Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)
Editora (Edição)
Alfagura (Outubro de 2023)
Cotação
18/20
Recensão
Aqui. Hoje.Já somos o esquecimento que seremos.A poeira elementar que nos ignorae que foi o rubro Adão, e que é agoratodos os homens, e que não veremos.Já somos na tumba as duas datasdo princípio e do termo. O caixão,a mortalha e a obscena corrupção,os triunfos da morte e as endechas.Não sou o insensato que se aferraao mágico som de seu nome:penso com esperança naquele homemque não saberá quem fui sobre a Terra.Sob o indiferente azul do céuesta meditação é um consolo.– Jorge Luís Borges
Este livro deve o seu título a um verso deste belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.
Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:
“O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.”
E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.
“Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.”
A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.
Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.
Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.
“O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.“
Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.
É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:
“Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.“
É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente.
Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
58 – A fundamentação ética dos atos humanos
Empregando um timbre de voz que me surpreendeu, porque eu parecia estar falando como um juiz ao fim de um julgamento, sentenciei:
– Georges Sim Et Non!
De imediato, o francês apontou o cachimbo para mim, como se ele fosse uma pistola, e disparou:
– Te cuida, malandro! O inferno está cheio de neguinho dedo-duro! Se tu provar o que tu diz, dou meus punhos pro delegado enfeitar com algemas. Mas se tu não provar, eu vou botar meia dúzia de advogados em cima de tu. Calúnia e difamação. Os causídicos vão te arranjar tantos processos que tu vai ter que alugar um apartamento perto do Fórum. Pra economizar na condução.
– Não tente amedrontar minhas testemunhas! – berrou Aroeira, em meu auxílio, e bateu com a mão na mesa. – Se um sujeito aqui tem o direto de encagaçar alguém, esse sujeito sou eu. Pronuncie-se, jornalista!
Assustado com a ameaça pistoleira do francês, inseguro, recomecei então a falar com uma voz tão baixa que quase nem eu mesmo me ouvia:
– Tentarei reproduzir aqui frases estranhas que o senhor Sim Et Nom pronunciou. Porém, se eu estiver enganado, espero que ele, por favor, me corrija.
– Deixe de ser cagão, Campestre! – urrou Aroeira. – Vamos ao que interessa!
– Enquanto investigava o apartamento, o senhor Sim Et Non levantou a tese de envenenamento do almoço de dona Miguela. Como mostrou o laudo, arsênico foi misturado à comida. Seria só coincidência? Não me parece. Além disso, o senhor Sim Et Non chamou dona Miguela de “bruxa espanhola” e disse que ela morreria envenenada se mordesse a língua. Seria outra coincidência? Não me parece.
– Sacanagem! – reagiu o francês. – Esse moleque é um pilantra. Eu jamais misturaria arsênico francês num prato de feijão-com-arroz. Ainda se fosse um fricassé de faisão… Delegado, quero registrar já o meu mais veemente protesto…
– Envie seu protesto ao embaixador da França – respondeu o policial, fazendo uma vênia. – Prossiga, neto de Getúlio Vargas!
– Dona Águeda disse que o senhor Sim Et Non odiava profundamente dona Miguela porque ela era a escritora policial mais apreciada pelos críticos franceses.
– Nunca vi pivete mais otário que esse aí! – resmungou o escritor francês e, com dedos visivelmente trêmulos, encheu de fumo seu cachimbo. – Como é que eu, um francês de Paris, um verdadeiro monsieur, poderia ter inveja de uma espanhola?
– O senhor quer dizer que não tem nada a ver com a morte de dona Miguela? – indagou o delegado.
– Isso também não! – respondeu o gaulês, em tom de mofa ou galhofa, não identifiquei bem. – Eu também tirei a minha lasquinha.
A seguir, baforando, com as mãos às costas, ele passou a caminhar pela sala:
– Vou falar a verdade. Na batata. Depois do almoço, eu passava pelo corredor. Trazia na mão uma caneta esferográfica baratinha, de plástico transparente, sem carga dentro. A caneta estava pronta para funcionar como uma pequena zarabatana.
Estávamos todos tão atentos à narrativa do francês que o silêncio entre uma palavra e outra poderia ser cortado com uma tesoura.
– Aprendi a soprar zarabatana na África – continuou Sim. – Quando moleque, eu passava férias na fazenda do meu avô, que criava hipopótamos no Senegal. Lá, de manhã, eu lia Molière para os nativos que, em troca, à tarde, me ensinavam a soprar zarabatana… Pois bem, hoje, vinha eu por este corredor pensando. Aliás, franceses estão sempre refletindo sobre coisas como o obscuro sentido da existência, o trágico destino da humanidade e a fundamentação ética dos atos humanos. De repente, virei o rosto. O que vi eu pela porta aberta do apartamento? Miguela de Alcazar comodamente instalada em uma poltrona lendo um livro. Num movimento muito rápido, furtivo, levei a zarabatana improvisada aos lábios. E, pronto, fiz o que pensava fazer: soprei.
59 – Abrir o coração não é o mesmo que confessar
A forma descontraída com que Sim Et Nom confessou ter mandado uma zarabatana em direção a Miguela de Alcazar deixou-nos aturdidos, como se nós também tivéssemos sido atingidos pelo dardo peçonhento. Não podíamos esperar tal reação depois da forma veemente com que ele protestara contra as minhas suspeitas.
– O senhor poderia nos dizer o que havia dentro da zarabatana? – perguntou Aroeira.
– Um pequeno dardo – respondeu o francês.
– E o que havia na ponta desse dardinho?
– Não apenas na ponta – detalhou o escritor francês. – O dardo todo era puro veneno, uma substância líquida endurecida por congelamento.
– Em que direção esse dardo foi soprado?
– Ora, como já disse, o alvo era uma velha senhora espanhola.
Um mosquito sobrevoou a mesa. No seu voo errático, avançava de lado, como um avião de caça atingido na asa. Provavelmente havia picado Fedorova.
Aroeira, que começou a piscar doidamente os olhos, como se tivesse perdido o controle das pálpebras, indagou:
– De que sustância fora feito o tal pequeno dardo?
– De peçonha de víbora. Mais que pura. Concentrada.
Muitas cadeiras se movimentaram ao mesmo tempo. Os escritores pareciam dispostos a sair correndo daquela sala.
– Onde se alojou o tal dardo? – indagou o policial.
– Em uma grossa veia azulada de um enrugado pescoço.
– Parece que o senhor Sim Et Nom é o primeiro a admitir aqui, claramente, que pretendia matar a vítima.
– Não, meu irmão, não foi tentativa de homicídio. Eu só soprei aquela zarabatana pra ganhar uma aposta literária.
Três cadeiras movimentaram-se traduzindo claramente a reação de seus ocupantes: inquietude, desconfiança e incredulidade.
– Explique-se! – rosnou Aroeira.
– Quando desembarcamos no aeroporto do Rio de Janeiro, Miguela me perguntou se eu conhecia algum método realmente surpreendente e criativo de assassinato. Contei a ela que cientistas franceses inventaram recentemente um método de congelar veneno na forma de pequenos dardos. Carregados em estojo térmico, esses dardos só podem ficar uns poucos segundos na mão de quem vai arremessá-los. Soprados em zarabatana, matam a vítima na hora, caso acertem numa veia. No Rio de Janeiro, quando concluí minha fala, Miguela caiu na risada e disse: “Dardo de veneno congelado? A única invenção científica decente dos franceses é o perfume, que eles criaram para substituir o banho”.
Batota soltou uma bela gargalhada. Compreendi sua reação. No Brasil, é raro alguém contar uma piada que não seja de português. E, pelo que ouvi falar, os portugueses preferem fazer piadas de alentejanos. Não fazem piadas de brasileiros porque acham que os brasucas, por falarem outro idioma, não as entenderiam.
– Putisgrila! – grunhiu Sim Et Non, com os lábios tremendo. – Naquela hora, o sangue me subiu aos cornos. Pensei: tu vai ver só, mocreia, se existe ou não o tal dardo! Ao chegar aqui neste hotel, meti na geladeirinha do meu apartamento uma mostra do tal veneno, que eu trazia comigo. Então, quando passava pelo corredor, me veio a ideia. Fui ao meu apartamento, abri a geladeirinha e…
– Manera, delegado! Eu não confessei nada, apenas abri meu coração, como fizeram Bugres e Dornascostasviskáya. Eu, em tese, sou apenas o terceiro assassino.
– O senhor, por acaso, também vai alegar que sua dose não foi letal?
– Não! Eu não vou usar uma desculpa tão esfarrapada. Tolice! Eu posso provar que não sou o assassino por uma simples razão: Miguela já estava morta quando meu dardo lhe atingiu o pescoço. Além disso, veneno de víbora não mata víbora. A homeopatia diz que semelhantes se anulam. Soro antiofídico se faz com veneno de serpente.
60 – Da impossibilidade de se assistir a um filme francês até o final
À beira de um ataque de choro, Aroeira deixou cair a cabeça. Tivera três suspeitos debaixo do olho, mas eles, embora tivessem mais ou menos confessado, haviam tirado o corpo fora. O pobre policial brasileiro sentia que estava sendo enrolado e se desesperava por isso.
Apiedado daquele que era o meu único compatriota ali, aproximei-me dele e murmurei:
– Ainda não acabei de ler minha relação de suspeitos, delegado.
Aroeira voltou-se na minha direção e o olhou-me de um modo estranho. Creio quer levou algum tempo para reconhecer-me.
– Sim, Campestre – disse, por fim, sem convicção. – Leia lá então o nome do próximo acusado.
– Lady Águeda Christine – anunciei com voz firme. – Ela começou a se incriminar quando defendeu no início das investigações a tese do envenenamento das folhas da Bíblia. Desconfio que seja cúmplice de dona Fedorova. Cúmplice ou mentora! Não acredito em simples coincidências.
