Categoria: Cultura

  • A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.


    Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.

    A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.

    Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.

    As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.

    Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.

    A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.

     Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal

    Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.

    Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.

    Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.

    A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.

    E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.

    A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.

    O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.

    Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…

    O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!

    Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.

    Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.

    Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.

    Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.

    Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.

    No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.

    A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.

    E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.

    Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.

    Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.

    Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.

    Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.

    Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.

    Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.

    Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.

    Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.

    Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.

    Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.

    Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.

    toddler in black sweater standing in front of Santa Claus

    A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”.

    O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen


    N.D. Uma primícia versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.

  • A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.


    Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.

    A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.

    Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.

    As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.

    Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.

    A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.

     Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal

    Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.

    Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.

    Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.

    A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.

    E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.

    A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.

    O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.

    Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…

    O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!

    Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.

    Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.

    Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.

    Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.

    Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.

    No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.

    A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.

    E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.

    Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.

    Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.

    Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.

    Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.

    Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.

    Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.

    Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.

    Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.

    Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.

    Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.

    Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.

    A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”. O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen


    N.D. Uma primícia versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.

  • Tenente Pires, um herói desconhecido da II Guerra Mundial

    Tenente Pires, um herói desconhecido da II Guerra Mundial


    Portugal tem um novo herói. Chama-se Manuel de Jesus Pires, mas podemos tratá-lo como Tenente Pires. Foi ele o administrador da Vila de Baucau durante a invasão de Timor pelos japoneses, em 1942, e liderou a resistência ao invasor, tendo salvado quase uma centena de vidas numa altura em que o regime do Estado Novo abandonou portugueses à sua sorte. A sua história é agora uma série de ficção da RTP com o título Abandonados.

    A ser emitida a partir desta quarta-feira, dia 21, e com realização de Francisco Manso, a série conta com sete episódios, de 50 minutos cada, debaixo de um título que reflecte bem o que esteve em causa durante aquele período em que não houve qualquer ajuda vinda da Metrópole.

    A invasão de Timor pelas tropas japonesas e a resistência que se seguiu é um episódio longínquo da História de Portugal, e que remonta a Fevereiro de 1942, escassos dois meses após o ataque japonês à base norte-americana em Pearl Harbor, no Havai. Marcou um momento de tensão entre o regime de Salazar, os aliados britânicos e o regime fascista de Hitler.

    Esquecidos e abandonados em Timor, na luta persistente de um militar – o Tenente Pires, que contra todos os obstáculos e dificuldades, criados aliás pelo próprio governo de Salazar, tudo fez para salvar os seus companheiros, até ao seu sacrifício final.

    Esta série mostra-nos “os caminhos tortuosos da política e dos interesses dos estados sobrepondo-se aos interesses individuais, com toda a carga de injustiça e de desumanidade que muitas vezes isso acarreta, conferindo a Abandonados um significado universal”, diz a RTP na apresentação deste trabalho.

    Abandonados, série da RTP realizada por Francisco Manso, será emitida a partir desta quarta-feira.

    A nova aposta do canal público na ficção, que teve recentemente uma apresentação no cinema São Jorge, em Lisboa, resulta da adaptação do livro Timor na II Guerra Mundial: o diário do Tenente Pires, editado pelo ISCTE, cujo autor, o historiador António Monteiro Cardoso, é também responsável pelo argumento – mas que não chegou a ver o resultado, visto ter falecido em 2016.

    “Baseada em factos reais, esta série recorda a aliança inédita entre Portugueses, timorenses e australianos unindo-se contra um inimigo comum que não hesitava em cometer as maiores atrocidades contra as populações locais e contra todos os que se lhe opunham”, acrescenta a RTP.

    O papel do Tenente Pires é interpretado pelo actor Marco Delgado, que comparou as façanhas deste “herói” à história de Aristides de Sousa Mendes, o cônsul português de Bordéus que desobedeceu às ordens de Salazar e permitiu a fuga dos refugiados judeus. Aristides Sousa Mendes teve o seu nome banido do reconhecimento público durante o tempo do Estado Novo, sendo apenas reabilitado após o 25 de Abril de 1974.

    Cena durante as filmagens de Abandonados.

    Marco Delgado disse ao PÁGINA UM que “para além de ter sido emocionante” assumir este papel, considera que o papel do Tenente Pires “é mais um nome desconhecido que “deve ser revelado e é importante que a RTP siga esta linha de prestar homenagem a verdadeiros heróis portugueses”.

    Embora seja um trabalho de ficção, a série conta, por exemplo, o episódio verídico da saída do Tenente Pires da ilha timorense a bordo de um submarino para pedir apoio aos australianos e como, sem ter sucesso nessa missão, regressou a Timor para continuar a resistência, mesmo sabendo que lhe custaria a própria vida.

    “Para mim era importante, moralmente, prestar-lhe a devida homenagem”, acrescenta Marco Delgado que, a partir de agora, poderá juntar o rosto do Tenente Pires à sua galeria de personagens.

    Timor esteve para ser o local das filmagens, mas pandemia obrigou a relocalização para a ilha da Madeira.

    O realizador Francisco Manso destacou ao PÁGINA UM que o Tenente Pires, “não sendo conhecido como uma pessoa anti-regime, era um militar à antiga e mantinha a crença de defender todos até à morte, sobretudo após o abandono pelo regime”. Uma situação que, mais tarde, em 1961 será de novo colocada na invasão da Índia portuguesa, mas com um desfecho diferente.

    Estima-se que morreram cerca de 50 mil pessoas durante os três anos e meio da ocupação japonesa de Timor. A série está já prevista para ser exibida na televisão de Timor, tendo havido, há um mês, uma apresentação pública na antiga ilha portuguesa. 

    Com a acção a desenrolar-se entre os anos de 1942 a 1945, Francisco Manso refere que, ao longo das filmagens, em termos cinematográficos, há filmes que “não deixam de ser uma referência” como os clássicos A Ponte do Rio Kwai  e ainda Feliz Natal, Mr. Lawrence.

    Vítor Norte, um dos actores de Abandonados, é presença assídua dos filmes realizados por Francisco Manso.

    Inicialmente prevista para ser filmada no cenário natural de Timor, as restrições da pandemia obrigaram a uma mudança de planos. Assim, as matas da antiga província portuguesa na Ásia foram recriadas num outro território bem português, mas próximo da costa de África: a ilha da Madeira.

    A Floresta Laurissilva da Madeira, um cenário luxuriante de espécies indígenas e anteriores à chegada dos navegadores portugueses àquelas paragens, ofereceu as imagens e cenário natural para se poder contar esta história.

    A “magia” da ficção está nestes pequenos detalhes, que levaram Marco Delgado a recordar, por exemplo, o facto de estarem a filmar com temperaturas baixas, mas de forma a dar a entender que estavam a suar em pleno Verão na zona do Pacífico.

    Fazem ainda parte do elenco de Abandonados, os actores António Pedro Cerdeira, Elmano Sancho, Luís Esparteiro, Maya Booth, Soraia Tavares, Virgílio Castelo, Chico Diaz, Sabri Lucas, Francisco Froes, Joaquim Nicolau, Marques D’Arede, Jorge Pinto, Rodrigo Santos, André Albuquerque e Paulo Calatré.

    O realizador Francisco Manso e o actor Marco Delgado, durante as filmagens.

    Vítor Norte, que tem sido uma presença regular na vasta filmografia de Francisco Manso, é outro dos actores que dão corpo às personagens envolvidas neste episódio da História de Portugal e da II Guerra Mundial, referindo-se como curiosidade acrescida que, ao interpretar o papel do juiz Nepomuceno dos Santos, tem a particularidade de encarnar o homem que era o pai do cantor Zeca Afonso, autor do “Grândola Vila Morena”.

    Abandonados estreia dia 21 de Dezembro, às 21 horas na RTP1, havendo antestreias na RTP Play a partir das 12 horas.

  • Clint Eastwood: os horizontes míticos em “High plain drifter” e “Pale rider”

    Clint Eastwood: os horizontes míticos em “High plain drifter” e “Pale rider”


    High plain drifter (1973) – em português, Os pistoleiros do diabo – e Pale Rider (1985) – em português, O justiceiro solitário –, dois filmes realizados por Clint Eastwood, têm, em comum com Shane (1953), de Georges Stevens, o grande campo de sentido em torno do qual as histórias giram: a chegada a um povoado quase isolado, geograficamente, e em crise social, de um herói enigmático e solitário – e a acção desse recém-chegado pela reposição da ordem, assente em valores transcendentes e míticos, relacionados com o para lá do horizonte que as montanhas circundantes traçam.

    A sequência da chegada do cavaleiro solitário, em Pale Rider (1985), depois do ataque da trupe de sicários do banqueiro, grande proprietário dos terrenos auríferos, contra o acampamento dos garimpeiros vivendo na precaridade, é a que mais lembra, ou evoca (levando mesmo a pensar numa citação), o filme de George Stevens, Shane (1953).

    Não é inicial, mas, sucedendo-se à cavalgada em grande parte filmada em picado, dos homens de mão de LaHood, compósito bando de “semi-mão-de-obra mineira”, “semi-malfeitores armados”, fica mais marcada toda a sua imponência de cavaleiro solitário, descendo pelas faldas, com destaque para a montanha que surge como o gigantesco limite de horizonte, ocultando todo o para lá da sua impositiva presença. Esta descida de uma altura que parece tocar o céu, opõe-se à anterior cavalgada dos malditos, que saem de uma floresta, vistos em plano geral, do alto, num ângulo a aproximar-se do picado, como se saíssem de uma caverna infernal.

    E isso é tanto mais evidente quanto a posição da câmara que acompanha o cavaleiro em traveling lateral ou de recuo, com pequenas variações focais, ora o apanha na posição angular horizontal, em planos médios e de conjunto ou, por vezes, em ligeiro contra picado: o ponto de vista da câmara situa-se, aparentemente, num nível inferior da encosta de onde o seu “olho”, a objectiva, em grande angular aberta para o limite do infinito, a montanha, capta o conjunto do cavaleiro, cavalo e porção da terra e da vegetação próxima do seu ponto de percurso e, por vezes, como que em pano de fundo, os pontos mais altos da falda estruturando um horizonte fechado, fazendo, por vezes, um pequeno recuo para acompanhar, de frente, o avanço do cavaleiro, outras, o plano médio é em ligeiro picado, com a câmara imóvel enquadrando o cavaleiro na sua movimentação para um destino, mirando-o por detrás, enquanto ele se encaminha para onde as palavras da adolescente clamando por auxílio, em salmo, parecem convocá-lo.

    O efeito dominante é, assim, o da pressuposição de um para lá dos picos, de um além de onde o cavaleiro desce, vislumbrados por efeito de uma forte iluminação, em que cavaleiro e cavalo já cobrem uma boa parte do horizonte e as faldas parecem um pano fundo próximo em que se enquadra, para acorrer à “chamada”. Fica bem patente como, a propósito do “cinema de Hollywood, e no western em particular, se pode dizer que o cenário da montanha funciona como um substituto da religião, um modo de introduzir uma dimensão espiritual secular” (Buscomb, 1998: 118) que pode articula-se, ou comunicar, com as regiões celestes.

    Sequência quase inicial, da descida e sequência final, a do duelo com os marshals, em Pale Ride

    A montagem pode ser entendida como simples construção de uma continuidade: primeiro aconteceu uma coisa, o ataque aos prospectores pobres, garimpeiros, na terminologia da actividade de prospecção artesanal, que se opunha à mais elaborada e de dimensão industrializante que os LaHood praticavam; depois, a oração da jovem Megan[1], quando enterra o cão que os assaltantes abateram, na sua bestial crueldade. A temporalidade, durante a prece, aparenta ser só marcada pela captação do passo do andamento do cavaleiro, em galope lento, e o salmo que Megan recita em montagem alternada: plano do cavaleiro/plano de Megan ajoelhada, alternando-se várias vezes, em repetição de imagens; o que tanto apela à sugestão de alternância de duas cenas ocorridas ao mesmo tempo, em lugares distantes; como de paralelismo, criando um plano transcendente, no qual, ao pedido de ajuda de Megan, se dá a aproximação de alguém que se sugere ser seu aliado ou adjuvante. Assim, a cavalgada do solitário responde à outra, colectiva, do bando, em paralelo, pela similaridade de movimentos para um destino, e pelas contrastivas diferenças em antíteses. Por outro lado, liga-se, num paralelismo modal e aspectualmente profético, à prece da ofendida, embora possa ter com esta uma simultaneidade temporal. O encontro apresenta-se como consequência, pelo menos na dimensão da justiça transcendente, em relação ao grupo de pistoleiros e como prolepse, em atendimento da prece, no que diz respeito ao encontro a realizar-se com a  jovem em busca de proteção.

    Comparando esta aproximação com a que Stevens apresenta no seu filme, já acima referido, diz-nos Fran Benavente:

    “Megan (Sydney Peny) a adolescente protagonista do filme, que ocupa a posição equivalente a Joe Starrett de Shane, caminha por um bosque brumoso que apenas deixa passar alguns raios e luz. Leva o cadáver do seu cãozinho nos braços. […] Do percurso em senda algo misteriosa, passamos para as mãos da rapariga, que acaba de enterrar o animal. […] O imaginário da tumba manifesta-se.A rapariga coloca um tronco de árvore como se fosse uma cruz, e inicia uma oração que assinala a falta, o vazio, que reclama uma presença. «Nas lendas orientais a cruz é a ponte ou a escada pela qual os homens sobem até deus (…); situa-se no ‘centro do mundo’ é a encruzilhada entre o céu, a terra, e o inferno» escreve Mircea, Eliade  (Tratado de história de las religiones. Madrid: Ediciones Cristandade, 2000, p. 429)./ Fala-se de milagre, Em seguida, o anelo, em forma de oração, desloca-se pela montagem, como um eco que ressoa nas paragens montanhosas. A oração sobre a tumba invoca uma imagem que aparece de forma evanescente, por encadeamento, como resposta à palavra formulada. A imagem do herói, ainda precária, ainda não se materializou completamente. Tal não acontecerá até que a oração termine. O «predicador» surge da paisagem; […] fantasma conjurado do próprio lugar do sepulcro, de onde jazem os mortos” (2017: 300).

    Os encontros processam-se numa ordem que dá primazia ao plano da factualidade mais banal, ou seja, primeiro, como qualquer viajante que vem de longe, o recém chegado dirige-se à cidade onde se depara com  o garimpeiro Hull, e alguns membros do bando de LaHood e, só mais tarde, ao visitar o acampamento, a convite de Hull, encontrará Megan cuja oração, como vimos acima, parece tê-lo chamado.

    De facto, a vinda do cavaleiro enigmático, parece ser convocada pelas preces da jovem habitante da aldeia de  prospectores humildes, numa montagem que não só sublinha a simultaneidade de aparição do ginete com a enunciação da prece, mostrando, ora Megan, ora o cavaleiro, como torna essa junção simbolicamente significativa, pois da parte mais longínqua do horizonte, em imagens que alternam com as duas séries anteriores, surgem as imagens luminosas do céu, cerrado de nuvens, antecedendo a chegada do cavaleiro[2].

    Depois do ataque ao acampamento quando Hull se dirige à cidade mineira para obter as coisas que faziam falta no acampamento, inclusivamente em resultado do assalto, quatro membros do bando que invadira a aldeia mineira, atacaram-no com cabos de machado em exposição na loja do retalhista. Para surpresa de todos, intervenientes e espectadores, é salvo pela intervenção do cavaleiro que usa um quinto cabo, disposto na  entrada do armazém, para travar os atacantes. Como reconhecimento Hull convida o desconhecido para jantar em sua casa.

    Quando se aproximam, a sua namorada, Sarah Wheeler, com quem coabita, numa relação a que poderíamos chamar pré-marital, escuta Megan, a sua filha, que lia, em voz alta, o livro bíblico do “Apocalipse”, também chamado “Livro da Revelação”. No momento em que ela pronuncia a visão do que continha o quarto selo — “And I looked, and behold a pale horse: and his name that sat on him was Death, and Hell followed with him” (Book of Revelation, chapter 6, verse 8; King James Version – KJV)[3] — o cavaleiro misterioso, que nunca terá nome, aparece, sobre o seu cavalo, no enquadramento da janela perto da qual ela lê.

    Ghost riders in the sky, por Vaughn Monroe.

    “[…] Uma força, um certo desejo, atrai Sarah do exterior; olha pela janela esperando um advento.  A rapariga acaba a sua leitura no momento em que a sua mãe se chega à janela, atraída por aquele que está a chegar. […] No umbral [que forma a janela] aparece a figura do forasteiro como resposta à frase bíblica, recém pronunciada, . Dessa forma se aquilata o universo mortuório que acompanha o herói, o qual é designado directamente como «a morte»” (Benavente, 2017: 301).

    Quando o desconhecido muda de roupa, no quarto de Hull, este verifica que ele tem nas costas a marca de vários tiros, rodeando a região vitalmente vulnerável do pulmão e do coração. Aquele homem tinha, de facto, os indícios de poder “ter sido morto”, mas não dá explicações sobre isso ao anfitrião. Quem não o toma por aparição, mais ou menos numinosa, é Sarah. Antes o olha com uma admiração, misto de fascinada e temerosa, e, a entendê-lo dentro dos modelos bíblicos, podíamos ver o seu encontro, já antecedido por todo o simbolismo que envolveu a sua imagem e a sua chegada, como uma derivação do “Cântico do cânticos”[4], expressão, neste caso, do seu desejo carnal.

    Mesmo quando o vê um pouco depois, encontrando-se ele já lavado e envergando nova roupa, da qual fazia parte um colarinho de padre, ou pregador, ela aceita-o e venera-o como representante de  uma igreja (Preacher, epíteto que passa a ter o valor de seu nome próprio), mas mantém sempre um olhar eroticamente interessado sobre ele. Facto muito parecido com o que ocorre com a sua filha, ainda que, nesta, tudo tenha uma tonalidade mais mística, ou talvez, ingénua ou infantil. 

    Na sua tentativa de estudar a Bíblia do ponto de vista do crítico literário, Northrop Frye, ao procura apresentar o modo como os seus “elementos ergueram um enquadramento imaginativo ­- um universo mitológico, como eu lhe chamo – dentro do qual a  literatura Ocidental operou até ao século XVIII e continua, em laga escala, a operar ainda” (Freye, 1983: XI), abre-nos um campo teórico de indagações que, como acabámos de ver nos parágrafos anteriores, tem  um forte halo de intensificação semântica  no cinema e, em particular, no western, até finais do século XX. Tal como manteve na literatura ocidental, pelo menos até meados do século passado. Facto que nos é dado a ver em obras como as de Faulkner, de Dostoievsky ou de Martin du Gard (para dar exemplos alargados a toda a literatura Ocidental), mesmo quando a descrença generalizada numa ordem regida por uma transcendência divina se manifestava em representações que dramatizam essa perda mais ou menos, ou não a dramatizam de todo. Algumas obras de Steinbeck, como The Grapes of Wrath (As Vinhas da Ira cf. Apocalipse 14: 19-20) e In Dubious Battle, (Luta Incerta), cujos próprios títulos evocam esse enquadramento mito-ideológico, desde o texto antigo até ao elementos simbólicos e narrativos que são retomados em Paradise Lost de Milton  no século XVIII[5], remetem-nos para uma presença forte desse universo mitológico na cultura americana, na qual o western se integra, ainda que a posição dos autores seja de suspeição ou de dúvida relativamente aos tópicos que constituem artigos de fé.

    Um dos cronótopos mais fecundos que Bakhtine usa é o do idílio (Do grego eidýllion, «quadrinho», pelo latim idyllĭu-, «poema pastoril; idílio»), dentro do qual, por problematização da “perda”, se desenvolve, por exemplo, o romance de aprendizagem, em estreita relação com a narrativa pastoril, ou o romance regionalista. Não o é apenas, no entanto, pelo que permite circunscrever e determinar de tempo e espaço enquanto coordenadas do lugar, coordenadas intimamente ligadas às vivências assumidas como valores antropológicos e que a literatura incorpora ( “a adesão orgânica, a dedicação de uma existência a um lugar – a terra de origem – com os seus recantos, as suas montanhas, os seu vales, pradarias, ribeiras e florestas natais, a casa paterna” – Bakhtine, 1978,:367), que o conceito de idílio é produtivo. É, também, pelo seu jogo com outros cronótopos referidos por Bakhtine (o cronótopo da estrada, o do encontro) ou, por vezes, pensados a partir dos seus (como o do exílio, que podemos conjecturar, em relação de oposição, com o do idílio, projectando, sobre este, o do encontro e o da estrada) que nos encaminhamos, muitas vezes, para a construção teórica de algumas figuras caracterizadoras dos sub-géneros temáticos da literatura. (Jorge, 2010: 136)  

    Se recorrermos às propostas teóricas de Bakhtine, podemos dizer que a Bíblia impõe à cultura americana , com forte relevo no cinema e especial intensidade no western, a matriz de um cronótopo já de si complexo. De facto “a correlação essencial dos intercâmbios espácio-temporais” de que ele fala (Bakhtine, 78: 237) mantém uma permanente tensão entre as duas instâncias fundamentais: a espacialidade dos settelements, lugares  de assentamentos coloniais, pequenos povoados em torno dos quais se desenvolvia uma comunidade, quase sempre conduzida por uma ideologia cristã, que era a sua base ética e de  ordem social; e a temporalidade  da deslocação, da viagem, da travessia. Os índices do tempo, revelam-se em espaços, e os espaços, são medidos e percebidos segundo o tempo.

    A estrada dos pioneiros, por exemplo, tem como modelo, quase simbólico, a “pista de Oregon” com as suas caravanas, e como representação da motivação dos exploradores, a “corrida ao ouro” na Califórnia. Ambos os filmes de Eastwood estão relacionados com estas variantes do cronótopo da estrada, assim como com cronótopo do idílio, entendendo-o como aquele “em que se processa a adesão orgânica, a ligação de uma existência e dos seus acontecimentos a um lugar” e relaciona-se com o “recanto em que viveram pais e antepassados e viverão filhos e netos”. É claro que a sua junção nos dá a grande composição cronotópica do Western.

          Torna-se necessário esclarecer, sobre o cronótopo do idílio que este “micromundo, se sustem a ele mesmo” e, tal como noutros universos que podem ser considerados, estes espaços, no western, “não estão ligados a outros lugares” (cf. Bakhtine, 1978: 367). Pelo menos na aparência, ou numa certa restrição de dimensão do desejável, do modelo exemplar…e é na transgressão dessa regra que os westerns do modelo de Shane, têm o valor dinâmico, e a intensidade dramática. Porque eles consubstanciam, pelo modo como valorizam um dos elementos aparentemente ausente do idílio: a estrada, como trilho, ou rota.

    Reintegrando-o como nova instância, a do horizonte mítico dentro do idílio. Todos estes traços permitem delimitar, tendo em conta a importância composicional da variante, um subgénero, manifestação histórica e nacional do idílio, que é o povoado retirado do tempo histórico e que evoca, como espaço mítico, um universo exterior, de onde vêm os impulsos da mudança, e os agentes repositores da ordem. Podíamos chamar-lhe cronótopo do settelement ou dos assentamentos coloniais, opondo-o, por emparelhamento, ao que que enfatiza a pista, para a descoberta, ou a rota ou mesmo a corrida, para a ocupação ou a apropriação.[6]

    Como notam alguns estudiosos da narrativa cinematográfica popular, em grande parte, aquilo a que se chamou a cinematografia, ou a filmografia da Série B, uma das tensões que surge no confronto de valores, é a que assenta na divisão entre a “cartilha” pela qual se pautam os agricultores, ou garimpeiros pobres, enfim, todos aqueles que vivem do seu trabalho, e residem nos meios rurais, e os textos de lei que servem de referência aos habitantes da cidade: embora o registo codificado comum seja a Bíblia, as fundamentações evocadas divergem. Uma outra partilha de pauta de valores assenta na que existe entre os que sobrevivem em campo aberto (o tão evocado open range, dos criadores de gado, mas também dos vaqueiros e dos fora-da-lei), nos qual se confundem os grupos que vivem laborando num relativo nomadismo.

    O tipo de herói que temos aqui, prioritariamente, em consideração, a partir dos filmes de Eastwood, mas também o de Stevens, identifica-se com o grupo nómada, pelo seu modo de vida itinerante e independência relativamente a qualquer comunidade, mas assume a defesa dos valores humanos básicos (direito à vida, à liberdade, à dignidade), antes de mais, em grande parte os da LEI, a Lei vigente, emanada da sociedade civil no seu sentido mais amplo e, no limite, pratica um respeito pela transcendência religiosa, sobretudo relativamente aos princípios explícitos no discurso que dela emana (através do texto bíblico — Gospels ou Old Testament —, ou de outros discursos claramente decorrentes deste: a palavra dos padres, pregadores, entidades santificadas pelos colectivos a que pertencem). Daí o facto de estes heróis se identificarem, muitas vezes, com as entidades míticas da cavalaria celeste, presentes nos romances de cavalaria.

    A marca identificadora do espaço fechado, universo com limite no horizonte, é a cadeia de montanhas, em muito equivalente e parecida com a que fecha os horizontes da região onde se movem as personagens do filme de Stevens, Shane. No seu esforço aparentemente objectivante, de extrair toda a força alegórica da realidade sensível, numa procura de referencialidade em que a “realidade se propõe de modo sempre diferente, cada vez que se apresenta à consciência dos sujeitos”, este tipo de narrativa faz variar os pontos de vista a partir dos quais “o referente” da paisagem surge, com o seu cerco de montanhas como “um «universo imaginário» uma versão singular do mundo” no fundo uma “«visão do mundo»” pela qual o “referente” ficcional, captado pela objectiva se afirma como um universo fechado como uma realidade social e física “com todos os seus horizontes possíveis, todas as perspectivas que possamos ter acerca dela, e, a partir dela, sobre o mundo” (cf. Collot, 1989: 175-176).  

    O filme de Stevens estrutura e fundamenta o seu horizonte histórico-cultural, sugerindo o além de onde Shane emerge e, no final, desaparece, como região mítica de quase sacralidade, aquilo que Mircia Eliade designaria por “as regiões superiores, inacessíveis ao homem, as zonas siderais,” que “adquirem os prestígios do transcendente” aonde “só chegam alguns privilegiados” e para onde “se elevam as almas dos mortos” (Eliade, 1978: 129)[7]. É preciso notar que nos dois westerns de Eastwood que aqui comentamos o justiceiro misterioso vem dessas altitudes remotas e regressa a esses espaços de ascensão, apresentando sempre certos sinais ou marcas que o ligam directamente ao mundo dos mortos, surgindo entre nós como aparições ou mesmo fantasmas.

