Categoria: Correio Mercantil

  • Francisco, que subiu a partir do berço pensando ser do braço

    Francisco, que subiu a partir do berço pensando ser do braço

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Francisco Pedro Balsemão, no decurso da sua entrevista na SIC.


    As senhoras leitoras e os senhores leitores certamente já se depararam com figuras de incomum bravura, invulgar destreza e inabalável audácia, e que, sagazes e bem capazes, superam as agruras mais terríficas e os mais temíveis obstáculos, contrariando a má sina que sempre os quis arredar do sucesso.

    Está esse vosso mundo pejado desses heróis, alguns aqui ao meu lado, que, arremessados contra o rochedo da adversidade, se soergueram, depois, altivos e, claro, triunfantes.

    Não me é agora mister enaltecer tais personagens dignas dos versos de Camões, porque, recentemente, na ocidental praia Lusitana, ali nos arredores da Quinta da Marinha, se agigantou um espécime mui nobre de fauna humana que coloca rasteiros os voos das águias.

    “De parcas vestes e incomuns percursos”, poderá algum ingrato murmurar à entrada, “será, porventura, este seu, ou nosso, herói oriundo de estirpe modesta?”. Ah, se tal fosse o caso, a história seria menos trágico-cómica e somente heróica!

    Não. Nem sempre as proezas se medem pela superação do braço; também há o capricho do berço, embora o nosso herói, que já agora posso anunciar-vos a nominata – Francisco –, se arraste mais hoje cavalgando um império, outrora brilhante nos fastos da imprensa nacional, em espasmos de uma falência semi-escondida por cortinas de retórica.

    Mas que importa o sol, a treva, a sombra – como clamava o meu patrício Augusto dos Anjos, que se finou aos 30 anos.

    Ou então, como gritava o Álvaro de Campos, alias Fernando Pessoa, na sua Ode Triunfal:

    Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

    Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

    Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?

    Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,

    O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,

    O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,

    O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes

    Interessa sim saber que Francisco, meu caro leitor, nasceu envolto nas alvas sedas de uma cuna que não soube senão exalar opulência. Desde a mais tenra idade, o rebento do grande barão dos media lusos, fugaz primeiro líder de um governo da Nação, teve a primazia de comungar com o mundo através de cruzeiros exóticos e outras viagens oníricas que lhe moldaram, por certo, um espírito cosmopolita. “Ainda me lembro de Gilbraltar, do Estreito de Messina e de Corfu”, recorda-nos o jovem herdeiro, qual Ulisses lusitano, parafraseando Homero e a encher o peito com reminiscências dos seis anos de idade, quando a Ryanair, a EasyJet e a Vuelling não faziam ainda voos ao preço da uva mijona, e ainda nos tempos em que havia gentes de Trás-os-Montes que nunca tinham visto o mar.

    Francisco Pedro Balsemão, CEO da Impresa.

    Disso, porém, convenhamos, não é já atributo invejável, nem guardar berlindes em casa, mas, digam-me, desafio-vos: que outras empresas têm a ventura de acolher um líder tão sabiamente lapidado pelo oráculo das MTV Awards, e que, aos treze anitos, desfaleceu ante a imagem mitológica de Kurt Cobain? Não percebi bem se foi por essas alturas que teve ele uma epifania, não para dedilhar guitarra, ou snifar coca, mas para ser jornalista, iludido por testes psicotécnicos. Ah, inocente embriaguez dos infantes!

    Mas a vida, meus amigos, qual senhora austera, encarregou-se de lhe mostrar outros caminhos – “mais pragmáticos”, como assim descreve o infante Dom Francisco. Na verdade, os tais pragmáticos descaminhos levaram-no até à liderança de um império que, tal qual o de D. Sebastião, há muito se perdeu na neblina do infortúnio. Em que, pois, se distingue este CEO de outros tantos figurões cuja presença é requerida em jantares de gala e conferências desinteressantes?

    Em nada. O segredo, revelado na entrevista ao seu canal televisivo, com o pudor de uma aparente confissão, é uma a rara combinação entre a ‘privilegiatura honesta’ e a ‘humildade aristocrática’, atributo daqueles que, alcandorados à torre de marfim, acreditam piamente que o fizeram pelo seu valor e não pelos genes.

    O meu leitor mais perspicaz poderia aqui questionar-se: “Mas como, caro Brás Cubas, se explica este divórcio entre vocação e realidade? Como se passa de um sonhado jornalista, que nunca se exercitou, para a liderança de um grupo de media outrora imponente, regido ao som de violinos para abafar o afundanço?”

    Aí reside o espírito trágico-cómico, que, convenhamos, até engrandece a narrativa do CEO Francisco: é que ele, na sua irremediável cegueira, nunca verdadeiramente se afastou da verve jornalística. “Sempre quis ser jornalista”, insiste, qual mantra de um desejo inatingível por malignas forças, como se as marés do destino, guiadas pelo sopro paternal, o houvessem deitado à deriva numa inóspita e hostil praia, ou na carreira 1706 que sai de Alfornelos às 04h56 em direcção à Avenida da Liberdade para limpar escritórios, tendo ainda de permeio que mudar para a 746, sem esquecer o tempo para preparar o aconchego de mantimentos na marmita para a criançada dejejuar no Agrupamento de Escolas Fernando Namora, na Brandoa.

    Enfim, em vez da pena afiada do jornalista, coube ao Francisco a desgraça do Excel e da acta, do lay-off e da alienação de activos, da negociação de ‘media partners’ e de contratos comerciais de mercantilização do jornalismo, como quem, a meio de uma peça shakespeariana, se vê obrigado a trocar a falange do herói pela figura patética do bufão.

    Ah, loucura! Na verdade, o nosso herói há muito deixou de se ver ao espelho, enredado que está numa presunção tão ridiculamente inflada que o leva a citar antepassados remotos e fábulas dinásticas. “Não foi por ser filho de quem sou que cheguei a presidente”, reitera o pobre diabo com ar grave e punhos cerrados – estou claramente a exagerar na pose, que um herói sempre é contido –, como quem ousa desafiar o bom senso e a evidência.

    Seria risível se não fosse absolutamente patético. Não fosse, de facto, filho do outro Francisco, e este nosso Francisco nunca teria ao seu dispor a confortável poltrona da falência para vergar as costas.

    Ah, mas não são apenas a desmesura e a soberba que iluminam os nossos risos irónicos; há também a ignorância de um mérito desmerecido, um despudor próprio dos filhos de património que, julgando ter alçado o trono por força de braço, não se enxergam como caricaturas do privilégio. Tem ele agora o Expresso, esse emblema de outra era, subjugado agora ao vil e viscoso prato de lentilhas – vendendo a primogenitura do jornalismo por lugar em comendas menores, por contratos publicitários de conteúdo fabricado, e, sempre, com uma genuflexão reverente ao poder. E tem ele agora a SIC, a nau errante a vagar no pantanoso oceano das audiências, mal distinguindo a esfera do entretenimento do abismo do sensacionalismo rasteiro.

    Francisco, qual moderno Polichinelo, a quem nada é vetado, fez-se grande em bravatas menores; acariciou o ego com os louros do pai; gabou-se de conquistas que nunca suas foram. No fim, toda a ruína, todo o desconcerto, toda a falência, serão justificadas, por certo, com as palavras certas – um léxico arranjado para iludir o senso comum, uma retórica de negação contínua que só poderia exalar de um homem que aprendeu desde cedo a brincar fora de casa, alheio à dura realidade.

    Mas isso sou eu a dizer, porque, entretanto, a mãozinha do Estado está aí para adiar a queda deste decadente império, e para dar oportunidade a que Francisco, embevecido com o reflexo distorcido de virtudes que nunca verdadeiramente teve, ainda se mantenha por alguns anos mais como um Romeu provinciano, crendo-se cosmopolita por ter provado os ralos prazeres de uma discoteca londrina em tempos de juventude.

