Categoria: Cultura

  • A importância da perspectiva ocular na narrativa policial

    A importância da perspectiva ocular na narrativa policial


    A importância da análise tipológica do INFRACTOR, o estudo exegético da sua evolução ao longo dos séculos, na literatura romanesca ou mesmo na saga popular, só pode apresentar um dos aspectos (sem dúvida de grande importância) das origens da literatura policial[1].

    O campo abarcado não pode ultrapassar uma certa caracterização de tipo social por vezes ambígua, em que, embora possamos reconhecer uma anotação considerável para a análise, não deixamos de notar uma ambivalência irredutível, inlaw/outlaw, aplicável a qualquer época e ideologia indiferenciadamente.

    A crítica marxista tem sido, habitualmente, atenta, sobretudo ao fundo social que envolve o romance policial, quer enquanto elemento temático incorporado na diegese, quer enquanto contexto dentro do qual as narrativas são produzidas e recebidas.

    René Ballet, por exemplo, num texto em procura apresentar o aparato formal do romance policial reconhece que “a estrutura do romance-folhetim policia1 reproduz, sob uma forma caricatural a estrutura social tal como a concebe um certo público popular.

    Um herói (ou uma heroína) é injustamente privado do lugar que lhe compete na sociedade (a sua alta nascença é desconhecida a sua herança é usurpada). O seu principal inimigo não é o verdadeiro representante do poder, mas um usurpador; a regra do jogo não sendo respeitada, todos os golpes se tornam permitidos; o usurpador tendo roubado o seu poder, o ladrão torna-se justiceiro”.

    Ora, o tipo de relações definido na história-folhetim faz ressaltar, mais ou menos profundamente, o carácter do fora-da-lei que, até fim do século XIX, era apresentado como um desgarrado do grupo, mas que podia ser recuperado após denunciada a sua falta, depois do detective o ter integrado no contexto e lhe ler extorquido a confissão de culpado.  Quer tivesse sido usurpado nos seus direitos espirituais (psicológicos, morais), quer nos materiais (os bens a herança) na óptica que encara o criminoso, a concepção mantém-se quase permanente: alguém está fora do grupo e é urgente recuperá-lo.

    wooden armchair

    E mesmo o romance policial moderno, incluindo o de máscara negra (que tem como referência de origem os romances de Chandler e de Hammett) que, dentro do género, é uma variante muito atenta às contradições sociais (o que é mais raro no romance policial de enigma) atendendo a que sugere sempre a séria acusação a um erro social generalizado,  para lá da capacidade de decisão do  outlaw, mantém-nos numa óptica do mal  e  do  bem  mesmo que o bem esteja numa ordem a que Phillip Marlow aspira e que Sam Spade já deixou de procurar.

    E, de facto, o grande mérito destes dois heróis é terem deixado de encarar o bem detidos ou representados por este ou aquele grupo social, incluindo os representantes da lei ou mesmo por um herói lutando pela ordem contra a usurpação.

    Neles, e em torno deles, tudo aparece corrompido pelo sistema e o valor deve estar algures para lá dele, numa outra sociedade diferente. Daqui para diante será, talvez, supérfluo, sublinhar o que a observação do herói nos pode fornecer.

    Em última análise sabemos o que é Bond, o assassino da instituição, ou Hammer[2], o desesperado defensor romântico dos pontos estratégicos dos Estados Unidos: assassinos que o sistema cria na defesa contra uma entra lei de um outro sistema. Mas os detectives privados, mais próximos do paradigma crítico e existencial do século XX, são seres, por vezes, tão perplexos e claudicantes face ao real que os ameaça quanto a vítima que neles busca a protecção ou o leitor que os toma como expertos na decifração de enigmas. 

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    O que o romance de investigação de um enigma (o modelo do “quem matou?”, o who dunit clássico) veio trazer em relação ao romance de aventuras clássico, foi a denúncia, ainda que inconsciente, da situação privilegiada em que o leitor outrora se encontrava, como espectador de uma cena em que estivesse permanentemente na posição de juiz e de incontestável detentor da verdade.

    Na sua necessidade interna de criar a atmosfera do medo e do terror (reverenciando a atmosfera gótica), ou, pelo menos, de preocupante enigma, o romance policial de investigação (o romance policial por excelência) deixa transparecer a forma pela qual o senso comum precisa dos seus guardiões e como a  observação pura e simples do real não passa, de facto, de uma observação das aparências de um certo efeito do real onde os indícios estão postos de forma equívoca, iludindo um senso comum não privilegiado, sendo o detective o único detentor do privilégio de os perspectivar correctamente. Holmes ou Poirot não descobrem nada nos factos do mundo que constituem enigma, apenas têm de os ordenar devidamente.      

    Ao ser a salvaguarda, na sua época, do ponto de vista da ordem segundo as instituições que não contesta, o romance de investigação é, simultaneamente, o repositório dos indícios pelos quais o grande terror se anuncia, deixando perceber nas entrelinhas de que forma a composição romanesca é resultante, e também veículo, das coordenadas ideológicas de uma determinada sociedade e também da forma pela qual essa sociedade apreende e expressa o real, emergindo este numa organização estruturada e inconsciente que é o espectador fictício do crime e o leitor da ficção.

    Gombrowicz denuncia, e muito bem, em Cosmos, de que forma o romance policial pode ser um roteiro de indícios, a descrição de um cosmos em que o leitor, na ilusória encarnação do espectador (que pode surgir sob o aspecto de um herói, detective ou não, movendo-se no universo diegético da narrativa em causa), coordena os elementos para neles se projectar ou projéctar toda a culpabilidade de que, inconscientemente, é agente. Não “há leitura inocente” como não há visão inocente do mundo.

    É em torno deste ponto que queríamos encarar o romance policial, procurando ver nele uma imagem do real que é ordenada pela perspectiva e  a óptica e, mais  ainda, pelo jogo da perspectiva e da óptica segundo o qual o romance policial subverte todo o sistema narrativo em que assentava o romance tradicionalmente consagrado como realista, padronizado enquanto modelo clássico da narrativa moderna.

    Surge-nos Poe como um ilustre predecessor imediato da técnica narrativa do romance de investigação, e, de forma particularmente significativa, por ele ter sido um escritor a que não podemos chamar prioritariamente policial. 

    Poe cultivou um tipo de narrativa de imaginação que, como divergência do sistema narrativo realista tradicional, nos parece fundamental. Num dos seus contos mais curiosos, quanto a essa dimensão, por explorar a falibilidade das nossas percepções, e a possibilidade do nosso sistema sensorial nos enganar e nos fornecer imagens inverosímeis do mundo, The sphinx (A esfinge da caveira, como habitualmente tem sido traduzido para português) coligido em Tales of mystery and imagination[3], podemos ver a forma assaz minuciosa através da qual Poe jogou com a imagem do real, fazendo dela ponto de partida para a constituição de um universo imaginário que ganha raízes num quotidiano enformado e perspectivado pela ideologia  dominante.

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    O romance policial de investigação só  vem tomar, de forma mais grosseira  e num outro ponto que podíamos considerar de perda da consciência crítica, com outras intenções e perspectivas ideológicas, este trabalho que o poeta americano elevara à categoria de técnica  narrativa, apoiando-se nas suas terríveis suspeitas que o fantástico tinha algo a ver com o real.

    Que  nos  conta  A esfinge  da caveira?. O narrador foge de Nova Iorque, atacada por uma forte epidemia, e refugia-se em casa de um parente: “During the dread reign of the Cholera in New York, I had accepted the invitation of a relative to spend a fortnight with him in the retirement of his cottage ornee on the banks of the Hudson”.

    Assim começa um retiro que ele descreve, sumariamente:

    We had here around us all the ordinary means of summer amusement; and what with rambling in the woods, sketching, boating, fishing, bathing, music, and books, we should have passed the time pleasantly enough, but for the fearful intelligence which reached us every morning from the populous city. Not a day elapsed which did not bring us news of the decease of some acquaintance[4].

    Estamos logo, portanto, desde as primeiras linhas, sob o perigo de uma ameaça mortal, respirando uma atmosfera em que a morte é o elemento preponderante. Não é necessário recordar como esta ameaça da morte está sempre presente em qualquer novela policial, mas talvez seja recordar como ela serve de    pórtico a muitas obras em que o fantástico e o imaginário, o campo do terrífico e do erótico dominam por excelência.

    Citemos só as duas obras em que um morticínio, ou a sua probabilidade, preludia a narrativa de dotes cativantes, ou forte suspense da intriga: Decameron e As mil e uma Noites. Ora, no romance policial, desde o título que temos anunciada a visita do exterminador.

    Algo de novo temos anunciado então em relação à narrativa de aventuras do passado, que vem entroncar directamente na narrativa fantástica, habitada por entes maléficos e de obscuros desígnios: a ameaça de perigo ou do terror enunciado como ponto de partida, atmosfera   de “suspense” criada por algo ou alguém que, das trevas, ameaça o sossego, a tranquilidade e a vida. E, em Poe, parece-nos ter sido criado todo o sistema de referências tópicas que viriam a servir de significantes supremos nos romances de   investigação, elementos esses que, de certo modo, lhe são inerentes como índices, motivos, constelações temáticas. Mesmo do romance da série negra não deixa de ressaltar uma ameaça nocturna, uma entidade enigmática, das trevas, que faltou nos ambientes e cenários das façanhas reparadores das gestas e dos romances de aventuras, enaltecedores do bandoleiro que busca o resgate pela justiça social ou, pelo menos, focando em primeiro plano o fora-da-lei

    É importante que se constate, então, o seguinte: Todo o horror da visão do narrador, neste conto, surge nessa atmosfera que ele continua descrevendo ainda nas primeiras linhas:

     “Then as the fatality increased, we learned to expect daily the loss of some friend. At length we trembled at the approach of every messenger. The very air from the South seemed to us redolent with death. That palsying thought, indeed, took entire possession of my soul. I could neither speak, think, nor dream of anything else. My host was of a less excitable temperament, and, although greatly depressed in spirits, exerted himself to sustain my own. His richly philosophical intellect was not at any time affected by unrealities. To the substances of terror he was sufficiently alive, but of its shadows he had no apprehension[5]

    white ceramic bowl on black table

    Ora o estado de espírito agrava-se com a leitura de alguns livros que se referiam a determinadas coisas subterrâneas. Com brevidade,  o narrador encontra-se a descrever uma   troca  de impressões com o seu anfitrião, em  que  a  sua  própria  tese era a do valor da  crendice: “I contending that a popular sentiment arising with absolute spontaneity – that is to say, without apparent traces of suggestion – had in itself the unmistakable elements of truth, and was entitled to as much respect as that intuition which is the idiosyncrasy of the individual man of genius[6]. Ora, a crença pessoal do narrador é a de que algo de indescritível e mal definido ou indefinido, existe e pode manifestar-se de forma mal controlada pela razão.

    O fulcro da história situa-se no confronto entre o acontecimento que foi a visão aterrorizante de um monstro descendo uma colina, que teria aparecido diante da janela perto da qual o narrador se encontrava a ler e a desmontagem desse facto, que é desmentido numa segunda visão do narrador estando presente o seu familiar anfitrião.

    É perante a descrição que faz da aparição, ao seu parente, que se começa a desvendar o mal-entendido, o trompe-l’oeil, a ilusão que “criara” o monstro gigantesco e disforme, com a caveira desenhada no peito.  Ao ouvi-la, o familiar, pessoa culta e arguta, capaz de um raciocínio calmo reflexivo procura um manual escolar de História Natural e destaca, nele, algumas linhas que resume, em voz alta par o seu ouvinte.

    Tratava-se da descrição de um insecto sem qualquer anomalia, de dimensão média, uma variedade de borboleta, cuja descrição física, descontando o exagero da dimensão que a visão alucinada criara, corresponde à do monstro. Imediatamente se verifica ser a visão anormal proveniente do erro de ajuste da perpsectiva ocular tendo o narrador visto, simplesmente o animalzinho, um insecto, a percorrer uma teia de aranha para cá da janela, portanto, para cá do enquadramento da cena onde se desenrolava todo o espectáculo da paisagem com monstro.

    O próprio “anfitrião-erudito” (voz de um saber enciclopédico fundamental) faz notar, com insistência, a “monstruosa” margem de erro que pode surgir, por uma má avaliação das distâncias e, portanto, de uma má localização do objecto, no enquadramento ocular.

    Blow-Up – História de um Fotógrafo (1966), de Michelangelo Antonioni, onde, com a ampliação de perde o corpo do crime observado

    Resumamos, agora uma história de Conan Doyle, breve e exemplar “A aventura do vampiro de Sussex”[8]. O ambiente de escritório de Holmes é o local onde chegam as mais estranhas notícias, que o superdedutor recebe com um misto de suspeita e dúvida, mas, antes de ser dominado pela surpresa, põe em funcionamento um domínio da razão quase imediato. Esse é o ambiente, sempre surpreendente e misterioso, que Watson, médico, provavelmente um positivista, que representa, permanentemente, a perspectiva verosímil dos factos, contempla quotidianamente, sem que, por essa razão, se lhe desvende um só milímetro da atmosfera de inteligibilidade de que é testemunha, ao longo dos anos, irradiando do semblante e da atitude do seu extravagante parceiro.

    Sempre se queda no limiar das trevas com os seus monstros, nos recantos mais obscuros, sinais das grandes disjunções do entendimento e da razão, que Holmes controla com automática certeza e perfeição dedutiva.  Quem são os criminosos? Quem é Hol­mes? Eis um mistério que Watson e os leitores, pelos seus olhos ou pelos seus ouvidos, nunca saberão ao certo. 

    Holmes detém os monstros. Melhor, Holmes sabe ver o anormal pela força da sua formidáve1 razão, de forma a torná-lo razoável para Watson e também para nós. O detective de Doyle é, simultaneamente, o operador epistémico das virtualidades da ciência enquanto saber e domínio das regras do universo, e o detentor de uma aletheia, capaz de circunscrever as causas primeiras e últimas, detendo o alfa e ómega do saber supremo.  

    Nesta história, por exemplo, chega um pedido de auxílio para a tentativa de solução de um caso de vampirismo. Watson espanta-se, mas Holmes revela, de imediato, um plano de eliminação de hipóteses traçado no momento, logo após a leitura da carta em que o pedido de ajuda tinha sido feito. Diz a Watson para consultar o livro sobre os vampiros. 

    Lembremos o livro que elucida o narrador de Poe. O funcionamento não é o mesmo, nos dois contos que comparamos, mas, em ambos, o aspecto fundamental do livro é trazer-nos ao terreno da enciclopédia, para aliarmos o valor de verdade dos casos em causa: no fundo estabelecer as bases do status causæ em que vão assentar as crenças, as convicções ou as formulações opinativas. Em Poe, a enciclopédia, com a sua força positiva, fundamenta a espisteme. Contudo, para Holmes, a episteme é apenas uma forma de conformismo, uma doxa acomodatícia, que não conduz ao verdadeiro acto de intelecção, capaz de nos levar ao verdadeiro, a saber, a aletheia.

    Três ilustrações das construções geométricas elaboradas, se acordo com a teoria renascentista monocular (também chamada ciclópica) da pintura: de Abrecht Dürer, em cima. Em baixo, à esquerda, plano do filme de Peter Greenway, The Draughtsman’s Contract (1982 pt: O contrato) ele próprio desenvolvimento de uma história policial em que a perspertiva do pintor revela o crime. À direita, ilustração do tratado sobre a perspectiva de Du Breuil (1642-1649)[7]

    “Lixo”[9], diz Holmes, embora concorde que existem casos de real vampirismo e não só os 1endários mortos-vivos sugadores de sangue. “Esta agência tem os pés assentes no   chão e assim tem de se manter”  Não se tente levar Holmes para fora  da  razão  ou arrancá-lo da terra. “Os fantasmas não são para aqui chamados”[10]. Os monstros são criaturas das lendas. Quem olhar com a força e penetração de Holmes também ficará entre os que não declinam perante a invasão vinda das trevas, nem as perigosas ameaças do antro obscuro.

    Continuemos. Uma razão de amizade leva Holmes ao caso. Trata-se de uma senhora, em segundas núpcias, que foi vista por duas vezes a agredir o adolescente enteado e a sugar o pescoço do seu filho, recém-nascido. Foi vista a praticar estas acções. Mas Holmes, quase desde o princípio, sabe que assim não é. E a dedução é simples, a partir das premissas fundamentais. Primeiro: não existem vampiros. Que nos diz a razão? Um filho ciumento pode odiar a madrasta e o meio-irmão.  Holmes descobre veneno e o processo abdutivo desencadeia-se: Se for verdade que um adolescente sente ciúmes dos que lhe retiram espaço nos afectos familiares, é possível deduzir toda a história sem erros.   

    O jovem enteado da senhora tentou matar o bebé e a mãe deste, sua madrasta, bateu-lhe, tendo, em seguida, sugado o sangue do filho, procurando extrair o veneno. Para não chocar o marido ocultou sempre a verdade, preferindo passar por sádica e perversa. Do mal o menos.

    Holmes, contudo, não pode admitir tais anomalias. Tudo se explica pelo mal menor. Pelo senso comum, entre a mulher adulta, vampiresca, sádica-perversa e o filho vagamente incestuoso, mas órfão, o meio termo e o equilíbrio indicam-nos um só caminho: O segundo. A cena, tal como é relatada inicialmente, era enganosa. A verdade não estava patente, embora fosse evidente para quem, como Holmes, sabe pesar os prós e os contras do sensato e do possível, rejeitando o insensato e o impossível.

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    O senso comum foi para a burguesia mercantilista muito mais forte defensor da ideologia dominante do que a religião foi para a monarquia ou para o feudalismo. A sensatez, generalizada como conservadora dos seus valores ideológicos, apresentou-se com uma maior coerência, enquanto organizadora da visão do mundo, do que a religião fora para as classes anteriormente hegemónicas (clero, nobreza), pois ensinou a ver, sobretudo, na terra os indícios das forças celestes.

    A sensatez apoia-se na perspectiva da óptica. Esta é-lhe necessária para a organização de um espaço em que todo o espectador é convidado a ver, através de uma representação controlada, a imagem do real.

    Poe, no conto acima citado, dá-nos o mecanismo correcto pelo qual a perspectiva do real e o seu efeito, na obra, pode ser viciado “por um erro na avaliação das distâncias”. A tomada em consideração desse facto enquadra-se no critério ideológico do familiar anfitrião, que tem perante a clivagem política e as lutas e critérios partidários uma opinião muito “filosófica”.

    Para ele não há dúvidas de que a posição frontal e egocêntrica é a que permite uma visão correcta dos fenómenos. Não interessa muito, porém, desse ponto de vista subjectivista, saber as razões pelas quais se escolhe esta ou aquela, perspectiva, mas sim saber e notar que esta poderá mudar o que virá pôr em causa a validade da posição tradicional romanesca, clássica ou realista, que transparece no romance, no teatro ou na pintura como dominante ou hegemónica. Para a defender, já não se poderá dizer que ela é a única.  Forçosamente recorremos a um critério de valor, discutível, que pode ser confrontável, explicado e experimentado.

    Quando o relato policial de investigação se enformou, no interior da produção realista hegemónica, a técnica narrativa e, com ela, os meios credíveis de se apresentar e representar o real estavam em vias de ser postos em causa. Um conto, como este, de Poe, não deixa de ser significativo por ser a apresentação de um caso ocorrido em plena vigília de um narrador com muitas marcas de autoralidade. O que não acontecia, por exemplo, noutras histórias do autor, como Ligeia, onde a possibilidade do regresso dos mortos parece prevalecer, alternando, como hipótese, com a percepção delirante do narrador autodiegético que se sente dominado pela hipótese do retorno fantasmagórico ou, ainda nas narrativas de Nerval, por exemplo, com o seu clima onírico dominante.

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    A resposta, de superação formal, quase em termos dialécticos, é dada pelos três contos de Poe dominados pela figura do Chevalier Dupin, que são expressos por um narrador intradiegético, companheiro do dotado “investigador”, com especial destaque para The murders in de Rue Morgue.

    Não só o dispositivo narrativo introduz os termos do permanente balancear dialéctico entre as margens da realidade verosímil e a hipótese fantástica, representado pelo detective acompanhado pelo seu “narrador privado”, anexado, por isso, à história contada – processo que voltarão usar os grandes criadores e sustentáculos da narrativa policial, de Conan Doyle a Rex Stout, passando por Agatha Christie – como as histórias revelam hipóteses reais, que parecem desafiar a verosimilhança, convidando à abertura para as regiões do excepcional, do extraordinário e até, por vezes, do fantástico.

    Voltando aos dois contos aqui considerados mais atentamente, devemos registar que é ainda a explicação dos Mestres que é invocada em ambos os casos. É com circunspecta razão que a perspectiva ocular é corrigida, e é categoricamente que Holmes recusa a alusão a fantasmas .no caso de Holmes (“No ghosts need apply”). Está escrito no Livro (com todas as aparências de registo enciclopédico) que os vampiros são lendas e, portanto, o sensato e cerebral detective tem, atrás dele, como seu apoio “todos os juristas que foram encarregues, pela sociedade, de traçar o limite aceitável entre a razão e a desrazão” (Maude Mannoni, 1971: 199).

    Se o erro surge no espaço do real que está apontado para ser aquele que a razão admite, é verdade que a óptica do espectador deve obedecer a certas regras para que a imagem não surja falseada. Só Holmes nos surge como depositário daquela sabedoria da sensatez que prescreve: “Não importa tanto conhecer o débil [neste caso, tanto o leitor ingénuo como a testemunha do facto criminoso ocorrido, que carece de discernimento para o explicar] como assinalar-lhe uma situação jurídica, numa sociedade cuidadosa, antes de tudo, na salvaguarda dos bens da família” (M. Mannoni, 1971: 199). 

    Não só os débeis como os indivíduos amorais (que, por uma anomalia qualquer, ignoram os padrões de valores) nos surgem como criminosos ou cúmplices, mais ou menos passivos, mais ou menos voluntários. Mas essa anomalia é posta logo em pratos limpos e explicada, quase clinicamente a solução.

    Neste conto de Doyle, o jovem edipiano, assassino em potência, é denunciado pelo detective e ele mesmo lhe receita sem hesitações uma cura de férias. De facto, os monstros anunciados pela óptica incorrecta nunca correspondem à realidade que o “guardião” demonstra. O erro apontado pelo detective não é só o da falta ou do crime do fora-da-lei efectivo ou potencial criminoso, mas é também o do espectador, testemunha da ocorrência, que deixou o seu senso comum ser abalado ou confundido pelos sinais que não soube interpretar, pelas distâncias que não soube avaliar, para perceber o que os seus olhos viam.

    Por não garantir a correcção que a distância introduz permitido o divisar, tendo em conta a profundidade de campo, e não ser iludido pela excessiva proximidade ou empenho criado pela emoção ou o espanto.

    “A negação, a rejeição e depois a objectivação do louco, como matéria de estudo científico, são o resultado de um desconhecimento no homem dito normal, não só do seu próprio medo como também dos seus sonhos sádicos, e ainda dos mitos e superstições que lhe povoaram a infância e se prolongam nele sem saber” (M. Mannoni, 1971: ). A sensatez do detective, face à anomalia, é a “do adulto quando se encontra face a um semelhante que não é a imagem do que ele crê poder esperar, e oscila, numa atitude de rejeição e de caridade” (M. Monnoni, 1971: 201).

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    A mulher não era vampiro, hipótese que seria, se tivesse sido confirmada, justificadora dessa crendice popular, dessas superstições que se instituiu serem imaginárias e não reais e a história não seria policial, inspirada pela razão, mas sim fantástica, ou mesmo pertencente à esfera do maravilhoso.

    Porém, a narrativa policial de investigação apresenta-se, quase sempre, manifestamente a correcção do erro ou mesmo da crendice e, talvez por isso, essa modalidade narrativa tenha sido escolhida, pelo seu sistema de equívoco-correcção, como estrutura modelar para o argumento cinematográfico, onde a óptica surge como tal, num sistema em que o relato se firma na figuração pura, melhor ainda, no permanente confronto da fala e da escrita figurativa e ideogramática.

    As aparências e a realidade o logro e a verdade estão num permanente jogo, no qual o que surge padronizado é o lugar em que as leis da razão reprimem as trevas e os seus príncipes empreendedores, como nos revelam, por exemplo, as narrativas cinematográficas de Hitchcock ou de Brian De Palma.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Doyle, Conan, 1930, The Complete Sherlock Holmes, Dobleday & Company, inc., New York

    Mannoni, Maude, 1971, A Criança, a Sua “Doença” e os Outros, Zahar Editores, São Paulo                              

    Poe, Edgar, Allan, 1994, The Complete Illustrated Stories and Poems, Chancellor Press, London

    Poe, Edgar, Allan, 1971, Histórias de Mistério e Imaginação, Verbo/RTP, Lisboa


    [1] Publicado em 2 de Julho de 1971 no Notícia da Beira (Moçambique). Foram introduzidas correcções e ligeiras alterações.