    Esse além invisível, para lá das montanhas, surge, no cinema, através do cenário ostentado pelas panorâmicas e pelos planos de conjunto com grande ou extremamente grande afastamento focal. Isso deve-se, por certo, ao facto de o género, no cinema, rejeitar, por motivos ainda hoje justificados (a dominância da matéria específica icónica, em detrimento da verbal, que tende a ser substituída por aquela – por exemplo), o discurso ético-avaliativo e argumentativo que tão bem cabe no romance, mesmo que ele tenha como matéria lendária o justiceiro do Oeste, homem mais de acção do que de palavras, de suprema rapidez a disparar. Demonstra bem essa possibilidade o parágrafos final da obra de Schaefer: “He was the man who rode into our valley out of the heart of the great glowing West and when his work was done rode back whence he had came and he was Shane”  (150-151)[8]. O que o cinema traduz, na expressão de Stevens, por um longo plano de Shane, a cavalo afastando-se em direcção às montanhas, similar a e inverso plano inicial, em que se aproxima, vindo das regiões montanhosas. Assim fazem, também, os cavaleiros solitários dos dois filmes de Eastwood.

    Como diz Collot, num outro texto:

    “O horizonte é um limite de abertura, não uma vedação. Dá à paisagem os seus contornos e a sua aparência, mas, igualmente articula-a com o algures indeterminado; pelo que, recuando indeterminadamente, ele abre-a para o ilimitado. Se, por um lado, desenha uma fronteira, por outro lado fá-la permeável: o horizonte  dá ao lugar a sua identidade, mas ele coloca-o em relação com todos os outros, e, virtualmente, com o mundo inteiro, que é o “horizonte de horizontes” (Husserl)”.

    Um dos efeitos que se produzem, pelo uso poético deliberado da referência “fiel ao movimento pelo qual o mundo, a todo o momento, se pode revelar outro, para espanto dos nosso olhos” (Collot,1989: 174) é o da epifania,  que significa aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado com o contexto do mistério ou do desconhecido e imenso ou, eventualmente, da plena transcendência, mas que, ao mesmo tempo, absorve pela força da sua presença. Por isso pode ser, igualmente, uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas[9]. Este procedimento, que foi muito caro e Joyce, elaborando a ostentação súbita e intempestiva de um objecto ou facto, apresenta-os como reveladores do que que transcende a percepção imediata dessa objectualidade, ou evoca  traços emotivos e afectivos a ela ligados.

    Por esse procedimento, qualquer dessas aparições  era sentida como ocorrência que abre, em modos de “evidência”, um processo de inteligibilidade, a “experiência vivida” da verdade, (cf. Lyotard, 1967: 39) na sua dimensão de aletheia. Tudo se passa como que numa revelação do que está por detrás dos elementos perceptíveis, presentes como factos concretos, ou seja, no horizonte visionário que lhes diz respeito. Parece-nos evidente que este efeito de aparição (com o seu correspondente contraponto, a desaparição) resulta com muito maior facilidade no cinema do que no romance, por exemplo, embora, depois da afirmação estética e poética do cinema, muitos tenham sido os ficcionistas, como Dos Passos ou Faulkner, por exemplo, que procuraram produzir o efeito através da palavra, a partir do próprio Joyce.[10]

    Como já dizíamos, a propósito do filme de Stevens, há um efeito mítico de um herói carregado dos símbolos da sua própria plenitude, emergindo da Sierra Nevada  (cenário postulado, atendendo a que o universo diegético é a Califórnia, como em Shane eram as Montanhas Rochosas) e voltando a desaparecer nela, o que nos permite pensar a obra de Eastwood, tal como a do cineasta anterior, como um cruzar de todos os valores mito-poéticos da matéria relativa ao pioneirismo, e à fundação dos povoados, e os aspectos formais dos sub-géneros épico-narrativos (cf Jorge, 2005), como veremos melhor adiante.

    Um aspecto que se revela em ambas as obras, de Stevens e de Eastwood, é a estruturação de uma mensagem poética em que o Oeste se valida, como mito, pela evocação de um passado a que o herói pertence – e que, por essa pertença, só  se afirma plenamente como retorno potencial, ou mesmo putativamente, fantasmático. Essa  característica  é ténue, no filme de Stevens – ainda marcado pelo efeito de memória evocativa com os seus contornos retóricos de discurso verbal produzido pelo romance de Schaefer –,   mas que emerge com toda a força nos de Eastwoood. Aspecto que se torna muito mais evidente quando destacamos High Plains Drifter (O pistoleiro do diabo) de 1973. Se acrescentarmos a este cotejo comparativo, o que resulta do confronto  entre os sistemas de enunciação da narrativa, que apoia, pelo tipo de sujeito que a suporta essa dimensão mítica, a objectiva mecânica, e dos que resultam de enunciados verbais, torna-se-nos evidente que, esse mesmo dispositivo enunciativo, no filme,  como já o notara o próprio Saunders, e já por nós sublinhado no referido texto sobre Shane, sofre alterações que facilitam, ou quase apelam, para as sugestões do sobrenatural e do fantasmático, pela sobrecarga de presença sensível que as suas representações, mais ou menos fantasiosas, propiciam[11].

    Podemos reafirmar, com ele, que a entidade responsabilizada pelos valores éticos e epistémicos do filme é menos conotada como um Sujeito da verdade, notando que “a primeira pessoa narrativa da personagem do livro, se torna Joey” personagem dramatizada na mise-en-scène cinematográfica, o que,  “no filme, dá aso a uma perspectiva mais objectiva, mas, apesar disso, vemos os eventos através dos seus olhos e os ângulos da câmara asseguram que, como ele, olhemos para cima, para Shane, em muitos momentos” (2001:14), o que nos faz vacilar relativamente à fonte mais segura do discurso positivo e esclarecedor.

          Contudo, há uma mudança de quase 180º, na fundamentação e valorização ética e mito-religiosa, nos filmes de Eastwood de que vimos falando, dos heróis recém-chegados, de modo algo misterioso, sendo o seu comportamento, também, razoavelmente enigmático. Enquanto o herói de Stevens (nesse aspecto alterando mesmo, nos adereços e complementos talismânicos, o romance homónimo) é uma espécie de virtuoso cavaleiro que chega de um horizonte circundante e não domesticado, com um aparato de signos e talismãs que evocam o pioneirismo como uma missão de cavaleiro andante, vestido com um traje  que lembra os cavaleiros  sem mácula, dos romances de Chrétien de Troyes[12] não  faltando ao seu cavalo a gigantesca malha branca que sugere, nele, as míticas qualidades de um unicórnio, perseguindo um destino com inquebrantável perseverança; os heróis que Eastwood compõe ostentam os valores da justiça virtuosa, mas segundo um aparato ético mais próximo daquilo que as igrejas bíblicas tendem a apontar como marcas do diabo.

    Conviria, talvez, ver, neste, o recuperar de uma faceta do satanismo, de dimensão astral, no seu tom luciferino, em substituição do angelismo branco de que Shane está carregado. Shane pede bebidas sem álcool, no bar, ao passo que o Pregador, por exemplo, apesentando-se como tal, aceita bebidas alcoólicas “a partir das 9 da manhã”. Igualmente, o herói de High Plains Drifter (O Pistoleiro do Diabo), não deve nada ao angelismo seráfico, é brutal, bebe e é agressivo. Neste, a relação com o além é mais difusa, mas a sua presença vital, carnal e activa, manifesta-se sem negar as relações com o mundo dos mortos. No entanto, o registo é mais realista.

    A sua deriva arrasta-o, das terras altas, possivelmente de longe, dado que o título é o viajante das planícies ou terras elevadas, mas na planície estagnada junto ao lago de águas mortas, o seu centro de atracção é o cemitério, e a sua atenção fixa-se numa campa sem nome. No entanto, com ele vem a morte e a vingança, exercendo-se numa cidade junto ao lago, chamada Lago, e que tem, a circundá-la, complementarmente ao lago, uma cadeia de montanhas, de onde o vagabundo, o cavaleiro, errante, vem: dessas montanhas que, como diria Pierre Jourde, são “a forma telúrica por excelência; a terra elevada, o material terrestre colocado em relevo, em três dimensões, de tal forma que exaltam a sua espessura e a sua consistência”, impondo ao olhar “uma presença, concreta, compacta, que barra o horizonte e encerra o espaço” (1991: 58).

    Mas a característica do trilho de chegada do cavaleiro que vem das terras altas, não é, tão intensamente como em Pale Rider, a descida das regiões ignotas, embora elas também sejam ponto de origem, menos enfatizado do que neste último, é certo, mas presentes. É, sobretudo, o ponto de passagem, o cemitério já nos arrabaldes da cidade, junto ao lago.

    Na passagem por este lugar dos mortos, o cavaleiro avança lentamente, como que perscrutando as campas. A continuação da narrativa, nomeadamente as imagens de recordações ou pesadelos, podem ligar-se a estas imagens iniciais, bem como a sequência final, da partida do cavaleiro: ao passar no cemitério, o marshal anão, prepara-se para identificar uma campa sem nome, quando o cavaleiro misterioso se cruza com ele e, perante a perplexidade que este manifesta na expressão, o visitante, antes de pôr o cavalo em andamento mais rápido, diz-lhe que ele bem sabe qual o nome que deve estar na lápide:  Jim Duncan

    O trilho da demanda de Shane, recém-chegado a uma região de pequenos agricultores que colonizavam Wyoming, é, sem dúvida, o modelo dos dois filmes de Eastwood, nos seus traços gerais. Os colonos lutam contra os grandes criadores de gado, e o objectivo de Shane, ao envolver-se no conflito, é a tentativa de obter ordem e justiça, numa axiologia que, implicitamente, se assume como sendo de origem celeste. Este percurso é, praticamente idêntico ao do Pregador de Pale Rider.

    Após abater o bando de malfeitores, o cavaleiro desaparece no horizonte de onde emergiu – figurando assim uma harmonia entre o cosmos e a lei que parece reproduzir a conjunção entre a transcendência e a imanência que, numa perspectiva lukacsiana, por exemplo, seria o traço fundamental do herói épico (s/d[196…]66-67)[13]. A activação desse valor supremo, que parece pairar numa transcendência que só o herói sabe traduzir para a acção imanente, realiza-se pelo seu braço, tal como nos romances de cavalaria medievais, sempre do lado certo  do litígio, transformando a sua acção e o  resultado desta na esfera da harmonia cósmica como feito resultante da demanda.

    Mono Lake, Califórnia, palco de filmagens de High Plains Drifter.

    No caso do High Plain Drifter, a intriga difere ligeiramente, sobretudo na pormenorização da fábula: o herói chega para redimir, pelo castigo, a quase totalidade dos habitantes da cidade, e pela humilhação, os outros que, pelo seu silencia ou pela anuência, foram, cúmplices de um crime e de uma vivência de culposa ignomínia. É claro que a identificação, por fortes sugestões, nos sonhos maus do cavaleiro recém-chegado, com o marshal anos antes assassinado, torna a figura deste justiceiro muito próxima da pura fantasmagoria.

    E a sua justiça raia quase o rigor do fio da navalha: deixa matar os instigadores do assassinato do antigo agente da lei, pelos próprios assassinos deste, que, entretanto regressam da prisão para onde os tinham mandado forjando um delito que as autoridades estatais puniram; mata os assassinos com os mesmos processos com que eles tinham assassinado o marshal deixa uma censura e um aviso aos restantes cidadãos, que se cumpliciaram pelo silêncio. Para já não falar da sua enigmática intenção ao ordenar aos habitantes de Lago que pintem todos os edifícios da sua cidade de vermelho, tendo ele próprio pintado no marco com a designação da cidade, LAGO, colocado no caminho de acesso, um outro nome que cobre o original, HELL, com a mesma tinta vermelha.

    De facto, “quando tem uma conotação negativa, o vermelho cristão está quase sempre associado aos crimes de sangue e às chamas do Inferno” além de que “os teólogos” o associaram a “vários vícios” entre os quais se contam quatro dos pecados capitais, a saber, a “ira”, a “soberba”, a “luxúria” e a “gula” e, “mais banalmente” mas em decorrência do sistema erudito, “o vermelhos é associado a tudo o que lembra a violência, a devassidão, a traição e o crime” (Pastoreau, 2019a: 123). Ora é bom relembrar, a este respeito, que o grande código que está presente no western, mais do que em qualquer sistema artístico ou tendência narrativo-fabulatória, é a Bíblia: o”Velho Testamento” e os “Evangelhos”.

     Registemos, neste ponto, a quase enfatização do alegórico em High Plain Drifter, em detrimento do real – que. noutros aspectos, até parece cultivar –, no que diz respeito à recriação da cidade enquanto espaço edificado. Ela é tratada claramente como lugar de uma cenografia, ou mesmo como um plateau de filmagens. O recém-chegado usa-a para projectar os seus humores, sem qualquer consideração por qualquer dos habitantes, tratando-os como actores ou mesmo títeres.

    A cena do treino de tiro é bem exemplificativa disso, quando os figurantes humanos são emparelhados com os bonecos de palha. Por outro lado, exceptuando os culposos habitantes, com estabelecimento comercial ou funcionários da empresa de exploração mineiras, alguns residentes já idosos, a cidade é particularmente desértica, e parece não ter existência nos arredores. Não há crianças, não há mineiros, nem cultivadores de terrenos.

    Fran Benavente, numa apresentação que transcrevemos como recapitulação resumida da nossa análise, declara o seguinte:

    “Assim, pois, do passado surge uma violência transbordante, que deve ser exorcizada no presente, reduplicada e, em consequência desactivada. E, neste caso, essa reduplicação patenteia-se deste uma evidente encenação, desde a construção de um cenário. Monta-se todos um dispositivo para reeditar o momento do passado. Pinta-se o  povoado de vermelho, e o inferno convocado, no momento da sua morte, pelo representante da lei que fora assassinado, torna-se presente. Sobretudo  na noite, quando as chamas inundam tudo, e o inferno já se apresenta palpável. […] Assim se produz a reduplicação da cena original, a violência reescreve a violência. O final do filme estabelece o sentido da narrativa. Uma vez cumprida a vingança, uma vez saldada a dívida original, o forasteiro pode ir-se. O fantasma já pode ser nomeado. O nome que não tínhamos, ainda, conhecido, vem encher a imagem, e, agora, sim, está inscrito na lápide. O espectro pode descansar em paz e a comunidade pode voltar a reconstruir-se. A figura reingressa no reino fantasmal, pode voltar a desvanecer-se no horizonte, na mesma paisagem fluida que abre o filme” (2017: 295-297).

    O cenário citadino mais semelhante ao deste filme, que conhecemos, em westerns, é o de Warlock (1959) – em português, O homem das pistolas de ouro –, de Edward Dmytrick, mas o pequeno lugarejo cercado de colinas, tem actividade, há minas, pessoas que figuram como possíveis trabalhadores das minas, vaqueiros, que são, aliás, o grupo que causa problema, os comerciantes activos, um hotel a funcionar, com hóspedes visíveis e tudo isso. Coisa que não acontece no filme de Eastwood: quase todas as pessoas presentes num quotidiano em que não se observa qualquer labuta, são as que já existiam no tempo do marshal que foi morto, e que parecem estar ali apenas para penitência. A cidade de Lago parece apenas uma excrescência ao lado do cemitério, uma dependência deste que domina a  planície, ou uma sua extensão.

    Warlok, vista do alto da colina sobranceira, pelos marshall e acompanhante recém-chegados: o pequeno mundo, ou lugarejo…com a sua matriz de actividade fundamental, a mina, assinalado pelo fumo.

    O  complemento que o forasteiro  lhe dá, mandando os habitantes pintá-la de vermelho, torna-a ainda mais evidentemente alegórica, tomando-a como um pórtico ou uma antecâmara do Inferno (HELL, é o nome que ele escreverá sobre LAGO, na tabuleta que marca os limites dos arredores da cidade). Paul Simpson, numa breve apreciação do filme aponta para algumas linhas temática e de estruturação narrativa que são de considerar aqui: “um gótico sobrenatural que se tece em torno dos temas de High Noon, 1952, (O comboio Apitou Três Vezes)” de Fred Zinnemann, tomando-o como referência” (2006: 74).

    O que, de facto, nos faz reforçar a ideia que, desde Shane, pelo menos, o horizonte mítico incorpora várias fontes que estão na origem dos valores que foram sempre evocados como bases da construção da “América” (com o significado de USA): a fundamentação bíblica, a sagração dos pioneiros enquanto mitos, e a acumulação de arquétipos de figuração dos pioneiros, como civilizadores, construtores, sobretudo, de um estado de direito inspirado pelo “Antigo Testamento” e pelos “Evangelhos”. Para a iconográfica mitificante do pioneiro, ou peregrino[14] civilizador, muito contribuiu, como fonte, o western cinematográfico, razão pela qual as obras mais recentes tendem a citar amplamente os “clássicos” do género, sobretudo quando andam em torno das origens míticas e dos horizontes que se criaram em torno destas. Quer sejam elementos de difusão da doutrina quer seja os espaços de culto, de oração ou de cerimonial fúnebre.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora

    N.D. Versão alargada de  uma comunicação aceite em 28 de Janeiro de 2020 para o congresso internacional Mediterranean Studies Association, prevista para Maio desse ano, mas adiada para data a confirmar.


    [1] O Pregador parece ter chegado em resultado da prece de Megan na qual ela cita o Salmo 23 da Bíblia (apresentamos o salmo completo, em português – que não é dito integralmente – e no qual Megan intercala manifestações dos seus próprios sentimentos: Salmos 23: “1 O SENHOR é o meu pastor, nada me faltará. 2 Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. 3 Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. 4 Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. 5 Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos, unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda. 6 Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na casa do Senhor por longos dias”).

    [2] Podíamos evocar aqui, em complemento da  tentativa de configuração da figura do cavaleiro solitário, enquanto alegoria, a canção clássica do estilo country escrita em 1948, nos EUA pelo compositor Stan Jones, (Ghost) Riders in the Sky: A Cowboy Legend, normalmente designada apenas por Riders in the Sky: Letras: An old cowboy went riding out one dark and windy day/Upon a ridge he rested as he went along his way/When all at once a mighty herd of red eyed cows he saw/A-plowing through the ragged sky and up the cloudy draw/Their brands were still on fire and their hooves were made of steel/Their horns were black and shiny and their hot breath he could feel/A bolt of fear went through him as they thundered through the sky/For he saw the riders coming hard and he heard their mournful cry/Yippie yi ooh/Yippie yi yay/Ghost riders in the sky/Their faces gaunt, their eyes were blurred, their shirts all soaked with sweat/He’s riding hard to catch that herd, but he ain’t caught ‘em yet/’Cause they’ve got to ride forever on/ that range up in the sky/On horses snorting fire/As they ride on hear their cry/As the riders loped on by him he heard one call his name/If you want to save your soul from hell a-riding on our range/Then cowboy change your ways today or with us you will ride/Trying to catch the devil’s herd, across these endless skies/Yippie yi ooh/Yippie yi yay/Ghost riders in the sky/Ghost riders in the sky.

    Fonte: Writer/s: Stan JonesPublisher: Kobalt Music Publishing Ltd., Lyrics licensed and provided by LyricFind . Tradução: Instant Grammar Checker.

    Cavaleiros Fantasmas correndo no céu

    Um velho vaqueiro foi montar/em um dia escuro e ventoso/No céu, porém, a noite ficou/rubra num clarão/E viu passar num fogaréu um rebanho/com olhos vermelhos no céu/Um arar através do céu áspero/levanta a tração da nuvem/Suas marcas ainda estavam em fogo/e seus cascos eram feitos de aço/Seus chifres eram pretos e brilhantes/e sua respiração quente que poderia se sentir/Um relâmpago de medo atravessou/ enquanto trovejou através do céu/Ele viu os cavaleiros que vinham duramente/e ouviu seus gritos de tristeza/Yippie yi oh/Yippie yi yay/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu/Suas caras desoladas, seus olhos borrados/suas camisas embebidas todas com suor/Eles cavalgam forte para pegar aquela manada/mas ainda não conseguem alcançar/Porque começaram a montar para sempre/nesse nível acima no céu/Nos cavalos que bufam fogo/eles montam ouvindo seus lamentos/Enquanto os cavaleiros galoparam sobre ele/ouviu-se um chamada pelo seu nome/Se você quiser conservar sua alma/do inferno de uma equitação conosco/Então hoje mude suas maneiras de ser vaqueiro/ou connosco você montará/Tentando coletar o rebanho do diabo através destes céus infinitos/Yippie yi oh/Yippie yi yay/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu/Cavaleiros Fantasmas correndo no céu” (vd. aqui).

    [3] “And when he had opened the fourth seal, I heard the voice of the fourth beast say, Come and see. And I looked, and behold a pale horse: and his name that sat on him was Death, and Hell followed with him. And power was given unto them over the fourth part of the earth, to kill with sword, and with hunger, and with death, and with the beasts of the earth.” Revelation 6:1-17 KJV (King James Version).

     Numa versão portuguesa podemos ler o parágrafo versicular da abertura do quarto selo: “E, quando abriu o quarto selo, ouvi <a> voz da quarta criatura, que dizia: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo verde*, e o quem se  senta em cima dele tem por nome morte; e o Hades seguia atrás; e foi-lhes dada autoridade  sobre a quarta parte da terra, para matarem  com espada, e com fome, e com morte, e por intermédio as feras selvagens da terra” (Bíblia, vol II: 569; Tradução de Frederico Lourenço).

     *A cor do cavalo é designada de várias formas: no “Apocalipse” 6:7,8, da tradução Almeida Corrigida, aparece o termo amarelo; Pale em inglês, amarelo, em português (as legendas portuguesas do filme apresentam-no como esverdeado…o que corresponderá, eventualmente à designação verdâtre, a partir de alguma versão francesa, correspondendo, em geral, a várias versões francesas que se refiram ao “Apocalipse”; sendo outra possibilidade da designação alternativa, portuguesa – ou francesa – dada nas legendas do filme, o termo glauco). Numa nota feita para o versículo 6.7, Frederico Lourenço acrescenta: “não sendo, é certo, a cor habitual dos cavalos, a palavra «verde» (klôrós) poderá talvez significar aqui «pálido» (p.569). Pode-se pensar na coloração atribuída aos cadáveres dado que o animal é cavalgado pela morte. Esclarecedoramente, escreve Michel Pastoureau: “Aquoso, viscoso, não saturado” é um “verde negativo” que “é também por vezes um esverdeado. A cor não é, então, viva nem pura, antes acinzentada, mortiça, esbranquiçada. Na imagens como na realidade, essa tonalidade esverdeada  – que o latim medieval exprime pelo adjectivo subvirdis – é sempre inquietante, se não mortífera. É a cor do bolor, da doença, da putrefacção e sobretudo das carnes decompostas. É também por isso a cor do cadáveres e, por uma relação analógica, tão habitual na Idade Média, a cor das almas do outro mundo, que deixam o país dos mortos para virem à terra atormentar os vivos e o seu direito à vida eterna” (2019: 122-123).

    [4] “Voz de meu irmãozinho! Eis que ele chega, saltando nas montanhas/ pulando nos montes,/saltando sobre as colinas/Semelhante é meu irmãozinho à gazela/ou à corça de veados nas montanhas de Baithel,/Eis  que ele está de pé atrás do nosso muro/por detrás do nosso muro,/Espreitando pelas janelas,/Espreitando pelas persianas” (tradução de Frederico Lourenço, Bíblia, vol IV, Tomo 1 2018: 63).

    [5] Verso 104 [p.6].

    [6] Rio Vermelho (em inglês: Red River), 1948 western, dirigido por Howard Hawks e Arthur Rosson, podia ser um bom exemplo dessa amálgama, de actividades nómadas mais ou menos respeitadoras dos valores humanos básicos, religiosos e legais.

    [7] Esta visão pode ser completada pelo que Eliade nos diz, na mesma obra: “[…] a montanha figura entre as imagens que exprimem a ligação entre o Céu e a Terra; considera-se, portanto, que a montanha se encontra no Centro do Mundo. Com efeito, numerosas culturas falam nos dessas montanhas – míticas ou reais –situadas no Centro do Mundo, visto que a montanha sagrada é um […] Axis mundi que liga a Terra ao Céu, ela toca de algum modo o Céu e marca o ponto mais alto do mundo […]” (1978: 51).

    [8] “Ele foi o homem que cavalgou  até ao nosso vale, vindo do coração do imenso Oeste cintilante, e quando acabou o seu trabalho regressou ao lugar de onde tinha vindo e ele era Shane”.

    [9] No fundo trata-se da revelação das coisas despidas dos aparentes equívocos, com defendia Joyce no seu romance esboçado, Stephen Hero, como é explicado  por Bernard Richards no texto que se segue: “Stephen explains in Stephen Hero that the apprehension of beauty involves the recognition of integrity, wholeness, symmetry and radiance. Here he comes close to the aesthetics of Gerard Manley Hopkins and his philosophy of haeccitas (‘thisness’). Joyce demonstrates the way in which the contemplated object is revealed: Its soul, its whatness, leaps to us from the vestment of its appearance. The soul of the commonest object, the structure of which is so adjusted, seems to us radiant. The object achieves its epiphany. (Stephen Hero, Chapter XXV – Tradução nossa, CJFJ: “Stephen explica, em Stephen Hero que a apreensão da beleza envolve o reconhecimento da integridade, plenitude, simetria e esplendor. Aqui ele aproxima-se da estética de Gerard Manley Hopkins e da sua filosofia de haeccitas (‘thisness’ – [‘istismo’]). Joyce demonstra a maneira pela qual o objeto contemplado é revelado: a sua alma, seu “quêismo”, salta-nos de sob a cobertura da sua aparência. A alma do objeto mais comum, cuja estrutura é  ajustada deste modo, parece-nos radiosa [sublinhado nosso]. O objeto atinge a sua epifania. (cf. Stephen Hero, capítulo XXV).

    Cf tb. Bernard Richards, in `The English Review’.

    O conceito aparece  menos explicitado em The Portrait of the Artist as Young Man, 1916.