– Eu também não – concordou Aroeira. – A senhora Águeda teria algo a nos dizer sobre isso?
– Uai, admito que é coincidência estranha demais da conta. Mas é muito pouco provável que uma aristocrática e culta dama britânica possa ter ideias semelhantes às de uma russa de baixa extração.
Aroeira voltou-se para mim:
– Continue, com as acusações, promotor! Vamos lá acabar com isso!
– Lady Águeda garantiu que dona Miguela havia sido assassinada quando a porta de seu quarto já estava fechada. Insistiu nisso com muita segurança. Por que teria essa convicção?
O delegado dirigiu-se à a escritora inglesa:
– O que a levou a pensar assim?
Depois de fuzilar-me com um olhar que pingava sangue, Águeda Christine respondeu:
– Elementar, uai! Eu vi o gerente abrir a porta do apartamento e Miguela estava lá dentro, morta. Raciocinei logo: foi assassinada com o quarto fechado. Reconheço que é uma hipótese sofisticada, inaceitável num país primitivo. Mas apostei nela porque, afinal, aqui estão reunidos escritores de livros policiais. E mesmo os escritores mais imbecis são mais espertos que a média das pessoas…
Reunindo coragem, decidi interrompê-la:
– Lembro que o senhor Georges Sim Et Non insinuou que a senhora odiava mortalmente dona Miguela por causa do sucesso que ela teve com a adaptação cinematográfica dos seus romances.
A escritora inglesa explodiu numa gargalhada pouco britânica, contorceu as mãos cheias de anéis e sacudiu negativamente a cabeça de cabelos azuis:
– Eu me recuso a responder a insinuações de um francês. O que um francês pode saber sobre cinema? Quem consegue assistir a um filme francês sem sair correndo antes do fim?
Depois de comemorar com um cacarejo a piada que fizera, a escritora da pérfida Albion continuou a falar:
– Este interrogatório estúrdio está me fazendo perder a elegância. Mas quem leu meus livros sabe que os interrogatórios ingleses transcorrem sempre em clima de alta civilidade. As pessoas vão sendo paulatinamente acusadas. As suspeitas ora convergem ora para um, ora para outro. Aí, de repente, quando o leitor acha que identificou o assassino, eu puxo o tapete. Aparece então o verdadeiro culpado.
Parou por uns segundos e girou um dedo apontando para todos os que estavam em redor da mesa, como se aquele dedo estivesse municiado. E continuou:
– Mas o que estamos vendo aqui? Seis escritores, um policial, um repórter e um português. O que têm em comum? Estão bêbados como bodes. Pergunto: o que se pode esperar de um trem desses?
Irritado, Aroeira deu um formidável murro de mão fechada na mesa:
– A senhora pode ser mais chique e coisa e tal, mas, no fundo, só quer tirar o corpo fora! Porém, se acha que vai escapar da cadeia porque no Brasil só os pobres vão em cana, está muito enganada!
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).
Estação de Sete Rios. Uma voz bem colocada anuncia a chegada do comboio. Um rapaz emerge da escada rolante e aproxima-se a correr. Mochila, trolley, telemóvel na mão. Dirige-se ofegante a uma rapariga que está mesmo à minha frente e se prepara para embarcar. Pergunta-lhe se apanha muitas vezes aquele comboio e se sabe se o “pica” costuma aparecer. É que vai até Entrecampos, explica, é só uma estação, não tem bilhete e está atrasado para um exame. A jovem responde: – Faço isto todos os dias. É tranquilo. Nunca o vi.
Entram. Entro também. Acomodamo-nos. O comboio arranca e ouve-se de imediato: – O seu bilhete, por favor. – Olho para o rapaz da estação. Está lívido. O corpo transformou-se num bloco que inclina em direção à janela. Não, Entrecampos não está à vista. O fiscal avança rapidamente pela carruagem e a cada passo que dá o rapaz parece estar mais perto de ter uma síncope.
Fito-o com intensidade, como se isso o pudesse desmaterializar, torná-lo invisível. Aos meus olhos, irracionalmente, o infrator transforma-se em vítima. O fiscal-caçador passa por mim. Demoro um pouco a mostrar-lhe o meu bilhete. Torno-me cúmplice. Quero acreditar que aqueles breves instantes serão suficientes. Estamos quase em Entrecampos. Finalmente, o momento da verdade. Invade-me um sentimento de vergonha alheia. É agora! Mas antes que se dê qualquer interação entre caçador e presa, eis que, do nada, surge a rapariga da estação. De mala na mão, vira revira tudo o que tem lá dentro: – Está aqui o meu passe e… é só um bocadinho… oh, pá, não encontro o teu. Tem de estar aqui. Eu pus aqui… –, vai dizendo enquanto simula uma busca desesperada. O rosto do rapaz, porém, não deixa margem para dúvidas. Um expressão entre o espanto e o pavor. Os músculos faciais estão completamente contraídos. Chegamos ao destino. O fiscal, provavelmente cansado, finge acreditar na história do passe desaparecido e prossegue como se nada fosse.
Já na estação, os dois jovens riem da aventura. Ele garante que nunca mais se mete noutra. Ela está divertidíssima com a situação. Apresentam-se e trocam rapidamente contatos. Vejo-os abandonar o edifício enquanto aguardo o táxi. Imagino a continuação deste episódio. Um segundo, um terceiro encontro. O início de uma bela história de amor. Vejo-os num futuro distante. Ela uma atriz famosa, ele um engenheiro civil aposentado. Sentados a uma mesa, rodeados de filhos e netos, contam-lhes, mais uma vez, como se conheceram. Lembram o dia em que ela, corajosa, descontraída, despachadíssima, o salvou de uma multa no comboio. Recordam como ele, tímido e incapaz de mentir, um dia se perdeu de amores pela bela ruiva que veio em seu auxílio.
Esta história escrita pelo meu coração de casamenteira termina com um “e viveram felizes para sempre”. Porém, a minha mente não se detém muito tempo nesta versão. A experiência diz-me que não será bem assim. Que há mais por detrás da pequena farsa a que acabei de assistir. Incomoda-me a facilidade com que aquela jovem mentiu descaradamente ao fiscal. Não terá sequer 20 anos. No meio de uma carruagem, rodeada de estranhos e sem sombra de hesitação, criou uma cena digna de um grande palco. A imagem do casal feliz, a contar a aventura aos descendentes, é agora substituída na minha mente pela de dois velhos amargos, depois de décadas de pouco convincentes “Querido, isto não é o que parece!”
Luto para que este pensamento não mate a história inicial. Convenço-me de que salvar o rapaz era inevitável.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
55 – O duro tratamento dado aos safados na Rússia
Naquele momento, a cabeça de Aroeira encolheu e se transformou rapidamente num focinho de cobra venenosa. Uma naja, digamos. Ou vá, para os que vivem em países onde há menos bichos peçonhentos, uma víbora. Creio que ter visto até mesmo uma bifurcação na ponta da língua dele.
Mastigando lenta e dificultosamente as palavras, consegui elaborar uma pergunta:
– Se estou entendendo bem, o senhor delegado quer que eu banque o alcaguete, o dedo-duro, o informante…
– Não exatamente, gaúcho. Encare a questão por outro ângulo. O que eu estou pedindo a você é que aja como um patriota. Ajude uma autoridade constituída de seu país, no caso eu, apontando as frases mais comprometedoras desses estrangeiros suspeitos.
– Compreendo, doutor Aroeira. Isso talvez seja possível, posto que, durante toda a tarde, mantive o gravador ligado. Assim, registrei tudo o que aqui se falou. E, antes da chegada deste belo carrinho com tantas garrafas desencaminhadoras, eu escutei as fitas já gravadas e rabisquei na minha caderneta as frases mais interessantes. Jornalisticamente falando, é claro…
– Ótimo. Me fale dessas frases. Você é um garoto espertinho. Se me ajudar nessa investigação, terá depois informações privilegiadas, de primeira mão, sobre assassinatos e atropelamentos de gente famosa aqui em Brasília.
– E eu também estou disposto a ajudar a Justiça brasileira – intrometeu-se o Batota. – Como tenho uma memória implacável, confirmarei as frases verdadeiras do jornalista e impugnarei as falsas.
Entusiasmado, Aroeira esfregou as mãos:
– O mundo lusitano se une diante do avanço dos godos e visigodos! Vamos, filhote de abigeatário, consulte sua cadernetinha!
Engoli todo e qualquer dever moral que tinha, se é que o tive um dia. A seguir, mandei minha consciência banhar-se nos licores que me borbulhavam no estômago. Senti que chegara um momento importante da minha vida. Não havia do que me arrepender. Que atire a primeira pedra quem nunca… Havia ali algo mais importante a ser conquistado. Ali estava a ocasião para demonstrar aos mais famosos escritores do mundo que eu nada ficava a dever a eles. Não, eu não era apenas um simples jornalistazinho!
Como precisava estar calmo para desfilar diante deles o meu cérebro atilado e a minha fina argúcia, respirei profundamente antes de falar:
– Na verdade, delegado, fui muito além de simplesmente anotar frases. Eu elaborei uma escala de suspeição. Alinhei, por ordem decrescente, os nomes daqueles que me pareceram os maiores suspeitos.
Aroeira bateu palmas entusiasmadas, embora seu rosto estivesse retorcido por um esgar galhofeiro:
– Excelente! Mas em que critério se baseou você, Campestre, para criar tal lista?
– A pontuação variou em função do número de frases comprometedoras. Quanto mais frases equívocas ou inquietantes, mais pontos negativos ganhava o seu autor.
– Estupendo! E quem seria o suspeito número um nessa sua lista?
Antes de responder, mais vez enchi lentamente a caixa torácica, tanto para obter um pouco de ar quanto para reunir de coragem:
– Dona Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáya.