    Triste fim se anuncia, porém, nesta tragicomédia: veremos, um dia, Francisco, o príncipe herdeiro, filho de deuses, sentado numa casa em ruínas, feito CEO por desígnio de sangue e não por tino, cair com estrondo das alturas – não porque tenha tentado alcançar as estrelas, mas porque acreditou, em sua infinita vaidade, que lá residia.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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  • Que restará das literárias flatulências quando tudo arder?

    Que restará das literárias flatulências quando tudo arder?

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai o prefácio de Valter Hugo Mãe na edição de ‘Os Lusíadas’ em comemoração aos 500 anos de Luís de Camões.


    Ah, vaidade! Essa busca pela validação externa, que nos infla o peito, como se fôssemos balões subindo como Ícaro, embora a terra e seus torrões, e também o ridículo, e não o abrasador sol, nos puxe sempre, nestes acasos e preparos, pela ponta dos pés, cruel e irremediavelmente. Razão tinha Matias Aires, com o seu olhar perspicaz, quando desnudou a Humanidade, não poupando um único felicíssimo vaidoso. Por mais que nos embelezemos, com as roupas mais finas, com as cortesias mais elegantes, com as palavras mais eruditas, somos, no fundo, pouco mais que pavões sem plumas, cacarejando orgulhosos no meio de um chavascal charco.

    Bem sei que, a muitos, é a vaidade que os move, que os faz crer no reconhecimento dos seus conterrâneos e na imortalidade quando estiverem na terra, ou em cinzas. Homem sábio, esse Matias Aires que, apesar de nascido na entediante capitania de São Paulo, já pressentia as risadas que damos diante do espelho, nos ensinou que buscamos incessantemente o aplauso, como se o aplauso dos outros nos convertesse em alguma coisa mais nobre do que o pó ao qual regressaremos. O homem, afinal, é vaidoso até quando finge ser modesto, tal como eu mesmo, que agora declamo sobre vaidade, fingindo estar acima dela – e, no entanto, me comprazendo do exercício da palavra.

    Mas se até eu – um escriba póstumo que só se deu a conhecer quando morto – não estou imune à vaidade, pelo menos jamais poderei ser acusado de superciliosa empáfia, porque já se me tinha ido as sobrancelhas quando à estampa deram as minhas póstumas memórias.

    Ah, mas os escribas vivos! Esses, esses sempre ávidos, esses rastejantes que, não satisfeitos em tropeçar nas próprias pernas, ainda insistem em escalar os ombros dos cadáveres alheios. São criaturas, isso admito, afáveis mas petulantes, quase comoventes, não fosse o espectáculo tão grotesco, tão patético, que nos oferecerem, e que se assemelham àquele bufão de feira insistindo em piruetas para um público que nem sequer é de maus costumes.

    Enfim, eu, que morto estou, sim, meus senhores e senhoras donzelas, defunto com todas as letras e os pingos nos is, vejo-me agora compelido a escrever sobre os vivos que tentam parasitar a fama dos mortos, quais carraças literárias agarradas ao osso do sucesso póstumo.

    Eu, Brás Cubas, que só permiti a minha própria escrita sobre mim mesmo após a conveniente travessia do Aqueronte, ergo-me agora do túmulo, depois de muito capim ter já comido pela raiz, para emitir um aviso. Cuidai-vos, vivos!, cuidai-vos e não vos atreveis jamais a tomar o meu brilho literário para iluminar as vossas estreitas existências, incluindo literárias. E ouso dizer-vos: aquele que se arriscar a tal ofício, receberá mais que um simples peteleco deste espectro insolente que daqui vos fala. Ah, sim! Ficará esse impertinente desditoso com verrugas nos pés, que nem o Miguel Vila Pouca, por muito que José Gabriel Quaresma interceda, será capaz de as arrancar com cinzel, espátula ou qualquer engenhoca do século XXI. Ficará o malandro a coçar os pés enquanto tenta, em desespero, alinhar meia dúzia de ideias que valham a tinta que nelas se gastará.

    Convenhamos, porém, haver algo mais trágico que um simples escritor medíocre: é o bajulador que, com ar grave, tenta elevar-se ao fazer encómios aos maiores gigantes mortos. Ah, como é risível a figura de quem se espreme em exaltações banais, na esperança vã de que, ao tecer loas ao imortal, consiga ele próprio imortalizar-se. Estes medíocres são incapazes do silêncio, de aceitarem ser varridos pelo esquecimento de um modo discreto. Não! Antes, querem empoleirar-se nas costas de um Camões, esperando que o grande Luís, já também sem o olho que lhe restou, os veja, e que, ao contrário do Herberto Helder (poeta pouco dado a abrir uma porta), grite da janela: só aceito o Valter Hugo Mãe a dar-me a mão para eu deixar de ser anão!

    [devo antes escrever valter hugo mãe?]

    Valter Hugo Mãe, vestido e com barbas, antes de prefaciar ‘Os Lusíadas’.

    Ah, dizem-me que o bom do senhor Lemos, valter hugo de nominata, antes de se apodar da mãe (ou do mãe) é escritor de renome, premiado mesmo com o Prémio Saramago – uma láurea que, presumo, serve para enfeitar prateleiras e envaidecer almas pequenas –, e tornou-se famosos por terras de Pindorama desde que, em 2011, chorou em Paraty e causou cachoeira de lágrimas numa plateia. Ainda pensei, de início, que ele tinha cantado, mas afinal, não, só leu mesmo uma carta.

    Confesso-vos que eu, defunto curioso, ou curioso defunto, ainda tentei mas não consegui passar da terceira página de qualquer obra por ele parida. Não foi sequer por estilo, mas por paciência. As suas palavras deslizam diante das minhas desidratadas órbitas, e tudo aquilo me parece um exercício de banalidades. Armado em original, forçando uma profundidade que mal passa de um poço seco, onde nem a mais mísera gota de talento faz eco.

    E o que dizer da sua pose estudada, daquele culto da auto-imagem tão próprio de quem se acha enigmático e especial? O homem fotografa-se em todas as posições possíveis e imaginárias: ora encarando o infinito, ora deitado no chão como um mártir moderno, ora – pasme-se! – nu. Sim, nu, como se a nudez lhe trouxesse alguma dignidade literária. Ainda que prefira a nudez à roupa que o cobre de clichés, nem nu lhe encontro graça. O que hei-de inventar?

    Mas o ridículo (ou a estupidez, tanto faz), como dizia Einstein, segue no infinito, e gostava de saber quem foi a besta que julgou que valter hugo mãe deveria prefaciar a edição comemorativa de ‘Os Lusíadas’ a pretexto dos 500 anos do nascimento do Camões. Ah, só esta ideia bastaria para o grande épico arrancar o segundo olho e atirar-se ao Tejo, em desespero. Como pôde a Porto Editora, em sua suposta sapiência, permitir tamanho desaforo? Leio o dito prefácio, em sete parágrafos – imaginem se fosse em dez cantos – e nem sei por onde começar.

    Estátua de Luís de Camões no Gabinete Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

    Com toda a sua pose, vem ele nos falar de um “espaço imaterial” que nos implica profundamente. Ora, senhor mãe, eu pergunto: quem, neste reino dos vivos e dos mortos, pode levar a sério tamanha verborragia? Espaço imaterial, sim, e o que mais? A nuvem dos sonhos? O sopro etéreo da existência? Tantas palavras ocas, soltas ao vento, que não se agarram a nada, mas que, no entanto, aspiram a ser algo profundo, algo “inesgotável”, segundo o próprio.

