Categoria: Cultura

  • Na Rīgas Doms, uma hora entre tubos e eternidade

    Na Rīgas Doms, uma hora entre tubos e eternidade

    Deambular por Riga é um prazer de altos rendimentos: histórico, arquitectónico e sensorial, sobretudo no Verão — ou melhor, no Verão, porque no Inverno ignoro como seja —, quando a luz se estende até depois das 22 horas e os cafés ao ar livre vibram com línguas que, imagino, vêm de todos os cantos do mundo.

    Era isso que fazia — perambulava — pelas ruelas medievais e praças seculares desta cidade báltica, com um olhar ora absorto nas fachadas de inspiração germânica, ora atento aos movimentos do presente.

    Deparo-me, porém, junto à Catedral de Riga, com um concerto de música rock — vejo, mais tarde, tratar-se de um festival organizado por uma empresa local, que decidiu este ano abrir o espectáculo à cidade.

    Saio dali pouco depois de ter despejado, inadvertidamente, parte de uma garrafa de água com gás sobre a minha t-shirt, e começo a contornar a imponente Rīgas Doms. Dou então por mim a menos de meia hora do início de um recital de órgão.

    O dilema era real: valeria a pena interromper a caminhada para “gastar” uma hora dentro de uma catedral — ainda que grandiosa — a ouvir música que não saberei decifrar tecnicamente? Havia ainda o detalhe do bilhete: vinte euros. Aqui, ao contrário de certas instituições culturais portuguesas, que estendem credenciais aos jornalistas como quem oferece rebuçados, não se fazem favores de última hora.

    A ponderação económica impôs-se: de um lado, a continuidade da exploração urbana — gratuita, imprevisível, luminosa; do outro, a hipótese única de assistir a um recital integrado no 38.º Festival Internacional de Música de Órgão de Riga, com um instrumento histórico e uma intérprete consagrada. Qual o custo de oportunidade? A pergunta que qualquer economista faria. E a resposta pareceu-me quase óbvia: seria um desperdício não arriscar.

    A compra do bilhete foi, assim, uma decisão racional — e, como haveria de constatar, também sensorialmente acertada. Primeiro, porque o instrumento em causa era o órgão construído em 1884 pela célebre firma E. F. Walcker & Co., tido como o mais inovador do mundo à data da sua inauguração.

    Não sendo um entendido — muito pelo contrário —, as suas características impressionam: quatro manuais, 124 registos, 17 combinações de registos, um pedal de crescendo, 26 foles e um total de 6718 tubos. Um colosso romântico. Descubro online que mede 22 metros de altura, por 11 de largura e 10 de profundidade — e a sua imponência, mas também beleza, são de uma teatralidade solene, como se a própria arquitectura do som ali ganhasse corpo de pedra e fôlego divino.

    A sua história está ainda ligada ao próprio Franz Liszt, que terá composto o arranjo coral “Nun danket alle Gott” — “Agora agradecemos todos a Deus” — para a inauguração do instrumento.

    E por falar em Liszt, ele era um dos três compositores do programa da noite. Os outros dois: Felix Mendelssohn e Louis Vierne. Mendelssohn, prodígio alemão, foi dos primeiros a redescobrir e divulgar a obra de Bach, escrevendo música de apurada clareza e fervor protestante.

    Liszt, o virtuoso húngaro, criador do poema sinfónico, exprime na sua música para órgão um dramatismo quase litúrgico. Vierne, francês, organista titular da Notre-Dame de Paris, compôs algumas das obras mais densas, visionárias e comoventes do repertório organístico do século XX — mesmo sendo cego desde a infância.

    Quanto à intérprete, Liene Andreta Kalnciema, é natural da Letónia, mas a sua carreira está também estabelecida na Alemanha. Laureada em diversos concursos internacionais — entre eles o Petr Eben, na República Checa, e o Wadden Sea, na Dinamarca —, percorreu já salas e igrejas da Suécia, Canadá, Espanha, Bélgica e Polónia.

    No folheto não constava qualquer passagem por Portugal, apesar de termos também órgãos belíssimos, como os da Igreja de São Vicente de Fora e da Basílica da Estrela, em Lisboa. Desde 2006, é presença regular nas actividades musicais da Catedral de Riga.

    E nesta noite, embora uma pequena câmara permitisse aos espectadores acompanhar, num ecrã discreto, os movimentos firmes e silenciosos de Liene Andreta Kalnciema — mãos ágeis, pés exactos, gestos contidos —, a experiência manteve-se profundamente envolta num mistério acústico. Porque, ainda que se vislumbre a intérprete por vários pequenos ecrãs distribuídos pela nave da catedral, a música não se entrega ao olhar: impõe-se pelo espaço, pelo eco, pela vibração.

    Em todo o caso, para um neófito como eu, as imagens revelavam também algo de insólito: ao lado da organista, surgia, quase imóvel mas vigilante — embora por vezes se movesse de um lado para o outro com agilidade —, uma figura auxiliar. Uma espécie de segundo cérebro e terceiro braço, cuja função não se limitava a virar páginas, mas incluía mudar registos, accionar combinações, antecipar intenções. A música, percebemos então, é ali fruto de uma simbiose silenciosa.

    O órgão, por vezes, parece um murmúrio subterrâneo de catedrais soterradas; noutras, um exército de trombetas celestes em alvorada litúrgica; e, ainda noutros instantes, assemelha-se ao resfolegar de um titã adormecido, prestes a erguer-se em colunas de som. Escutá-lo foi como assistir a um ritual antigo, em que a matéria sonora, mais do que compreendida, é sentida com o corpo inteiro.

    Houve momentos em que o som parecia brotar do subsolo da catedral, como se cada tubo fosse uma raiz a conduzir o espírito para dentro da terra; noutros, o som erguia-se como cúpula, abraçando a nave e elevando os ouvintes até zonas sublimes da emoção. Para quem não é especialista — como é o meu caso —, valeu a experiência pela sensação de tempo suspenso e de contemplação. Não é todos os dias que se escutam, de uma só vez, três gigantes do romantismo europeu em diálogo íntimo com uma catedral de pedra e eco.