    [10] O final do conto, “The Dead” do livro Dubliners, p. e. com a quase fantasmagórica percepção da presença de um morto na sua evocação. O início do romance Sanctuary 1931, que, muitas vezes, quase parece  o texto de de uma planificação cinematográfica, é o seguinte: “From beyond the screen of bushes which surrounded the spring, Popeye watched the man drinking. A faint path led from the road to the spring. Popeye watched the man a tall, thin man, hatless, in worn gray flannel trousers  and carrying a tweed coat over his arm – emerge from the path and kneel to drink from the spring.” — 1965 p. 5, Penguin/Modern Classics, Midllesex,  

     “Por trás do biombo formado pelas moitas que cercavam a nascente, Popeye observava o homem que bebia. Mal definida trilha levava da estrada à fonte. Popeye vira o homem – sujeito  alto, magro, sem chapéu, metido em surradas calças de flanela cinza e tendo no braço o paletó de tweed –, emergir da trilha e ajoelhar-se para beber”. — Santuário / William Faulkner; tradução de Lígia Junqueira Caiuby. São Paulo: Abril Cultural, 1982.

    [11] É claro que se joga aqui, com uma conceptualização que sugere que a fantasia (Phantasie*) com reforço fantasmático pode apelar para a aparição assombrada, ou simplesmente assombração (Phantom*), que, segundo a teoria freudiana (em textos como “Le créateur littéraire et la Fantasie” — in Freud, 1985: 29-46) são efeitos com que jogam persistentemente os ficcionista mas que se destacam, em toda a dimensão da sua ambiguidade, nos filmes de Eastwood, mesmo quando não fazem desse tema uma matéria central da suas história como é ocaso dos dois filmes em que aqui enfatizamos. Mas igualmente noutros, como The Outlaw Josey Wales (O Rebelde do Kansas), 1976, o tema do regresso do mundos mortos ou o da inexplicável evanescência (Josey Walls “morre” segundo os registos que os rangers tomam, para fazer constar no estatuto civil do perseguido    fora-da-lei), estão presentes, ainda que num registo mais realista.

    *Cf., p. e., para mais amplo esclarecimento, Mardem Leandro Silva, (2014: 41-42) in: “[…]fantasia se refere à imaginação, cenário imaginário e 42 representação, tal como Freud a faz valer. E para ser exato, o termo alemão que Freud utiliza é Phantasie, que em português é traduzido e dicionarizado como fantasia. Em francês, o Phantasie é traduzido como fantasme e, como fantasme, possui os mesmos sentidos que fantasia em português. O termo fantasma em alemão não se traduz por Phantasie, mas sim por Phantom, e a significação também é bem distinta, se refere a espectro e a algo que assombra. Em francês, fantasma se traduz por fantôme e segue a mesma linha de significação. Em Freud (1919/1996l), o termo Phantom aparece no texto Das Unheimlich, em português, O Estranho. Nesse texto, o campo semântico do familiar (heimlich) permite inferir que se trata de “[…] um lugar livre da influência de fantasmas.” (p. 243). Ora, se o heimlich não seria habitado por fantasmas, o unheimlich poderia ser pensado como o lugar da própria influência do fantasma? Freud não se ocupa dessa articulação, para ele, o conceito de fantasia era suficientemente eficaz para lidar com a problemática tanto clínica quanto teórica.”.                                                                                                                                               

    [12] Poeta/ficcionista francês, do séc. XII, autor (possivelmente a partir de versões orais das tradições, por vezes designadas “matérias”, bretãs e celtas) das mais conhecidas narrativas do Cavaleiros da Távola Redonda. É provável que nos Estados Unidos essas narrativas fossem mais divulgadas pela versão que aparece em Le Morte d’Arthur ou Le Morte Darthur,  escrito, no século XV, pelo inglês Thomas Malory.

    [13] Na edição indicada é recomendável, para um melhor esclarecimento da matéria, a leitura das páginas de 61 a 76.

    [14] Usamos o termo no seu sentido mais amplo, obviamente: o que atravessa terras desconhecidas ou a elas se dirige.

  • Estante P1: Novembro de 2022

    Estante P1: Novembro de 2022

    Título

    As guerras de Albert Einstein – vol. I

    Autores

    François de Closets, Corbeyran e Chabbert

    Editora

    Gradiva

    Sinopse

    Durante a Primeira Guerra Mundial, Einstein, o antimilitarista, fica horrorizado por ver o seu grande amigo, o químico Fritz Haber, produzir gases asfixiantes.

    Mas, no início da Segunda Guerra Mundial, seria o próprio Einstein a escrever ao presidente Roosevelt para o incitar a construir uma bomba nuclear…

    Um químico nacionalista, um físico pacifista – dois destinos, para uma história extraordinária e apaixonante. Nesta narrativa tudo é verdade. Os personagens são autênticos, tal como os seus comportamentos, privados ou públicos. Tudo foi por isso tratado em pormenor – por exigência da narrativa de Corbeyran –, e tudo foi escrupulosamente reconstituído, graças ao extraordinário trabalho gráfico de Éric Chabbert. 

    Começa aqui, com a relação dos génios Fritz Haber e Albert Einstein, uma história que não sabemos até onde poderá levar a Humanidade.

    Título

    Elogio da sabujice

    Autor

    Rui Teixeira da Mota

    Editora

    Guerra & Paz

    Sinopse

    É certo e sabido que vivemos rodeados de sabujos* da mesma forma que pululam por essas estradas fora os maus condutores. no entanto, quer num caso quer no outro, jamais algum deles se assumirá como tal; os outros é que o são.

    Ciente da sua importância no nosso quotidiano, o autor constatou que a sabujice, enquanto forma de agir, ainda não tinha merecido o tratamento que lhe seria devido por parte dos autores hodiernos, algo que com o presente ensaio pretendeu colmatar.

    De forma despretensiosa, abrangente e inclusiva, contudo, plena de acicate e de objectiva assertividade, Rui Teixeira da Mota traz-nos um ensaio sobre uma matéria assaz fracturante na nossa sociedade.

    Um ensaio que poderá interessar não só aos sabujos, mas a todos aqueles outros que os querem compreender.

    Título

    A ciência do clima

    Autor

    Steven E. Koonin

    Editora

    Guerra & Paz

    Sinopse

    Steven E. Koonin revela verdades sobre a ciência climática – e de como esta é extremamente diferente daquilo que o governo e os meios de comunicação nos dizem.

    “O aumento do nível do mar está a inundar as nossas costas.””Os furacões e tornados estão a tornar-se mais graves e mais frequentes.””As alterações climáticas criarão um desastre económico.”

    Certamente já ouviu tudo isto apresentado como facto. Mas, segundo a ciência, todas estas afirmações são extremamente enganadoras.

    Os meios de comunicação, os políticos e outras vozes proeminentes fazem declarações absolutas sobre as alterações climáticas, contudo, o seu discurso é corrompido e perde-se ao longo da cadeia de transmissão e de comunicação.

    Título

    O segredo da dama do paço 

    Autor

    José Carlos Soares Machado

    Editora

    Gradiva

    Sinopse

    Nesta obra, o autor faz um retrato minucioso da vivência do século dezoito português, com uma persistente recolha de factos e uma impressionante colecção de indícios, que deixa à apreciação do leitor.

    Narra a história de uma tradição oral com mais de três séculos; de um documento perdido que volta à luz do dia; de um segredo que dá origem a uma profunda investigação. Conta a história pessoal, profissional e familiar do homem que registou o segredo e o passou às gerações seguintes.

    Uma Dama da Corte e um personagem misterioso que ocultam dois nascimentos. A descrição, passo a passo, da pesquisa que desvenda o segredo e procura a sua confirmação. Os modelos de ocultação, e a identificação e ligações das personagens envolvidas. O mais completo estudo genealógico e biográfico da família dos condes de Santiago de Beduído.

    O estudo inédito da ascensão social de famílias burguesas e da pequena nobreza da Corte. O drama da filiação ilegítima e as falsidades nos assentos paroquiais de baptismo. A ilegitimidade na definição das alianças matrimoniais e do futuro das gerações seguintes. O Rei que mudou as regras do jogo, alterando os processos de ocultação dos nascimentos e mudando definitivamente o destino dos ilegítimos.

    Título

    As 7 vidas de José Saramago

    Autores

    Miguel Real e Filomena Oliveira

    Editora

    Companhia das Letras

    Sinopse

    Da infância na Azinhaga à consagração em Estocolmo, As 7 vidas de José Saramago ensaia o retrato da vida de um homem profundamente comprometido com o ofício da escrita, dedicado a uma missão transcendente.

    Ancorados na Josephville que o escritor descreveu em 1968, Miguel Real e Filomena Oliveira contam, simultaneamente, a história de José Saramago e de um outro século XX português.

    Menino pobre numa Lisboa hostil de que se sentia excluído em todos os aspetos, decide conquistar a cidade, derrubar as suas muralhas, fazê-la sua. Torna-se serralheiro e autodidata, será escritor, encontrará formas de ocupar o espaço social, cultural e político que lhe permitirá operar a revolução que idealizou e em que crê obstinadamente, o que o levará a criar obras-monumento como Memorial do convento, O evangelho segundo Jesus Cristo e Ensaio sobre a cegueira. De 1922 para 1998, ano em que é distinguido com o Prémio Nobel da Literatura, Saramago vê a sua almejada Josephville transformar-se num mundo que o celebra e ao seu trabalho.

    Ao longo dos sete capítulos que descrevem os diferentes momentos da vida do escritor, descobrimos um Saramago que se reinventa a cada revés, que desafia a imagem que o país tem de si mesmo e que enfrentou, sem medos, os seus piores fantasmas.

    Escrita com total acesso aos arquivos da Fundação Saramago e contendo testemunhos inéditos, esta é a biografia íntima de um homem universal, que se forjou no idealismo de um mundo mais justo e se comprometeu a mudá-lo através da literatura.

    Título

    Os homens dePutin

    Autora

    Catherine Belton

    Editora

    Ideias de Ler

    Sinopse

    Interferência nas eleições americanas, apoio a políticas extremistas na Europa, a guerra na Ucrânia…

    Nos últimos anos, a Rússia liderada por Vladimir Putin empreendeu uma poderosa campanha a fim de expandir a sua influência e enfraquecer as instituições ocidentais. Mas como pôde isso acontecer? E, acima de tudo, quem está por detrás desse ambicioso plano?

    Através de um impressionante trabalho de investigação, em Os homens de Putin Catherine Belton desvenda a história de como Vladimir Putin e o seu círculo restrito, formado principalmente por membros do antigo KGB, tomaram o poder na Rússia e estabeleceram uma nova cúpula de oligarcas, substituindo os magnatas da era soviética. Por meio de entrevistas exclusivas a alguns dos principais envolvidos, Belton explica como Putin realizou o confisco de empresas privadas para depois as distribuir pelos seus aliados, que assim assumiram o controlo da economia russa.

    Confundindo atividade política e crime organizado, os seus «homens» desviaram milhões em dinheiro, perseguiram e mandaram prender os opositores ao regime, e, por fim, usaram toda a riqueza e poder daí resultantes para aumentar a influência russa no Ocidente.

    De Moscovo a Londres, passando pelos Estados Unidos de Trump, Os homens de Putin é um relato cativante das terríveis consequências na Rússia e, progressivamente, no mundo inteiro do autoritarismo que emana do Kremlin.

    Título

    O som das coisas leves quando caem

    Autores

    Catarina Ferreira de Almeida e Sérgio Condeço (ilustração)

    Editora

    Nuvem de Letras

    Sinopse

    “A Menina e Jasmim viviam numa ilha. Vista de cima, do céu, a ilha era um ponto minúsculo no meio do oceano. Vista de baixo, do fundo do mar, era apenas o pequeno cume de uma grande montanha submersa.” Assim começa este texto profundamente poético sobre as aventuras de uma menina e da sua cadela no imaginário de uma ilha.

    Título

    Contos arrepiantes da História de Portugal: revoluções revoltantes

    Autores

    Rui Correia e António F. Nabais 

    Editora

    Nuvem de Tinta

    Sinopse

    Qualquer pessoa que chegasse a Portugal no século XIX ia logo embora, tal a balbúrdia que encontrava. Um reino destruído e pilhado por tropas francesas. Uma família real enlouquecida a fugir de Napoleão. 

    Batalhas por todo o país, com milhares de mortos e feridos, viúvas e órfãos. No meio disto, um Brasil que decidiu ser independente. A liderar a revolução, D. Pedro, o rei português que abdicou da Coroa portuguesa e depois da Coroa brasileira, só para regressar a Portugal e derrotar o irmão que o tinha traído.

    Uma sangrenta guerra civil pôs o país a ferro e fogo.

    Quando chegou ao fim e tudo parecia terminado, os ingleses humilharam-nos em África e os ódios partidários iriam conduzir ao extraordinário assassinato do rei D. Carlos. De resto estava tudo bem.

    Ilustrações de Hélio Falcão, esta colecção tem já outros três títulos publicados desde 2020.

    Título

    Melancholia

    Autor

    Francisco José Viegas

    Editora

    Porto Editora

    Sinopse

    Ao longo de um ano, entre um encontro literário na Póvoa de Varzim e o início da pandemia, ninguém soube do paradeiro de Cristina Pinho Ferraz, escritora extravagante, premiada e temida.

    Até que, nos jardins românticos do Palácio de Cristal, no Porto, a coberto da copa das árvores, apareceu um corpo enterrado sob a terra, dividido em várias partes.

    Porém, a nova investigação do inspetor Jaime Ramos (que entretanto fora substituído na divisão de homicídios) não começa com a descoberta desse cadáver; pelo contrário, obriga-o a recuar no passado, a ouvir testemunhos sobre vaidade, vingança, literatura e ambição, e também histórias de família ou de amor e melancolia.

    Enquanto o confinamento se espalha sobre vivos e desaparecidos, Jaime Ramos reconstitui a biografia daquela mulher e a história de uma família e de uma genealogia do poder nas margens da tradição judaica portuense, confrontando-se mais uma vez com as suas obsessões: a ameaça da idade e da memória, a fragilidade dos velhos e a reconstituição do passado.

    Então, o que poderia ser apenas uma história de inveja e traição entre intelectuais desavindos e cómicos, transforma-se num inquérito sobre a melancolia portuguesa.

    Título

    Fascismos 

    Autor

    Carlos Martins

    Editora

    Desassossego

    Sinopse

    São poucas as palavras tão utilizadas e que, ao mesmo tempo, abarcam uma tão ampla quantidade de significados como “Fascismo”. 

    O termo evoca opressão e injustiça, pode referir-se a regimes com tendência para o autoritarismo ou o desrespeito pelas liberdades individuais e, numa acepção mais restrita, ser atribuído a regimes ditatoriais. Mas o que é este fenómeno político tão específico que marcou o século XX?

    Com base numa extensa investigação, Carlos Martins apresenta a evolução de partidos fascistas de oito países que estiveram ativos no período entre guerras. Contextualizando a realidade política de cada território, apresenta os antecedentes que permitiram a propagação do fascismo, a história e lutas internas de cada partido, bem como as figuras marcantes e decisivas para o seu sucesso.

    De Itália à Alemanha, do Reino Unido à Roménia, de Espanha a França e ao Brasil, passando por Portugal, com Rolão Preto e o nascimento do Nacional-Sindicalismo, este é um livro fundamental para conhecer e compreender o fenómeno político que marcou o século XX.

    Título

    Poesia completa

    Autor

    José Saramago

    Editora

    Assírio & Alvim

    Sinopse

    Reunindo os três únicos livros de poemas de José Saramago (Os poemas possíveis; Provavelmente alegria; e O ano de 1993), e contando ainda com um inédito, este livro recupera uma faceta esquecida do Prémio Nobel de Literatura português.

    Como nos esclarece Fernando J.B. Martinho no posfácio à obra: “Da sua poesia se pode dizer o que Sena disse da de Gedeão, outro nome de revelação poética tardia, quando nela assinalou a confluência de muitas das ‘conquistas expressivas do modernismo’”.

    Título

    A família Netanyahu

    Autor

    Joshua Cohen

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    Corbin College, não exatamente no norte do estado de Nova Iorque, inverno de 1959-1960: Ruben Blum, historiador judeu – mas não historiador de judeus – é designado para integrar um comité de seleção que vai analisar a candidatura de um académico israelita exilado, especializado na Inquisição da Península Ibérica.

    Quando Benzion Netanyahu – pai de Benjamin Netanyahu, que viria a ser primeiro-ministro de Israel – comparece a uma entrevista levando consigo a mulher e os três filhos, Blum recebe relutantemente em sua casa uns hóspedes cujo comportamento põe em causa o seu estilo de vida americano.

    Misturando ficção com não-ficção, o romance de ambiente universitário com a aula magistral, A família Netanyahu é uma comédia desenfreadamente inventiva e irreverente de integração, identidade e política, que apresenta ideias e conflitos tão voláteis quanto a sua trama é segura.

    No apogeu do seu talento, Joshua Cohen dá-nos uma versão ficcionada de uma visita que realmente existiu, construindo a partir dela um romance histórico mordaz e linguisticamente exímio sobre as ambiguidades da experiência judaico-americana.

    Título

    Histórias bizarras

    Autora

    Olga Tokarczuk

    Editora

    Cavalo de Ferro

    Sinopse

    Uma recolha inédita de contos, em que a celebrada autora de Viagens nos dá a conhecer os espaços infinitos que escapam à nossa razão, estabelecendo correspondências insólitas entre o real e o imaginário.Um médico escocês do século XVII, ao serviço do rei da Polónia, descobre uma estranha raça de crianças verdes. Uma família de quatro mulheres idênticas, que se podem ligar e desligar, vê a sua rotina ser perturbada pelo aparecimento de dois vizinhos. Um mundo onde impera o uso do metal mantém a sua ordem graças ao sacrifício de um misterioso semideus com mais de trezentos anos. Uma mãe deixa uma estranha herança de vários frascos de conserva ao seu filho preguiçoso.Eis algumas das histórias fascinantes que se encontram neste volume. Histórias capazes de desafiar expectativas e certezas, histórias que desenham os contornos de um presente alternativo e de um futuro apocalíptico; de confins geográficos que têm tanto de incompreensível quanto de familiar; de seres humanos alienados, solitários, perdidos. São histórias em que nada do que parece é e que encerram uma pergunta: a estranheza estará dentro de nós ou será ela uma característica do mundo?Conjugando o grotesco, o fantástico, o humor negro e a beleza poética, Histórias Bizarras é mais um testemunho da singularidade literária e imaginativa de Olga Tokarczuk, que, unindo lugares e tempos, lança um olhar distópico e terno sobre a realidade e as profundezas da mente humana.

    Título

    Três anéis

    Autor

    Daniel Mendelsohn

    Editora

    Elsinore

    Sinopse

    Como funciona a arte de contar histórias? O que faz uma boa história? Até onde pode ir a digressão numa narrativa?

    Foi num período de aguda crise criativa que Daniel Mendelsohn refletiu sobre essas questões, revisitando não só a história do errante Ulisses, mas também três escritores unidos pelo exílio e pela ancestral técnica literária da composição em anel.

    São eles Erich Auerbach, o judeu filólogo que fugiu da Alemanha nazi para escrever o seu monumental estudo sobre a literatura ocidental, Mimesis, em Istambul; François Fénelon, o arcebispo francês do século XVII, cuja engenhosa sequela da Odisseia, As Aventuras de Telémaco, ditou o seu desterro; e o romancista alemão W.G. Sebald, autoexilado em Inglaterra, cujas narrativas distintamente sinuosas exploram temas de deslocamento, nostalgia e separação.

    Conjugando memória pessoal, biografia e crítica literária, Daniel Mendelsohn explora, neste seu último e premiado ensaio, os misteriosos elos que ligam a aleatoriedade do nosso destino com a arte de o transformarmos em matéria ficcional, prestando uma homenagem aos mundos grego e judeu, e à capacidade infinita de metamorfose da Literatura.

    Título

    O santo ilusionista

    Autora

    Cláudia Andrade

    Editora

    Elsinore

    Sinopse

    Camaleónico, esquivo, errante, o Santo Ilusionista, protagonista deste novo romance de Cláudia Andrade, é um vagabundo em fuga (ou em busca?) do seu passado.

    Incapaz de se fixar num único lugar, a sua vida é feita de encontros episódicos e de aventuras sucessivas, nas quais, como um espelho invertido, veste a personagem que os outros procuram nele para a sua felicidade ilusória: assim, tanto é o amigo que precisa de ajuda altruística, como o líder impassível que faltava para orientar uma ação violenta, o marido e pai improvisado de uma família desajustada, ou o peregrino depois transformado em mediador de conflitos conjugais.

    Criatura de mil rostos e nenhum, perdida no seu próprio abismo que encontra repouso no vazio, sem querer, vai compondo um retrato mordaz de outras tantas mil vidas.

    Título

    Indomáveis: como tomámos conta do Mundo

    Autor

    Yuval Noah Harari

    Editora

    Booksmile

    Sinopse

    Nesta fantástica aventura imersiva, o autor bestseller de Sapiens: Breve História da Humanidade, com o seu estilo característico, revela que os humanos têm um superpoder e que o usam para criar estranhas e maravilhosas coisas – desde fantasmas e espíritos, a governos e sociedades. Somos conquistadores e insaciáveis, criativos e destrutivos. Numa palavra, indomáveis!

    Esta série conta aos mais jovens a história impressionante dos animais mais poderosos do planeta, salientando que o mundo em que vivemos não teria de ser como é. As pessoas é que o fizeram assim, e as pessoas podem mudá-lo.

    O estilo de escrita de Harari é acessível e empolgante, usando uma linguagem simples, carregada de humor, para explicar algumas das questões mais sérias e complexas sobre o nosso planeta e a humanidade.

    Cada volume da série irá explorar uma época diferente da nossa história, começando com Como Tomámos Conta do Mundo, que convida os jovens a descobrir porque é que o dinheiro é o conto de fadas mais bem-sucedido de sempre, como é que o fogo fez encolher os nossos estômagos, e o que é que o futebol nos diz sobre ser humano.

    Esta é a história da humanidade como nunca te contaram antes, com anões, cobras gigantes, um Grande Espírito Leão que vive nas nuvens e o dedo de uma criança com 50 mil anos que revela os mistérios das nossas origens.

    Quer tenhas 9 ou 99 anos, Indomáveis pode ser apreciado por qualquer pessoa que já se questionou: Quem somos? Como aqui chegámos?

    Título

    Letra miudinha

    Autora

    Lauren Asher

    Editora

    Marcador

    Sinopse

    Quando o avô morre, deixa a cada um dos netos uma participação numa empresa que vale milhares de milhões de dólares… sujeita a certas condições que têm de cumprir.

    Rowan deve apresentar um plano ao Conselho de administração da empresa para recuperar e renovar o parque e depois seguir com a sua vida. Não conta com o facto de conhecer Zahra, que é exatamente o seu oposto.

    Quando, num momento de embriaguez, ela entra na sua vida ao enviar acidentalmente uma crítica à atração mais cara do parque, desencadeia uma tempestade que mudará a sua vida e de Rowan.

    Será que vai ensinar-lhe que dinheiro não é tudo?

    Título

     O esplendor e a infâmia

    Autor

    Erik Larson

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    10 de maio de 1940. O dia em que Churchill é nomeado primeiro-ministro, Adolf Hitler invade os Países Baixos e a Bélgica.

    Ao longo do ano seguinte, a Alemanha nazi bombardeia Inglaterra com uma intensidade inédita. Acossado, o “Velho Leão” tenta preservar, a todo o custo, o moral do seu povo… e convencer o presidente Roosevelt de que é do interesse dos Estados Unidos entrar na guerra.

    Se durante este período a vida pública de Churchill é simplesmente caótica, a sua vida privada não está melhor. Ele e Clementine, a sua mulher, confrontam-se com uma filha rebelde que não aceita a autoridade deles, e o filho, Randolph, debate-se com o adultério da mulher.

    A partir de numerosos documentos inéditos – dos diários íntimos dos protagonistas a documentos confidenciais recentemente desclassificados – Erik Larson devolve à política a sua dignidade, fazendo-nos viver ao lado de Churchill num ano absolutamente excecional. Seja no 10 de Downing Street ou na sua residência privada, este homem de recursos inesgotáveis, e sempre surpreendente, dará provas de liderança fora do comum, que lhe permitirá manter todo um país – e a sua uma família – unidos.

    Título

    Lições

    Autor

    Ian McEwan

    Editora

    Gradiva

    Sinopse

    Lições é a história íntima épica da vida de um homem através de gerações e convulsões históricas: da Crise de Suez à Crise dos Mísseis de Cuba, da queda do Muro de Berlim à actual pandemia, Roland Baines cavalga a maré da história, mas mais frequentemente luta contra ela.

    Quando o mundo ainda contabilizava os custos da Segunda Guerra Mundial e a Cortina de Ferro se fechou, a vida de Roland Baines, de onze anos, vê-se virada do avesso.

    A três mil quilómetros do amor protector da mãe, encerrado num internato, a sua vulnerabilidade atrai a professora de piano Miss Miriam Cornell, deixando marcas, bem como uma memória de amor que nunca se desvanecerá.

    Agora, quando a sua mulher desaparece, deixando-o sozinho com o filho pequeno, Roland é forçado a confrontar-se com a realidade da sua inquieta existência.

    Título

    Os abismos

    Autora

    Pilar Quintana

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    Claudia tem nove anos e é filha única. A sua vida gira à volta da mãe homónima, já que o pai – com idade para ser seu avô – passa os dias no supermercado que gere com a irmã, casada às escondidas com um tipo muito mais novo.

    Quando, porém, uma centelha de aventura parece disparar entre este rapaz e a jovem mãe de Claudia, a crise familiar instala-se abruptamente e mergulha a Claudia adulta numa depressão profunda, durante a qual se mete na cama a ler revistas, comentando com a filha como as mortes de Grace Kelly e Natalie Wood não podem ter sido senão suicídios. E, quanto mais a pequena Claudia precisa de esperança, mais a mãe lhe cria temores que a empurram para o abismo, donde nem as bonecas regressam.

    Tomando como cenário um mundo em que as mulheres não conseguem escapar a casamentos impostos e prisões domésticas, esta é a história inquietante de como uma criança assume as revelações da mãe e os silêncios do pai para construir o seu próprio mundo, sem saber que, apesar de continuarem todos juntos, a família já ruiu há uma eternidade.

    Depois do sucesso internacional de A Cadela, publicado nesta mesma coleção, a escritora colombiana Pilar Quintana consolida com Os Abismos – vencedor do Prémio Alfaguara de Romance de 2021 – o lugar de destaque que conquistou nas letras hispano-americanas.

    Título

    Canción

    Autor

    Eduardo Halfon

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    Numa fria manhã de janeiro de 1967, em plena guerra civil da Guatemala, um comerciante judeu libanês é sequestrado num beco sem saída da capital.

    Ninguém ignora que a Guatemala é um país surrealista, tinha ele afirmado anos antes. Um narrador chamado Eduardo Halfon terá de se deslocar ao Japão e revisitar a sua infância na Guatemala dos bélicos anos setenta, e comparecer a um misterioso encontro num bar escuro e lúmpen, para finalmente esclarecer os pormenores da vida e o sequestro daquele homem que também se chamava Eduardo Halfon, e que era seu avô.