Como já esperava uma reação forte, consegui abaixar a cabeça uma fração de segundo antes da passagem de uma garrafa voadora de rum, cheia até a tampa, lançada contra mim com força e destreza pela escritora eslava, que me interrogou aos berros:
– Você sabe o que a polícia faz com jornalista xibungo como você na Rússia? Tira a roupa do safado e manda ele correr pelas ruas nevadas até que o pinto dele fique do tamanho exato do seu dedo mindinho. Se ainda ficar maior, corta o excesso.
– Controle-se, dona Fedorova! – ordenou Aroeira. – Enquanto depõe, o jornalista está sob minha proteção. Depois, se quiser, a senhora poderá colocar em prática nele o tal método cirúrgico soviético, embora seja difícil achar neve por aqui. Continue, bisneto de Simões Lopes!
Engoli em seco e molhado.
56 – A morte do siberiano que lia os livros de Pablo Conejo
As ameaças da ficcionista de São Petersburgo tinham surtido efeito porque, quando voltei a falar, minha voz tremelicava como vela de feitiçaria de encruzilhada em dia de ventania.
– Dona Fedorova foi a primeira pessoa a levantar aqui a possibilidade de morte. Ao reclamar do garçom, que demorava com a cachaça, ela perguntou: Será que o condenado aproveitou a viagem para assassinar Mikahilucha?
Silêncio na sala. Os escritores estavam positivamente surpresos com o meu desempenho inicial.
Apertando com fúria o gargalo de uma garrafa de cachaça, com o olhar fixo no meu pescoço, Fedorova dava a indicação do que faria se o delegado Aroeira não estivesse por ali.
Mesmo já amedrontado, continuei:
– Mais tarde, ao investigar o quarto da falecida, dona Fedorova falou que estava rezando pela “atormentada criatura” que havia matado a espanhola…
– Não vejo nada demais nessa frase – atalhou-me Aroeira. – Foi a reação natural de uma pessoa religiosa.
– Mas dona Fedorova é ateia! – argumentei. – E nem sabíamos ainda que dona Miguela havia sido assassinada! Como poderia ela saber que o criminoso estava atormentado pelos remorsos? A não ser que fosse ela própria a assassina.
– Raciocínio razoável – reconheceu o delegado.
– Mas teve mais – continuei, já estava gostando de desempenhar ali o papel de acusador. – Em seguida, dona Fedorova disse que a alma da escritora espanhola ainda vagava pelo hotel…
O delegado voltou-se para a russa e indagou:
– A senhora dispõe de poderes mediúnicos?
Como a escritora não respondesse, continuei:
– Dona Fedorova disse ainda que nenhuma mulher, nem mesmo uma espanhola, aceitaria morrer com uma mantilha tão horrorosa quanto a usada por dona Miguela. Daí, concluiu ela que se tratava de uma morte fulminante…
– Considerações sobre vestuário não têm importância em uma investigação tão intrincada quanto esta…
– Têm, sim, delegado – discordei. – Passaram a ter agora que se sabe que dona Miguela teve um ferimento na cabeça. Morreu sem poder tirar a mantilha. E, para culminar, quando se retirava do apartamento, dona Fedorova mostrou-se invejosa da maior vendagem dos livros de dona Miguela.
Ouvimos um crash. Era o gargalo da garrafa cedendo à pressão da mão de Fedorova. A escritora russa bateu a mão na mesa para se livrar dos cacos e, a seguir, acendeu um charuto, das mesmas dimensões do anterior.
– O que diz a senhora depois de ouvir o nosso jovem centauro? – indagou o policial, com um ar misto de Torquemada e bufão. – Reconhece que está em maus lençóis?
Fedorova levantou-se de um pulo, já sugando o charuto e expelindo furiosamente a fumaça, e deu início ao seu já manjado pranto dramático. Batia no peito, puxava os cabelos e salmodiava:
– Oh, a doce Mikahilichenka foi levada deste mundo pela sua própria arrogância. Tudo começou no aeroporto de Paris, enquanto esperávamos a chamada do voo para o Brasil. Falávamos mal de editores, críticos e autores de livros de auto-ajuda. Subitamente, ela me perguntou se eu conhecia um novo método de envenenamento. Virgem do Crato, oxente, para que Mikahila levantou aquele assunto?
Sentindo que ganhara a atenção do público, a russa imprimiu maior dramaticidade ao ritual de autoflagelação: passou a esbofetear-se também:
– Mika me disse que precisava assassinar, com morte inovadora, uma personagem do livro que estava a escrever. Querendo ajudar aquela quenga, contei a ela que, na Sibéria, uma muié tinha matado o corno do marido colocando veneno nos livros do paraguaio Pablo Conejo, que o chifrudo vivia lendo. Expliquei direitinho que a muié danada passou estricnina no pé das páginas, pois era justamente ali que o cretino colocava seus dedos depois de lambuzá-los na língua pegajosa.
A russa parou a sua representação dramatúrgica para emborcar uns valentes goles de uísque, pela boquinha da garrafa.
57 – Aqui o impossível ocorre a todo instante
Notei que naquele momento, enquanto Fedorova arquejava para se recompor da quase meia garrafa emborcada, Águeda Christine lançava um olhar triunfante na direção de Sim Et Non. A história da escritora russa reforçava a tese do envenenamento que fora levantada inicialmente por ela.
Continuou a escrevedora do Kremlin:
– Em resposta ao que falei, a soberba Mikuchina me disse que só uma besta de uma camponesa russa podia acreditar numa história tão furada. E, desaforada, concluiu: “Deixe de ser ignorante, Feda!” Ora, nós, russos, não toleramos esse tipo de ofensa intelectual. Fervi de ódio.
Após breve pausa, para que alguma fumaça fosse sacada do charuto e expelida, Fedorova continuou:
– De Paris ao Rio, viajamos lado a lado. Notei então que Mikólia molhava os dedos na saliva para virar as páginas da Bíblia, mas segurando-as pelo alto. Percebi também que estava lendo o Apocalipse. Perguntei se estava gostando. Debochada, ela me respondeu que o Apocalipse é a melhor novela policial de todos os tempos porque, no fim, não fica um sobrevivente para contar a história.
Em uma breve parada para reabastecimento, a russa sugou um quarto de uma garrafa de absinto, sem pestanejar, e avançou:
– Como Mikutina era esnobe! Sabem o que ela me disse depois? Disse-me que de tanto ler e reler o Apocalipse já estava quase decifrando a profecia. Aquilo foi demais pra minha religiosa alma russa, mesmo eu sendo ateia juramentada. Minha raiva se transformou em ódio. Aí, quando ela foi ao banheiro do avião, peguei de minha bolsa uma ampola de estricnina concentrada e derramei no alto das páginas do Apocalipse. Depois, aproximei o livro santo da saída do ar refrigerado, para que o veneno secasse rapidamente…
Em voz alta e grave. Aroeira a interrompeu:
– Quer dizer, então, que a senhora Smerdlova assume publicamente a autoria do assassinato por envenenamento de dona Miguela?
– De jeito nenhum! Reconheço que, arrastada por uma raiva bem fundamentada, derramei um pouco de veneno nas páginas da Bíblia da desgraçada. Mas eu não a queria matar. Só queria provar a ela que é possível envenenar um vivente com aquele método siberiano.
– Não me interessa sua intenção – reagiu Aroeira. – O que me importa é o resultado do seu ato criminoso.
– Arre, égua, delegado! Raciocine comigo: se o argentino pode alegar que bilhete dele não causou o enfarte, eu também posso dizer que o meu veneno não matou a jararaca. Como poderia ela morrer depois de ler apenas umas dez páginas? Ora, o siberiano que lia Pablo Conejo morreu depois reler cinco vezes o livro Vera se decide a falecer-se, o que, convenhamos, mesmo sem veneno, mataria um elefante. A polícia russa considerou, naquele caso, que a leitura foi mais devastadora que o veneno.
– A senhora assume o assassinato ou não? – perguntou o policial.
– Não. Só aceito ser acusada de ter botado no organismo dela a porção de estricnina. Mas vou requerer uma perícia. Ao verificarem o nível de veneno no sangue, certamente concluirão que a espanhola não morreu por minha culpa.
O delegado ficou parado e em silêncio por um momento, pensativo. Pareceu-me desalentado porque um segundo suspeito estava a escorrer por entre seus dedos. Mas concordou com a reflexão da russa:
– No Brasil, tudo pode acontecer. Aliás, aqui, o impossível ocorre a todo instante, enquanto o possível raramente se concretiza… Bem, se a estricnina e o enfarte não mataram a velhota, temos que seguir procurando um outro culpado, certo?
Num rápido e único aceno, todas as cabeças ao redor da mesa concordaram com ele.
O delegado voltou-se novamente para mim:
– Então quem o nosso Sherloque dos pampas vai acusar agora?
Lancei um rápido olhar à minha caderneta em busca do nome do número dois na minha escala de suspeição. Respirei fundo e preparei-me para o embate.
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).
Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize Represados clarões, cromáticas vesânias No limbo onde esperais a luz que vos baptize
As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis
Camilo Pessanha
POEMA FINAL
in CLEPSYDRA (1920)
A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU[1]
Caros leitores, é frequente as grandes estreias acabarem por funcionar como ensaios-gerais. Pensávamos que estava tudo perfeitamente afinado, mas depois foi isto, foi aquilo, foi o raio que o parta – tudo bem, passa-se à frente e faz-se melhor na vez seguinte. Há quinze dias, na estreia da nossa nova rubrica de História Natural “A LUZ QUE VOS BAPTIZE[2],” acumularam-se diversos problemas mas o último foi o pior e era assaz impensável – desapareceram as duas últimas páginas, deixando a frase completamente sem sentido, o parágrafo francamente desiquilibrado, e a peça muito coxa[3]. Ainda por cima, eram os dois parágrafos que concluíam a história de como herdámos a ciência dos dias de hoje.