    E se a dúvida inicial era entre continuar a deambular ao ar livre ou ceder à sedução de uma hora sob um tecto sacro, a resposta veio em forma de recompensa estética. Saí da catedral com as pernas descansadas, sim, mas sobretudo com o espírito mais pleno. O preço do bilhete, afinal, foi barato para o que se ganhou: beleza, grandeza e silêncio — esse silêncio precioso depois do último acorde, quando ninguém ousa aplaudir por alguns segundos, como se o tempo, enfim, tivesse de pedir licença para voltar a avançar.

    Por vezes, vale a pena entrar para dentro das coisas. Mesmo em Riga. Mesmo com sol.

    Nota final: 4 em 5.

  • Chamadas anónimas

    Chamadas anónimas


    Paulo Vero é homem dos sete ofícios


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Meninos 

    Meninos 

    Viajo até São Tomé e Príncipe em busca da literatura. Na mala, levo notas de algumas leituras, uma lista de obras e escritores por descobrir, e uma ansiedade imensa de começar a associar os textos aos seus lugares, às paisagens e às vozes que os inspiraram.

    Um feliz acaso leva-me ao encontro de Conceição Lima: jornalista, professora, escritora, voz maior da lírica são-tomense. Há dias assim, raros e luminosos, em que a vida nos surpreende com encontros que ultrapassam as nossas melhores expectativas. Ocasiões felizes, em que temos a sorte de nos cruzar com pessoas verdadeiramente extraordinárias.

    Nesse instante, a literatura deixa de ser apenas texto: transforma-se em território vivo, partilhado. Conceição falou-me, com entusiasmo e generosidade, da literatura, dos escritores e da história do seu país. Escuto-a, encantada, absorvendo cada palavra.

    A certa altura, menciona um romance de Orlando Piedade: Os meninos judeus desterrados de Portugal para São Tomé e Príncipe por ordem d’El-Rei D. João II em 1493. Interrompo-a. Li que a ilha fora povoada por judeus forçados a embarcar para este destino longínquo e inóspito, mas não compreendo a referência às crianças.

    Conta-me, então, a história de dois mil meninos e meninas, com idades entre os seis e os oito anos, filhos de judeus castelhanos que, fugindo da Inquisição, procuraram refúgio em Portugal. Crianças arrancadas dos braços dos pais e enviadas, por ordem do rei português, para as ilhas de São Tomé e Príncipe. Uma sentença de morte para a maioria. Um crime entre tantos outros cometidos em nome de um desígnio supostamente maior: o Império. Um crime contra crianças judias que, inevitavelmente, faz o meu pensamento recuar até às imagens de pequenos pijamas às riscas, alinhados por detrás do arame farpado dos campos de concentração nazis.

    O massacre de crianças judias não foi apenas um episódio sombrio da história da Humanidade — é, na verdade, uma prática recorrente da Desumanidade. Tão cruel, tão insuportavelmente pesada, tão indigerível, que torna ainda mais chocantes as imagens que hoje vejo no ecrã da televisão: o massacre de crianças palestinianas, perpetrado por israelitas. E digo por israelitas, e não por Israel, de forma intencional. Incomoda-me a facilidade com que se diluem as culpas dos homens, transferindo-se a responsabilidade para um país, um império, uma religião ou uma qualquer instituição.

    Os corpos dos meninos palestinianos embrulhados em panos ensanguentados, alinhados como um código de barras tenebroso,  tal como os dos meninos judeus que antes deles foram levados para as naus e para as câmaras de gás,não são acasos da História. Não são tragédias inevitáveis. São crimes. Todos estes meninos foram assassinados por homens e mulheres. Gente com nome. Seres de carne e osso. Sem alma, acredito, mas de carne e osso.

    E é, por tudo isto, de uma tristeza indizível que os meninos da Palestina morram agora às mãos de israelitas que um dia também foram meninos. Que tiveram o direito de o ser. Que cresceram com a memória da dor inscrita no corpo do seu povo. E que, ainda assim, se tornaram os carrascos: sem memória e sem misericórdia.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Uma liturgia laica em nome da resistência sonora

    Uma liturgia laica em nome da resistência sonora

    Ao fim de três décadas a escrever, com intervalos mais ou menos voluntários, reencontrei-me num modo de estreia: não com a pena, mas com a pulseira de imprensa, perdido no mundo ruidoso do jornalismo festivaleiro. Ali estive eu — uma espécie de estagiário com barba branca, uma Maria João Pires metida num concerto errado de Mozart — a cobrir o NOS Alive como se fosse um neófito do ofício, atordoado pelo estrépito da música e pelos brados da multidão, entre barracas de Heineken e Licor Beirão, e os lounges da Galp e da Fidelidade — e desculpem-me todas as outras marcas por não as citar, porque não apontei. Nem tinha de apontar.

    Ali estive, portanto, estoicamente, nesta feira pós-moderna de comes, bebes e branding — não é só música. Aliás, a haver performances, são para o consumo, o happening estético, o enclave publicitário.

    Primeiro ponto desta minha experiência: ao contrário da Prime Artists, com a Everything is New, do Álvaro Covões, os jornalistas são bem tratados. E compreende-se. São eles os olhos de três públicos: dos que estiveram lá e precisam de validação; dos que não estiveram, mas anseiam por ter estado; e, sobretudo, daqueles que lá estiveram e não viram quase nada — porque ninguém consegue estar em todos os palcos ao mesmo tempo, mesmo com mapas, horários e fé.

    Eu próprio fui um desses: e só por acaso vi, na primeira noite, Parov Stelar – que vou passar a acompanhar – porque me entretive mais a perceber os fenómenos Benson Boone (com os saltos mortais) e, sobretudo, Olivia Rodrigo (a quem falta energia e alguma voz em palco, com um ou outro acorde fora de tom — mas isso sou eu a falar, uma autêntica cana rachada).

    No Media Press — com balcão elevado e vista para o palco principal a uns 200 metros de distância, e com muitas milhares de cabeças em baixo — serviu-se cerveja, cidra, água, café e refrigerantes sem fim, e boa comida em abundância. Não foi a frugalidade quase beneditina das sandochas no camarote da Varanda da Luz, que o Benfica distribui em noites da Liga e da Champions. Aqui, houve dignidade digestiva. Cinco em cinco pontos para a Everything is New.

