargo político”(2012: 73).

    Quanto ao aspecto eminente e criativo da sintaxe narrativa que a nova “escola” de cinema apresenta, podemos dizer que ela assenta em dois aspectos fundamentais da construção do relato ficcional: na simultaneidade de dois registos de enunciação, o da focalidade da câmara e o da voz off, sendo que o registo oral é, quase sempre, homodiegético ou mesmo, mais “poeticamente”, autodiegético (ficando o registo marcadamente extradiegético – de feição heterodiegética ou “autoral”, ou de marca autodiegética, rememorando eventos acentuadamente revolvidos e já distanciados – para o efeito documentário, que muitas vezes emerge, por exemplo, em Anthony Mann); e a manipulação da continuidade cronológica, sobretudo pelo efeito de flashback ou analepse, introduzindo a importância do ponto de vista narrativo, dos processos de rememoração (a memória, a recordação, o inconsciente…) e a multiplicidade dos pontos de vista, quer pela intervenção de vários relatores de acordo com um inquérito (Citizen Kane é um modelo) quer pelo modo como uma rememoração ou confissão altera os factos ou a ordem destes (À Beira do Abismo, por exemplo).

    Já se vê que, uma tal organização poética do discurso narrativo associa esta nova produção, mesmo nalguns casos de obras mais populares, às tentativas das vanguardas literárias modernistas para renovaram os processos narrativos.

    Citizen Kane, de Orson Welles (1941)

    E, por outro lado, é de reconhecer, dentro da mesma ordem de ideias, que a entidade masculina (mas a feminina também, por vezes, como acontece em Whirlpool –1949 – de Otto Preminger) nestes filmes toma o lugar fundamental para o funcionamento do mecanismo melodramático da ficção gótica ou do roman noir francês: ser objecto de uma conspiração, vítima de uma conjura ou de um equívoco legal, situação da qual só pode sair (e esse é, por vezes, o tema da fábula contada) batendo-se pela verdade, ou seja tornando-se herói. Contudo, no mais típico noir, essa atitude de luta nem sempre é assumida.

    The Killers (1946) de Robert Siodmak é, talvez, um dos exemplos mais acabados do puro noir, no sentido de ser uma das obras que assume integralmente quase todos os traços considerados nucleares do género. O protagonista acossado pelo infortúnio e os próprios fantasmas, a vamp implacável, o tom nocturno e asfixiante do espaço urbano, a violência e a criminalidade, o recurso ao flashback para apresentar a crónica da queda de um boxeur e também o próprio funcionamento do psiquismo do jornalista, oscilando entre a reconstituição equilibrada e racional e a evocação quase fantasmática do universo que reconstitui, são os aspectos mais marcantes do filme.

    Burt Lancaster e Ava Gardner em The Killers de Siodmak (1946)

    Trata-se de um nos mais célebres e carismáticos film noir, inspirado numa breve história de Ernest Hemingway, o qual tem como figura central uma  personagem recorrente nos seus contos, e com certos aspectos de alter ego autoral,  Nick Adams,  que, em jovem, num bar, teria ouvido uma conversa entre dois assassinos profissionais, os quais pretendiam abater um indivíduo que, segundo é sugerido no diálogo,  teria ganho “indevidamente” um combate de boxe. Embora elíptica, a história parece ter origem nas próprias vivências de Hemingway, como repórter, em Chicago.

    Reign of Terror (ou The Black Book 1949), de Anthony Mann, foge, aparentemente, à configuração central que permite identificar o espécime como membro da família noir.

    Contudo, a visão “actual” que lança sobre o conturbado período do terror da revolução francesa, o modo como convoca os mecanismos da intriga e da suspeita num universo asfixiante da metrópole moderna em nascimento, restaurando um universo ficcional muito caro ao gótico e ao roman noir francês, tornam este filme uma peça especial que os amantes e especialistas têm incluído no corpus, com tanta mais razão quanto o seu autor, Anthony Mann, é uma das figuras centrais do panteão canónico que lançou os fundamentos do “género”.

    The Killing (1956), de Stanley Kubrick, é um dos mais tardios espécimes que os especialistas incluem no cânon nuclear do film noir. Essa sua chegada em fase já avançada da produção americana do “género” em questão cria, em relação aos seus antecedentes, uma certa distância (que envolve ironia e distanciação), que é perceptível logo a partir do jogo de sentidos que se gera entre o título e os desenlaces dos destinos fatais de cada um dos intervenientes no golpe. De facto, se killing designa, além do sentido primeiro, matança, talvez numa fixação catacrética, a palhaçada, o espectáculo e, até, o sucesso financeiro, o certo é que os membros deste ataque, cujo chefe, para aparecer como assaltante “visível”, faz uso de uma máscara quase surreal de palhaço, acabam mortos ou vencidos[1].

    Contudo, esta é uma das obras mais persistentemente mantidas no grupo nuclear do cânone pelos especialistas, devido à estrutura narrativa em flashback, em virtude da violência patenteada, pelo desnorte existencial das personagens que, não sendo profissionais do crime, escorregam para o abismo da fatalidade, arrastadas pelo sedutor plano de um experiente fora-da-lei, e também, mais particularmente, pela relação de fatalidade amorosa que uma das personagens mantém face à sua amada infiel, pela utilização da câmara subjectiva sobretudo no acompanhamento deste duplo perdedor (na acção criminosa e no amor) e pelo uso altamente estilizado do contraste de sombras e luz, de branco e de preto sobretudo na expressão dos clímaxes emocionais e afectivos.

        

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Ballinger, Alexander e Danny Graydon, 2007, The Rough Guide to Film Noir, Rough Guides, London

    Cardoso, Abílio Hernandez, 2001, “Subjectividade, desejo e morte no film noir americano” in Villas-Boas, Gonçalo e Maria de  Lurdes Sampaio, Crime, Detecção e Castigo, Granito, Porto

    Chandler, Raymond, 1969, “The Simple Art of Murder” in Pearls Are a Nuisance, Penguin, London

    Chandler, Raymond, 2012, “A Arte Simples do Assassínio”, tradução de Carlos Leite, in Sampaio, Maria de Lurdes e Gonçalo Villas-Boas, Ficção Policial – Antologia de Textos Teóricos, Afrontamento, Porto


    [1] Os filmes em causa foram: The Maltese Falcon de John Huston (1941), Murder, My Sweet, de Edward Dmytryk, Double Indemnity, de Billy Wilder, Laura, de Otto Preminger e, The Woman in the Window, de Fritz Lang, todos de 1944.    

    [2] The Black Lizard Big Book of Black Mask Stories, era como se chamava a primeira colecção, editada a partir de 1920 saída da Pulp fiction magazine, Black Mask, na qual aparecerem dois romances completos. O de Hammet ainda hoje é célebre.

    [3] killing (ˈkɪlɪŋ) adj 1. informal very tiring; exhausting: a killing pace .2. informal, extremely funny; hilarious. 3. causing death; fatal. n 4. the act of causing death; slaying5. informal a sudden stroke of success, usually financial, as in speculations on the stock market (esp in the phrasemake a killing)ˈkillingly adv  Collins English Dictionary – Complete and Unabridged, 12th Edition 2014 © HarperCollins Publishers 1991, 1994, 1998, 2000, 2003, 2006, 2007, 2009, 2011, 2014

  • Estante P1: Julho e Agosto de 2022

    Estante P1: Julho e Agosto de 2022

    Título

    ​A nova ordem mundial

    Autor

    ​H.G. Wells

    Editora

    ​Dom Quixote

    ​Sinopse

    ​Será possível alcançar a paz, mudando mentalidades, ordem geopolítica e crenças? Um livro mais atual que nunca! Publicado originalmente em 1940, A Nova Ordem Mundial, do prolífico e premiado autor H. G. Wells, trouxe à luz nessa altura, como o faz agora, várias questões geopolíticas, sociais e humanas. Neste livro encontramos as fascinantes reflexões de H. G. Wells sobre a Nova Ordem Mundial, abrindo a discussão sobre quais as condições para a alcançar, o que cada um de nós pode e deve fazer para que se concretize e o que realmente significa paz no mundo. Esta maravilhosa obra-prima da teoria especulativa vai atrair seguidores das obras seminais de Wells, bem como aqueles que se interessam pelas várias teorias sobre o futuro da humanidade.A Nova Ordem Mundial trata-se de uma cartilha sobre o mundo vindouro. Que pode seguir um caminho pacífico ou ser uma Nova Ordem Mundial como aquela imaginada por Napoleão, Adolf Hitler e tantos outros líderes totalitários. Segundo Wells a liberdade do mundo pode estar em perigo e os leitores precisam de estar conscientes destes movimentos históricos.

    Título

    ​As sete Marias que matavam franceses

    Autor

    ​Domingos Amaral

    Editora

    Casa das Letras

    ​Sinopse

    ​Em março de 1809 inicia-se a segunda invasão francesa e o marechal Soult entra com as tropas de Napoleão por Chaves e dirige-se para o Porto, lançando o terror no Norte de Portugal. Com receio de que a sua quinta em Amarante seja também assaltada, as sete filhas ilegítimas do general Galopim regressam à casa onde sempre viveram para a defenderem dos franceses. Vindas de Lisboa, onde tentavam convencer o pai a perfilhá-las, as sete marias – Maria do Céu, Maria dos Anjos, Maria das Dores, Maria da Fé, Maria da Glória, Maria do Amparo e Maria Madalena – preparam-se para lutar, enquanto o pai, o general Galopim, é colocado no Porto a chefiar os exércitos portugueses, acompanhado da bela Francisca, uma antiga criada por quem se apaixonou. Porém, apesar dos esforços das tropas nacionais, junto das quais lutam o capitão Lobo, Frei António e milhares de populares, o Porto não resiste ao poderoso exército francês.  Derrotados, enquanto esperam pela chegada dos ingleses, os portugueses têm de fugir das pilhagens e dos massacres que fustigam as povoações do Norte, executados pelo mais cruel dos generais franceses, Loison, o célebre Maneta, que já aterrorizara Portugal durante a primeira invasão, e que é ajudado por um famoso assassino de mulheres, o Príncipe de Salm. E será em Amarante, que Loison tenta conquistar e que Salm aterroriza, onde as sete marias, ajudadas por Francisca, pelo capitão e pelo frade, irão ficar célebres por terem defendido a sua terra com bravura, matando a tiro muitos soldados napoleónicos e resistindo com tremenda coragem aos assassinos franceses que as perseguem.