    Ah, prezado valter hugo mãe, sois um hábil artífice de frases de efeito, um ourives de máximas ocas, um filósofo das grandiosas metáforas vazias, um alquimista de balofas paremias, um maestro na sinfonia de ampulosas inanidades! Nem sei se a tua pena desliza sobre o papel ou se, de facto, pensas que alças voos tão altos que nós, reles mortais, nos contentamos em admirar a tua sombra.

    Vejamos: escreves que “domar o Adamastor e contar como se domou o Adamastor podem ser grandezas semelhantes.” Ah, sim, claro! Domar monstros míticos e tagarelar sobre isso devem, sem dúvida, estar no mesmo patamar de grandeza! Afinal, nada mais audaz do que vencer uma tempestade atlântica e, logo em seguida, puxar uma cadeira e narrar o feito como quem descreve uma tranquila manhã de domingo no parque. Senti-me quase tentado a domar o meu Adamastor pessoal – quem sabe aquela conta de padaria que nunca quitei.

    E, sobre a arte, esse cofre de tesouros que “quanto por mais gentes se distribui, mais rica se torna”! Oh, valter, valter, que prodigiosa economia inventaste! E eu que, por ignorância, acreditava que o valor da arte residia na sua singularidade, na sua beleza, na sua raridade, sou agora educado por ti! Que fortuna maior há do que ver a arte convertida em moeda corrente, que circula entre os dedos de todos, multiplicando-se como os pães da fábula bíblica? A cada novo olhar, eis uma pepita de ouro a surgir, como por mágica!

    Camões, coitado, que o diga – a sua epopeia já deve estar mais rica do que qualquer baú de tesouros do Ali Babá, embora tenha ele morrido na penúria. Ai, Portugal, como bem gritou o Almada Negreiros, a pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões! E assim eis-te, valter, prestes a sacar uns cobres por um reles prefácio de sete parágrafos sobre quem escreveu dez cantos em perfeitos versos decassílabos heróicos com oitavas-rimas. Meu sacripanta!

    Valter Hugo Mãe, vestido e sem barbas, antes de prefaciar ‘Os Lusíadas’.

    Só te perdoo porque, enfim, nos ofereces pérolas de basófia: “É preciso amar Camões como um diamante que nasce a partir das carnes vivas e mortas, do que floriu e do que se viu deitado a escombros.” Ah, que imagem pungente! Um diamante brotando de carnes mortas e vivas, um verdadeiro milagre da Natureza! Talvez seja um novo ramo da Geologia, que desconheço, em que as pedras preciosas emergem não de minas profundas ou de riachas obscuros, mas de necrotérios e de jardins floridos, ou de um talho e de um curral de bácoros.

    Quem diria! Afinal, amar Camões está já longe de ser uma questão de gosto literário, mas antes um exercício de espeleologia emocional, onde escavamos os escombros do passado em busca da jóia perdida entre cadáveres poéticos. Só me pergunto, ainda, se o Camões, o bom do zarolho, lá nas suas eternas Ilhas dos Amores, ao ouvir tudo isso, solta um riso sarcástico ou um suspiro cansado. Enfim, valter hugo mãe, tu que julgas domar a língua do Vate com a mesma leveza com que outros controlam mostrengos, escreves como quem monta fogos de artifício: brilhas por instantes, deixas o rastro no ar, mas depois, ah, depois, parafraseando Sá de Miranda, que farei das tuas literárias flatulências quando tudo arder?

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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  • Uma sarrafada no jornalismo mas sem verrugas nos pés

    Uma sarrafada no jornalismo mas sem verrugas nos pés

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para José Gabriel Quaresma, que se assume como jornalista & ‘anchor’ da CNN Portugal, ‘media trainer’e promotor de uma clínica de podologia.


    José Gabriel Quaresma é um espécime digno de estudo em qualquer gabinete de curiosidades sociais e antropológicas, um verdadeiro campeão na arte da elasticidade ética. Este prodígio, iniciado na imprensa desportiva – onde em incerto dia, por certo, terá relatado ou comentado ou tergiversado, em qualquer dos casos com fervor, o enredo épico de um Merelinense-Riopele, como se o Johnny Pirulito, nascido e criado em São Pedro de Merelim, fosse a reencarnação de Homero, não o Serpa d’A Bola, mas o da Ilíada ,– encontra-se agora numa complexa demanda: sarrafada no jornalismo, que vale sempre a pena, se os despojos concederem pilim e, de permeio, se sumirem excrescências.

    Com efeito, despindo-se já há muito das nobres vestes de especialista do ludopédio, trocou ele agora o gramado pelos solados – não há mais euforia ao golo chutado, mas temos agora, nele, o drama caloso dos pés alheios. Sim, meus amigos, José Gabriel Quaresma – que consegue, sem dietilamida do ácido lisérgico, ver “coisas mágicas” numa conversa com Ana Mendes Godinho –mergulha, neste momento, os seus talentos a pés juntos como embaixador da nobre ciência da… podologia.

    Jose Gabriel Quaresma, que se auto-apresenta como “jornalista & Anchor da CNN Portugal” e “Media Trainer”.

    Tendo-me finado nos tempos de Dom Pedro II, o nosso aqui de Pindorama – ainda Charles William Miller era um moleque de São Paulo que nem sequer imaginava vir a dar uns pontapés numa bola no Saint Mary’s Football Club, na Velha Albion –, concedo, pelo que me foi sendo permitido assistir deste lado, que, tal como o próprio futebol, também o jornalismo desportivo é uma forma de arte, uma poesia em movimento, um espaço onde os grandes espíritos podem divagar sobre os matizes tácticos de um empate suado. Nada percebo de matizes, em verdade, mas José Gabriel Quaresma percebe. Porém, tudo cansa. E assim, cansado de cantar as glórias e misérias da esfera de couro, e de debitar o teleponto, e de fazer entrevistas espúrias, decidiu José Gabriel Quaresma que, na verdade, o grande campo de batalha da Humanidade é outro: os pés.

    Ah, os pés! Esses que, na sua modéstia, carregam o peso do Mundo e, ao que parece, também os delírios empreendedores e de marketing de certos jornalistas.

    Mas não é de se estranhar. Em perspectiva, sempre soubemos que José Gabriel Quaresma tinha uma queda – ou seria melhor dizer, um tropeço? – pela autopromoção e pelo marketing um tanto quanto escorregadio, mesmo se voando, por vezes, no aconchego da Força Aérea. Aquilo que começou com a sua entrada no fascinante universo do pomposo ‘media training’ – uma espécie de alquimia moderna onde se transforma uma fala truncada em eloquência estudada, para endrominar o povoléu – rapidamente evoluiu para algo mais… tangível.

    Qual a razão de esconder uma ilegalidade quando tudo se pode fazer às claras?

    Ora, se ele já ensinava, avidamente, tanto a militares como a civis, que nenhum negócio se deve descartar, a não trocarem os pés pelas mãos em entrevistas, nada mais natural que passar a ensinar, também, a não se porem as mãos – ou os pés – em tratamentos errados.

    Portanto, melhor do que aconselhar a coluna perfeita para a câmara, José Gabriel Quaresma recomenda agora o bem-estar pedestre onde, graciosa e elegantemente, se tratou. E como promove! Com um entusiasmo digno de um vendedor de elixires miraculosos em feira medieval. Notem só o enunciado sublime recentemente derramado nas redes sociais por este “Communication Specialist”, e que eu tomo a liberdade de transcrever, com o devido respeito que tal prosa, no original, merece:

    Parece estética e também é! Mas, é, sobretudo, bem estar e saúde! Sobretudo, isso! 🙂 Unhas destruídas por causa da corrida e do Muay Thai. Verruga plantar = prego espetado na planta do pé há anos – com uma Maratona e 20 meias maratonas pelo meio – ! 🦶 Tantos anos depois, finalmente, um pé(s) novo(s), sem dor!🚀 Obrigado, Miguel Vila Pouca, pela excelência, profissionalismo, conhecimento, diferenciação, simpatia. ✨ E, já agora, por me explicares a importância e a abrangência da podologia no nosso bem estar! 🙏 Não imaginava 🤷🏽‍♂️ Na verdade são os pés que sustentam tudo!…🧿 Mais uma razão para não meter os pés pelas mãos 🙂‍↔️‍Centro Clínico Andar”.