No ensaio-geral passado, falávamos da angústia que o Homo sapiens sentiu há duzentos mil anos quando se diferenciou das outras oito espécies do género Homo ao desenvolver no cérebro um lobo frontal pensante[4], e, como tal, ficar a braços com centenas de perguntas que não tinham resposta – como, por exemplo, “quem é que vai à noite acender todas aquelas fogueiras no céu?[5]”.
As primeiras respostas para as estrelas, para a dança do sol com a lua e da lua com as marés e tudo isto pelos vistos com o sangue menstrual, para a diferença entre a água e a terra e entre o ar e o fogo, para o rodar das estações e para a penúria que alterna com a abundância – para tudo o que se perguntou nas primeiras palavras da linguagem articulada, a primeira resposta esteve na mitologia.
O problema é que ninguém trava guerras por mitos.
A mitologia tornou-se muitíssimo mais compreensível, e portanto muitíssimo mais acessível ao consuno de massas, quando se transformou em religião.
E, agora sim, a última parte, aquela que ficou de fora…
Há por fim uma terceira transição que se baseia no saber mais complexo[6] acumulado ao longo do caminho. Em relação às outras duas, esta terceira mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, desta vez, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal.
Quer isto dizer que nasceu, por fim, a ciência moderna?
Não foi, certamente, aquela ciência moderna que se imaginaria num primeiro instinto.
A gravitação universal é o exemplo perfeito deste fenómeno.
Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira Física do Universo como a face visível de Deus.
escreveu Alexander Pope como epitáfio para o amigo. E o amigo de Pope, quando falou pela primeira vez da Gravidade no glorioso PRINCIPIA[8], referiu-se bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[9].
Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, e este esforço incluiu o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantropa científica Madame de Châtelet. Esta senhora teve também para a nossa cultura o benefício de ser tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de campo que a sua musa mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome de LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca,” mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante relativa à história do pensamento científico[10]. Todo este entusiasmo, todo este uníssono, vieram depois a inspirar vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitação Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou de Matemática[11]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?
E é assim, depois de centenas de anos de estudos e explorações, que, a partir da mitologia, e depois da religião, começa, por fim, a nascer a ciência.
Eu disse uníssono?
Como toda a gente sabe, uníssono é fenómeno que a História desconhece.
Este regresso radioso de Deus ao coração mais moderno da Ciência foi, logo no século XVIII, motivo de irritação profunda para grandes matemáticos como Huygens e Leibnitz, mortificados por verem os seus pares voltarem a mergulhar nas cantigas de boa métrica e melhor rima em que o príncipe e a princesa se casam, têm muitos filhos, e são felizes para sempre. E todas estas tolices, ainda por cima, depois de se seguir à voz de Descartes um século inteiro de esforços incessantes de fazer uso da física e da matemática para proporcionar à população europeia o uso puro e liso da razão.
Se há bipolaridade perfeita no pensamento europeu é a que tem a geometria de Descartes de um lado do espectro,[12] e os milagres divinos de Newton do outro lado. Estas duas atitudes estão num raio de oposição sobre o verdadeiro significado do arco-íris que não precisa de mais de cinquenta anos para se extremar por completo. E a conclusão não podia ser outra. Já bastante entrado nos anos, Descartes acaba por não ter patronos que continuem a financiar a sua geometria onde os homens só precisam do seu próprio pensamento para poderem existir. Sendo assim, não está em condições de recusar o convite da Rainha Cristina para se juntar à sua corte de sábios exilados no frio da Suécia, a mesma que, entre muitos outros nomes brilhantes, vira há pouco tempo passar o Padre António Vieira. Cristina andava fascinada com a localização da epífise, o ponto onde a alma se prende ao corpo, que Descartes, na sequência de investigações anatómicas aturadas, considerara localizar-se entre os dois hemisférios do cérebro, mais precisamente na glândula pineal[13]. Teria sido um belo tema de conversa se não fosse dar-se o caso de a rainha ter grandes insónias e querer falar com o seu grande sábio a altas horas da noite. Não sei se estão bem a ver. Suécia. Um castelo. Tudo em pedra e pés direitos altíssimos. Neve e gelo por todo o lado. O pobre sábio, idoso e estremunhado. Foi assim. Descartes morreu de pneumonia na corte da Rainha Cristina. Ninguém sabe onde é que a alma se prende ao corpo. A seguir morre Newton. Os ingleses vêm para a rua ver passar o seu caixão, num Funeral de Estado todo ele feito de pompa e circunstância. Ou, francamente – de que é que julgam que o povo gosta?
“A mente humana não suporta os caminhos exigentes.” vituperou Leibnitz numa das suas cartas a Huygens. “Bastou um século de racionalidade, e o homem já está de novo em busca de explicações para os fenómenos naturais todas elas baseadas em contos de fadas.”
Goste-se ou não se goste de ver as coisas postas assim, no entanto, é exactamente de longas desgarradas sobre um ou outro milagre maravilhoso, quiçá apresentado nesse tom piegas que a mim me agrada tanto, que falaremos daqui para a frente.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Mario Vargas Lhosa, inTHE STORY TELLER. Parafraseando a estupefacção dos índios amazónicos que caminham sem cessar pela margem do rio, fugindo da ganância ignorante dos colonos brancos.
[2] Este verso é tão bonito, tão bonito, que há décadas que quero usá-lo como título de qualquer coisa. Aqui, onde se contam as histórias da vida e de como essas histórias viram a luz do dia num esforço de muitos séculos, não podia ser mais adequado. Em cada uma destas crónicas, é verdadeiramente a luz da vida que vos baptiza. Hm? Tomem e embrulhem. “E mandem para o Biafra,” como se acrescentava quando eu era pequenina. Para onde será que se manda hoje?
[3] “Peça coxa”: forma de dizer “esta merda que tu escreveste não se entende” utilizada pelas chefias em 1980, quando eu comecei a estagiar no saudoso semanário O JORNAL.
[4] Exactamente ao mesmo tempo, endireitou-se como ninguém antes dele na postura bípede erecta. Deve ter sido um daqueles momentos de quase colapso por too much information.
[5] Reparem, esta pergunta implica que aquele pessoal já conhecia o fogo, e mais – sabia fazê-lo. O Homo sapiens limpou da face da Terra todos os outros Homo, todos os austrolopitecos, todos os pitecantropos, isso é verdade. Mas já cá chegou com algumas tarefas fundamentais facilitadas.
[6] Ou mais empírico, conforme os saberes. E não desmerecendo.
[8] De nome completo PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA, ou seja, PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL.
[9] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.
[10] No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, registe-se que foi nos jardins de LES DELICES que se fizeram várias traduções do NEWTON PARA SENHORAS e várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE. Convém, também, não nos esqucermos de que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”
[12]Do espectro, topam? Newton descobre que quando a luz branca incide num prisma de vidro na presença da luz se desdobra do outro lado do prisma nas sete cores do arco-íris; e é deste milagre que nasce a Óptica. Toma lá fresquinho, Descartes. Grande trocadilho. Pareço mesmo um homem.
[13] Pois, cogito ergo sum e tal, evitam-se os milagres e o próprio Deus como hipóteses explicativas, mas não exageremos. É indiscutível que a alma existe. Ah, está-se bem.
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Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
52 – Americanos não crêem na existência de outros países
O silêncio foi quebrado pela voz metálica de Dax, que estalou no outro lado da mesa:
– E dos meus livros, castelhano, tu não tens nada a dizer? Tu também achas que a velha cucaracha imitou meus best sellers?
– Imitou, sim, mas só no desprezo pela geografia.
Rimos todos, mesmo com a tensão que emergia pela expectativa da presença do delegado. É sempre bom debochar da cara de um americano.
Águeda Christine agitou os anéis como uma serpente sacudiria seu chocalho e comentou:
– Rir dos americanos é o único prazer que eles ainda não nos confiscaram. Eles destruíram a música com a invenção do roque e arrebentaram o cinema com seus filmes estúpidos.
Quando a gorgolejante gargalhada geral definhou, Bugres retomou o hipotético microfone:
– Em certo trecho da primeira edição de O touro maltês, Juanito Saavedracruza a fronteira entre Bolívia e Colômbia. Pensei que se tratava de uma brincadeirinha maldosa de Miguela, que odiava os países latino-americanos, mas, não, era burrice geográfica mesmo.
Fez uma breve pausa e ainda acrescentou:
– Já o detetive Sem Spada, criado pelo senhor Dax, fez uma proeza ainda mais notável. No livro Não abra a porta nem para o carteiro ele atravessa, caminhando, a fronteira entre Venezuela e Uruguai…
– Leitores americanos cagam e andam para a geografia mundial – retrucou Dax. – Aliás, nem acreditam que existam na Terra outros países, além dos Estados Unidos. E, aliás, pensam que a América Latina é apenas uma invenção de agentes turísticos vigaristas.
O argentino voltou ao ataque:
– Já que estamos frente a frente, senhor Dax Chamber, aproveito para saciar uma velha curiosidade que tenho a respeito de seu detetive. Por que Sem Spada só se fere de raspão nos muitos tiroteios em que se mete? Por que nunca tomou um tiro, por exemplo, nas chamadas partes pudendas?
Eu ia assistindo a face de Dax Chamber subir rapidamente pela escala das cores: rósea, carmim, carmesim, solferina, encarnada, vermelha e roxa. Estava a ferver de raiva o filho da nação dos bravos e fortes.
– Espanta-me – prosseguiu o argentino – que Sem Spada, vença todas as lutas com um só soco. O senhor Dax nunca assistiu a uma luta de boxe? Às vezes, os idiotas se esmurram durante meia hora e ao fim ainda saem caminhando com as próprias patas.
53 – Palavras costumam dançar de braços dados
O ambiente da sala estava, estranhamente, cada vez mais descontraído. Houve um novo e mais demorado surto de gargalhadas. Já nem parecia que estávamos ali para desvendar um crime prender um criminoso a qualquer momento.
Águeda Christine, com falta de ar de tanto rir, perdida sua compostura britânica, abanava-se com um prato sujo.