    Título

    Contra a guerra

    Autor

    ​Papa Francisco

    Editora

    ​Dom Quixote

    ​Sinopse

    ​A paz é muito mais do que a ausência de guerra. A palavra bíblica shalom indica uma condição de plenitude de vida que a violência destrói e aniquila pela raiz. Igualmente radical é a reflexão que o Papa Francisco nos oferece nestas páginas, nas quais defende a necessidade da fraternidade e denuncia o absurdo da guerra. Páginas imbuídas da dor das vítimas na Ucrânia, dos rostos daqueles que sofreram no conflito no Iraque, dos eventos históricos de Hiroxima, e até da herança, infelizmente inédita, dos dois conflitos mundiais do século XX. Francisco não poupa ninguém e menciona a ganância dos poderes nas relações internacionais dominadas pela força militar, na ostentação dos arsenais bélicos as motivações profundas daqueles que estão por trás dos conflitos que tingem o planeta de sangue.  Confrontos que semeiam a morte, a destruição e o rancor, que por sua vez provocam mais morte e mais destruição, numa espiral que apenas a conversão dos corações pode pôr fim.

    Título

    ​Lincoln highway

    Autor

    ​Amor Towles

    Editora

    ​Dom Quixote

    ​Sinopse

    ​Emmett Watson cometeu um crime e pagou o preço. Tem 18 anos e acaba de ser libertado de um campo de trabalhos. Está a regressar à quinta onde cresceu, no Nebraska, onde vai buscar o irmão mais novo. Juntos vão fazer-se à estrada rumo à Califórnia, para fugir do passado e encontrar a mãe que os abandonou. O pai, que morreu entretanto, desgostoso e endividado, deixou-lhes apenas um magnífico carro. Mas o destino intervém. E no dia aprazado para a partida o carro desaparece, levado por dois rapazes que tinham fugido do reformatório. Agora, Emmett e Billy têm de caminhar no sentido inverso, rumo a Nova Iorque. Aquilo que prometia ser um romance on the road torna-se outra coisa e essa é apenas a primeira surpresa que nos reserva Amor Towles. O autor transporta-nos agora para a América dos anos 50, onde acompanharemos os quatro rapazes durante dez dias. Com uma arquitetura narrativa de enganadora simplicidade, Lincoln Highway remete para a matriz clássica do grande romance americano, herdeiro de Mark Twain e John Steinbeck, mas também para a Odisseia de Homero, a quem presta uma tocante homenagem.

    Título

    ​Mr. Loverman

    Autor

    ​Bernardine Evaristo

    Editora

    ​Elsinore

    ​Sinopse

    ​Natural da ilha de Antígua, Barrington Jedidiah Walker emigrou para o Reino Unido nos anos 1960, onde prosperou financeiramente. Bem cuidado e bem vestido, com citações de Shakespeare na ponta da língua e um observador astuto da condição humana, Barry é um gentleman das Caraíbas que aprecia uma boa pândega. É casado há 50 anos com Carmel, tem duas filhas e um neto — e mantém, em segredo, uma relação amorosa com Morris de la Roux, seu companheiro e amigo desde os tempos de juventude. Aos 74 anos, enfrenta uma crise existencial, constatando ter chegado o momento de assumir a sua homossexualidade e pedir o divórcio. Porém, após uma vida de medos, perseguições e mentiras, a coragem fraqueja dia após dia e a sua última oportunidade para ser feliz parece fugir-lhe das mãos…Mr. Loverman é um romance cheio de ritmo, humor e subversão, no qual a vencedora do Booker Prize, Bernardine Evaristo, lança um novo olhar sobre a sociedade multiétnica ocidental, destruindo mitos e falácias culturais e expondo preconceitos há muito enraizados.

    Título

    ​O homem ilustrado

    Autor

    Ray Bradbury

    Editora

    Cavalo de Ferro

    ​Sinopse

    O Homem Ilustrado é uma figura errante e enigmática; com o seu corpo ricamente adornado por ilustrações, não passa de uma aberração digna de um espectáculo de feira. Agora está velho e procura trabalho, mas em vão. Todos fogem dele quando olham para o mural de multidões, rios, foguetões, sóis ou estrelas que tem gravado na pele. Obra de arte ou feitiçaria que prevê o destino da humanidade? À noite, as ilustrações movem-se e transformam-se, contam histórias sobre viagens no tempo, realidades virtuais ou a vida noutros planetas, e revelam a morte de quem ousa observá-las longamente, ouvir as suas vozes e captar os seus pensamentos. Um dos livros mais famosos de Ray Bradbury, adaptado com sucesso ao cinema, à rádio e à televisão, O Homem Ilustrado mergulha na psicologia e nas emoções mais íntimas do ser humano que habita em mundos futuros mas assustadoramente parecidos com o nosso.  Aliando fantasia, lirismo e terror, esta é uma das grandes obras visionárias de Bradbury, que influenciou gerações de escritores, músicos, artistas e cineastas.

    Título

    ​O poder de caminhar

    Autor

    ​Quirino Tomás

    Editora

    Casa das Letras

    ​Sinopse

    ​Desde os primórdios da Humanidade que caminhar é tão natural quanto respirar: andar a pé permitiu-nos sobreviver enquanto espécie, alargar horizontes e evoluir. Com o progresso da tecnologia, porém, a caminhada tornou-se uma atividade cada vez mais esporádica e fomos ficando cada vez mais distantes da natureza. Quirino Tomás, guia de caminhadas na natureza, não tem a menor dúvida de que a resposta para uma vida mais plena e feliz está no regresso às origens. A caminhada, sobretudo a caminhada no meio da natureza, tem inúmeros benefícios físicos, mentais e até espirituais. Neste guia prático, o autor revela-nos quais são e explica como podemos começar a caminhar, seja no parque da cidade ou desbravando um trilho na montanha. o que interessa é pôr um pé à frente do outro… e ir. Com a caminhada, vai conseguir: – Diminuir o cansaço e a falta de energia;- Combater o stresse, a ansiedade e a depressão;- Melhorar a memória e os problemas de concentração;- Emagrecer de forma saudável.

  • O realismo e o crime

    O realismo e o crime


    Sem dúvida, as dificuldades de uma aproximação relativamente ao REALISMO enquanto conceito, e sobretudo no campo da expressão artística, são problemáticas. Como categoria epistemológica ele teria as suas exigências de rigor relativamente à arte e seria uma forma de normatização do trabalho das “práticas significantes”.

    Entre parêntesis, anotamos quanto é discutível, debatível nos seus pressupostos essenciais, a própria teorização desse real: Lukacs, por exemplo, um dos últimos grandes teorizadores das poéticas realistas herdadas das perspectivas teóricas e práticas do século XIX (Balzac, Dickens, Zola)  procurava cingir a expressão aos elementos de referência, a um real exterior ao texto,[1] muitas vezes pela “preocupação do «documento», de uma história real, ou mesmo de um romance de chave interpretativa”, apresentação do mundo em “quadros” de “paisagens bem como de pessoas” ou “anotações, registos de fenómenos tal como surgem” e também pelo “gigantesco esforço de classificação que organiza” a ficção “em função dos lugares, das classes, das profissões, dos sexos” (cf. Tadié, 1970: 76-79).

    silhouette of person on window

    Mas, por outro lado, uma perspectiva linguística, ou uma semiótica, em muito devedora à tradição saussuriana, reclamaria, com pertinência, a consideração em que teríamos de tomar a própria materialidade dos elementos expressivos, enquanto constituintes desse mesmo real.

    Estes, dada a sua própria existência objectiva, produzindo o sentido pelo significado lhes atribui o uso da linguagem no constante de relação referencial e contextual, possibilitariam uma formação de mensagens relevando de códigos bem definidos; uma vez que, esses sim, condicionariam uma noção de real resultante do próprio acto de comunicação; a ignorância deste último aspecto viciou, em muitas ocasiões, os próprios termos de importantes debates em torno da arte, por ter minimizado a importância da dimensão semântica, que relaciona uma representação com o representado, através dos signos que emprega. 

     O realismo, como escola, instituindo um programa poético, seria uma das muitas determinantes e condicionantes dos códigos nos quais se inscrevem e aos quais se subordinam as mensagens artísticas.  De facto, para os escritores europeus de finais do século XVIII e, sobretudo, os romancistas do século XIX, como para os seus leitores, o realismo na literatura obedece a um ideal e tem as suas normas: a convicção que os elementos construídos pela nossa percepção, a partir dos dados da sensação, tal como foi teorizada pelo sensualismo[2] do século XVIII são fiáveis, pelo que permitem a representação fiel do real, e um discurso verídico que tem as suas regras próprias de verosimilhança.

    man in white long sleeve shirt driving car

    Resulta desse facto que, para os teóricos da literatura, bem como os de outras expressões artísticas, a partir dessa época, mas, sobretudo,  de meados do século XIX em diante, até aos nossos dias, o realismo é um estilo literário, ou de produção semiótica,  entre outros, com características próprias, que devem produzir uma espécie de efeito de transparência, de tal modo que, na leitura das obras realistas, o leitor deve ter a impressão de que  está perante um discurso que nos coloca em contacto imediato com o mundo como ele é, camuflando ou ocultando a evidência da sua própria presença enquanto texto.

    Posto isto, para retomarmos a narrativa policial como objecto central em relação ao qual a problemática do realismo se põe, queremos comentar, resumida e muito esquematicamente, uma pequena frase em epígrafe a um livro de contos policiais de um autor português, Lima Rodrigues que assim diz: “Dada a falta de ambiente nacional para certos contos aqui apresentados, recorri, por vezes, a locais e nomes estrangeiros.