    Neste novo elo do seu fascinante projeto literário, o autor guatemalteco embrenha-se na brutal e complexa história recente do seu país, na qual se torna cada vez mais difícil distinguir vítimas de verdugos. Acrescenta-se assim uma importante peça à sua subtil exploração das origens e mecanismos da identidade com que conseguiu construir um inconfundível universo literário.

    Título

    Misericórdia

    Autora

    Lídia Jorge

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    A história que a mãe de Lídia Jorge lhe pediu que escrevesse.

    Misericórdia é um dos livros mais audaciosos da literatura portuguesa dos últimos tempos. Como a autora consegue que ele seja ao mesmo tempo brutal e esperançoso, irónico e amável, misto de choro e riso, é uma verdadeira proeza.

    Não são necessárias muitas palavras para apresentá-lo – o diário do último ano de vida de uma mulher incorpora no seu relato o fulgor das existências cruzadas num ambiente concentracionário, e transforma-se no testemunho admirável da condição humana.Isso acontece porque o milagre da literatura está presente.

    Nos tempos que correm, depois do enfrentamento global de provas tão decisivas para a Humanidade, esperávamos por um livro assim. Lídia Jorge escreveu-o.

    Título

    Mãe, doce mar

    Autor

    João Pinto Coelho

    Editora

    Dom Quixote

    Sinopse

    Deixando a Europa em guerra dos romances anteriores, João Pinto Coelho viaja desta vez até aos EUA para nos oferecer a história fascinante de uma família que não consegue fugir ao seu destino.

    Depois de passar a infância num orfanato, Noah conhece finalmente Patience, a mãe, aos doze anos. Mas, apesar de ela fazer tudo para o compensar, nunca se refere ao motivo do abandono; e, por isso, seja na casa de praia de Cape Cod, onde passam temporadas, seja no teatro do Connecticut onde acabam a trabalhar juntos, há um caminho de brasas que teima em separá-los mas que nenhum ousa atravessar.

    Quando Noah encontra Frank O’Leary – um jesuíta excêntrico que guia um Rolls-Royce às cores –, descobre nele o amparo que procurava. Mesmo assim, há coisas que o padre prefere guardar para si: os anos de estudante; o bar irlandês de Boston onde ele e os amigos se encharcavam de cerveja e recitavam poemas; e ainda Catherine, a jovem ambiciosa que não temeu desviá-lo da sua vocação.

    É, curiosamente, a terrível experiência de solidão num colégio religioso o primeiro segredo que Patience partilhará com Noah; contudo, quando essa confissão se encaixar no relato do padre Frank, ficará no ar o cheiro da tragédia e a revelação que se lhe segue só pode ser mentira.

    Título

    O segredo da descoberta portuguesa das Américas

    Autor

    José Gomes Ferreira

    Editora

    Oficina do Livro

    Sinopse

    Antes de 1490, navegadores portugueses visitaram e mapearam secretamente as penínsulas da Florida, Nova Escócia e Labrador, bem como a ilha da Terra Nova, tal como mostram os mapas de Henricus Martellus e de Cristóvão Colombo, de 1490.

    Antes de 1501, os portugueses também já tinham mapeado a costa leste dos atuais Estados Unidos da América, desde a foz do Rio Mississippi, no Golfo do México, até Cape Cod, no Massachusetts, como se pode verificar no mapa de Cantino e noutras cartas elaboradas nos anos seguintes com base neste planisfério inovador. Antes de 1504, os portugueses descobriram a ponta mais a sul do continente americano, o Cabo Horn, e a costa do Pacífico da América do Sul e Central, como revela o globo terrestre em casca de ovo de avestruz – o Ostrich Egg Globe – feito precisamente em 1504.

    Antes de 1507, toda a costa ocidental do México, dos Estados Unidos da América e uma parte da costa ocidental do Canadá estavam registadas em mapas secretos portugueses, que foram levados para os grandes centros de saber da Europa e serviram de base ao mapa‑mundo de Martim Waldseemuller, datado desse ano.

    Neste livro surpreendente e elucidativo, em que as imagens desempenham um papel central, o jornalista José Gomes Ferreira recorre a documentos até agora pouco conhecidos do grande público, bem como ao trabalho de numerosos investigadores independentes, para nos revelar as provas da descoberta portuguesa das Américas, que a História oficial teima em ignorar.

    Título

    Abelhas cinzentas

    Autor

    Andrei Kurkov

    Editora

    Porto Editora

    Sinopse

    Ucrânia, região do Donbass, 2017.

    Pequena Starhorodivka é uma aldeia de apenas três ruas em plena Zona Cinzenta ucraniana, a terra de ninguém entre as forças nacionalistas e separatistas. Devido à violência constante de uma guerra que se arrasta há anos, todos os habitantes abandonaram a aldeia, menos dois: Sergey Sergeyich e Pashka, dois animigos de infância.

    Juntos, encontram formas de sobreviver, no meio de constantes bombardeamentos que não se sabe bem de onde provêm ou quais os seus alvos. Naquela aldeia, o conflito perdera há muito qualquer tipo de sentido.

    Sem eletricidade há meses, e com pouquíssima comida, Sergeyich tem um único prazer na vida: as suas abelhas. Com a chegada da primavera, o apicultor sabe que terá de as transportar para longe da Zona Cinzenta, onde elas poderão recolher o pólen em paz. Esta simples missão leva-o a conhecer combatentes e cidadãos dos dois lados da frente de batalha: nacionalistas, separatistas, ocupantes russos e tártaros da Crimeia. Para onde quer que vá, a inocência e simplicidade de Sergeyich, a par da sua moral irrepreensível, desarmam todos aqueles que encontra pelo caminho.

    Em Abelhas cinzentas, Andrei Kurkov traça, fazendo uso do seu humor desconcertante, um assombroso retrato da terrível situação que o seu país atravessa, mostrando-nos que, mesmo nos contextos mais improváveis, e por vezes da forma mais absurda, a vida encontra forma de seguir o seu rumo.

    Título

    Mais rico, mais sábio, mais feliz

    Autor

    William Green

    Editora

    Lua de Papel

    Sinopse

    Como os maiores investidores do Mundo vencem no mercado e na vida. O que têm os grandes investidores que nós não temos? Claramente, um toque de Midas mas será que podemos aprender a usá-lo? E o que nos podem ensinar além da arte de fazer dinheiro?

    Em Mais rico, mais sábio, mais feliz, William Green reúne a sabedoria dos melhores investidores, que entrevistou ao longo de 25 anos como Sir John Templeton, Charlie Munger, John C. Bogle, Ed Thorp, Bill Miller, Joel Greenblatt ou Howard Marks.

    E descobriu pontos em comum entre eles. Apesar de pensarem fora da caixa, são em geral racionais e objetivos: procuram maximizar as oportunidades de sucesso a longo prazo e minimizar o risco de perdas catastróficas. São disciplinados, têm uma grande resistência à dor e enriquecem-se com ensinamentos de diferentes campos.

    Com eles também podemos aprender a pensar melhor, tomar decisões, avaliar os riscos, desenvolver a resiliência e transformar a incerteza numa vantagem. Neste livro, Green leva uma visita guiada às vidas e pensamentos de mais de 40 super investidores.

    Entramos nos seus escritórios, nas suas casas e nas suas cabeças.

  • António José Forte

    António José Forte


    António José Forte (1931-1988) é uma aparição poética de rara qualidade nos horizontes ideológicos e culturais do Portugal do pós-guerra. Não se notabilizou pela extensão da obra escrita – e muito menos vasta foi a sua produção publicada. Entre outras coisas, até lhe aconteceu ter a sua escrita cercada por um “mimo estilístico” que esteve muito em moda no tempo de Salazar: a censura – actividade de tão zelosos prosélitos que conseguiu manter-se intocada na famosa primavera marcelista e anunciava-se incólume no “programa democrático” do Spínola pós 25 de Abril.

    Há hoje, em 2022, quem tente revovar a actividade em nome da “ordem” democrática a que poderíamos chamar demucratura.

    De facto, um dos textos que melhor marca o grito ascensional de Forte, delimitando os cordões extensíveis do seu ringue de combate permanente, intitulado “Um Palito para Alfred Jarry”, embora fosse extremamente curto, levou um corte de quase 50%. Ficou, assim, silenciada uma das mais breves, incisivas e lúcidas apresentações que jamais foi feita, na nossa terra, desse pai de toda a produção literária que encabeçou o modernismo, num grito de maldição à “literatura” e à cultura, do teatro do absurdo au surrealismo, passando pelo dadaísmo.

    Apenas aí se tocava na arquipersonagem Ubu, comentando-lhe as mandíbulas insaciáveis e a mentalidade escroque, tal como ela aparece na trilogia de Jarry, mas foi o suficiente para os inquietos marcelistas, de tal forma as entidades burlescas das peças tinham semelhanças com as que dominavam (e dominam, diga-se de passagem) a cena política e financeira portuguesa contemporânea. De facto, um dos excertos cortados, no texto que acabou por não ser publicado, dizia o seguinte:

    ó cabecinhas, barrigas-de-petróleo, patriotas encuecados de ideal borrado, crocoloditas de pança encortiçada, mandibulantes de carniça operária, grandes escritores de tinta da china maricas – esse Pão que todos os dias nos rebenta na boca logo de manhã, e depois à mesa, e na cama à noite, e sempre, enquanto este tempo de Ubus não for empurrado para o alçapão – «nobres para o alçapão, magistrados para o alçapão, financeiros para o alçapão» – Alfred Jarry de seu nome de letras crepitando no organismo da fêmea do super-macho e escrito no espelho de cada um, esse Pão com vidro moído por dentro para dar aos generais, com fumo para entrar nos olhos dos cães de guarda da paisagem…” (Forte, 2003: 125).

    Uma das dificuldades de escrever, hoje em dia, acerca de Forte e da sua poesia, advém, em grade parte, de pouco se ter escrito sobre ele, desde os primeiros momentos em que a sua poesia saiu a lume, ao longo de, praticamente, trinta anos. De algum modo, a excelência e a altura da sua poesia consumia-se, em surpresas e espantos, no próprio momento, não deixando rasto de comentário, nem lastro para debate posterior. Não era deliberadamente, para obter essa ausência de contradiscurso ou análise crítica, mas resultava assim. Tudo se passava como se o acto poético, muito em modelo dadaístico, se consumisse no próprio momento da sua encenação poética única.

    De pequenas dimensões, os seus opúsculos líricos, esparsos, outros poemas seus publicados em revistas, raramente se apresentava a sua escrita à atenção de uma crítica mais morosa, que procurasse aquilatar da originalidade do poeta, ou correlatar as intervenções de Forte com os antepassados com que mais evidentemente mantinha laços, sobretudo por essas ligações se apagarem, quase, face ao emergir do seu dizer, como uma urgência de grito e de diferença, por sobre as ameaças de abismos e de espantos siderais.

    Não obstante a justeza de uma opinião como a de Herberto Helder, que o pronuncia como uma “voz não plural, nem derivada, nem devedora” e possuidora da “sua própria tradição”, por essa mesma urgência irreprimível que caracteriza os seus escritos e o modo circunstancial de emergirem – como discursos que não podem ser adiados nem silenciados –, a “inteligência fundamental do mundo” que, nele, se abre “imemorial e dinâmica”, segundo o mesmo Herberto Helder, tem relacionamentos óbvios com escritores, escolas e grupos que o antecederam, ou que foram seus coetâneos, com os quais a sua obra pode ler-se em estado de diálogo.

    Há alguns nomes e pontos de referência que podem ser enumerados, porque ele próprio se lhes refere. E essas referências são as do absurdo tal como Jarry o via e desenvolvia em patafísica (ciência que se dedica a estudar “as leis que regem as excepções” e a explicar “o universo suplementar ao que conhecemos”), o dadaísmo e o surrealismo. Outros contactos são menos explícitos, mas podem ser conjecturados. Em concomitância com a própria tradição que o surrealismo instaura, A. J. Forte deixa-se seduzir, de modo notório, na sua produção, pela ficção fantástica e maravilhosa, pela visão anarquista do mundo, e pela alquimia. São notórios, nos seus escritos, traços desses grandes territórios do imaginário e das formações discursivas.

    Quanto ao fantástico, não é difícil notar, nos seus textos, a relação com alguns pontos de referência, quer sejam de origem folclórica, quer se desenvolvam como produção culta, nas vertentes do gótico, do macabro ou do absurdo, quer emparceirem com outras produções que têm como destinatários os mais jovens. Hans Cristian Andersen, Isidore Ducasse, Baudelaire e Franz Kafka parecem emergir como sombra tutelares e, em seguida, dissolverem-se, para surgirem em novas virtualidades, em muitos dos seus textos, em que não falta, também, a presença da simbologia alquímica, como nos aparece, por exemplo, em “Sereníssimo”:  “A passo de leão até à primeira rosa/ de cor em cor até ao fim da terra// antes de mil anos e de mil olhos cegos//num silêncio de neve a arder/de cidade em cidade/até um nome em carne viva//…

    Uma referência especial a não esquecer, é a da inspiração beat, como reacção à poesia “culta”. As ressonâncias beatniks, sobretudo a de Ginsberg, manifestam-se pelo lirismo de protesto, cheio de apelos à acção enérgica (ainda que sem causa, pelos menos de moldes tradicionais…pelo que a causa parece ser o próprio acto poético), propondo “a sinceridade acima da arte, a intensidade imediata acima da forma” (Brown, 1973: 300). 

    Relembremos aqui, de acordo com o que dissemos anteriormente, que, não obstante o entusiasmo que o seu nome sempre gerou entre os companheiros de geração, sobretudo entre todos aqueles que fizeram parte do grupo do café Gelo, não são muitas as abordagens críticas ou analíticas à sua obra. É verdade que havia todo um impulso de reconhecimento, aprovação e sintonia entre os seus leitores.

    No entanto, talvez pelo facto de as suas publicações serem breves e esporádicas, as considerações aprofundadas para compreender a sua prática poética ou estética quase não existiram, o que é lamentável, dado que teria sido interessante que os intelectuais, poetas e críticos do seu tempo tivessem reflectido sobre a matéria publicada, e sobre os factos culturais que levaram à sua escassez.

    Mais recentemente, algumas tentativas têm sido feitas, como nos revela, por exemplo, o texto de Maria José Vitorino Gonçalves, realizado no âmbito de um mestrado em ciências da educação, ao rastrear algumas das abordagens mais abrangentes à sua obra:

    Ligado ao movimento surrealista, e ao segundo grupo do Café Gelo desde logo se identificou com o abjeccionismo, “um ponto do espírito onde, simultaneamente à resolução das antinomias, se tome consciência das forças em germe que irão criar novos antagonismos” (Pedro Oom). Neste grupo se integraram Hélder Macedo, Mário Cesariny, Ernesto Sampaio, Herberto Hélder, Manuel de Castro,Virgílio Martinho, Benjamin Marques, Pepe Blanco, Henrique Varik Tavares, João Rodrigues, António Gancho, José Escada, Gonçalo Duarte, António Areal, Manuel d’Assumpção, João Vieira. Ao Café Gelo desse tempo se refere, em 1986, em artigo publicado no JL: “Dada tratado por tu, o surrealismo olhado nos olhos, e sempre o trapézio voador do humor negro Todos os dias alguém na véspera de partir para Paris”. Na Lisboa da Ditadura, na palavra véspera moravam ao mesmo tempo o desejo de liberdade e a demora no efectivo acesso a outros mundos. Como aponta Maria de Fátima Marinho (2002[1] : p. 288-289): “segundo Cesariny, o grupo que se reunia, por volta de 1956-59, no Café Royal e no Café Gelo, estava votado a um “abjeccionismo conjuntural”. O termo abjeccionismo fora criado por Pedro Oom. Com a sua introdução, o autor de Actuação Escrita pretendia determinar a existência de uma dialéctica constante que transformaria o ponto supremo dos surrealistas numa tese, sujeita a uma antítese e a uma síntese futura, síntese esta que daria lugar a uma nova tese, numa dialéctica infindável. António José Forte coloca-se voluntaria e conscientemente sob a tutela da teoria abjeccionista de Pedro Oom. Incapaz de responder á pergunta carismática do abjeccionismo “O que pode um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?”, o autor de 40 Noites de Insónias refugia-se no absurdo e no non-sense. ”A aventura, para António Maria Lisboa , é o conhecimento poético. Para Forte, é antes acção poética, identificada com a Liberdade, a Revolta, o Desespero que a justificam e instauram como fundamento maior da posição abjeccionista. Para ambos, fundamental, pois “seria irrelevante qualquer actividade intelectual quenão fosse antes de mais uma aventura [no modo] de viver” (Fernando B. Martinho: 1985, p.90[2]). Em 1970, é significativa a presença de António Barahona da Fonseca, António José Forte, Eduardo Valente da Fonseca, Ernesto Sampaio, João Rodrigues, Manuel de Castro, Maria Helena Barreiro, Pedro Oom, Ricarte-Dácio, Virgílio Martinho na antologia Grifo).

    No fundo, ele acaba por constituir-se como exemplar pleno de uma tradição, quase sem ruptura, na grande espiral do grito abjeccionista, com o qual a arte procurou apresentar a sua própria versão de intervenção no mundo: na política, na economia, nos salões e, em geral, em todos os convívios para os quais era convocada a mais radical presença perturbadora. Em ruptura com tudo o que era o passado canonizado, a literatura, a poesia, mesmo a modernista de tradição simbolista, Forte encarna, como poeta, a prática da maldição e da rejeição da cultura. 

    Porém, não devemos esquecer que o acto de ruptura praticado tem os seus pontos supremos no esticão abjeccionista, ou no inconformismo beatnik, através do angustiado “uivo”,   

    (“I saw the best minds of my generation destroyed by madness, starving hysterical naked, dragging themselves through the negro streets at dawn looking for an angry fix, Angel-headed hipsters burning for the ancient heavenly connection to the starry dynamo in the machinery of night”),

    como canta o célebre trecho do poema “Howl”, tão frequentemente recordado, aparecendo quase como prosopopeia de uma geração focalizando, pelos olhos de Ginsberg , em longa enumeração, o caos e a desarmonia, patente no lista interminável  dos vencidos pelo sistema, dos abandonados pela civilização e proscritos pela cultura. Esse grito é complexo e pregnante, e não deve ser lido como uma atitude de apagamento pela ignorância…

    Ao contrário, como a própria prática poética e cultural de Forte o demostra, a ruptura dá-se em relação ao que muito bem se conhece. A cultura a sacudir tem de estar bem presente no bardo abjeccionista. Porque, conhecer, respeitar e admirar, eventualmente, o clássico, a tradição, não é sinal de submissão, ou veneração. Em contrapartida, o mais profundo respeito que o acto abjeccionista cria é o de se bater por uma diferença, por todos os meios, que vão da paródia e achincalhamento até ao grito de protesto contra a hipocrisia que se esconde sob a capa de uma cultura literária e bem educada, que recusa ver e/ou valorizar os procedimentos de ruptura que estão no interior de toda a criação poética, incluindo a canónica.

    É assim que o próprio Forte a vaticina, lapidarmente, no poema que escreveu, desafiadoramente, em prosa, intitulado “Uma Faca nos Dentes”: “A acção poética implica: para com o amor uma atitude apaixonada, para com a amizade uma atitude intransigente, para com a Revolução uma atitude pessimista, para com a sociedade uma atitude ameaçadora. As visões poéticas são autónomas, a sua comunicação esotérica”.

    Este sentido do desafio radical, da colocação, da postura poética em estado de riste, face a um mundo de desconjunções permanentes, desenvolve-se, em Forte através de paradigmas ideológicos muito precisos: uma exigência de cidadania sem vontade de concessões a qualquer espécie de mediocridade ou de raciocínio conformista; uma exaltação da amizade em limites muito para lá do cumprimento das boas regras; e um reconhecimento da função do poeta dificilmente circunscrita nas cartilhas de qualquer escola ou grupo.

    Diga-se, desde já, quanto a este último caso, que as suas referências explícitas – a António Maria Lisboa e, através dele, à mais próxima e absoluta emergência do surrealismo; a Jarry e, com ele, através de Ubu, à intromissão da poesia na vida e à tomada de posição poética face a todas as investidas dos agentes históricos; e a Dada, em afirmação da disposição inquebrantável para todas as desobediências – revelavam admirações, mas nunca submissões.

    Porque, para Forte, mesmo na pessoa integral e serena com quem qualquer conversa pessoal era sempre o prazer de um convívio franco e aberto, uma busca como a poética não podia, em nenhuma circunstância, ser assumida como banalidade. Sob os seus desígnios é que a amizade, a intervenção cívica, a relação com os outros e a escala dos valores se estruturam pela emergência do amor. Porque essa poesia, como ele o vê muito bem através da evocação de Dada, é a que faz acontecer a vida como integral surpresa, a que é sempre um acontecer e não admite cristalizações: “Houve uma revolução Dada que está ainda a haver, mas não haverá nunca uma exposição Dada” (“Exposição Dada”, Folheto de 1982 – in Forte, 200: 121).

    Sobre a amizade, ele é bem explícito, quando se refere aos grandes convívios fundadores de todo um movimento poético em torno do surrealismo, no Café Gelo, no texto “Um exemplo (há vinte anos) – O Café Gelo e o chamado Grupo do Café Gelo”, que se manteve inédito até à edição, póstuma da recolha (possivelmente muito incompleta) feita sob o título de Uma Faca nos Dentes (2003).

    Jovens, alguns adolescentes, todos rebeldes, a crítica à cultura vigente era a actividade quase constante. E a exaltação de «Orpheu», do surrealismo, uma prática quase Dada, os valores por que orientavam os ataques à literatura, às artes, à política, incluída nesta a oposição progressista. São  estes valores o núcleo de atracção e repulsão que definirá personalidades, que as ligará por laços de camaradagem e amizade, que unirá personalidades em projectos literários falhados a maior parte deles, em projectos revolucionários também falhados quase todos, mas que afinal, desaparecidos do Café Gelo, continuam ao longo dos anos a manter uma idêntica atitude inconformista” (2003: 142).

    A intervenção cívica do poeta, que se exprime, por exemplo, em “Poema”, por “esta cabeça em fúria do poeta” (2003: 97)  transforma-se em “Desobediência civil” em nome da qual o a voz cantante pode afirmar:

    eu passo de bicicleta à velocidade do amor

    atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça

    para oferecer aos revoltados” (p. 96).

    Mas a sua expansão plena talvez deva ser evocada através do poema que dedica a Cohn-Bendit, como ilustração da incontornável fatalidade de termos o encontro marcado com a História, como se da morte se tratasse – não podemos querê-la nem evitá-la:

    António José Forte trabalhou na Fundação Calouste Gulbenkian, chegando a ser encarregado das famosas bibliotecas itinerantes.

    Deves ter razão

    e certamente a História não tardará a pôr-te os cornos

    um corno vermelho e outro corno negro

    grande e delirante cornudo

    minotauro bufando

    e investindo à altura do sexo

    Sou pela razão ardente dos teus cornos!

    Pisaste bem o rabo de deus

    mordeste bem o pescoço do diálogo

    enfiaste admiravelmente bem

    primeiro um corno depois o outro

    no Cu Pró Ar da política

    que era o que ela estava a pedir

    Como detonador e mais nada já sabes

    «porque ninguém representa ninguém»

    e «a Poesia deve ser feita por todos»… (2003: 61).

    Contudo, do Forte que eu conheci, como poeta, muitos anos antes de ter conhecido a afável pessoa com quem mantinha intermináveis conversas, nos dois ou três cafés em que nos encontrávamos, na zona da Trindade, junto com outros amigos, todos já menos jovens, mas ainda intolerantemente presentes, desse Forte mítico que, para mim, antecedeu a pessoa serenamente fascinante que ele era, ficou-me para sempre a imagem de um mundo catastroficamente atravessado pela sua visão poética:

    Herberto Helder prefaciou Uma faca nos dentes, em 1983, a antologia de António José Forte, publicada originalmente em 1983.

     “Descerão por paredes sangrentas

    e subirão do asfalto (….)

    com um estandarte negro seguro nos dentes

    e descerão sempre cada vez mais e cada vez de mais alto

    até chegar à orla do inferno e chorarem as últimas lágrimas

    e partirem de vez” (2003: 46).

    É que, para a dor visionária de estar sempre nesse “tempo em que os generais falavam” (2003: 31), houve apenas, em Forte, exclusiva e rigorosamente, como compensação, o amor, mesmo que ele fosse sempre perdido e só depois do sonho encontrado:

    alguma coisa onde tu corresses

    numa rua com portas para o mar

    e eu morresse

    para ouvir-te sonhar” (2003: 41)

    Quando, em finais de 1988, soube da morte de António José Forte, só uma frase me veio aos lábios, com o arrepio da tristeza: “Ainda tínhamos tanto que falar, ele ainda tinha tanto para dizer…

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Brown, John, 1973, Panorama da Literatura Americana do Século XX, Dom Quixote, Lisboa

    Forte, António José, Uma Faca nos Dentes, 2003 (nova edição), Parceria A.M. Pereira, Lisboa


    [1] MARINHO, Maria de Fátima, – «Surrealismo» In: História da literatura portuguesa / dir. Óscar Lopes, Maria de Fátima Marinho. – Lisboa : Alfa, 2002. – Vol. 7, p. 269-302

    [2] MARTINHO, Fernando J. B., «António José Forte: uma faca nos dentes», Colóquio Letras Nº 86 (Julho 1985). – p. 89-90.

  • Raúl Brandão

    Raúl Brandão


    THE SORROW OF LOVE (versão de 1892)

    by: W.B. Yeats

    (Tradução de André Carlos Salzano Masini)

    Sobre os telhados a algazarra dos pardais,

    Redonda e cheia a lua – e céu de mil estrelas,

    E as folhas sempre a murmurar seus recitais,

    Haviam afastado o mundo e suas mazelas.

    Então chegaram teus soturnos lábios rosas,

    E junto a eles todas lágrimas da terra,

    E o drama dos navios em águas tempestuosas

    E o drama dos milhares de anos que ela encerra.

    E agora, no telhado a guerra dos pardais,

    A lua pálida, e no céu brancas estrelas,

    De inquietas folhas, cantilenas sempre iguais,

    Estão tremendo – sob o mundo e suas mazelas.