    [2] Os quarto “heróis”/protagonistas que acabamos de citar são personagens, respectivamente dos romances ou mesmo das longas séries romanesco/novelescas respectivamente  de Chandler, Hammett,  Fleming,  Spillane.

    [3] A edição de referência é: The Complete Illustrated Stories and Poems, Edgar Allan Poe, Chancelor Press/Reed Consumer Books, London, 1994

    [4] Cf. op. cit. p.720. Apresentamos, em seguida uma tradução potuguesa “Estávamos rodeados de todos os recursos comuns para as diversões estivais. E que tempo agradável, teríamos passado a vaguear pelos bosques, a desenhar, a remar, a pescar, a tomar banho ou entregues à música ou à leitura não fossem as terríveis notícias   que   nos   chegavam   todas as manhãs da grande cidade. Não passava um dia que não nos trouxessem a notícia da morte de qualquer pessoa conhecida” (Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [5] Cf op. Cit. P. 720. Resumimos, a partir da mesma tradução “Depois, à medida que a desgraça aumentava, habituávamo-nos a esperar diariamente a perda de algum amigo. Finalmente, tremíamos já à aproximação de qualquer mensageiro. O próprio ar do Sul parecia-nos impregnado do odor da morte. Aquele pensamento obcecante apossou-se, na realidade, do meu espírito. Não conseguia falar, pensar ou sonhar com outra coisa. O próprio ar do sul parecia-nos impregnado do odor da morte” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [6] “…eu afirmava que um sentimento popular que brotava com absoluta espontaneidade, quer dizer, sem traços aparentes de sugestão, continha em si a própria substância da verdade e era digno de bastante respeito” (in Histórias de Mistério e Imaginação, Trad. Tomé Santos Junior. Lisboa, Editorial Verbo, 1971).

    [7] A especulação narrativa de Poe sobre a deformação visual que terá alucinado o protagonista-narrador do conto em questão, assenta no facto de que, resumidamente, se pode considerar que uma visão muito aproximada corresponderá à visão monocular que, a não ser corrigida, justapõe imagens. Pelo que alcança numa profundidade de campo tendencialmente infinita (numa planificação que não tem em conta a tridimensionalidade que se obtêm pela conjugação dos dois focos de percepção que são os dois olhos), funciona de tal modo que elementos no “fundo” da imagem maiores que elementos “mais próximos” são vistos com tamanhos projectados menores e vice-versa, os “mais perto” menores são vistos com tamanhos projectados maiores. Resumindo, o narrador protagonista, perturbado pelo medo ter-se-á deixado enganar pela sensação do muito próximo, não fazendo a correcção perceptiva pela a utilização dos dois olhos. É possível, mas é pouco verosímil. O resultado obtido é semelhante ao que, também obtêm, em jogos de perspectiva, Peter Greenway, no seu Contrato e Michelangelo Antonioni em Blow-Up, que evocamos por duas imagens acima apresentadas.   

    [8] Cap IV do livro The Case-Book of Sherlock Holmes (nem todas as edições ordenam as histórias da mesma forma – umas respeitam a primeira edição em livro, outras, como a que aqui citamos de uma localização online, seguem a ordem da primeira publicação dos contos, em periódicos). Cf. se pode verificar aqui.

    [9]“ ‘Rubbish, Watson, rubbish! What have we to do with walking corpses who can only be held in their grave by stakes driven through their hearts? It’s pure lunacy’.

    But surely,’ said I, ‘the vampire was not necessarily a dead man? A living person might have the habit. I have read, for example, of the old sucking the blood of the young in order to retain their youth’ ” (1930: 1034).

    [10]“ ‘You are right, Watson. It mentions the legend in one of these references. But are we to give serious attention to such things? This agency stands flat-footed upon the ground, and there it must remain. The world is big enough for us. No ghosts need apply. I fear that we cannot take Mr. Robert Ferguson very seriously. Possibly this note may be from him and may throw some light upon what is worrying him’ ” (1930: 1034).

  • Almeida Faria

    Almeida Faria


    Quando, em 1962, Almeida Faria, nascido em 1943, publicou o seu primeiro romance, Rumor Branco, a opinião da crítica em geral foi a de um entusiasmo sem reservas. Não existe uma só nota de reserva, entre os vários comentários que, por essa altura, eram dignos de respeito. Entre os leitores mais atentos de então o romance foi considerado uma obra profundamente inovadora nas nossas letras.

    A maior parte dos estudiosos e críticos que, na década de 60, deixaram a sua opinião registada sobre o primeiro texto que Almeida Faria publicou, contam-se leitores exigentes como Vergílio Ferreira, Alexandre Pinheiro Torres e Leodegário de Azevedo Filho. Não obstante a frontalidade com que os dois primeiros discordavam, por razões históricas e culturais várias e complexas, ambos colocaram, desde logo, o romance Rumor Branco entre as grandes obras que aquela década vira nascer.

    Almeida Faria nasceu em 1943.

    A Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu-lhe, nesse mesmo ano, o Prémio Revelação. Na sua apreciação do mesmo texto de Almeida Faria, publicado alguns anos mais tarde, Leodegário de Azevedo Filho afirma: “Rumor Branco é, antes de tudo, uma experiência de linguagem, colocada em plano estético e capaz de trazer novas energias ao género”.

    O carácter profundamente inovador das narrativas de Almeida Faria, que publicou o romance já referido com 19 anos de idade, foi sobejamente enfatizado por Vergílio Ferreira, e confirmado por Óscar Lopes no prefacio ao segundo romance do jovem autor, A Paixão,publicado três anos depois. Uma assimilação profunda, inteligente e criativa dos mais ousados códigos regeneradores criados pela narrativa modernista que então se colocava na vanguarda, era reconhecida por todos os críticos e historiadores literários de então.

    De facto, embora se situasse abertamente num campo temático e de referências através do qual os seus romances se mantinham próximos do neo-realismo, Almeida Faria desenvolvia francamente a sintaxe narrativa e a perspectiva lírica da enunciação romanesca segundo novas influências onde se destacavam sobretudo os processos de criação poéticos típicos de Proust, de Joyce, de Faulkner e de alguns mestres do nouveau roman.

    Embora a vertente lírica da narração tivesse sido o aspecto que mais marcou a sua escrita nos primeiros textos que publicou, aspecto que, provavelmente, terá levado Vergílio Ferreira prefaciar-lhe a primeira versão de Rumor Branco, a criação poética de Almeida Faria não se manteve numa fórmula fixa de procedimento romanesco.

    A revisão profunda que faz ao seu primeiro romance e a escrita de Cortes, romance onde parece desenvolver uma deliberada secura verbal por oposição à discursividade através da qual a dimensão passional e irracionalizante se tornava dominante na sua primeira produção romanesca, revelam uma preocupação do escritor em renovar a sua poética.

    Essa nova fase de escrita, que ele assume como “libertina”, expressa como programa mais evidente a vontade de retomada de valores filosóficos e estéticos que se reportam à grande produção romanesca do século XVIII.

    Rumor Branco foi publicado originalmente em 1962.

    Está em causa, evidentemente, um programa de criação poética que, sem se ligar excessivamente à tradição mais banalizada do realismo, na continuidade do romance realista oitocentista, retome alguns dos processos esquecidos das fontes do racionalismo europeu, funda a modernidade, com duas linhagens que o modernismo esqueceu: a do romance de aprendizagem e a da narrativa libertina.

    Nesta última dimensão, podemos dizer que a sua obra se desenvolve unitariamente num ciclo ou trilogia, a que chamou Lusitana e que se compõe de três romances: Cortes (1978, prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Libo – prefaciado por Manuel Gusmão em 1986), Lusitânia (1980, prémio D. Dinis, da Casa de Mateus, prefaciado por Luís de Sousa Rebelo) e Cavaleiro Andante, (prémio Originais de Ficção da APE).

    Considerando, no entanto, a produção da obra de Almeida Faria como um conjunto unitário, não nos devemos deixar arrastas por um simplismo que deixe supor dois ciclos claramente distintos: um, inicial, em que o corpus seria a própria linguagem, tomada como objecto, e outra em que a história contada se revelaria a matéria mais importante.

    De facto, a evolução de Almeida Faria, problematizando as relações entre as histórias contadas, a linguagem em processo, a voz narrativa e a historicidade em que a produção se afirma, é fundamentalmente a de um discurso literário em permanente interrogação dos valores que mobiliza a vários níveis. Estão sempre em causa, nas suas obras, as relações que a produção literária estabelece com o universo social em que emerge, convocando, frontalmente, quer os valores ideológicos que se apresentam como tradição, quer os que emergem como questionamentos desses mesmos valores.

    É desse modo que, por exemplo, Óscar Lopes o vê, em 1963, logo na data de publicação do seu primeiro romance. Ultrapassando a novidade espectacular que a nova escrita propõe, com as suas rupturas, quer em relação à gramática da narrativa quer à da sintaxe ou mesmo à da ortografia, o crítico português reconhece que o romance “exprime (…) um movimento geral de assimilação e crescimento integral humano”. Reconhece ele, no processo fabulatório, a base expressiva dos “termos religiosos da tradição cristã” em fusão com a “divinização da ansiada unidade amorosa”.

    A ligação desta problemática com a da dimensão social, ou mesmo sócio-política, torna-se mais evidente no romance seguinte: a Paixão. Romance em que a multiplicidade das vozes se cruza num modelo que, resumidamente, poderíamos dizer remeter para o As I Lay Dying, de Faulkner, nele se expressa “o sonho prometeico, ou luciferino, da omnipotência humana” o qual, nas palavras do mesmo Óscar Lopes, que vimos citando livremente, “é comum a todas as mitologias”. Por isso, Almeida Faria o lê na ressurreição que evoca como sequência da “Paixão”, que ele vê, no plano da História, como síntese de todos os sofrimentos, partilhas e compaixões fraternas.

    A Paixão, segundo romance de Almeida Faria publicado em 1965.

    O romance seguinte, Cortes, pode ser entendido, a partir do seu título, em três dimensões distintas: uma que tenha como objecto central a obra do autor; outra que o encare como um  índice a acirrar do modelo das múltiplas vozes e perspectivas que, ao contrário de A Paixão, não se encontram em comunhão, mas sim em confronto; e uma terceira que assuma o título a partir do próprio nível elementar da escrita – ou seja, propondo uma passagem de um discurso emotivo, marcado pela passionalidade e até por um fluir verbal ao sabor do dizer como prazer da dicção, para uma escrita vigiada, avara, racionalmente vigiada.

    Digamos que a segunda perspectiva é a que poeticamente se revela mais interessante. Porque conceptualiza o sentido de “corte” como “discurso de ferida ou de violência que a ruptura provoca” e, segundo Maria Alzira Seixo, dado que, por esse mecanismo, “cada capítulo funciona, não como um degrau narrativo (…) mas fundamentalmente como espaço da contra-di(c)ção que em si desenha (…) oposições significantes” (Seixo, 1986: 194), tal perspectiva é a que mais amplamente revela o processo criativo.

    É segundo esta reformulação da multiplicidade de perspectivas e vozes que a obra de Almeida Faria acaba por se desenvolver, em direcção ao projecto “libertino”, segundo o qual as racionalidades emergem como “re-corte”.

    Decorre desta vontade poética, pensamos, a terceira perspectiva por nós proposta, de encarar uma mudança, ou inflexão, na obra do autor, em direcção a modelos sintáctico-discursivos mais regulados pela racionalidade, abandonando registos que, por simplificação, poderíamos designar como imitadores dos processos da “corrente de consciência” ou mesmo do fluir de uma verbalidade pré-consciente ou mesmo, por sugestão figurativa, inconsciente.

    Contudo, parece-nos digno de nota que, por recurso analógico, ou seja, de lançar mão à metáfora, se possa entender o “corte” como o processo segundo o qual o autor procura “arrumar” a sua obra em “logias”.

    Primeiro, projectando uma trilogia da Paixão de que Cortes seria o segundo volume (e A Paixão o primeiro, obviamente); depois, enveredando por uma decisão editorial de fazer a Trilogia Lusitana, acaba por arredar A Paixão, como elemento central, dando nome ao conjunto, acabando por encerrando a série, já tetralogia, com O Cavaleiro Andante, depois do romance Lusitânia, com o qual pensara, primeiro, encerrar a série.

    Poderíamos um dia, num outro espaço e lugar, interrogar o jogo de paixão e de corte que tal ajustamento representa na obra do autor. Ou então o que representa uma hesitação entre uma Tetralogia Lusitana, incluindo A Paixão, e a Trilogia Lusitana, que, como tal, foi publicada.

    De qualquer modo, todo um processo de transformação do conjunto se continua a desenvolver com a produção e publicação dos volumes seguintes. Cada um deles gera novos projectos e amplia a matéria romanesca começada em A Paixão: desenvolvimento de uma história familiar que se prolonga e transformação dos processos poéticos que a dá a ver.

    Publicado em 1980, Lusitânia recebeu o Prémio Dom Dinis da Fundação da Casa de Mateus.

    Efectivamente, em relação à matéria ficcional criada, o que se dá é o processo já não apenas do corte mas, mais acentuado, o do afastamento. Lusitânia, segundo volume da trilogia (terceiro da tetralogia, se esta existir no projecto autoral), aponta-nos, pelo próprio processo de representação textual escolhido – a troca de cartas entre as várias personagens, confronto de discursos à maneira setecentista de um Laclos, por exemplo – a distância que separa as personagens de uma “Lusitânia” em diáspora.

    Os discursos cruzam-se entre Portugal, Itália e Angola. Em Portugal a correspondência tenta superar a distância entre Lisboa e Montemínimo.

    A partir de Lusitânia, mas ainda dentro da unidade “tri” ou tetralógica, a temática deixa de ser estruturada no sistema dominante do discurso cruzado. A errância passa ser o modelo formal do processo romanesco. A distância, a ruptura, a perda ou o estado de exílio fazem-se representar por um processo que poderia ser designado pelo título do último volume – até à data, claro, nada impede que um outro surja, um dia – do conjunto: O Cavaleiro Andante.

    Curiosamente, este último texto pode ser assimilável, por alguns dos processos formais que desenvolve, à última obra romanesca publicada pelo autor até à data: O Conquistador. Dado que este texto, quanto à matéria, já não se integra no ciclo “lusitano” dos anteriores, poderemos pensar num próximo ciclo romanesco, como que em secância, recortando-se a partir do anterior? Talvez. E é, julgamos, a capacidade de produzir uma obra em permanente estado de formação estrutural e abertura inovadora que tem caracterizado a imensa qualidade da produção de Almeida Faria.

    Um dos aspectos que mais insistentemente tem atraído a atenção dos críticos que se debruçam sobre a obra de Almeida Faria decorre, como consideração generalizadora, dessa qualidade. Para quase todos, este autor que, desde o primeiro momento, Vergílio Ferreira reconheceu como imensamente prometedor, tem apresentado o encanto do grande desafio que é a criação de um universo através do qual o destino do homem se interroga, originando, ao mesmo tempo, um modelo representativo, uma linguagem poética que questiona e reactiva os processos de a literatura se fazer.

    Podemos assinalar ainda, como trabalhos seus de importante projecção cultural, o conto Os passeios do sonhador solitário (1982), devaneios, à moda iluminista de Rousseau, como ela próprio reconhece, a partir da pintura de Mário Botas, uma quase que ekfrasis com subtítulo Conto e Libreto; o ensaio de apresentação de Spleen de Mário Botas, “Do poeta-pintor ao pintor poeta”; duas peças de teatro, A Reviravolta, 1999 e Vozes da Paixão, 1998, versão teatral do seu romance, Paixão; e vários textos de intervenção sobre a literatura e a cultura portuguesa publicados em volumes colectivos e jornais.

    Autor com uma carreira plena, tendo interrompido a escrita de ficção numa idade em que muitos outros estão quase no começo, Almeida Faria pode ter ainda algo a acrescentar à sua obra. Seja o que for, pelo que já é patente, será sempre um elemento importante na literatura portuguesa – por alargamento, uma peça considerável da nossa cultura.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Seixo, Maria Alzira, 1986, A palavra do romance, Horizonte, Lisboa

  • Uma perspectiva cultural a partir do Chiveve

    Uma perspectiva cultural a partir do Chiveve


    [notas “quase arquivadas”, que publicamos em sentida homenagem ao povo da Beira pela catástrofe que o atingiu, quinze anos depois de estas terem sido redigidas]

    Este texto não resulta de uma investigação. Quando muito, decorre de algumas reflexões praticadas em função de uma vontade de efectuar uma pesquisa. O seu objecto central é o cinema. Não os filmes, não os textos singulares, ou qualquer corpus singular que os inclua.

    Pretende, sobretudo traçar as linhas muitos gerais relativas à possibilidade de reflectir sobre o cinema enquanto fenómeno cultural. Não apenas sobre a existência do cinema enquanto conjunto de películas, textos e de discursos recebidos pelos espectadores, mas também sobre o cinema como sistema de produção e circuito de distribuição.

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    Sentimos a necessidade de determinar, desde já, dois elementos constituintes do objecto cultural que temos em vista: o objecto discursivo que entendemos por cinema, encarando o fenómeno na sua máxima generalidade; e o tempo/espaço como unidade delimitante  em que decorre ou se manifesta esse fenómeno. Parece-nos que o segundo elemento é o que deve ser esclarecido em primeiro, no discorrer das nossas perplexidade, dado que este se nos afigura como termo motivador principal destas notas que têm em vista estruturar uma base para futuras pesquisas.

     Assim, tal como fica indicado, logo à partida, pelo título desta nossa exposição, o local onde centramos a nossa atenção é uma pequena parcela do território Moçambicano, a cidade da Beira.

    Curiosamente, do ponto de vista cultural que aqui nos importa, esta é uma das poucas localidades importantes do país que não mudou de nome depois da independência. No entanto, é importante precisar, para tornar mais clara a nossa exposição, que o período histórico a ter em conta como momento cultural, é da fase final do domínio colonial português. Um momento de crise ideológico-político-militar que é importante ter em conta como unidade específica dentro da formação discursiva que a ocupação colonial gerou.

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    Quanto ao cinema, sem nunca perdermos de vista o espaço africano a que fazemos referência, tem tantas acepções, hoje em dia, que se torna necessário esclarecer, desde o início da nossa reflexão, qual é a acepção em que o tomamos quando falamos dele (cf. Fárid Boughedir, 1974: 123, in Présence Africaine, nº 90).

    De facto, o cinema tem sido qualificado como arte, indústria, comércio, meio de expressão, meio de informação, meio de educação. De um modo geral, ele é tudo isso, mas, para um cineasta, crítico e comentador com foros de teorizador como Boughedir, de origem tunisina, o cinema deve ser encarado, sobretudo, pelo seu “aspecto educativo, quer dizer, tendo em conta o seu efeito sobre o público” o que o leva a considerar que há dois géneros de cinema: “o que faz evoluir o espectador no sentido do progresso e o que o faz estagnar cobrindo-o de mentiras” (p.123).

    Do nosso ponto de vista, o que importa sublinhar, tendo em conta as nossas próprias indagações, é a sua dimensão de arte. Não colocamos a óptica, evidentemente, no lado selectivo e até elitista que tal conceito arrasta, mas enfatizamos, antes, o lado de linguagem elaborada, de linguagem de modelização secundária (segundo o conceito de Lotman) que o cinema tem primordialmente.

    grayscale photo of 2 people on boat

    É num momento posterior, decorrente do reconhecimento que cinema funciona, sobretudo, como construção representativa altamente elaborada, que nos parece importante colocar a tónica da sua relação com os públicos que atinge. É claro que, colocando ênfase nessa dialéctica entre a representação ficcional (mais ou menos fantasmática, ideologicamente alienante) e a  função educativa, abrimos o debate fundamental que se trava entre o discurso persuasivo das classes e dos grupos dominantes e réplica mais ou menos activa e consciente dos destinatários.

    Nem sempre, contudo, o encontro ou desencontro de opiniões ou de imaginários é fácil de delinear. Como sustentam Ella Shoat e Robert Stam “o cinema” sobretudo o de Hollywood, combinava a narrativa e o espectáculo para contar a história do colonialismo da perspectiva do colonizador” (2002).

    Por outro lado, um dos horizontes mais antigos e constantes que se manifesta no discurso de resistência ao colonialismo, o que se pretende reforçar, do ponto de vista do colonizado, é a representação da sua autenticidade, dos seus valores, dos princípios que o fortalecem na sua humanidade e que o tornam um sujeito integral no interior da sua cultura. Admitindo que estes são os pólos da questão, interessa sublinhar, desde já, que o seu delineamento não fácil. E talvez não seja possível. De qualquer modo, a nossa intenção quanto a essa matéria, aqui, é ter a noção desses traços discretos da contradição ou do confronto. Apesar disso, não tentaremos colocá-los, pelo menos no seguimento desse confronto, na nossa argumentação.

    O fio da nossa reflexão desenvolve-se num terreno mais indefinido. Não porque preconizemos contemporizações, mas porque nos importa interrogar alguns dos matizes segundo os quais o confronto se dá ou o debate emerge na formação discursiva colonial, no momento histórico discreto, perceptível, em que a dominação política colonial enfraquece. É um momento curioso. Não damos por ele no momento.

    Golden Gate Bridge

    Ninguém podia assegurar, na véspera do 25 de Abril, que este ia acontecer. Por outro lado, as dinâmicas político militares e os discursos ideológicos e culturais que os acompanhavam, não se encaminhavam para esse momento. As frentes de batalha estavam desenhadas quando o 25 de Abril, no interior das hostes ocupantes, revelou quão profunda era a fractura nele inserida.

    No caso específico de Moçambique, e, muito em especial, no espaço cultural da cidade da Beira, registam-se vários fenómenos que nos permitem interrogar a variação cultural que o cinema introduziu na dinâmica ideológica. À superfície, a cidade da Beira é constituída por uma classe dominante liberal. Mesmo nos momentos mais árduos da defesa dos bastiões coloniais, os grupos sociais que constituíam a classe média alta da cidade revelavam-se bastante liberais.

    Não se defendia abertamente o regime, o discurso anti-salazarista era bem tolerado e as instituições culturais permitiam a emergência pouco dramática dos discursos da oposição. É claro que, por coerência interna do apoio à defesa das “províncias ultramarinas”, não eram permitidas simpatias de qualquer espécie pelos grupos “terroristas”, ou pelos “agentes da desordem”. Não era pensável defender abertamente a Frelimo, por exemplo. Mas por virtude da sua própria hipocrisia, o discurso oficial dominante não podia impedir, por exemplo, que fosse defendido o anti-racismo e que o apartheid da África do Sul fosse condenado.

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    Numa situação oficial, na presença de uma autoridade em funções, a África do Sul não poderia ser condenada. Contudo, em situações menos oficiais e mesmo em intervenções oficiosas, em crónicas jornalísticas, por exemplo, esse ataque, desde que não fosse hiperbólico ou disparatado, era possível.

    Por outro lado, a África do Sul, com os seus princípios anglo-saxónicos, com muito prestígio da dimensão liberal “anglo”, sobre o puritanismo mais estreito dos Boers, era apologista de uma fruição cultural sem barreiras. Assim, por exemplo, para regressarmos ao objecto da nossa abordagem, o cinema que passava pelas salas das grandes capitais da África do Sul, os filmes que circulavam nos seus cine-clubes, eram obras que, no entender da vigilância censória, não podiam entrar em Portugal. Só não podiam, na nação austral, era ser francamente anti-apartheid.

    Ora, um fenómeno curioso que se dava em Moçambique era a circunstância de os filmes serem importados directamente da África do Sul, aproveitando o circuito de distribuição que a alimentava, sem passarem pelo mecanismo censório que imperava em Portugal. É verdade que existia uma censura em Moçambique, mas ela funcionava de modo local.

    Os filmes eram censurados por habitantes de Lourenço Marques e da Beira, sobretudo, que eram cidadãos do mesmo nível e estrato social a que pertenciam os espectadores. Se tivermos em consideração que o público dominante dos cinemas é, na altura, uma classe que se pode considerar de elite, constituída, sobretudo, por cidadãos “brancos” ou por alguns raros elementos de origem africana, ou negra, ou mesmo miscigenada, pertencentes a uma burguesia de quadros qualificados, percebemos que os valores em causa, quando se tratava de cinema, eram bem diferentes dos que vigoravam em Portugal.

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    Esquecemos, neste olhar em que apresentamos quase  um idílico falanstério tropical − constituído pelas classes médias cosmopolitas, dependentes do colonialismo, mas sem o apoiarem directamente, ou, pelo menos, abertamente −, as classes populares, as de pé descalço, as dos maltrapilhos, operários, tarefeiros, serviçais e desempregados que, por não corresponderem aos princípios do “direito de admissão”, nem sequer se aproximavam dos cinemas.

    Não falamos do cinema suburbano e itinerante que os servia, porque mal o conhecemos: apenas a referência de alguns amigos que o frequentaram, brancos como o poeta Rui Nogar, ou “pessoas de cor” como José Craveirinha, nos permite fazer ideia dele. Por caricatura, a partir da factualidade, e para servir de exemplo, podemos dizer que entre os filmes (da verdadeira e genuína série B, então) mais projectados entre os “autóctones” constavam, como clássicos,  os que tinham como herói Tarzan.