    Situá-los em território nacional, com nomes e ambientes portugueses, seria tirar-lhes aquele cunho de realidade que só o ‘clima’ que não o nosso lhes poderia dar”. O livro referido é:  Histórias que eu não contei (edit. Europa-América/Livros de Bolso, 1965, com prefácio de A. Varatojo).

    Repare-se como a noção de realismo, para que a expressão “cunho de realidade” remete, sem ambiguidade nem equívoco, depende de um “clima” cuja escolha é primordial para   a recriação de uma ficção. Não é de estranhar que este pequeno texto epigráfico, liminar (em relação paratextual, como diria Genette) em posição sobredeterminante dos conteúdos do livro, como enunciado explicativo prévio, estivesse de acordo com um outro de inspiração platónica que citamos em segunda mão: “A verdade não faz as coisas senão como elas são, e a verosimilhança fá-las como elas devem ser.

    person hands with black liquids

    A verdade é, quase sempre, defeituosa, pela mistura de condições singulares que a compõem. Não há nada que, ao nascer no mundo, não se afaste da perfeição da sua ideia. É preciso procurar os originais e os modelos na verosimilhança e nos princípios universais das coisas onde não entre nada de material e de singular que os corrompa”. O realismo, antigo e moderno, cai muitas vezes nesta tentação de universalização de que o texto que acabamos de referir, de René Rapin, extraído do seu livro, Reflexions  sur la Poétique, datado de 1674 (cit. in Genette, 1968: 6), é a  sincera teorização.

    O verosímil, como conceito que exprime a regulamentação do real de acordo com a ideia e a ideologia em sentido lato (concepção do mundo) e, eventualmente, com a ideologia em sentido estrito (convicção ou crença), é muito importante para a compreensão dos mecanismos a que presidem à factura dos romances policiais.

    Assim, tornou-se frequente o entendimento fascinado da ficção policial, pelo que é comum o comentário espontâneo do leitor de romances, ou do espectador de filmes, policiais, após  o final dos mesmos:  “Ora…, não  era lógico que o assassino (ou a vítima, ou o polícia)  procedessem  desta maneira… no lugar dele eu faria…”, como se os factos reportados fizessem parte de um estado de coisas  compatibilizado com a opinião ou convicção de quem lê, dependendo das crenças do leitor a aceitabilidade do exposto. 

    Como género ou variante temática, o romance (ou o filme)[3] policial tem os seus modelos. Mas, modelos, não quer dizer imposição para mera reprodução das obras exemplares. Ao contrário de outros modelos de narrativa realista, sobretudo daquela que é reconhecida como verosímil por se cingir a uma realidade consensual, que constituirá a base de uma convicção generalizada, misto de concepção do mundo e de corresponder ao credível, o policial precisa de instaurar o mistério como tema central e a sua descoberta o corolário.

    man in black and white crew neck t-shirt wearing black cap

    Assim, o autor, “até ao último momento, não deverá revelar o nome do culpado” (Todorov, 1968: 145); no entanto, como nota ainda Todorov, para respeitar essa regra, relativa ao mistério, que é o modelo dominante, como particularidade da categoria sequencial do processo narrativo, complicação, o autor tem amplas possibilidades de variação.

    De facto, a identidade do criminoso pode manter-se misteriosa de diversas maneiras: era a mais insuspeita das pessoas, ou era um dos suspeitos que apresentou um falso álibi, aparentemente verídico, ou era alguém que não tinha sido considerado a candidato a suspeito. Mas a categoria mistério pode ser desenvolvida noutra dimensão, como o faz, por exemplo, Ruth Rendell, ao tornar misterioso o processo que levou ao acto de matar dando logo na primeira frase a causa do crime: “Eunice Parchman killed the Coverdale family because she could not read or write”; toda esta narrativa romanesca de Rendell se centra no processo da formação do carácter da criminosa a partir da sua obsessão em ocultar o facto de não saber “ler nem escrever”.

    A mediocridade que podemos sentir em algumas narrativas policiais ou de mistério não tem a ver, essencialmente, com a qualidade de escrita ou com os processos estilísticos conotados com o valor da literariedade, uma vez que estes, como acontece com a narrativa literária em geral, mas sobretudo a romanesca, não se revelam, aí, com a mesma pertinência com que são arvorados no texto de feição lírica.

    A fragilidade poética do texto policial é sentida, sobretudo, quando a organização da intriga, elemento constitutivo da narrativa que, no caso do policial, assume posição hegemónica, não elabora com rigor os seus contornos de mistério, que devem ser surpreendentes, mas não excessivamente rebuscados, sendo o equilíbrio dessa polaridade, entre o monótono e o aparatoso, a pedra de toque da elaboração do verosímil policial. Introduzir a analepse, de modo formalmente elaborado, pode ser a dimensão em que o golpe de mestria se revela. Todos o usaram, mas cada um dos mais aclamados mestres do género o fez de modo diferente.

    grayscale photo of woman sitting on chair near window

    Por exemplo, Holmes, usa muitas vezes, um resumo epigonal, quase em modelo de post-scriptum, pós epílogo, no qual lança todas as luzes sobre o mistério que acaba de explicar e resolver, ao seu parceiro, Watson; Poirot é mestre nas confissões obtidas, em narrativas quase finais, da boca dos suspeitos, às quais acrescenta as suas correcções; Marlow usa os desabafos afectivos em que faz o seu libelo acusatório.

    A chateza muitas vezes sentida em relação a alguns exemplares deste modelo romanesco resulta, de facto, a de o autor não conseguir superar, pelo menos em parte, os dados anteriores, ou seja, já realizados, do género, mas sempre, a partir deles, ter em conta os elementos formais do conteúdo e da organização da narrativa, já executados por outros criadores do género, reconhecidos como mestres. É claro que esse trabalho de inovação na continuidade se processa como um jogo, entre o autor e o leitor, que procura alcançá-lo, na sua mestria de inovação.

    Mas, para que o jogo se processe, para que o leitor o aceite, é necessário que o verosímil seja dado, desde o início, como base de credibilidade, dentro da qual o crime surja como improvável no quadro geral das convicções generalizadas na comunidade de partilha dos conhecimentos.

    Segundo Todorov, no mesmo texto, “O detective deverá apoiar-se, no seu discurso[4] final, sobre uma lógica que porá em relação os elementos até então dispersos; mas esta lógica releva de uma possibilidade científica e não do verosímil. A revelação final deverá obedecera dois imperativos: ser possível e ser inverosímil” (T. Todorov, 1968: 146).

    Para darmos um caso, diversificadamente repetido, que se tornou um dos topos mais célebres da literatura policial, o enigma do quarto fechado, podemos dizer que a evidente impossibilidade de alguém aparecer morto por um golpe humano, dentro de um quarto fechado, de onde desaparece, também, o instrumento letal, é inverosímil, mas não impossível, de um ponto de vista epistemológico que tenha em consideração as mais elaboradas conjecturas. Como, aliás, o demonstra o imenso número de célebres variantes, que vão desde os mais carismáticos fundadores do género, como Poe ou Gaston Leroux, até aos mistérios de John Dickson Carr/Carter Dickson.

    black and red rod in tilt shift lens

    E, para que este inverosímil surja, necessário se torna que o contexto narrativo apareça como verosímil. E como surge esse contexto narrativo verosímil no romance policial?

    A resposta a esta pergunta para ser correcta, e não surgir grosseiramente, com uma carta que se tira da manga, deveria ser morosa e pormenorizada. Deveria surgir, por exemplo, através uma análise das condições que produziram o universo de uma grande burguesia abastada que regulava um universo de estabilidade doméstica, dentro do qual a lenta e ordeira investigação do romance problema era verosímil e que, a partir dos anos trinta e da agitação financeira que acabou por conduzir à Segunda Guerra Mundial, deu lugar a uma nova ordem do mundo capitalista, em que os romances da série negra adquiriram os seus próprio contornos de verosimilhança. É claro que tudo isto não se fez sem um apoio das maquinarias gigantescas da informação.

    Como nos lembra Michel de Certeau, o real institui-se, a partir de meados do século passado, como a ordem natural das coisas: “O grande silêncio das coisas transformou-se no seu contrário através do media. Outrora constituído em segredo, passou a ser tagarela. Abundam, por toda a parte, notícias, informações, estatísticas e sondagens. […] A narrativa de tudo o que se passa constitui a nossa ortodoxia” (1990: 270).

    Cingimo-nos, por isso, a uma ou duas sugestões, relativas ao verosímil que rege a narrativa policial. Em primeiro lugar, recorremos, ainda, ao mesmo texto de Todorov: “Apoiando-se no anti-verosímil, o romance policial caiu sob a lei de um outro verosímil,   o  do seu próprio género” (1968: 146).

    white book near mug

    A partir deste ponto, compreendemos o campo de limitações que originam a carência desta literatura em Portugal:

    1º – A inexistência de um público leitor alargado, até ao terceiro quartel do século passado, incentivando o desenvolvimento de uma imprensa dita popular ­­;

    ­2º – A falta de uma  tradição romântica em que o romance de mistério  tenha ostentado a existência de modelos de  suspense como os que foram desenvolvidos nos espaços culturais anglo-saxónicos e, até certo ponto, franceses, criando a base que o romance de investigação vai retomar como apelo ao interesse de um público leitora alargado;

    3º – A não existência, entre nós, até quase aos nossos dias, de uma informação noticiasse o crime dando-o como um acontecimento possível, nas suas diversas fases, sob forma escrita de apresentação factos ocorridos.

    O texto de Viollette Morin, que em seguida apresentamos, nunca se poderia aplicar ao   jornalismo português, tal como foi praticado até à queda do regime salazarista: “A narrativa do assalto à mão armada é o relato de um roubo invertido. Ela desenvolve um espectáculo que se torna inverosímil desde que puxemos até aos limites da sua maior verosimilhança: a realidade da vida.