    Além disso, fui afortunado com lugar VIP, porque, nos dois dias de espectáculo que assisti (faltei ao dia 11), tive oportunidade de estacionar a bicicleta eléctrica defronte à entrada — malgrado no sábado ter andado em ‘conferências’ com um comissário da polícia sobre questões de acesso.

    Mas passemos à música. Tendo sido esta, curiosamente, a minha estreia em festivais como jornalista, foi também — incrivelmente — a primeira vez que vi os Muse ao vivo. E não por desinteresse, preguiça ou desdém: simplesmente nunca calhou. E, se era para ter ido, deveria ter sido logo da primeira vez, porque no longínquo Verão de 2000, quando actuaram no festival da Ilha do Ermal, eu já conhecia os putos do Showbiz, editado em 1999. Digo ‘putos’ porque, enfim, eu nesse ano fiz 30, e Matthew Bellamy, Dominic Howard e Chris Wolstenholme andavam entre os 20 e os 22 anos, já a ensaiar o estrondo que haveriam de provocar no rock (alternativo) mundial.

    Origin of Symmetry, no ano seguinte, em 2001, foi o seu primeiro grito de grandeza, onde os riffs colossais se misturam com falsetes operáticos, pianos barrocos e uma energia quase messiânica. Foi a confirmação de um grupo que começava no topo — e isso, por vezes, não é bom.

    Com apenas esses dois discos, a banda britânica passou a ter material para sustentar trinta anos de concertos, o que pode condicionar a criatividade futura — e, de facto, com mais baixos do que altos, os Muse tornaram-se mais uma banda de estádios do que de estúdio: se entre 1999 e 2009 editaram cinco álbuns, nos últimos quinze anos apenas lançaram quatro, todos com desequilíbrios.

    Este trajecto notou-se no concerto deste sábado, no palco principal, para onde os Muse foram chamados de urgência a substituir os Kings of Leon — baixa de última hora por lesão vocal do frontman Caleb Followill. Aquilo que para uns terá sido uma desilusão, para muitos (eu incluído) acabou por ser um presente tardio. E, de facto, não foi qualquer presente: foi um concerto em crescendo, milimetricamente orquestrado, com teatralidade, peso sonoro e emoções medidas ao compasso da luz e do fumo.

    Os Muse abriram o concerto com Unravelling, o novo single — ainda não lançado oficialmente, mas já testado ao vivo nesta digressão. Uma faixa que funde o rock progressivo com a electrónica e aquele pathos dramático que se reconhece logo na banda de Bellamy. E logo aí se notou: aos 47 anos está ele vocalmente em forma, a banda continua precisa, e o público respondeu com entusiasmo, como quem adivinha que algo maior está por vir.

    O alinhamento foi uma retrospectiva compacta, bem escolhida: os êxitos de sempre — Time is Running Out, Hysteria, Uprising, Plug In Baby — surgiram com a pujança que se exigia. Notava-se a sintonia com o público, que foi enchendo o recinto: coros aqui e ali, braços no ar, numa espécie de comunhão pagã que somente um concerto com milhares pode gerar. O som estava bom. Quando surgiu Supermassive Black Hole, a pulsação do festival tornou-se palpável — embora para mim esta fase mais pop dos Muse me pareça um pouco desinteressante, porque se aproxima de música de discoteca.

    Mas foi na recta final que tudo atingiu o seu auge. Primeiro com New Born, que condensa o ADN dos Muse e me faz recuar ao início deste século: intro delicada ao piano, crescendo progressivo, explosão eléctrica e a voz inconfundível e única de Bellamy.

    Depois, houve o clímax inevitável, já habitual em concertos ao vivo: Knights of Cydonia. A música — essa mistura de space rock, western e revolta épica — tornou-se o hino de fecho perfeito, primeiro com a harmónica dramática de Chris Wolstenholme e o seu célebre grito de resistência: “No one’s gonna take me alive!”

    Mas a abertura com a harmónica solitária — que não faz parte da versão de estúdio do álbum Black Holes and Revelations (2006) — soou, desta vez, mais dramática, porque o baixista dos Muse envergava uma camisola da selecção nacional com o número 21 e o nome de Diogo Jota. A música foi dedicada ao malogrado futebolista do Liverpool. Houve emoção partilhada, quase ritualística — e aquela música foi uma espécie de missa laica de celebração em nome da música, da vida e da memória.

    Posto isto, saí do recinto, depois de ainda ter dado uma oportunidade aos Nine Inch Nails — mas a banda de Trent Reznor nunca entrou no meu léxico musical quando se fundou em 1988, e não ia ser agora que inverteria o meu gosto. Não sou particularmente aficionado pelo chamado rock industrial. Assim como assim, para música visceral, preferi ver um pedaço do concerto dos Future Islands, antes de rumar com as botas e a bicicleta para casa.

    Nota final: 5 em 5.

    Fotografias: Matilde Fieschi / Everything is New

  • Políticos, marcas e negócios: a música segue amanhã

    Políticos, marcas e negócios: a música segue amanhã

    O relógio já marcava as dez da manhã e o sol de Oeiras – e talvez de boa parte de Portugal – resistia a libertar-se das nuvens. E eu, como umas boas dezenas de jornalistas, fotógrafos e repórteres de imagem, lá estava no Passeio Marítimo de Algés. Não foi a promessa de um croissant e de um sumo de hotel – nem mesmo os dois cafés que pedi – que me puxou da cama, por mais que a organização do NOS Alive tenha tido a gentileza de incluir pequeno-almoço no convite.

    Também não se tratava de qualquer contrapartida: nestas coisas de cobertura de espectáculos comerciais, bem sei que os promotores têm, legitimamente, a esperança – e alguns o desejo explícito – de que a imprensa se preste a servir interesses de marketing. Mas a vida, como deveria ser, exige separações claras: uma coisa é jornalismo, outra coisa é publicidade.

    E, portanto, não sendo os festivais a ‘praia’ do PÁGINA UM, se tivesse de indicar a razão que me moveu a atravessar Lisboa de lés a lés – aproveitando, já agora, um sempre aprazível passeio de bicicleta eléctrica pela zona ribeirinha –, foi a curiosidade: a de ver os últimos retoques na montagem de um festival de música, e a de confirmar que, por detrás da música e do entretenimento, vive um aparato logístico, político e empresarial de precisão quase militar.