E Bugres prosseguiu, sempre cruel:
– Impressiona-me ainda mais o fato de Sem Spada jamais encarar as cantadas que recebe das loiras. Por que o senhor o chama de durão, se ele se acovarda diante de um decote? Durão, onde? No queixo que ele oferece com volúpia aos punhos dos bandidos?
Esticada na cadeira, quase caindo de costas, sacudida pelo ruidoso riso russo, Fedorova tremia dos pés à testa.
Venenoso, avançou ainda mais o vate de Buenos Aires:
– Perdoe-me, senhor Dax, mas, olhado pela ótica estreita do nosso machismo latino, o seu bravo Sem Spada não passa de uma bichinha masô.
As gargalhadas na sala tornaram-se quase histéricas.
– Meus livros têm diálogos divertidos e muita ação – retrucou Dax Chamber, já de mau humor. – Tiros, socos, corrida de carros e, às vezes, um enterro. Leitores americanos odeiam frases longas e palavras com quatro sílabas. É por isso que, em nosso país, os livros do senhor Bugres só são vendidos nos balaios de ofertas.
O escritor argentino, que naquele dia parecia estar com a macaca, contra-atacou:
– Por falar em dinheiro, senhor Dax, confesso que me comove a honestidade do seu herói. Por que tendo chances sucessivas de ficar milionário, Sem Spada só recebe o que foi acertado com o cliente? Ele foi escoteiro na infância?
Entendi a renovada explosão de gargalhadas, que veio a seguir, como uma pequena vingança dos leitores de todo mundo que não suportam mais tantos heroicos policiais americanos, incorruptíveis, solitários e durões.
– Os americanos pagam para que lhes contem histórias – defendeu-se Dax Chamber. – Se as histórias forem edificantes, melhor. Sentem que ganharam duas coisas pelo preço de uma. Americanos acreditam na eterna luta entre o bem e o mal e não se pode fazer nada a respeito. Por isso, tenho de dar aos meus leitores um sujeito que derrota os bandidos. Se esse sujeito for honesto, melhor.
– E nisso onde fica o prazer da leitura? – indagou o poeta argentino, francamente indignado.
– Somos puritanos, odiamos a palavra prazer – respondeu o americano. – Ninguém nos Estados Unidos lê por prazer. As pessoas leem para aprender alguma coisa. Querem, pelo menos, ganhar uma frase engraçada para usar na lanchonete, entre uma dentada e outra no hambúrguer de um quilo. Os gregos inventaram a pederastia; os romanos, os impostos; nós criamos a obesidade.
– Basta! – berrou Aroeira, que andava a olhar para uns e outros há uns bons minutos, ao mesmo tempo em que voltou a se sentar. – Estamos aqui reunidos para investigar um assassinato e não para assistir a um torneio de piadinhas desgraciosas.
– Perdoe-me se divago, delegado – disse Bugres. – Mas aqui no Brasil uma palavra puxa outra e, aí, de braços dados, sambando, elas vão formando um animado cordão que se perde na carnavalesca multidão.
– C´um caraças! Que raios! – disse, em voz alta, um sorridente Batota. – O senhor Bugres é mesmo um pândego!
Voltei-me para o português. Demorei a entender por que seu rosto estava duplicado. Dei-me conta então de que eu havia bebido muitíssimo uísque. Eu ainda escutava bem, mas minha visão estava totalmente comprometida.
– Todos os livros se assemelham – filosofou Bugres. – Mas os livros policiais são ainda mais parecidos entre eles do que os demais.
O americano voltou a falar:
– Novelas policiais têm início, meio e fim, alinhavados por um enredo verossímil. Não aceitam malabarismos ou fricotes literários. Apenas contam uma boa história. Se possível, de modo cativante. É isso que modestamente faço.
54 – A fascinante e obscena arte da delação
Sobreveio um longo e pesado silêncio que eu aproveitei para trocar, com bastante dificuldade, a fita do gravador.
Sentados, pensativos, com gestos lentos e pesados os escritores cuidavam, ainda refletindo sobre o que dissera o gringo, de reabastecer seus copos. Pareceu-me que também tentavam sair do pântano de baboseiras literárias em que os afundara o poeta argentino.
Vi Fedorova segurar o balde de prata com as duas mãos e beber sofregamente a água que resultara do derretimento do gelo durante aquela demorada discussão. Parecia tresloucada.
Ao contrário, eu tomei um gole de uísque sem gelo e foi como se engolisse uma acha de lenha, incandescente.
Recompus-me, peguei minha caderneta e escrevi: “O mundo soltou-se das amarras e está flutuando em pleno ar. Os rostos dos escritores são como balões de festa de aniversário que dançam em uma brisa ligeira, mas eu vejo rugas de preocupação em todos esses rostos/balões. O delegado Aroeira diverte-se. Neste momento, parece feliz com o incômodo silêncio que se instalou nesta sala. Talvez esse silêncio faça parte de sua técnica investigativa. Os olhos do delegado Aroeira vão de um escritor a escritor à procura do mais vulnerável entre eles”.
Ergui depois os olhos ao escutar um rumoroso e demorado pigarro.
O tal pigarro pertencia ao delegado Aroeira, que voltou a discursar:
– Estou acostumado a interrogatórios, mas até hoje não participei de outro tão interessante quanto este. Aqui, temos comida e bebida à vontade. Em geral, na delegacia, deixo meus interrogados à míngua. Não dou a eles nem pão nem água. Aqui, hoje, reina um clima de cordialidade. Ainda não se ouviu, por exemplo, o estrondo de um tabefe. E eu ainda não soltei um palavrão cabeludo. Cabe uma pergunta: por quanto tempo eu me manterei, aqui, hoje, gentil e cordato?
Todos ali conheciam suficientemente a língua portuguesa para perceber, afinal, a ameaça embutida naquela última frase.
Bruscamente, Aroeira voltou-se para mim e me interpelou em voz alta:
– Gaúcho, é verdade que você gravou tudo o que foi dito aqui hoje?
Embora quase batendo com a testa na mesa, concordei com um gesto afirmativo de cabeça. E, com um dedo incerto, apontei para o gravador que estava à minha frente, ligado.
– Muito cuidado com este gravador, gaúcho – continuou o policial. – As fitas por ele gravadas serão fundamentais para a minha investigação. Digo mais: por causa delas, você certamente se transformará no alvo preferencial de um provável segundo assassinato.
Inundado pelo uísque, eu nem tinha condições de avaliar o risco que corria. Mesmo assim, com uma piscada de olhos, naquele momento estrábicos, voltei a concordar com o policial. Talvez por inércia.
Aroeira continuou:
– Então, gauchinho, antes que esses camaradas almocem você, faça com que eles sejam o meu jantar. Denuncie-os.
Abri os olhos de espanto. Lutei bravamente contra a quase impossibilidade de mover minha mandíbula, mas acabei saindo vencedor na luta contra ela:
– Não percebo exatamente onde o senhor deseja chegar, delegado – falei, com voz pastosa.
– É simples: dedure os escritores. Conte-me o que eles falaram de comprometedor. Eu levaria muito tempo para ouvir as fitas do seu gravador. Mas você é um jornalista e todos os que exercem esse ofício estão sempre atentos aos deslizes dos outros. Para, é claro, melhor poder destruí-los ou difamá-los depois. Você também deve ter registrado muita coisa interessante com esta sua caneta perversa. Vamos, meu filho, exerça agora a obscena e fascinante arte da delação.
Acho que os meus neurônios demoraram a perceber o convite para passar da nobre arte de desinformar o público para a velhaca artesania de informar a polícia.
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).
Héctor Abad Faciolince (tradução: Margarida Amado Costa)
Editora (Edição)
Alfagura (Outubro de 2023)
Cotação
18/20
Recensão
Aqui. Hoje.Já somos o esquecimento que seremos.A poeira elementar que nos ignorae que foi o rubro Adão, e que é agoratodos os homens, e que não veremos.Já somos na tumba as duas datasdo princípio e do termo. O caixão,a mortalha e a obscena corrupção,os triunfos da morte e as endechas.Não sou o insensato que se aferraao mágico som de seu nome:penso com esperança naquele homemque não saberá quem fui sobre a Terra.Sob o indiferente azul do céuesta meditação é um consolo.– Jorge Luís Borges
Este livro deve o seu título a um verso deste belíssimo poema de Jorge Luís Borges (associado a ele há uma polémica interessante que pode ser lida aqui) que o pai do autor trazia, em manuscrito, no bolso, juntamente com uma lista de ameaçados de morte na Colômbia da época, e que foi salpicado de sangue no dia em que o assassinaram, a sangue frio, na rua, quando se dirigia ao velório de um amigo.
Somos o esquecimento que seremos é um retrato íntimo de uma família, e descreve uma relação onde pai e filho se idolatram mutuamente; onde o filho mais do que justifica a sua adoração pelo progenitor, mas que parece nunca perceber o que leva o pai a confiar e a gostar de si tão incondicionalmente. Em que o pai é personagem principal e o filho lhe presta um maravilhoso tributo por ter sido, como homem, a todos os títulos, um ser superior. Diz o autor, logo na primeira página:
“O menino, eu, amava o senhor, seu pai, acima de todas as coisas. Amava-o mais que a Deus. Um dia, tive de escolher entre Deus e o meu pai, e escolhi o meu pai.”
E, de facto, trata-se de um amor filial enorme em que o autor, único filho rapaz, numa casa cheia de irmãs e outras mulheres, desenvolve numa relação íntima, visceral, com o pai e que não é muito comum ver-se.
“Eu gostava do meu pai com um amor que nunca mais voltei a sentir até ao nascimento dos meus filhos. Quando estes nasceram, reconheci-o, porque é um amor igual em intensidade, embora diferente e, de certa maneira, oposto.”