    Nenhuma reconstituição romanesca de piratas ou de gangster lhe é comparável. Mal ou bem armado, infame ladrão ou gentleman-gatuno, o romanesco coloca em evidência o seu eixo de oposição maléfica. De qualquer dos lados, ladrão ou roubado, que esteja o Bom contra o Mau, a verosimilhança mantém-se defensiva.

    man in blue denim jeans and blue shirt walking on pedestrian lane during daytime

    Um tem razão, outro não tem. Este é o seu código romanesco a sua legibilidade. Ao contrário, com a restituição da realidade, agarrada na vivacidade do seu movimento, esse código não tem mais lugar” (1968: 97-98).

    Como se vê, se o romance romântico de mistério inspirou a ficção policial de investigação, ou melhor, lhe forneceu alguns dos seus parâmetros de credibilidade, entre provável e o possível, não foi essa a única fonte escrita dos modelos romanescos, a única matéria fabulatória verosímil com a qual o romance policial se confrontou.  E a América. com a sua Série Negra tem ido buscar à técnica jornalística a inspiração para muitos dos seus mais brilhantes clássicos da literatura policial (veja-se um Hammett, por exemplo).     

    E claro que o cinema, de cariz policial ou noir tem gozado do benefício oriundo da mesma fonte. É esta tradição escrita, cuja carência em Portugal é notável (de Camilo a Reinaldo Ferreira, passando por Eça/Ramalho, são pouco mais de uma dezena de títulos a inserir-se na tradição da narrativa de dominante mistério/crime/investigação), o grande manancial onde o jogo poético, ou mecanismo ficcional, do género policial se enforma. A partir de dados de uma escrita que são outros tantos mais de um código que é o de um género narrativo (romanesco e cinematográfico).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Arvon, Henri, 1970, Lukacs, Estúdios Cor, Lisboa

    Genette, Gérard, 1968, “Vraisemblable et motivation”, in Communications, nº 11, pp. 5-     21, Seuil, Paris

    Lukacs, Georg, 1974, Écrits de Moscou, Éditions sociales, Paris

    Lukacs, Georg, 1975, Problèmes du réalisme, L’Arche Éditeur, Paris

    Morin, Violette,1968, “Du larcin au Hold-up”, in Communications, nº 11, pp. 91-98, Seuil, Paris

    Tadié, Jean-Yves, 1970, Introduction à la vie littéraire do XIXe siècle,Dunod, Paris

    Todorov, Tzevetan, 1968, “Du vraisemblable que l’on ne saurait éviter”, in  Communications, nº 11, pp. 145-147, Seuil, Paris


    [1] O realismo, segundo Lukacs, resulta, sobretudo do modo de o escritor colocar as suas personagens, sobretudo os protagonistas, numa relação com o real, referencial e contextual, empiricamente aceitável de concretismo positivo, face ao emergir fenomenal, mas, além disso em confronto dialéctico com esse mesmo real:“A «vitória do realismo» é sempre a vitória do real; uma vitória sobre as restrições erróneas, os preconceitos, as representações incompletas [e] quando, no processo de reflexo literário da realidade, o pensamento e o ser entram em contradição, [o escritor autêntico] tem a suficiente capacidade, coragem e sinceridade para se colocar, sem reservas, do lado da realidade — na sua actividade de figuração — e para deixar ao factos da vida refutar as suas própria ideias”(Lukács, 1974: 144); “A generalidade em Balzac é, pois, sempre concreta, real, conforme ao ser. Assenta principalmente na profunda concepção daquilo que é típico nas personagens individuais. Assenta na profundidade que, por um lado, longe de apagar ou suprimir o individual, pelo contrário, o sublinha e o torna mais concreto, e que, por outro lado, faz surgir as relações do indivíduo com o seu meio social, de que é o produto, no qual e contra o qual age, de uma maneira muito complicada, mas, contudo, inteligível” ( Lukacs, in Arvon, 1970: 202); “A relação do homem com mundo exterior e a energia humana em luta com o mundo exterior, só podem exprimir-se pela figuração real de uma luta” (Lukacs, 1975: 173). Com este horizonte teórico, Lukacs propõe-se corrigir as limitações que designa por esteticistas, dos realistas de procedimentos de representação mais formais, como por exemplo o naturalismo de Zola e o modo de este encarar a representação do mundo real: “O interesse já não está no interesse d(est)a história; ao contrário, quanto mais banal e geral ela for, mais ela se tornará típica. Fazer mover personagens reais num mundo real, dar ao leitor um farrapo da vida humana, todo o naturalismo está aí. […] O sentido do real só se torna absolutamente necessário quando está em causa o pintar da vida” (Zola, 1971: 215-216). Será interessante notar, dentro do quadro destas concepções, com alguns pontos de antagonismo motivadas por posicionamentos ideológicos, como o POLICIAL parece harmonizar os dois pontos de vista: ele faz apelo à importância da luta (Lukacs) pela prática do investigador na descoberta da verdade, e à dimensão da pintura (Zola) pelo que actividade da descoberta da verdade reside na qualidade do olhar que divisa os índices no interior das paisagens. O último excerto de Lukacs que apresentámos é tirado de um texto intitulado “Narrar ou Descrever”, que será sempre de grande utilidade ter presente, como instrumento teórico, do romance policial e da narrativa noir, em geral, quer literária, quer cinematográfica quer ainda de BD (temos em mente, sobretudo, uma narrativa do género daquela que foi criada pelo génio de Alex Raymond e Ward Green em Rip Kirby).[

    [2] Designação que se dá a uma doutrina (Locke, Condillac) segundo a qual todos os conhecimentos e todas as faculdades do espírito decorrem da sensação, sendo todo o conteúdo do espírito humano produto da experiência, ou seja uma forma de empirismo.

    [3] Reportando-nos à mais consensual distinção, que reconhece ao romance maior adensamento do universo diegético ou ficcional e, à novela, um maior desenvolvimento de peripécias e acções sucessivas e/ou paralelas, podemos dizer que as narrativas de Agatha Christie ou Raymond Chandler são romances ainda que de diferentes pontos de vista éticos e ideológicos, enquanto Edgar Wallace e Sapper se aproximam se aproximam mais do ritmo da novela. A nossa designação básica para uma narrativa mais ou menos alongada no tempo e no espaço é romance, como a anglo-americana é novel (que tem a abrangência conceptual do nosso romance), em espanhol é novela e em francês é roman. No cinema, a narrativa policial é, por norma, de ritmo mais marcadamente novelesco, o que se percebe comparando, por exemplo, a austeridade de cenários (ou décors) e ambientes sociais em The Big Sleep (1939) de Chandler com o filme, aliás excelente, de Hawkes, que adapta o romance, em 1946, conservando, dele, sobretudo, as grandes linhas da intriga. A mais impressionante narrativa cinematográfica dentro das grandes linhas do género, ainda que de tónica mais criminal do que detectivesca (o que se chamou, entre nós, filme de gangsters) de construção diegética romanesca, quase em tom de romance de  formação, ou de aprendizagem é, sem dúvida,o Once Upon a Time in America (1984) de Sergio Leone. Mas é preciso atenção a avaliar os textos policiais genologicamente porque, nas traduções, são muitas vezes as adaptações simplificadoras que prevalecem. Em O romance policial em português na década de 50 – da tradução: fugas, atalhos e desvios, parágrafo 1.3, do capítulo “Questões de Ordem Teórica”, acessível em ACDEMIA.EDU,  Maria de Lurdes Sampaio dá-nos um breve quadro das manipulações feitas pelos tradutores portugueses dos romances policiais, sobretudo anglo-americanos e, muito em especial, os de Chandler, em que nos parece que os textos usados pelos “transpositores” lusos  foram mais os do script do argumento para adaptação, do que os dos originais literários. 

    [4] A reunião final de Poirot, que herda o modelo das considerações finais de Sherlock Holmes, por vezes, em confidência, ao seu amigo Watson Agatha Christie criou, também uma imitação de Watson, em Hastings, que, contudo, não se manteve constante em todas as aventuras de Poirot.

  • A importância da perspectiva ocular na narrativa policial

    A importância da perspectiva ocular na narrativa policial


    A importância da análise tipológica do INFRACTOR, o estudo exegético da sua evolução ao longo dos séculos, na literatura romanesca ou mesmo na saga popular, só pode apresentar um dos aspectos (sem dúvida de grande importância) das origens da literatura policial[1].

    O campo abarcado não pode ultrapassar uma certa caracterização de tipo social por vezes ambígua, em que, embora possamos reconhecer uma anotação considerável para a análise, não deixamos de notar uma ambivalência irredutível, inlaw/outlaw, aplicável a qualquer época e ideologia indiferenciadamente.

    A crítica marxista tem sido, habitualmente, atenta, sobretudo ao fundo social que envolve o romance policial, quer enquanto elemento temático incorporado na diegese, quer enquanto contexto dentro do qual as narrativas são produzidas e recebidas.

    René Ballet, por exemplo, num texto em procura apresentar o aparato formal do romance policial reconhece que “a estrutura do romance-folhetim policia1 reproduz, sob uma forma caricatural a estrutura social tal como a concebe um certo público popular.

    Um herói (ou uma heroína) é injustamente privado do lugar que lhe compete na sociedade (a sua alta nascença é desconhecida a sua herança é usurpada). O seu principal inimigo não é o verdadeiro representante do poder, mas um usurpador; a regra do jogo não sendo respeitada, todos os golpes se tornam permitidos; o usurpador tendo roubado o seu poder, o ladrão torna-se justiceiro”.