    À porta do recinto, ainda fechado ao público, a azáfama era total: carros, carrinhas, camiões, empilhadores, técnicos de som, electricistas. Decoradores ultimavam stands e lojinhas; afinavam-se ângulos, tensões e estruturas. Porque o NOS Alive não é apenas música – apesar dos seus sete palcos e da promessa de mais de uma centena e meia de artistas.

    O cartaz é, dizem-me, robusto – como um catálogo de tendências musicais em três actos. Am,anhã, já esgotado, a estrela é Olivia Rodrigo, acompanhada por nomes como Noah Kahan, Barry Can’t Swim, Benson Boone, Glass Animals e Parov Stelar. Mas há também sotaque português, com Johnny Sequeira, Mão Cabeça, Motherflutters, Nuno Cabral, Gisela Mabel e até a Orquestra Chiuinha Gonzaga.

    No dia 11, a batuta cabe a Justice, The Wombats, Girl in Red, Finneas, St. Vincent e Sammy Virji. Será, dizem, o dia mais inclinado ao indie e à electrónica, mas com espaço para projectos nacionais como Capicua, Alta Avenue, Herlander, Carlos Contente ou Sérgio Onze.

    A fechar, a 12 de Julho, o cartaz carrega peso e decibéis: Muse, Nine Inch Nails, Future Islands, Foster the People e os sempre eléctricos Amyl and the Sniffers. E há mais: Dead Poet Society, Bright Eyes, Cmat, Erol Alkan, Bombazine, Luís Severo, João Maria – e muitos outros para melómanos exploradores.

    Confesso, desde já, que não conheço metade – e não pagaria para ver grande parte da outra metade. Mea culpa: não sou crítico musical, apenas curioso. Mas aproveitarei, seguramente, um ou outro dia para ouvir o que ainda não ouvi. E, garantido, estarei no dia 12 para ver os Muse – que, para mim, substituíram em boa hora os King of Leon. As derivas mais comerciais do grupo de Matthew Bellamy pouco me agradam, mas quem os conheceu, como eu, com Showbiz (1999) e Origin of Symmetry (2001), perdoa quase tudo.

    Mas voltemos aos bastidores – foi para os ver que aceitei o convite. É aí que pulsa o nervo óptico do evento, e onde se alinham os três elos fundamentais deste festival: Álvaro Covões, director da promotora Everything is New, que conduz a orquestra com ar de maestro em ensaio geral; Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras, o anfitrião político omnipresente; e Miguel Almeida, CEO da NOS, o patrocinador-mor.

    Este trio – que conduziu a imprensa com o à-vontade de quem sabe o peso das câmaras – não se limita ao cerimonial: constitui o verdadeiro triângulo de poder que sustenta o evento. Entre as três breves actuações musicais (incluindo Iolanda, que canta muitíssimo bem e que merecia melhor palco do que a palermice do eurofestival), houve tempo para paragem no stand oficial do Gov.pt, logo à entrada. Houve discurso institucional. Terá sido um piscar de olho ao Governo? Talvez. Mas se o festival serve também de montra política, que seja: ali vão circular milhões de euros – e recolher-se, presume-se, bastantes impostos.

    Até amanhã ainda haverá muito que afinar: estruturas, cabos, fibra óptica, microfones, luzes. Haverá bares a abastecer, carrinhos eléctricos a ziguezaguear como formigas entre bastidores, zonas de imprensa a preparar entrevistas.

    Tudo isto faz parte da engrenagem. Porque isto é muito mais do que um festival de música: é uma feira corporativa de alto gabarito, onde o capital se mistura com os decibéis, e onde as marcas não querem apenas vender – querem associar-se à emoção, ao ritmo, à energia e à juventude.

    Na verdade, como em muitas outras coisas, a música é um pretexto: para encontros, emoções e recordações. Mas o NOS Alive parece ser mais do que isso: uma alegoria contemporânea do entretenimento enquanto mercado, da política enquanto espectáculo e do jornalismo enquanto convidado de honra – com sumo natural e croissant de manteiga.

    Esta quinta-feira, quando se abrirem os portões e os primeiros acordes ecoarem no palco principal, poucos pensarão na logística que ali foi investida. Mas sem esta maquinaria invisível – feita de técnicos, operacionais, políticos, patrocinadores e comunicadores – a música não teria esta pujança.

    E talvez seja por isso que o NOS Alive seja mais do que um festival. É um palco onde todos querem actuar – mesmo que sem microfone. E até eu lá fui…

  • Velho é o Eddie the Head

    Velho é o Eddie the Head

    Na adolescência, quando os “tops” musicais ainda se viam e ouviam uma vez por semana na televisão pública, quando as rádios tinham medo do volume das guitarras e o acesso à música era mediado pelos LPs que os irmãos mais velhos conseguiam comprar com o pouco dinheiro que havia, era raro descobrir bandas fora do radar comercial.

    O meu irmão mais velho tinha os seus altares bem definidos — Genesis, Pink Floyd e Yes — e era nessa maré sinfónica que eu, já na juventude adulta, mergulhava com gosto e algum deslumbramento. Mas um meu outro irmão, esse, era devoto de outro culto: Iron Maiden. Teria eu doze ou treze anos quando chegou a casa com The Number of the Beast. Não era apenas o som. Era a capa. Era o bicho. Era o Eddie the Head. E foi, confesso, amor ao primeiro susto.

    Vieram depois outros discos, alguns com o vocalista Paul Di’Anno — antes da entrada meteórica de Bruce Dickinson — e muitos com capas tão aterradoras quanto fascinantes. Foi também nessa fase que aprendi os nomes dos músicos como quem decora santos de um altar profano: Dave Murray, o mais carismático com aquela cabeleira luminosa; Steve Harris, o comandante; Clive Burr, baterista expulso por causas tão comuns quanto trágicas no rock de então; Dennis Stratton, guitarrista de carreira breve; e Paul Di’Anno, voz crua e desregrada. Alguns já mortos. Todos, eternos.