    Este poema de Yates, que citamos quase com valor de epígrafe, balizando a amplitude conceptual e os valores temáticos dos objectivos a que nos propomos, sempre teve, para nós, a qualidade exemplar de um modelo de construção do imaginário e dos procedimentos poéticos mais marcantes de uma primeira fase dos modernismos[1] europeus, quando ainda se deixavam afectar profundamente pelos valores românticos. Esses procedimentos processam-se em dois campos, pelo menos, cujas características esclarecemos no mesmo número de parágrafos, numerados 1 e 2.

    1 — Por um lado, procuravam a hiperbolização do esforço objectivista, apostado na entrega do elemento referencial emblemático dos conteúdos emotivos e estéticos, de modo a evitar ou pôr completamente de parte o tom declamatório da expressividade construída numa espiritualidade imaterial, emulando, muitas vezes, de modo banalizador, o vocabulário filosófico ou os conceitos científicos.

    Davam, assim, a ver os valores, os sentimentos e as próprias ideias, pelo recurso aos elementos perceptivos, por um vocabulário fortemente remissivo para objectos do mundo, singularizados, intensamente imagísticos, sobretudo visuais ou, remetendo o ideado, por um jogo de sentido contextualizado, para o imaginário construído a partir das referências exteriores tomadas como ícones.

    Um pouco à maneira dos cineastas, que emergem no momento histórico em que os modernismos se afirmam, o esforço poético vai no sentido de usar as imagens como constituintes elementares das mensagens, quase como se fossem significantes de uma língua pictográfica, uma vez que, pelo processo de captação fílmica “o mundo exterior, em toda a sua massa, perde o seu peso, é libertado do espaço, do tempo e da causalidade, e reveste as formas da nossa própria consciência […] e as imagens sucedem-se com a fluidez de sons musicais” (Mustemberg [1916] 2010: 163).

    No seu esforço aparentemente objectivante, assumem uma procura de referencialidade em que a “realidade se propõe de modo sempre diferente, cada vez que se apresenta à consciência dos sujeitos”, desde o autor a cada um dos seus leitores, surgindo “o referente do poema” como “um «universo imaginário», uma versão singular do mundo”, no fundo, uma “«visão do mundo»” pela qual o “referente poético” se afirma como “a coisa com todos os seus horizontes possíveis, todas as perspectivas que possamos ter acerca dela, e, a partir dela, sobre o mundo” (cf. Collot, 1989: 175-176).   

    Um dos efeitos que se produzem, pelo uso poético deliberado da referência “fiel ao movimento pelo qual o mundo, a todo o momento, se pode revelar outro para espanto dos nossos olhos” (Collot, 1989: 174) é o da epifania, que significa aparição ou manifestação de algo, normalmente relacionado com o contexto do mistério ou do desconhecido e imenso ou, eventualmente, da plena transcendência.

    Por isso pode ser, igualmente, uma sensação profunda de realização, no sentido de compreender a essência das coisas[2]. Recusando a transmissão dos estados afectivos pelo recurso à terminologia descritiva dos sentimentos (“coração”, “alma”, “dor”…), procuravam valorizar o procedimento epifânico, elaborando a ostentação súbita e intempestiva de um objecto ou facto, reveladores do que transcende a percepção imediata dessa objectualidade, ou evoca traços emotivos e afectivos a ela ligados. Por esse procedimento, qualquer dessas aparições era sentida como ocorrência que abre, em modos de “evidência”, um processo de inteligibilidade, a “experiência vivida” da verdade, (cf. Lyotard, 1967: 39) na sua dimensão de aletheia. Tudo se passa como que numa revelação do que está por detrás dos elementos perceptíveis, presentes como factos concretos, ou seja, no horizonte visionário que lhes diz respeito.

    2 — Por outro lado, o recurso revalorizado do procedimento expressivo/ emotivo da apóstrofe, já tão caro aos românticos (cf. Culler, 2001: 150-153), é construído como uma comunicabilidade privilegiada do sujeito da enunciação do discurso poético com os elementos perceptíveis, tornando-o mesmo capaz, num jogo de tentativas, de reconhecimento e alienação (o reconhecido torna-se outro) de atingir a sua essência ou um para lá deles que se revela, que surge como uma aparição.

    Este jogo de apropriação e perda do objecto pelo sujeito é expresso pela fenomenologia, contemporânea dos modernismos artísticos, do seguinte modo: “A coisa, tal como me é dada pela percepção, está sempre aberta sobre horizontes de indeterminação, «ela indica por antecipação, um diferir de percepções, cujas fases, passando constantemente de uma para outra, se fundam na unidade de uma percepção» (Husserl, Ideen II)” (Lyotard, 1967: 23).

    A pequena encenação feita por Yates de uma micro-paisagem, que pode ser entendida como um texto em dois dípticos, articulados por uma emergência que surge como aparição, ou mesmo revelação, é do tipo da que é usada profusamente, por Raúl Brandão, em quase todos os seus textos, mas que ressalta, como mais evidência, nos seus escritos documentais ou de características, quase, de reportagens jornalísticas. É a estes, sobretudo aos que publicou em volume, sob os títulos, Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas, que daremos especial atenção, embora tenhamos como objectos textuais, em plano secundário, outras suas obras, incluindo as de ficção.

    O modelo básico de encenação da paisagem em ponto pequeno que usa Yates permite-nos evidenciar o esquema representativo elementar, bem como os procedimentos poéticos que o possibilitam e valorizam, tendo em conta a posição do sujeito de enunciação, o universo representado e o discurso que o representa.

    Assim, como elemento de abertura, temos o primeiro díptico, constituído pelo texto da quadra inicial, que nos revela um universo objectual imediato, desde os pardais em algazarra, até ao pano de fundo das estrelas e das copas das árvores, servindo de barreira, pelo arredamento, às ameaças e agruras do mundo; em charneira, como segundo elemento e ponto de articulação dos dípticos, temos o primeiro verso da segunda quadra em que se apresenta a intromissão de um destinatário privilegiado, um tu, objecto eventualmente de desejo (os lábios, no original inglês, são “red” e não “rosas”[3]), portador, já, dos sinais de ameaça, pela sua soturnidade, a qual se revela plenamente, no horizonte criado pela emergência da interlocutora, na continuidade dos seus lábios, em todas as desgraças antes ocultadas.

    Como diz Michel Collot, no seu estudo acerca da estrutura de horizonte, recorrente na poesia moderna, “na paisagem dos escritores modernos, o horizonte figura, frequentemente, pelo seu vazio ou pelo seu recuo, esse inalcançável objecto do desejo” ­­– a que Buñuel chama, também, “obscuro” –, uma vez que “o mundo se organiza na base da exclusão de um objecto interdito que, tal como a paisagem, não se dá a ver senão recalcando um invisível no horizonte” (1989: 126-127).  

    Além do funcionamento da epifania, enfatizada, ou mesmo ostentada, pelo acto de apostrofar[4] a recém-chegada, percebe-se que, na organização do mundo representado, se processa um jogo na estrutura do horizonte, ao dar mais importância, ou menos, aos objecto da percepção imediata, e aos que, ora se anunciam em plano de fundo, como uma virtualidade, ora se revelam, pela aproximação, como parte e efeito da epifania. Este mecanismo é arvorado de forma hiperbólica num imenso número de enunciados da obra de Raúl Brandão.

    A variante textual mais característica neste tipo de ocorrências é a da descrição, assumindo nós que, na esmagadora maioria dos casos em que os textos de Raúl Brandão são não-ficcionais, a descrição surge francamente assumida pela focalização do narrador autoral.

    É de uma das obras que escolhemos como objectos principais da nossa abordagem, como acima esclarecemos, Os Pescadores, que extraímos o excerto que deterá, primordialmente, a nossa atenção, por nos parecer que nele encontramos o mecanismo fundamental em que assenta o discurso de Brandão a que chamamos documental, emergente, persistentemente, nos livros em que a dominante do conjunto é a função referencial/ informativa, tendo, como objecto central, o contexto (cf. Jakobson, 1965: 214)[5]:

    “Esta tarde o sol põe-se sobre uma barra e aparece deformado, entre grandes manchas de nuvens acobreadas, some-se e ressurge por fim como um grande balão de fogo num oceano revolto, até que entra uma nuvem espessa com interstícios de fogo e explode iluminando o espaço e a água cor de chumbo. / Este faz sobressaltar e sonhar. Três horas da tarde. Céu limpo, mar manso, e sobre o mar uma chapada de prata, sobre o verde, mil escamas a cintilar, que brilham, luzem e tornam a reluzir. O sol desce pouco a pouco, majestoso e sereno, no céu todo doirado e a luz forma uma estrada que liga o areal ao infinito, uma estrada larga, de oiro vivo, que começa nos meus pés, na espuma ensanguentada e chega ao sol. Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides: dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora, direitos ao céu (Brandão, 2014: 64)”.

    Este texto apresenta-se, num dos capítulos iniciais da composição heteróclita de Os Pescadores, intitulado “Pequenas Notas”, na secção que ele designa por “Pores do Sol”, que é constituída por um conjunto de parágrafos, espaçados entre si quase em moldes de versículos, dos quais reproduzimos dois, integralmente. Pela sua orgânica e composição, a secção que contém este parágrafo demarca-se da maioria das outras que compõem o livro.

    Não tem um fio sintagmático ou narrativo condutor e a sua unidade temática ou referencial é das mais diáfanas ou imponderáveis, semelhante apenas, quanto a esse último aspecto, à secção seguinte, intitulada “Nevoeiros”. Caracteriza-se por ostentar o seu desprendimento dos factores que constituem o contexto sócio-económico referenciável que está em quase todos os outros capítulos do livro: cidades piscatórias, variedades animais, aspectos geográficos ou tipos humanos.

    No entanto, nele vamos encontrar o modelo da construção de horizontes que vigora em quase todos os seus livros, mas, muito em particular, nos que aqui referimos especialmente, As ilhas Desconhecidas e Os pescadores. A preocupação, nestes textos, é delinear os enquadramentos cósmicos, as cercanias e os limites terrestres, oceânicos e celestes em que as figuras se perdem no invisível.

    Não é muito difícil apontar aqui a estrutura do horizonte encenado. Num plano muito afastado, uma imagem compósita de elementos referenciáveis de modo empírico, com réplica probatória no discurso científico, como “o sol” e “as nuvens”, um fenómeno empiricamente identificável pelas comunidades humanas, “o pôr-do-sol” e as aparências mais ou menos fantasiosas, esquematizadoras e esteticamente transfiguradoras: “a barra onde poisa o sol” “as manchas acobreadas que figuram as nuvens” e, subitamente, o “desaparecimento, ressurgimento e explosão do sol” – ruptura intempestiva que constitui o primeiro momento epifânico, como que uma prestidigitação das forças cósmicas que manipulam todo o horizonte: sol, águas do oceano e nuvens.

    Um deíctico anafórico, remetendo para todo conjunto de acontecimentos, mais ou menos reais, mais ou menos transfigurados pelo fantástico, do parágrafo anterior, que acabámos de apresentar, introduz o processo de enquadramento do momento final da aparição que conduz à metamorfose plena, à apoteose epifânica. O sujeito da enunciação, focalizador de todo o quadro em processo de encenação, reconhece o estado de sonho em que mergulhou, fazendo-o imaginar, num momento pontual, em enquadramento banal (três horas da tarde, mar manso e sol a brilhar), o jogo de transformações profundas introduzidas pela luz a reflectir-se na água, formando uma estrada que liga o (banal) areal ao infinito, criando, assim, uma via doirada que vai deste mundo (a “meus pés”) doloroso (a “espuma ensanguentada”) até ao sol.

    O terceiro membro epifânico assenta num vocativo, deíctico apostrofante que introduz um interlocutor até então ausente e insuspeitado: “Ó meu amor”. E, completando a apóstrofe, vem a veemência de um apelo à crença na aparição revelada de um caminho que conduzirá o sujeito e a sua amada ao céu.  

    Toda a dimensão cósmica que se evoca pela voz autoral é propiciada, por assim dizer, pela apóstrofe. No dizer dos teóricos e estudiosos da retórica e dos mecanismos da poética, a apóstrofe é uma espécie de provedora do lugar da mise en scène do arrebatamento, da entrada em contacto com as esferas apenas acessíveis à inteligibilidade, da comunhão com a ordem superior e misteriosa das coisas. No entendimento de Fontanier, que já referimos acima, em nota, a apóstrofe “não é nem a reflexão, nem o pensamento despojado, nem uma simples ideia: é, sim, o sentimento, o sentimento excitado no coração, até explodir e expandir-se para o exterior, como que de si próprio” (1968, p. 372).

    Em termos retórico-estilísticos, a apóstrofe, por modalidade vocativa, quase sempre sob a aspectualidade de exclamação, diz respeito à entidade que, explicitamente, actua como enunciador. Assim, a voz do poeta, face ao seu ouvinte/ leitor, apostrofa quando, sem mudar de encenação enunciativa, ou seja, no contexto em que se dirige ao seu receptor postulado (ouvinte/ leitor), inflecte o seu discurso na direcção de um destinatário ausente do espaço da anunciação, que, antes, faz parte do mundo ficcional diegeticamente construído. Como se fosse uma licença poética resultante de um estado emocional, o universo real é arrastado do exterior, referencial, para o interior, representado textualmente.

    Curioso é que esse espaço encenado surja segundo uma modalidade textual fundada em controvérsia e alimentando uma dinâmica da beligerância ao longo de todas as poéticas, pelo menos desde Horácio na sua Epistula ad Pisonis ou Ars Poetica: o sistema descritivo. “Uma descrição é” segundo Hamon, “o lugar de encenação duma confusão que é o saber das palavras e o saber das coisas, o lugar em que o leitor é interpelado pelo duplo saber que é o do léxico e o enciclopédico” pelo que “o limite de uma descrição não depende da natureza do objecto a descrever, mas da extensão do stock do léxico do descritor, que entra em competição de competência com o do leitor” (1993: 43).

    No interior de uma narrativa, ou como é o caso presente, na situação encenada de uma voz autoral procedendo a um relato em que revela experiências pessoais e situações em que se lhe patenteia um panorama paisagístico de que é espectador, relativamente imóvel, mas emocionalmente envolto, a apóstrofe pode vir desse narrador enquanto sujeito de enunciação autoral, que por esse gesto se torna auto-diegético. É o que acontece em quase todos os enunciados descritivos das narrativas de viagens de Brandão.

    Retrato de Raul Brandão e Maria Angelina, por Columbano Bordalo.

    Quando presentificam uma situação em que se insere, como personagem/ actor, vivendo os feitos que narra, mostrando a situação que se lhe apresenta aos sentidos a um destinatário (narratário) a quem subitamente se dirige com um comentário ou com uma apreciação, tudo se passa como se não fosse para ser “ouvida” pelas personagens do contexto em que se encontra, das quais, muitas vezes, não sabemos nada, nem sequer se foram “criadas” para aquela situação, ou se se dirige a um leitor imaginário, tão ficcional como aqueles, ainda que num plano discursivo superior, ou seja, o nível da enunciação.

    Com dirão Mazaleyrat e Molinié, “a apóstrofe só aparece como figura quando o contexto indica que se dirige a um alocutário puramente imaginário, mesmo em relação a seres ficcionais” (1989, p. 28). O que acontece, nestas circunstâncias, é que a relação de “autor/leitor” é ficcionalizada. De tal modo assim é que, quando a voz autoral surge em discurso directo, ficamos sempre na dúvida: falará ele com as suas personagens ou usa-as apenas para exibir as suas apóstrofes (quer de elogios quer de imprecações) a um destinatário de plano enunciativo superior, ficcionalizando a sua própria posição, ou procurando arrastar o leitor para dentro da ficção.

    É claro que, no texto lírico, a mais comum ocorrência é a de se tomar como contexto básico o que é composto por um enunciador/ poeta e um enunciatário/ leitor, sendo a inflexão, por norma, a da interpelação de um ser presente no universo referido como enunciado e não naquele em que processa a enunciação. Contudo, a espessura do jogo poético assenta na ilusão de se puxar para a dimensão da enunciação os elementos fantásticos do imaginário. É claro que a “relação” e o “lugar” onde o autor e o leitor se encontram só miticamente é que se pode considerar “real”, porque, como sabemos, eles existem diferidamente. Só por iluminura glorificante é que o bardo aparece a “dizer” a sua obra, instalado numa aura declamatória.

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    Das notas tomadas sobre a ilha do Pico, n´As Ilhas Desconhecidas, encontramos um bom exemplo disso realizado por R. B.:

    “Agora completo o quadro: com os montes hirtos e negros por trás, neste fundo extraordinário, neste panorama dilacerado, parto duma imaginação estranha, parado e cinzento, é que fica bem aquela vida dum dia e duma noite, o cortejo grotesco de fantasmas vociferando de porta em porta, com as bocas escancaradas de riso. Esta ilha negra e disforme apoderou-se dos meus sentidos. Tudo o que a princípio me repelia, o negrume, o fogo que a devora, o mistério, tudo me seduz agora. O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atracção. É mais do que uma ilha – é uma estátua erguida até ao céu e moldada pelo fogo – é outro Adamastor como o das Tormentas. / Apago todas as tintas do quadro: só quero o Pico diante de mim negro e dramático, roído da cinza que há-de acabar por devorar seres e coisas, deixando-o a prumo no céu, com a carcaça da catedral ao abandono na praia” (s/d: 77).

    Não falta aqui, na construção literária deste horizonte, a evocação da competência lírica do narrador autoral, a qual cabe bem dentro da caracterização que Fontanier faz do quadro (tableau), como variante da HYPOTYPOSE no seu tratado, Les figures du discours. Este surge como variante modal daquela figura, resultando do desenvolvimento extremo da descrição, “quando a exposição do objecto é tão viva, tão enérgica”, que resulta desse estilo “uma imagem, um quadro” (Fontanier, 1968: 390).

    Repare-se que, se recorrermos à terminologia adoptada por Adam e Petitjean (1989: 48-59), este narrador simultaneamente autoral a actoral, move-se no interior da sua pintura, arrastando, no seu acto ilocutório, o próprio processo de modalização, assumindo-se como autor do acto pinturesco que completa e revelando-se, ao mesmo tempo, nele, muito mais como o sujeito perplexo, que tacteia e percepciona, com hesitação (cf. Adam e Pettitjean: 52) a paisagem que, em postura autoral, seria esperado apresentar sem tibiezas.

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    Lá estão todos os índices da dúvida e da perplexidade, nas rupturas sintácticas, onde um Fontanier encontraria, talvez, o zeugma, o anacoluto, ou a inserção, mas que bem poderiam descritas como anacolutos, ou mesmo sínquises. Todo o primeiro período do primeiro parágrafo está construído com rupturas da sequência sintagmática que se tornam, elas próprias, figurações do discurso buscando a lógica da representação face à erupção do panorama surpreendente. Também não faltam, lá, os cortejos grotescos de fantasmas e os mistérios. Ao verbalizar a sua decisão de “terminar o quadro”, ele está, de modo implícito, mas dramatizado, a buscar a expressão ostensiva, chocante, para alguém (muito provavelmente o leitor) a quem dá a ver” o descrito, através da descrição e a “ouvir” a perplexidade da percepção, através do discurso. O ambiente criado é o da emergência do surpreendente, na descrição realista, resultando que “a fronteira entre animado e não animado (é) posta em causa e não é gratuito o saturar a descrição de pormenores que antropomorfizam a natureza e criam um clima de angústia” (Adam e Petitjean, 1989: 55).

    O próprio autor, aliás, é peremptório no teorizar a sua própria preceptiva. Logo no incipit do capítulo “Pequenas Notas” de Os Pescadores, no primeiro parágrafo que se segue ao título da secção “Pores-do-Sol” escreve: “Se eu fosse pintor passava a minha vida a pintar o pôr-do-sol à beira-mar. Fazia cem telas todas variadas, com tintas novas e imprevistas.

    É um espectáculo extraordinário” (2014: 63). E, logo adiante, a entidade autoral enunciadora especifica o seu modelo de trabalho, ao apresentar a ocorrência de duas variantes, talvez em dois momentos distintos, talvez numa variação de perspectiva que solicita a copresença do destinatário, pela dupla demarcação deíctico-demonstrativa, (“este”, “outro”): “Agora este, teatral, com longas gambiarradas, franjadas a oiro, acabado de pintar pelo cenógrafo para uma apoteose, e outro [este e outro são itálicos nossos] que não sei descrever, feito com muito pouco: quase desmaiado, um nada de luz no mar efémero, um nada de luz no céu efémero — e a montanha roxa, ao fundo, prestes a desvanecer-se” (2014: 64).

    Sobre esta matéria, pronuncia-se Vítor Viçoso, num registo hermenêutico muito próximo do nosso, ainda que com maior brevidade, quando, na Edição de Os pescadores por nós utilizada, escreve:

    “Percorrer a costa com os «olhos da alma» implicava para o autor do Húmus revelar a paisagem e os seus povoadores, servindo-se recorrentemente do registo dos gestos pictóricos («Se eu fosse pintor», diria enfaticamente), como representação da sucessão de instantes eternizáveis, numa fusão entre o sujeito do olhar e o objecto. A paisagem, mais do que um mero deleite «turístico», é aqui uma inscrição que mobiliza em cada fragmento todos os sentidos do seu corpo na captação do instante encantatório e emerge também como uma peculiar produtora de sentido no âmbito de uma autognose” (Brandão, 2014: 17).

    O modelo utilizado, para o exercício de demonstração de R.B., acto cicerónico de apontar, é o do teatro. Em ambos os casos, na visita guiada e no teatro, há um público a quem o enunciador, autor ou actor, se dirige. Mas transformar o exercício de mostrar literariamente uma paisagem inscrita no horizonte, num discurso aparentemente cicerónico, num acto encenado em que o escritor se revela no papel de pintor é levar a autoridade autoral a um patamar de refinado exercício hiperbolicamente ostensivo. E é, também, carregar os mecanismos de demonstração e revelação de todas as potencialidades poéticas da remissão do discurso para os patamares referenciais, quer os da realidade empiricamente aceitáveis e realistas, quer os do plano do fantástico e do onírico, misturando os dois planos da referencialidade, ao ponto de os confundir.

    O mecanismo básico do mostrar, da monstração ou mostração, como poderíamos dizer, por neologismo conceptual, é o da dêixis, que, numa narrativa ou discurso alongado, também pode ter a função de anáfora. Os vocábulos normalmente utilizados são os pronomes pessoais, os demonstrativos, os advérbios de ligar e tempo. A sua função fundamental é referir e, por isso, como todo o discurso de Raúl Brandão demonstra bem, tem como sentido fundamental o apontar, são como palavras-dedos que podem apontar para outra parte do discurso, mas também para o que está fora do discurso e até apontar para acontecimentos anteriormente ocorridos. Mas, o mais importante é que podem apontar para mundos possíveis, do mesmo modo que apontam para o nosso universo existencial.

    Como diz Collot, os dêicticos fazem uma referência a um aqui e agora ilusório, porque a referência verbal (ou mesmo a icónica, como, por exemplo, o desenho de um dedo a apontar, ou uma seta desenhada, sem qualquer outro contexto gráfico-pictórico) “não é situável num sistema de verificações (“repères”) espácio-temporais fixas e universais. Ela depende do ponto de vista do locutor: reenvia para um mundo, e não para o universo – para horizonte que é a unidade renovadamente singular de um Eu-aqui-agora” (1989: 190).

    Repare-se que este esforço de dirigir o discurso, explicitamente, para este aqui e agora em que estou eu, completa a estrutura actancial da apóstrofe, desafia-me enquanto leitor, imaginariamente, para o momento registado e para o do registo, do escrito, sendo eu, aqui e agora, leitor, aquele que só pode aceder a essa encruzilhada espácio-temporal num momento duplamente diferido: em relação ao momento da escrita e, reforçadamente, porque o da escrita também difere do representado, ao momento da vivência.

    Mas, fazer esta convocação, é elaborar o sistema mais amplamente dialógico que a criação literária pode ter. A proposta de Bakhtine para construir a compreensão dessa intercomunicabilidade é a seguinte:

    “Imaginemos uma conversação entre duas pessoas, na qual as réplicas da segunda não sejam ouvidas, mas de tal modo que o sentido geral da conversação não seja alterado. O segundo locutor está invisível, as suas palavras faltam, mas o seu traço profundo determina todas as palavras pronunciadas pelo primeiro. Sentimos que se trata, aí, de um diálogo, embora apenas haja um único locutor, e que esse diálogo é extremamente tenso, porque cada palavra expressa responde e reage ao locutor invisível, indica a existência, fora de si, da palavra do outro não formulado” (1998: 272).

    rock formations

    No fundo, a entidade convocada, parece ser um lugar vazio, o espaço enigmático, do eu indagante, perplexo que remete para a potencial presença e cumplicidade do leitor, que estará para a descrição como o autor estava para a descriptação da paisagem experienciada (não estando em causa que ela seja obrigatoriamente do universo empiricamente experienciado, podendo ser, também, imaginada, de um mundo possível ficional).

    Raúl Brandão, no excerto acima apresentado, propõe-nos uma metodologia, o esboço de uma poética da descrição, segundo a qual os “quadros” literários deveriam ser “pintados”, recorrendo a uma espécie de didascália de encenação em que o apelo ao leitor se processa quase despudoradamente.

    Encadeia, assim, um segundo modelo de ars poetica, ou, melhor, uma ars dicendi a conjugar com a literária: a teatral/espectacular. Poderíamos dizer que por esta exposição chega mesmo a provocar o seu destinatário que no presente caso deveríamos, talvez, chamar narratário, para especificar melhor o destinatário do discurso — embora nos pareça que, além disso, caberia bem um reforço expressivo neológico, que poderia ser descri(p)tário, atendendo à necessidade de definir como o que recebe a descrição e, com ela, a descriptação do Mistério.

    Em acréscimo a essa vontade de esclarecimento metodológico, ele procura pela mistificação, como a que aparece na descrição da ilha do Pico, onde usa a informação do cicerone turístico (As Ilhas Desconhecidas começaram por ser um diário de viagem com foros de roteiro turístico – como o são, de certo modo, Os Pescadores, ainda que contendo mais matéria ficcional) criar os efeitos poéticos de profunda expressão lírica engendrando um objecto visualizado de modo quase patético como se pretendesse, por esse procedimento, criar uma homologia entre o paradoxal vivenciado pelo escritor e discursivo lido/ visionado pelo leitor da descrição.