    Ah, que espectáculo! Que lirismo dos calcanhares! José Gabriel Quaresma, um artista, desenha diante dos nossos olhos um retrato sublime da jornada heróica do seu próprio pé – um pé que, ao contrário dos mortais comuns, atravessou maratonas e meias-maratonas, na Grécia, presumo, com uma verruga plantar como companheira fiel.

    É um jornalista? É um ‘media trainer’? Não! É um mercador.

    E que subtileza. Não é qualquer um, e somente poderia ser um “Communication Specialist” e um “Anchor & Senior Journalist”, que se atreve no mesmo parágrafo a usar uma metáfora bíblica – um “prego espetado”, lembrando a cruz – e o emoji 🚀, mas aí está a genialidade de um homem único – um homem que concilia o sublime e o ridículo com a leveza somente alcançada pelos mais refinados trapaceiros da retórica.

    Agradecimentos públicos a Miguel Vila Pouca pelo “profissionalismo, conhecimento, diferenciação, simpatia”? Certamente, porque nestes vastos negócios é fundamental haver simpatia. Ou empatia, mesmo quando somente se vislumbra uma superciliosa empáfia. Enfim, nas mãos do Vila Pouca o pé do cliente não precisa apenas de muito alívio, mas também de uma pitada de charme na hora da remoção da verruga – e se for feito sob a forma de promoção através de um jornalista comercial, tanto melhor.

    E que dizer mais do maravilhoso “São os pés que sustentam tudo!” – quanta verdade condensada em frase tão curta! Quem, afinal, poderia nos revelar, senão José Gabriel Quaresma, que o eixo do cosmos repousava tão humildemente sobre os nossos calcanhares? Nietzsche, que dizia que “Deus está morto”, talvez devesse ter conhecido José Gabriel Quarema antes de proferir tal declaração. Se assim fosse, o prussiano teria descoberto que a chave para a redenção humana estava, afinal, na podologia.

    Enfim, com Miguel Vila Pouca e o Centro Clínico Andar, talvez José Gabriel Quaresma não salve a sua alma – eu próprio não me acho a salvo de nada, sobretudo ao ridículo dos outros –, mas, ao menos, posso garantir que os seus pés caminham em próspero rumo, aliviados do fardo das verrugas.

    Os pés como revelaçoes cósmicas.

    Agora, se permitirem, faço uma pequena pausa para reflectir sobre a transição deste jornalista que, outrora, nos encantava com as suas narrativas de grandes conquistas futebolísticas – se calhar, exagero –, e que hoje nos educa sobre a importância do bem-estar plantar, enquanto “nos mostra as passagens da vida vista da janela “, mas só para quem “gosta de coisas mágicas”, sobretudo com a Ana Mendes Godinho. Eis-nos aqui, Senhor, contemplando um notável monumento de versatilidade!

    E quanto à Deontologia e à Ética jornalística? Ah, isso são ninharias para espíritos tão elevados como o de José Gabriel Quaresma, que já transcendeu as amarras das profissões mortais para trilhar o caminho divino da multifuncionalidade. Jornalismo, “media training”, lambe-botismo e podologia – tudo cabe na sua paleta, contanto que, claro, haja um bom contrato de marketing envolvido.

    E assim seguirá, sem verrugas nem mácula, a carreira de José Gabriel Quaresma, exemplo ímpar de como, neste vasto mercado de trabalho, o importante não é exactamente para onde seus pés estão indo, mas sim quanto você pode facturar com eles, mesmo se vergastando o Estatuto do Jornalista. Afinal, como o próprio diria, por certo, com uma piscadela, talvez não tão boa como a do José Rodrigues dos Santos, mas com um emoji voador, importante mesmo é “não meter os pés pelas mãos”. E se houver calosidades, o Miguel Vila Pouca trata.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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  • Exaltação a Rangel, ou o terremoto de Sines (em versão canónica e não-canónica)

    Exaltação a Rangel, ou o terremoto de Sines (em versão canónica e não-canónica)

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Paulo Rangel, o ministro que, qual Pombal do século XXI, após as ondas telúricas, levantou uma Lisboa que não caiu.


    Das misérias humanas, sei eu bem, embora não tenha, como sabeis, transmitido a nenhuma criatura esse legado, mas jamais deixei de me interessar pelas idiossincrasias da espécie, especialmente quando se trata de comparar a minha ilustre pessoa à do meu ilustre amigo Quincas Borba, pouco dado agora, neste estado, às escritas, mal-refeito ainda do estado de penúria e desemparo com que se finou da vida.

    Mas vamos, então, ao que interessa. Como tendes conhecimento, eu, Brás Cubas, sou o autor da “primeira narrativa póstuma do Brasil”, e, portanto, devo ser respeitado. Não é todo defunto que se dá ao trabalho de contar a sua própria história, ademais com o brilho de minha pena, afiada pela navalha da ironia e do sarcasmo, para vos deixar um ‘património do nada’. Já o meu amigo Quincas Borba quis, com o seu Humanitismo, criar uma filosofia que mais não será que egoísmo, disfarçado sob um véu de altruísmo, e que mais não nos deu do que a cómica expressão “Ao vencedor, as batatas” – que, para ser honesto, e sabendo-se que estas solanáceas se comem, assim concedem, na melhor das hipóteses, escatologicamente, uma porcaria.

    Alegoria do Terremoto de 1755, de João Glama Ströberle, exposta no Museu Nacional de Arte Antiga.

    Mas não me perca a atenção, caro leitor, pois as diferenças entre nós são cruciais. Enquanto eu, Brás Cubas, fui um desocupado crónico, que dedicou sua vida ao ócio e às frivolidades da alta sociedade, Quincas Borba teve a ousadia de ser um homem de ideias — não menos absurdo por isso.

    Agora, sejamos sinceros: entre o ócio intelectual que me caracterizou e a filosofia insana de Quincas Borba, o que é mais nobre? Difícil dizer, caro leitor, difícil dizer. De qualquer modo, ambos tivemos nossos momentos de glória.

    Sabemos todos que as glórias surgem, as mais das vezes, das desgraças. E, ah, meu prezado leitor, mas não nos devemos atender em demasia ao conceito de desgraça. Por exemplo, na transacta semana, a cidade das sete colinas, e arredores, foi sacudida por um terremoto. Uma desgraça certa se não fosse a realidade pregar uma peça: o tremor, ao invés de devastar tudo, não passou de um tremelique inofensivo, que nem telha fez cair. No entanto, se a terra não se moveu com grande entusiasmo, já a alma dos políticos, ah, essa sim, tremeu de excitação! Que ocasião perfeita para se glorificarem, como se tivessem salvado a cidade de uma hecatombe bíblica.

    Agora, imagine, leitor, eu e Quincas Borba nos reunimos em torno desse evento tão magnânimo, discutimos forma de honrar o terremoto de Sines de 2024, com artes de Voltaire em 1755. E daí a nada estava Quincas tomado por uma inspiração doida, a compor versos sobre a “grande vitória do espírito humano” diante do “inesperado cataclismo”. Segundo ele, o Humanitismo havia provado sua força mais uma vez, pois, mesmo diante do nada, o ministro Rangel fora capaz de transformar o vazio em glória. Ah, que bela reviravolta da lógica! Glorificar-se por sobreviver ao que não aconteceu é mesmo um feito digno de nota.