    Estamos a falar de um mundo ou de um país onde a representação da vida real da maioria da população não se praticava. Nem mesmo em documentários, como posteriormente foram feitos ainda que de modo insuficiente, pelo governo que liderou a independência.

    Sambizanga, realizado em 1972 pela francesa Sarah Maldoror.

    Um filme, como o de Sarah Maldoror, Sambizanga (1972), sobre a luta de libertação, era impensável então nos cinemas africanos na Área de influência em que Moçambique colonial se inseria. Mesmo mais tarde, essa obra importantíssima, que tão carinhosamente foi promovida pela Frelimo, não teve a importância cultural generalizada que merecia.

    Mesmo para os cidadãos das classes menos desfavorecidas, nas quais nos podemos incluir, como cidadão residente na Beira, na época, jornalista a tempo inteiro e crítico de cinema, dentro das atribuições profissionais, Moçambique, no cinema ou na imagem “cinematográfica” não existia quase. Algumas reportagens de acolhimentos a “autoridades da Metrópole”, eram as que mais fielmente apresentavam a população. Sempre festiva e de aspecto “despreocupado”, nunca faminta ou carente.

    A ficção cinematográfica, é verdade, glorificou Moçambique. Sem um único exterior local, a película Chaimite, de Brum do Canto (1952), constrói aquele que podemos considerar o maior filme épico português. Moçambique está lá. Talvez também lá esteja uma parte da alma Moçambicana. Gungunhana é maltratado, mas, pelo seu peso histórico especifico, ainda hoje pode justificar uma recuperação crítica do filme. Mas esta não se pratica. É uma presença fantasmada. Como o Moçambique representado é apenas uma alusão de localização.

    Dos moçambicanos contra os quais se bateu Mouzinho de Albuquerque apenas temos as sombras. Sombras de guerreiros caricaturadas… de algum modo, curiosamente, ensombrando as glórias portuguesas. Podemos, ainda hoje, lamentar que esse filão épico não tenha sido explorado.

    Parece que  faltou aos defensores da pátria portuguesa, nos seus melhores momentos artísticos, todo o ambiente cultural, a profunda vivência de uma má consciência com a que se desenvolveu num John Ford, por exemplo. Manoel de Oliveira vem, em visões africanas obtidas em exteriores do Senegal, reevocar, por vezes de modo muito produtivo, essa dimensão da épica. Mas o que ele nos apresenta é uma “África” colonial portuguesa, não este território ou aquele. Ele fala mais da essência da guerra do que do fenómeno conflitual e dos labirintos da sua continuidade. E filma África no Senegal…

    Neste ponto, tocamos no centro nevrálgico da questão que se coloca a um cinema moçambicano, o das suas faltas estruturais. Do colonialismo herda-se pouco. Herdam-se perdas, sobretudo. As heranças são mais as dívidas do que as estruturas. E quanto mais pobre a Metrópole, menos são as possibilidades do futuro… Talvez seja isso que nos explica a razão pela qual um cineasta como Rui Guerra, que constou desde o princípio entre os maiores do Cinema Novo Brasileiro, se “afastou” de Moçambique.

    two reels

    Não pretendemos analisar o fenómeno mas apenas registá-lo. Não foi, de certo, pela falta de simpatia do cineasta pela revolução moçambicana, nem pelo desinteresse dos dirigentes moçambicanos, que a aproximação não se deu. Nem pela falta de interesse de um público de língua portuguesa interessado no cinema… Mal ou bem, a um Sembéne Ousmane foi possível migrar da literatura para o cinema, no Senegal… porque herdou uma estrutura diferente: a não menos colonial, mas mais poderosa máquina de produção francesa.

    Notemos, no entanto, que a actividade cultural em torno do cinema não era nada conformista, no tempo da ocupação colonial, mesmo no auge da guerra ou ainda quando esta já era desfavorável ao regime português. Quatro cinemas, em várias sessões diárias, chegam a alimentar os lazeres ou os interesses culturais das classes sociais menos desfavorecidas, vivendo das benesses do seu estatuto social.

    Nós próprios praticámos uma crítica de cinema constante no jornal Notícias da Beira. O director do jornal (F. Gomes) era sócio maioritário da empresa proprietária dos cinemas, e seu administrador…

    Tivemos confrontos e desentendimentos, tentou ameaças, mas nunca me demitiu da função. Rui Nogueira escrevia crónicas de Cinema que publicava na página cultural que era dirigida por mim… e não defendia os filmes que mais interessavam comercialmente. A sua actividade nunca cessou, até ao momento em que foi possível manter colaboradores (não o era depois da Independência).

    Fachada do Cinema “3 de Fevereiro”, na cidade moçambicana de Beira, entretanto desactivado.

    A crítica de cinema já era uma tradição no jornal, iniciada, com total independência e isenção por Rui Coelho de Campos, que deixou de a fazer por ter regressado definitivamente a Portugal, quando comecei a fazê-la. Manteve-se, até depois da independência, quando a sobrevivência do Jornal já não era possível nos mesmos moldes. Era quase uma instituição cultural.

    Também o cine-clube, do qual fiz parte, com sede no Auditório à Beira do Chiveve, promoveu as sessões de cinema mais ousadas que era pensável ousar em território português: Ciclos de Eisenstein, por exemplo!…

    Promoveu festivais de cinema em que o inconformismo político, cultural e ideológico era um dos grandes valores. Vasco Branco, por exemplo, concorreu mais do que um ano a esse festival. José Cardoso, durante muitos anos dirigente do INC de Moçambique, depois da independência, cineasta amador anteriormente, à data em que elaborámos estas notas preparava-se para publicar as suas memórias cinéfilas. Aguardamos a possibilidade de as conhecer. São três volumes com profusas informações sobre o cinema que existiu… não existiu… devia ter existido… em Moçambique.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora

  • A poesia, a tradição lírica e a questão central do sujeito

    A poesia, a tradição lírica e a questão central do sujeito


    Se quisermos, hoje em dia, definir a poesia, teremos de optar por colocar, no centro da sua caracterização, a questão do sujeito, de tal modo que, numa espécie de paradoxo de enunciação, este se torna tema central e fonte de um discurso que, a determinar destinatário e objecto, apenas o faz para reforçar a subjectividade do enunciador.

    Temos em conta, nessa redução à questão central, que, desde há pouco mais de um século apenas é que o termo é usado para designar um conjunto de textos sincreticamente agrupados como um género. Nesse período de tempo, o termo concorre com a designação, também ela problemática, de lírica.

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    Toda esta questão apresenta-se sempre de modo complexo: instaura-se-me como um desafio central para toda e qualquer reflexão sobre o literário, mas logo me dá, como que a pedir iniludível deslindamento, a problemática central do seu paradoxo.

    Pessoalmente, vejo nesse paradoxo duas frentes incontornáveis: uma, a que chamarei histórica e que nos coloca toda a problemática da entidade poesia na dimensão diacrónica; outra, a que chamarei da enunciação, e que nos coloca o problema de a poeticidade se apresentar tragicamente entre a inevitabilidade do dialogismo (ser discurso) e a tentação do solipsismo (ser silêncio, ou simples gemebundo ruído).

    Tentarei colocar a questão da enunciação como central, aqui. Assim, a questão histórica será arrumada com uma espécie de leviandade que apenas tem uma desculpa: não a podendo deslindar satisfatoriamente, procurarei apresentar as grandes linhas segundo as quais ela poderia ser abordada, num trabalho de mais ampla dimensão, apenas para tentar colocar os delineamentos de base segundo os quais a questão da enunciação se me apresenta.

    Ora, do meu ponto de vista, o termo poesia designa, hoje em dia, uma prática que se manifesta de acordo com os seguintes modelos textuais (tomando como pertinente quer a substância quer a expressão da forma, quer as modalidades enunciativas): a dominância da versificação e/ou do ritmo em todas as suas dimensões; a ligação da voz à sonoridade; o estatuto monológico do sujeito de enunciação; e a confusão deliberada do sistema expressivo com o do conteúdo.

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    Assim sendo, a poesia, historicamente, tem, da tradição, a marca do verso (o poeta era um versificador), da lírica, a marca do eu como origem do canto, da tragédia a demarcação do protagonista relativamente aos outros – o Outro, a voz colectiva – e da épica a definição do enunciador como sujeito-central, o herói do enunciado fundido com o da enunciação como assunto dominante, em última análise, da instância do canto.

    Porque se torna a lírica a forma central do poético, na nossa tradição, mesmo que repisemos Aristóteles e lembremos que o seu modelo central era a tragédia? De facto, há nas nossas asserções contemporâneas, a partir de uma data que se poderia colocar algures, de modo já perceptível, no dealbar do Romantismo ou, com mais precisão e sustentação teórica, na da publicação de Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, uma ideia de poesia que se liga à solidão do poeta e à devastação de vozes em torno do seu canto.

    É importante, aqui, relembrar um dos enunciados inaugurais dessa postura. De facto, no segundo poema do livro já citado, “Bénédiction”, lemos:

                             «Lorsque par un décret des puissances suprêmes

                              Le Poëte apparaît en ce monde ennuyé,

                              Sa mère épouvantée et plaine de blasphèmes

                              Crispe  ses poings vers Dieu, qui la prend em pitié :

                              -«Ah ! que n’ai-je mis bas tout un nœud de vipères

                              Plutôt que de nourrir cette dérision !

                              Maudite soit la nuit aux plaisirs éphémères

                              Où mon ventre a conçu mon expiation ! » …

    Notemos, como primeiro registo, que o poema, fechando expressamente, pela maldição materna, o acesso do poeta à fraternidade, elabora, por sobre os séculos, uma confraternização. De algum modo, esta mãe blasfema vitupera o filho, em franco diálogo com a que Villon evoca ainda em plena Idade Média no poema “Ballade que Villon feist a la requeste de as mére pour prier Nostre Dame” de Le Testament.

    De igual modo, ao encerrar o diálogo com o seu hipócrita leitor o poeta coloca na cumplicidade do mal a única via de comunhão, dialogando, aí também, com “Le bal des pendus” do mesmo Villon.

    Mais ainda, o que se tornou central, na separação definitiva que Croce regista em forte e ampla argumentação, entre poesia e literatura, é à maldição irreparável do poeta que se deve, podendo ser atribuída essa diferença ao silêncio que se abre quando a sua voz se eleva. Se Hugo ainda pedia, nas suas reflexões poéticas, ao povo que escutasse o poeta, Baudelaire anuncia, para o seu leitor, fraternidade e cumplicidade numa espécie de crime. Assim, não podemos deixar de evocar, aqui, a versão optimista da separação entre o poeta e o seu público, através de algumas linhas do poema de Hugo, “Fonction du Poète”, do livro Les rayons et les ombres:

                      Pourquoi t’exiler, ô poète,

                      Dans la foule où nous te voyons ?

                      Que sont pour ton âme inquiète

                      Les partis, chaos sans rayons ?

                      Dans leur atmosphère souillée

                      Meurt ta poésie effeuillée…

                       …

                       O rêveur, cherche les retraites,

                       Les abris, les grottes discrètes,

                       Et l’oubli pour trouver l’amour…

                       …

                       Peuples ! écoutez le poète

                       Écoutez le rêveur sacré !

                        …

    Mas tudo isto não surge deste modo, de um momento para o outro, nem mesmo num evoluir de algumas décadas que medeiam entre Hölderlin, Byron, e Hugo, num momento – e Baudelaire, noutro. A partir de um certo período histórico, que hoje quase vemos como unidade temporal, mas que se alongou por cerca de quatro séculos, do desenvolver da relação do sujeito cultural com as entidades transcendentes em novos discursos,  o processo do canto tornou-se central para a definição de um género, vivendo em paridade com a representação pura (a mimesis, segundo Platão e Aristóteles), a representação narrada (a diegesis, segundo os mesmos autores) e apresentando-se como a pura ou simples enunciação em que o dizer se confunde com o fazer (a aplê digesis, ainda de acordo com as autoridades já citadas).

    É claro que este último modo é entendido, mais correctamente, como a narração pura, ou seja, o canto de louvor aos feitos de um deus ou de um herói. No entanto, como casa vazia de uma grelha, desde que narrativa “traduz” o conceito de diegese (ou, dizendo melhora, ambos os conceitos quase coincidem), seja ela com mistura de vozes ou sem mistura, a tónica passa a colocar-se no conceito de enunciação. Resumindo: pela violentação, para a nova proposta teorética dos géneros a narração pura é mais importante pela voz do que pela acção que narra.

    Tudo se passa como se esse canto se alimentasse da sua própria substância formal, exigindo o reconhecimento da sua diferença não na forma de enunciação pelo canto, o que nos remeteria para a propriedade formal da lírica (o que se acompanha com a lira, com o instrumento musical e que se completa com a música), mas porque o canto aspira a ser a marca do outro como sujeito-objecto absoluto, reconhecido pela ausência, a começar pela da voz que apela sobretudo pela apóstrofe dirigida ao Outro, pela qual o hipostasia. Michel Collot sugere-o a partir da análise de um excerto de um texto poético de Aragon: “o Outro nunca esta presente senão através de uma certa ausência” (1989: 98).

    Segundo ele, a “solidão” pode ser o outro nome do amor, porque “o ser amado não nos poderia ser dado de maneira plena e completa” sem apagar o próprio impulso do desejo. Ora, segundo ele, deixando de ser objecto, o outro tornar-se-ia consciência fundida com a do eu, não dando, assim, “origem nem à palavra nem à poesia” (cf. Collot, 1989: 98-99).

    Devo confessar que esta ideia, colocada de modo forte no horizonte fenomenológico do fazer poético, vem ao encontro de uma conjectura que me seduz há muito: a de que o canto existe como um diálogo com as instâncias inacessíveis ou despóticas. Assim, presumo sempre que a tarefa de Orfeu, o cantor por excelência, o define como o que fala com a essência do Outro, seja esse outro o ser amado, seja ele o ser perdido para o nosso mundo, por ser, de algum modo, a transcendência: um morto, um ente extraordinário, um deus.

    Ora, nessa relação pelo canto, porque ao outro não cabe ser representado pelo mesmo, pelo sujeito poético do canto, tudo se passa como se a revelação plena do seu enleio existisse no próprio acto de enunciação e no esplendor que nele geram as palavras.

    Por extensão, é verdade, o universo inerte, os entes não humanos, aqueles que não respondem, nem mesmo pela escuta, acabam por constituir-se parte desse nível de transcendência, porque devolvem o poeta a um silêncio circundante, ou à maldição da solidão. O “eu posso estar aqui perfeitamente pedra”, verso que abre o livro Os sítios sitiados”, de Luísa Neto Jorge, aponta para uma das consequências desse posicionamento: a importância dos universos minerais, cristalinos – enigmáticos no seu estar em pedra, por exemplo, devolvendo ao sujeito da enunciação poética a sua própria imagem por reflexo.

                              “Posso estar aqui

                                eu posso estar aqui perfeitamente pobre

                                um círio me acendi, espora aguda

                                o vento ritmo negro assassinou-o

                                posso estar aqui

    o musgo é lento como a sombra –

    e sei de cor a voz cega das canções

    (viola de silêncio acorda-me)

    que eu posso estar aqui perfeitamente pedra insone

    e um longo segredo pessoal

    bordando a minha solidão

    Também a Micropaisagem, de Carlos de Oliveira,  nos dá inexcedíveis abordagens desse processo em que, aparentemente, a cristalografia da paisagem parece fornecer a estabilidade material ao lugar em que o poeta se enuncia como eu.

                  O céu calcário

                  duma colina oca,

                  donde morosas gotas

                  de água ou pedra

                  hão-de cair

                  daqui a alguns milénios

                  e acordar

                  as ténues flores

                  nas corolas de cal

                  tão próximas de mim

                  que julgo ouvir        

                  filtrado pelo túnel

                  do tempo, da colina,

                  o orvalho num jardim

    É aí que o eu dizer-se se desdobra na voz do poeta e na de O que de algum lado tem de ser dito. Parece-nos ser esse o mecanismo que Michèle Aquian evoca, a partir da psicanálise para falar de poesia: “O adulto – o Outro [aquele que a voz poética transforma em poeta ou poëte, no dizer de Baudelaire] – vai receber esse grito, e dar-lhe-á uma tradução, uma interpretação, inscrita na lógica do seu próprio discurso, e que será a sua resposta” (Aquien,1997: 159).

    O enunciado do que ordena o discurso apenas consegue dar o registo do que foi desde a memória da infância ou do momento fundador inominável. Como diz Saint-John Perse, em Vents: « Je me souviens du haut pays sans nom, illuminé d’horreur et vide de tout sens ». No entanto, ainda poderíamos acrescentar um reparo sobre um outro fenómeno simultâneo e complementar: o respeito pelo que em eco ou resposta sonora se sugere de veneração, por parte daquele que enuncia, pela origem material pré-significante (quase sempre o som, a onomatopeia, o ser coisa que lá está antes de ser sentido, signo ou símbolo) do que vai ser dito, tornado discurso.

    Também sobre esta matéria Carlos de Oliveira seria, ainda, o poeta exemplar, quando lemos, em Turismo, num dos grupos estróficos de “Infância”: “Chamo/ a cada ramo / de árvore / uma asa// E as árvores voam.//Mas tornam-se mais fundas/as raízes da casa,/mais densa/a terra sobre a infância./É o outro lado/da magia”

    Estamos, em tal percurso de argumentação, no cerne do que em Dante me parece fundamental: o conceito de concetto, para traduzir a sententia latina, em “eloquência vulgar”, é definido como “argumento  das composições líricas […], nas quais não se encontra o desenvolvimento das acções, sendo antes o jogo e torção do pensamento o equivalente imitativo da acção” (García Berrio, 1988: 420).

    Deste modo, na tradição do humanismo renascentista estabelece-se, a partir de Dante, o valor de dianoia, para o termo concetto, quando se “faz dele o equivalente, nas obras líricas, breves e sem imatação de acções, da dianoia da tragédia e da epopeia”  (García Bérrio, 1988: 420). Pode admitir-se, então, com Genette, que essa posição, formulada pelo preceptista espanhol, Cascales, no século XVII, se traduz pela breve fórmula: “o lírico (é o soneto que está em causa, em tal argumentação) tem por «fábula» não uma acção, como o épico ou o dramático, mas um pensamento” (1986: 46).

    Antes de regressarmos a Dante, para considerarmos esse momento que entendemos como fundador da lírica no sentido moderno do termo, é preciso observar quanto a anterior afirmação se desenvolve. Dá voltas, percorre espaços em espiral, e regressa a um ponto, sempre, em que a matéria observável é o sujeito e o seu canto. Tudo se passa – para relembrarmos o espantoso mito que parece venerar os poetas como entes supremos, capazes do impossível – como se Orfeu, tendo atravessado o céu e a terra para chegar aos infernos, depois de se manifestar capaz de um feito único, de arrancar o ente amado à morte por feição dos seus hinos, se tivesse distraído com o objecto contemplado, ou tivesse ficado encantado com os próprios enleios.

    Então, se o canto restitui o objecto pelo efeito dos encantos, não será de ficar preso a esse poder que distrai porque ilude a morte e o tempo, parecendo assegurar a eternidade? Não será mais importante o enunciado que dá a vida do que o ente vivo que, uma vez encontrado, deixará de solicitar o canto, se mostrará ser no tempo, perecível, longe de ser eterno – insignificante, mesmo?

    De facto, essa parece ser uma vertente da questão. Genette desenvolve, em torno de Cascales e de Batteux (preceptista que retoma as ideias de Cacales um século mais tarde), a hipótese formalmente mais sedutora: “os sentimentos expressos pelos poetas são, portanto, pelo menos em parte, sentimentos fingidos por arte, e essa parte sobreleva o todo, pois mostra que é possível exprimir sentimentos fictícios, como aliás podia desde sempre a prática do drama ou da epopeia” (Genette, 1986:48)       

    No entanto, a questão que pretendemos colocar, embora parta dessa abertura do problema, passando do sentido ao fingido, propõe-se um outro objectivo, mais violento e mais cândido: o sentimento, deixando de ser acto público da argumentação do autêntico, remete-se para uma interioridade onde busca o eu como entidade, ou seja, como alteridade.

    books on bookshelf

    Julgo que é esse passo gigantesco, de uma lírica que é canto, acto público de um festejo ou de extroversão de um júbilo, palaciano ou da praça pública (qual o mais frequente? – alguma vez o saberemos?), para uma lírica que é só interior, de recantos íntimos e espaços privados, exaltação do ponto de vista pessoal em horizonte despovoados, perante a indiferença ou distância dos outros, que Dante dá na Vita Nuova.

    Penso-o desde o primeiro momento em que li, apressadamente, e não consigo deixar de o imaginar, quando o releio, sempre com dificuldade e perplexidade. Sobretudo surpreende-me que o poeta, reconhecendo-se a si próprio como tal, se inscreva numa fixação textual, inscrevendo o plano do seu poema e a sententia, que o terá de dizer como poema, feito acção da palavra, diante de um auditório que convoca permanentemente, de modo mais ou menos verosímil – ainda que, por vezes, em surpreendentes poses.

    Estará o senhor do enunciado inscrevendo, como cronista, a situação de canto e os ouvidos que o solicitam? Estará, de facto, procurando comover a assistência, amigos e conhecidos, amigos da amada perdida, conhecimentos próprios forjados pela circunstância do laço de amor que o uniu a Beatriz?

    Mas então, qual é o espectáculo desse sentenciar: a imagem do ser perdido, ou a beleza do sentimento que se qualifica pelo canto? De uma coisa estou certo. Sem o aprofundamento dessa representação da representação, é-nos muito difícil perceber como a lírica invadiu o espaço do poético. Como ela se tornou central por não ser uma representação em que a virtuosidade do dizer fazer (poiesis) se esconde, mas, ao contrário, se exibe como dizer.

    E como ela se tornou o objecto central do confronto problemático que a literatura mantém entre o que nela é a essência distintiva (a literariedade seria a poeticidade, assim) e o que nela é discursividade, a própria essência do debate. Ou, então, dito de outro modo, o confronto entre o ponto supremo em que ela se sublima como texto, estrutura fechada, e o lado pulsional que a fundamente, tornando-a – porque passa a utilizar um novo espaço institucional, o do texto – a inevitabilidade da palavra convocar o outro: o fundamento da própria palavra.

    E, de facto, é sempre de uma sublimação que se trata, muito embora, por vezes, a matéria dessa sublimidade seja a precipitação, mesmo a escatológica. A poesia, o canto poético é, de algum modo, a permanente verificação das catástrofes, a perda do silêncio e da imobilidade, o pânico de verificar que somos arrastados, que o abismo nos espera. Atesta-se isso no modelo enunciativo, nos conteúdos em que a paixão, dos sentidos e/ou dos sentimentos impera, no ritmo, seja ele versificatório, frásico ou semântico.

    Assim, se vão acumulando as figuras a vários níveis do texto, em determináveis planos do discurso: rupturas, oximoros, demarcações entre o sujeito da enunciação e aquilo ou aquele que lhe é o outro – que por ele é interpelado, vociferado, abençoado ou maldito. 

     Assim, o que me parece ter-se processado, ao longo dos séculos que medeiam entre Dante e Luísa Neto Jorge (para citar apenas, através da mais jovem, um nome dos nosso dias – ainda que ela tenha morrido muito prematuramente), não é tanto um aprofundar da diferença entre o sistema discursivo da lírica do fim da Idade Média e do princípio da Renascença na Europa e o que hoje nos é evidente.

    O que parece ter acontecido, de facto, é a valorização dos termos da individualidade pessoal e subjectiva, projectando os qualificativos da entidade civil do cidadão sobre o discurso poético produzido pelo sujeito problemático.

    O efeito é perverso, do nosso ponto de vista. Porque, se o poeta foi o cultor, desde sempre, desse reduto do pessoal e íntimo identificável no ritmo assumido como próprio e nos recessos do mistério que cada imaginário cultiva como seus (os sonhos, as suas sementes e os seus frutos – o modo como cada um é cantor da canção que é comum ao colectivo), ele foi-o sempre de modo dialógico: aberto para a comunidade dos seus antepassados, aberto para o público ao qual dirigia o seu canto. E inscreveu sempre, na tribo, a origem do canto, a origem primeira. Porque, com Villon, no seu testamento e com Dante, no seu relato de renascimento, de acesso à nova vida, os destinatários são obsessivos presentes, outros imprescindíveis como terceira pessoa, a que assegura a vida do discurso.

    person typing using typewriter

    O que a sociedade civil burguesa criou, com os seus códigos triunfantes, foi a propriedade equívoca do eu, o canto como próprio, de tal modo apropriado que pode obter uma forma intransmissível: a do monólogo absoluto. Se isso é simples, para a definição do copyright, já não é tão simples para a função do poeta e para o sentido do exercício da sua mestria.