    É o que ele faz relativamente aos mistérios da ilha do Pico. Começa por apresentar os mistérios do modo prosaico que, ainda hoje, usam os guias/ roteiros turísticos, quando falam dessa designação tão enigmática, embora rodeie a sua apresentação de um halo de enigma: “Esta ilha [… ] é negra até à entranhas [… ] A fuligem caiu sobre a vasta terra e só de quando em quando um grande plaino cinzento, os mistérios, sucede ao negrume como a lepra ao incêndio” (p. 67)[6]. Depois de alongar a sua descrição por outros aspectos da ilha, regista, ao aproximar-se da região que costuma ser designada por “mistérios” do Pico, o regresso do motivo, incluindo de modo subtil, mas dramático, o seu putativo interlocutor, o leitor, através da segunda pessoa do plural:

    “Rasgam-nos, dilaceram-nos de alto a baixo, as grotas, cavadas pelas torrentes. Severidade e negrume, a que de vez em quando sucede o grande plaino cinzento dos mistérios. Depois do mistério da baía aparece o mistério de S. João e o grande mistério da Silveira, que nos acompanha e dura quilómetros pela estrada fora, dando à paisagem um aspecto fantástico. É o Pico na sua verdadeira expressão. Cinzento e negro, sempre cinzento e negro, o negro da terra, o negro dos montes cada vez maiores, e o cinzento estranho dos mistérios, vastas necrópoles onde a terra e a pedra estão sepultadas sobre* o mesmo lençol cinzento. / É esta paisagem Mineral que dá carácter à ilha magnética. Sumiram-se os retalhos dum verde tenro entre o negro calcinado e vulcânico — mais verde — mais tenro —só resta a desolação imensa. Lembro-me daquela baía do Mistério, isolada e cinzenta, morta que espera todos os dias os mortos, as cinzas dos naufrágios dispersos no oceano. Só me restam na memória as vastas extensões cadavéricas devoradas pela lepra e com montes em osso ao fundo” (p. 74-75).

    [* Resta-me a dúvida: será gralha ou “efeito” de estilo, a confundir o que está em cima com o que está em baixo? C.J.]

    Não é demais acentuar o profundo manipular dos sentidos referenciais e semânticos operados, em nome de uma visão que o destinatário (um dos nós, da segunda pessoa do plural que se mistura com o singulativo do sujeito que mais parece apontar e referir com os seus elementos deícticos ou demonstrativos “Esta… aparece… é…”) deverá partilhar inclusivamente nas suas dimensões fantásticas ou enigmáticas (de que baía de Mistérios se trata, e que ocorrências tremendas estão na memória do narrador?)

    Só depois da torrente de mistérios é que surge a explicação quase decepcionante dos “mistérios”. Diz R.B.: O mistério é o resultado de erupções da base do Pico (mistério de São Jorge, por exemplo) cobertas como um pequeno líquen, a urzela, que se propaga em vastas extensões cinzentas, dando a impressão de uma lepra que corrói a terra, dum mundo morto e amortalhado” (s/d: 75). A quem é dirigida esta prestidigitação. À alteridade autoral indagadora do Cosmos, ao presumível leitor, cúmplice de um devaneio?

    Por essa razão, assume-se que um dos objectivos da apóstrofe é fazer comunicar os dois universos, ultrapassando a barreira que os torna absolutamente incomunicáveis, pelo menos segundo a exigência de um empirismo cauteloso e crítico, sob a vigilância da racionalidade positivista, que se processam com alheamento da hipótese metafísica da inteligibilidade, ou da possibilidade aberta pela verosimilhança poética, quando activa o processo da “suspensão da descrença” (Coleridge).

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    Assim, percebe-se bem porque é que, no dizer de Jonathan Culler, as “apóstrofes” poéticas “podem complicar ou romper o circuito da comunicação, colocando questões sobre quem é o destinatário” pelo que se tornam “embaraçantes” (2001, p. 150). A proposta que Culler faz é a de que se pode, até certo ponto, “identificar a apóstrofe com a própria lírica” (2001, p. 151) partindo do princípio de que a apóstrofe parece encenar o sistema de enunciação do lirismo propriamente dito, chegando alguns críticos a apresentá-la como dominante, por vezes omnipresente, em quase todos os sistemas de lírica historicamente determinados.

    Essa posição parece ser assumida, por exemplo, num enunciado como o de Northrop Frye, no seu Anatomia da Crítica:

    “O poeta lírico normalmente finge estar conversando consigo mesmo ou com outrem: um espírito da natureza, uma das Musas (note-se a diferença com o épos onde a musa fala por intermédio do poeta), um amigo pessoal, um amor, um deus, uma abstracção personificada ou um objecto natural. […] O poeta, por assim dizer, volta as costas para seus ouvintes, embora possa falar por eles, e embora eles possam repetir algumas de suas palavras atrás dele” (Frye, 1973, p. 245).   

    É claro que o termo apóstrofe não é empregue. Contudo, parece evidente que a descrição que é feita, aqui, do acto de enunciação do poeta lírico corresponde, nos traços essenciais, à que é feita do acto enunciativo da apóstrofe, nos estudos e manuais de poética e de retórica.[7] Também é de considerar, persistentemente, que nem sempre a apóstrofe surge num embrião de diálogo explícito, como numa interpelação clara. Pode ser cultivada, como é o caso mais frequente em R.B., pelos procedimentos dos dêicticos, incluindo a anáfora que, muitas vezes, não aponta o cotexto, mas sim o contexto referencial inscrito no acto enunciativo, criando uma presença ilocutória, tão desmarcadamente aqui e agora do descritor/ enunciador, que se torna quase tão fantasmagórica como os fantasmas que ele assinala no espaço referido. Um outro exemplo de Os Pescadores:

    “Oito horas. Mais uns minutos e descerra-se a cortina vaporosa: dissolvem-se os últimos fantasmas e o panorama surge como uma aparição do fundo do mar. / Ei-lo diante de mim. Primeiro a costa, ao longe violeta e vermelha, mais longe roxa e diáfana, mais longe ainda perdida na bruma. […] …tudo isto feito de pó, e sempre duas tintas predominantes, a do mar azul e a do céu azul” (p. 73).

    Parece que sempre o mesmo modelo norteia a visão constantemente, nas descrições, e a comparação com o processo fílmico, do ponto de vista fenomenológico pode ajudar-nos a compreendê-lo melhor se atendermos ao que nos diz Colin McGinn, no seu The Power of The Movies — How Screen and Mind Interact, lembrando-nos que no cinema “vemos a imagem e vemos a referência, mas os dois objectos perceptuais são entidades contrastantes: um é bidimensional, o outro é tridimensional; um é desmaterializado, o outro não; um está parado no tempo, o outro não; e assim por aí fora” (p.86); sugerindo que há mais contrastes, acrescenta, um pouco adiante, que “em muitas tomadas de vistas (shots)[8] o primeiro plano [ou próximo, ou aproximado] está nítido e o plano de fundo [ou o pano de fundo, ou o cenário, ou….a paisagem] está desfocado […]” (p.88).

    Esta transformação, esta captação da imagem a partir do seu referente no mundo parece constituir um dos mecanismos básicos que Brandão refere de modo quase sempre explícito no seu sistema descritivo, patenteando-nos o autor/ descritor no acto de apresentação, o seu aqui e agora, e a passagem do mundo tridimensional e ponderoso para a forma da imagem apresentada: “a cortina vaporosa”, os “fantasmas”, achatamentos dos objecto do mundo cruzam-se com o descarnamento dos elementos que emergem como uma “aparição” vinda dos abismos: a costa são cores porque tudo isto “é feito de pó” e “tintas”. Parecem quase os “materiais” de que fala o Próspero shakespeariano, na Tempestade, ao referir-se ao mundo encenado: “We are such stuff / As dreams are made on[9]”.

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    E, falar do sonho é constante em Raúl Brandão, como o faz, por exemplo a propósito do Pico: “Não consigo tirar os olhos do panorama tremendo, do panorama que é um pesadelo donde extraio não sei que prazer indefinido” (s/d: 75). Sonho que é, no fundo preparado por um estado quase permanente de devaneio, como no-lo revela um pouco adiante, algures, imprecisamente, talvez entre o Corvo, e as Flores:

    “Meu deus, como eu vejo tudo! Ficam-me os olhos nos carreirinhos que não sei aonde vão ter e por onde passa um homem com o burro de carga; ficam-me os olhos presos a certos sítios e a certas casas […]. E fica-me a alma nestes barcos de todos os feitios que chegam e partem…Para onde? Para onde? Sei lá para onde! Para sítios que nunca vi — para a cor e para a luz” (s/d: 97).

    Se recorrêssemos às categorizações de Bakhtine, para conceptualizar os procedimentos dos autores para construírem os seus mundos possíveis marcados por um tempo e por um espaço, seríamos tentados a falar dum especial cronótopo da encruzilhada – do cruzar do sonho e do mundo, lugar e tempo em que um patético narrador autoral, entontece o seu destinatário leitor com um interminável e fascinante rodopiar de horizontes encenados. Como diria Bakhtine,

    “o autor, vamos encontrá-lo fora da obra, enquanto homem que vive a sua existência biográfica; mas nós reencontramo-lo na própria obra, fora dos cronótopos representados, como que na sua tangente. […] Dá uma imagem do seu mundo ora do ponto de vista, de uma personagem participando no acontecimento evocado, ora do narrador, ora do autor postulado (substitut na trad. franc. alteridade de autor-criador); enfim mesmo que não recorra a nenhum intermediário, e conduza a sua narração directamente, como tendo origem em si próprio, o autor como tal, (num discurso directo [tipo notas de viagem, diarísticas, memorialísticas, como faz Brandão]), e possa também, neste caso, construir um mundo espácio-temporal, com os seus acontecimentos,  como se ele o visse, o observasse, como se ele fosse uma testemunha omnisciente; e até mesmo no caso em que compusesse uma autobiografia ou das mais autênticas confissões, ficaria sempre fora desse mundo representado porque seria o seu criador. […] Toda a obra literária está virada para o seu exterior, não para si própria, mas para o seu auditor-leitor, e ela antecipa, até certo ponto, as suas reacções eventuais” (Bakhtine, 1978: 94-96-97).

    Ora, Brandão é exactamente um dos autores que, por virtuosismo do seu desempenho, no voltear com os seus palhaços e títeres, insiste persistentemente em representar-se, no seu próprio enunciado, como o criador perplexo com os mundos fantásticos que criou, procurando sempre baralhar os contornos da “tangente” de que fala Bakhtine, onde o autor se colocaria, próximo dos seus destinatários por vontade poética, mas sempre agrilhoado a uma distância que o diferimento inevitável da criação poética implica. Entre dois mundos, o da obra e seu, entre dois momentos, entre o momento da escrita e o da leitura, ele é o ente perplexo, permanentemente agitado pelo espanto e extasiado pelo momento epifânico, extasiado perante as apóstrofes que só ele ouve vindas das sombras, dos abismos, do horizonte. 

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

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    BAKHTINE, Mikhaïl, 1978, Esthétique et théoie du roman, Gallimard, Paris

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    CHEVALIER, Jean e A. Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Laffont

    COLLOT, Michel, 1989, La poésie modern et la structure d’horizon, PUF, Paris

    CULLER, Jonathan, 2001, The Pursuit of Signs, Londres, Routledge

    FONTANIER, Pierre,1968, Les figures du discours, Paris, Flammarion

    FRYE, Northrop, 1973, Anatomia da Crítica, S. Paulo, Cultrix

    JAKOBSON, Roman, 1963, Essais, de linguistique générale, Points/Minuit, Paris

    JORGE, 2012, “As Lápides, as Preces e as Insígnias: Elegias, Apóstrofes e outras Artes do Epitáfio na Poesia de Florbela Espanca”, Callipole — Revista de Cultura, nº 12 CMVV, Vila Viçosa

    McGINN, Colin, 2005, The power of The Movies — How Screen and Mind Interact, Vintage/Random, Nova Iorque

    MOLINIÉ G., 1992, Dictionnaire de rhétorique, de George Molinié, Le Livre de Poche

    MOLINIÉ G.  et J. Mazaleyrat, Vocabulaire de la stylistique, Paris, PUF, 1989

    MÜNSTER, Hugo, 2010, Psychologie du cinématographe, De l’incidence Éditeur, Lille (impr.)

    PREMINGER, Alex e T.V.F. Brogan, 1993, The New Princton Encyclopedia of Poetry and Poetics, Princton Paperbacks, Nova


    [1] Empregamos aqui, “modernismos”, de modo muito lato, englobando os movimentos que, do simbolismo em diante, dominaram, na literatura ocidental, contrariando os cânones dos mais estritos códigos românticos e realistas. Cabem nesse universo estético ideológico por nós congeminado, porém, muitos dos cumes epigonais do naturalismo e do parnasianismo, por exemplo.

    [2] No fundo trata-se da revelação das coisas despidas dos aparentes equívocos, como defendia Joyce no seu romance esboçado, Stephen Hero, como é explicado por Bernard Richards no texto que se segue: “Stephen explains in Stephen Hero that the apprehension of beauty involves the recognition of integrity, wholeness, symmetry and radiance. Here he comes close to the aesthetics of Gerard Manley Hopkins and his philosophy of haeccitas (‘thisness’). Joyce demonstrates the way in which the contemplated object is revealed: Its soul, its whatness, leaps to us from the vestment of its appearance. The soul of the commonest object, the structure of which is so adjusted, seems to us radiant. The object achieves its epiphany. (Stephen Hero, Chapter XXV). Joyce is here extending definitions of beauty to cover areas that most people would not recognise as such. When we think of epiphanies we think, principally, of Joyce. However, although Joyce may have coined this specific term he is not alone in having epiphanic experiences, nor was he the first to have them. Indeed, Joyce’s word was even anticipated by the American writer Emerson, who employed it in a lecture of 19 December 1838: ‘a fact is an Epiphany of God and on every fact of his life man should rear a temple of wonder and joy.’ For centuries writers and mystics have experienced sudden insights that seem detached from the flow of everyday perception. In many ways these experiences are the high points of human experience and the focus of artistic production. Often they have been on a borderline between the secular and the religious: what has been revealed in the mystical moment has been a sense of God, of the whole shape of the universe, of the unity of all created things. Wordsworth describes it as ‘A presence that disturbs me with the joy/ Of elevated thoughts; a sense sublime/ Of something far more deeply interfused’ (Tintern Abbey lines 93-6)”.

    Bernard Richards, from ‘The English Review’.

    cf.: Dubliners

    [3][Texto original da poesia]: THE quarrel of the sparrows in the eaves,/ The full round moon and the star-laden sky,/ And the loud song of the ever-singing leaves,/ Had hid away earth’s old and weary cry.// And then you came with those red mournful lips,/ And with you came the whole of the world’s tears,/ And all the sorrows of her labouring ships,/ And all the burden of her myriad years.// And now the sparrows warring in the eaves,/ The curd-pale moon, the white stars in the sky,/ And the loud chaunting of the unquiet leaves/ Are shaken with earth’s old and weary cry.

    ‘The Sorrow of Love’ is reprinted from An Anthology of Modern Verse. Ed. A. Methuen. London: Methuen & Co., 1921.

    Existe uma versão posterior, de 1925, que foi a que ficou na recolha final das obras do autor. Como se pode ver, na transcrição que em seguida fazemos, a marca do sujeito de enunciação apaga-se, deixando de haver o apostrofar da provável interlocutora, pelo que se atenua o efeito da epifania, ficando esta reduzida a um tom de quase simples ocorrência.

    The Sorrow of Love (versão de 1925) BY WILLIAM BUTLER YEATS

    The brawling of a sparrow in the eaves,/ The brilliant moon and all the milky sky,/ And all that famous harmony of leaves,/ Had blotted out man’s image and his cry./ A girl arose that had red mournful lips// And seemed the greatness of the world in tears,/ Doomed like Odysseus and the labouring ships/ And proud as Priam murdered with his peers;// Arose, and on the instant clamorous eaves,/ A climbing moon upon an empty sky,/ And all that lamentation of the leaves,/ Could but compose man’s image and his cry.

    [Tradução de Ivan Justen Santana ]: O bulir dum pardal pelas beiradas,/ O brilho da lua e o lácteo céu infinito,/ E toda a famosa harmonia das floradas,/ Mancharam a imagem humana e seu grito.// Uma garota ergueu-se rubros lábios enlutados/ E parecia a grandeza do mundo em lágrimas,/ Condenada como Ulisses e os navios danados/ E audaz qual Príamo caindo com seus pares;// Ergueu-se, e presto as clamorosas beiradas,/ Uma lua escaladora sobre um céu infinito,/ E toda aquela lamentação das floradas,/ Não compunham a imagem humana e seu grito.

    Cf. aqui.   

    [4] Fontanier caracteriza a apóstrofe do seguinte modo: “diversão súbita do discurso pela qual nos desviamos de um destinatário (objet), para nos dirigirmos a um outro, natural ou sobrenatural, ausente ou presente, vivo ou morto, animado ou inanimado, real ou abstracto, ou para se nos dirigirmos a nós próprios”  (1968, p. 371”). No caso do texto poético-literário, a apóstrofe consiste, muito frequentemente, ou quase sempre, na inflexão súbita ou mesmo intempestiva de um discurso que é pressuposto dirigir-se a um destinatário-leitor, em direcção a um destinatário surgido inesperadamente, perturbando a demarcação entre enunciado e enunciação, entre o mundo ficcional ou textual e o mundo postuladamente real de “leitor” e “autor”.

    [5] Devemos lembrar-nos, no entanto, que, como diz o próprio Jakobson “[…]Mesmo que o objectivo da mensagem seja o referente, a orientação para o contexto – em suma a função dita «denotativa», «cognitiva», referencial – como é, quase sempre, a preocupação dominante de numerosas mensagens, a participação secundária das outras funções nesse tipo de mensagens deve ser tomado em consideração por um linguista atento” (Jakobson, 1965: 214).

    [6] Note-se que o termo já tinha sido usado relativamente à Horta, onde o viajante/ relator valorizava o ressaltar  das muitas cores no fundo dos… mistérios, termo misterioso, para quem não conheça razoavelmente os Açores e as suas nomenclaturas, mas que Raúl Brandão não esclarece então.

    [7] Lembrando-nos, quase ao acaso, de alguns dos mais belos e recordados poemas portugueses de todos os tempos, desde as cantigas de amigo, em que se interpelam as “flores do verde pino”, até aos poetas modernos, nomeadamente Pessoa, quando incita a rapariga distante, que não o ouve, a comer chocolates, em “A Tabacaria”, passando pelo modelo absoluto e arrebatado do soneto “Alma minha e gentil…”, de Camões. Todos eles poderiam emparceirar com as descrições paisagísticas de Brandão Se acrescentarmos a este nosso elenco, colhido em rápida auscultação da nossa memória de leitores, a constatação, mais sustentada, de Laurence Preminger, A. W. Halsall e T. V. F. Brogan (in New Princeton Enciclopedia[7], entrada APOSTROPHE), de acordo com a qual “134 dos 154 sonetos de Shakespeare contêm uma a. e que 100 são directamente endereçados a uma senhora ou a um amigo”, vemos que a apóstrofe é muito recorrente e, como nos dizem os exemplos que apresentámos, fortemente ligada à elegia. Assim, a pergunta que se torna fundamental fazer, segundo Culler, sobre a apóstrofe é: “Que papel têm as apóstrofes no poema”. Cremos que, procurar responder, com ele, a esta pergunta, é formularmos a caracterização de um dos aspectos fundamentais como o que encontramos na poesia de Florbela Espanca e fundamento da sua grandeza poética.  (cf. Jorge, 2012)    

    Não só é recorrente como surge nos maiores poetas, em poemas de elevada importância: “o hipócrita leitor” de Baudelaire, no poema que serve de frontispício a Les fleurs du mal, o destinatário/ leitor de Walt Whitman, nas “Inscriptions” com que abre o seu Leaves of Grass, “O my songs”… do poema “Coda” de Pound. Esta enumeração não pretende ser exaustiva: é apenas uma breve amostra de como se apresenta a possibilidade de a apóstrofe ser uma figura, ou melhor, um dispositivo discursivo, que se pode circunscrever como figura da enunciação, ou mecanismo estruturante, do modo lírico, o qual enquadra e enforma a estrutura do modo de apresentação de certas modalidades da lírica.   

    [8] Tomada de vistas (take), é o ponto de vista da captação. O resultado pode ser mais bem expresso pelo termo plano (que pode ser expresso em inglês por shot), constituindo quase um par opositivo da conceptualização da prática cinematográfica

    [9]Act 4, Scene 1 PROSPERO (12ªintervenção na cena)

    …….

    You do look, my son, in a moved sort,/ As if you were dismay’d: be cheerful, sir./ Our revels now are ended. These our actors,/ As I foretold you, were all spirits and/ Are melted into air, into thin air:/ And, like the baseless fabric of this vision,/ The cloud-capp’d towers, the gorgeous palaces,/ The solemn temples, the great globe itself,/ Ye all which it inherit, shall dissolve/ And, like this insubstantial pageant faded,/ Leave not a rack behind. We are such stuff/ As dreams are made on, and our little life/ Is rounded with a sleep. Sir, I am vex’d;/ Bear with my weakness; my, brain is troubled:/ Be not disturb’d with my infirmity:/ If you be pleased, retire into my cell/ And there repose: a turn or two I’ll walk,/ To still my beating mind.

  • Eça de Queirós

    Eça de Queirós


    A ideia fundamental que, à partida, nos norteia aqui é a de que a produção de Eça, enquanto escritor de romances, não pode ser desligada da outra actividade, por ele também exercida, que normalmente se designa, com algum simplismo, por jornalística.

    Mais amplamente, pensamos que toda a sua prática de escrita não romanesca, por vezes entendida como ancilar relativamente àquela que se reconhece tradicionalmente como a que é verdadeiramente literária, é um ponto importante, não apenas por ser preparatória, ou mesmo propiciatória, da que o afirmou como grande autor, mas também por constituir uma prática com a sua dimensão própria, por si só válida como trabalho criativo.

    Contudo, é o referido aspecto preparatório que nos vai interessar essencialmente aqui. Assim, assumimos que é na aprendizagem feita nos jornais que se desenvolvem muitas das suas capacidades de representação, alguns dos mais importantes mecanismos formais de escrita criativa que lhe darão capacidade para, nos seus romances, gerar, desenvolver e manter a densidade expressiva, a capacidade de estruturar os mecanismos de domínio do texto que o tornam num dos autores mais importantes do seu tempo. É a partir dessa formação que a sua obra de maior duração, mais desligada da efemeridade do escrito consumível diariamente, se constitui como um filão inesgotável de registos dos discursos, os quais recolhem toda uma tradição da sabedoria retórica e poética para originarem uma novidade revolucionária enquanto obra artística.

    O aspecto central que aqui pretendemos apresentar, como mecanismo de criação de excepcional expressividade na produção do discurso em Eça, é o da segunda voz. Essa voz, a rigor, deveria ser chamada voz dupla, bivocalidade, já que ela irrompe, num plano do discurso aparentemente coeso, não como interlocutora, mas como enunciado simultâneo, emergência perturbante de um outro discurso que, por assim dizer, abre alas no enunciado que consideraríamos emitido pela vontade racional do locutor, no seu discorrer normal.

    Assim, por dentro do próprio discurso autoral, escapando-se ao controlo do sujeito que identificamos com a identidade – a entidade Eça, neste caso, o cidadão que intervém como jornalista nos debates do seu tempo –, essa voz imiscui-se, intromete-se, surge como que clandestinamente ou, para identificarmos melhor o fenómeno, promiscui-se. Entidade quase ilegítima, ela tem, se assim podemos dizer, um estatuto muito próximo do daquele “diabinho” irreverente e malicioso que, nalgumas circunstâncias, se revela como perturbador dos mais banais discursos, fazendo-nos dizer ou escrever o que não queríamos, assemelhando-se, nisso, à voz demoníaca – ou daimon – que também assaltava Sócrates.

    Tal voz, por cortar uma autenticidade monológica ao discurso do autor, actua, enquanto discurso, de um modo muito semelhante ao mecanismo que Anabela Rita apresenta como processo de visualização nas crónicas de Eça, no Distrito de Évora. Esse mecanismo, segundo a autora referida, funciona do seguinte modo: “Quando a distância entre observador e observado aumenta, torna-se espectacular (…) e pode favorecer o desenvolvimento de uma atitude que o cronista insinua como caracterizada por um certo «diabolismo» (1998: 79)”.

    Ora, embora nos mantenhamos inteiramente de acordo com a autora citada quanto à distância e ao espectáculo gerado por essa distância, o que aqui nos importa principalmente não é a visualidade, mas a própria discursividade verbal. Tudo se passa como se a voz dupla, ao surgir, criasse um mecanismo retórico em que ambas as vozes, a que esforçadamente o autor mantém como sua (a admitirmos que cada um é senhor e regulador do seu discurso) e a outra, que o invade como uma inevitável facécia, surgissem a uma distância em que tanto uma como outra (a empenhadamente “autêntica” e a sentida como “invasora”) se dão como espectáculo verbal. Passa-se, nesse caso, qualquer coisa como uma desapropriação do autor relativamente à sua palavra, um desajuste, uma deslocação em que não só percebe a outra palavra como outra, mas também percebe a sua como alheia.

    Para observarmos melhor esse mecanismo de distanciação (a que os formalistas russos chamariam de estranhamento – de que não andaria longe, também, o alheamento de Pessoa) é bom vermos como o próprio Eça o constrói, numa crónica. Revela ele, aí, em simultâneo, como está consciente desse mecanismo, uma vez que é capaz de fazer da descrição do processo mais um elemento constituinte do espectáculo verbal.

    O texto em questão é uma das suas Cartas de Inglaterra, que ele intitula “Uma partida feita ao «Times»”. Nessa peça jornalística (datada de finais dos anos setenta ou princípios dos oitenta do séc. XIX), Eça, depois de revelar a seriedade e o profissionalismo com que o «Times» praticava a recolha dos discursos dos grandes políticos e oradores ingleses da época, levando o seu escrúpulo a tal ponto que os autores preferiam recolher nele o material para a publicação das obras em livro do que recorrer às suas próprias notas ou redacções originais, apresenta, como acontecimento extraordinário e singular, um caso de falha à norma do sistema.

    A singularidade, porém, não nasce apenas da perturbação, do acontecimento imprevisto, como Eça explica claramente; resulta, também, como cautelosamente regista, do facto de, em certo dia, o «Times» ter publicado o discurso do mais previsível dos oradores: o mais “austero”, “doutrinário” e “rígido espírito” (s/d: 185) do ministério britânico de então. Sendo o “contrapeso conservador desse ministério”, representante da “tradição” e da “fórmula whig”, esperava-se, da sua crónica, a “majestade oficial” que se “honra em guardar as coisas supremas – a Coroa, a Igreja, a aristocracia territorial, os privilégios, a integridade do império” – coadunando-se com o modo “grave, ríspido” com que sempre fala, “vestido de negro” (p.185).