    Eu, por outro lado, não pude deixar de me divertir com tamanha patacoada. Que poema, que nada! Propus que escrevêssemos algo mais adequado ao contexto: uma ode à inutilidade da prontidão política, que se exibira com pompa e circunstância diante de um abalo que nem o Serafim acordara.

    Paulo Rangel, o Pombal do século XXI.

    Não chegámos a consenso, embora tivéssemos trabalhado com afinco e denodo. Quincas Borba pretendeu linguajar grandiloquente e heróico, como se a resposta do Governo tivesse sido uma vitória monumental – e merecesse as batatas. Já eu, preferia tom mais sarcástico e jocoso. Divergimos, e portanto, como sucede a bons políticos, criámos cada um seu partido, partindo a concórdia.

    Assim, a mim saiu-me isto:

    Ó Terra ingrata, que em teu forte bramir,

    Lisboa em pó já fizeste abater.

    Agora, tremes mas sem força a ferir,

    Tão leve o abalo que nada há-de ceder.

    Se outrora o Tejo em ondas te acolheu,

    E a cidade em chamas o céu ofendeu,

    Hoje, em Sines, apenas murmurou

    Um fulgor brando, que o sono não quebrou.

    Mas, ó governos, tão prontos e sagazes,

    Ao menor tremor, do que sois capazes!

    De, em alta voz, a todos proclamar:

    Que prontas estão as defesas a marchar.

    Ó Rangel, ministro de virtude,

    Que, com firme e solene atitude,

    Te ergueste, qual gigante pela paz,

    Pronto a defrontar o que a Sorte traz.

    E se em Setecentos, o grande Pombal,

    Com mão sábia, reconstruiu Portugal,

    Tu, Rangel, no abalo que nada derribou,

    Firmaste a fé em terra que jamais tombou.

    Em Belém, Marcelo, em voz segura,

    Exaltou a prontidão que, em tal altura,

    Fez da ameaça um exercício vão,

    Mas onde o Estado mostrou perfeição.

    Ó, como tal Governo é capaz

    De, na menor crise, erguer-se audaz!

    Pois se a Terra treme, sem destruição,

    Louvores mil à força da Nação.

    E se assim cantamos, em verso aclamado,

    O sismo que nenhum deixou acamado,

    E que, em verdade, nada abalou,

    Foi pela grandeza de quem não hesitou.

    Camões, visses tu como se faz,

    Como quem nos governa é falaz…

    Pois não sendo a ruína o qu’o valor mede,

    É à prontidão qu’o perigo cede.

    Por sua vez, ao meu amigo Quincas Borba, já pouco humorado, ademais por, por mofice, lhe afiançar ser eu a seguir o cânone, saiu-lhe apenas isto:

    Ó Terra ingrata, o teu forte bramir,

    Lisboa em ruína ele já fez cair.

    Mas, hoje, em Sines, apenas murmurou

    Um sismo brando, que a casinha não quebrou.

    Ó Rangel, ministro sem engano,

    Com tal destreza evitaste o dano!

    Ergues-te, qual gigante, sem tardança,

    A defrontar a Sorte com a Esperança.

    Se em Setecentos, se alevantou Pombal,

    Com sábia mão, a reconstruir Portugal,

    Tu, Rangel, no abalo que nada derrubou,

    Atinaste que a terra não tombou.

    E, na praia de Belém, com voz segura,

    Marcelo louva a prontidão que n’altura,

    Fez da ameaça um trabalho são,

    Onde o Estado mostrou a perfeição.

    Ó, como tal Governo é capaz

    De, na menor crise, erguer-se audaz!

    Pois se a Terra treme, sem destruição,

    Louvores mil à força da Nação.

    E se assim cantamos, em versos aclamados,

    O sismo que deixou a todos acordados,

    Mas que, em verdade, nada abalou,

    Foi pela grandeza de quem não hesitou.

    Camões, visses tu o que se faz,

    E do que quem nos governa é capaz…

    Pois, não sendo a ruína o que o valor mede,

    É à prontidão qu’o perigo cede.

    Agora, proponho aos nossos leitores que decidam a quem pertencem as batatas.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

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  • O Alexandre, que não é grande ‘coisa’ na arte da escrita

    O Alexandre, que não é grande ‘coisa’ na arte da escrita

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Alexandre Évora, um pivot com ares de comunicador, que decidiu assassinar o português, a língua.


    Neste vosso tempo, com a poderosa espada da turba digital e o escudo do cancelamento impondo uma superioridade moral, sem sair do conforto de cadeiras ergonómicas, ou do sofá, temo ser incompreendido ao preparar-me, eu um branquela, embora enegrecido por quase um século e meio de cadáver, para dar uns petelecos no jornalista Alexandre Évora. E vejam que é um mero peteleco, nem sequer é um tabefe, e muito menos umas chibatadas, mesmo se metaforicamente merecidas no caso em juízo por conta de se tratar de um jornalista a maltratar a língua portuguesa.

    Convenhamos que seria, passe a intencional redundância, mais conveniente ser o meu criador, o próprio Machado de Assis, homem de tez mais bronzeada do que a minha, a curvar a ponta do indicador até apoiar a unha sobre a cabeça do polegar e desferir-lhe o tal peteleco na orelha, para pelo menos aprender a não envergonhar mais a língua de Camões, enegrecida em grau superlativo pela má casta de jornaleiros.

    Enfim, em abono da verdade, longa vida desejo a Alexandre Évora, porque, salvo todos os horrores, sempre me deleito com os monumentos ao pedantismo gramatical e ao descaso sintático, especialmente provindo de alguém impecavelmente vestido, lencinho no bolso do paletó, mãos depostas como vem nos livros de fotogenia, barba e cabelo à medida, e gravata a matar tanto quanto ele chacina o seu instrumento de trabalho: a língua.

    Enalteçamos este hino ao disparate: em apenas uma frase de apresentação, Alexandre Évora não apenas tropeça, mas se esparrama de forma desajeitada numa cacofonia de vírgulas mal colocadas, se colocadas, redundâncias desnecessárias e uma estrutura que faria corar de vergonha até o mais complacente dos revisores.

    Detalhemos, para o retalhar. Comecemos pela própria essência da frase: “Pessoa que tem por profissão trabalhar no domínio da informação, num órgão de informação social numa publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet.” O sujeito, uma suposta “pessoa” cuja profissão é trabalhar no tal “domínio da informação”, já nos faz arquear sobrancelhas, e rezar pelos anjinhos.

    Que definição brilhante, que originalidade esta, do majestático homem da moderna televisão, que jamais poderia simplificar aquilo que cabia numa única palavra… como, deixem cá ver… já sei: jornalista. Não: Alexandre Évora quis-nos presentear com a sua definição de jornalista, e ele é, lá está, pessoa com aversão patológica à simplicidade. Qual o motivo para se usar uma palavra quando se pode enrolar o leitor numa teia de descrições redundantes e tautológicas, não é mesmo?

    A estrutura da frase é, com efeito, uma jóia rara. Imaginem o processo de pensamento de Alexandre Évora: o sujeito começa com uma tentativa de definir “pessoa”, mesmo não sendo claro por que motivo essa definição seria necessária. Depois, Alexandre Évora perde-se num labirinto de preposições e complementos que, ao invés de esclarecer, obscurecem. “Domínio da informação” é tão vago que não diz absolutamente nada, somente usada para dar ares de erudição. Afinal, que jornalista de verdade não se sentiria tentado a elevar a trivialidade da sua ocupação a (vejam se não soa melhor?) um “domínio”?