    A minha separação dos Iron Maiden aconteceu por volta de Seventh Son of a Seventh Son, disco de 1988. A vida levava-me para outras sonoridades e os Maiden foram ficando, como ídolos guardados numa estante. Depois, era só o acaso de uma faixa no Spotify, de um vídeo no YouTube — e a constatação, sempre renovada, de que o heavy metal, bem feito, ainda me dizia qualquer coisa.

    O concerto de ontem, no MEO Arena, marcou os cinquenta anos da fundação da banda em East London. Ir a este concerto era para mim uma viagem pessoal com dois propósitos: celebrar meio século de uma banda que me acompanhou na adolescência e ver de perto a energia vital de uma banda de heavy metal com uns senhores já perto dos 70 anos — e que não estão propriamente sentados a dedilhar umas guitarradas.

    Concerto dos Iron Maiden em foto da própria banda.

    Para lá chegar, contudo, não me bastou a vontade nem a carteira de jornalista. A Prime Artists, produtora do espectáculo, optou por ignorar a legislação nacional e recusou-me a acreditação. Saiu uma deliberação da ERC, in extremis, na sexta-feira passada, mas mesmo assim, num gesto de arrogância, a ‘coisa’ só não teve consequências penais imediatas (crime de atentado à liberdade de informação e crime de desobediência) graças à intervenção diplomática — e pedagógica — de um comissário da PSP. Em todo o caso, perdi a actuação da banda de suporte, os suecos Avatar, que me pareciam promissores para se assistir, pelo que já ouvira antes.

    A resistência à entrada foi amargo, mas o primeiro impacto, já dentro da arena, foi doce: t-shirts dos Iron Maiden por todo o lado, gente de duas gerações — com cervejas… e até pipocas.

    Nova surpresa ao chegar ao local de destino: o lugar atribuído pela Prime Artists era um mimo — Balcão 2, Sector 18, Lugar J.3 — para todos os efeitos, o melhor sítio para não ver o palco. Mas, como em tudo na vida, algum improviso permite vencer a má vontade: dali saí para um ponto superior, em pé, com visão integral do altar de luz, fogo e som que é um concerto dos Iron Maiden.

    Comissário da PSP ‘conferenciando’ sobre a recusa de acreditação e as consequências criminais face à deliberação da ERC.

    Na perspectiva onde me encontrava, mesmo assim perdi a parte cénica mais espectacular, de que apenas me apercebi nas fotografias da própria banda no seu perfil do Facebook. Mas esqueçamos a produtora — que, se houvesse avaliação, levaria zero, com direito a machadada do Eddie the Head de três metros. Aquilo que interessa é que tivemos, aqui sim, um grande concerto à moda antiga: como deve ser.

    Apesar das crónicas deficiências acústicas do Meo Arena, o público ligou-se à corrente eléctrica de Harris, Dickinson & Ca., como num ritual logo à primeira música. Murders in the Rue Morgue, lançada no álbum Killers (1981) — e inspirada no conto homónimo de Edgar Allan Poe — inaugurou a noite, precedida de um vídeo onde se revive o nascimento da banda no Cart and Horses Pub. Bruce Dickinson esteve sempre como me recordo, mesmo contando já 66 anos: viaja com a mesma facilidade entre tons graves sólidos, médios expressivos e agudos poderosos, mantendo sempre clareza e controlo técnico, acima das potentes guitarras e da omnipresente bateria.

    Os clássicos sucederam-se sem piedade: Wrathchild, Killers (com Eddie the Head em cena, ameaçador, embora me pareça hoje um adereço desnecessário), Phantom of the Opera, The Number of the Beast (a pedir melhor acústica), 2 Minutes to Midnight, Rime of the Ancient Mariner (com referências visuais ao poema de Coleridge e atmosfera épica), Run to the Hills, The Trooper, Hallowed Be Thy Name. Houve tempo para parte de maior teatralidade, com Dickinson mascarado de faraó em Powerslave, houve bandeiras a tremular com um Eddie-soldado perante a ameaça nuclear, houve Bruce numa cela elevatória.

    E houve, também, oportunidade para a apresentação de Simon Dawson, o novo baterista para substituir, pelo menos nos concertos, o já septuagenário Nicko McBrain. Foi discreto, mas conseguiu manter a pulsação do grupo ao longo de todo o concerto — talvez no lugar mais exigente fisicamente numa banda de heavy metal.

    Quando Wasted Years encerrou a noite, Dickinson pareceu sincero ao dizer que fora a “melhor noite das nossas vidas”. Terá sido retórica, mas deu para perceber que os Iron Maiden apreciam verdadeiramente Portugal. Aliás, desde o ano passado, o vocalista fez uma parceria com a Van Zeller Wine Collection para lançar um tinto do Douro, o Darkest Red, com um rótulo alusivo à banda. Depois deste concerto, uma coisa parece certa: ali, velho, só mesmo o Eddie the Head.

    Nota final: 4,5 em 5.

  • Um espectáculo em vez de um concerto

    Um espectáculo em vez de um concerto

    Perco-me na memória, o que, confesso, já não é difícil. Ela anda fraca, difusa, com os fios do passado a entrelaçarem-se nas brumas do presente. Mas julgo lembrar-me — ou talvez esteja já a confundir imagens com sonhos — dos tempos em que fui, na juventude, a concertos de estádio. Penso que um desses foi com os Genesis, já envelhecidos mas ainda imponentes, ou talvez tenha sido o Sting, não sei já bem. Em ambos os casos, no antigo Estádio da Luz. Recordo, isso sim com mais nitidez, o Nick Cave no Estádio do Dragão, em noite tripeira, como convém à sua figura gótica. Mas tudo isso foi há décadas.

    Nos últimos anos, tenho preferido os recintos mais comedidos, mais próximos do ouvido e do coração. Um concerto no Coliseu ou no Campo Pequeno sabe-me melhor do que a profusão de luzes e decibéis de um estádio. Já quase não vou a festivais. Acho que o último foi com o David Bowie no Passeio Marítimo de Alcântara em 1996 — e já nem me lembrava do ano.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    E não é apenas por pudor de idade ou cansaço auditivo: é porque, cada vez mais, o que se apresenta num estádio é um espectáculo — e não um concerto. Um estádio é uma arena de imagens, de sons preparados ao milímetro, de efeitos que hipnotizam o olhar mas nem sempre tocam a alma. E tudo isso se confirmou com os Imagine Dragons.