    Ora, o que torna o caso ainda mais perturbante é que as expectativas são quase completamente satisfeitas, excepto a tal partida que, segundo Eça, comentando previamente o relato, se torna, no interior de tanta previsibilidade, uma “atroz e deliciosa facécia” (p. 185). Note-se a contradição do oximoro, porque ela vai suster toda a apreciação de Eça. Não dizemos argumentação, mas apreciação, porque, aqui, o jornalista tira lições quase fantásticas da paródia que se deleita a anotar no impulso de um encantamento, ou sob o efeito de uma fascinação. De acordo com Eça, que, de agora em diante, tentaremos seguir num resumo feito de palavras suas, “alguém, um monstro, um celerado, subtilmente, pé ante pé, foi ao discurso, arrancou-lhe dez ou doze linhas, e substituiu-as por outras (…) E que linhas!”.

    De acordo com o cronista, o texto intruso era de bradar aos céus, sendo-lhe quase impossível a ele, comentador, “conservar-(se) casto” e “explicar essas linhas aos leitores da «Gazeta de Notícias»” (p.186).

    Tais “linhas, intercaladas no severo discurso do severo ministro, eram (…) linhas eróticas!

    Era o grito convulsivo de desordenada lubricidade; era o ruído de uma besta agitada por todas as fúrias de Vénus; era como esse rouco e seco bramar dos veados, nos bosques, sob a calma do Estio; era a balbuciação ébria dos faunos da fábula, do deus Príapo, dos sátiros caprinos que vagueavam pelos pendores sagrados do monte Olimpo, ululando, trincando a brancura dos lírios, violando o coração das rosas, arremessando-se com pulos ferozes de bodes ao entreverem, entre as ramagens dos olmos, as claras ninfas das águas… Era tudo isto e era ainda mais” (p. 186).

    Para lá desta sugestão eufemística, extremamente precisa atendendo a que os termos usados pelo “intruso” são de evitar, por pudor, o que é impressionante notar no relato de Eça é o apelo fabulatório que as irreverências dessa voz intrometida, desse discurso invasor, lhe provocam.

    Assim, não são os termos, os nomes nimbados de obscenidades impronunciáveis, tanto mais apelativas quanto ficam obscurecidas pela luz perversa da sugestão, que nos parecem o mais interessante da crónica. É, sim, a panóplia de hipóteses fabulatórias que desencadeia em Eça a tropelia. É isso que nos parece mais significativo para a compreensão de quanto a actividade jornalística foi importante para o fortalecimento de um certo tipo de criação poética que marcou a sua obra e que, habitualmente, designamos pelo termo demasiado generalizador de ironia.

    De facto, os seus comentários à crónica revelam algo desse mecanismo. Até pelo recurso à forma do imperativo do verbo “imaginar”, percebe-se quanto o facto, a ocorrência, ao desencadear, pela sua singularidade, a fantasia do observador, lhe espicaça os processos de fabulação, quando escreve: “Imaginem o efeito ao outro dia, quando milhares de números do «Times», contendo essa abominação, penetram nesses recatados interiores ingleses, onde (segundo aqui dizem) habita o tipo superior da família cristã” (p.187).

    Tudo se passa como se o efeito de intromissão do discurso invasor, a emergência da terceira pessoa, o ele, monstruoso quase pela sua radical clandestinidade, se propagasse como mecanismo, e fizesse apelo a outros monstrinhos, outros clandestinos discursos invasores que assomassem o da razão sob a tutela do “imaginem”. O episódio é infeliz, a atitude do misterioso usurpador da palavra é atroz, condenável, mancha o irrepreensível profissionalismo dos repórteres, taquígrafos e redactores do grande jornal britânico, mas a imaginação fica estimulada. E, imaginar, no universo da facécia cronística, é uma expansão desenfreada do discurso narrativo. Como um rizoma, o facto sugere outros factos que se encadeiam e desenvolvem pelo simples apelo que é o parodiar da ordem previsível, do sistema organizado das normas e das leis.

    O cronista, de facto, não se contém, já não imagina o genérico, imagina as cenas, como sequências emparelhadas de grotescas convulsões no interior dos lares exemplarmente cristãos. E é ele quem as apresente em fieira:

    “Imaginem-se então as cenas! Aqui é uma velha e devota duquesa cheia de entusiasmo pelas questões sociais, que se aconchega na sua rica poltrona de tapeçaria, para melhor saborear a nobre oratória de Sir William – e que de repente estaca, encara o «Times», limpa as lunetas, imaginando ter lido mal, torna a percorrer o período, passa a mão trémula pela face, procura ansiosamente o seu frasco de sais, volta ainda a verificar se a não enleia uma alucinação, e, arremessando enfim, para longe, a gazeta imunda, sai da sala a passos ofendidos […].  Além é um casal de noivos, que, anichados no mesmo sofá ao pé do fogão, com os braços entrelaçados, percorrem o «Times» […] para ler o compte-rendu de outros casamentos elegantes […] quando de repente lhes salta de entre as linhas o jorro imundo das apóstrofes eróticas! Noutra casa é uma fresca e loura criaturinha de dezoito primaveras, puro lírio doméstico, que faz a leitura do «Times» a um velho tio general, tolhido de gota, relíquia venerando das guerras peninsulares; o velho escuta, pouco atento à política do dia, que detesta, mas muito ao encanto daquela voz de ouro ao seu lado; de repente, porém, o pobre anjo gagueja, pára, faz-se cor de uma rosa, treme, a sua vergonha é tal que lhe saltam as lágrimas dos olhos, e foge, deixando o imundo «Times» do general assombrado: – ou então, caso pior, a doce rapariga, na sua candura de flor de estufa, não compreende, imagina que aquilo é política, continua a ler com a sua voz de ouro – e o venerável tio ouve de repente sair dos lábios de botão de rosa, feitos só para murmurar o que há de mais casto na música de Weber, um enxurro torpe de babuges lúbricas” (p. 188-189).

         Já não é só o encadear dos casos, notável fenómeno de imaginação fabulatória desencadeada, que nos interessa mais aqui. O que nos parece de destacar, de agora em diante, no texto desta crónica, é que, depois de desenrolada a fieira destes casos hipotéticos – ilustrações de um imaginário espanto desencadeado pela emergência do intruso erótico, terceira pessoa obscena, diabolicamente brincalhona –, o autor comente o caso como se no seu próprio arrazoado interviesse, também, a segunda voz intrometida. De facto, escreve Eça:

    “O autor da facécia ainda não se descobriu. É sem dúvida um monstro, e seriamente merece a tremenda sentença com que decerto os tribunais ingleses o demoliriam. Mas, por outro lado, considerando […] que esta gazeta austera leva o seu pedantismo e a sua empolada pruderie a sustar, como obscena, a menção sequer dos livros de Zola e de outros artistas – eu não posso deixar de pensar, com laivos de regozijo, que a Providência tem armas oblíquas e terríveis[…]. É, digam o que disserem, divertido. E, terminando, peço às almas caritativas e justas uma boa risada à custa do «Times» (p.189-190).

    Consideramos de toda a justiça encarar este texto como um exemplo privilegiado do modo de trabalho segundo o qual o processo de criação depende de uma perspectiva que, fazendo funcionar o acontecimento bruto como uma motivação, encadeia os dados do relato construído com as réplicas e as sugestões hipotéticas que entram num diálogo de absorção e transformação desse mesmo relato. O horizonte de uma tal transformação é, parece-nos, a afirmação dos direitos plenos do riso e da facécia face ao discurso monológico e, sobretudo, o enunciado autoritário.

    Não é por acaso que a grotesca transformação relatada nesta crónica recai sobre o texto do mais austero de todos os conservadores de um governo em que eles abundam. Do nosso ponto de vista, é neste modelo de fabulação parcial do “imaginemos”, presente de modo insistente nas crónicas de Eça, que se afina o processo de polémica oculta, o qual, na nossa opinião, é um dos fundamentos mais fortes da ironia de Eça. O percurso discursivo poderia ser estabelecido, num primeiro momento, segundo as palavras de Bakhtine:

    “O objecto sobre o qual se orienta a polémica aberta é o discurso do outro – ao passo que, na polémica oculta, o discurso é dirigido a um objecto habitual, denotando-o, representando-o, exprimindo-o, e atingindo o discurso do outro de modo indirecto, mas atingindo-o, ainda assim, no próprio objecto. Por essa razão, o discurso do outro começa a exercer do interior uma influência sobre o discurso do autor. Assim, na polémica oculta a palavra é bivocal, embora as relações entre as duas vozes sejam algo especiais” (Bakhtine, 1970: 255).

    Contudo, para examinarmos os processos queirosianos, devemos ter em conta um quadro mais matizado da questão. Em primeiro lugar, na crónica, o que se afina é a relação entre a voz de grupo restrito, eco da ideologia dominante, omnipresente nos discursos escritos, escolarizados, bem-educados, e a voz, também ela colectiva, do todo social mais amplo, que se relaciona, enquanto grupo dominado, com os discursos previsíveis, monológicos e autoritários, do poder.

    A voz assumidamente autoral faz eco, aparentemente em harmonia, do senso comum que decorre de uma submissão às premissas da autoridade. Essa voz é, assim, a de um amplo colectivo que não se questiona, que não desmonta o discurso autoritário. No entanto, por intervenção de uma entidade anónima, a malícia, o riso, a emergência do vocabulário e da fraseologia “indecente” manifestam-se como imprecação, insulto, liberdade brincalhona e desrespeito carnavalesco. O que a generaliza e a torna consentida é o riso, a alegria espontânea, o espírito insurrecto da paródia.

    Nesse sentido, o demónio socrático, que poderia ser entendido como o emergir de uma má consciência inconformista perante o triunfo arregimentador do discurso do poder, torna-se, face à ideologia conservadora e eclesiástica, o símbolo do próprio malefício satânico. E o riso, porque lhe é associado, é condenado ou só é periódica e controladamente consentido.

    Ora, Eça, enquanto jornalista, porque tem de assumir autoralmente a voz do bom senso instituído, multiplica os pontos de emergência da outra voz. Não assume a da insurreição porque é um instruído, faz parte do grupo para o qual a obscenidade ou a facécia é de mau gosto ou loucura. É por essa razão que ele cria, a partir de uma brincadeira real, uma entidade de dimensão carnavalesca: o monstro que perversamente transformou o discurso da autoridade austera num chorrilho indecente. É essa voz que ele fixa como entidade fictícia (dado que clandestina e anónima – que nunca veio a ser descoberta) para poder fazer emergir, através dela, a sentença crítica sobre o discurso conformista, conservador – e mesmo reaccionário, como entenderíamos hoje o que se lê nas entrelinhas.

    Tal mecanismo de bivocalidade, contendo polémica oculta, emerge em muitas das suas outras crónicas ou escritos para periódicos. Um caso exemplar é o da encenação que ele pratica, segundo os tiques de Pinheiro Chagas, numa polémica que mantém com este, datada de 1880, que foi recolhida no volume Notas contemporâneas (s/d). Aí, resumindo, para rebater, o discurso do adversário que, insinuada e denegativamente, o acusava de se vender para dizer mal da pátria, Eça argumenta e, para consolidar o seu ponto de vista, fabula segundo os processos do outro:

    “Quando você fala de somas recebidas da «Gazeta de Notícias», do alto preço por que me vendi para injuriar o país, etc., [não me parece prudente]. Eu bem sei que você usou notáveis precauções oratórias: mencionou o boato, e demoliu logo o boato; depois tornou a pôr de pé o boato, para volver a derrubá-lo com furor. Isto é amável; mas enfim, você traiu a confidência que eu lhe fiz. Lembra-se, Chagas? Foi naquela noite de tormenta, na encruzilhada, a poucos passos da capela solitária onde estava dobrando a finados. Eu cheguei rebuçado num manto cor de treva, e punhal à ilharga, deixando pela sombra um tinir de esporas. Um relâmpago fuzilou, e houve um tremolo na orquestra. Até eu lhe disse, lembro-me bem:/- meu Chagas, esta situação patética parece mesmo inventada por você, amigo!/ Você respondeu com engenho:/- Parece. Eu teria colocado alguma luz eléctrica, batendo as roupagens de uma virgem, cuja alma o mundo não compreende…/ Então eu arrastei-o para o pé do cruzeiro, onde bruxuleava uma lâmpada; e, sentados sobre os degraus de pedra fria, eu comecei a contar-lhe o meu segredo: que a «Gazeta de Notícias» me dava um milhão (um milhão em ouro) para eu injuriar semanalmente Portugal, deitar peçonha nas nascentes do Alviela e fazer saltar pela dinamite a estátua de Camões!/ Você tremeu, amigo! E murmurou-me ao ouvido estas palavras: – Prudência, prudência./ Eu repliquei com furor:/ Hei-de beber o sangue de Portugal. Hei-de beber-lho!/ Um trovão retumbou. Sobre um dos braços da cruz piou um mocho. E separámo-nos, na estrada negra, quando dava meia-noite na torre da catedral./ Você tinha-me jurado segredo. E vem agora publicar tudo no «Atlântico»! Hei-de assassiná-lo no quinto acto” (pp. 59-60)

    Não é possível deslindar aqui todas as consequências pragmático-discursivas deste processo. Dado que o nosso objectivo central é o de tentarmos reconhecer o valor do mecanismo retorico-poético e não analisarmos as questões que estão por detrás dos termos da polémica, limitemo-nos a observar aqueles resultados que nos ajudam a compreender a oficina discursiva e fabulatória de Eça. Para fazer valer os seus argumentos, Chagas recorre ao boato. O mecanismo que utiliza é da preterição, através da qual, ostentando a rejeição da calúnia que afirma correr como boato, enuncia as acusações. A voz que as sustenta, no entanto, não é a sua. O autor do discurso, assim, cria uma voz tornada anónima pela generalização do “diz-se que” do boato e, afirmando a sua rejeição do dito, não deixa de o dizer.

    O efeito não é só o de enunciar a acusação que, embora rejeitada pelo eu da enunciação, fica a pairar como dúvida – o mais importante do efeito é que o boato, sendo colectivo e anónimo, partilha dos valores do saber comum, da vox populi, fonte, como se sabe, de um saber quase divino. Tal afirmação negada institui uma entidade enunciativa extremamente poderosa porque não só é difusa e de insidiosa autoridade, como é irrebatível, dado não ter personificação que possa ser questionada: no fundo é o dizer dessa monstruosa terceira pessoa que é todo o mundo e ninguém.

    É pelo facto de perceber e analisar com exactidão o processo do outro, acusando-o de espalhar e rebater retoricamente o boato, que Eça se revela o poderoso mestre no uso dos mecanismos da ironia e da paródia. De facto, a sua réplica não se limita a ser uma construção intuitiva, atenta aos processos já elaborados do debate retórico, que os retoma segundo as práticas dos mestres. Revelando o reconhecimento dos mecanismos da insídia construídos pela preterição, Eça sublinha o irreal e inverosímil do boato, reconstruindo-o como plena fantasia do “dramalhão” à maneira dos que o seu antagonista costumava fazer.

    Assim, parodiando o conteúdo da acusação pela encenação burlesca de uma cena teatral em que todos os mecanismos poéticos se revelam, Eça desmonta o dito através da espectacularidade melodramática evidente do dizer. O ente anónimo da acusação transforma-se na carnavalização do dizer, em que a origem do dito é atribuída ao próprio vilão – mascarado como tal — confessando o seu crime, em segredo, àquele que ostenta o saber da pérfida traição à Pátria.

    Neste caso, o efeito da réplica não se limita ao rebate. A resposta procura atingir criticamente o próprio interesse político e ideológico de um tal debate. De facto, se Chagas recorre ao artifício retórico da preterição, Eça lança o descrédito sobre tal artifício transformando-o num melodrama. Assim, irrealiza-o poeticamente. Mas não se limita a essa operação. Sublinhando os tiques sentimentalões do melodrama romântico em que insere a fonte verbal do dito, Eça gera o efeito de paródia, lançando a dúvida sobre o valor e a autenticidade do drama, e o interesse do investimento afectivo que o dramatismo convoca.

    Sede da Fundação Eça de Queirós

    O quadro cénico resultante, o drama montado pela simultaneidade das vozes que ora se rebatem ora se repetem até à caricatura, resulta no apagamento ou, pelo menos, na minimização da importância da fonte de fidedignidade. Sendo todos os dizeres passíveis de suspeita, nenhum está, indiscutivelmente, acima de qualquer suspeita. Se todos são submetidos ao efeito de caricatura, o riso atinge-os a todos, pondo em causa a existência de um lugar ou de uma posição de onde a verdade jorre fora de qualquer suspeita.

    Ora, esse mecanismo, que, na literatura, se fará um verdadeiro sistema de indagação epistemológico, dando ao verosímil literário a força de um questionar implacável de problemáticas e pontos de vista, emerge, no jornalismo, como processo de indagação dos valores éticos e ideológicos que se debatiam na época. Antes de o ter desenvolvido como procedimento poético, nas cenas de satirização e de paródia que tão bem constrói na sua ficção ao questionar a condição humana e a hipocrisia que toda a formação social constitui, Eça aprende a domar o desdobrar das vozes, o formular da equidistância dos pontos de vista e a matizar os confrontos ideológicos desde as primeiras crónicas.

    Curioso é que esse processo da intromissão de um ponto de vista insurrecto tenha aparecido, por uma associação do trabalho do redactor à atmosfera de Carnaval, nas crónicas do Distrito de Évora. Sirva-nos de exemplo dessa associação, a própria relação que Eça estabelece numa das suas primeiras crónicas de 1867, na qual ele teoriza a própria crónica. Escreve o então jovem jornalista:

    “Esta época do entrudo é realmente feliz para a crónica. A crónica encontra sempre contra si as ocupações políticas, os incómodos individuais, a preocupação das negociações financeiras, a instabilidade dos partidos: ela é sempre jovial, mas não pode respirar, viver, porque encontra em volta de si uma época séria. Senão veriam./ Mas, quando chega o carnaval, há harmonia entre a crónica e a época, se a crónica diz folguemos, a época diz desvairemos. E aí está porque, assim que chegam estas épocas, ela se veste de cores alegres, vem palreira e folgazã dar as boas-festas aos que têm a honra de a ler, de a ouvir, de lhe escutar as anedotas” (in, Anabela Rita, 1998: 39-40).

    Quase poderíamos utilizar este texto do escritor debutante como prefácio à sua metodologia poética futura. Apercebemo-nos, nela, das motivações que o arrastam para essa posição de implicação demoníaca. A crónica, na sua capacidade inventiva, gera-se como acto de diabrura, de incompatibilidade ou pelo menos de adversidade, relativamente ao espírito sério. É quando a conceptualiza que Eça vislumbra os mecanismos da sátira em sentido generalizado. Não o confronto ou a polémica entre razões que se querem apagar mutuamente, mas o voltear brejeiro, atitude palradora e alegre de encarar as contradições do mundo, irmã, enfim, do Carnaval.

    Parafraseando Bakhtine, estudioso que, fundamentalmente orienta o ponto de vista que aqui estabelecemos, poderíamos dizer que “a realidade da época, tão ampla e plenamente reflectida na obra de” Eça “fica iluminada pelas imagens da festa popular” e, assim, “à luz particularmente lúcida (luminosa e luciferina, simultaneamente, diríamos nós) das imagens da festa popular, todos os acontecimentos e coisas da realidade adquirem um relevo, uma plenitude, uma materialidade e uma individualidade muito particulares. Libertaram-se de todos os liames dos sentidos estreitos e dogmáticos. Mostraram-se numa atmosfera de perfeita liberdade” (Bakhtine, 1970a: 450).

    Não nos afastaríamos muito do estudioso russo citado se afirmássemos que, dessa posição retórica de profundas implicações poéticas na sua obra futura, Eça soube extrair os dados fundamentais segundo os quais, nos seus romances, representa e suscita a diversidade excepcional dos factos e episódios nela englobados. O momento do riso, da festa livre da rua, é o momento do olhar liberto, da palavra solta, que a todos nomeia (autor incluído – pois que, também ele, é objecto da paródia, ao fornecer facécias e enunciados menos vinculados à verdade) e a tudo indicia para soltar o palreio folgazão.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia :

    Bakhtine, Mikhail, 1970, La poétique de Dostoievski, Seuil, Paris

    Bakhtine, Mikhail, 1970a , L´oeuvre de François Rabelais, Gallimard/TEL, Paris

    Queirós, Eça de, s/d, Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa

    Queirós, Eça de, s/d, Cartas de Inglaterra e Crónicas de Londres, Livros do Brasil, Lisboa

    Rita, Anabela, 1998, Eça de Queirós cronista, Cosmos, Lisboa

  • O melodrama amoroso: entre o gótico, o negro e a novela romântica

    O melodrama amoroso: entre o gótico, o negro e a novela romântica


    Comecemos com uma epígrafe extraída, parafraseadamente, de uma das autoras matrizes da matéria aqui em causa:

    “É uma verdade universalmente reconhecida; qualquer homem de boa fortuna necessita de uma esposa” in Orgulho e Preconceito, de Jane Austen,

    Enquanto uma vertente, mais virada para os acordes negros do melodrama[1], escolhe os símbolos marcantes do universo melancólico e, mesmo, de pendor trágico, como acontece com Poe, que, “pensando cuidadosamente em todos os efeitos artísticos costumeiros”, achou “que nenhum tinha sido tão empregue como o refrão” dependendo, para o seu efeito da “força da motonia” (2004: 40); outra parece inspirar-se francamente na narrativa picaresca e na sua evolução para o Bildungsroman ou, seja, aportuguesando o conceito, romance de formação (ou de aprendizagem, ou de educação…todos esses termos já têm sido empregues e usamos formação por nos parecer o de termo de sentido mais amplo) e tem, como grande modelo literário para as comic strips, não o romance de Johann Wolfgang von Goethe, Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister [2] (Wilhelm Meisters Lehrjahre) mas as histórias romanescas de Dickens, como Oliver Twist.

    Embora o seu animal emblemático seja o corvo o qual dá nome ao poema que procura apresentar na sua construção, passo a passo, a fórmula encontra-se muito apropriada à história de Annie: logo no título e subtítulo o termo órfã, que volta a ser repetido mais duas vezes em duas das quatro vinhetas da primeira tira da história, com a sua “ênfase prolongada da vogal” nasal ressonante e não o “ ‘o’ longo como sendo vogal mais sonora em relação com o ‘r’ como sendo a consoante mais reveladora”, sem deixar de ter ao mesmo tempo muitas das modalidades de melancolia de “’nevermore’”… e, é claro, onde a história de Annie envereda claramente pelas pinceladas góticas do melodrama é no modo como a pequena heroína nunca se aproxima verdadeiramente da extrema beleza almejada por Poe: “a morte então de uma bela mulher é, inquestionavelmente, o tópico mais poético do mundo” 2004: 41-42). Mas desenrola-se, inversamente, no melodrama em pequenos suspenses que, quase sempre formam uma peripécia entre o picaresco e o carinhoso. Não tenhamos dúvidas que Dickens, por exemplo, é um dos grandes inspiradores de tais histórias quadrinizadas, de gosto popular.

    Por outro lado, numa outra variante da primeira vertente acima descrita, sobretudo atenta à juventude mais adulta, amor e casamento são a referência temática mais vulgarizada pelo entendimento imediato dos leitores de narrativas sentimentais[3] consideradas populares pelo favor generalizado que recebem, de um público minimamente alfabetizado, sobretudo feminino que, no entanto, enquanto efabulações de amor são mais complexos do que se diria à primeira vista.

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    Menosprezadas frequentemente, com alguma razão, por explorarem um erotismo exibicionista, num jogo de revelação, sugestão e elipses muito elaborado, à vezes narrativamente gratuito por, em quase nada, contribuir par o funcionamento cardinal, a que acima nos referimos, e serem muito pouco importantes como índices para a construção da diegese, apresentam-se sobretudo como elementos de consumo complementar, estímulo suplementar, ou para manifestar abertura e ousadia na compreensão da dimensão erótica do amor.

    Embora por esses aspectos, tais obras sejam consideradas leituras de lixo, os relatos de entrecho romanesco-sentimental provêm de duas importantes tradições literárias – a narrativa ou novela sentimental e o romance. “Embora o casamento entre a heroína e o herói seja mais frequentemente o objetivo da história” como lembra Neylon, “é o casamento do modo e o meio que tornam as novelas sentimentais únicas. Na definição do romance popular, devemos analisar o modo [características da história que diferenciam uma novela sentimental de outros géneros] bem como o meio [características do romance].

    Segundo a autora citada, “histórias contendo elementos sentimentais (“romantic”) surgiram em todas as gerações e culturas”. Vários escritos  da Babilónia e do Egipto[4], contêm histórias de amor e paixão. Mas a diferença entre uma história com elementos “romantics” e um romance não é fácil de estabelecer, sobretudo desde que os grandes valores do realismo e do naturalismo dominaram o nosso entendimento do discurso narrativo, incluindo a própria BD.

    No século XVIII, Pierre Daniel Huet, bispo de Avranches, ainda podia sustentar com credibilidade: “não considero que o romance  seja mais do que ficções de aventuras amorosas, porque o amor tem de ser o principal assunto… chamo-lhe ficções para os distinguir das histórias verdadeiras; e acrescento aventuras amorosas porque o amor deve ser o principal assunto ‘romantic’ [“we esteem nothing to be properly Romance but Fictions of Love Adventures … I call them fictions, to discriminate from True Histories; and I add, of Love Adventures, because Love ought to be the Principal Subject of Romance ”]  (in Ioan Williams, 1970: 46). 

    O romance popular, nome que podemos dar ao conjunto de narrativas com alguma extensão, que podem ir das poucas dezenas às várias centenas de páginas, em que o modelo da narrativa ou novela sentimental se revela central, apresenta variantes que vão da narrativa humorística e picaresca à novela de aventuras, com entrecho amoroso entrecruzado com a viagem, a pirataria e a acção violenta, é herdeiro de vários géneros.

    Ele é, de modo evidente, um produto da polifonia, no sentido que Bakhtine dava ao termo no seu estudo sobre Dostoievski, de elementos literários e culturais  de vários géneros, pois compartilha características de relatos mistério, de suspense, de descrições ou sugestões eróticas, aventuras e outros géneros narrativos; no entanto, pode ser diferenciado desses géneros pelo fato de que a história central não é o mistério ou aventura, mas sim o romance entre o herói e a heroína[5].