    Se ele gera o eu como mistério ao defrontar-se com o mistério do Outro, postulando-o como entidade necessariamente ausente para ser assunto do canto, a proposta do seu mistério, como paixão, sofrimento ou maldição só tem sentido na relação explícita do autor, o senhor da voz poética, com os terceiros os Outros, os que o julgam. Assim, não me parece que a voz narrativa de Vita Nuova seja muito diferente das vozes críticas de Pessoa e dos seus heterónimos, quando se pronunciam uns em relação aos outros.

    O que eles criam, no fundo, é a textualização de uma sociedade que convive, enquanto discurso, com o discurso do poeta. Dante fá-lo porque perdeu, e tem a consciência disso, a praça pública, espaço natural dos poetas anteriores, seus parentes próximos. Pessoa fá-lo porque procura, na senda de Baudelaire, de Mallarmé, de Withman, o hipócrita leitor, seu semelhante, seu irmão, ou então os traços da tribo perdida, ou mesmo as sendas por onde passaram os povos da nação. E é nessa textualização, julgo, que ma parece fundar-se a poesia como essência do literário, interior no qual a voz se dá como origem do sujeito. A relativa ilegibilidade que a poesia pratica, pelo menos desde o simbolismo, parece ter pelos menos duas vertentes: uma que retoma da magia e das comunidades secretas, codificando, com a língua de todos, uma segunda língua para ser apreendida como língua mas dificilmente interpretável pelos não-iniciados; a outra em que o sujeito se funda exactamente na descoberta do lado obscuro, cifrado para uma dimensão de si próprio.

    Resta dizer que, quanto a esta dualidade do sujeito, o dizer-se passa pelo colocar-se como mistério. Já não se trata apenas de instituir o outro como necessária ausência, mas também, por inevitável lógica da vivência interior, restaurar no sujeito a duplicidade. A imagem fundamental dessa construção é a anamnese, evidentemente. Ela vai, desde a evocação da amada perdida até ao canto da consciência da própria perda.

    A figura que poderia representar a anamnese e o que ela representa, na tradição poética, é, sem dúvida, a do ubi sunt, que se canta, desde Villon, nas línguas neo-latinas. Contudo, sempre se percebeu, na construção do lírico-poético, que essa é apenas uma figura da evidência, por detrás da qual se perfila a sombra do mistério. Ela poderia formulada de vários modos: quem fala, quem sonha, qual é a origem do canto e das imagens que nos assaltam e não sabemos de onde vêm?

    brown dragon on brown wooden cross

    Freud propôs um termo latino para designar algo parecido, na psicanálise: Id. Julgo que seria abusivo adoptá-lo plenamente para o questionamento do literário. Seria propor um conceito definitivo para um problema que existe, com sede própria no poético, antes da psicanálise inventar o seu campo específico. É certo que esta reconhece, pela expressão do seu fundador, as dívidas para com os poetas.

    Mas não estou certo de que, ainda assim, o conceito nos sirva, que seja nosso por invenção poética, como o é o “onde estão”, para convocar a memória, os seres e os objectos perdidos, o traço que evoca, para lá do esquecimento. Paradoxo que se poderia entender, talvez na terrível imagem de Herberto Helder, num dos momentos da sua Vocação Animal, “As festas do crime”, construída muito à maneira lautreamontiana, mas devorada e digerida pela voracidade poética do poeta português:

           “Este lugar não existe, fica na Arábia Saudita, no deserto.

            Gosto do deserto.

            Levei tábuas e pregos.

            Ferramentas, as belas ferramentas dos homens.

            Levei água, víveres, sementes.

             …

            Não era trigo, nem cravos, nem sementes de cores, das cores que amamos como uma dor no corpo.

            Eram sementes de cabeças de crianças”

             … 

    Herberto Helder

    E o certo que nos parece emergir, de leituras e confrontos, não é tanto a de que essa questão da origem tenha de possuir um “quem” como nas narrativas de mistério, ou uma causa, como nos mitos que nos respondem aos “porquês”. Poderia, talvez, ser a figura do esquecimento, a amnésia. E não será essa a fundação da vida nova, a que se ergue sobre as ruínas de uma relação perdida no espaço da cidade onde ficaram as marcas da ausência – o mistério órfico de suster o desaparecimento por palavras que apenas aludem, representam ou evocam.

    E seria ainda Carlos de Oliveira, o mais dantesco dos poetas modernos a dizê-lo, no poema final da Micropaisagem: “Assim/se cumpre/ o eclipse/ gradual/sobre o centímetro/quadrado que/ os líquenes/ cobrem/na memória, /assim/a luz e a neve/se ocultam/pouco a pouco, assim/se esquece”

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia:

    Aquien, Michèle, 1997, L´autre versant du langage, Corti, Paris

    Collot, Michel, 1989, La poésie moderne et la structure d´horizon, PUF, Paris

    García Berrio, Antonio, 1988, Introducción a la poética clasicista, Taurus, Madrid

    Genette, Gérard, 1986, Introdução ao arquitexto,  Vega, Lisboa

  • Herberto Helder

    Herberto Helder


    Sem pretendermos fazer qualquer aproximação específica, que seria abusiva para lá de toda a semelhança que existe entre todas as manifestações singulares, na difusa categorização genológica de arte, ocorre-nos, na leitura deste longo poema de Herberto Helder, a lapidar conclusão que Blanchot apresenta de uma leitura de um fragmento de Kafka:

    Não se pode escrever senão quando estamos senhores de nós próprios diante da morte e apenas quando estabelecermos com ela relações de soberania. Se, diante dela, perdemos a continência, não a podemos conter, então ela tira-nos as palavras da caneta, corta-nos a palavra; o escritor não escreve mais, grita, um grito confuso que ninguém percebe e que não emociona ninguém. Kafka sente aqui profundamente que a arte é relação com a morte. Porquê a morte? Porque ela é o extremo. Quem dispõe dela dispõe de si, está ligado a tudo o que pode, é integralmente poder. A arte é o domínio do momento supremo, supremo domínio” (L’éspace Littéraire. Idées. Gallimar, p. 107).

    Não nos parece nada descabido aproximar o conceito de ciência última do  de supremo domínio, propondo uma visão global, de um poeta dificilmente cernível no conjunto da sua obra. E isto  a propósito do livro que aponta, exactamente, para um entendimento encerrado, Última  ciência, embora, ironicamente, negando qualquer desfecho.  Não cremos sequer que seja necessário determinar a autoridade nietzschiana para encontrar, na busca do saber, o poder, o qual seria o campo de valências onde a indeterminação, eventualmente, nasceria, já que sobre a aproximação de última e extremo ou supremo parece não haver dúvidas.

    É o próprio texto, porém, que liminarmente e lapidarmente no-lo diz, se os símbolos e a topografia do corpo não mentem, ou não são vazios incipit.  “Com uma rosa no fundo da cabeça, que maneira obscura de morte”. Não nos parece que estejamos aqui muito longe de  uma sabedoria de ocultas dimensões, antecâmara de um encontro nupcial com a sageza dos ocultos domínios. Duas personagens enchem permanentemente a cena da visão do saber que o livro patenteia: o eu da enunciação e a criança de múltiplos poderes que parece constituir a figura actancial privilegiada de relação com o cosmo e muito primordialmente com a origem matricial: a mãe, a placenta, a madeira, os minerais e os próprios astros e as suas propriedades.

    Não é possível aludir a esta poesia carregada de simbologias altamente codificadas e de
    metáforas profundamente inaugurais, ordenadas em sistemas de uma sumptuosidade que já
    foi notada, por exemplo, por Gastão Cruz, numa pequena nota publicada em Phala n.” 11, sem fazer referência ao discurso alquímico, subjacente que parece ser o manancial imaginário forte, a carne e o plasma do texto de Helder.

    Última ciência foi publicado em 1988.

    Contudo, embora a profusão de rosas, e outras corolas matriciais, de pedras rutilantes, de metais preciosos, de leões de pedra, leopardos, formações cristalográficas e estátuas, de calcinações em dinâmicas figuras, e de outros elementos significativos, seja bastante grande para poder ser ignorada, ou minimizada, como lista ocasional ou frágeis ressonâncias semânticas e se apresente, antes, como paradigma amplamente declinado em ressonâncias poderosa no corpo do poema, é preciso fazer um reparo fundamental no caso presente: nunca o corpus simbólico pré-existente condiciona o processo do poema, nunca a produção verbal de Herberto Helder fica condicionada pelos elementos de sacralidade com que se confronta.         

    Diríamos quase (e, para isso, relendo algumas das versões de As magias,arte poética última insistentemente republicada com acrescentos) que a ciência da máquina-lírica,  oráculo que, electrónico ou flogístico, parece ter sempre iluminado, com a sua sombra, a poéticado autor, se apurou no horizonte com a alquimia onde o verbo encontrou a negação de um discurso dialógico. O Iniji emerge (ciência primeira) com um romper de “um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundíssemos com os torrões e calhaus.

    Não havia nenhuma ciência, nenhuma lembrança” (As Magias, p. 11). No horizonte do sujeito poético emerge essa imensidão de uma sabedoria imemorial, uma língua que “não era de sedução para subornar, ou para dominar. Dela provinham as palavras (…) Existiam ao mesmo tempo que a vida não desligadas dela. Eram uma dança, uma natação, um voo, um movimento” (As Magias, pp 11-12). Sem afirmar aqui a metafísica implícita do autor, mas procurando antes vislumbrar o sistema de trabalho do seu “forno”, da sua “retorta”, dos seus “fluidos”, parece-nos de considerar que para Herberto Helder a gramática do saber original se postula como horizonte, como matriz no cosmo, origem do discurso poético, ainda que o forjar deste, preso embora à sacralidade e ao deslumbramento, nunca seja seu servo ou submisso repetidor.

    Atrever-nos-íamos mesmo a afirmar que (perdoe-se-nos o sacrilégio), tal como os grandes poetas místicos de outrora, cátaros ou cristãos de outras doxas mais ou menos tuteladas, Herberto Helder se serve, notoriamente em Última ciência, do discurso sagrado dos símbolos de acesso à obra de transfiguração para com eles dar inicio à sua obra própria.

    Toda a ordem litúrgica, toda a simbologia verbal de frase feita de fórmula lapidar é aqui submetida a uma segunda ordem de transformação perturbadora, reformuladora dos elementos essenciais de forma a atingir-se um novo plano de reelaboração do cosmo. E pensamos mesmo que, se em relação a ele tem todo o sentido falar do orfismo, isso deve-se, em grande parte a essa sua capacidade de transformar todo o canto, em canto próprio: verbo ritmo, ressonância cósmica.

    Se Iniji é o saber antigo, original, matricial de onde emanam os sentidos da palavra assumida no puro evanescimento do seu valor próprio, a arte poética, dimensão rutilante da poesia, é esse diálogo com as sombras e com a luz a partir dos dados interiores da sua fundação, do seu mistério, aí, onde ela é magia. E magia não é um antes da palavra, um vazio, um branco, uma ausência, um nada. Ela só é possível quando se sabe e se assume que a transfiguração é a das palavras e que no ofício divino, na mestria do universo, quer o diálogo seja com as sombras quer com a luz ou com os deuses “cada imagem é a cicatriz de outra imagem” e que “a mão experimental se transforma ao serviço escrito das vozes”.

    pen on white lined paper selective focus photography

    Numa obra que nunca se recusou a qualquer das experiências dos limites (e sempre, da abjecção à alquimia, o grande limite é o de “uma vida selada”), este texto de Herberto Helder aparece-nos como mais um curioso culminar. Para um poeta que já se silenciou tantas vezes, não sabemos nunca como olhar através dos seus escritos que se querem últimos. É ainda em Ultima ciência que lemos o oráculo do discurso da morte que, aí, cicatriz de uma imagem de fim, nos afirma “inocente … Arte de redacção: ver isto, ver a morte – dar-lhe um nome de diamante com o nervo dentro” (p. 43). Voltará depois da morte conhecida e dominada?

    Segundo Eco, na “sociedade de massas, na época da civilização industrial, observamos um processo de mitificação afim ao das sociedades primitivas e que, todavia, no início, procede muitas vezes segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno” (1991: 250), parece-nos interessante observar como nesta actualidade se apresentam alguns procedimentos ou figuras variantes  das metamorfoses (a transfiguração, a camuflagem, o disfarce, a máscara ou a ocultação), quando elas se reformulam nos espaços modernos das cidades, numa partilha entre os mistérios nocturnos, da esfera órfica e infernal, e o bulício urbano, em que ao confronto tradicional do cidadão e do seu vizinho, desde a Antiguidade (o «ateniense», o «romano») até à Revolução Francesa (o «burguês») se opõe o face a face,  entre o anonimato do próximo como ente emergente da multidão (a sempre ameaçadora hipótese de uma alteridade estranha e inquietante), e o sujeito que  percorre esse turbilhão de estranhos, como transeunte indiferenciado: o indivíduo das massas.

    A ideia de procurar compreender alguns fenómenos culturais, transpostos para textos literários magnifica-se, ao que parece, na poética de Herberto Helder, onde todo o sistema poético assenta na assunção de que a continuidade está sujeita a rupturas que, se não forem tratadas como transformações – ou transfigurações, ou devorações, ou desapossamentos – redundam no desaparecimento, no esquecimento ou na morte.

    yellow and brown leaves on white ceramic tiles

    A constante reaparição da sua obra depois dos finais anunciados da escrita, apontam, de algum modo, para uma estética do estertor, em que a obra é uma efémera evanescência e a vida um continuo entrecortado de cortes, de amputações e de outras formas incisivas das variantes da ruptura na busca de uma metamorfose final.

    Vemos, na preocupação constante que o poeta ostenta de encerrar a obra e de a eternizar como Livro, sempre seguida da exaltação do livro reeditado sob transformação (Ofício Cantante….Poesia Toda) – numa espécie de frenesim onomástico ou veneração do batismo como ritual propiciador do renascimento transfigurador, arrastando esse movimento, os actos mutação, reformulação, jogo de variantes, tendentes a assegurar a continuidade sob a forma mutações – uma atitude de regulação vital da poesia, ou da poesia como vitalidade.

    Toda essa actividade de escrever para ser ou de existir como escrita força certos posicionamentos fundamentais ao poeta. Julgo que podemos destacar dois: a apropriação dos acervos e modelos poéticos como matrizes a serem transformadas (com a variante forte da publicação da “antologia”, ou das “traduções”, dos mananciais da poesia exótica ou enigmática, normalmente de origem popular e anónima); e a preparação da obra própria enquanto espólio labiríntico, eivado de “artes poéticas” de tons órficos e elaboradas conceptualizações heraclitianas.

     É claro que, para a percepção de um leitor ou poeta, ou qualquer entidade colocada na convergência dessas duas funções, o assumir desses dispositivos de produção poética se encaminha para um jogo de dimensões demonológicas. O tocar numa obra por qualquer entidade introduzindo-lhe transformações por constituir uma adaptação, uma outra obra inspirada na primeira, dá origem àquilo a que Herberto Helder chama “obra maléfica” (Photomaton e Vox, p. 21) – qualquer coisa como uma “opus nigrum”[1]. O que nos deixa perante uma revelação que nem sempre se patenteia a quem se deixa envolver pelo poderoso discurso poético de Herberto Helder.

    person sitting on blue wooden bench on beach during daytime

    Esta percepção é transmitida pela seguinte afirmação de Frias Martins: “a poesia é levada pela assunção do amor pelo caminho de tudo aquilo que diante dos olhos (da luz) se encontra e cuja mensagem se destina derradeiramente ao coração” (1983: 33). Não obstante a correcção desta observação, temos de reconhecer que ela se manterá sempre incompleta, quando atendemos ao conjunto da obra de H.H. em todas as suas dimensões. E isto porque uma boa parte da sua obra parece obedecer mais aos apelos do demoníaco, e de um erotismo ordenado por Thanatos. Não será essa uma das figurações de Orfeu? O que resta de amor, depois da ida às regiões da morte.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Martins, Manuel Frias, 1983, Herberto Helder, Um Silêncio de Bronze, Horizonte, Lisboa

    Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa


    [1] “Opus Nigrum”, é uma velha fórmula alquímica que significava a fase de separação e dissolução da matéria, mas para pior.

  • José Rodrigues Miguéis

    José Rodrigues Miguéis


    Como alguns outros grandes nomes da nossa literatura, nascidos entre finais do século XIX e os primeiros anos do século passado, José Rodrigues Miguéis (1901-1980) é, muitas vezes, esquecido, nos panoramas histórico-culturais que trabalham, quase sempre, numa busca de método e compreensão, por agrupamentos periodológicos, ou mal entendido (ou mesmo mal-lido, no sentido bloomiano do termo), na sua postura ideológica e crítica, segundo inserções e valorizações apologéticas que o lêem numa singularidade mitificante de excepcionalidade exemplar.

    Quanto a esses aspectos, podemos dizer que emparelha, quase completamente, com dois dos vultos mais importantes da nossa literatura, seus contemporâneos: Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro. O que os poderá unir, no sentido positivo, é um encontro nem sempre harmonioso, em torno da Seara Nova e, em sentido negativo, a tendência para se manterem esquivos a grupos e movimentos.

    José Rodrigues Miguéis (1901-1980)

    Com eles emparceiram também, por esta última razão, outros nomes contemporâneos, como José Gomes Ferreira e Irene Lisboa, que gravitam, desenquadradamente, em torno de enquadramentos que marcaram a época – sobretudo o segundo modernismo, o da Presença, e o neo-realismo, mas também o naturalismo, o primeiro modernismo e mesmo o surrealismo.

    Na sexta edição da História da Literatura Portuguesa de que é co-autor, juntamente com António José Saraiva, Óscar Lopes considera Miguéis o “ficcionista mais importante daquilo que designamos por realismo ético” (s/d [196-], 1058).

    Caracterizando e historiando esse tipo de realismo, diz o autor, no mesmo texto, que os autores que inclui nesse grupo deveriam, por nascimento, “aproximar-se da geração presencista […]; mas devido a condições óbvias que os isolaram ou inibiram no decénio de 30, a sua obra mais significativa coincide com o advento do neo-realismo e está condicionada, se não directamente por ele, quando menos pelos factores históricos que lhe(s) são comuns” (s/d: 1057).

    Primeira obra de Miguéis, publicada em 1932.

    Esta oscilação de pendores, entre um esteticismo modernista e uma moral de intervenção social, tê-los-á levado a uma busca de unidade “entre certos valores estéticos e certos valores éticos”, atreves de uma prática literária que Óscar Lopes designa por “realismo ético”, o qual se demarca de um “certo introspectivismo, certo metafisicismo grandiloquente alternativos em Presença”, por um lado “e, por outro lado,” do “neo-realismo, que encara as relações humanas como obedecendo a leis objectivas, consistindo a superação humana em delas se aperceber e tirar partido”, para se constituir como “um realismo social, em que o indivíduo figura, não como inatamente singular, nem como um modo transitório do Adão universal, mas como uma singularidade circunstancial e evolutiva” manifestando-se pela “afirmação de uma lei moral subjectiva e oposta à lei objectivamente histórico-sociológica” (pp. 1057-1058).

    Repare-se que este é um texto escrito numa época em que era difícil falar de “certas coisas” em Portugal. Não era muito viável um professor de liceu de então, que Óscar Lopes era, elaborar explicações muito extensas e completas sobre o que era o neo-realismo, como é que se poderia colocar no quadro da cultura e do conhecimento, do ponto de vista ideológico, aquilo a que ele chamava o “realismo ético”, pois teria de se evocar um paradigma marxista, para lhe poder contrapor um kantismo ou um neokantismo, assim como explicar mais miudamente de que modo é que modernismo era psicologista e metafísico em oposição a perspectivas sobre o homem mais atentas às constantes materiais, e, em suma, os paradigmas lukacsianos do “modernismo” e do “realismo crítico” se opunham ou se articulavam com o de “realismo socialista”.

    Assim, o ensombramento de alguma dúvida quanto à dimensão axiológica recai sobre as suas primeiras novelas, Páscoa Feliz de 1932, e Saudades para Dona Genciana de 1957 (depois recolhido em Léah – 1958), produção que, no entender de Óscar Lopes, “pode lisonjear o culto, então literariamente em moda, do acto gratuito dostoievskiano, numa apetência de crime-e-remorso que por fim aliena o protagonista de uma verdadeira responsabilidade” (p.1059).

    De facto, tal apreciação parece aplicar-se perfeitamente a uma personagem como o narrador de Saudades…, quando reflecte:

    “[…] a vida nada me oferecia além do Protesto. À falta de melhor enveredei resolutamente pelos meandros da Acracia. (O termo soava-me melhor do que Anarquismo.) Destituído de qualquer esperança de destino pessoal, sonhava pulverizar o nada em que vivia. […] Li com fervor Hamon, Jean Grave,  Kropotkine e Bakunine […]. Mas aborrecia os utopistas, os socialistas, os comunistas, todos os que pretendiam reorganizar a sociedade em bases novas […]. Sonhava sobretudo com o amor livre: uma revolução que desse a cada homem o direito de possuir a fêmea que lhe apetecesse e quando lhe apetecesse” (1968: 215-216).

    É nesse quadro que Uma aventura Inquietante, por exemplo, é considerado, muitas vezes, um romance que aproveita algumas das regras da narrativa policial para, quase a jeito de paródia, propor um novo horizonte ético, instaurando uma viragem no sistema de valores convocado segundo o qual toda a acção humana é julgada e responsabilizada face à realidade histórica, mesmo quando a referência subjacente é disfarçada ou surge sob evocações quase alegóricas.

    Cena do filme Saudades para Dona Genciana, adaptação do romance de Miguéis, realizado por Eduardo Geada e protagonizado por Virgilio Castelo e Rita Ribeiro.

    É desse modo, por exemplo, que muitas realidades belgas, no romance acima citado, lembram as portuguesas, ou o milagre da aparição virgem mãe de Cristo aos pastorinhos se realiza numa povoação chamada Meca, de um país que tem como capital Lisboa, mas onde os indivíduos que se movimentam para o “28 de Maio” e “fundam” o Estado Novo levam nomes enigmáticos ou são designados por iniciais, sobre as quais os exegetas se pronunciam interminavelmente, em O Milagre segundo Salomé.

    Numa edição posterior da obra já acima referida, Óscar Lopes reformula de modo curioso o horizonte crítico da recepção literária de Miguéis. Em boa parte, a reformulação deve-se ao desaparecimento da vigilância impendente sobre a dimensão ideológica e a referência política de todos os discursos, incluindo os culturais.

    Tendo acabado a censura, é possível apresentar o quadro da emergência e evolução do autor de Léah tendo em conta as coordenadas político sociais com as quais o seu discurso se articula, a partir do sindicalismo amplo de um órgão de comunicação social como A Batalha, em que pontificam vultos como Vitorino Nemésio e José Régio, e uma publicação eivada da mais ousada vontade de vanguardismo ideológico como a Seara Nova.

    Uma aventura inquietante, romance publicado em 1958.

    Não só é registada, agora, a sua crítica aos seareiros, pela “falta de conexão com qualquer movimento organizado de massas” que eles revelam, como é assinalado positivamente o seu afastamento, em 1931, “dos presencistas, com que também polemizou numa linha precursora do neo-realismo” e louvado o seu empenho social na “organização democrática de trabalhadores emigrados” nos EUA (cf. Saraiva e O.Lopes, 1996: 1027).

    Ao reavaliar, oportunamente, a sua obra, tendo em conta as publicações mais tardias, Óscar Lopes, nesta última edição da História de que foi co-autor (exclusivo responsável pela época em que se insere Miguéis, como nos informa a nota da página do registo do ISBN, patente na 17ª edição), considera O Milagre Segundo Salomé “uma simples sátira, à clef, das condições do colapso da 1ª República”, minimizando-o, quanto à preocupação ideológica e social por comparação com as suas restantes obras posteriores a Saudades para Dona Genciana.

    Ora, esta avaliação, do ponto de vista da história literária, não é consonante com a fortuna que algumas obras do autor de Páscoa Feliz conheceram recentemente. Efectivamente, pelo que se pode verificar nos comentários que em diversos sítios da rede aparecem sobre o autor e a sua obra, o interesse maior tem recaído, sobretudo, em O Milagre Segundo Salomé e, logo a seguir, em Saudades para Dona Genciana.

    Pelo que se percebe dos próprios comentários, essa fortuna recente deve-se, essencialmente, às adaptações que Mário Barroso e Eduardo Geada fizeram, respectivamente, das duas obras acima citadas. Diga-se, desde já, que o primeiro título, que podemos considerar a derradeira obra publicada pelo autor (há outras, mas são póstumas), tem sido o que maiores atenções têm merecido, dos leitores e espectadores que praticam crítica e análise dessas práticas expressivas ou artísticas, da parte dos quais têm surgido mesmo abordagens que equacionam a relação entre o literário e o cinematográfico bem como a proporia questão da adaptação.