    Ah, mas não paremos por aqui! O uso indiscriminado de vírgulas, complementado aos ares de bacoca erudição, é mui digno de nota, ou talvez mais digno de um prémio de desrespeito à pontuação. A vírgula, aquela invenção gramatical que serve para separar elementos da oração de maneira lógica e coerente, é jogada por Alexandre Évora como se fosse sal lançado aleatoriamente num prato. Maravilha: “No domínio da informação, num órgão de informação social numa publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet.” Notem como a vírgula é tratada com um desprezo quase heróico. Uma vírgula antes de “num órgão de informação social”? Pra quê, não é mesmo? A regra da clareza deve ter sido abolida por decreto particular.

    A repetição do termo “informação” é outra faceta da vaidade deste texto. É como se o autor estivesse se certificando de que o leitor compreendesse, de uma vez por todas, que estamos, de facto, falando de informação. E caso houvesse alguma dúvida sobre isso, ele faz questão de enfiar essa palavra na nossa garganta várias vezes, até que estejamos sufocados com a obviedade.

    E que tal a menção à “publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet”? Aqui vemos o autor se embrenhando numa selva de conectivos que não têm destino certo. Se um jornalista escreve “ou”, talvez seja prudente não seguir com uma lista tão desconexa. Primeiro, “publicação periódica escrita” parece estar sozinho, um conceito isolado na sua magnificência sem ser contrastado com “televisão, rádio, internet”. E se tivermos a audácia de analisar o conteúdo, perceberemos o quão inútil essa separação é: óbvio será, menos talvez para o próprio Alexandre Évora, que as informações se espalham por esses meios; não havia ‘nexecidade’ de um elenco que mais parece conta de padeiro.

    E então chegamos ao grande final. Este Alexandre, que não é Grande ‘coisa’ na arte da escrita, aventura-se por uma selva de conectivos, cada um mais perdido do que o outro. “Publicação periódica escrita ou na televisão, na rádio, na Internet” – escreve ele, num elenco desconexo que não vai a lugar nenhum, a não ser talvez ao prémio de confusão gramatical. E para finalizar com chave de ouro, esquece até a última vírgula antes da conjunção “e”. Sim, até essa vírgula se sacrificou no altar da incompetência gramatical.

    Resumindo, uma frase a figurar como exemplo negativo em qualquer manual de estilo, jornalístico ou da antiga quarta classe, com direito à palmatoada com a ‘menina dos cinco olhos‘. Mas, no fim, sempre a lição se perpetuará: por mais vaidoso que seja o jornalista, por mais elevado que ele se considere no seu “domínio da informação”, a superciliosa empáfia jamais compensará a falta de habilidade em escrever de forma decente.

    Até breve, e um piparote. Ou um peteleco.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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  • Rondadas com flic-flac e dois giros e meio no ar

    Rondadas com flic-flac e dois giros e meio no ar

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para os jornalistas que fazem rondadas com flic-flac e dois giros e meio no ar, enquanto mercadejam notícias.


    Ao contemplar, do meu etéreo descanso, o cenário contemporâneo da vossa Pátria, sou agora levado, caro leitor, a comparar a intricada dança entre jornalistas no meio da arena política e financeira com as rondadas seguidas de um flic-flac e dois giros e meio no ar com que Rebeca Andrade perfumou as Olimpíadas de Paris. A minha patrícia arrecadou merecido ouro, depois de anos de esforço, enquanto os jornalistas portugueses não param de o arrecadar.

    Ah, mas os jornalistas portugueses são, convenhamos, mais discretos na sua arte; não andam aos pulos, nem recebem palmas nem a palma, embora se mostrem exímios acrobatas, gingando graciosamente como donzelas num baile! Enfim, estrelam em noite de gala, convivendo com os demais, seguindo os conselhos de Erasmo de Roterdão. Permitam-me, pois, vestir a máscara da ironia e empunhar a pena do sarcasmo, ao melhor estilo que um defunto autor possa compor, para vos narrar a promíscua relação que ora se desenrola, quase mesmo defronte dos vossos olhos.

    Imaginem, se quiserem, um jornalista dos vossos dias. Chamemo-lo D.A., embora ele seja mais adepto de receber. Como outros, D.A. é homem astuto – e se fosse mulher, seria astuta –, de olhar penetrante e sorriso fácil, bem-vestido e melhor falante, dotado de uma rara habilidade de transitar entre a notícia e a bajulação, com o negócio no nariz. Dir-se-ia que D.A. nasceu para a arte de bem-dizer, mesmo mal sabendo escrever. Na verdade, para entes do seu quilate, basta ser versado na arte de bem entreter, desde que os seus artigos fiquem carregados de um verniz de imparcialidade, enquanto dali escorre a mensagem que deseja para benefício dos políticos e dos homens de negócios de sua feição ou afeição.

    Eis, portanto, que depois de muita tarimba, D.A. recebe os convites para jantares. Não uns jantares quaisquer, mas com as altas esferas do poder. Lá estão, à mesa, políticos de renome, senhores de negócios e outros pássaros raros da fauna social. As taças tilintam, as risadas ecoam, e D.A., qual cortesão do Ancien Régime, desliza suavemente, entre uma e outra conversa, pescando informações e semeando as suas pretensas influências.

    “Ah, senhor doutor D.A,,” diz-lhe um ministro, “as suas palavras são sempre um bálsamo para nossos eleitores, digo, leitores. Precisamos de homens como o senhor, que saibam compreender as nuances do poder e as expliquem ao povo; essa é a verdadeira função do jornalismo independente como alicerce da democracia.” Convém que isto seja acompanhado com música de violino, mas não é necessário.

    E D.A., com ar sisudo mas sorriso nos olhos, sempre responderá: “Fazemos o que podemos, digo, o que devemos, senhor Ministro, pelo bem da Nação, claro está, e do povo, contra a desinformação velhaca, que deve ser atacada pelo Estado, através de mecanismos de promovam o justo equilíbrio e sustentabilidade deste nosso serviços público”. E blá blá blá…

    E depois ajunta-se-lhes um homem de negócios. E a ladainha: “Ah, senhor doutor D.A,,” diz-lhe, “as suas palavras são sempre um bálsamo para a clientela, digo, leitores. Precisamos de homens como o senhor, que saibam compreender as nuances da economia e das finanças, e as expliquem ao povo; essa é a verdadeira função do jornalismo independente como alicerce do negócio.” Convém que isto seja acompanhado com o Money, a música dos Pink Floyd do álbum The Dark Side of the Moon, mas não é necessário.

    E D.A., com ar sisudo mas sorriso nos olhos, sempre responderá: “Fazemos o que podemos, digo, o que devemos, senhor Administrador, pelo bem da Nação, claro está, e do povo, contra a desinformação velhaca, que deve ser atacada pelos investidores, através de mecanismos de promovam o justo equilíbrio e sustentabilidade deste nosso serviços público”. E blá blá blá…

    Entretanto, meus caros, a verdade é outra. O “a bem da Nação’, essa enteléquia abstracta, é na realidade uma moeda de troca, uma mercadoria negociável em jantares e encontros furtivos. O jornalista, outrora um paladino da verdade, é agora um mercador de favores, um intermediário entre o público e os poderosos. Ele vende, a preço de ouro, a sua influência, a sua capacidade de moldar a opinião pública.