    Ora, o tipo de relações definido na história-folhetim faz ressaltar, mais ou menos profundamente, o carácter do fora-da-lei que, até fim do século XIX, era apresentado como um desgarrado do grupo, mas que podia ser recuperado após denunciada a sua falta, depois do detective o ter integrado no contexto e lhe ler extorquido a confissão de culpado.  Quer tivesse sido usurpado nos seus direitos espirituais (psicológicos, morais), quer nos materiais (os bens a herança) na óptica que encara o criminoso, a concepção mantém-se quase permanente: alguém está fora do grupo e é urgente recuperá-lo.

    wooden armchair

    E mesmo o romance policial moderno, incluindo o de máscara negra (que tem como referência de origem os romances de Chandler e de Hammett) que, dentro do género, é uma variante muito atenta às contradições sociais (o que é mais raro no romance policial de enigma) atendendo a que sugere sempre a séria acusação a um erro social generalizado,  para lá da capacidade de decisão do  outlaw, mantém-nos numa óptica do mal  e  do  bem  mesmo que o bem esteja numa ordem a que Phillip Marlow aspira e que Sam Spade já deixou de procurar.

    E, de facto, o grande mérito destes dois heróis é terem deixado de encarar o bem detidos ou representados por este ou aquele grupo social, incluindo os representantes da lei ou mesmo por um herói lutando pela ordem contra a usurpação.

    Neles, e em torno deles, tudo aparece corrompido pelo sistema e o valor deve estar algures para lá dele, numa outra sociedade diferente. Daqui para diante será, talvez, supérfluo, sublinhar o que a observação do herói nos pode fornecer.

    Em última análise sabemos o que é Bond, o assassino da instituição, ou Hammer[2], o desesperado defensor romântico dos pontos estratégicos dos Estados Unidos: assassinos que o sistema cria na defesa contra uma entra lei de um outro sistema. Mas os detectives privados, mais próximos do paradigma crítico e existencial do século XX, são seres, por vezes, tão perplexos e claudicantes face ao real que os ameaça quanto a vítima que neles busca a protecção ou o leitor que os toma como expertos na decifração de enigmas. 

    silhouette photo of a man with hat standing near concrete building at daytime

    O que o romance de investigação de um enigma (o modelo do “quem matou?”, o who dunit clássico) veio trazer em relação ao romance de aventuras clássico, foi a denúncia, ainda que inconsciente, da situação privilegiada em que o leitor outrora se encontrava, como espectador de uma cena em que estivesse permanentemente na posição de juiz e de incontestável detentor da verdade.

    Na sua necessidade interna de criar a atmosfera do medo e do terror (reverenciando a atmosfera gótica), ou, pelo menos, de preocupante enigma, o romance policial de investigação (o romance policial por excelência) deixa transparecer a forma pela qual o senso comum precisa dos seus guardiões e como a  observação pura e simples do real não passa, de facto, de uma observação das aparências de um certo efeito do real onde os indícios estão postos de forma equívoca, iludindo um senso comum não privilegiado, sendo o detective o único detentor do privilégio de os perspectivar correctamente. Holmes ou Poirot não descobrem nada nos factos do mundo que constituem enigma, apenas têm de os ordenar devidamente.      

    Ao ser a salvaguarda, na sua época, do ponto de vista da ordem segundo as instituições que não contesta, o romance de investigação é, simultaneamente, o repositório dos indícios pelos quais o grande terror se anuncia, deixando perceber nas entrelinhas de que forma a composição romanesca é resultante, e também veículo, das coordenadas ideológicas de uma determinada sociedade e também da forma pela qual essa sociedade apreende e expressa o real, emergindo este numa organização estruturada e inconsciente que é o espectador fictício do crime e o leitor da ficção.

    Gombrowicz denuncia, e muito bem, em Cosmos, de que forma o romance policial pode ser um roteiro de indícios, a descrição de um cosmos em que o leitor, na ilusória encarnação do espectador (que pode surgir sob o aspecto de um herói, detective ou não, movendo-se no universo diegético da narrativa em causa), coordena os elementos para neles se projectar ou projéctar toda a culpabilidade de que, inconscientemente, é agente. Não “há leitura inocente” como não há visão inocente do mundo.

    É em torno deste ponto que queríamos encarar o romance policial, procurando ver nele uma imagem do real que é ordenada pela perspectiva e  a óptica e, mais  ainda, pelo jogo da perspectiva e da óptica segundo o qual o romance policial subverte todo o sistema narrativo em que assentava o romance tradicionalmente consagrado como realista, padronizado enquanto modelo clássico da narrativa moderna.

    Surge-nos Poe como um ilustre predecessor imediato da técnica narrativa do romance de investigação, e, de forma particularmente significativa, por ele ter sido um escritor a que não podemos chamar prioritariamente policial. 

    Poe cultivou um tipo de narrativa de imaginação que, como divergência do sistema narrativo realista tradicional, nos parece fundamental. Num dos seus contos mais curiosos, quanto a essa dimensão, por explorar a falibilidade das nossas percepções, e a possibilidade do nosso sistema sensorial nos enganar e nos fornecer imagens inverosímeis do mundo, The sphinx (A esfinge da caveira, como habitualmente tem sido traduzido para português) coligido em Tales of mystery and imagination[3], podemos ver a forma assaz minuciosa através da qual Poe jogou com a imagem do real, fazendo dela ponto de partida para a constituição de um universo imaginário que ganha raízes num quotidiano enformado e perspectivado pela ideologia  dominante.

    do not cross police barricade tape close-up photography

    O romance policial de investigação só  vem tomar, de forma mais grosseira  e num outro ponto que podíamos considerar de perda da consciência crítica, com outras intenções e perspectivas ideológicas, este trabalho que o poeta americano elevara à categoria de técnica  narrativa, apoiando-se nas suas terríveis suspeitas que o fantástico tinha algo a ver com o real.

    Que  nos  conta  A esfinge  da caveira?. O narrador foge de Nova Iorque, atacada por uma forte epidemia, e refugia-se em casa de um parente: “During the dread reign of the Cholera in New York, I had accepted the invitation of a relative to spend a fortnight with him in the retirement of his cottage ornee on the banks of the Hudson”.

    Assim começa um retiro que ele descreve, sumariamente:

    We had here around us all the ordinary means of summer amusement; and what with rambling in the woods, sketching, boating, fishing, bathing, music, and books, we should have passed the time pleasantly enough, but for the fearful intelligence which reached us every morning from the populous city. Not a day elapsed which did not bring us news of the decease of some acquaintance[4].

    Estamos logo, portanto, desde as primeiras linhas, sob o perigo de uma ameaça mortal, respirando uma atmosfera em que a morte é o elemento preponderante. Não é necessário recordar como esta ameaça da morte está sempre presente em qualquer novela policial, mas talvez seja recordar como ela serve de    pórtico a muitas obras em que o fantástico e o imaginário, o campo do terrífico e do erótico dominam por excelência.

    Citemos só as duas obras em que um morticínio, ou a sua probabilidade, preludia a narrativa de dotes cativantes, ou forte suspense da intriga: Decameron e As mil e uma Noites. Ora, no romance policial, desde o título que temos anunciada a visita do exterminador.

    Algo de novo temos anunciado então em relação à narrativa de aventuras do passado, que vem entroncar directamente na narrativa fantástica, habitada por entes maléficos e de obscuros desígnios: a ameaça de perigo ou do terror enunciado como ponto de partida, atmosfera   de “suspense” criada por algo ou alguém que, das trevas, ameaça o sossego, a tranquilidade e a vida. E, em Poe, parece-nos ter sido criado todo o sistema de referências tópicas que viriam a servir de significantes supremos nos romances de   investigação, elementos esses que, de certo modo, lhe são inerentes como índices, motivos, constelações temáticas. Mesmo do romance da série negra não deixa de ressaltar uma ameaça nocturna, uma entidade enigmática, das trevas, que faltou nos ambientes e cenários das façanhas reparadores das gestas e dos romances de aventuras, enaltecedores do bandoleiro que busca o resgate pela justiça social ou, pelo menos, focando em primeiro plano o fora-da-lei

    É importante que se constate, então, o seguinte: Todo o horror da visão do narrador, neste conto, surge nessa atmosfera que ele continua descrevendo ainda nas primeiras linhas:

     “Then as the fatality increased, we learned to expect daily the loss of some friend. At length we trembled at the approach of every messenger. The very air from the South seemed to us redolent with death. That palsying thought, indeed, took entire possession of my soul. I could neither speak, think, nor dream of anything else. My host was of a less excitable temperament, and, although greatly depressed in spirits, exerted himself to sustain my own. His richly philosophical intellect was not at any time affected by unrealities. To the substances of terror he was sufficiently alive, but of its shadows he had no apprehension[5]

    white ceramic bowl on black table

    Ora o estado de espírito agrava-se com a leitura de alguns livros que se referiam a determinadas coisas subterrâneas. Com brevidade,  o narrador encontra-se a descrever uma   troca  de impressões com o seu anfitrião, em  que  a  sua  própria  tese era a do valor da  crendice: “I contending that a popular sentiment arising with absolute spontaneity – that is to say, without apparent traces of suggestion – had in itself the unmistakable elements of truth, and was entitled to as much respect as that intuition which is the idiosyncrasy of the individual man of genius[6]. Ora, a crença pessoal do narrador é a de que algo de indescritível e mal definido ou indefinido, existe e pode manifestar-se de forma mal controlada pela razão.

    O fulcro da história situa-se no confronto entre o acontecimento que foi a visão aterrorizante de um monstro descendo uma colina, que teria aparecido diante da janela perto da qual o narrador se encontrava a ler e a desmontagem desse facto, que é desmentido numa segunda visão do narrador estando presente o seu familiar anfitrião.

    É perante a descrição que faz da aparição, ao seu parente, que se começa a desvendar o mal-entendido, o trompe-l’oeil, a ilusão que “criara” o monstro gigantesco e disforme, com a caveira desenhada no peito.  Ao ouvi-la, o familiar, pessoa culta e arguta, capaz de um raciocínio calmo reflexivo procura um manual escolar de História Natural e destaca, nele, algumas linhas que resume, em voz alta par o seu ouvinte.