    Para arrumar com algum simplismo uma questão que, a ser tratada, teria de ser desenvolvida, especificamente, noutro discurso, seguindo outro fio de interesses e atenções, pode dizer-se que a adaptação de Geada mereceu menos atenção (e, até, acolhimento) em grande parte porque os tempos eram outros, o olhar sobre o relacionamento interartístico era menos informado e, por isso, menos tolerante, razão pela qual o filme, ao qual não falta alguma grandeza e dignidade pela perturbação artística que convoca, acabou por ir sendo esquecido e, de algum modo, eclipsando o texto literário do qual pretendeu ser, entre outras coisas, uma leitura e uma resposta na continuidade cultural.

    Sobre a fortuna cultural que o cinema veio trazer ao último romance publicado por Miguéis, pode servir-nos de exemplo o resumo que Edimara Lisboa Aguiar faz para o trabalho que realizou sobre a adaptação feita por Mário Barroso:     

    O milagre segundo Salomé, publicado em 1975, foi adaptado ao cinema por Mário Barroso, tendo como protagonistas Ana Barroso e Nicolau Breyner.

     “O presente trabalho propõe a leitura da história a partir da literatura relida pelo cinema como questão relevante para se compreender o fascínio do espectador contemporâneo pelos filmes de época. Para isso, analisaremos a ficcionalização das aparições em Fátima por José Rodrigues Miguéis em seu romance O Milagre Segundo Salomée sua reordenação pela adaptação cinematográfica realizada por Mário Barroso” (2010: 305).

    Não só o romance é lembrado a partir do filme, que se apresenta como adaptação, como se entende a prática de adaptação como leitura, prática de crítica e comentário que, duas décadas antes, não era tão comum. O que, nas observações de alguns críticos do filme de Geada, eram reservas ao modo como a obra cinematográfica perdia o texto literário, as suas referências e a sua atmosfera, transforma-se, anos mais tarde, nas apreciações de como as diferenças são culturalmente significativas, pedindo-se ao filme que seja apenas a expressão conforme das suas possibilidades e das suas vontades de compreensão, independentemente da qualidade ser ou não reconhecida à obra actualizadora.

    É o que podemos verificar, por exemplo, nas afirmações de Diana Marlene Soares do Couto, feitas na sua dissertação de mestrado, apresentada à Universidade de Aveiro em 2009, sob o título O Milagre Segundo Salomé: (Des)Encontros entre Miguéis e Barroso:

    “Consideramos que o filme foi uma interpretação livre do romance – Mário Barroso di-lo explicitamente –. Quantas vezes, na análise do filme, não demos por nós a pensar que “esta não é a Salomé”, ou “esta atitude nunca poderia ser tomada por Gabriel”… Isto apenas significa que, como já tivemos oportunidade de referir, o romance nos envolveu mais, nos conquistou, nos despertou a imaginação, nos fez viajar, pela estrutura, pelas linhas, pelas palavras… vivemos revoltas militares e políticas, apaixonámo-nos pelas personagens, pelos espaços, pelos meios envolventes, pela intriga, pela acção… fomos cativados pela eloquência, pelo estilo, pelo pormenor, pelo sarcasmo, pela ironia de José Rodrigues Miguéis. /O filme, apesar de ter sido uma interpretação livre de Mário Barroso, permite que coloquemos rostos às personagens e houve casos em que isso foi feito com sucesso.

    Com efeito, actores como Nicolau Breyner, Paulo Pires, Ana Bandeira, Ricardo Pereira vieram enaltecer José Rodrigues Miguéis e a sua obra O Milagre Segundo Salomé. Mário Barroso diz-nos que não sabe por que enveredou por esse desenlace, que não consegue encontrar nenhuma explicação, queremos crer que a razão não tem importância, que basta ter gostado do livro e ter resolvido fazer reviver uma obra que permanecia esquecida, que pouca gente conhecia. Ler o livro e ver o filme, um cruzamento com um só objectivo: O Milagre Segundo Salomé”(2009: 174).

    Não será possível encontrar todos os motivos que terão levado Carlos Saboga, argumentista do filme, a estruturar o seu argumento ou guião literário[1], muito provavelmente em estrita colaboração com Mário Barroso, da forma que o fez. Restará saber se, do filme, existe um registo equivalente ao que, na nota anterior, designámos por guião cinematográfico, segundo a terminologia proposta pelos mestres de tal matéria. 

    Idealizado na década de 30, Miguéis apenas viria a concluir este romance, em dois volumes, na década de 70 do século XX:

    Que o realizador toma as suas liberdades em relação ao argumento, não há dúvida. Os primeiros planos do filme, que assumimos como sendo uma sequência pré-diegética, integrável ainda no discurso do genérico, colam-se à sequência proposta pelo pré-texto verbal, formando uma espécie de prolepse em relação ao incipit do argumento literário. Procurando evitar a distorção interpretativa por unilateralidade subjectivizante, preferimos apresentar a sequência segundo as palavras que Diana Couto usa na sua tese:

     “Logo depois do título, um plano de conjunto relâmpago, em plongée, de três pastorinhos num terreno ermo, em estado de veneração, de joelhos a benzerem-se e a olharem para cima. Associamos logo estas três personagens, um rapaz e duas raparigas, aos três pastorinhos de Fátima. O efeito é esmagador: imaginamos logo que quem está no plano superior é a Nossa Senhora. Ora, eis que nos aparece logo, de facto, em contre-plongée, uma figura feminina vestida de uma capa azul claro, cobrindo-lhe também a cabeça, que, por estar contra o sol, se torna quase imperceptível, não sendo, pois, possível delinear-lhe os traços do rosto. O Milagre aparece logo na abertura do filme, como se, em forma de preâmbulo, pretendesse dar já uma informação ao espectador, como se quisesse que esta imagem da Aparição não saísse mais da sua memória” (2009: 119).

    Só depois aparece o “agora” – “Lisboa, por volta de 1917” – anunciado nas primeiras linhas do argumento literário, embora o sistema audiovisual permita acrescentar o repicar do sino ao texto que não o assinala. “A procissão de Santa Maria Madalena pela paz e pela redenção das meretrizes” (Saboga, s/d: 2) é o que surge, no filme, como sinédoque, num rosto de mulher velada, num primeiro plano/enquadramento (P1) como primeiro plano da sequência (P2) que depois de desvela, em planos na linha de profundidade (P3) nos planos sequenciais posteriores[2], aparecendo, como imagem estatuária, em tamanho natural, enquadrada no conjunto de devotos, fiéis e acompanhantes.

    É claro que este começo, em que uma prolepse anuncia, quase em genérico, o acontecimento que será a grande peripécia a partir da qual a acção dramática se intensifica, arrasta consequências para a dimensão temática do filme: propõe a questão religiosa, toda a dimensão cultural, ideológica e simbólica que o milagre arrasta, para o centro dominante da acção posta em cena.

    Assim, o actuar das personagens, quer na dimensão pública do campo, da rua, do salão e doutros espaços de convívio, quer na privada, dos actos íntimos e das paixões, aparece francamente sobredeterminada pela dimensão da crença ou mesmo do arrebatamento fanático. É verdade que o título da obra, que o filme importa integralmente do livro, quase o único acto em que lhe é integralmente “fiel”, pressupunha uma tematização em que a dimensão da religiosidade se poderia entender como dominante.

    A posição retórica do título pressupõe esse predomínio macroestrutural, de facto, mas o romance de Miguéis, de algum modo, joga com o efeito resultante dessa pressuposição em oposição aos elementos da narrativa que, tendo nela uma presença semântica e ideológica muito poderosa, manifestam uma apenas uma fraca relação com o sagrado ou uma vaga dependência da crença.

    Léah integra um conjunto de contos e novelas, publicado em 1958.

    De facto, é bastante curioso que, de um modo geral, as personagens do romance de Miguéis, incluindo a própria protagonista, crismada (para não dizer “carismada”) Salomé, muito profanamente (para não dizer sacrilegamente), nunca, ou quase nunca, (Salomé tem alguns rebates de religiosidade, depois do incidente traumático que a transformou em origem do milagre, sem que disso se apercebesse), se manifestam crentes ou preocupados com o sagrado. É claro que o filme, ao dramatizar apenas uma parte da acção que o romance narra, para obter maior coesão e concentração da acção, tem de propor a sua “leitura” dessa dimensão ideológica da temática presente na narrativa literária.

    Por isso, a dimensão ritual da religião, destacada logo nas primeiras imagens, emerge como demonstração de que a crença existe muito mais pela exteriorização histriónica do que pela adesão profunda das personagens.

    No plano da organização da narrativa como sequencialidade de acções encadeadas, o filme respeita, em geral, a ordem cronológica da apresentação dos factos, em sucessividade, pela instância narradora. É claro que alguns aspectos iterativos do romance, que Miguéis apresenta como ocorrências da vivência de rotina do casal Zambujeira/Salomé, quer em privado quer em público,  nomeadamente nos convívios de que são anfitriões, de onde resulta uma das mais sumptuosas e mais bem sucedidas sequências do filme, bastante longa, contendo, ela própria várias cenas ou sequências menores, em que se apresenta uma amostra da melhor sociedade, numa recepção que Cerqueira (Zambujeira, no romance) dá, em grande parte para apresentar Salomé, sua amante inteiramente assumida.

    Concentrada a acção num reduto temporal muito menos amplo do que o que se patenteia no romance, o filme refaz a ordem segundo a qual alguns acontecimentos se desenrolam, a relação de Zambujeira com Salomé acaba por ficar menos desenvolvida, coexistindo as aproximações entre Gabriel e Salomé com a continuação da relação que a protagonista mantinha com Cerqueira, o que no romance não acontece.

    O enredo dramático adensa-se, deste modo, na obra cinematográfica, de tal modo que aí se inverte o “final feliz” presente no romance, onde se anuncia quase a idílica união interminável de Gabriel e Salomé. De facto, o desenlace em que o tenente Braz (Azaredo, no romance) abate Salomé, Gabriel e o casal amigo que se encontrava em casa dele, vem alterar completamente o tom da construção da intriga, eliminando a dimensão optimista da comédia popular (que tende a premiar uma aprendizagem positiva da vida) e introduzindo o discurso disfórico pela nota trágica a culminar o enredo melodramático.

    Assim, podemos dizer que o filme realiza duas operações macroestruturais, para introduzir o ritmo narrativo na sua dramaticidade e actualizar a avaliação ideológica na sua dimensão temática: a transformação do final feliz em patética pirueta trágica que os pregões finais dos ardinas sobre as aparições vêm reforçar; e a redução da temporalidade do romance, expandida desde a meninice de Zambujeira até à sua provecta idade, a um presente dramático em que ele, já sexagenário, (com o nome de Cerqueira), actua como amante da mulher que nunca conhecera como Dores e apenas reconhece como rameira que sobressai na “profissão” pela sua imensa beleza e uma “aura” de quase santidade.

    De algum modo, o guionista e o realizador optaram por retirar ao romance aquela dimensão que Cláudia Sousa Dias, num dos textos mais extensos e atentos que, recentemente, foram dedicados a esta obra de Miguéis, caracteriza do seguinte modo:

    “Na primeira parte, intitulada A Queda Ascensional, os Retrospectos descrevem os antecedentes das personagens principais que interagem durante a trama propriamente dita.
     Trata-se de um texto, de certa forma, atípico em relação ao resto do romance. O registo utilizado nesta secção da narrativa está recheado de juízos de valor, onde o narrador utiliza uma linguagem que apela ao sentimento a fazer lembrar os ultra-românticos, Victor Hugo, Camilo Castelo Branco ou Castilho, o que retira um pouco a qualidade literária ao texto. Contudo, logo após as primeiras cem páginas, o Autor abandona o tom persuasivo relativamente ao carácter de algumas personagens e adopta um estilo de prosa mais analítico e objectivo – sobretudo nos Entremezes de Gabriel Arcanjo – de onde sobressai a veia satírica e irónica do Autor, a tónica que irá dominar todo o romance.

    Assumem assim, os cineastas, a sua opção de actualizar o discurso narrativo retirando-lhe, na dimensão retórica, a ganga directamente argumentativa e, na poética, o pendor romanesco para ser biografia (acompanhando o evoluir da personagem ao longo da vida, como Dickens faz com o seu David Copperfield, por exemplo, instituindo o modelo, ainda que em tom de paródia às estruturas do melodrama), fazendo assim funcionar, com o máximo de intensidade, a dimensão dramática em torno da qual se estrutura a segunda parte da narrativa, aquela em que Zambujeira/Cerqueira é já sexagenário e a sua amante é já, plena e assumidamente, a esplendorosa Salomé.   

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa:

    Miguéis, José Rodrigues, 1968, Léah, Estúdios Cor, Lisboa

    Miguéis, José Rodrigues,2000/2002, O Milagre Segundo Salomé (I e II), Estampa, Lisboa

    Passiva:

    Aguiar, Edimara Lisboa, 2010, O milagre de 1917 na pena de Miguéis e na lente de Barroso

    Chion, Michel, 2001, Como se escribe un guión, Cátedra

    Couto, Diana Marlene Soares do, 2009, O Milagre Segundo Salomé: (Des)Encontros  entre Miguéis e Barroso

    Dias, Cláudia Sousa, 2008, O Milagre Segundo Salomé de José Rodrigues Miguéis

    Saraiva, A. J. e O. Lopes, s/d [6ª ed], História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Saraiva, A. J. e O. Lopes,1996, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Vanoye, Francis, 1996, Guiones modelo e modelos de guión, Piados, Barcelona


    [1] Mais recentemente, os estudiosos da matéria têm optado por utilizar, para designar este nível de desenvolvimento do texto pré-fílmico, o termo  continuidade dialogada que, como diz sinteticamente Vanoye, “oferece a distribuição da história em cenas e sequências, a descrição das acções e o texto completo dos diálogos” (1996: 14) –  segundo Chion, em França esta é já considerada como guião (scénario) (2001: 208), sendo também verdade que, mesmo na América, é com um modelo muito semelhante que os grandes realizadores trabalham; o guião/guião cinematográfico (shooting script, découpage técnique e, não esquecer, roteiro, em português do Brasil) é um passo, ou, atendendo à hesitação na designação, uma série de passos finais que vão das elaborações narrativo/ descritivo/ dramáticas das fases anteriores, apenas um pouco mais extensas, às expressões mais próximas, que se possam conceber, de um texto escrito reproduzindo, integralmente, o filme acabado. Porque, como lembra Vanoy, na “inversão dialéctica própria de  todas as relações entre modelo e objecto […] também o filme se converte em modelo de […] guiões”, de tal modo que nas análises de objectos fílmicos  se trabalha “não tanto sobre guiões como sobre modelos de guiões, que proporcionam as películas terminadas e as suas transcrições” (1996: 21). A planificação técnica (que seria o modelo ideal de guião – aquele que Robbe-Grillet emula nos seus ciné-romans) só se pode considerar satisfatoriamente acabada, se tudo correr bem, quando o filme estiver acabado e tiver sido incorporado, no texto, o último pormenor registado pela “anotadora”, dando conta das próprias hesitações do realizador e das suas decisões finais.

    [2] O termo plano, no léxico português relativo ao cinema, pela sua longa dependência da terminologia francesa, é ambíguo, como naquela língua (antes de se deixar marcar pelo léxico anglo-americano do cinema, tal como já vai acontecendo entre nós) aplicando-se a três ordens estruturais utilizadas pelo discurso cinematográfico: a sincrónica/paradigmática, em que, por exemplo, o grande plano pode alternar (ou evoluir, num processo que o fará jogar com a dimensão diacrónica) com o plano de conjunto, ou o plano médio, diferenças que relevam do enquadramento do que emerge no campo da imagem, jogando com o fora de campo, ou seja o que fica fora do enquadramento (que registámos como P1 — que equivale,  grosso modo, ao paradigma verbal de shot, graduando-se entre o close-up e o long shot na cinematografia anglo-americana); a diacrónica, em que o plano é parte constituinte da sequência (que registámos P2 — equivalente ao paradigma shot/take anglo americano); e a sincrónica, in præsentia, em que o primeiro plano alterna com o de fundo, ou com o intermédio, ou seja, naquela diferenciação que emerge da ilusão da profundidade de campo (que registámos como P3 — oscilação que os textos anglo-americanos americanos designam por deep/shallow focus).

  • Pornografia: o erotismo que ousa o júbilo infinito dos sentidos

    Pornografia: o erotismo que ousa o júbilo infinito dos sentidos


    Não seria justo que, numa abordagem às produções marginais, àquelas produções das margens da literatura ou dos géneros do escrito, esquecêssemos as narrativas chamadas por­nográficas.

    Da anedota popular e brejeira até ao “espaço que nele é, simultaneamente, uma mime­sis puramente auditiva, confiada à narrativa do historiador, e de uma praxis, de Sade (Sade, Fou­rier, Loyola, Roland Barthes, Paris, Seuil, 1971, p. 150), a por­nografia existe (por vezes, cons­tituindo um tema absorvente e exclusivo, por vezes um elemento predominante da obra, de forma eminente, fascinante) e, contu­do, é quase sempre rasurada, ab­sorvida por esquecimento, por um adiamento que é tanto mais irritante quanto ela se torna om­nipresente em quase todos os ho­rizontes do que se chama erotis­mo, literatura “séria”, abjeccionismo ou narrativa romanesca.

    Justine ou les malheurs de la vertu, do Marquês de Sade, foi publicado em 1791.

    Os discursos de reconhecimento, aberto e liberal, passa, nesses ca­sos, por uma obsessiva indicação de velados efemismo e litotes (ah, como a linguagem dos liber­tinos triunfa aí, impondo secre­tamente o seu estilo), por vezes freudiza a hermenêutica ao pon­to de encontrar homossexuais e perversos por todos os recantos do segredo, mas vela essas evi­dências por uma racionalidade casta, deixando à palavra incó­moda (a obscenidade, o insulto, a nomeação marcada do elemen­to sexual, escatológico), o outro lado da fronteira, o território dos bárbaros, o espaço onde se fala a língua proibida, onde se agitam os corpos do prazer pa­gão.

    Sem pretensões de muita origi­nalidade, sem abdicarmos da abertura ao que, aberrantemen­te, vem sendo velado ou esqueci­do, por outro lado, parece-nos oportuno lembrar aqui, especifi­camente, essa margem. É claro que, no lugar que assumimos, não pretendemos chamar a nós uma obra como a de Sade – se por razões óbvias da sua força, ele será sempre um modelo de re­ferência revigorante, também é certo que, pelo peso que assumiu na civilização ocidental o lugar de escritor entre os “libertinos” do século XVIII nunca lhe poderá ser recusado. Deixando-o lá, mais fácil nos é evocá-lo como topos ecuménico de todos os cri­mes da linguagem irradiando, não obstante a estranheza, no in­terior do território do mesmo.

    A filosofina na alcova, publicada clandestinamente em 1795, e como obra póstuma, mas o marquês de Sade apenas morreu em 1814.

    O que nos interessa aqui reve­lar, como literatura pornográfica marginal, é a menos clara manifestação de texto efabulado ten­do como principal tema a sexua­lidade, manifestando-a, obceca­damente, como prática perma­nente da acção da personagem. Não a ocorrência casual uma en­tre outras da vida, como, por exemplo, a cena “realista” num romance de costumes, mas como função cardinal de uma sequência em que a tónica desse fazer sexual é constante, constituindo uma espécie de macrofunção a que poderíamos chamar “variação infinita do orgasmo”.

    Desse modo, poderíamos con­siderar pornografia o discurso sobre o sexo carregado com a alegria expulsiva e explosiva da palavra certa, atendendo a que a palavra certa da pornografia é a que agride os costumes oficiali­zados da mesma forma que o desvelamento do órgão, ou do acto realizado, nomeado.

    Não vamos aqui explorar deti­damente qual a função de tal lite­ratura. Ela sempre existiu inde­pendentemente de qualquer ex­plicação e justificação. Adiante­mos, contudo, que, muito intuiti­vamente, o texto pornográfico nos parece cumprir a função de todos os mitos ontogenéticos (so­ciais e individuais): falar à nossa racionalidade, instituindo um dizível, sobre aquilo a que a razão e o logos (na sua vertente mais evidentemente epistémica) não acedem.

    De certo modo, todo o paradoxal e obsessivo da porno­grafia (e sobretudo a menos cul­turalizada – estamos mesmo a evocar a mais popular, a que an­da em edições de cordel, pelos vendedores de rua, em brochuras dactilografadas) está em que substitui um fazer do desejo, por um dizer ou um dizer o fazer do desejo que aparentemente nunca é realizado. Poderíamos mesmo conjecturar, recorrendo a exem­plos de escritores clássicos que foram metidos no mesmo saco genérico de libertinos, que a por­nografia começa onde o deva­neio ou mesmo o delírio de Sade substitui o erotismo realista de Laclos ou de Restif de La Bre­tonne.

    Encarado nessa óptica, o pornográfico de Sade aponta­-nos, ainda que pelo caminho do terror gótico, para o campo do fantástico. Por outro lado, os inquéritos sobre a pornografia re­velam-nos que ela funciona, so­bretudo, como estimulante indi­vidual, quase sempre como re­curso onânico da busca do pra­zer. Só raramente, por revelação do prazer, indirectamente, é estimulante da re­lação sexual tendo em conta o outro, a dimensão heterossexual (e restaria ainda descobrir o mais complicado campo da pornogra­fia homossexual – ocultação dentro do oculto).

    Ligações perigosas, romance epistolar de Pierre Choderlos de Laclos. A autoria apenas por iniciais pretendia revelar o autor apenas para “conhecidos”.

    Explorando os poucos saberes sobre tão des­cuidado tema, talvez não fosse demasiado ousado propor como hipótese de trabalho uma inda­gação da pornografia tendo co­mo orientação a ideia de que a pornografia, contrariamente a algumas opiniões apressadas, es­tá francamente do lado do fan­tástico (característica de quase tudo o que é marginal) e não de um possível realismo exacerbado ou ultra. Nada menos pornográ­fico do que um texto naturalista, por exemplo.

    Assim como o herói estereoti­pado da grande aventura fantástica é previsível quase até à cari­catura na realização das suas ac­ções de reposição da ordem, o protagonista pornográfico é evi­dente até à transparência no seu percurso do prazer: cada contac­to que inicia, cada conversa que tem, cada acto que pratica só po­de ter um sentido – o orgasmo. E o orgasmo não tem limites no herói da história pornográfica, tal como o super-homem das his­tórias de reparação não tem.

    O importante, para este aventu­reiro do prazer, é conseguir mais uma relação, conquistar mais um objecto do mundo da sensualida­de, inscrever mais um (ou uma) parceiro na sua lista de relações. Não se trata, neste caso, de um exercício de sedução, de manifes­tação do poder, de uma expan­são de um encanto narcisicamen­te posto a funcionar e sempre a pôr-se à prova.

    Esse aventureiro (ou aventureira) é típico da men­talidade libertina, aparece na narrativa dos escritores liberti­nos do século XVIII e tem como grande modelo um Casanova, um Valmont. O herói da porno­grafia só muito raramente é um sedutor no sentido próprio do termo. Movendo-se num cenário de devaneio, fantástico, para ele o mundo está sempre cheio de corpos passíveis cuja abordagem é tão simples como respirar.

    Por uma razão muito pouco elabora­da, o homem cai sempre num meio onde as mulheres estão cheias de cio, são acessíveis a to­do o tipo de solicitação e abrem­-se-lhe a todas as investidas. Contudo, devemos reconhecer que, um pouco mais verosimil­mente, muitas das aventuras se­xuais pornográficas, embora ma­nifestem um imaginário de pre­dominância masculino, de visão erótica normalmente assumida pelo homem, apresentam como protagonistas mulheres.

    O pró­prio Sade tem a sua grande per­sonagem problemática em Juliet­te. As razões para essa escolha são óbvias: não só os objectos se­xuais masculinos são muito mais acessíveis à aventura rápida e in­consequente que a série de feitos da pornografia exige, como a mulher-sujeito é capaz de uma fiada de triunfantes assaltos que na acção viril se tornaria inverosímil ou excessivamente fantasio­sa. Com a protagonista mulher afasta-se um fantasma do pavor masculino: a impotência da infinita repetição… ao mesmo tempo sempre desejada e sempre negada pelo saber sobre a realidade dos limites.

    Na história pornográfica, a re­lação amorosa é entendida como contacto do corpo, como pene­tração, como orgasmo, quer de modo directo quer alusivo ou simbólico, mas fazendo ressaltar a dimensão do escândalo em relação à moral vigente.  É claro que o primeiro procedimento é muito mais duradouro: Sade ainda é escândalo, mas o Roman de la Rose pode ser estudado hoje como uma qualquer história de amor alegórica.

    Ligações perigosas foi adaptado várias vezes ao cinema, com destaque para o filme realizado em 1988 por Stephen Frears e protagonizado por John Malkovich, Glenn Close e Michelle Pfeiffer.

    A pai­xão, se nela existe, é dos actos se­xuais, que se objectualizam até secundarizarem os parceiros. Daí, normalmente, o outro desmultiplicar-se infinitamente, quer pelo aparecimento da orgia em que a variação dos corpos se dá em si­multâneo, ou pelo menos in pre­sentia (o que permite actualizar um outro elemento fundamental do pornográfico: o olhar que es­preita – o do terceiro que vê), quer pelo percurso-rota, ao lon­go do qual o ou a protagonista vai conhecendo novos corpos de objectualização do desejo.