A 25 de Agosto de 1987, o pai, o médico colombiano Héctor Abad Gómez é assassinado por paramilitares em Medellín, uns dias antes de umas eleições em que era um dos candidatos. Seis balas na cabeça puseram fim a uma vida de luta contra a opressão e a desigualdade social, num país amordaçado pelo narcotráfico e pela política suja.
Este é, pois, um livro dedicado às memórias, ao pai e a uma época conturbada e de crescente violência política na Colômbia dos anos de 1970 e 80. Duas décadas depois, o filho, um dos mais prestigiados autores da Colômbia escreve esta obra-prima.
Médico de profissão, o pai de Hector dedicou-se a lutar contra a falta de oportunidades iguais num país mergulhado em violência, desigualdades sociais e violação constante dos direitos humanos. Entre diversos episódios – uns caricatos, que arrancam sorrisos; outros comoventes, capazes de nos levar às lágrimas -, somos apresentados à sociedade colombiana e a outros modos de vida.
“O meu primeiro contacto com o sofrimento não foi em mim, nem em minha casa, mas nos outros, porque, para o meu pai, era importante que os filhos soubessem que nem toda a gente era feliz e afortunada como nós e parecia-lhe necessário que conhecêssemos desde crianças o padecimento, quase sempre devido a desgraças e a doenças associadas à pobreza, de muitos colombianos.“
Do relato verídico contado na primeira pessoa, tecem-se considerações detalhadas (e polémicas) sobre o papel da religião católica na América Latina. Também as correntes políticas — comunismo, socialismo, liberalismo e conservadorismo — têm um destaque primordial, bem como os conceitos de «esquerda» e de «direita», essenciais para a compreensão de todos os factos descritos por Héctor.
É uma história densa e comovente, desprovida de lugares-comuns. É a história de uma dor que cicatrizou, mas que prevalece. De uma memória que permanece pela força das palavras e que quer evitar o esquecimento de um humanista que viveu em prol dos outros, e para uma sociedade mais livre e justa. E ainda o principal responsável pelo filho que educou e que sempre incentivou:
“Creio que o único motivo por que fui capaz de continuar a escrever todos estes anos e de entregar os meus escritos à imprensa foi saber que o meu pai teria desfrutado mais do que ninguém com a leitura destas páginas minhas que nunca pôde ler. Que não lerá nunca. É um dos paradoxos mais tristes da minha vida: quase tudo o que escrevi foi escrito para alguém que não me pode ler.“
É um belíssimo livro que não se esquecerá facilmente.
Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…
… em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira
49 – Os melhores pesadelos são os pós-prandiais
Batota interpôs-se entre Bugres e o delegado. Pensei, de início, que pretendia proteger o argentino. Depois apontou seu dedo gordo na minha direção. O danado do utente de comboios vai me denunciar de algo, pensei com os meus botões e com as casas em que eles estavam enfiados.
– Senhor delegado, aqui este jovem jornalista tem o tal bilhete que, aliás, foi escrito em português.
Levei um susto. Nem lembrava mais do tal bilhete. Estupidificado, atrapalhado, tateei os bolsos à procura dele. Finalmente, puxei por ele, já amarrotado.
– Leia! – ordenou o delegado.
Limpei a garganta e li com voz incerta:
– Durante o Congresso, eu te desmascararei, Miguela: apontarei os trechos dos vários livros que plagiaste ao escrever O touro maltês.
– Tem assinatura? – perguntou o policial.
– Só uma letra, maiúscula, um S – respondi.
Aroeira dirigiu-se a Bugres:
– Por que o senhor escreveu em português? Por que não escreveu na língua que compartilhava com a defunta?
– Ora, porque, se escrevesse em espanhol, não resistiria à tentação de construir frases elegantes, que acabariam me denunciando. Utilizando-me de uma língua primitiva, no caso, o português, fui obrigado a ser quase grosseiro.
Indignado com a ofensa à última flor do Lácio, Batota levantou-se bruscamente. Seus olhos lampejavam uma raiva atroz, mas que não intimidou o conterrâneo de Carlos Gardel, claro. Porém, é certo que o menestrel dos punhais e labirintos captou integralmente a fúria que, a seguir, veio entranhada na voz do lusíada:
– Língua primitiva é essa coisa a galope que vocês falam. Na Argentina, todos falam como se fossem locutores de corridas de cavalo. Como ousa tamanha ignomínia!
Até a mim o Batota surpreendeu a seguir. Fulo da vida, o português apanhou no prato um resto de bife, que jogou contra o escritor portenho. Atingido pelo sangrento projétil no rosto, Bugres, lenta e gravemente, limpou-se com um lenço imaculado. E, depois de passar a ponta da língua pelo lenço, disse:
– Que desperdício! Mas, vendo bem, era carne uruguaia, entrecot de segunda. E o animal, provavelmente, estava com febre aftosa. Da próxima vez que tentar me matar, por favor use um legítimo bife de chorizo argentino.
Alguns escritores ensaiaram uns risinhos, mas Aroeira os calou com um olhar gélido. E, depois, indagou do autor de História universal da infâmia:
– Mas afinal onde o senhor aprendeu tão bem o português?
– Minha querida mamãe leu para mim, mais de dez vezes, Os Sertões, de Euclides da Cunha – respondeu Bugres, sorrindo.
– Voltemos ao nosso crime. Não lhe passou pela cabeça que dona Miguela poderia levar um susto fatal ao ler o bilhetinho?
– Não, de modo algum.
– Mentira! – explodiu Batota, e deu um tapa de mão aberta na mesa. – O porteiro do meu hotel ouviu quando o senhor sugeriu a dona Miguela que lesse o final do Apocalipse após o almoço.
– Porteiros de hotéis são sempre abelhudos! Admito, sim, que sugeri a Miguela a leitura do Apocalipse, após o almoço. Mas só o fiz porque julgo que o livro sagrado é aquele que proporciona os melhores pesadelos pós-prandiais. Aliás, por falar nisso, é importante registrar aqui que os sonhos ruins das tardes são mais apavorantes que os noturnos. Portanto, são sonhos mais proveitosos, literariamente falando. Ou seja, eu só queria ajudar Miguela.
– Mas por que o senhor assinou com a letra S? – indagou, no entanto, Aroeira, levantando-se.
– Porque é a nona letra do meu nome. E o nove, na mitologia pérsica, corresponde ao semideus do pesadelo, Hilomeus Katrei, o Nove Dedos, meio homem, meio tigre.
A resposta não satisfez o delegado que, movendo a cabeça de um lado a outro, negativamente, deu uma volta inteira, teatral, ao redor da mesa.
– O seu bilhete é crudelíssimo – disse o policial. – Criminoso, eu diria. Ele seguramente desencadeou o enfarto que matou a nossa escritora.
Um silêncio constrangedor desceu sobre a mesa. Estranhamente, por mais de um minuto, chafurdamos nele até que Bugres resolveu reagir:
– Não gostei do emprego da palavra seguramente, delegado. Não temos o direito de ser peremptórios. Nem mesmo quando aquilo de que estamos falando se passou diante do nosso nariz. Entre um fato e sua enunciação, mesmo que simultânea, há um abismo colossal. Assim, se for facultado ao senhor o emprego da palavra seguramente, eu terei direito a retrucar usando a expressão de modo algum. E com isso, ambos, teremos razão, em um ou em outro momento.
50 – Prova não tem importância no Brasil
Satisfeito consigo mesmo, encantado por estar embromando o policial, o poeta portenho não conseguiu esconder o sorriso maroto que lhe veio ao rosto.
Depois, ao fim de um demorado pigarro retórico, continuou:
– Sua tese do bilhete fatídico é interessante, delegado, porém falsa. Admitamos que Miguela leu o bilhete e que, em função dessa leitura, tenha sofrido um enfarte. Mas, aí, eu lhe pergunto: como poderá o senhor provar cientificamente que há uma ligação direta entre dois fatos de natureza distinta: a leitura, que é algo espiritual e elevado, e a morte, que é um fato físico, rasteiro e sem transcendência.
O delegado, que mantivera a cabeça abaixada enquanto o poeta falava, ergueu bruscamente o rosto e contra-atacou:
– O senhor tenta erguer aqui uma barricada verbal para fugir à Justiça brasileira, mas não conseguirá se safar. Isso eu lhe garanto. O Brasil é um país de amantes da palavra falada. Praticamos com gosto uma algaravia mestiça mais vigorosa e doce que o idioma original. Mas, essencialmente analfabetos, odiamos a palavra escrita porque ela permite e propicia enrolações, como a que o senhor está encenando aqui.
– Que tenho eu a ver com essa inclinação brasileira pelo analfabetismo?
– Tudo! – grunhiu o delegado. – Indiciado por mim, o senhor será levado a júri. No Tribunal, prestarei um depoimento emocionado contra o senhor. Os jurados acreditarão em mim porque sou brasileiro. O senhor, estrangeiro, será considerado o culpado.
– Mas e as provas? – indagou Bugres, assustado. – Onde ficam as provas nesse hipotético julgamento?
– No sistema judicial brasileiro provas não têm muita importância. Ao começar meu pronunciamento, direi que o senhor é argentino. Imediatamente os jurados farão uma ligação com o futebol e…
– Mas eu odeio futebol! – gemeu Bugres. – Escrevi isso repetidas vezes.
A preocupação do poeta era já, neste momento, visível nas suas sobrancelhas, ainda mais espetadas que o pelo de um gato que acorda em meio a um pesadelo. Comecei sentindo pena dele. Nós, gaúchos, somos treinados, desde o berço, a odiar os argentinos. Diz o ditado: com sino, menino e argentino, só na pancada! Quase comovido, resolvi intervir em favor dele:
– Doutor Aroeira, acho que o senhor Bugres estava brincando quando escreveu que dona Miguela era uma plagiária contumaz.