    Tratava-se da descrição de um insecto sem qualquer anomalia, de dimensão média, uma variedade de borboleta, cuja descrição física, descontando o exagero da dimensão que a visão alucinada criara, corresponde à do monstro. Imediatamente se verifica ser a visão anormal proveniente do erro de ajuste da perpsectiva ocular tendo o narrador visto, simplesmente o animalzinho, um insecto, a percorrer uma teia de aranha para cá da janela, portanto, para cá do enquadramento da cena onde se desenrolava todo o espectáculo da paisagem com monstro.

    O próprio “anfitrião-erudito” (voz de um saber enciclopédico fundamental) faz notar, com insistência, a “monstruosa” margem de erro que pode surgir, por uma má avaliação das distâncias e, portanto, de uma má localização do objecto, no enquadramento ocular.

    Blow-Up – História de um Fotógrafo (1966), de Michelangelo Antonioni, onde, com a ampliação de perde o corpo do crime observado

    Resumamos, agora uma história de Conan Doyle, breve e exemplar “A aventura do vampiro de Sussex”[8]. O ambiente de escritório de Holmes é o local onde chegam as mais estranhas notícias, que o superdedutor recebe com um misto de suspeita e dúvida, mas, antes de ser dominado pela surpresa, põe em funcionamento um domínio da razão quase imediato. Esse é o ambiente, sempre surpreendente e misterioso, que Watson, médico, provavelmente um positivista, que representa, permanentemente, a perspectiva verosímil dos factos, contempla quotidianamente, sem que, por essa razão, se lhe desvende um só milímetro da atmosfera de inteligibilidade de que é testemunha, ao longo dos anos, irradiando do semblante e da atitude do seu extravagante parceiro.

    Sempre se queda no limiar das trevas com os seus monstros, nos recantos mais obscuros, sinais das grandes disjunções do entendimento e da razão, que Holmes controla com automática certeza e perfeição dedutiva.  Quem são os criminosos? Quem é Hol­mes? Eis um mistério que Watson e os leitores, pelos seus olhos ou pelos seus ouvidos, nunca saberão ao certo. 

    Holmes detém os monstros. Melhor, Holmes sabe ver o anormal pela força da sua formidáve1 razão, de forma a torná-lo razoável para Watson e também para nós. O detective de Doyle é, simultaneamente, o operador epistémico das virtualidades da ciência enquanto saber e domínio das regras do universo, e o detentor de uma aletheia, capaz de circunscrever as causas primeiras e últimas, detendo o alfa e ómega do saber supremo.  

    Nesta história, por exemplo, chega um pedido de auxílio para a tentativa de solução de um caso de vampirismo. Watson espanta-se, mas Holmes revela, de imediato, um plano de eliminação de hipóteses traçado no momento, logo após a leitura da carta em que o pedido de ajuda tinha sido feito. Diz a Watson para consultar o livro sobre os vampiros. 

    Lembremos o livro que elucida o narrador de Poe. O funcionamento não é o mesmo, nos dois contos que comparamos, mas, em ambos, o aspecto fundamental do livro é trazer-nos ao terreno da enciclopédia, para aliarmos o valor de verdade dos casos em causa: no fundo estabelecer as bases do status causæ em que vão assentar as crenças, as convicções ou as formulações opinativas. Em Poe, a enciclopédia, com a sua força positiva, fundamenta a espisteme. Contudo, para Holmes, a episteme é apenas uma forma de conformismo, uma doxa acomodatícia, que não conduz ao verdadeiro acto de intelecção, capaz de nos levar ao verdadeiro, a saber, a aletheia.

    Três ilustrações das construções geométricas elaboradas, se acordo com a teoria renascentista monocular (também chamada ciclópica) da pintura: de Abrecht Dürer, em cima. Em baixo, à esquerda, plano do filme de Peter Greenway, The Draughtsman’s Contract (1982 pt: O contrato) ele próprio desenvolvimento de uma história policial em que a perspertiva do pintor revela o crime. À direita, ilustração do tratado sobre a perspectiva de Du Breuil (1642-1649)[7]

    “Lixo”[9], diz Holmes, embora concorde que existem casos de real vampirismo e não só os 1endários mortos-vivos sugadores de sangue. “Esta agência tem os pés assentes no   chão e assim tem de se manter”  Não se tente levar Holmes para fora  da  razão  ou arrancá-lo da terra. “Os fantasmas não são para aqui chamados”[10]. Os monstros são criaturas das lendas. Quem olhar com a força e penetração de Holmes também ficará entre os que não declinam perante a invasão vinda das trevas, nem as perigosas ameaças do antro obscuro.

    Continuemos. Uma razão de amizade leva Holmes ao caso. Trata-se de uma senhora, em segundas núpcias, que foi vista por duas vezes a agredir o adolescente enteado e a sugar o pescoço do seu filho, recém-nascido. Foi vista a praticar estas acções. Mas Holmes, quase desde o princípio, sabe que assim não é. E a dedução é simples, a partir das premissas fundamentais. Primeiro: não existem vampiros. Que nos diz a razão? Um filho ciumento pode odiar a madrasta e o meio-irmão.  Holmes descobre veneno e o processo abdutivo desencadeia-se: Se for verdade que um adolescente sente ciúmes dos que lhe retiram espaço nos afectos familiares, é possível deduzir toda a história sem erros.   

    O jovem enteado da senhora tentou matar o bebé e a mãe deste, sua madrasta, bateu-lhe, tendo, em seguida, sugado o sangue do filho, procurando extrair o veneno. Para não chocar o marido ocultou sempre a verdade, preferindo passar por sádica e perversa. Do mal o menos.

    Holmes, contudo, não pode admitir tais anomalias. Tudo se explica pelo mal menor. Pelo senso comum, entre a mulher adulta, vampiresca, sádica-perversa e o filho vagamente incestuoso, mas órfão, o meio termo e o equilíbrio indicam-nos um só caminho: O segundo. A cena, tal como é relatada inicialmente, era enganosa. A verdade não estava patente, embora fosse evidente para quem, como Holmes, sabe pesar os prós e os contras do sensato e do possível, rejeitando o insensato e o impossível.

    knife set box

    O senso comum foi para a burguesia mercantilista muito mais forte defensor da ideologia dominante do que a religião foi para a monarquia ou para o feudalismo. A sensatez, generalizada como conservadora dos seus valores ideológicos, apresentou-se com uma maior coerência, enquanto organizadora da visão do mundo, do que a religião fora para as classes anteriormente hegemónicas (clero, nobreza), pois ensinou a ver, sobretudo, na terra os indícios das forças celestes.

    A sensatez apoia-se na perspectiva da óptica. Esta é-lhe necessária para a organização de um espaço em que todo o espectador é convidado a ver, através de uma representação controlada, a imagem do real.

    Poe, no conto acima citado, dá-nos o mecanismo correcto pelo qual a perspectiva do real e o seu efeito, na obra, pode ser viciado “por um erro na avaliação das distâncias”. A tomada em consideração desse facto enquadra-se no critério ideológico do familiar anfitrião, que tem perante a clivagem política e as lutas e critérios partidários uma opinião muito “filosófica”.

    Para ele não há dúvidas de que a posição frontal e egocêntrica é a que permite uma visão correcta dos fenómenos. Não interessa muito, porém, desse ponto de vista subjectivista, saber as razões pelas quais se escolhe esta ou aquela, perspectiva, mas sim saber e notar que esta poderá mudar o que virá pôr em causa a validade da posição tradicional romanesca, clássica ou realista, que transparece no romance, no teatro ou na pintura como dominante ou hegemónica. Para a defender, já não se poderá dizer que ela é a única.  Forçosamente recorremos a um critério de valor, discutível, que pode ser confrontável, explicado e experimentado.

    Quando o relato policial de investigação se enformou, no interior da produção realista hegemónica, a técnica narrativa e, com ela, os meios credíveis de se apresentar e representar o real estavam em vias de ser postos em causa. Um conto, como este, de Poe, não deixa de ser significativo por ser a apresentação de um caso ocorrido em plena vigília de um narrador com muitas marcas de autoralidade. O que não acontecia, por exemplo, noutras histórias do autor, como Ligeia, onde a possibilidade do regresso dos mortos parece prevalecer, alternando, como hipótese, com a percepção delirante do narrador autodiegético que se sente dominado pela hipótese do retorno fantasmagórico ou, ainda nas narrativas de Nerval, por exemplo, com o seu clima onírico dominante.

    white and blue ford f 150

    A resposta, de superação formal, quase em termos dialécticos, é dada pelos três contos de Poe dominados pela figura do Chevalier Dupin, que são expressos por um narrador intradiegético, companheiro do dotado “investigador”, com especial destaque para The murders in de Rue Morgue.

    Não só o dispositivo narrativo introduz os termos do permanente balancear dialéctico entre as margens da realidade verosímil e a hipótese fantástica, representado pelo detective acompanhado pelo seu “narrador privado”, anexado, por isso, à história contada – processo que voltarão usar os grandes criadores e sustentáculos da narrativa policial, de Conan Doyle a Rex Stout, passando por Agatha Christie – como as histórias revelam hipóteses reais, que parecem desafiar a verosimilhança, convidando à abertura para as regiões do excepcional, do extraordinário e até, por vezes, do fantástico.

    Voltando aos dois contos aqui considerados mais atentamente, devemos registar que é ainda a explicação dos Mestres que é invocada em ambos os casos. É com circunspecta razão que a perspectiva ocular é corrigida, e é categoricamente que Holmes recusa a alusão a fantasmas .no caso de Holmes (“No ghosts need apply”). Está escrito no Livro (com todas as aparências de registo enciclopédico) que os vampiros são lendas e, portanto, o sensato e cerebral detective tem, atrás dele, como seu apoio “todos os juristas que foram encarregues, pela sociedade, de traçar o limite aceitável entre a razão e a desrazão” (Maude Mannoni, 1971: 199).