    A palavra ou desenho são o veículo ideal para a transmissão da fábula pornográfica. Com o cinema, pelo estatuto de realis­mo que normalmente neste assu­me o acto sexual, o aspecto fan­tástico ou maravilhoso da porno­grafia perde-se. Pelo menos no registo em que o pornográfico tem surgido, em regime de sé­rie B, a expressão da sexualidade como pornografia fica diminuída. Em compensação, a palavra, o desenho das histórias aos qua­dradinhos, permitem o desenro­lar da imaginação, a singularizaçãodo pormenor, a sugestão do mais extraordinário acto, que o cinema tem dificuldade em re­criar.

    Por outro lado, a experiência subjectiva que é o orgasmo, a forma de o sentir, a localização da zona erógena de origem, tudo isso exige uma aproximação uma ampliação e uma identificação, sem perda, ao mesmo tempo, do todo do cor­po, que o cinema tem dificuldade em conseguir. Tornando visíveis os corpos, o cinema cria a alteri­dade da vivência e, em simultâneo, a identificação do prazer por parte do espectador desapa­rece, entra-se no campo da es­coptofilia pura, na abdicação do corpo próprio e do devaneio pelo percurso da identificação, e assume-se a demarcação do olhar pe­la revelação de uma relação real, alheia, surpreendida pelo “buraco da fechadura”.

    grayscale photo of woman with her mouth wide open

    A literatura e a BD, pela perda do estatuto de presentificação do estar lá, ape­lam muito mais ao devaneio do leitor, à recriação dos corpos pe­la fantasia (por vezes a descrição dos corpos é tão ambígua que ca­be lá qualquer figura)e, no caso da BD, a uma hiperbolização das poses e das partes do corpo, de tal forma forte que a ligação ao plano do fantástico se torna a so­licitação maior – quando não é o desenvolvimento de uma paródia libertadora em torno do eros.

    Desse ponto de vista, a pornografia pode ser, no caso de alguma literatura e de al­guma BD, um convite extrema­mente libertador, o que o cinema pornográfico normalmente não é pelo seu pendor meramente es­coptófilo.

    Pela intensidade corpórea do erotismo pornográfico, a litera­tura aproxima-se, evidentemen­te, da produção grotesca, da li­nhagem ousada do abjeccionismo literário, do horizonte da piada obscena, da anedota gros­seira, de todos os processos de li­bertação pela palavra. O pala­vrão, a obscenidade, o uso dos termos próprios para designar os órgãos sexuais, o processo esca­tológico de referência ao corpo, aproximam muito a pornografia da festividade pagã e carnavales­ca de que nos fala Bakhtine a propósito de Rabelais, ou os his­toriadores da cultura e das men­talidades a propósito do Carna­val ou do “riso pascal”.

    O realis­mo que muitas vezes se louva em tais expressões é, convenhamo­-lo, bem carregado de uma fan­tasia delirante em direcção a uma utopia, à busca de um paraíso perdido: o da infância do corpo inocente e carregado de apelos eróticos ou, mais genericamente, a uma inocência da espécie, do lado da natureza, num primiti­vismo de todos os consentimen­tos.

    Não se segue daí que o escritor pornográfico seja vítima de uma ilusão inocente de retorno à vida primitiva. O que a pornografia equaciona muito bem, com uma exemplaridade que poucas ou­tras temáticas artísticas conse­guem, é a relação do animal que cada um de nós comporta com a cultura que o envolve.

    Se o silen­ciamento do animal, do primiti­vo é a prefiguração da morte, a melancolia e o acinzentar dos sentidos, a pornografia é a pro­posta da coloração da vida, do primitivo, do pulsional mais ime­diato. E as figuras do pensamen­to, os tropos de alongadas ima­gens que ela recria, não são as de um local idílico, mais ou menos amoenus, ou ajardinado e, simultaneamante, mais ou menos ameaçado pelo horrendo ou selvático, onde tudo se passaria segundo os princípios da “madre natureza”: são, sim, as de um júbilo dos sentidos, os de uma fruição feroz e egoísta, que tem a ver com o corpo e só com ele – onde a cul­tura aparece como fantasia em acréscimo ao corpo, recusando à sexualidade a finalidade procriativa, fazendo variar o acto num prodigioso exercício de negação da Natureza para melhor a afir­mar no plano do imaginário.

    Nota finais

    A História de O (de Pauline Rage – pseudónimo de um es­critor, ou de vários, de grande vulto na literatura francesa, su­põe-se…, que nunca quiseram desfazer a mascarada literária), desenhada pelo famoso autor italiano de BD Guido Crepax, chegou a ser editada entre nós…, mas a sua edição (ou o que dela resta) anda à venda pelas ruas, a preço de mercadoria sem público.

    Historia de O, por Guido Crepax, em edição da Marginália de 2006. Uma edição dos anos 70, pela Sérgio Guimarães tinha duas páginas censuradas.

    A quadrinização de Juliette, de Sade, apareceu agora em edi­ção de bolso, em França, deven­do-se a adaptação a Philippe Ca­vell e Francis Leroi.

    Apolline no Inferno, de Jean-Louis Vilier e Caprichos de Uma Noite, de Daniel Lebordais, Fragmentos Editora,

    respectiva­mente 1988 e 1987

    De momento, são estas as duas únicas obras pornográficas de ficção, relativamente actuais e com qualidade de escrita, apresentando-se como traduções de bom nível do texto francês, acessíveis no nosso mercado.

    Ao que parece, após uma oportunista inflação de obras “eróticas” com capas a condizer e avisos a confirmar uma pisca­dela de olho ao público adulto que comprava pornografia esti­mulante sob capa cultural de “erotismo” para apresentar por­nografia, onde na qual circulou Sade em edições pouco mais que selvagens, onde Apollinaire apa­receu traduzido em exemplares encerrados em embalagem de plástico, a moda deixou de pro­duzir lucro fácil.

    Os costumes não se abrandaram, ou melhor, a leitura da pornografia ou do “erotismo forte, para adultos” revelou agredir preconceitos muito mais profundos do que as simples proibições de tipo poli­cial. Essas obras, porque não re­sistiram num mercado livreiro normal, acabaram por ser reme­tidas para os alfarrabistas de rua, para os cordéis onde circu­lam já alguns “clássicos” dactilo­grafados e policopiados… textos terrivelmente estropiados e reve­lando mão-de-obra do mais bai­xo nível, de obras que fizeram moda em épocas de proibição, tais como Zaza Diabólica ou A Marca dos Avelares…

    Os dois livros que agora apre­sentamos, embora no melhor es­tilo pornográfico, procuram ir contra tal estado de coisas – ca­pas discretas, texto cuidado e um certo sentido da elegância, do “saber fazer” narrativo que dá encanto aos percursos demoníacos que apresentam.

    Apolline no Inferno, como te­ma fundamental, apresenta a busca desesperada de duas mu­lheres (mas não busca sentida, em algum momento, como de­gradante) dos prazeres da carne, num antro de jogos eróticos em que elas são as únicas parceiras lançadas para a satisfação dos desejos de um grupo de homens de aspecto ameaçador, revelando o encanto dos traços da estranhe­za social, das marcas do vício, da postura da brutalidade.

    Apolline no inferno foi editado em Portugal em 1988.

    Numa reviravolta que não ilu­de, as mulheres são permanente­mente nomeadas, mas os homens mantém o anonimato que faz de­les meros objectos de prazer… Pequeno truque com que se pre­tende ocultar a obsessão dos fan­tasmas masculinos, sob a apa­rência do prazer da mulher.

    Atendendo a que a heroína e principal incitadora é casada, te­mos o quadro da ruptura com os padrões fortemente evidenciada.

    Caprichos de Uma Noite, quan­to a nós, é uma história ainda mais sofisticada que a anterior.

    Além de apresentar todas as in­submissões que já apontámos no outro livro – a relação extra­-conjugal, sobretudo a da mu­lher, o sexo em grupo, a busca do prazer pela personagem femi­nina –, esta história revela ainda um outro factor de aliciação: o percurso da mulher numa noite de Paris e dos seus arredores, acompanhada à distância, pelo olhar fascinado do seu amante que actua como um espectador, mudando permanentemente de parceiros.

    O gosto com que está escrita a história, a qualidade que consegue imprimir à narra­ção de sequências normalmente encaradas de mau gosto, fazem deste livro uma obra muitíssimo agradável e de leitura nada cho­cante.

    O que ressoa sempre, no hori­zonte desta história, na dimen­são do percurso físico (onde a outra, Apolline no Inferno, era a obsessiva repetição do cenário do pôr em palco o sexo, numa boa aprendizagem de Sade), é a aventura da busca – há, efecti­vamente, qualquer coisa de Quê­te no deambular programado de Sylvie, pelas noites da cidade, pelos antros do prazer, pelas mo­radas da existência liberal e liber­tina.

    O que se pretende descobrir nesta viagem ao fim da noite pela estrada dos sentidos é a dimen­são suprema do amor do casal que acaba por ser alcançado pela heroína e pelo seu amante-comparsa.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora

  • Quem foi a mulher do último rei de Portugal? O Expresso não sabe

    Quem foi a mulher do último rei de Portugal? O Expresso não sabe


    Caro amigo leitor, veja se consegue responder a esta questão sem ter de ir procurar em livros ou na Internet: quem foi a mulher do último rei de Portugal?

    Se não sabe – ou até diz que nem sequer precisa de saber para continuar a sua vida –, tudo bem. Pode permanecer na ignorância sobre a sua própria História, pois esse é um direito que lhe assiste.

    Aliás, num país que se diz republicano, acredito que até seja um ponto de honra e orgulho dizer que não sabe, nem quer saber, nem lhe interessa conhecer o nome da mulher do último rei de Portugal.

    gold and blue crown

    No entanto, um povo culto e conhecedor da sua própria História é um povo exigente. E, dessa exigência, resulta depois uma melhor escolha dos governantes. Só que há portugueses com orgulho na sua ignorância e, mesmo assim, permitem-se serem exigentes com os dirigentes. Estes, que não são propriamente burros, sabem que os outros, ignorantes da sua História, podem depois ser facilmente comprados com falinhas mansas e subsídios. É, aliás, da História.

    Serviu esta introdução para dizer que há dias, na revista do Expresso (Edição 2591 de 24 de Junho de 2022), na secção de passatempos, nas palavras cruzadas, no 2 Horizontal, pedia-se que se indicasse, com seis letras, a “mulher do último rei de Portugal”.

    Assim que olhei para aquilo, pensei que era uma questão muito inteligente e lembro-me de ter congratulado, mentalmente, o autor – Marcos Cruz – por ter apresentado uma tão interessante questão.

    Repare-se que não estava a pedir o nome da “última rainha de Portugal”, embora se pudesse dizer que a mulher do rei é sempre uma rainha. Não. Se fosse a última rainha de Portugal, a questão poderia tornar-se aberta a subtilezas e interpretações jurídicas quanto ao que o autor das palavras cruzadas pedia. Seria a última rainha reinante, que foi D. Maria II, ou a mulher do último rei de Portugal?

    Palavras cruzadas do Expresso: para seis letras, quem foi a “mulher do último rei de Portugal”. A resposta certa (Amélia) estava, afinal, errada.

    Perguntar quem foi a mulher do último rei de Portugal é, assim, um pouco diferente do que perguntar quem foi a última rainha de Portugal, se bem que para uns puristas, uma e outra são sempre a mesma coisa: é mulher de rei? Então é rainha!

    Mas, é preciso ver que o último rei de Portugal, quando deixou de ser rei, ainda não era casado. Não tinha rainha. Porque, como todos bem sabemos, o último rei de Portugal foi… bem, caro leitor, quem foi mesmo o último rei de Portugal?

    A maioria das pessoas a quem coloco esta pergunta costuma dizer que o último rei de Portugal foi D. Carlos. Cada vez que me dizem isso, peço-lhes então que verifiquem os seus conhecimentos sobre a História que ambos partilhamos em comum pelo facto de termos escrito “República Portuguesa” no CC.

    Se D. Carlos foi assassinado no Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908, pelo Costa e Buíça, e se, nesse mesmo dia, mataram também o seu filho mais velho e herdeiro do Trono, Luís Filipe, então Portugal ficou sem rei entre Fevereiro de 1908 e 5 de Outubro de 1910, data da Implantação da República?

    Ora, claro que não, caro leitor. Claro que não porque, o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho mais novo, que ficou para a História de Portugal como D. Manuel II.

    Aclamado em Cortes, no mesmo edifício onde hoje é Assembleia da República, a 6 de Maio de 1908, seria deposto a 5 Outubro de 1910, tendo partido para o exílio, em Inglaterra, com a sua mãe, Amélia de Orleans.

    Estabelecido então, sem sombras para dúvidas, que o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho D. Manuel II, a questão levantada pelas palavras cruzadas do Expresso é, deveras, interessante.

    Senão vejamos: D. Manuel II, último rei de Portugal estava solteiro quando foi deposto a 5 de Outubro de 1910. A rainha era a rainha-mãe, Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.

    De facto, o último rei de Portugal casou. Mas o matrimónio só teve lugar em 1913, três anos depois de ter sido deposto do trono de Portugal, já quando estava a viver no exílio inglês. D. Manuel II casou a 4 de Setembro de 1913 com Augusta Vitória, princesa de Hohenzollern-Sigmaringen. Esta foi, de facto, tal como pedia as palavras cruzadas do Expresso, a “mulher do último rei de Portugal”.

    Daí a minha primeira reacção ter sido a de verificar ali uma maneira muito inteligente de colocar a questão, já que, dizer “última rainha de Portugal” seria algo que levantaria dúvidas. Haveria quem defendesse que se deveria considerar Augusta como rainha, visto ter casado com um rei – mesmo que ele não o fosse na prática –, e haveria aqueles que defenderiam que a última rainha de Portugal seria aquela que ocupava o cargo em 1910, antes da abolição da monarquia, o que, nesse caso, era D. Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de Manuel II.

    D. Manuel II foi destronado em 1910, com a implantação da República, e era então ainda solteiro.

    Mas a questão do Expresso era taxativa e sem espaço para dúvidas, uma vez que não nos embrenhava em questões jurídicas, apresentando-nos, sim, uma simples questão de cultura geral colocada de forma inteligente: quem fora a mulher de D. Manuel II, último rei de Portugal? E a resposta, única e inequívoca, é só uma: Augusta.

    Só que, caro leitor, com quantas letras se escreve a palavra Augusta? Com sete letras. Mas a resposta que o Expresso pedia… seis letras. É nessa altura que aquilo que eu considerava ser a coisa mais inteligente que tinha visto no Expresso nos últimos anos, acabou por se transformar na dúvida mais agonizante sobre a ignorância histórica de Portugal, impressa num jornal que vai comemorar 50 anos de vida em Janeiro próximo e que é responsável pela informação transmitida a muitos portugueses.

    E que forma opinião.

    Será que o Expresso ignorava que o último rei de Portugal fora D. Manuel II e julgava que o pai dele, D. Carlos, é que era o último rei? É que Amélia, mulher de D. Carlos, tem seis letras… Será que a resposta certa era Amélia e não Augusta?

    Esperei uma semana para confirmar a minha dúvida.

    Uma semana depois (Revista Expresso 2592 de 1 de Julho de 2022), lá vinha a solução da 2 Horizontal, seis letras: Amélia. Para o Expresso, a mulher do último rei de Portugal chamava-se Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.

    Esta ignorância da parte do Expresso é a mesma de muita gente em Portugal e que, infelizmente, ameaça contaminar as gerações futuras. Não vou entrar em clichés de afirmar que, quem não conhece a sua História está condenado a repeti-la, mas gosto sempre de avisar que George Orwell escreveu no seu 1984 que “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”. E o Expresso controla o presente. E se o Expresso nos diz que a resposta correcta à questão de quem foi a “mulher do último rei de Portugal” é Amélia, então o Expresso, ao controlar o passado, está a reescrever o futuro.

    É que esta questão da mulher do último rei de Portugal não é de somenos importância. Ao ignorar que D. Manuel II foi o último rei de Portugal e que casou, mas morreu sem deixar descendência, é o futuro que está em causa.

    O Expresso, ao ignorar isto, nunca vai conseguir informar os seus leitores que o último rei de Portugal morreu em 1932, há exactamente 90 anos – cumpridos a 2 de Julho –, três dias antes da tomada de posse de António de Oliveira Salazar como Ditador, a 5 de Julho de 1932.

    D. Carlos, penúltimo rei de Portugal, assassinado em 1908,e a sua mulher, D. Amélia de Orleães, durante uma visita à Madeira, em 1901.

    O Expresso não vai assim poder contar que, um mês depois, a 2 de Agosto de 1932, Salazar presidiu ao funeral do último rei de Portugal, quando o corpo de D. Manuel II veio de barco de Inglaterra e o caixão desfilou depois pelo Terreiro do Paço, no mesmo local onde pai e irmão foram assassinados 22 anos antes, e sepultado no Panteão dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora.

    Na verdade, a Monarquia não acabou a 5 de Outubro de 1910, mas sim quando Salazar fez o funeral ao último rei de Portugal, em 1932, sendo que a mulher do último rei de Portugal, Augusta Vitória, faleceu a 29 de Agosto de 1966. Sem descendência.

    O Expresso não vai conseguir ainda contar aos seus leitores que, por D. Manuel II não ter deixado filhos de Augusta, Salazar conseguiu manter o poder porque o país estava dividido entre monárquicos e republicanos.

    Já estava assim desde 1910, pelo que houvera a necessidade de um golpe militar a 28 de Maio de 1926; mas, em 1932, os monárquicos estavam divididos sobre quem deveria suceder a D. Manuel II. Era preciso encontrar um candidato dentro do País ou então ir buscar, ao exílio, na Áustria, os descendentes do rei D. Miguel.

    Mas este era de má memória, pois os descendentes representavam o rei banido do trono depois da derrota na Guerra Civil de 1832-34, contra o irmão D. Pedro IV, do qual D. Manuel II era o último representante real directo.

    D. Manuel II e a sua mulher Augusta Victoria de Hohenzollern no exílio. Nascida em 1890, no Império Alemão, casou em 1913 com o deposto rei português seu primo em segundo grau, Faleceu em 1966, na Alemanha.

    Para Salazar foi a oportunidade de ouro para dividir e reinar. Pediu aos partidários de uma solução interna que se mantivessem quietos, senão iria à Áustria buscar os descendentes do rei Absolutista, mais bem organizados. Disse depois a estes que estivessem quietos, senão iria encontrar uma solução interna. E disse aos republicanos que estivessem quietos, senão iria buscar não importa quem. E todos, “a bem da Nação”, ficaram quietos.

    Nos anos 50 do século passado, seguindo uma proposta do deputado Jorge Botelho Moniz, terminou a chamada Lei do Banimento e os descendentes de D. Miguel puderam regressar a Portugal. Entre eles, veio uma criança chamada D. Duarte, agora o putativo rei de Portugal. O Estado Novo apostou na ignorância dos Portugueses e começou a controlar o passado. A controlar o nosso futuro. Já ninguém falava numa solução interna.

    A 5 de Abril de 1967, o corpo de D. Miguel, após ter sido exumado na Áustria, regressou a Portugal e foi sepultado ao lado do corpo do irmão, D. Pedro IV. Pouco a pouco, o regime do Estado Novo começou a corrigir o resultado da Guerra Civil de 1832-1834, substituindo a memória de D. Manuel II, último rei descendente directo de D. Pedro IV e das ideias liberais, pelos descendentes de D. Miguel, absolutistas e conservadores. E, a 10 de Abril de 1972, já com Salazar morto e enterrado em campa rasa em Santa Comba Dão, o corpo de D. Pedro IV, foi trasladado do Mosteiro de São Vicente de Fora e enviado de barco para o Brasil, por ocasião dos 150 anos da Independência do País.

    D. Duarte Pio de Bragança não é descendente de D. Manuel II, que não teve filhos.

    O Expresso bem que poderia dizer que, em breve, quando o coração de D. Pedro IV, que está na Igreja da Lapa, no Porto, voar num avião da Força Aérea do Brasil, por ocasião dos 200 anos da Independência do País, aquele será o último vestígio físico em Portugal do antecessor do último rei de Portugal. Mas para isso seria preciso primeiro que o Expresso soubesse a História de Portugal.      

    P.S. A pessoa que assina as palavras cruzadas do expresso é “Marcos Cruz”. É do conhecimento público que este é o pseudónimo de Mercedes Balsemão, mulher de Francisco Pinto Balsemão, dono e fundador do Expresso e descendente de um filho bastardo de D. Pedro IV. Tal não significa que tenha sido ela a responsável pela questão que provocou esta crónica. Poderá ter sido outra pessoa que a substituiu. De qualquer modo, em última análise, cabe ao director do semanário fazer a devida correcção. A mulher do último rei de Portugal chamava-se Augusta e não Amélia. Amélia era a senhora sua mãe.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Autor, autenticidade e plágio

    Autor, autenticidade e plágio


    Quando Machado de Assis, no comentário crítico que fez a O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro, acusou este último romance de ser uma simples imitação de La Faute de l´Abbé Mouret, iniciou um processo  retórico de restrições nos códigos de leitura do romance criticado cujas consequências, do nosso ponto de vista, dificilmente poderão ser alteradas.

    Entre estas, a mais evidente é a que leva a associar quase sempre ao romance de Eça a questão do plágio. Contudo, não se trata de uma acusação evidente de plágio a que fez o mestre brasileiro. O processo, como veremos melhor, é insidioso e ambíguo. Em grande parte, podemos admiti-lo, os resultados da acusação foram os esperados por Machado de Assis. Contudo, a dimensão das consequências, na sua globalidade, talvez tivesse ultrapassado não só as expectativas do crítico como as dos leitores seus contemporâneos.

    Machado de Assis (1839-1908)

    De certo modo, o desenvolvimento da nossa argumentação será avaliar, fugindo o mais possível à simples apologética, o conjunto de problemas que o comentário  do escritor e crítico brasileiro levantou, bem como procurar perspectivar, do ponto de vista da teoria da literatura, a importância do conceito “plágio” no interior das abordagens científicas que buscam o conhecimento da literatura.   

    Parece-nos indiscutível que a acusação feita por Machado de Assis a Eça de Queirós, sendo literalmente a de “imitação”, foi, de imediato, lida por outros contemporâneos, detractores e apologistas, como “plágio”.

    Junto com a utilização do termo “imitação”, Machado de Assis introduz outra observação crítica restritiva – a da obediência à “escola”. Sendo a figura tutelar evocada a do chefe de escola, Zola, não é absurdo presumir que o complexo problema que Machado suscita com a sua crítica seja o da mimesis entendida como prática de obediência a um cânone, ou seja, as práticas artísticas segundo a maneira de um mestre que representa uma linhagem, podendo isso ser entendido como incapacidade criativa, ou impossibilidade de originalidade.

    Contudo, não nos parece que o escritor brasileiro estivesse a apelar para um princípio em que a originalidade tivesse de   vir a manifestar-se a partir do nada. Como matéria-prima para a reelaboração, na criação original, ele sugere a “tradição”, entendendo-a não como os ditames de uma escola, mas antes como as indicações difusas a abstrair da prática de mestres que teriam fundado os grandes valores nacionais, entre os quais os do engrandecimento da língua.

    A língua fica entendida, assim, como um reduto patriótico manifesto por alguns discursos literários modelares portadores de valores ideológicos “adequados” a qualidades que se harmonizam, segundo esse decorum, com qualquer coisa como uma alma ou espírito da pátria que se exprime na língua. Que essa língua não seja um sistema, mas, antes, os discursos de autores inseridos no movimento romântico apenas nos vêm mostrar como a acusação de plágio (dita “imitação”, insistimos) tem muito mais a ver com o modelo seguido do que com o facto de se ter seguido um modelo. É relevante, ainda, que Machado tenha necessidade de caracterizar o modelo “imitado”, mas prefira silenciar os traços discretos dos modelos que se deveriam seguir.

    Basicamente, parece-nos, o indiscutível formula-se, sobretudo, pelo não explícito, pelo aludido e difuso. A crença é  o grau máximo da ideologia que tem o fundamento no que se sabe sem formulação, sem explicitação. É nesse interstício de obscuridade que a “certeza estética” formula o seu cânone como um panteão de entidades que não se discutem, que emanam valores de fundação e sobre os quais assenta, inquestionável, a tradição.

    O que se evidencia, deste modo, é a problemática renovada de um questionamento milenário no interior da literatura: o da mimesis. Convocá-lo, de novo, para emitir apenas formulações ou reformulações no interior da teoria da literatura, pode ser interessante para observar o estado da ciência literária (essencialmente o conjunto ordenado disciplinarmente dos discursos sobre a literatura, utilizando uma metalinguagem teórica), mas talvez não adiantássemos muito relativamente ao mestre grego da Poética. Contudo, a observação dos elementos comparáveis de duas obras, uma das quais foi acusada de ser plágio da outra, coloca-nos no interior de uma problemática literária que nos parece ser extremamente produtiva.