    Os homens da política e dos negócios, por sua vez, compreendem a utilidade desse intermediário. Sabeis vós que um artigo bem colocado, uma reportagem subtilmente favorável, pode valer mais que mil campanhas publicitárias e mais que mil panfletos eleitorais? D.A., o nosso astuto jornalista, sabe disso melhor que ninguém, e por isso recebe. Ele aceita de bom grado os mimos e as benesses que lhe são oferecidos, convencendo-se, enquanto conduz o seu carro, remodela a cozinha da sua nova vivenda, e passa férias numa ilha grega, de que está, no fundo, a contribuindo para o progresso da sociedade. E a lutar contra a desinformação… E, já agora, contra as alterações climáticas. E a favor da Ciência, sempre; sobretudo daquela apoiada pelos políticos e pelas farmacêuticas…

    Mas também não sejamos injustos, ainda andam por aí uns românticos, mas esses são uns líricos, uns Dom Quixote lutando contra moinhos de vento, acreditando na sacralidade da verdade. O que é a verdade, já perguntava Pilatos, sem que Cristo lhe desse resposta… Ah!, mas são já raros, esses, quase extintos, em vias de desaparecimento. Paz à sua alma; serão os heróis trágicos deste vosso tempo, que feneceram perante o pragmatismo do novi-jornalismo, que em coordenação com os reguladores, trataram de condenar ao ostracismo ou à insignificância o velho e decadentes jornalismo de outrora.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

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  • Filantropia, lucro e sede de nomeada

    Filantropia, lucro e sede de nomeada

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas semanais. Hoje, o piparote de Brás Cubas vai para as benfeitorias dos laboratórios clínicos em 2021 que se transmutaram em malfeitorias em 2024.


    Quem sabe, sabe; quem não sabe, fica a saber agora, porque eu digo, ou escrevo: morri de pneumonia. Não será, daí, que me advém o interesse por assunto de farmacologia, de terapêuticas e de diagnósticos, nem é por aí que lamento não me terem dado um Paxlovid, ou, vá lá, uma Ivermectina nos idos de 1880, para me salvar daquela febre pulmonar. Se não fosse daquilo, seria daqueloutra.

    Lamentei sim, e lamento de novo, ter o meu acabamento frustrado, por incompetência ou impotência, o alcance prático e concreto de uma ideia, uma ideia fixa, saída da minha cabeça antes da entrada nos meus pulmões da bactéria ou do vírus (coisa nunca ouvida em minha vida), que nada menos era que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. Como alguns sabem – e quem não sabe, eu digo outra vez, ou escreverei –, na petição de privilégio que então redigi, chamei a atenção do Governo para esse resultado, verdadeiramente cristão. Todavia, não neguei antes, e continuo a não negar, e confidenciei aos amigos, as vantagens pecuniárias que deviam resultar da distribuição de um produto de tamanhos e tão profundos efeitos.

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    Há 144 anos já confessara, e agora confesso de novo, que, continuando cá do outro lado da vida, aquilo que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplastro Brás Cubas.

    Para que negá-lo? Eu tinha, e tenho, a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas. Talvez os modestos me arguam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hão-de reconhecer os hábeis. Assim, a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: – amor da glória.

    Compreendo, por isso, muito bem a indisposição, a “indignação” da vossa Associação Nacional de Laboratórios Clínicos depois de verem a vossa Autoridade da Concorrência aplicar às empresas dos seus dirigentes umas coimas de uns quantos mil-réis, vertidos em euros. Deve valer muitos ouros dos meus tempos. Ainda andei a tentar saber quanto valeriam 57,5 milhões de euros nos meus réis do século XIX, mas perdi-me em contas, considerando que depois do meu fenecimento, no Brasil se trocou os réis pelo cruzeiro, depois este cruzeiro pelo cruzeiro novo, e depois este cruzeiro novo passou novamente a ser cruzeiro, depois este se mudou para cruzado, e depois este cruzado se transmutou para cruzado novo, e depois este cruzado novo se alterou (de novo) para cruzeiro, e depois este cruzeiro se renovou em cruzeiro real, e depois este cruzeiro real saltou, por fim, corria o ano de 1994, para o real – que, depois dos ciclópicos desvarios da minha nação, e mais a inflação, do meu real só tem a nominata.

    Enfim, adiante. Compreendo, pois, e me solidarizo com a manifestação de “total desacordo e indignação” dos benfeitores laboratórios clínicos acusados de malfeitorias, porque, em abono dos factos, acho mesmo que houve “falta de compreensão crítica” da Autoridade da Concorrência sobre a resposta dos desditosos ditos, pobrezinhos, “aos apelos do Estado português” para “responder às necessidades impostas pela pandemia”.

    E eu acrescentarei, para dramatizar, sete adjectivos aos apelos do Estado português, embora inaudíveis por inexistirem registos, mesmo se manipulados: lancinantes, pungentes, excruciantes, torturantes, aflitivos, mortificantes e esmagantes. E escolho sete por terem sido sete os dirigentes da Associação Nacional de Laboratórios Clínicos que, correndo para os apelos do Estado, representam as sete empresas que, sem darem por isso – por estarem preocupadas só em responder “às necessidades impostas pela pandemia” –, se viram a lucrar muitos milhões em ajustes directos depois de combinarem preços entre si. Aliás, admira-me que os comentaristas da vossa imprensa, que andaram a aplaudir cada um dos 46 milhões de testes realizados em Portugal que apanharam 12 infectados (não necessariamente doentes) em cada 100 zaragatoadas, não se insurjam por uma benfeitoria praticada em 2021 se transmutar em malfeitoria em 2024.

    Na verdade, sinto na alma – por as minhas frias carnes já há muito terem sido roídas pelos vermes –, aquilo que as empresas agora sentem na carteira: uma desalmada frustração. A ideia dos empresários dos laboratórios clínicos com os testes nas escolas era a mesma que eu tinha para o meu emplastro: uma medalha, com uma das faces virada para o público, reflectindo-os como ‘salvadores da Pátria’ na pandemia; e a outra virada para eles, com o ouro dos cofres da Pátria. Saíram-se mal. Ou não.

    Até para a semana, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • A Teoria do Medalhão aplicada à Professora Rita Figueiras

    A Teoria do Medalhão aplicada à Professora Rita Figueiras

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas semanais. Hoje, o piparote de Brás Cubas vai para a Professora Rita Figueiras pelas culpas às redes sociais sobre um ‘caso’ inicialmente noticiado pela imprensa respeitável como uma queda do palco de Trump.


    Ouvir – ou, neste caso, ler – uma professora universitária é um acto que se deve praticar com a dilgência de um Janjão, daquele filho de 21 anos que, em incerto lugar brasílico na noite de 5 de Agosto de 1865, pelas 11 horas, auscultou os ensinamento de seu pai, de sorte a, sem grande esforço das meninges e com devida protecção contra dissabores, alcançar postos elevados. Pode ser sempre que se fixe, em nós, umas quantas figuras expressivas, umas sentenças latinas, uns ditos históricos, uns versos célebres, uns brocardos jurídicos, umas máximas, que sempre bom aviso será trazê-los connosco para discursos de sobremesa, de felicitação, ou de agradecimento, que nos possam tornar uns excelsos e bem-sucedidos medalhões.

    Por isso, depois de uma leitura da instrutiva e enriquecedora Teoria do Medalhão, de um tal de Machado de Assis, aconselho-vos a sugarem a opinião – que digo!, factos, são factos! –, da professora – que digo!, que digo! Professora – Rita Figueiras, que no Público dissertou, a pretexto do atentado contra Trump, sobre “a morte da verdade”.

    Se sacaram os soundbites da Senhora Professora – que digo!, antes devo dizer, Vossa Excelência Professora Doutora –, que ali tão bem expõe, podem depois papaguear uma tese sobre as origens e consequências da “crise epistémica na democracia” – só o facto de decorarem este termos vos acrescentará pontos de valimento –, e sem colocar o intelecto em movimentos independentes, e com soberba e bons préstimos, arremeter em força na seguidura do ambicionado posto de medalhão. Ela, assim já fez, e assim chegará longe – e vós, atrás.

    Fixem o que escreveu Vossa Excelência Professora Doutora, que aqui separo em frases para melhor apreensão – ou compreensão.

    O ambiente digital é avesso à disciplina da verificação, e a destruição da noção de que existem factos é mais uma prova de que tudo se tornou uma questão de opinião”.

    Serviços secretos socorrem Tump após ele cair em comício, titulou a CNN

    As alegações falsas e conspirativas, que fluem livremente pelas redes sociais e contaminam o trabalho jornalístico, contribuem para pôr tudo em causa”, Vossa Excelência Professora Doutora Rita Figueiras scripsit.