    Se o erro surge no espaço do real que está apontado para ser aquele que a razão admite, é verdade que a óptica do espectador deve obedecer a certas regras para que a imagem não surja falseada. Só Holmes nos surge como depositário daquela sabedoria da sensatez que prescreve: “Não importa tanto conhecer o débil [neste caso, tanto o leitor ingénuo como a testemunha do facto criminoso ocorrido, que carece de discernimento para o explicar] como assinalar-lhe uma situação jurídica, numa sociedade cuidadosa, antes de tudo, na salvaguarda dos bens da família” (M. Mannoni, 1971: 199). 

    Não só os débeis como os indivíduos amorais (que, por uma anomalia qualquer, ignoram os padrões de valores) nos surgem como criminosos ou cúmplices, mais ou menos passivos, mais ou menos voluntários. Mas essa anomalia é posta logo em pratos limpos e explicada, quase clinicamente a solução.

    Neste conto de Doyle, o jovem edipiano, assassino em potência, é denunciado pelo detective e ele mesmo lhe receita sem hesitações uma cura de férias. De facto, os monstros anunciados pela óptica incorrecta nunca correspondem à realidade que o “guardião” demonstra. O erro apontado pelo detective não é só o da falta ou do crime do fora-da-lei efectivo ou potencial criminoso, mas é também o do espectador, testemunha da ocorrência, que deixou o seu senso comum ser abalado ou confundido pelos sinais que não soube interpretar, pelas distâncias que não soube avaliar, para perceber o que os seus olhos viam.

    Por não garantir a correcção que a distância introduz permitido o divisar, tendo em conta a profundidade de campo, e não ser iludido pela excessiva proximidade ou empenho criado pela emoção ou o espanto.

    “A negação, a rejeição e depois a objectivação do louco, como matéria de estudo científico, são o resultado de um desconhecimento no homem dito normal, não só do seu próprio medo como também dos seus sonhos sádicos, e ainda dos mitos e superstições que lhe povoaram a infância e se prolongam nele sem saber” (M. Mannoni, 1971: ). A sensatez do detective, face à anomalia, é a “do adulto quando se encontra face a um semelhante que não é a imagem do que ele crê poder esperar, e oscila, numa atitude de rejeição e de caridade” (M. Monnoni, 1971: 201).

    silhouette of hand with red background

    A mulher não era vampiro, hipótese que seria, se tivesse sido confirmada, justificadora dessa crendice popular, dessas superstições que se instituiu serem imaginárias e não reais e a história não seria policial, inspirada pela razão, mas sim fantástica, ou mesmo pertencente à esfera do maravilhoso.

    Porém, a narrativa policial de investigação apresenta-se, quase sempre, manifestamente a correcção do erro ou mesmo da crendice e, talvez por isso, essa modalidade narrativa tenha sido escolhida, pelo seu sistema de equívoco-correcção, como estrutura modelar para o argumento cinematográfico, onde a óptica surge como tal, num sistema em que o relato se firma na figuração pura, melhor ainda, no permanente confronto da fala e da escrita figurativa e ideogramática.

    As aparências e a realidade o logro e a verdade estão num permanente jogo, no qual o que surge padronizado é o lugar em que as leis da razão reprimem as trevas e os seus príncipes empreendedores, como nos revelam, por exemplo, as narrativas cinematográficas de Hitchcock ou de Brian De Palma.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Doyle, Conan, 1930, The Complete Sherlock Holmes, Dobleday & Company, inc., New York

    Mannoni, Maude, 1971, A Criança, a Sua “Doença” e os Outros, Zahar Editores, São Paulo                              

    Poe, Edgar, Allan, 1994, The Complete Illustrated Stories and Poems, Chancellor Press, London

    Poe, Edgar, Allan, 1971, Histórias de Mistério e Imaginação, Verbo/RTP, Lisboa


    [1] Publicado em 2 de Julho de 1971 no Notícia da Beira (Moçambique). Foram introduzidas correcções e ligeiras alterações.

    [2] Os quarto “heróis”/protagonistas que acabamos de citar são personagens, respectivamente dos romances ou mesmo das longas séries romanesco/novelescas respectivamente  de Chandler, Hammett,  Fleming,  Spillane.

    [3] A edição de referência é: The Complete Illustrated Stories and Poems, Edgar Allan Poe, Chancelor Press/Reed Consumer Books, London, 1994

    [4] Cf. op. cit. p.720. Apresentamos, em seguida uma tradução potuguesa “Estávamos rodeados de todos os recursos comuns para as diversões estivais. E que tempo agradável, teríamos passado a vaguear pelos bosques, a desenhar, a remar, a pescar, a tomar banho ou entregues à música ou à leitura não fossem as terríveis notícias   que   nos   chegavam   todas as manhãs da grande cidade. Não passava um dia que não nos trouxessem a notícia da morte de qualquer pessoa conhecida” (Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [5] Cf op. Cit. P. 720. Resumimos, a partir da mesma tradução “Depois, à medida que a desgraça aumentava, habituávamo-nos a esperar diariamente a perda de algum amigo. Finalmente, tremíamos já à aproximação de qualquer mensageiro. O próprio ar do Sul parecia-nos impregnado do odor da morte. Aquele pensamento obcecante apossou-se, na realidade, do meu espírito. Não conseguia falar, pensar ou sonhar com outra coisa. O próprio ar do sul parecia-nos impregnado do odor da morte” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [6] “…eu afirmava que um sentimento popular que brotava com absoluta espontaneidade, quer dizer, sem traços aparentes de sugestão, continha em si a própria substância da verdade e era digno de bastante respeito” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [7] A especulação narrativa de Poe sobre a deformação visual que terá alucinado o protagonista-narrador do conto em questão, assenta no facto de que, resumidamente, se pode considerar que uma visão muito aproximada corresponderá à visão monocular que, a não ser corrigida, justapõe imagens. Pelo que alcança numa profundidade de campo tendencialmente infinita (numa planificação que não tem em conta a tridimensionalidade que se obtêm pela conjugação dos dois focos de percepção que são os dois olhos), funciona de tal modo que elementos no “fundo” da imagem maiores que elementos “mais próximos” são vistos com tamanhos projectados menores e vice-versa, os “mais perto” menores são vistos com tamanhos projectados maiores. Resumindo, o narrador protagonista, perturbado pelo medo ter-se-á deixado enganar pela sensação do muito próximo, não fazendo a correcção perceptiva pela a utilização dos dois olhos. É possível, mas é pouco verosímil. O resultado obtido é semelhante ao que, também obtêm, em jogos de perspectiva, Peter Greenway, no seu Contrato e Michelangelo Antonioni em Blow-Up, que evocamos por duas imagens acima apresentadas.   

    [8] Cap IV do livro The Case-Book of Sherlock Holmes (nem todas as edições ordenam as histórias da mesma forma – umas respeitam a primeira edição em livro, outras, como a que aqui citamos de uma localização online, seguem a ordem da primeira publicação dos contos, em periódicos). Cf. se pode verificar aqui.

    [9]“ ‘Rubbish, Watson, rubbish! What have we to do with walking corpses who can only be held in their grave by stakes driven through their hearts? It’s pure lunacy’.

    But surely,’ said I, ‘the vampire was not necessarily a dead man? A living person might have the habit. I have read, for example, of the old sucking the blood of the young in order to retain their youth’ ” (1930: 1034).

    [10]“ ‘You are right, Watson. It mentions the legend in one of these references. But are we to give serious attention to such things? This agency stands flat-footed upon the ground, and there it must remain. The world is big enough for us. No ghosts need apply. I fear that we cannot take Mr. Robert Ferguson very seriously. Possibly this note may be from him and may throw some light upon what is worrying him’ ” (1930: 1034).

  • Almeida Faria

    Almeida Faria


    Quando, em 1962, Almeida Faria, nascido em 1943, publicou o seu primeiro romance, Rumor Branco, a opinião da crítica em geral foi a de um entusiasmo sem reservas. Não existe uma só nota de reserva, entre os vários comentários que, por essa altura, eram dignos de respeito. Entre os leitores mais atentos de então o romance foi considerado uma obra profundamente inovadora nas nossas letras.

    A maior parte dos estudiosos e críticos que, na década de 60, deixaram a sua opinião registada sobre o primeiro texto que Almeida Faria publicou, contam-se leitores exigentes como Vergílio Ferreira, Alexandre Pinheiro Torres e Leodegário de Azevedo Filho. Não obstante a frontalidade com que os dois primeiros discordavam, por razões históricas e culturais várias e complexas, ambos colocaram, desde logo, o romance Rumor Branco entre as grandes obras que aquela década vira nascer.

    Almeida Faria nasceu em 1943.

    A Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu-lhe, nesse mesmo ano, o Prémio Revelação. Na sua apreciação do mesmo texto de Almeida Faria, publicado alguns anos mais tarde, Leodegário de Azevedo Filho afirma: “Rumor Branco é, antes de tudo, uma experiência de linguagem, colocada em plano estético e capaz de trazer novas energias ao género”.

    O carácter profundamente inovador das narrativas de Almeida Faria, que publicou o romance já referido com 19 anos de idade, foi sobejamente enfatizado por Vergílio Ferreira, e confirmado por Óscar Lopes no prefacio ao segundo romance do jovem autor, A Paixão,publicado três anos depois. Uma assimilação profunda, inteligente e criativa dos mais ousados códigos regeneradores criados pela narrativa modernista que então se colocava na vanguarda, era reconhecida por todos os críticos e historiadores literários de então.

    De facto, embora se situasse abertamente num campo temático e de referências através do qual os seus romances se mantinham próximos do neo-realismo, Almeida Faria desenvolvia francamente a sintaxe narrativa e a perspectiva lírica da enunciação romanesca segundo novas influências onde se destacavam sobretudo os processos de criação poéticos típicos de Proust, de Joyce, de Faulkner e de alguns mestres do nouveau roman.

    Embora a vertente lírica da narração tivesse sido o aspecto que mais marcou a sua escrita nos primeiros textos que publicou, aspecto que, provavelmente, terá levado Vergílio Ferreira prefaciar-lhe a primeira versão de Rumor Branco, a criação poética de Almeida Faria não se manteve numa fórmula fixa de procedimento romanesco.