51 – Autores emprestam seus defeitos aos personagens
Detectando a solidariedade e a cumplicidade das minhas palavras, o escolhido das musas voltou a falar, corrigindo-me:
– Na verdade, nenhum livro está isento de plágio, no todo ou em parte. Gênios ou escritores de quinta categoria, nós só rabiscamos pastiches do livro infinito que foi, está e estará sempre sendo escrito pelos deuses. Quem se utiliza da palavra escrita, recorre a um único e inesgotável manancial de símbolos, que é do uso também das divindades. Em contrapartida, os deuses nos exigem moderação…
– Saia do labirinto! – berrou Aroeira. – Esqueça os deuses e volte ao plágio.
Nervosas e assustadas, as mãos do argentino tamborilaram dramáticos trechos de um tango no tampo da mesa. E, só depois desse espetáculo digital, ele voltou a falar:
– Sim, o plágio! Descendo à linguagem mais rasteira, delegado, eu diria que a ambiguidade sexual do detetive Juanito Saavedra, de O touro maltês, parece ter sido copiada da discreta afetação feminil de Herculano Poire, o detetive criado por Águeda Christine.
Depois de um suspirado oh! de espanto, todos os olhares se voltaram para a escritora inglesa, que piscou os olhos, piscou, piscou, mas nada falou.
Continuou o poeta:
– De outro lado, Juanito Cervantes também lembra Jales Maigrot, o comissário inventado por Georges Sim Et Non. São semelhantes na estupidez. Indago: teria Miguela de Alcazar calcado seu herói no de Sim et Non? É possível, mas sabe-se também que, quase sempre, autores buscam na própria mente os defeitos que emprestarão aos seus personagens…
– Seria por isso, meu irmão, que Dom Isidoro Paródia é tão pedante? – perguntou Sim Et Non. – Seria esse teu detetive, inverossímil e livresco, um resumo de toda a obra escrita por tu?
As bochechas chupadas do autor francês estavam vermelhas e tremiam, raivosas.
Já o argentino tentava aparentar calma, mas a agitação histérica de suas sobrancelhas o desmentia. Como se sabe, ele tinha muito orgulho de ter criado Dom Isidoro Paródia
Fechando as mãos e alçando os ombros, como alguém que vai entrar em um combate corporal, Bugres voltou a cuspir veneno:
– Eu diria ainda que os trechos mais ridículos de O touro maltês lembram as passagens mais banais de Contravenção e penalidade…
– Banal é a senhora sua mãe, aquela quenga da peste! – berrou Fedorova e fez menção de levantar-se. Mas não conseguiu. A provisão de cachaça que armazenara no bucho a puxou para baixo e a fez sentar-se novamente. Furibunda, acrescentou: – Espero que você arda para sempre no círculo dos baitolas no inferno, castelhano filho do cão!
Sem se abalar com a gritaria da russa, o poeta de Buenos Aires despejou outra dose de peçonha:
– Se pudesse falar, sem ser interrompido por grunhidos, eu afirmaria ainda que os mais tediosos trechos de O touro maltês guardam forte semelhança com as mais áridas passagens de Guerra na Praça da Paz Celestial.
Voltamo-nos todos para o escritor chinês, que abrindo um pouco mais o permanente sorriso e fechando, em idêntica proporção, os olhos, declarou:
– O tédio é estado em que um espírito cultivado permanece a maior parte do tempo. O que há de mais grandioso na terra? O deserto. O deserto é a metáfora perfeita para a aridez de nossas vidas. O deserto é o nada e o nada é o vazio. De que está cheio o vazio, meu? De tédio. Leitor culto é o que sabe apreciar os trechos mais áridos de um livro.
As sobrancelhas de Bugres sossegaram por um instante, reconhecendo que o chinês também era bom em frases sinuosas.
Nisto, olhei para o Batota e para o delegado que assistiam a estes bate-bocas como se estivessem acompanhando a partida final de um torneio de tênis.
(cont.)
Sobre os autores (actividade literária)
Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.
Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).
Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize Represados clarões, cromáticas vesânias No limbo onde esperais a luz que vos baptize
As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis
Camilo Pessanha
POEMA FINAL
in CLEPSYDRA (1920)
A SABEDORIA PERDEU-SE, OU ENTÃO AINDA NÃO CHEGOU
Graças a Deus, no meio do ruído de fundo de toda esta confusão e do cruzamento descoordenado de todos estes polegares, de vez em quando ainda conseguimos encontrar alguém que, mesmo que inicialmente não consiga recordar bem porquê, sinta um sobressalto quando ouve mencionar o ano 79 d.C.
Não é caso para menos.
O ano 79 da nossa era é um ano carregado a negro na memória colectiva da civilização ocidental. Foi quando, nos dias tranquilos do início do Outono, a erupção do Monte Vesúvio congelou para sempre debaixo da cinza, em menos de um minuto, todo o esplendor e o requinte das cidades romanas de Pompeia e Herculano, onde viviam cerca de vinte mil pessoas.
Foi um dos cataclismos vulcânicos mais violentos de que temos conhecimento na Europa. A nuvem de gazes superaquecidos que saiu da chaminé do Vesúvio elevou-se no ar até uma altitude de 33 quilómetros, projectando a toda a volta rocha derretida, pedra-pomes, e cinza a ferver, a um débito de 1.5 toneladas por segundo – o que deverá ter correspondido a cem vezes mais do que a energia térmica dos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki.
Enquanto toda esta catástrofe monumental acontecia, ia um barco a passar ao largo com um viajante muito especial a bordo.
O homem que havia de condicionar o nosso pensamento em relação ao mundo real e mágico que nos rodeia chamava-se Plínio, e era o autor do famoso HISTÓRIA NATURAL. O seu livro, a todos os títulos inesquecível, era um enorme manual de Biologia composto antes da Biologia ter nome, o compêndio de descrição do mundo vivo pelo qual toda a gente jurava. Os parágrafos começados por “Muitos autores garantem, segundo Plínio…” abundaram na literatura europeia até ao fim do século XVII, encaixando-se com bastante facilidade nos novos paradigmas da Revolução Científica. Incansável, extuante de energia, Plínio estava ali em mais uma viagem de exploração. Viu o Vesúvio explodir na costa, e ordenou imediatamente ao comandante que se aproximasse. Queria ir estudar os fenómenos vulcânicos mais de perto. Imaginem, a explosão do Vesúvio na mente do século I DC.
Plínio morreu nesse dia, envenenado pelos gases tóxicos do vulcão.
É verdade que o seu HISTÓRIA NATURAL nos oferecia uma Biologia cheia de uns milagres e uns prodígios que já não cabem nesta que conhecemos hoje[1]. A título de exemplo, já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito; e a prova disso é que já nenhum marido amarra com toda a força um cordel à volta do testículo esquerdo antes de copular com a esposa, para ter a certeza de que a insemina com a seiva do testículo direito, e que, portanto, vai ter um rapaz[2]. Já ninguém acredita que o sangue menstrual consegue, “só com a sua presença,” operar sortilégios tais como embaciar os espelhos, enlouquecer os cães, fazer murchar as plantas verdes, azedar as sopas, enferrujar o cobre, tirar a força ao ferro, e assim por diante. Mas muitos autores medievais e renascentistas limitaram-se a evocar Plínio para darem mais credibilidade às suas teses – o que, por sua vez, mostra bem o respeito enorme que a sombra do autor da primeira HISTÓRIA NATURAL projectava sobre a mente europeia. E ressalve-se, também a título de exemplo, que Plínio foi dos primeiros a descrever, e com bastante minúcia, a técnica dos egípcios para incubar os ovos de pinto durante três semanas debaixo de estrume de cavalo – e esta técnica, que parece também ela tirada de uma qualquer fábula exótica, foi usada, pelo menos, até ao século XX[3].
E, evidentemente, não há nada capaz de impedir o mundo vivo de estar literalmente pejado de maravilhas que não podiam ser mais reais, mais verdadeiras, mais cientificamente demonstradas – e, por isso mesmo, mais incrivelmente maravilhosas.
Nesta minha apresentação do prazer que me é tão próprio que acabou por tornar-se parte integrante de mim, o prazer de falar aos outros das coisas da Natureza, deixem-me começar por protestar que não sou, de maneira nenhuma, o único autor ocidental sensível ao charme e ao conforto dos lugares-comuns. Com a sua tranquilização instantânea e gratificante de vestuário já usado ou calçado muitas vezes[4], os lugares-comuns podem ser úteis no fio condutor de certas histórias. E é exactamente por isso que aqui estão, a pôr em perspectiva tudo o que vem a seguir.
As coisas passaram-se assim, por ordem de entrada em cena.
Ao desenvolver o lobo frontal do cérebro, uma arma mortífera ausente em todos os outros seres vivos, o homem vê-se obrigado a pensar. O pensamento é a invenção mais perversa de toda a Evolução. Só porque os seus neurónios se multiplicam e se ligam de uma forma especial e desconhecida, o pobre primata gabro, sem presas nem garras, começa a precisar de triunfar sobre a sua angústia perante todo o vazio cognitivo que o rodeia e o intimida. Século após século, mamute após mamute, mistério após mistério, esse vazio vai-se limpando como quando um nevoeiro denso se vai tornando cada vez mais fino. São destes primeiros esforços que nascem as histórias capazes de explicar o que são as fogueiras que aparecem no céu durante a noite, de onde vem aquele disco tão brilhante, que, de repente, vai subindo pelo ar e modificando todas as cores e odores no seu trânsito diário de um lado ao outro do horizonte, que dança estranha é aquela que esse disco maior faz com o outro que vem em sentido oposto e ao mudar de forma também muda as marés, e mais, e muito mais.
É assim que o primeiro esboço de pensamento vai deslizando para fora de todas as ignorâncias urgentes, e, em consequência, é assim que começa a delinear-se um mínimo de mapa primitivo que nos permite pôr tudo o que dantes não tinha nome em perspectiva, estruturando pela primeira vez, num deslumbramento feliz, todo o que conhecimento que herdámos dos primeiros sábios. E é assim que, no decurso desse primeiro preenchimento progressivo do vazio, acaba por nascer aquilo a que hoje chamamos mitologia.