    Trump cai do palco durante comício na Pensilvânia com sangue no rosto, divulgou O Globo… na rede social X e também no próprio site do jornal.

    “Este ambiente é, igualmente, promovido por figuras institucionais da política americana que emitem, espalham e alimentam perspetivas enganosas do sucedido”, Vossa Excelência Professora Doutora Rita Figueiras scripsit.

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    Música…

    “E nas próximas semanas vamos continuar a assistir a uma escalada incessante da guerra de significados sobre o que aconteceu, movida por ódio, ressentimento e intransigência”, Vossa Excelência Professora Doutora Rita Figueiras scripsit.

    Serviços Secretos retira Trump do palco às pressas após ruídos de estouros serem ouvidos no seu comício na Pensilvânia, titulou a NBC News.

    “Neste contexto, a possibilidade de estabilizar um entendimento comum em relação ao ataque parece impossível”, Vossa Excelência Professora Doutora Rita Figueiras scripsit.

    Um dia depois, qualquer órgão de comunicação social assumiu, pacificamente, ter-se tratado de uma tentativa de assassinato.

    Enfim, se decorarem os doutos oráculos da Professora Rita Figueiras farão sempre um brilharete. Não certifico que vereis a queda das muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas nem vos assevero que triunfareis para entrar na Terra Prometida, mas abrir-se-vos-ão as portas para uma profícua colaboração como opinion maker em qualquer jornal. Julgar e culpar as redes sociais passou a desporto, e sempre soará melhor ao vulgo zurzir em tudo o que se determinou ser mau do que açoitar quem, na verdade, tendo o dever de confirmar antes de publicar, não o faz.

    Até para a semana, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do caracter jocoso, irónico ou sarcástico.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Visão: verdes são os campos que tropeçam na EDP

    Visão: verdes são os campos que tropeçam na EDP

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas semanais. Hoje, o piparote de Brás Cubas vai para o dossier sobre Alterações Climáticas da revista Visão – Edição Verde.


    Na edição nº 1365 da revista Visão, uma EDIÇÃO VERDE, apesar dos tons avermelhados e amarelados da capa, o tema foi as alterações climáticas. “Há motivos para estarmos alarmados?”, perguntava-nos a revista, como se o cenário artificialmente tórrido imbuído num Alentejo pré-saariano não fosse já uma óbvia resposta. E tanto o cenário é negro – ou vermelho – que se anunciava o diagnóstico climático e ambiental de 10 investigadores e especialistas – sendo que, pela apresentação, os primeiros não são os segundos, e os segundos não serão os primeiros –, e se expunha os temas do dossier: “a dificuldade de prever os fenómenos extremos”, “os riscos do degelo acelerado e a urgência de salvar os oceanos”, “o impacto nas vinhas e as estratégias para a agricultura” e “o crescimento verde e a transição energética”.

    Sigamos para o interior, não da quente Terra, mas da fresca revista, embora saída na semana passada. Como prelúdio, um conteúdo patrocinado, para promover “o sonho de um belga tornado realidade em Tavira”, tudo uma lindeza cheia de água para mostrar que, quando um homem quer, “o turismo anda de mãos dadas com a natureza”. Não é, por certo, por causa do Altanure, que pagou uma página de publireportagem não assinada, que a Terra vai desaparecer.

    Finalmente, na página seguinte, a 32, a primeira investigadora ou a primeira especialista a botar faladura sobre alterações climáticas. Calma: ainda não entrámos no dossier Alterações Climáticas. Falso alarme: é um texto de promoção das políticas ambientais assinada pela ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho. Longe vão os tempos em que os ministros não faziam publicidade gratuita para expor as suas promessas, sem sequer ter um jornalista a fazer-lhes perguntas. Sigamos.

    O dossier começa então. E afinal, ora bolas!, temos um “exclusivo para a Visão” de 9 artigos de opinião, considerado que um tem duas co-autoras. Em todo o caso, um exemplo de jornalismo low cost: despacham-se 19 páginas de uma revista, num dossier de capa, sem se usar um único jornalista.

    Mas calma, isto não acabou. O jornalista de ambiente de serviço da Visão, Luís Ribeiro, não pôde fazer uma reportagem de fundo na Visão para dar uma visão crítica sobre as alterações climáticas porque esteve entretido em cobrir um evento tecnológico organizado pela EDP Inovação em Madrid. E lá aparece o jornalista Luís Ribeiro a descrever do que se trata – pitchs de startups na área da energia – e a dar o comentário do CEO da EDP Inovação e, depois,do director do Ecossistema de Inovação da EDP.

    Na mesma revista, um artigo de opinião da ministra do Ambiente e um “conteúdo comercial” pago pelo Fundo Ambiental, tutelado pela ministra do Ambiente. Meras coincidências.

    Tudo ocupa cinco páginas, em seguida surge mais um “conteúdo patrocinado”, na página 59: um artigo de opinião escrito pela directora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, mas quem pagou a ‘coisa’ foi o Fundo Ambiental, tutelado pelo Ministério do Ambiente, cuja ministra é a senhora que escreveu um artigo de opinião, supostamente não pago, nas páginas 32 e 33. Reparo agora que a imagem deste ‘par’ de dois artigos (um de borla e outro pago, o que significa que, em média, metade de cada artigo foi pago) antecipou a revelação, mas, enfim, se os princípios do jornalismo já feneceram, pode-se sempre mostrar-se um final antes do princípio, que isto anda tudo esquisito.

    Esquisito? Talvez. Mas não mais do que a ‘peça’ seguinte deste dossier: uma entrevista com… ora, que surpresa: o CEO da EDP Inovação, feita pelo mesmo jornalista (Luís Ribeiro) que foi ao evento da EDP. Houve direito a três fotografias do dito e tudo, uma das quais de página inteira. Fofinha a entrevista, sobretudo na parte em que se aborda a China – um dos grandes accionistas da EDP –, que tem sido, de longe, o país com maiores e mais crescentes emissões de dióxido de carbono. Mas isso agora não interessa nada – a EDP está na crista da onda da transição verde, né?

    Enfim, depois disto, já pouco relevo merece questionar se, à pala da (in)sustentabilidade dos recursos marinhos, a reportagem sobre o “almoço verde” confeccionado pelo chefe David Jesus com “espécies marinhas sustentáveis” serviu como alerta para a sobre-exploração pesqueira ou para promover as villas privadas do L’And Vineyards, em Montemor-o-Novo, a 500 euros o quartito em Agosto. Jornalismo ou publicidade, eis a questão. O Hamlet aqui poderia ser o fotógrafo da reportagem, Marcos Borga, porquanto essa reflexão introspectiva me parece essencial ao até há pouco tempo membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

    O jornalista da Visão foi, certamente por interesse editorial, a Madrid acompanhar um evento organizado pela EDP; e já que assim foi, achou boa ideia uma entrevista ‘fofinha’ ao CEO da EDP Inovação para integrar num longo dossier sobre Alterações Climáticas engrossado com uma mão-cheia de artigos de opinião, o low cost do jornalismo.

    Termina este instrutivo (no sentido do estado da imprensa portuguesa) e longo dossier ambiental com uma reportagem sobre a nova conduta de drenagem de águas pluviais de Lisboa – que, hélas, é a única peça que aparenta ser jornalística, porque acaba por criticar os riscos de segurança da obra – e uma notícia-descrição da fábrica de Mangualde do Grupo Stellantis que está a construir furgões eléctricos. Oportuno porque ninguém, a não ser todos os media mainstream, falou desta fábrica na semana passada, por via da entrega de veículos eléctricos ao SNS.

    Até para a semana, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do caracter jocoso, irónico ou sarcástico.


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