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    “O romance admite introduzir na sua composição diferentes gêneros, tanto literários (novelas intercaladas, peças líricas, poemas, sainetes dramáticos, etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e outros). Em princípio, qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do romance, e de fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido alguma vez incluído num romance por algum autor. Os géneros introduzidos no romance conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade linguística e estilística. Porém, existe um grupo especial de géneros que exercem um papel estrutural muito    importante nos romances, e às vezes chegam a determinar a estrutura do conjunto, criando variantes particulares do gênero romanesco. São eles: a confissão, o diário, o relato de viagens, a biografia, as cartas e alguns outros gêneros. Todos eles podem, não só entrar no romance como seu elemento estrutural básico, mas também determinar a forma do romance como um todo (romance confissão, romance-diário, romance epistolar, etc.). Cada um desses géneros possui suas formas semântico-verbais para assimilar os diferentes aspectos da realidade. O romance também utiliza esses gêneros precisamente como formas elaboradas de assimilação da realidade” (Bakhtine, 1978: 141).

    É por intermédio de elementos como os géneros, que “servem de clichés externos”, que o escritor dialoga com a história, que estabelece o terceiro (não só o que ouve, mas também o que é ouvido pelo seu discurso), nos horizontes em que o seu discurso é parte de um diálogo que mantém com a sua época. Por um lado, tem em conta o já dito, o modelo dos outros discursos, aos quais responde, que se revitalizam pela resposta que lhes dá.

    Por outro lado, modera, no seu próprio discurso, o que pressupõe de resposta por parte daqueles que escutam a sua intervenção no diálogo, como leitores, como ouvintes, como espectadores. Ora, a praça pública na festa carnavalesca é o modelo mesmo que a cultura popular oferece do diálogo a três: assim como ninguém fica excluído do riso, quer o burlado, que o burlador quer o espectador, também ninguém fica fora do diálogo: nem os dialogantes nem o ouvinte (ou o leitor, nos modelos historicamente decorrentes da praça pública e da festa, como os diálogos socráticos, os simpósios, as farsas populares, a paródia). 

    Assim, a hipótese de Iris Zavala merece ser considerada, pelo que abre de perspectivas sobre esta questão, quando afirma: “O que deve examinar-se […] é a compreensão do dialógico […] como uma estrutura de conhecimento, vinculada à organização situacional sistemática do discurso, […] porque o seu modelo triádico garante um elemento poderoso na evolução genérica e no estilo, uma vez que o ouvinte é o participante sempre presente num discurso interno e externo” (1991: 163).

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    Para este processo em que, segundo Zavala, a consciência é vista historicamente (p.163), Bakhtine, segundo a mesma autora, terá seguido os estudos dos retóricos clássicos de Port-Royal sobre a ironia, sendo esta, de acordo com eles, produto do jogo de três níveis na produção do discurso: os dois primeiros produzem o efeito do sentido em conflito, mas o terceiro não só se apercebe desse efeito, como gera um efeito resultante da sua situação dramática no lugar da recepção. Não que escape ao alcance da sua ironia, mas porque se apercebe, atingido por ela, que “também ele” faz parte do mundo que lhe surgia, num primeiro momento, como espectáculo, ou como parte interessada num debate que, à partida, lhe poderia parecer nada ter a ver consigo (cf. Zavala, 1991: 164-165).

    Este modelo de compreensão do discurso, a que Zavala chama epistemologia do «terceiro» através do qual se desenvolve um modelo histórico-social da comunicação, postula o terceiro como o próprio espaço do entimema, enquanto “inarticulado” – mas, em nosso entender, ao mesmo tempo, como a “opinião de todo o mundo”. Ou, do ponto de vista estético, esse terceiro pode ser entendido como o outro que se coloca como tema, eventualmente o herói que o autor recria a partir dos dados da tradição genológica e que pode ser designado por sujeito do enunciado (cf. Zavala, 1991: 167). Ou ainda, se atendermos à dimensão histórica, o terceiro, poderá ser visto, segundo a mesma autora, como o acontecimento (a publicação do livro, a emergência do discurso como demarcação ou escândalo, a polémica estabelecida, a permanência da obra na memória cultural) enquanto facto plural do discurso, aquilo que lhe abre o sentido no intercâmbio social (1991: 171-174).

    Este não dito da verdade, que inclui o discurso (ou, nos tempos modernos, o cauciona, como verdade detida pelo poder) em horizontes onde se revela o sentido desse mesmo discurso, é conceptualizado em duas dimensões: uma que Bakhtine formula através do termo ideologema, desde os seus primeiros escritos; a outra que remete para uma alteridade ampla, que Zavala destaca (1991: 205), citando Bakhtine, como o entimema social. Ambos os conceitos foram utilizados por Jameson.

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    O primeiro praticamente é utilizado segundo as propostas do autor soviético. Através dele, simplificando muito a questão, enuncia-se a afirmação temática da obra ou de cada elemento temático, constituindo o seu (ou os seus) horizonte(s) ideológico(s), a entrar em diálogo (concordância ou conflito) com outros horizontes (perspectiva de uma personagem, de um acontecimento, de uma situação vs. opinião de uma tradição, de uma personagem similar de outra época, de um leitor posterior) (cf. Bakhtine/Medvedev, 1978: 21-22; Zavala – in Reys, org., 1989: 102). No ideologema expande-se, também, a questão do cronótopo, pois é aí, em nosso entender, que ele melhor se enquadra.

    Ao contrário, o entimema social, ou a noção que envolve a ideia de comunidade semiótica (cf. Bakhtine/Volochinov, 1977: 35-45), permite um desenvolvimento dos estudos literários, em Jameson, em franca comunhão com os estudos culturais, através da reformulação que o autor americano dá, ao propor o conceito de inconsciente político. Através deste conceito, Jameson permite-se pensar os termos do imaginário segundo duas séries de valores: os da classe dominante e os dos grupos secundarizados ou marginalizados.

    Como a prática de hegemonia separa o privado (construindo o domínio do psíquico como o da mente, desligada do corpo) do público, rejeitando os valores das classes baixas como meramente materiais e corpóreas, os sistemas de representações recorrem aos elementos do imaginário que partilham, porque este funciona como material semiótico híbrido, sem sentidos pré-definidos. É o uso que cada indivíduo lhe dá, dentro dos valores da sua classe, que lhe gera um sentido.

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    Em consequência disso, a “exclusão  [praticada pelas classes no poder, entenda-se] dos outros grupos e classes na luta pela conquista da identidade própria, aparece como um dialogismo especial, um agonismo de vozes – às vezes, até, sob a forma de argumento [onde o entimema se revela como a verdade que é o indiscutível do poder, aquilo que não necessita de ser expresso para se tornar a imagem da verdade última que não se sente obrigado a exprimir as asserções pressupostas pelos interlocutores ─ de algum modo, o ideologema em que assenta a sua imposição de verdade ] ─ dentro do imaginário que a classe em questão partilha com os grupos que exclui. A própria acção dirigida para construir a singularidade de uma identidade colectiva é, simultaneamente, produtora de heterogeneidade inconsciente, com a sua variedade de figuras híbridas, soberanias em competição e exigências exorbitantes” (Stallybrass & Withe, 1986: 194).

    Já se vê que, dentro destas perspectivas assim abertas, os estudos que privilegiam uma focagem assente nas elaborações do imaginário para o seu entendimento da literatura  –  posições teóricas ortodoxamente freudianas, concepções do imaginário como estruturas antropológicas, na via de Durand, ou como arquétipos ou mitos, segundo Durand ou Frye – podem entrar em franco diálogo com as propostas bakhtinianas para a construção de modelos de compreensão do fenómeno literário, ou de exploração das relações entre a literatura e outros fenómenos culturais e artísticos.         

    O modo “romântic” é mais do que uma história com explosão de afecto e emoções. O objetivo da história deve ser o romance em si. No entanto, romances populares exigem mais do que o amor como tema central. A heroína e o herói não podem estar felizes no amor e trabalhando para resolver um mistério juntos. Desafios e obstáculos devem disputar a união feliz. Mesmo que o romance contenha elementos de mistério, os obstáculos para resolver esse mistério não podem ser o foco principal.

    Os obstáculos entre a heroína e a união do herói devem permanecer centrais na história. John Stevenson afirma que “O que exigimos em uma história de amor é uma atração e um obstáculo, e esses dois princípios fundamentais de construção podem ser honrados de várias maneiras.” Os romancistas precisam “criar desejo trazendo casais adequados para a proximidade e, em seguida, sustentar esse desejo, encontrando razões plausíveis para atrasar sua união” (1990: 110) A heroína e o herói devem ser desafiados e trabalhar para sua união.

    Escritores de “romance” (narrativas românticas) podem usar uma variedade de subtramas para entrelaçar” com a função cardinal “dessa luta, mas, no entanto, a luta na relação emocional entre a heroína e o herói deve reinar suprema. Na verdade, parte do design do romance, e sua coerência como forma pode estar na justaposição de ambos os elementos (1990: 61). A ideia de Freedman de projeção externa e interna é muito importante em termos do que os romances fazem. Os romances definem a cena e descrevem personagens, lugares e situações (dimensão externa). Ao mesmo tempo, os romances permitem que o leitor entre em uma ou mais mentes dos personagens para entender seus pensamentos e emoções (dimensão interna). A capacidade de ver a história por fora e por dentro torna a história mais realista e pessoal para o leitor.

    O casamento do modo e do meio define os parâmetros do romance popular. Sabemos que nossa heroína e herói sofrerão com desafios e obstáculos à sua união. Eles podem estar tentando resolver um mistério ou escapar à captura, mas sua luta emocional permanecerá central. Seremos capazes de nos identificar com eles e suas situações através da representação realista de cenas e diálogos. No final, sabemos que nossa heroína estará feliz em se unir ao seu herói de uma maneira que os eleve. Pode-se imaginar no fascínio de um gênero onde os leitores sabem que o resultado sempre será a união harmoniosa da heroína e do herói. Talvez no caso de romances populares, é realmente a jornada e não o destino que mantém os leitores lendo.

    Em A família, Sexo e Casamento de Lawrence Stone na Inglaterra, 1500-1800, Stone afirma que “a Inglaterra se afastou de uma maneira de pensar sobre o casamento que era amplamente dominado pelo interesse (ou seja, interesses familiares, muitas vezes financeiros, e com pouco respeito pelos sentimentos dos futuros companheiros) para um que era baseado no afeto mútuo de marido e mulher” (in Stevenson, 1990: 115). Embora essa mudança cultural tenha afetado a forma como mulheres e homens se sentiam sobre o casamento, isso não aumentou o poder das mulheres dentro do casamento. As mulheres ainda eram muito sujeitas à tagarelice e à valorização dos caprichos.

    A organização Romance Writers of America concorda que a história central de amor no romance “diz respeito a duas pessoas se apaixonando e lutando para fazer o relacionamento funcionar… O conflito no livro centra-se na história de amor… O clímax do livro resolve a história de amor” (Romance Novels – O que são?). No entanto, eles também estipulam que para um romance ser qualificado como romance popular, ele deve ter “Um Final Emocionalmente Satisfatório e Otimista – Romance novela termina de uma maneira que faz o leitor se sentir bem.

    Romances são baseados na ideia de uma justiça emocional inata – a noção de que as pessoas boas no mundo são recompensadas e pessoas más são punidas. Em um romance, os amantes que arriscam e lutam um pelo outro e seu relacionamento são recompensados com justiça emocional e amor incondicional.” (Romance Novels – O que são?) É na exigência acima que romances populares diferenciam ainda mais.

    E esse é um dos procedimentos narrativos que a dupla Simon e Kirbi souberam aproveitar. “Romance Jovem” – O Melhor de Simon & Kirby’s Vol. 1 – 3 (2012). Young Romance é um dos títulos mais antigos da DC Romance, e que a DC comprou para aumentar sua participação no mercado no gênero romance. A certa altura, os títulos que não eram de super-heróis dominaram o meio, e Young Romance representou parte do domínio de outros gêneros, principalmente, neste caso, o gênero romance. Young Romance é uma série romântica de banda desenhada criada por Joe Simon e Jack Kirby para a Crestwood Publications imprint Prize Comics em 1947. Geralmente considerada a primeira história em quadrinhos de romance, a série correu por 124 edições consecutivas sob a marca de Prêmio, e outras 84 (edições #125-208) publicadas pela DC Comics depois que Crestwood parou de produzir quadrinhos.[6]

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    [1] Embora algumas semelhanças existam entre as narrativas góticas, românticas e pré-românticas, designadas pelos franceses por roman noir, e as narrativas policiais hard boiled, sobretudo por, nas versões cinematográficas e mesmo de BD (veja-se a série Sin City, por exemplo), as tintas contrastantes de claro escuro e a representação asfixiante do espaço se ter tornado marcante, sobretudo por herança do expressionismo alemão, acabando por tingir o policial literário com as mesmas marcas de “família”, convém não dar como equivalentes ou muito semelhantes os dois géneros “negros”.

    [2] Tradução de Paulo Osório de Castro, que, muito bem traduz por aprendizagem o título, que é parte da formação, nome do género.

    [3] Por vezes chamadas românticas, termo que evitamos para tentar escapar à confusão com a designação dada a uma das épocas em que na literatura, nas artes visuais e de espectáculo, a produção mais se desenvolveu, de modo marcante, na cultura ocidental.

    [4] Um papiro colocado na tumba egípcia que conta a história de uma misteriosa “adormecida”, serve de tema para um pequeno romance, ou conto alongado, de Théophile Gautier.

    [5] “[…] em Dostoievski essa heterogeneidade de materiais literários e de estilo, assumia um sentido novo, transcendia-se por via do polifonismo fundamental da sua obra.[…] Com efeito, a aliança da aventura que integra a problemática da violência, com o dialogismo, a confissão, a hagiografia não é um fenómeno completamente desconhecido […]. O que é novo é o uso que dele fez Dostoievski […]. Mas a combinação de géneros, propriamente dita mergulha as suas raízes até à antiguidade” (Bakhtine,1998: 159).

    [6] Deve notar-se que a série se designa desse modo por corresponder ao conceito que,  em língua inglesa, o termo romance tem, ou seja, uma narrativa que cabe, em grande parte, nas modulações daquilo a que nós chamamos romance (e ao que, em francês, corresponde ao termo roman, mas que tem a designação de novel, em inglês, e em espanhol novela), mas conota, naquela língua, de modo dominante, o sentido de narrativa de uma relação sentimental e/ou, amorosa, mais ou menos carregada de erotismo, e que poderemos designar, para simplificar a questão, em português, “narrativa romântica”. Sobre a série será interessante reter alguns dados, remetendo para aqui.

  • O “romance” ou a narrativa romântica

    O “romance” ou a narrativa romântica


    No momento em que o comic strip atinge um alto grau de expressividade e aprofundamento quase filosófico, pela via do riso, do cómico e de um humor por vezes cáustico, um novo género emerge no panorama das publicações diárias, ou de periodicidade mais alargada, mas no máximo semanal, nas páginas dos jornais.

    Pelo ano em que o Gato Felix surge como tira semanal, em 1924, vindo da figura de cartoon de animação, de Pat Sullivan, de 1919, que o disputa com o seu desenhador  Otto Messmer, torna-se quase um sucessor, pelo sucesso, em comic do seu mais paradoxal antepassado, Crazy Cat, nascido em 1911 como comic pela mão de George Herriman, emerge, nas tiras de cartoon, uma figura que fará o género inflectir em novas ressonâncias temáticas Little Ophna Annie de Harold Gray, com o subtítulo de série, “ou as desventuras de uma órfã”.

    Primeira strip, publicada em 5 de agosto de 1924 no jornal Daily News, de New York.

    As aventuras de Little Orphan Annie eram contadas num estilo, que, em termos genéricos poderia ser comparada com a novela picaresca, com pinceladas de ambiência gótica e a presença de muitas situações melodramáticas. A personagem principal deambula, abandonada por um mundo corrupto, em histórias episódicas e independentes. No primeiro ano da publicação, aparecem as personagens que se manterão como recorrentes comparsas coadjuvantes: “Daddy” Warbucks e o cão, Sandy. Os vilões, opositores ou mesmo adversários, manifestam-se desde esse primeiro momento, mas apenas se manterá mais longamente Madame Warbucks, esposa do “Daddy”, cuja adversidade é mais motivada pelos ciúmes do afecto que o marido dedica à órfã do que propriamente por maldade ou desumanidade, como serão muitos dos outros casos.

    A história começa em um orfanato pobre como os das histórias de Charles Dickens, com Annie submetida a frequentes maus-tratos causados por uma matrona pouco dada a generosidades e mais entregue a prazeres sádicos escondidos sob a aparência da virtude. Um dia, uma senhora rica mas caprichosa e narcísica, Madame Warbucks por razões várias, vê Annie e a leva para sua mansão. O marido da mulher desenvolve imediatamente uma afeição paternal por Annie e pede à menina que o trate “papá” (“Daddy”). Para infelicidade de Annie, o seu pai adoptivo passa longos períodos fora, viajando a negócios, e a menina fica desprotegida, sofrendo a agressividade da esposa enciumada que acaba devolvendo-a ao orfanato.

    A preceptora profissional do orfanato põe a órfã desprotegida a trabalhar numa doçaria. Como o trabalho era muito pesado para sua idade, e a desgostava, certo dia, Annie, depois de arrancar um cão chamado Sandy das garras violentas de um grupo de jovens marginais cruéis, resolve fugir do seu trabalho. Anda sem rumo pelo campo, como uma criatura abandonada, mas, por sorte encontra um lar acolhedor na quinta do casal Silo. Quando “Daddy” Warbucks oferece uma grande recompensa para quem encontrar Annie, um agiota, que tinha conhecimento da “adopção” sem formalização legal tenta fazer chantagem com o casal Silo, procurando apoderar-se dos seus parcos bens.

    Mas, como numa boa abertura de melodrama, o bem triunfa neste primeiro episódio de peripécias, quando, casualmente, numa das suas incursões em busca da “filha adoptiva” (depois de uma eventual ruptura com a esposa, que se perde como personagem) Warbucks passa pela modesta morada dos Silos para pedir um copo de água e reencontra Annie. Warbucks faz melhorias na fazenda e volta à cidade com Annie e Sandy, prometendo à menina que os Silos poderão visitá-la sempre que quiserem[1].

    Comentando este sistema estruturado de confrontos, valores, sofrimentos, em grau hiperbólico, Peter Brooks considera-o “MELODRAMÁTICO”. E acrescenta que tal “adjectivo” lhe “pareceu […] descrever, como nenhuma outra palavra o modo das dramatizações” de Balzac e Henry James bem como outros autores “e, muito especialmente, a extravagância de certas representações, a intensidade de uma  reivindicação moral a afectar a consciência das suas personagens” (2010: 7), pelo que pensamos que não será descabido sublinhar o desenrolar folhetinesco da história em tiras de Annie, com essas obras de autores que, “num contexto aparente de ‘realismo’ e quotidianidade, se revelam antes como encenadores de um grande drama hiperbólico, remetendo para puros conceitos de trevas e luz, de redenção e danação” (Brooks, 2010: 7). 

    Parece que é neste modelo de histórias que mais claramente se plasma, no desenho, e no desenrolar da intriga o conjunto de funções presentes na narrativa que Barthes designa por índices podendo-se distinguir, na sua função de correlação de aspectos do lugar e da situação os “índices propriamente ditos, remetendo a um caráter, a um sentimento, a uma atmosfera (por exemplo de suspeita), a uma filosofia, e” como sistema complementar daqueles, os elementos propiciadores de “informações, que servem para identificar, para situar no tempo e no espaço”. Emergindo no desenrolar da acção estes dois tipos de registo são unidades verdadeiramente semânticas, pois, contrariamente às ‘funções’ propriamente ditas, eles remetem a um significado não a uma ‘operação’” (a acção, o desenrolar dos eventos).

    São elementos ou frases que compõem, por assim dizer a situação da narrativa, que a ancoram como cronótopo, ou seja, “a sanção dos índices é ‘mais alta’, por vezes mesmo virtual, fora do sintagma explícito (o ‘carácter’ de uma personagem pode nunca ser nomeado, mas ser, entretanto, ininterruptamente indexado), é uma sanção paradigmática” (Barthes, 1966: 9).

    Se compararmos as vinhetas dos comic propriamente ditos e as histórias marcadas pelo romance sentimental, ou pelo melodrama verificamos que o pano de fundo desta última variante é muito mais profusamente ilustrado do que aquela. Exceptuamos o caso de muitos dos sonhos de Little Nemo, pois, como boas criações oníricas, estes são povoados, muitas vezes, de uma miríade de maravilhas – mas, repare-se que não são propriamente funções cardinais, elementos funcionais da intriga, mas sim divagações erráticas penetradas pela intromissão maravilhosa e fascinante.

    Ora esta manifestação errática constituída por uma atenção vectorial do tempo por parte da narrativa, mas que não a configura no modelo de causa efeito e sentido da acção destinado, ou sustentado por uma armadura mítico-ético-avaliativa que a conduz a um desenlace, remete-nos para um outro tipo de funções conceptualizado por Barthes, no mesmo texto: as catálises.

    Tal como nos sonhos de Nemo, estas não se deixam conduzir, por um destino ou uma finalidade logicamente formulável. São erráticas e tem algumas afinidades com as funções indiciais, na sua luxuosa inutilidade “aparecem entre duas funções cardinais, onde é sempre possível dispor de notações subsidiárias, que se aglomeram em torno de um núcleo” (1966: 10). Nemo entre o adormecer e o acordar, dispõe desse conjunto de acções que não dão sentido nem se deixam explicar por um destino, mas são interrompidas pelo despertar.

    Mas, mais explicitamente, muitos dos elementos narrativos de Annie, são meras acções que nos dizem sobre o seu quotidiano ou o seu estado existencial, mas pouco sobre o seu destino ou a configuração de um litigar que adensa, ora no episódio de uma fuga, ora na denúncia de uma acção malévola: “estas catálises permanecem funcionais, na medida em que entram em correlação com um núcleo”, e sendo “uma notação, na aparência expletiva, tem sempre uma função discursiva: ela acelera, retarda, avança o discurso, ela resume, antecipa, por vezes mesmo desorienta: faz o notado” como que por acaso “aparecer sempre como o notável” e desse, a catálise desperta sem cessar a tensão semântica do discurso, diz ininterruptamente: houve, vai haver significação” (1966: 10).

    Ora, é esta chamada de atenção permanente que, em grande parte alimenta o melodrama, até pela simples recorrência dos seus tipos estereotipados e redundantes, Um opúsculo anónimo do princípio do século XIX apresentava assim a “receita” de um “bom melodrama”: “escolher um título. É preciso, em seguida, adaptar a este título, um assunto qualquer, ou histórico, ou inventado”, processo que vemos realizar-se, por exemplo em Little Orphan Annie, logo no título e no subtítulo desventuras de uma órfã; “depois deve-se fazer aparecer como principais personagens, um idiota, um tirano, uma mulher inocente e perseguida, um cavaleiro e tanto quanto seja possível qualquer tipo de animal amestrado, um cão, um gato, um cavalo, um corvo ou uma pega”, o que acontece com o encontro de Annie com o cão abandonado. Os espaços são importantes pelos seus contrastes, o opúsculo da receita sugeria o contraste entre um “ballet”, e uma “prisão” para em seguida colocar a protagonista face a ameaças de “grilhetas” e os anelos do “discurso sentimental” (Thomasseau, 1984: 19).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    [1] Mesmo um comic mais tardio, (1931) aparentemente desenvolvendo-se prioritariamente como história de acção, inicia-se com o duro detective num contexto melodramático: Dick Tracy tornou-se um polícia para vingar o assassinato de Emil Trueheart, pai da antiga namorada de Tracy, Tess. Tracy foi retratado como um detective à paisana, incorruptível, numa cidade do Midweste, muito parecida com Chicago.

    Primeira tira, de 4 de outubro de 1931

    Mas não termina aí o cruzamento, nas origens, da intriga melodramática nesta história/ série de acção, que alguns críticos consideram das mais violentas e sanguinárias que a banda desenhada produziu, em todos os tempos. O melodrama marca o aparecimento de Júnior.

    A sua primeira vinheta aparece a 8 de Setembro de 1932, menos um ano depois do seu “pai adoptivo” ter sido criado, e desenhado pelo mesmo cartunista, Chester Gould, em 1931, para uma tira de quadrinhos do jornal. A tira, que estreou em 4 de outubro de 1931, no The Detroit Sunday Mirror, foi distribuída pelo Chicago Tribune New York News Syndicate. Passando a aparecer em múltiplos jornais pelos Estados Unidos, tem a sua nova incursão no melodrama, através da regeneração do jovem Júnior de quem Tracy se torna pai adoptivo, retirando-o do domínio de Steve Trump um vagabundo malfeitor.

    The Kid (como era originalmente conhecido) era um jovem sem-abrigo e sem nome que vivia com um marginal que o tratava mal e com violência e o fazia roubar em troca de proteção e comida. Por várias vezes, depois de Tracy o fazer seu auxiliar, o vagabundo procura recuperar a sua “mão-de-obra”, mas sem o conseguir. Durante a sua relação filial com Tracy, em mais de uma situação, é raptado e chega a ser preso por suspeita de agressão a Tracy num reformatório. Noutra altura Steve sequestra Júnior na tentativa de receber uma recompensa oferecida por um rico (mas cego) engenheiro de minas que estava à procura seu filho há muito perdido. Por um acidente do destino que vai muito bem nestas narrativas que manipulam as coincidências, revela-se que, de facto Júnior era o filho desaparecido deste mineiro cego do Colorado, Hank Steele e sua esposa Mary. Hank identificou Júnior (cujo nome verdadeiro era Jackie Steele) por uma cicatriz atrás da orelha resultante de um acidente de infância. Mas segundo as posteriores peripécias, volta a trabalhar com Tracy já quase como colega.

    [2] Nos anos 30, uma publicação, em formato quase de página dá continuação ao protagonismo da Órfã perseguida pelos infortúnios num argumento de Barandon Walsh e desenho de Darrel McClure. Os seus antecedentes vinham de uma canção de Michael Nolan, muito popular em finais do séc. XIX, do sucesso do filme mudo protagonizado por Mary Pickford, e das tiras diárias de Ed Verdier: Jan 10, 1927 – July 20, 1929; Ben Batsford: July 22, 1929 – Oct 4, 1930; seguidas das tiras que Brandon Walsh escreveu e Darrell desenhou: Oct 6, 1930 – 1954; ou ainda as que Darrell McClure continuou a fazer sozinho: 1954 – April 16, 1966