    A revisão profunda que faz ao seu primeiro romance e a escrita de Cortes, romance onde parece desenvolver uma deliberada secura verbal por oposição à discursividade através da qual a dimensão passional e irracionalizante se tornava dominante na sua primeira produção romanesca, revelam uma preocupação do escritor em renovar a sua poética.

    Essa nova fase de escrita, que ele assume como “libertina”, expressa como programa mais evidente a vontade de retomada de valores filosóficos e estéticos que se reportam à grande produção romanesca do século XVIII.

    Rumor Branco foi publicado originalmente em 1962.

    Está em causa, evidentemente, um programa de criação poética que, sem se ligar excessivamente à tradição mais banalizada do realismo, na continuidade do romance realista oitocentista, retome alguns dos processos esquecidos das fontes do racionalismo europeu, funda a modernidade, com duas linhagens que o modernismo esqueceu: a do romance de aprendizagem e a da narrativa libertina.

    Nesta última dimensão, podemos dizer que a sua obra se desenvolve unitariamente num ciclo ou trilogia, a que chamou Lusitana e que se compõe de três romances: Cortes (1978, prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Libo – prefaciado por Manuel Gusmão em 1986), Lusitânia (1980, prémio D. Dinis, da Casa de Mateus, prefaciado por Luís de Sousa Rebelo) e Cavaleiro Andante, (prémio Originais de Ficção da APE).

    Considerando, no entanto, a produção da obra de Almeida Faria como um conjunto unitário, não nos devemos deixar arrastas por um simplismo que deixe supor dois ciclos claramente distintos: um, inicial, em que o corpus seria a própria linguagem, tomada como objecto, e outra em que a história contada se revelaria a matéria mais importante.

    De facto, a evolução de Almeida Faria, problematizando as relações entre as histórias contadas, a linguagem em processo, a voz narrativa e a historicidade em que a produção se afirma, é fundamentalmente a de um discurso literário em permanente interrogação dos valores que mobiliza a vários níveis. Estão sempre em causa, nas suas obras, as relações que a produção literária estabelece com o universo social em que emerge, convocando, frontalmente, quer os valores ideológicos que se apresentam como tradição, quer os que emergem como questionamentos desses mesmos valores.

    É desse modo que, por exemplo, Óscar Lopes o vê, em 1963, logo na data de publicação do seu primeiro romance. Ultrapassando a novidade espectacular que a nova escrita propõe, com as suas rupturas, quer em relação à gramática da narrativa quer à da sintaxe ou mesmo à da ortografia, o crítico português reconhece que o romance “exprime (…) um movimento geral de assimilação e crescimento integral humano”. Reconhece ele, no processo fabulatório, a base expressiva dos “termos religiosos da tradição cristã” em fusão com a “divinização da ansiada unidade amorosa”.

    A ligação desta problemática com a da dimensão social, ou mesmo sócio-política, torna-se mais evidente no romance seguinte: a Paixão. Romance em que a multiplicidade das vozes se cruza num modelo que, resumidamente, poderíamos dizer remeter para o As I Lay Dying, de Faulkner, nele se expressa “o sonho prometeico, ou luciferino, da omnipotência humana” o qual, nas palavras do mesmo Óscar Lopes, que vimos citando livremente, “é comum a todas as mitologias”. Por isso, Almeida Faria o lê na ressurreição que evoca como sequência da “Paixão”, que ele vê, no plano da História, como síntese de todos os sofrimentos, partilhas e compaixões fraternas.

    A Paixão, segundo romance de Almeida Faria publicado em 1965.

    O romance seguinte, Cortes, pode ser entendido, a partir do seu título, em três dimensões distintas: uma que tenha como objecto central a obra do autor; outra que o encare como um  índice a acirrar do modelo das múltiplas vozes e perspectivas que, ao contrário de A Paixão, não se encontram em comunhão, mas sim em confronto; e uma terceira que assuma o título a partir do próprio nível elementar da escrita – ou seja, propondo uma passagem de um discurso emotivo, marcado pela passionalidade e até por um fluir verbal ao sabor do dizer como prazer da dicção, para uma escrita vigiada, avara, racionalmente vigiada.

    Digamos que a segunda perspectiva é a que poeticamente se revela mais interessante. Porque conceptualiza o sentido de “corte” como “discurso de ferida ou de violência que a ruptura provoca” e, segundo Maria Alzira Seixo, dado que, por esse mecanismo, “cada capítulo funciona, não como um degrau narrativo (…) mas fundamentalmente como espaço da contra-di(c)ção que em si desenha (…) oposições significantes” (Seixo, 1986: 194), tal perspectiva é a que mais amplamente revela o processo criativo.

    É segundo esta reformulação da multiplicidade de perspectivas e vozes que a obra de Almeida Faria acaba por se desenvolver, em direcção ao projecto “libertino”, segundo o qual as racionalidades emergem como “re-corte”.

    Decorre desta vontade poética, pensamos, a terceira perspectiva por nós proposta, de encarar uma mudança, ou inflexão, na obra do autor, em direcção a modelos sintáctico-discursivos mais regulados pela racionalidade, abandonando registos que, por simplificação, poderíamos designar como imitadores dos processos da “corrente de consciência” ou mesmo do fluir de uma verbalidade pré-consciente ou mesmo, por sugestão figurativa, inconsciente.

    Contudo, parece-nos digno de nota que, por recurso analógico, ou seja, de lançar mão à metáfora, se possa entender o “corte” como o processo segundo o qual o autor procura “arrumar” a sua obra em “logias”.

    Primeiro, projectando uma trilogia da Paixão de que Cortes seria o segundo volume (e A Paixão o primeiro, obviamente); depois, enveredando por uma decisão editorial de fazer a Trilogia Lusitana, acaba por arredar A Paixão, como elemento central, dando nome ao conjunto, acabando por encerrando a série, já tetralogia, com O Cavaleiro Andante, depois do romance Lusitânia, com o qual pensara, primeiro, encerrar a série.

    Poderíamos um dia, num outro espaço e lugar, interrogar o jogo de paixão e de corte que tal ajustamento representa na obra do autor. Ou então o que representa uma hesitação entre uma Tetralogia Lusitana, incluindo A Paixão, e a Trilogia Lusitana, que, como tal, foi publicada.

    De qualquer modo, todo um processo de transformação do conjunto se continua a desenvolver com a produção e publicação dos volumes seguintes. Cada um deles gera novos projectos e amplia a matéria romanesca começada em A Paixão: desenvolvimento de uma história familiar que se prolonga e transformação dos processos poéticos que a dá a ver.

    Publicado em 1980, Lusitânia recebeu o Prémio Dom Dinis da Fundação da Casa de Mateus.

    Efectivamente, em relação à matéria ficcional criada, o que se dá é o processo já não apenas do corte mas, mais acentuado, o do afastamento. Lusitânia, segundo volume da trilogia (terceiro da tetralogia, se esta existir no projecto autoral), aponta-nos, pelo próprio processo de representação textual escolhido – a troca de cartas entre as várias personagens, confronto de discursos à maneira setecentista de um Laclos, por exemplo – a distância que separa as personagens de uma “Lusitânia” em diáspora.

    Os discursos cruzam-se entre Portugal, Itália e Angola. Em Portugal a correspondência tenta superar a distância entre Lisboa e Montemínimo.

    A partir de Lusitânia, mas ainda dentro da unidade “tri” ou tetralógica, a temática deixa de ser estruturada no sistema dominante do discurso cruzado. A errância passa ser o modelo formal do processo romanesco. A distância, a ruptura, a perda ou o estado de exílio fazem-se representar por um processo que poderia ser designado pelo título do último volume – até à data, claro, nada impede que um outro surja, um dia – do conjunto: O Cavaleiro Andante.

    Curiosamente, este último texto pode ser assimilável, por alguns dos processos formais que desenvolve, à última obra romanesca publicada pelo autor até à data: O Conquistador. Dado que este texto, quanto à matéria, já não se integra no ciclo “lusitano” dos anteriores, poderemos pensar num próximo ciclo romanesco, como que em secância, recortando-se a partir do anterior? Talvez. E é, julgamos, a capacidade de produzir uma obra em permanente estado de formação estrutural e abertura inovadora que tem caracterizado a imensa qualidade da produção de Almeida Faria.

    Um dos aspectos que mais insistentemente tem atraído a atenção dos críticos que se debruçam sobre a obra de Almeida Faria decorre, como consideração generalizadora, dessa qualidade. Para quase todos, este autor que, desde o primeiro momento, Vergílio Ferreira reconheceu como imensamente prometedor, tem apresentado o encanto do grande desafio que é a criação de um universo através do qual o destino do homem se interroga, originando, ao mesmo tempo, um modelo representativo, uma linguagem poética que questiona e reactiva os processos de a literatura se fazer.

    Podemos assinalar ainda, como trabalhos seus de importante projecção cultural, o conto Os passeios do sonhador solitário (1982), devaneios, à moda iluminista de Rousseau, como ela próprio reconhece, a partir da pintura de Mário Botas, uma quase que ekfrasis com subtítulo Conto e Libreto; o ensaio de apresentação de Spleen de Mário Botas, “Do poeta-pintor ao pintor poeta”; duas peças de teatro, A Reviravolta, 1999 e Vozes da Paixão, 1998, versão teatral do seu romance, Paixão; e vários textos de intervenção sobre a literatura e a cultura portuguesa publicados em volumes colectivos e jornais.

    Autor com uma carreira plena, tendo interrompido a escrita de ficção numa idade em que muitos outros estão quase no começo, Almeida Faria pode ter ainda algo a acrescentar à sua obra. Seja o que for, pelo que já é patente, será sempre um elemento importante na literatura portuguesa – por alargamento, uma peça considerável da nossa cultura.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Seixo, Maria Alzira, 1986, A palavra do romance, Horizonte, Lisboa