    Na quinta-feira, frente a 64 mil pessoas no Estádio da Luz, Dan Reynolds e os seus companheiros ofereceram o que se esperava: um evento visualmente apoteótico, musicalmente eficiente, emocionalmente polido. Mas talvez fosse essa previsibilidade que me deixou um leve sabor a indiferença, como um prato servido com mestria mas sem surpresa.

    Cheguei ligeiramente atrasado ao concerto (não acontece apenas com os jogos do Benfica), mas também não fiquei na Varanda da Luz: fiquei num assento junto ao relvado, perto do sítio onde assisti à vitória de Portugal contra a Suíça no apuramento para o Mundial de 2018. Enfim, bom lugar para ver a parafernália e os ecrãs, mas difícil de saber onde parava o Dan, que ia percorrendo o catwalk, perpendicular ao palco principal. Perdi, segundo consta, Fire in These Hills, do último álbum, e apanhei-me no meio de Thunder, um dos hits da banda de Las Vegas, nascido em 2008, que fez vibrar as bancadas, e que funcionou, claro, como grande parte do repertório do grupo: porque já está no ouvido, porque tem refrão fácil, porque tem (boa) percussão.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    Como disse, pela distância e porque andei a percorrer com os olhos as bancadas, não me dava conta por onde Dan Reynolds andava, já de tronco nu, porque o homem saltava, corria, agitava os braços com uma energia quase coreografada, ao mesmo tempo que bolas insufláveis invadiam o relvado e a pirotecnia estalava. Percebia-se logo que ali não se queria dar um concerto, queria-se causar impacto — até porque, por vezes, o som distorcia. E conseguiram: Bones, Take Me to the Beach, Shots, Whatever It Takes — pelo menos estas, que consegui, com maior ou menor dificuldade e apoio, desfilaram todas, uma após outra, como faixas de um álbum de êxitos empilhados sem pausas. Já ali há pouco ou quase nada de indie ou alt rock — é quase tudo pop.

    É verdade que houve momentos de pausa emocional. Quase no final, Dan Reynolds partilhou com o público a sua história pessoal de luta contra a depressão e a ansiedade. Falou da importância da terapia, do apoio, da vida partilhada. Foi genuíno — e nessa franqueza conseguiu o que raras vezes se alcança num estádio: silêncio. Mas, sendo já recorrente nos concertos da banda, esse momento de abertura emocional começa a resvalar para um ritual quase coreografado, uma catarse repetida que, podendo ser sincera e até incentivadora, já dá sinais de déjà vu.

    Tocará isto sempre os corações menos cínicos, é certo, mas roça perigosamente os contornos do marketing emocional — aquele ponto em que a intimidade parece mais ensaiada do que vivida, e em que o apelo à empatia se confunde com uma estratégia de retenção de público. Fica a sensação de que há ali verdade, sim, mas também conveniência.

    Entretanto, houve também momentos acústicos com Next to Me e I Bet My Life, num registo mais contido e sincopado. Talvez ali se tenha ouvido o grupo com maior nitidez — talvez ali se tivesse encontrado, por breves minutos, o que antes se chamava um concerto.

    Também I’m Sorry e Shots tentaram recuperar alguma densidade musical, e não faltaram solos — ora de guitarra, ora de baixo — para cumprir o protocolo técnico. Porém, a estrutura do concerto foi sempre a mesma: subida, explosão, breve pausa, nova explosão, apoteose. A música como cenografia.

    Já perto do fim, desfilaram os maiores sucessos: Bad Liar, Radioactive, Demons e Believer, este último encerrando a noite com pirotecnia em modo épico e Dan Reynolds enrolado numa bandeira da Ucrânia — símbolo de um mundo em que a política e o entretenimento partilham o mesmo palco, mesmo quando não se diz uma palavra sobre o assunto. Houve também uma guitarra com a bandeira trans empunhada pelo baixista Ben McKee, que, podendo ser sincera, também tem algo de marketing inclusivo. Até porque os Imagine Dragons têm recebido críticas pelo facto de tocarem em países pouco recomendáveis.

    Foto: João Palhinha / Everything is New.

    Por fim, durante Radioactive, Reynolds ainda subiu à bateria para um dueto com o baterista — e ainda pensei que fosse como Phil Collins: melhor baterista do que cantor — e depois sentou-se ao piano para Demons, para acabar por correr de um lado ao outro do palco. “Amamos-vos, Lisboa”, repetiu, até à exaustão. Mas foi um amor sem encore. E aqui, confesso, reside uma das minhas maiores perplexidades: um grupo que não faz encore, mesmo depois de duas horas de actuação, falha algo essencial.

    O encore não é apenas um apêndice: é uma praxe simbólica, um agradecimento final, um jogo de fingimento que reforça a ligação com o público. Recusar esse ritual é como recusar o brinde no final do jantar. E, por causa disso, os Imagine Dragons levam meio ponto a menos nesta crítica do que estavam para apanhar.

    Nota final: 3,5 em 5.

  • Um magnífico espetáculo de aviltante bajulação

    Um magnífico espetáculo de aviltante bajulação


    – Mãe, o pai chorou!

    – Não me diga – a mulher fecha o livro.

    – Foi quando parou de cavar – diz o rapaz em voz baixa, inclinando.

    – Não acredito – ela passa a mão pelo rosto do filho.

    – Pois a senhora pergunte a ele.

    – Vou ao banho – diz o homem, atravessando a sala a passos largos. – Não nasci pra coveiro.

    – Me conte o que aconteceu – pede a mulher num sussurro.

    – Foi muito rápido. O pai passou a mão nos olhos, mas eu vi as lágrimas, poucas.

    – Seu pai chorando? Por essa eu não esperava.

    A grande cadela maluca corria que nem uma degenerada. De um salto saía da sua casa e zunia rente ao muro com a vizinha e dobrava à esquerda e cravando suas garras poderosas no chão pelado atravessava os dez metros até a esquina e quebrava mais uma vez à esquerda chispando junto à cerca gradeada, ao fim da qual encerrava sua exibição de fúria e perplexidade. Ainda latindo, ofegante, voltava então para sua casinha, construída sob a amoreira.