    Defrontando-se duas poéticas no horizonte dessa acusação, podemos formular através dela e da polémica que gerou quais os horizontes que se abriram num primeiro estádio de teorização – o das argumentações das escolas nas formulações (e práticas) dos princípios genéricos que regeram as suas produções.

    Observar – no sentido em que fala Mignolo (1989:48) – é darmo-nos como tarefa perspectivar as nossas condutas (neste caso literárias) e as de outros seres humanos, como domínios de estudo, nomeadamente as reflexões que fazemos sobre a actividade literária, quer como escritores quer como leitores.

    É nesse sentido que nos parece importante e produtivo determo-nos na observação das práticas artísticas como práticas de relação no interior da série literária (entendida como relação de sequencialidade onde se manifestam relações de intertextualidade), bem como os contextos de outras séries (artísticas, culturais, científicas, políticas) com as quais os fenómenos em questão mantiveram relações interdiscursivas (por exemplo, o anticlericalismo, o discurso político, o discurso científico).

    Esse domínio, ainda que teoricamente bem delimitado, raramente é aprofundado relativamente a objectos concretos que emergem da prática literária. Os casos de reescrita, de imitação, de reformulação de um mestre, ainda que reconhecidos, são eufemisticamente evitados porque, pensamos nós, ao estabelecer-se a relação em profundidade diminui-se o valor de originalidade do autor que se diz ser “imitador”.

    Por nossa parte, julgamos que, indo francamente ao encontro de um caso de “plágio” várias vezes afirmado (e refutado ainda mais vezes), vamos tocar no cerne de uma prática que desde há muito se chama mimesis (a mimese aristotélica, neste caso)e que, inevitavelmente, se tem traduzido (e entendido, portanto) por imitação e por representação.

    Eça de Queirós (1845-1900)

    Esta dupla tradução (e compreensão) remete-nos para a factualidade fascinante do problema: a de que a feitura de um universo textual literário se realiza por operações de  representação (o erguer de um mundo ficcional – narrativo, lírico ou dramático), ou seja, de um objecto que, não sendo o mundo empírico, tem valor de mundo, apesar de tudo; e que, inevitavelmente, essa representação se faz segundo a obediência a processos de reconhecimento, aos códigos e modelos que permitem as relações do homem com o mundo, e dos homens entre si.

    Se posso dizer o mundo, de um modo que é possível transmitir a outro homem que mundo é esse de que falo, também é possível construir segundo processos semelhantes um mundo alternativo, porque as regras de construção para representar e simbolizar são, elas próprias, reconhecidas e transmitidas.

    Sendo assim, pode ler-se uma obra, sobretudo romanesca ou teatral (onde o nível da fábula seja dominante), como o espaço textual em que uma representação de mundo tem uma certa singularidade fenomenológica extra-verbal. Uma convicção forte, nesse sentido, pode argumentar que um romancista, por exemplo, cria um mundo reconhecível e estável no seu romance, de tal forma que toda e qualquer leitura o constituirá como fenómeno sempre idêntico ao de todas as outras leituras praticadas.

    Pensamos que isso é verdade, em grande parte, e que é por essa razão que dois leitores distintos podem discutir com coerência (e com proveito, na esfera dos valores antropológicos projectados) o comportamento de Amaro, julgando-o, e, na sequência dessa discussão, pôr em confronto esse juízo com o que se formula sobre Serge na leitura de La Faute. Contudo, o abuso de uma tal perspectiva pode ser empobrecedor da compreensão que nos deve merecer o modo como cada autor constrói o seu mundo-fenómeno.

    A semelhança do representado não deve apagar a singularidade do processo de representação. O plagiador, para uma perspectiva que apague o dizer pela enfatização do dito, seria aquele imitador cuja obra não seria uma autêntica representação (capaz de remeter para o mundo – mantendo-se na sua alteridade como possibilidade de uma realidade nova) mas sim uma imitação em que o que ficaria patente não seria o mundo mas o gesto imitador[1].

    Não seria autor (gerador de mundos representados) mas simulador (reprodutor de imitações). Para nos reportarmos aos termos da semiótica decorrente de Peirce, poderíamos dizer que tal crítica veria o escritor “autêntico” como criador de referentes unívocos emergentes dos significados da sua obra e o plagiador como um mero reprodutor de referentes alheios. Quase sempre, como se verá, as opiniões que vêem em Eça um autor fraco em “invenção” padecem desse tipo de reducionismo.

    O curioso, numa polémica de escolas ou de modelos autorais, é verificar através dela como o desenvolvimento literário se tem sempre realizado por confronto entre as regras e os modelos resultantes dessas regras. Um discípulo genial, diria Bloom (cf.1973:5), participa da “história poética”, na medida em que se relaciona com a sua figura tutelar por uma influência, no domínio da qual pratica uma má-leitura (misreading). O que nos colocaria perante a hipótese de o plagiador ser eventualmente o discípulo fiel, o que apenas lê bem, não “cria” a partir do erro ou da má leitura.  A esta dimensão estimulante de uma interpretação psicanalítica do processo histórico-literário, aqui fica, apenas, a sugestão.

    Dentro destes horizontes que postulamos, parece-nos interessante e pertinente ver qual a matéria imitada quando se percebe (numa leitura posterior) o plágio; qual o valor de tal conceito no interior da reflexão e da observação teóricas; e, essencialmente, dentro dessas valorizações (ou desvalorizações) assim formuladas, como se manifesta o processo da mimesis que, inevitavelmente, emerge persistentemente quando se aborda um processo de relação intraliterária tão intenso que se assume ser plágio.

    black framed eyeglasses on white book page

    É evidente, logo que a questão se coloca, que a entidade fundamentalmente posta em causa é a do autor. Ele é entendido quer como criador de mundos quer como proprietário de uma matéria verbal que representa esses mundos. A entidade autoral, contudo, põe-nos vários problemas teóricos e metodológicos.

    Por um lado, a nossa opção de comparação dos elementos textuais recomenda-nos que, para falarmos à vontade sobre a existência ou não de plágio, confrontemos tão minuciosamente quanto possível os textos que estão em causa. Só segundo essa análise, nível a nível, é possível dizer se há ou não aproximação de elementos textuais nas obras consideradas que nos permita falar de uma semelhança que, a não ser total eipsis verbis, pelo menos se aproxime quantitativamente dessa totalidade de semelhanças, elemento a elemento, ou inversamente, por não existir, nos permita refutar tal hipótese.

    Para efectuar essa análise temos de recorrer, forçosamente, a modelos teóricos de compreensão do texto literário e, nomedamente, de narratologia.

    Ora, acontece que as propostas teóricas formalmente mais seguras  de abordagem do texto narrativo que conhecemos, nomeadamente as de Genette (1972) e de M. Bal (1987), por imperativo de abordagem do texto afastam do centro das suas preocupações a questão do discurso. Entendemos por discurso, neste caso, a produção textual como acto retórico, histórica e socialmente inserido e enquadrado. A figura que imediatamente é anulada é a do autor, dado que, como Genette estabelece, o acto narrativo que o narratólogo (poeticista ou teórico do texto literário narrativo) estuda é o do narrador (cf. 1972:73).

    Se Genette, cautelosamente, considera que o estudioso e teórico da narrativa deve ter apenas em conta a narração na sua relação com a narrativa, encarando a produção autoral como um facto histórico com que a teoria da literatura não tem de se preocupar primordialmente, M. Bal inclui totalmente a enunciação narrativa no texto, considerando que seja qual for a voz que origina a narrativa ela se designa apenas por narrador dado que a referência ao autor arrasta de imediato ora a entidade histórica extra-literária, ora o risco de se confundir a inferência resultante da leitura com a “fonte” do significado do texto (cf. 1987:125:126).

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    O facto de assentarmos nos conceitos utilizados por estes autores a base da nossa metodologia para a comparação, por nos parecer que eles são quem nos fornece a melhor “gramática” do texto narrativo – a que resolve com maior simplicidade e rigor o maior número de problemas textuais que a narrativa literária nos coloca – arrasta-nos, inevitavelmente, para que também nós pratiquemos, com alguma má consciência, uma excessiva minimização da entidade autoral.

    Essa impressão de incompletude não se manifestaria se, no caso presente, a minimização do autor não se revelasse paradoxal e incómoda para a abordagem de quase todos os problemas que o plágio levanta. Com efeito, se alguém é acusado de plágio é Eça de Queirós e não o narrador textual de O Crime do Padre Amaro.

    Se alguém se revela leitor de Zola (e não leitor do narrador de Zola apenas) é Eça. Se existem três versões de O Crime não podemos atribuir tal facto a uma entidade textual, de “papel”, que se tivesse rebelado contra o autor histórico, demoniacamente roubando-lhe o texto para o reescrever nos universos textuais em que existe.

    Perante tais factos, não podemos deixar de ter em conta essa entidade, incómoda para uma abordagem formal do texto, mas fundamental para a compreensão do discurso, das suas estratégias retóricas e para compreensão do próprio texto como entidade histórica. Por isso, evidentemente, as abordagens que fazemos ao relacionamento dos textos de Eça e de Zola com os outros discurso da época e com as correntes filosóficas e as mentalidades do seu tempo têm em conta a actividade do autor como escritor.

    No entanto, mesmo reconhecendo tais factos, não é nossa intenção  reactivar o “fantasma” herdado da crítica oitocentista – fantasma esse que resulta, em grande parte, de uma teorização radical e aberrante da entidade autoral pela qual os naturalistas tanto se bateram – que surgia como guardião do sentido unívoco do texto, obviamente. Esse autor, misto de entidade histórico-biográfica e de autoridade enciclopédica, não nos faz falta no centro de nenhuma perspectiva segundo a qual queiramos abordar o texto ou o discurso literário com alguma segurança teórica.

    Quando muito, tal figura existencial e “pedagógica” completa, dentro de um saber especializado (filológico ou de crítica textual), o autor que inevitavelmente temos de postular na origem de um texto. Ou seja, para retomarmos os termos que Adam (1985) emprega na sua concepção que, embora de raiz bakhtiniana, deve bastante à formulação de Lintvelt (1981), o autor concreto é uma entidade do mundo capaz de, entre outras coisas que normalmente não sabemos, ter uma determinada experiência afectiva, intelectiva e cultural que directamente o leva a interessar-se pela literatura, a actuar, por hipótese, como transformador do horizonte de expectativas do leitor concreto (cf. Adam, 1985: 174).

    Eça é um caso que, quanto a esse aspecto, nos pode servir de exemplo, dado ser uma entidade histórico-cultural concreta que efectuou tal operação no universo específico da literatura e da cultura portuguesas, pelo menos. Não poderíamos postular a sua posição intencional no naturalismo, a subjacência de uma tese sobre a doutrina cristã e a natureza em O Crime, sem abordarmos a sua identidade histórica, politicamente empenhada.

    No entanto, a entidade autoral fundamental definida por Adam no mesmo local é a de autor abstracto. É ela que, de um modo geral, define a ideologia da obra (Adam, 1974:175). Contudo, é bom notar-se que se essa entidade resulta como momento final da actividade de escrita, ela depende também da construção feita pela leitura. Mas não podemos, ainda assim, cavar um fosso entre um autor concreto e historicamente determinado, e um leitor que escapasse, por ser uma entidade sobretudo discursiva ou mesmo textual, à actividade autoral concreta.

    Entre o autor compreendido como aquele que escreve e o “eu que apenas se manifesta nos seus livros”, como defende Proust em Contre Sainte-Beuve (cf. Adam, 1985:174), existe o autor-leitor que constrói a sua intencionalidade literária lendo outros e lendo-se a si; transformando e assimilando textos de outros e os seus próprios; persistindo num trabalho de escrita e de reescrita que é forçar o seu querer-dizer como trabalho de escrita-leitura-crítica-reescrita – fundando uma rescrita que é, no fundo, um escrever novo no exercício só aparentemente repetitivo de escrever de novo.

    Só desse modo podemos perspectivar a actividade que vai da génese de um texto (os planos, os esboços – em Zola – as versões – em Eça)  que não é conjectural mas documentada (o material genético de Zola e de Eça), ao texto final que diz de outro modo o já anteriormente dito.

    Emile Zola (1840-1902)

    Se concordamos na quase totalidade com a posição de Foucault, quando diz que “a função autor é […] característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade”[2], devemos notar que é a geração naturalista que dá a essa função um estatuto poderoso pelo menos na articulação argumentativa de uma ética profissional com os códigos de propriedade que os românticos defendiam.

    É ela que arranca a função à esfera mítica da criação espiritual, para a fazer coexistir com outras formas sociais de trabalho reconhecido, valorizável na sociedade capitalista como produto integrável no circuito das mercadorias – ou então como resultado de uma actividade procriativa, existindo como bem do mesmo modo que existe a prole. Quanto a este último aspecto é muito curioso o que Oliveira Martins diz de O Crime, considerando-o o único romance que Eça “trouxe no ventre” (cf. Fialho de Almeida, 1923:138). Por essas razões, embora pensemos que a função autor resulta parcialmente de uma mitificação, ou pelo menos de uma operação ideológica de fundamentos político-económicos desenvolvida na sociedade europeia a partir do romantismo, reconhecemos nela, também, uma realidade cultural, ética e psicológica.

    O romancista (ou qualquer outro escritor) empenha-se, de facto, dramática, emocional e cognitivamente, na produção da sua obra. Que isso não lhe dê direito de ser o guardião do seu sentido é perfeitamente aceitável, nos termos de qualquer crítica que tenha sido atenta aos argumentos do formalismo russo e do estruturalismo francês, pelo menos.

    Mas parece-nos que, apesar de tudo, o autor tem uma palavra importante a dizer sobre esse mesmo sentido. E isso, se é verdade para qualquer escritor, em qualquer época, mais verdadeiro se torna para uma geração como a naturalista, tão atenta à escrita como ofício, à circulação económica, cultural e retórica das suas produções.

    Enfatizamos essa dimensão da entidade autoral, tanto quanto isso nos é possível, num ponto que integramos dentro da questão da temática. Procuramos desenvolver aí a representação que os naturalistas faziam da entidade produtora do discurso, em paralelo com as concepções do mundo e as perspectivas ideológicas que os seus textos narrativos apresentam através das estruturas narrativas e segundo os processos de narração assumidos.

    Também na análise do nível da narração, a questão autoral surge de novo para aí tentarmos relacionar os dados do texto com a problemática da enunciação autoral. A atenção reduzida  que o nosso modelo de análise nos levou a dar às instâncias extra-textuais  conduziu-nos, quase sempre, à menção da entidade textual mais facilmente formalizável de narrador, mesmo quando o que estava em causa era o campo de cognição do autor – pelo menos de acordo com o que os cotextos das restantes produções dos autores em causa ou o contexto dos discursos da época nos deixavam perceber.

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    Entre um problema epistemológico de fundo que se nos colocava e a metodologia, que nos parece fundamental para estabelecer com o mínimo rigor os objectos-textos, optámos pela salvaguarda da última, em detrimento do primeiro. Registámos quando abordámos a narração, no entanto, a presença dos índices da entidade autoral que, provisoriamente, não tomámos em devida conta. Esbarramos, evidentemente, com a incómoda sobreposição que também Carlos Reis e Mª do Rosário Milheiro já tinham assinalado ao tratarem do material genético relativo a A Ilustre Casa de Ramires:           

    “Não se trata aqui de confundir o narrador extra-heterodiegético com o escritor Eça de Queirós, confusão que, no plano estrutural e semiodiscursivo seria inaceitável. Mas trata-se de sugerir que, no plano da criação literária propriamente dita – abarcando também o seu suporte expressivo, que é a elaboração estilística do discurso -, a esse nível, não pode deixar de estar presente o escritor Eça de Queirós, sujeito de uma escrita desenrolada no âmbito ontológico da realidade, mas potencialmente homóloga daquela outra escrita que, com o seu cortejo de hesitações, sacrifícios e artifícios, Gonçalo desenrola no domínio ontológico da ficção”. (Reis e Milheiro, 1989:111)

    Atendendo ao conjunto das razões acima apresentadas, tomamos a figura do autor tal como ela se constitui pelo próprio discurso autoral, quer no modo como se relaciona com a instância narrativa extra-heterodiegética  (o narrador, tal como ele emerge na semiótica de raiz estruturalista e, muito em   especial, na poética ou teoria narratológica de inspiração genettiana) quer na actividade paratextual que os próprios romances suscitam.

    Ou seja, atentamos muito especialmente no modo como o escritor ora se projecta no narrador ora o constrói como “voz”, a cautelosa distância, relacionando essa mesma enunciação com a das restantes vozes, ou com os pontos de vista variáveis que se manifestam na diegese – e procuramos ver como todo o trabalho autoral contextualmente colabora na construção do sentido, pela inserção  da dimensão scriptor ( o escritor como função, digamos) no espaço social, demarcando, aí, o lugar da sua obra, criticando outras obras, anunciando as suas a partir dos seus trabalhos preparatórios, fazendo saber os temas dos seus romances, respondendo a críticas e, muitas vezes, reescrevendo os seus próprios textos.

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    De facto, não temos podido desenvolver, por causa dos objectivos e  limites do nosso trabalho, uma abordagem que tenha em conta uma teoria da enunciação na narrativa (uma teoria da narração em sentido pleno) como base dominante, optámos por problematizar a entidade autoral todas as vezes que a questão se nos colocou como iniludível, em duas dimensões fundamentais: a da função autor, atendendo sobretudo à  teses de Foucault e de Bakhtine, e a da articulação dessa função com a actividade historicamente determinada do escritor.

    Tal abordagem revela-se quase sempre pertinente quando, ao observarmos os mecanismos textuais, os interrogamos na sua dimensão retórico-pragmática como componentes do discurso, ou seja, a prática social e historicamente determinada da língua, numa prática retórico-discursiva caracterizável.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Adam, Jean-Michel, 1984, Le Récit,PUF, Paris

    Adam, Jean-Michel,   1985, Le Texte Narratif, Nathan, Paris

    Almeida, Fialho de, 1882, ed. cons., Figuras de Destaque, Clássica, Lisboa, 1923

    Bal, Mieke, 1987, Teoría de la Narrativa,Cátedra, Madrid

    Bloom, Harold, 1973, The Anxiety of Influence, University Press, Oxford

    Deleuze, Gilles, 1969, Logique du Sens, ed. cons., UGE-10/18, Paris, 1973

    Foucault, Michel, 1969, Qu-est´ce qu-un Auteur? – ed. cons., O Que é um Autor?, Vega, Lisboa

    Genette, Gérard, 1972, Figures III, Seuil,  Paris 

    Lintvelt, Jaap, 1981, Essai de Typologie Narrative, Corti, Paris

    Mignolo, Walter, 1989, “Teorías Literárias o Teorias de la Literatura?” in Reyes, G.(org.) Teorias Literarias en la Actualidad, El Arquero, Madrid

    Reis, Carlos e, Mª do R. Milheiro,1989, A construção da narrativa Queirosiana.IN/CM, Lisboa


    [1] Deparamo-nos aqui, em nosso entender, com uma dualidade que, desde Platão, perturba e fascina a reflexão sobre a mimesis entendida como imitação-representação. Comentando a crítica platónica aos “maus” produtos da imitação, Gilles Deleuze apresenta deste modo a dualidade segundo o filósofo grego: “a cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro uma imagem sem semelhança. O catecismo, fortemente inspirado pelo platonismo, familiarizou-nos com essa noção: Deus fez o homem à sua imagem e semelhança mas, pelo pecado, o homem perdeu a semelhança, mantendo, no entanto, a imagem. Tornámo-nos simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na existência estética. A observação do catecismo tem a vantagem de colocar o acento no carácter demoníaco do simulacro” (1969: 352)  

    [2] “O que é um autor? », Boletim da Sociedade Francesa de Filosofia, 63º ano, n.º 3, julho-setembro de 1969, pp. 73-104. (Sociedade Filosófica Francesa, 22 de fevereiro de 1969; debate com M. de Gandillac, L. Goldmann, J. Lacan, J. d’Ormesson, J. Ullmo, J. Wahl.) Dits Ecrits Tomo I texto n°69

  • Ferreira de Castro

    Ferreira de Castro


    A posição de Ferreira de Castro (1898-1974), como escritor, tendeu sempre para uma afirmação de empenhamento político e/ou ideológico. Quer a problemática da situação social, quer a da convicção religiosa, impregnaram, de um modo evidente, os seus escritos, desde o primeiro momento.

    Por isso mesmo, ele inscreveu-se, ao longo da sua carreira, nos horizontes preceptivos do naturalismo, do neo-realismo e, nos momentos finais, nas tendências de um realismo didáctico-religioso, que marcou algumas produções europeias dos pós-guerras. Assim, duas ou três notas biográficas parecem-nos importantes, para entendermos um pouco melhor o escritor Ferreira de Castro.

    O enquadramento geográfico de origem é, no presente caso, um dos pontos a evidenciar em tais notas. Deve registar-se, sobre essa matéria, que o autor ora referido nasceu numa aldeia, então “remota e primitiva”, aonde nem mesmo o comboio chegava, para já não falar da escassez e primitivismo das estradas. Trata-se do povoado de Salgueiros, freguesia de Ossela, conselho de Oliveira de Azeméis, distrito de Aveiro.

    Ferreira de Castro

    Segundo o seu mais aturado estudioso, Jaime Brasil, essa origem determinará, em grande parte, o homem e o escritor, pois em tão humilde reduto, mal localizável no mapa, ainda hoje, habitava a família de Ferreira de Castro, ignota e recatada como o local de seu afinco. Modesta foi, na mesma tradição, a infância e a formação de José Maria Ferreira de Castro.

    É em relação a esse meio que ele consegue destacar-se primeiro. O suficiente para melhor o representar, sem, contudo, se distanciar a ponto de se afastar dele: numa época em que a Instrução Primária tinha dois graus, só ele e o filho do professor da escola, então, se candidataram ao segundo. É verdade que o realizou com sucesso, mas também é certo que as posses da família nunca lhe permitiram ir mais além.

    Adquiridas as aptidões básicas para ser capaz de se exprimir, com mais destreza do que os seus conterrâneos, adquirindo a capacidade da escrita desenvolta a que se entrega desde os primeiros momentos da adolescência, parte de Ossela antes de ter completado os 13 anos de idade, rumo ao Brasil, em 1911.

    Aí, entre os 14 e os 16 anos, dedica-se a uma precoce e invulgar actividade de escrita, que vai enviando para pequenos jornais e revistas de diversos estados do país sul-americano, enquanto trabalha como funcionário de um armazém, num seringal amazónico.

    Não menos surpreendente é que tenha escrito o seu primeiro romance com 16 anos de idade, acabando por publicá-lo no ano em que completou 18 anos. Vale a pena enumerar as suas obras mais precoces, que publica a um ritmo quase frenético, ao mesmo tempo que exerce a profissão de jornalista, quer no Brasil, até 1919, quer em Portugal, dessa data até 1927:

    Primeira obra de Ferreira de Castro, publicada quando contava apenas 18 anos.

    Criminoso por Ambição (1916), Alma Lusitana (1916), Rugas Sociais (1917-18), Mas… (1921), Carne Faminta (1922), O Êxito Fácil (1923), Sangue Negro (1923), A Boca da Esfinge (1924), A Metamorfose (1924), A Morte Redimida (1925), Sendas de Lirismo e de Amor (1925) A Epopeia do Trabalho (1926), A Peregrina do Mundo Novo (1926), O Drama da Sombra (1926), A Casa dos Móveis Dourados (1926), O Voo nas Trevas (1927).

    Um tal ritmo de actividade de escrita, feita, sobretudo a jornalística, para sobreviver e actuar, enquanto cidadão, no mundo, parece ser uma marca muito própria do escritor português, propondo um projecto verdadeiramente caro a certas facções do modernismo literário europeu, segundo as quais o acto poético-literário se apresentaria como fundamentalmente um impulso vital: mais do que pelo que representa, segundo um tal ponto de vista, o escritor intervém política, ideológica e socialmente pela actuação no mundo como escritor.

    Assim, não seria a vida e a existência social que explicariam a obra, como queria um certo biografismo tradicional, mais conformista, mas seria, antes, a obra, o fazer da obra, a luta pela obra, que ajudaria a explicar o homem. Como Miriam Cendrars diria de seu pai, Blaise Cendrars (não por acaso entusiasta tradutor de A Selva, de Ferreira de Castro) poderíamos nós dizer do autor de Emigrantes: “se o seu material era a vida, a vida do homem […] era a escrita” (1996: 82).

    Mas não é só pelo que demonstra da sua precoce e quase vital capacidade de produção que o corpus romanesco acima apresentado é significativo. Também o é por ter sido totalmente abandonado pelo autor que, logo no ano seguinte ao do último romance acima indicado, em 1928, publica a primeira das obras que considerará verdadeira e infinitamente suas: Emigrantes.          