Essa mitologia, no entanto, é-nos legada em sagas e épicos que são por natureza construídos em estrutura de hipérbole interminável, além de padecerem de um excesso metafórico com uma leitura que fica de todo em todo fora do alcance do comum dos mortais. Por isso mesmo, a linguagem seguinte que a nossa espécie constrói para ler o mundo destina-se a libertar-nos dos oráculos. Trata-se, agora, de tornar as primeiras sagas e os primeiros épicos acessíveis a todos os humanos, desde que sejam crentes ou se vão deixando iniciar iniciar enquanto tal. E é por isso mesmo que, com a passagem do tempo, essa mitologia inicial começa a oferecer-nos uma semelhança do mundo que se conta em muito menos palavras, e que já conseguimos dominar muito melhor.
Este novo domínio é estruturado lentamente em torno das alegorias construídas para explicar tudo o que nos barra a passagem com a sua faceta inexplicável. Quanto mais entendemos o que nos rodeia, mais se vai transitando, em todo o mundo, e numa panóplia riquíssima de dares e tomares, para aquilo a que agora chamamos religião.
E, agora sim, de posse desta nova forma de crença, já não há fenómeno natural que não possa ser entendido pelos iluminados[5] e explicado sem esforço à turbamulta das multidões.
No final do percurso, há, ainda, uma terceira transição que se baseia em todo o nosso saber mais complexo que se foi acumulando ao longo do caminho. O vazio que encheu os primeiros homens de curiosidade e de temor vai-se preenchendo de uma forma cada vez mais clara, mais útil, mais eficaz para a sobrevivência humana – e tudo isto se regista numa sequência cada vez mais rápida e mais rica em dilemas impossíveis de sonhar sequer poucos séculos antes.
Em relação às outras duas, esta terceira mudança dá-se quase num piscar de olhos. E, pela primeira vez na nossa semelhança do mundo, está baseada em estudos tão matematicamente afinados, e também tão universalmente comprováveis, como, por exemplo, as investigações de Newton sobre os poderes da gravitação universal. Era uma força tão perfeita, e pelo que se compreendia tão fantasticamente eterna, que foi tomada pelo próprio autor desta primeira física universal como a face visível de Deus.
escreveu Alexander Pope como epitáfio para o seu amigo, que, quando falou pela primeira vez da Gravidade no seu PHILOSOPHIAE NATURALIS PRINCIPIA MATHEMATICA[7], geralmente referido apenas como PRINCIPIA, se referiu bastante mais à Bíblia do que à Matemática, e bastante mais aos Profetas do que à Física[8]. Toda a fina flor do Século das Luzes concordou com ele, as traduções do PRINCIPIA para várias línguas europeias feitas por grandes nomes da época foram imediatas, incluindo o famoso NEWTON PARA SENHORAS, financiado pela incansável filantrópica científica Madame de Châtelet[9], que depois inspirou vários autores a escreverem livros simples sobre a Gravitaçãoo Universal que não exigissem grandes conhecimentos de Física ou Matemática[10]. E algum europeu culto poderia sentir-se mais iluminado do que pensando pertencer ao grupo daqueles que, por fim, haviam sido capazes de encontrar e entender a forma como Deus se mostrava à humanidade?
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] Sei lá, mas assim de cabeça. Já ninguém pensa que as mulheres nascem do testículo esquerdo e os homens do testículo direito, porque o esquerdo é mais pequeno e “mais fraco” do que o direito. Já ninguém acredita que o sangue menstrual
[2] Bem, era só um “conselho aos casais.” Mas os médicos repetiram-no até ao dealbar do século XVIII.
[3] Tomem lá fresquinho. É uma pena não sabermos se os egípcios das paragens mais remotas ainda incubam os ovos dos seus pintos desta maneira. Provavelmente sim. Houve muita coisa bonita que deixámos de saber devido à estupidez da nossa arrogância “moderna”. Infelizmente, muitas vezes esta arrogância é considerada “científica”. Bem, pelos meus pecados, e pela parte que me cabe, eu juro que não.
[4] Estou a parafrasear qualquer coisa já escrita antes pelo Agualusa, embora o original dele fosse bastante mais poético do que o meu.
[5] Mas note-se, estes iluminados já não são oráculos. Na modéstia enorme que lhes cabe, como a modéstia que cabe ao Papa, são apenas oficiantes. Pedimos-lhes apenas, que sejam bons, leais, justos e rectos. Não lhes pedimos que vejam coisas nem que oiçam vozes. Essas pessoas são hoje consideradas esquizofrénicas, e os bons esquizofrénicos já nem sequer existem. A medicação funciona.
[7]OS PRINCÍPIOS MATEMÁTICOS DE FILOSOFIA NATURAL. Editado originalmente em 1687
[8] Esta seria, aliás, a reacção a esperar à luz do pensamento da época, segundo o qual quanto melhor conhecêssemos o funcionamento da Natureza melhor conheceríamos a imensidão dos poderes divinos.
[9] E tanto amante quanto inspiradora de Voltaire, que compôs diversos trabalhos na mansão de de campo que a senhora mantinha nos arredores de Paris e à qual dera o nome deveras apropriado de LE JARDIN DES DÉLICES, mas enfim – não estamos aqui para escrever colunas sociais da !HOLA!, ao melhor estilo “la cantante nos recibe en un rincon de tranquilidad de su finca”, mesmo que disfarçadas sob o manto diáfano da informação interessante. No entanto, de entre este grande manancial dessas informações, do NEWTON PARA SENHORAS a várias entradas de L’ENCYCLOPÉDIE, convém não nos esquecermos que foi exactamente durante uma das suas estadias no LES DELICES que, em 1755, na manhã do dia 1 de Novembro, que Voltaire soube das catástrofes vindas da terra, do rio, e do fogo, que acabavam de dizimar aquela que era à época a cidade mais rica da Europa, e compôs em estrofes heróicas o devastador POÉME SUR LE TREMBLEMENT DE TERRE DE LISBONNE, que ainda hoje muitos historiadores consideram o grande marco do fim do Optimismo, e do seu lema “tudo corre bem no melhor dos mundos possíveis.”
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Os números são assustadores: um estudo recente da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto revelou que um em cada cinco estudantes do ensino superior lidam (e obviamente mal) com o vício do jogo. E esse problema atinge mesmo faixa etárias mais baixas: 5% das crianças de 13 anos já se envolvem em jogos online com dinheiro, segundo dados do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). Os pedidos de ajuda de jovens dependentes também aumentam e as idades de novos jogadores nunca foram tão baixas: só no ano passado, 40% dos novos jogadores registados nas plataformas de jogo online tinham entre 18 e 24 anos.
Todo este cenário é alimentado por um negócio que gera milhões de euros, desde os impostos arrecadados pelo Estado – que atingiu a marca de 280 milhões de euros apenas no primeiro semestre de 2023 – até os montantes recebidos pelos meios de comunicação social e figuras públicas para promover essas plataformas. Para contextualizar, em 2023 os portugueses chegaram a apostar uma média diária de 38 milhões de euros em jogos online.
Contudo, toda esta riqueza contribui também para fomentar um silêncio (demasiado) comprometedor sobre este vício e os seus efeitos catastróficos, económicos, sociais, individuais. Numa clara discrepância com a realidade em Portugal, o Governo de Espanha decidiu agir nos últimos anos, proibindo os patrocínios e publicidade a casas de apostas ou jogos de azar, com excepção para os anúncios durante um curto período da madrugada. Uma medida que pretende atenuar os impactos negativos do jogo, sobretudo entre os mais jovens.
Mais do que uma simples música, “Vícios” é assim uma oportunidade, a minha oportunidade, para ajudar a reflectir sobre este (nosso) problema social, bem real e muito urgente, que já deixou de ser apenas emergente. Pode afogar-nos.
Este é também o meu contributo, expresso através da minha arte, sobre um tema que me tocou e toca profundamente. Agradeço, por isso, a todos aqueles que dedicarem uns breves momentos para ler estas palavras, pedindo que partilhem esta mensagem. Ajudem a quebrar o silêncio, dando voz a um problema.
Letra
Vícios, by Estraca
Perdido nas insónias fico noite dentro penso no vício que se torna no meu alimento comportamento sem controle e arrependimento nem a minha força de vontade já é suficiente
e eu só lamento e digo basta por breves instantes já sem planos, recaídas viraram constantes alucinantes emoções tornaram-se viciantes a adrenalina e depressão os meus acompanhantes
isto nunca fez sentido mergulhei na fraqueza sem ter percebido ha yo, desculpa, eu não consigo partilhar contigo aquela dor que eu aprendi só a partilhar comigo
tão reflicto, penso na cota e o que eu prometi dar-te o descanso nesta vida e mostrar que eu consegui é em ti que eu penso sempre que eu me sinto a fugir de mim e por ti me encontro, ganhei forças sempre que eu me perdi
todo o homem cai, não há vergonha disso é saber levantar, assumir compromisso fica longe desse vício, longe desse vício todo o homem cai, não há vergonha disso mais forte a cada dia, escrevo um novo início vive longe desse vício, longe desse vício
terra da tentação onde o diabo vive triste quando te apercebes que nunca foste livre preso a vícios que te vendem, e onde eu preso tive mesmo rijo, eu perdi o sentido do meu real motivo
peço desculpa pelas mentiras o medo e a vergonha nas atitudes escondidas fingidas as palavras da alegria que tu vias tentativas são falhadas com ideias suicidas
acreditas? sei que pareço forte mostro sem coragem, foco passa o tempo eu já nem noto e quando acordo já só peço que bom tempo antigo volte hoje eu assumo a fraqueza e faço dela o meu suporte
este é o meu lado fraco na verdade, abençoado ao pensar como esta história podia ter acabado desabafo ao som das estrelas e dou vida ao teu recado apenas umas linhas do que eu escrevo mas não gravo
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