    A grande cadela maluca tinha o pátio a seu dispor, mas preferia preguiçar dentro de sua própria casa. Estendia-se sobre a frescura do piso de cimento alisado, a cabeça próxima da abertura, apoiada nas patas dianteiras. Piscava para a claridade e bocejava. Mordia o ar quente na tentativa de caçar moscas insidiosas. Após a pancada seca dos dentes se chocando, sacudia vigorosamente a cabeça. Moscas do diabo!

    De vez em quando, dama um espetáculo.

    Bastava alguém costear o muro do fundo do pátio falando alto ou rindo. Para quê? Esquecida das moscas, ela arrancava para mais uma demonstração de força, velocidade e indignação. Quem era o desaforado que se atrevia a romper o silêncio daquele canto calmo da cidade? Vinham latidos estrangulados pelo espanto e pela ira. Vais e vens de tontear. Repulsa colérica daquela monta, no entanto, não podia durar muito. E ela se dirigia à vasilha de água, mantida sempre na sombra, ao lado da casinha.

    No fim da tarde descia da escola uma garotada vasta, de toda espécie. Havia as criaturas muito pequenas que se agachavam e colocavam as mãozinhas pelo meio das grades para receber o carinho gosmento da longa língua vermelha. Havia diabretes maiores que gostavam mesmo era de bater com força as mãos abertas na chapa de metal da cerca para endoidecer a cachorra, que de calma não tinha nada. A pobre não sabia o que fazer. Acarinhava as vacilantes mãozinhas assustadas ou latia para a barulhada dos mais taludos?

    – A Pirata, sua louca! – gritavam os galalaus depois de estapearem o metal sonoro.

    – A Piratinha – balbuciavam os pequeninos, entre exultantes e enojados, retirando a mãozinha lambida.

    – Vamos chamá-la Pirata – disse a mulher.

    – Isso nunca – retrucou o homem. – Não pode ser Pirata porque não tem jeito de cachorra macha. É frouxa, não aguenta cócegas.

    – Vai ser Pirata – insistiu a mulher. – O apelido é perfeito. Olha só este olhinho.

    O homem pegou a cadelinha e aproximou seu rosto anguloso do trêmulo focinho úmido. Impressionante a negra mancha que circulava o olho esquerdo.

    – É um tapa-olho perfeito! – voltou a mulher. – Pirata!

    Os olhos míopes do homem, aumentados pelas lentes grossas, assustaram a coisinha branca pintalgada aqui e ali por bolinha negras, que se pôs a ganir.

    – Podia ser Maria Bonita – disse o homem. – No cangaço havia mulheres machonas. Eram ainda mais cruéis que os homens.

    – Pirata – teimou a mulher. – Ela nasceu com uma cara perfeita pra receber esse nome. Pirata.

    – A Pirata – concordou o homem. – Está bem. Eu cedo. Mas para mim ela será sempre A Pirata. Pirata só se fosse macho, mas não é. A Pirata.

    A cadela de pernas altas e musculosas em que aquele nada de filhote se transformou era apaixonada pelo menino da casa. Não digo que desprezasse os adultos e as meninas, apenas não prestava muita atenção a eles.

    Quando o menino surgia no pátio, ainda vestindo a farda do colégio, ela apresentava seu melhor número: um magnífico espetáculo de aviltante bajulação.

    Para começar, enterrava a cara na cerâmica fria da varanda. E com um olho só, desconfiado e brincalhão, observava o recém-chegado. Esperava que ele abaixasse para então saltar e escapar-se do abraço dele. A Pirata, sua doida. A seguir, fingia-se de morta, olhos semicerrados, focinho sobre as patas. A sua segunda fuga da tentativa de carinho era ainda mais espetacular. A bem dizer escorregava por entre os braços do garoto, dava-lhe uma lambida gosmenta na bochecha e chispava para o centro do pátio. Ali, latia furiosamente diante do ataque de incontáveis inimigos invisíveis. E, para livrar-se deles, encenava as mais estrambóticas performances guerreiras. Exibia dentes e garras, rosnava, unhava chão e ar. Mas, de repente, imobilizava-se, exausta. Admitia, por fim, o exagero cenográfico. Envergonhada, baixava a cabeça e varria o chão com as orelhas. A imobilidade, porém, não se delongava. Encostava-se à pitangueira e roçava com gosto e vigor o lombo lustroso. Era o patético ponto final. Dali em diante, dedicar-se-ia a receber as carícias do menino, latindo mansamente aos pés dele.

    Um dia, anos depois, a cachorra ficou velha.

    Não corria mais pelo quadrilátero do pátio. Não latia para ninguém, nem mesmo para os moleques nojentos que esmurravam a chapa metálica. Penava para subir os degraus que lavavam à varanda. Não mais abocanhava moscas. Dormia onde caía. As pessoas batiam à porta da casa para avisar que a coitada, caída no meio do pátio, sob um sol tenebroso, estava tentando se levantar e não conseguia. Não se exibia mais para o menino porque ele, já meio rapaz, de penugem acima dos beiços, não descia mais ao pátio depois da escola.

    – Ontem eu vi um rato enorme comendo a ração da Pirata – disse a mulher. – Ela deixou que ele comesse o quanto quisesse.

    – Chegou a hora – retrucou o homem. – Vou comunicar a triste verdade ao proprietário da besta.

    O rapaz não quis conversa.

    – Que história é essa, pai? Matar a Pirata?

    – Matar, não. Sacrificar é palavra mais ajustada.

    – Nunca.

    – Nunca diga nunca. Você já deve ter ouvido esta frase ridícula e certeira: nunca diga nunca.

    – Nunca.

    – Então vá ao pátio – disse o pai. – Da varanda observe sua filha. Verá que ela não corre mais, se arrasta. Verá que não presta atenção às crianças da escola. Verá que fica onde cai porque não consegue mais se botar sobre as patas. Ela está viva, porém morta. Isso acontece também com os homens. Muitos morrem antes de perder a respiração. O pior: ela já não enxerga mais os ratos, nem sente a catinga deles.

    Certa tarde veio o veterinário. A palavra nunca fora afastada.

    Aconteceu debaixo da pitangueira.

    O doutor explicou tudo direitinho.