    É importante reiterar o que dissemos logo no início desta breve apresentação. A posição de Ferreira de Castro, como escritor, tendeu sempre para uma afirmação de empenhamento político e/ou ideológico. Quer a problemática da situação social, quer a da convicção religiosa, impregnaram, de um modo evidente, os seus escritos, desde o primeiro momento. Por isso mesmo, ele inscreveu-se, ao longo da sua carreira, nos horizontes preceptivos do naturalismo, do neo-realismo e, nos momentos finais, nas tendências de um realismo didáctico-religioso, que marcou algumas produções europeias dos pós-guerras.

    No fundo, trata-se de defender, no plano do romanesco, a propagação dos “valores universais e abstractos da humanidade, liberdade, justiça e humanitarismo” (Benjamin, 2006: 332; cf. tb. Benjamim, 2006:332-333). O romancista português mantém, em muitos dos seus romances, por via de uma história que desenvolve como o relatório de uma experiência, a sua profunda aprendizagem naturalista, embora se afaste, em certos casos, de alguns dos traços estilísticos mais evidentes da “escola de Zola” como, por exemplo, a sobrevalorização dos traços de carácter, ou a representação exaustiva dos estigmas fisiológicos, juntamente com a pormenorização intensa dos traços fisionómicos.

    Primeiro romance de sucesso de Ferreira de Castro, Emigrantes foi publicado em 1928.

    No entanto, mantém com ela marcas do reconhecimento, nomeadamente no apuro quase pictórico das descrições dos espaços, que, por assim dizer, caracterizaram os primeiros romances da segunda fase, nomeadamente aqueles que o celebrizaram como grande ædo da emigração, em harmonia com os contornos da acção e com os traços físicos e anímicos dos caracteres humanos (cf. cjfjorge, 2001).

    Pode-se deduzir, tendo em atenção o que sabemos do êxito e aceitação variável que teve a obra de Ferreira de Castro na nossa cultura, que tocamos um ponto fundamental para a compreensão da produção do autor. Para desenvolvermos as nossas considerações, não podemos deixar de abordar, ainda que brevemente, o modo como ele foi enquadrado, a partir do naturalismo, no panorama da nossa história literária. É evidente que, a opinião mais importante a que devemos dar atenção, quando se trata de perspectivar Ferreira de Castro na nossa história literária, no universo cultural em que a sua obra se moveu, é a de Óscar Lopes.

    Segundo ele, a obra de Ferreira de Castro, logo a partir do seu primeiro romance consagrado, Emigrantes, obteve uma ampla audiência (cf. in Saraiva e O. Lopes, s/d -17ª edição- :1025). Nas suas palavras, “Ferreira de Castro foi um dos mais populares e traduzidos escritores portugueses, o que se deve ao facto de os dois romances que mais o consagraram [Emigrantes e A Selva] ressumarem, apesar de todas as limitações de escrita, a sua própria dura experiência, mal conhecida, de emigração num seringal da floresta amazónica” (pp.1025-1026).

    Para tornarmos mais clara a perspectiva que queremos aqui defender, resumidamente, devemos comentar as palavras que citámos, de Óscar Lopes. Notemos, desde já, simplificando muito, que, se ele admira o valor documental de experiência humana do emigrante trabalhador braçal, logo restringe o valor pleno da obra pelas “limitações da escrita”.

    Por outro lado, acentua, com a devida simpatia, a aceitação popular que os romances tiveram por parte dos leitores “comuns”. É importante registar estes factos porque o crítico e historiador literário, se é parco nos encómios, chegando mesmo a ser restritivo na valorização, não deixa de manifestar simpatias e considerações positivas quando afirma que a obra do romancista “contém algumas das situações mais representativas do novo realismo social” (in Saraiva e O. Lopes, s/d-17ª edição: 1026). Cremos ter apresentado aqui, muito resumidamente, os dados e as conjecturas básicas para o breve enquadramento histórico-literário que pretendemos fazer.

    Como primeiro ponto a destacar, surge-nos o sucesso das obras de Ferreira de Castro junto de um público de leitores fiéis.

    Como segundo ponto a ter em conta, devemos sublinhar o facto de as obras de Ferreira de Castro terem deixado de ser integradas nos grupos ou escolas literárias do seu tempo, nomeadamente o modernismo e o neo-realismo; deixaram, assim, de ser lidas num sentido forte do termo, que inclui a valorização canónica.

    Como terceiro ponto, devemos ainda acrescentar que os seus textos, de uma maneira geral, deixaram de estar presentes nas antologias – quer entre os modelos de escrita do secundário, quer nos académicos, nas listas de obras para análise do ensino superior. Tudo se passa como se a produção do romancista tivesse mantido uma presença subterrânea relativamente aos valores do poético (a relação com as outras obras reconhecidas como artísticas pelos próprios escritores) e do literário (as qualificações necessárias para estar presente, como exemplar, nos elencos das escolas e universidades).

    Escultura em homenagem a Ferreira de Castro em Oliveira de Azeméis, inaugurada em 1966, para comemorar os 50 anos de percurso literário.

    Se admitirmos que um cânon literário é “uma lista ou elenco de obras consideradas valiosas, dignas de serem estudadas e comentadas por essa mesma razão” (Sullà,1998: 11), poderíamos admitir que, entre os valores de leitura e os de estudo e comentário se processou um divórcio no que diz respeito aos romances de Ferreira de Castro. Usando os conceitos de legível e escritível, que Barthes propõe para distinguir, grosso modo, o que separa o clássico, como objecto consumível, não problemático, do poético, que, pelo efeito estético, convida o leitor a não ser apenas um consumidor, mas a recriar ou a problematizar (cf. 1970: 10), podemos dizer que, segundo essa bipartição, Ferreira de Castro entrou no cânon da legibilidade, tendo sido proscrito do da escritibilidade.

    Enquanto elemento da legibilidade, ele tornou-se, como o provam as edições e o número de exemplares vendidos, uma espécie de campeão do cânon clássico; como proscrito da poeticidade, tornou-se um esquecido ou um desvalorizado.

    A perda das qualificações necessárias para estar presente, como exemplar, nos elencos das escolas e universidades, como acima evocámos, provém, talvez, do facto de ele ser um clássico deslocado, de ser demasiado legível no momento em que escrevia, não sendo possível ao reconhecimento escolar e académico enquadrá-lo na cultura do seu tempo, quer o escopo fosse o do modernismo, quer fosse o da postura ideológica no debate do seu tempo. De certo modo, é contra a legitimidade destes factos culturais que o nosso texto procurará argumentar.

    Ora, como no campo da cultura em geral, e da literatura em particular, a legitimidade é estabelecida exactamente pelas operações de canonização, a nossa argumentação não pode ser, evidentemente, dirigida contra os critérios de tal processo de reconhecimento.

    Procuraremos, antes, mostrar que talvez a razão de se terem excluído os romances de Ferreira de Castro dos cânones da poeticidade se deva a leituras equívocas. Ou por outra, dado o espaço parco de que dispomos, procuraremos lançar a dúvida sobre alguns passos do processo que levaram à exclusão de F. C. dos elencos que merecem ser estudados e comentados. Procuraremos, assim, instalar uma suspeita: a de se terem avaliado mal alguns aspectos da sua obra, no processo de legitimar a sua exclusão.

    Uma das razões pelas quais a obra do autor de Emigrantes se tornou muito popular foi a da sua acessibilidade aos leitores. Tal acessibilidade pode ser entendida, sem com isso se estar a raciocinar mal ou apressadamente, como uma excessiva obediência aos códigos do género, aos processos, já gramaticalizados, que fazem dum romance um mecanismo de legibilidade simplificada.

    Uma rápida síntese desses mesmo códigos, e dos que se lhes opõem, pode revelar-nos os dados básicos pelos quais se procedeu a uma depreciação poético-literária do romancista que aqui analisamos. Em primeiro lugar, devemos ter em conta que todo o modernismo português, incluindo o neo-realismo que, nesse ponto, se mantém aliado do próprio presencismo, procura valorizar aquilo que Óscar Lopes, na obra citada, chama os “impulsos impremeditados”(p. 1025), defendendo o “psicologismo” contra os “processos de reportagem”.

    Interior do Museu Ferreira de Castro, em Sintra.

    Simultaneamente, outros procedimentos que ganham valor poético são os da valorização do “mostrar”, pelo apagamento do “contar” (o narrador omnisciente deveria, segundo esse código modernista, desaparecer, ou reduzir-se ao máximo como “voz”); o da proscrição das axiologias (contra as teses asseguradas e validadas pela voz narrativa épica) em favor de uma ausência de valores seguros por uma voz de valor imperativo autoral – mesmo o neo-realismo, para defender as suas teses sociais, preferirá o processo de fornecer os dados da acção sem comentário do narrador, ou seja, apresentando os factos através de uma focalização diegética comprometida política e ideologicamente, mas suspendendo o juízo autoral.   

    Julgamos que os elementos e processos condenados pela crítica contemporânea de Ferreira de Castro se podem resumir aos que caracterizavam o romance clássico, ou seja, o romance naturalista que, tendo ele próprio constituído o seu cânone, se preparava para ser desvalorizado como previsível, datado, e legível pela crítica modernista ou modernizante.

    Tal legibilidade que, junto com o facto de abordar temáticas de dramatismo popular (que lhe reforçavam a legibilidade e, por outro lado, os vínculos com o naturalismo da tradição zoliana – que, como se sabe, era atenta aos dramas populares da “patologia social”), liga Ferreira de Castro ao naturalismo (como o próprio Óscar Lopes o reconhece – cf. 1986: 40-41), revela-se uma “facilidade de leitura” que reforça, pelo facto de Ferreira de Castro também não ter abdicado do excesso de “voz” épica (comentadora e judicativa), a suspeita que sobre ele recai por parte da crítica neo-realista.

    Publicado em 1930, A selva, com contornos auto-biográficos, é uma das obras de Ferreira de Castro mais aclamadas pela crítica.

    Dado que a descrição (pelo que manifesta de um exercício voluntariamente “autoral”, de léxico e sintaxe “culta”) e o seu funcionamento, segundo determinados moldes, é um dos processos mais comummente atribuídos o naturalismo, sendo um dos sinais a causar a “datação” das obras que o usam, é esse mesmo processo que iremos observar nos primeiros romances da segunda fase de Ferreira de Castro, segundo os propósitos já acima expostos.

    Devemos ter em conta, no entanto, numa conceptualização que iremos afeiçoando à medida da nossa argumentação, o que, na descrição, leva à construção dos efeitos de lugares e de espaços.  

    Começando pelas primeiras linhas do primeiro romance “reconhecido” pelo autor, Emigrantes, vejamos um exemplo que, relacionado com os princípios naturalistas e modernistas, nos pode ajudar a reavaliar a obra de Ferreira de Castro.

    As primeiras palavras do romance são as de uma descrição. Depois de apresentar uma ave, no seu esvoaçar, a descrição, motivada por esse movimento, desenvolve-se pela apresentação do pinhal e, seguidamente, da paisagem em que este se enquadrava. Só depois a descrição volta ao animal, revelando que este estava a fazer o ninho. A voz do narrador, que se presume ser a que descreve, assume a posição épica clássica na construção da ekphrasis documental.

    Mas o olhar que ele usa é o da personagem que, pelo que nos é revelado mais tarde, se desenvolve como protagonista. É essa personagem que nos é descrita exactamente na posição de observador do trabalho do pássaro. Descansando, à sombra de um pinheiro, vendo o trabalho da ave e toda a paisagem onde a actividade se inscreve, a personagem começa por ser apresentada através da sua recordação. A liberdade do esvoaçar da pega leva-o a evocar os seus tempos de menino, durante os quais se dedicava a apanhar ovos nos ninhos. Só regressa ao presente quando se detém a “contemplar a sua casita”.

    Segue-se a descrição da casa, da horta, dos campos que se estendiam “para lá do muro”. São estes que, fazendo-lhe surgir o desejo de os ter, introduzem o tema da emigração: era preciso emigrar para arranjar dinheiro para os comprar.

    Para abordarmos, desde já, o centro da questão sobre a qual queremos argumentar, reparemos que, se a voz que descreve é, indiscutivelmente, a do narrador “épico”, segundo o modelo naturalista que pretendia dar o enquadramento das personagens, o uso que aqui é feito de uma tão prolongada descrição (são quase quatro páginas), remete-nos para o “interior” da personagem. Se atentarmos bem no processo, podemos verificar que o mecanismo revelado neste passo não é o dos primeiros ensaios do “romance «dramatizado»” de que fala Dorrit Cohn,[1] mas sim o do “monólogo narrativizado” do romance realista com os seus processos bem desenvolvidos que permite apresentar a “fluidez íntima” da sua personagem “perante a experiência fugitiva” (cf. Cohn, 1981:140-41).

    Não se trata da narrativa auto-diegética, do percurso de auto-análise, como José Régio, entre outros, se propôs reactivar para construir os seus romances em torno de uma consciência. Contudo, este procedimento, se observado dentro dos códigos da época, não se revela menos moderno e produtivo. Sobretudo se atendermos ao modo privilegiado como é usado e a funcionalidade que tem, ao longo da narrativa, tal processo de F. de  C. parece-nos bem mais próximo dos usos modernistas que Virginia Woolf  lhe dá (em Mrs Dalloway, por exemplo) do que dos escritores de construções romanescas mais tradicionais.

    Publicado em dois volumes, A volta ao mundo teve a primeira edição em 1940 e 1941.

    Só por uma questão episódica de moda muito momentânea, que leva a enfatizar alguns dos processos que Proust usou, nomeadamente o  da narração autodiegética, se pode pretender ver um modernismo assente no romance de consciência (“dentro de uma cabeça”, como João Gaspar Simões emblematizou num subtítulo que acabou por tornar evidente o processo modernista) contra um tradicionalismo assente na modalidade épica da enunciação.

    De facto, é historicamente muito mais moderno o processo usado por Ferreira de Castro, que só se começa a desenhar, com clareza, num momento desenvolvido do realismo do século XIX, com Flaubert, sobretudo, mas também, intensamente, com os momentos mais ousados do naturalismo. Ferreira de Castro utilizará o processo, de modo quase exaustivo, sobretudo em duas narrativas romanescas: Tempestade (1940) e A Curva na Estrada (1950).

    Em ambas, o processo narrativo visa, sobretudo, obter, de modo hiperbolicamente intenso, o funcionamento da consciência dos seus protagonistas: o primeiro, pela exposição do processo de paixão amorosa arrebatada pelo ciúme, o segundo, pelo confronto de uma personagem face às ideologias políticas, dentro das quais se realiza o seu processo de fundação da personalidade enquanto militante político das esquerdas socialistas, na Espanha pré-franquista.

    Em ambos os casos, impulsos vitais e fantasmas superegóicos activam, como um turbilhão matricial, a formação dos traços inconscientes segundo os quais o fluir das consciências se vai manifestado nas suas rupturas trágicas, no dramatismo fantasiado das suas obsessões, que um narrador omnisciente, ou em focalização zero, vai apresentando. 

    Ferreira de Castro aproxima-se, quanto a este ponto, de Thomas Mann que, no século XX, segundo Cohn, é quem leva até ao ponto limite de todas as possibilidades a narração heterodiegética – de um narrador extradiegético, evidentemente.

    Por esse processo, manifesta-se a “superioridade do narrador”, quando comparado com uma personagem ou com um narrador autodiegético (que, para este efeito, é o mesmo), “relativamente ao conhecimento da vida interior da personagem e às capacidades requeridas para a descrever e avaliar” (1981:45).

    Na modalidade mais comum no século XIX, podemos falar, seguindo Cohn, de uma psico-narrativa, sempre que um narrador apresenta a vida interior de uma personagem de modo mais profundo e completo do que essa mesma personagem seria capaz de fazer, quer mantendo-se claramente dissociado da mente que “lê” ou “disseca”, quer apagando-se completamente, deixando-se absorver por ela.

    O modo de sustentar a tese, de desenvolver uma máxima ou enunciado de valor gnómico e hortativo, numa formulação ficcional, no caso de algumas das suas narrativas, deve ser encarado em duas vertentes: o da motivação de quem assim o formula, e o da sua validade no plano poético e noético.

    Instituto supremo, de 1968, foi o último romance de Ferreira de Castro.

    Esta dupla validação, se é importante na produção artística em geral, assume particular importância quando a obra realizada se ostenta como portadora de uma tese ou, como é mais frequente, de várias teses. Porque, de facto, se qualquer enunciado artístico não consegue separar a sua formulação estética, de apelo aos sentidos, de uma formulação que a torna objecto inteligível, da ordem do conhecimento, costuma ser apanágio da expressão artística, em geral, produzir a sua própria instância de verdade na fantasia, constituindo esta como instância suprema.

    Contudo, na formulação poética de tese, a dimensão gnómica surge em paridade com a estética. Por vezes, o seu peso é tal, sobretudo quando se trata de um assunto de “actualidade”, que se sobrepõe mesmo à valorização artística. Estão, nesse caso, narrativas de Ferreira de Castro que se constroem quase como documentários, ou relatos de situações sociopolíticas bem determinadas, dentro de reconhecíveis formulações ideológicas, das quais representam destacados exemplos A Lã e Neve (1947), A Missão (1954), e O Instinto Supremo (1968).

    Uma das características marcantes do trabalho literário de Ferreira de Castro,  a de ele se absorver profundamente numa inventio empenhada na reportagem e na documentação,  não tem tanto a ver com a sua oficina de escrita, como, sobretudo,  com o seu processo de busca de materiais. Isto torna-o um viajante em permanente busca de casos, tópicos e motivos emblemáticas para a construção da sua ficção, e um apaixonado antropólogo amador.

    Os dois últimos títulos por nós apresentados são reveladores do primeiro aspecto, dado que a acção do penúltimo se situa em França e a do último no Brasil. Mas é evidente que a eles são apenas exemplos mais recentes – não nos esqueçamos de que Emigrantes (1928) e A Selva (1930) se reportam à experiência brasileira, e A Curva na Estrada (1950) revela uma aturada atenção à política espanhola, além de uma cuidadosa documentação sobre a matéria.

    O aspecto do pendor marcadamente etnográfico e antropológico surge, sobretudo, a partir de Eternidade (1933), onde se observa uma aturada atenção à sociedade madeirense, e adensa-se  em três romances fundamentais como ilustração do género: Terra Fria (1934), narrativa quase esquemática, de tons épicos e melodramáticos, relatando um triângulo passional vivido por três habitantes de uma remota terriola de Trás-os-Montes, onde os sentimentos básicos se manifestam no quadro de uma sociedade a viver nos limites da escassez e da ausência de enquadramento político nacional,  em arredamento do processo histórico; A Lã e a Neve (1947), onde se reflecte todo o quadro ideológico, económico e político da Europa, em plena II Guerra Mundial, num microcosmo aldeão, no qual os confrontos políticos e as lutas de classes se desencadeiam ao ser introduzido o modo de produção industrial cheia de tiques tayloristas, no seio de uma população a viver, praticamente até à véspera, uma economia baseada na pastorícia, pautada pela rotina sazonal da transumância;  e O Instinto Supremo (1968), onde se narra o avanço de uma equipa de trabalho etnográfico, visando, em última instância, desbravamento, aculturação, com abertura de vias modernas e fundação de povoações no coração da Amazónia, num processo em que se patenteia como esse acto de aculturação, procedendo no sentido do domínio, nomeadamente da instalação da Lei e da sua força, procura  ostentar, na vanguarda, a pacífica movimentação do “cordeiro” – arrastando mesmo prosélitos prontos a serem abatidos, sem procurarem replicar contra a investida dos parintintins, sedentos de salvaguardarem o seu universo primitivo. 

    Um historicismo positivista latente parece “guiar ideologicamente” Ferreira de Castro, não só nestas obras de inclinações “etnográficas”, como naquelas em que, mais claramente, assumiu a atitude do repórter ou do viajante documentarista: Pequenos Mundos, Velhas Civilizações (1937), A Volta ao Mundo (1940 e 1944), As Maravilhas Artísticas do Mundo – Volume I (1959) e Volume II (1963).

    AS maravilhas artísticas do Mundo, uma obra monumental de Ferreira de Castro, publicada em dois volumes em 1959 e 1963.

    Neles, estão presentes os valores da civilização com base nos modelos axiológicos do Ocidentes, nomeadamente o reconhecimento da humanidade como universalmente idêntica. A descoberta desta identidade, no construir da civilização, partindo do desenvolvimento dos valores próprios, parece-nos constituir o centro ideológico dominante que norteia o humanismo modernista de Ferreira de Castro, elaborado pela atitude de compreender o Outro, na sua diferença de base, desde que se revele capaz de assumir os valores do progresso, que são os da civilização ordenada, segundo as dinâmicas do desenvolvimento técnico-científico, marcas da humanidade tendendo para o “uno”. Descobrir essa unidade, para lá de diferenças episódicas, no quadro de uma experiência empírica que a volta ao mundo faculta é, em nosso entender, uma formulação de máxima importância para a constituição da mentalidade moderna do pensamento histórico e filosófico do Ocidente.

    Não mais o “outro” empírico e experienciado se revela a face temível da alteridade (o Outro enquanto fantasma cultural, monstruosidade ameaçadora), mas, antes, vem ostentar a manifestação de uma variedade racionalmente previsível, teoricamente já anunciada pelo pensamento iluminista. O que surge, de modo inovador, como proposta humanista, é o ser diferente nos seus fundamentos culturais, mas idêntico na sua valorização ontológica. Ganha significado, desse modo, a visão do Outro como semelhante, admitindo o sentido de uma comunhão em que o universo seria uma frátria, ou um uniteísmo, à maneira de Fourier (cf. Barthes, 1971: 107), integrando pátrias, lugares das diferenças culturais. Fundamentalmente, no entanto, ao optimismo relativo que parece construir-se como uma conclusão entretecida no desenrolar da perigeia modernista, herdeira da utopia de Jules Verne, vem contrapor-se, em Ferreira de Castro, um pessimismo que se traduz, quase sempre, por um olhar fascinado pelos rituais e símbolos da morte, marcos do percurso para uma “vida eterna”.

    Ferreira de Castro em 1960, na Livraria Sá da Costa, na companhia do jornalista Alfredo Noales, do jornal República.

    Perpetuando, de modo dinâmico, a memória do autor, existe hoje, com localização em Ossela, um Centro de Estudos Ferreira de Castro, a funcionar em modo de Associação, tendo como sede a Biblioteca de Ossela. Esta foi construída pelo escritor em frente à casa onde nasceu.  Ambas foram por ele doadas à comunidade.

    A Associação foi constituída a 19 de Março de 2001, tem como principais objectivos a promoção internacional da leitura e do estudo da obra do autor e rege-se por estatutos próprios. Além de encontros, colóquios e outros eventos culturais, a Associação promove, com a colaboração da Casa-Museu Ferreira de Castro, em Sintra, a publicação de uma revista dedicada a estudos sobre a obra do autor e temas afins, Castriana, da qual já se publicaram cinco números.    

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Andrade, J. P., Ferreira de Castro, in Coelho, J. Prado (org.), s/d, Dicionário de Literatura, Figueirinhas, Porto

    Barthes, Roland, 1966, Critique et Vérité, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1970, “Par où commencer?” in Poétique nº 1, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1970, S/Z, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1971 Sade, Fourier, Loyola, Paris, Seuil

    Benjamin, Walter, 2006, A Modernidade, Assírio e Alvim, Lisboa

    Brasil, Jaime, 1961, Ferreira de Castro, Arcádia (A Obra e o Homem), Lisboa

    Cabral, Eunice, 1998, A Ilusão Amorosa na Ficção de José Régio, Vega, Lisboa

    Cendras, Miriam, 1996, Blaise Cendrars, l’or d’un poète, Gallimard, 1996

    Cohn, Dorrit, 1981, La transparence intérieure, Seuil, Paris

    Hamon, Philippe, 1991, La Description littéraire, Macula, Paris

    Jorge, Carlos J.F., 2001, Figuras do Tempo e do Espaço: para Uma Leitura Literária dos Textos de Viagens,  Ulmeiro, Lisboa

    Lopes, Óscar, in Saraiva, A. J., e O. Lopes, s/d, 17ª ed., História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Lopes, Óscar, 1986, Os Sinais e os Sentidos, Caminho, Lisboa

    Sullà, Enric, in Sullà (org.) 1998, El Canon Literario, Arco/Libros, Madrid

    Torres, A. Pinheiro, 1977, O Neo-Realismo Literário Português, Morais, Lisboa 


    [1] Assentamos a nossa argumentação em dois conceitos que, segundo  a crítica alemã,  designam os dois processos segundo os quais se tem desenvolvido mais produtivamente a revelação da vida interior das personagens: a “psico-narrativa” (cf. D.Cohn, 1981, 37-63), que é a revelação dos estados de espírito da personagem pelas palavras de um narrador omnisciente, mais ou menos interveniente; e o “monólogo narrativizado” que é a “transformação do discurso interior das personagens, tornando-se o discurso do narrador” (1981:122)