    – A primeira injeção é pra que ela não sinta dor.

    A grande cadela magérrima e ossuda estava deitada sobre as pernas do rapaz que, sentado no chão, recostado contra o tronco da pitangueira, tinha a cara tisnada de tristeza.

    – A segunda injeção arrefecerá os batimentos do coração dela.

    O rapaz aquiesceu com um vago gesto de cabeça.

    Foi o que ocorreu. Duas agulhadas. O batuque do coração se enfraqueceu aos poucos. Devagar.

    De repente, a esplêndida fêmea branca com tapa-olho preto de flibusteiro não estava mais entre os vivos. Repousava deitada no chão umbroso, a cabeça no colo daquele que fora seu pai e sua mãe, um rapaz que um dia fora um menino. A grande cara comprida, espichada pela magreza, exibia para quem quisesse ver a pinta negra perfeitamente redonda em torno do olho esquerdo.

    – Deixe comigo – disse o pai. – Ela vai ser plantada ali onde parava a fim de lamber as mãos das criancinhas.

    O enterro foi naquela noite.

    – Pra onde vão as almas dos animais? – quis saber o rapaz, que segurava a lanterna.

    O homem parou de cavar. Enterrou a pá no montículo de areia fofa. Passou as mãos pela base das costas. Buscou um cigarro no bolso da camisa. Riscou o isqueiro.

    – Sim, senhor, isso é o que eu chamo de bela pergunta. Pois eu vou lhe esclarecer o que se passa com o espírito dos cães falecidos. Vão pra um lugar onde há muita água e pouco inseto. Várias vertentes, nem mosca ou pulga. Lá, como ninguém lhes dá comida, voltam a caçar. Apanham bichos pequenos que se entocam nos morros. Preás. Correm o tempo todo. Cansados, deitam-se à sombra das árvores.

    O rapaz movimentou a lanterna. O homem passou a mão pelo rosto, indicador e polegar drenando os olhos úmidos, e depois acabou de agasalhar na terra o corpo ossudo.

    Lanterna apagada, o rapaz saiu na frente a passos ligeiros.

    Na sala, aproximou-se da mulher que estava sentada no sofá, iluminada pelo abajur de pé, lendo um livro.

    – Mãe, o pai chorou!

    Lourenço Cazarré é escritor

    Este conto venceu o Prêmio Ana Maria Martins, da União Brasileira de Escritores (2022)

  • Pausas 

    Pausas 

    Olhos sorridentes, mãos roliças e voz de colo, Vivina era professora primária há tanto tempo que já não se lembrava de não o ser. Adorava a sua profissão. Nunca desejara outra coisa.

    Contudo, de repente, começou a perguntar-se se, ao ter escolhido tão cedo o ensino, não teria deixado de considerar outras possibilidades. Se aquela decisão precoce não teria silenciado outros talentos.

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    E foi por esses dias que se deparou com um anúncio que lhe chamou a atenção: uma oficina de narração. Em horário pós-laboral, conduzida por uma conhecida formadora — era exatamente o que procurava. Inscreveu-se, por isso, sem hesitar.

    As participantes eram todas mulheres, e todas mais ou menos da sua idade. Nas semanas seguintes, aprenderam técnicas de respiração, memorização e expressão. Abraçaram a experiência com uma alegria quase infantil — pelo menos até ao momento em que perceberam que a sessão final consistiria num sarau. Assustador, sim, mas também desafiante.

    Cada uma recebeu um texto distinto. Vivina foi presenteada com um encantador conto de Clarice Lispector: Felicidade clandestina. Leu-o uma primeira vez e sentiu, desde logo, aquele texto como seu. Receou, todavia, não ser capaz de o memorizar. Ainda assim, agarrou a oportunidade de exercitar a memória, que há muito andava adormecida. Culpava a menopausa. As malfadadas alterações hormonais. O que mais poderia ser? Mas não estava disposta a resignar-se.

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    Durante os dias que antecederam o grande momento, as mulheres ensaiaram como se a própria vida dependesse de decorarem os textos que lhes haviam cabido em sorte. Partilharam entre si as estratégias de cada uma, e concluíram que a palavra de ordem era repetição. Vivina disse o texto vezes sem conta. Ensinou Clarice à gata, aos tachos, às plantas do jardim, aos azulejos do chuveiro, à roupa no estendal. Disse, repetiu, tropeçou, recomeçou, melhorou… Gravou-se, ouviu-se, corrigiu, gravou de novo.

    Chegou a noite. Uma a uma, as mulheres vestiram os textos como uma segunda pele e exibiram-nos num desfile de palavras. Confiantes, orgulhosas de si mesmas e das companheiras de aventura. Vivina reconhecia, nos olhos esbugalhados e nos lábios cerrados da formadora, a ansiedade que ela própria sentia nas festas de final de ano escolar.

    A ordem alfabética atirou-a para o final da sessão. Ouviu, com genuíno prazer, as suas colegas. Vibrou com o êxito de cada uma — palavras ondulantes, vozes expressivas, gestos teatrais.

    silhouette of person standing near white textile

    Os aplausos e comentários calorosos, um bónus recebido com regozijo:

    — Que presença!
    — Que capacidade de envolver!
    — Que emoção na voz!

    Chegada a sua vez, fez-se um breve silêncio. Alguém comentou:

    — As suas pausas… as suas pausas são divinas!

    Vivina agradeceu com um sorriso e ficou em silêncio, a digerir. As pausas. Mal podia acreditar que, depois de tanto empenho e dedicação, lhe estavam a elogiar as pausas.

    Nesse momento, lembrou-se de um menino do primeiro ano, a quem tinha um dia perguntado se estava a gostar da escola. Perante a resposta positiva do aluno, Vivina, entusiasmada, perguntou-lhe do que mais gostava.

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    O pequeno pôs um ar pensativo e sério e, depois de uns segundos de reflexão, respondeu:

    — Dos intervalos.

    E agora, tantos anos depois, lá estava ela a proporcionar bons momentos a quem deles desfrutava… nas pausas.
    O seu grande talento era afinal o de se fazer ausente — no momento certo e com elegância, queria acreditar.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve

  • Com uma bala na mão

    Com uma bala na mão


    Paulo Vero é homem dos sete ofícios


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.